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Célia Gouvêa

(Organizadora)
Dança no século XXI
Célia Gouvêa
(Organizadora)

1ª Edição - Copyright© 2017 Editora Prismas


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Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz
Bibliotecária CRB 9-626

Nome do Autor
XXXX Nome do Livro
XXXX / Nome do Autor. – X. ed. – Curitiba : Editora Prismas, XXXX. XXX p. ; 21 cm
ISBN: XXX-XX-XXXXX-XX-X
1.XXX. 2. XXX. 3. XXX. 4. XXX. 5. XXX. I. Título.

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Prefácio
Dança no século XXI

Após a disseminação do entendimento do corpo como


produtor de conhecimento ocorrida no século XX desde o térmi-
no da segunda guerra mundial, perguntamos que outros desdo-
bramentos e propostas corporais podemos aguardar neste século
atual? Quais serão as corporalidades delineadas? Para que devires
apontam o corpo e o movimento na soleira anunciada? Que pro-
cessos cinestésicos estarão por vir? Ainda que possamos admitir
não ser a passagem de um século, de uma década, nem mesmo de
um ano cronológico o fator que provocará novos pensares, está
aqui aberto e proposto um espaço para uma multidão de per-
guntas, múltiplos questionamentos sobre a dança no século XXI.
Esta é a marca da presente publicação, sua provável função, além
da particularidade sinergética de comunicar não só a um público,
mas entre os participantes.
Com o propósito de mapear a questão em perspectiva
nesta publicação e em meio a tantas ramificações possíveis, con-
videi pesquisadores da dança em busca de perguntas e/ou respos-
tas reveladas a partir de suas experiências, situações que indicas-
sem as travessias por onde passaram, provaram e arriscaram. Não
por acaso, em sua maior parte, os artigos são intrinsecamente
ligados às pesquisas de mestrado ou doutorado em curso de seus
autores. E isso está de acordo com nosso convite, que não propu-
nha pensar um determinado tema, mas permitir a livre escolha.
O verbo convidar principia pelo prefixo con, que designa tomar
a mesma forma, o mesmo que aceitar, permitir. Convites aceitos,
todos se permitiram pensar o tema a partir de suas experiências.
Um ato inaugural invariavelmente estimula, pro-move.
Possibilita que algo novo se instaure. É o tema Dança no século XXI
uma provocação, como disse Helena Bastos? Um provável desa-
fio, sim. Pro-jetar, certamente. O pro designa aquilo que é a favor.
Lançar para frente, como tantos pros: programa, procedimento,
problema, projeto. Nesse sentido, o diferencial da atual proposta é
o aspecto coletivo, de reunir, de colocar junto os articulistas num
vivo inter-câmbio, que interfere na solidão que comumente envol-
ve o trabalho de pensar e de escrever. Ainda que cada articulista es-
creva individualmente seu trabalho, houve encontros e trocas entre
eles, que promoveram uma circulação de conhecimentos.
Alguns desses autores participam do LADCOR,
Laboratório de Dramaturgia do Corpo da ECA/USP, que pro-
picia encontros semanais nos quais refletimos sobre temas como
espaço, memória ou experiência, propostos pela coordenadora
Helena Bastos, que assina um dos textos e hoje é pós-doutora.
Outra atividade do LADCOR nesses encontros consiste em ler
e fornecer preciosos retornos uns aos outros sobre as pesquisas
em andamento. Com uma década de existência, o LADCOR
surgiu com o propósito de organizar experimentos em dança
contemporânea, examinando as ideias de prontidão, escuta do
corpo e construção de uma dramaturgia a partir de conceitos
gerados por ações do corpo.
Entre o conjunto de articulistas há doutoras e mes-
trandas provenientes de São Paulo ou Santa Catarina, que não
integram o Laboratório de Dramaturgia do Corpo e que aqui
expandem nossa topografia. Hoje doutoranda na Universidade
do Estado de Santa Catarina, a UDESC, Paloma propôs um tex-
to em versão trio. Associou-se às também doutorandas Milene
Lopes Duenha e Raquel Purper para juntas lançarem perguntas
pertinentes acerca de nosso estar no mundo, tais como “Onde
está a dança?” ou “Quem nos governa?”
Helena Bastos, coordenadora do LADCOR, por sua
vez, introduz o conceito de Dança das distâncias, enquanto ex-
tensões alargadas. Dimensões longitudinais? Após deter-se na
relação entre dança e performance e na produção de discursos
críticos, a autora chega à ideia de contaminação, que indica o
percurso em campos expandidos. Helena nomeará distância ao
que se encontra esparramado, ao invés do entendimento comum
daquilo que se encontra longe ou afastado, subvertendo a refe-
rência habitual do termo.
Juliana Moraes fez de um comentário meu sobre o seu
recente Desmonte, o gatilho para sua reflexão acerca do próprio
trabalho. Num encontro com os participantes do projeto em mi-
nha casa, disse à Juliana que, apesar do título, ela nunca vai ao
chão, num desvio de expectativa que contraria o previsível linear.
O intrigante é romper uma associação evidente e explícita e con-
duzir o espectador a outra via, propondo outra coisa. Ao ler seu
texto, observei ainda que um dado curioso na dança é a multipli-
cidade de leituras. Juliana nos diz o que a motivou a performar
um adagio na peça - a investigação de circuitos energéticos e al-
terações de velocidade na respiração, enquanto eu havia percebi-
do aquele momento como procura de organização e estrutura do
corpo num estado desmontado. Ela achou incrível essa percep-
ção, sendo um ângulo viável de apreciação que fugia aos propósi-
tos inicias. Acabamos dialogando via internet e pensamos até em
incluir a conversa no texto, o que acabou sendo descartado. Aliás,
a expressão “desfazer expectativas” ou contrariar o senso comum
também está presente em Paloma, Raquel e Milene.
Recém doutora, Vanessa Macedo também nos desvia
de perspectivas óbvias ao pensar o que é o contemporâneo, que
não corresponde necessariamente àquilo que está sendo produzi-
do no nosso tempo. Com apoio da pensadora francesa Laurence
Louppe, Vanessa reflete sobre a questão, que recai em valores
tais como a produção e não mais a reprodução de um gesto num
corpo individualizado, o que resulta na abolição de um modelo
a ser reproduzido. Vanessa ressalta ainda a gravidade, a interação
e a conexão aos ambientes. Aborda também valores éticos, como
respeito e transparência.
Marina Guzzo traz a recorrente questão do provisório
e instável, ao refletir sobre a dança que habita espaços públicos.
Para tanto, ela enfatiza as experiências de Trisha Brown no início
da década de setenta em edifícios nova-iorquinos. Já o pensa-
dor da dança André Lepecki, ou particularmente seu Exhausting
Dance, perpassa vários artigos. Laura Bruno detém-se no impor-
tante conceito de re-enactement ou atualização renovada, porta-
dora de vitalidade, grávida de uma projeção por vir. Igualmente
tratado por Lepecki, o conceito revela a relativização do tempo.
Laura inova ao recorrer à forma de diálogo fictício no seu exer-
cício estético-político, que principia pela atualização da palavra
golpe. Muitas são as urdiduras da questão temporal em seu artigo.
Compondo um duo na atuação profissional e na escrita,
Natalia Greensberg e Talita Bretas tratam do que vem sendo seu
projeto de vida, o MUD ou Museu da Dança, imbricado no teci-
do conjunto do tempo, uma vez que é recuperação, é memória em
registro virtual, que promove a ampla acessibilidade por meios
tecnológicos. O título já explicita a matéria: “A internet como
aliada à preservação da memória da dança brasileira”. Memória
em movimento, imagem que remete ao atravessamento tempo-
ral. O tempo é também abordado por Tatiana Melitello, que tra-
ta temporalidades pensadas como estratégias espaço-temporais
para a construção de uma dramaturgia coreográfica. Inerente à
dança, muitos são os pesquisadores que vão deter seu pensamen-
to coreográfico na questão espaço-temporal.
O que foi poderá continuar a ser, como ocorre com Isis,
que revisita sua ancestralidade japonesa em busca de questões
colocadas agora, como a que diz da mistura ou fusão existente na
mestiçagem. Isis Akagi focaliza o conceito de MA ou vazio ple-
no. Em outra perspectiva, Nathalia Catharina propõe um discur-
so sobre a melancolia e os estados corporais por ela provocados.
Pensa a melancolia desde Freud tornada depressão. Atendo-se ao
modernismo do final do século XIX, a autora traz a presença
do poeta Charles Baudelaire e do pensador Walter Benjamin.
Nathalia detém-se no conceito de limiar, que aponta para uma
zona intermediária, flutuante, ainda sem contornos precisos e
definidos. Como Isis, Nathalia se reportará também ao vazio,
mas como algo preenchido pela melancolia.
Carolina De Nadai cria seu texto a partir da transcri-
ção de entrevista realizada em Lisboa com João Fiadeiro, um
dos principais nomes da nova dança portuguesa. A pesquisadora
tem afinidade, ela com-põe com o pensamento de Fiadeiro, que
desde 1990 investiga a Composição em Tempo Real (CTR), que
alimentará Carolina a explorar vias próprias. Questiona, guia-
da por Gilles Deleuze, a existência de um ponto inicial gerador,
em favor das direções movediças ou rizomáticas e tece conjunta-
mente as malhas da ficção e da realidade.
Marcelo Reis escreve sobre o trabalho de ator e aqui
colore a procedência da equipe, majoritariamente formada por
gente de dança. Parte da ideia de porosidade tão cara à dança,
dado o ponto de partida tênue, um quase nada que vai adquirin-
do contornos mais nítidos à medida que o processo avança. O
poroso, permeável, permite a passagem. Igualmente cambiante,
mutável. Sua experiência como ator do coletivo Cia. São Jorge de
Variedades trouxe importantes aportes. Com “Barafonda” (mul-
tidão desordenada, bagunça) e partindo do mito de Prometeu,
o grupo percorreu as ruas do bairro, do Minhocão aos trilhos
de trem da Barra Funda, passando por sua sede situada na Rua
Lopes de Oliveira. Seus integrantes explicitam o propósito de
suas investigações: “Um teatro cada vez mais próximo do espec-
tador, ligado na cidade... nosso negócio é se inserir na atualidade
de maneira lúcida, crítica, sem reproduzir discursos, sem estagnar
o pensamento e as energias”1. A questão relacional com pessoas e
ambientes é eminentemente política e será tratada em vários, se
não em todos, os artigos.

1 Programa da peça Barafonda, 2013, p. 03.


Recorrentes são também as referências às zonas obscu-
ras da contemporaneidade, ou trevas do agora, apontadas pelo
pensador italiano Giorgio Agamben2.Igualmente recorrentes são
as novas nomenclaturas, transinformações ou informações que
circulam por vários textos e que apontam para incertezas, vitali-
dades mortais, impulsos, circulação prenhe de energia, limiares,
portais, errâncias, porosidades, dissoluções, recomposições e pre-
servações precárias, sempre com o propósito de produzir reflexão
e ampliar entendimentos.
Tive a alegria de ter tomado a iniciativa de reunir pesso-
as com um propósito de pensar a Dança do Século XXI. Espero
que seja profícua. Desejo que a diversidade coerente inserida nas
falas e discursos aqui apresentados possa atingir o vetor público e
suscitar debates e respostas. Que possa o público, então, saborear
o que vem a seguir.
Meus agradecimentos especiais à equipe – Helena,
Juliana, Vanessa, Paloma, Milene, Raquel, Marina, Laura, Tatiana,
Talita, Natalia, Isis, Carolina, Marcelo, Nathalia. Agradeço aos
que escreveram e também à revisora Raquel. À Helena Bastos,
que propiciou o encontro com a maior parte da equipe. A Talita
Bretas e Natália Greensberg, também produtoras, que tornaram
possível a atual publicação e à Editora PRISMAS, que muito nos
alegra pelo apoio concedido à dança.

Célia Gouvêa
Formada pelo MUDRA de Maurice Béjart, em Bruxelas,
Bélgica; co-fundadora do grupo CHANDRA. Em 1974,
com Maurice Vaneau, iniciou no Teatro de Dança Galpão
um movimento renovador da dança, por meio de uma
perspectiva multidisciplinar, com o marcante espetáculo
Caminhada. Prêmios: melhor coreógrafa, bailarina, espe-
táculo, pesquisa e criação; bolsas de pesquisa e criação do
CNPq, Fapesp, Vitae, John Simon Guggenheim Memorial
Foundation e Virtuose. É doutoranda na ECA/USP.

2 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo ? e outros ensaios. Tradução de Vini-


cius Nicastro Honesko. Chapecó: Ed. Argos, 2009.
Sumário
Dança das Distâncias............................................................... 13
Maria Helena Franco de Araujo Bastos – Helena Bastos

Onde está a dança? ................................................................. 23


Milene Lopes Duenha, Paloma Bianchi e Raquel Purper

Desmonte: remontando o trajeto............................................. 33


Juliana Moraes

Dança contemporânea: reflexões sobre conceitos que se entrela-


çam a uma briga de território.................................................. 41
Vanessa Macedo

Dança, cidade e Trisha Brown................................................. 51


Marina Guzzo

Reencenações fictícias para realidades reencenadas.................. 61


Laura Junqueira Bruno

Nó(s) de temporalidades.......................................................... 73
Tatiana Melitello

A internet como aliada na preservação da memória da dança


brasileira.................................................................................. 85
Natália Gresenberg e Talita Bretas

Dança mestiça nipo-brasileira: um ensaio, um insight............. 93


Isis Akagi

A dança de João Fiadeiro: posição-com-posição................... 103


Carolina Camargo De Nadai

Porosidades do corpo na dança do século XXI...................... 113


Marcelo Reis

Dramaturgia de um corpo melancólico em Anatomia da


Melancolia – experiência I....................................................... 123
Nathalia Catharina
Dança das Distâncias
Maria Helena Franco de Araujo Bastos - Helena Bastos

Dança no séc. XXI. A provocação me leva a pensar so-


bre que moveres em dança acionarão outras breves permanências.
Que existires me capturarão e como essas conexões se relaciona-
rão entre meus desejos, meus limites, imposições e negociações,
sendo o mundo tão cheio de coisas. A princípio penso nas dife-
renças, preciso notar aquilo que é capaz de uma diferença compe-
tente, perceptível a qualquer um dos sentidos e que me provoque
deslocamentos nas relações de um pensamento entre moveres.
Nessa busca tenho pensado numa “dança das distâncias”.
Muito se tem falado sobre contaminações entre dança
e performance. Uma possível afirmação comum entre as duas lin-
guagens na conjuntura contemporânea é a ausência de modelos
dados a priori. Em ambas, conecta-se uma dramaturgia ampara-
da por ações do corpo na exploração de um tempo presente. A
pesquisadora e teórica da performance Diana Taylor chama estas
ações incorporadas de “repertório”. Ela nos apresenta duas ideias
complementares, “[...] arquivo de materiais supostamente dura-
douros (textos, documentos, edifícios, ossos) e o repertório, visto
como efêmero, de práticas/conhecimentos incorporados (língua
falada, dança, esportes, ritual)” (TAYLOR, 2013, p. 48). Desse
modo, o conceito performance como práxis e episteme incorpora-
da, como propõe Taylor, pode ser um caminho para entendermos
as aproximações entre dança e performance. Nesse contexto, a no-
ção de performer como produtor de uma arte de secreções, isto
é, que se alimenta de sua própria corporalidade num estado de
presença entre desejos, fluidos e impermanências. O corpo é re-
lacional, pensamentos em processos que se incrustam entre hia-
tos de tempos presentes. Suspensões entre voos de pés no chão.

Dança no século XXI 13


Mas minha intenção também é tocar um entendimento
da produção de discurso crítico a partir da obra. Entende-se que
a obra carrega seus próprios discursos, por isso, é muito impor-
tante um artista propor este espaço de reflexão. Com certeza, a
fala do artista não é “a verdade”, mas uma possibilidade de rea-
lidade com a qual ele se conecta no processo de construção da/
na sua criação. Desse modo, mirando as Artes do Corpo com
ênfase na Dança, uma probabilidade é pensar sobre os modos de
compor de uma pesquisa que aponta para a emergência de um
pensamento liminar, enquanto reflexão crítica sobre a produção
de conhecimento na linguagem de uma “quase” dança. A palavra
“quase” provoca um deslocamento no espaço. É uma dança não
dança. Esta ideia quem propõe é Christine Greiner (2015).
A partir desses posicionamentos penso em uma “dança
das distâncias” no séc. XXI, isto é, moveres de aproximações e
distanciamentos nas relações com uma ideia que se faz presen-
te. Nessa condução, os hábitos são importantíssimos porque vão
perfurando cognitivamente e de modo processual as relações de
como um corpo pode operar. Um corpo que se processa nas/
das circunstâncias do seu entorno e no modo como negocia em
diversas instâncias que acontecem no próprio corpo de forma
simultânea. Nesse fluxo, compartilho o conceito ‘Corpoestados’:

[...] por entendermos que o corpo é ao mesmo tempo


biológico e cultural, tanto quanto é social, fenomeno-
lógico e ecológico. Estas terminologias nos ajudam a
descrever o fenômeno, mas de fato, não há como sepa-
rar as várias dimensões que nos facultam compreender
o corpo, nos quais, níveis diferentes de descrição estão
inteiramente entrelaçados, do biológico ao cultural.
Ao nos expressarmos, nossos gestos e falas estão jun-
tos, conectados e interligados ao fluxo do pensamento,
das emoções. E todas estas ações são potencializadas
quando o artista se debruça sobre uma criação. Nesta
conexão, o corpo não pode ser compreendido como
14 Célia Gouvêa (Organizadora)
um produto pronto, isto é, muda de estado a cada vez
que acontece uma ação, quer dizer, variações que in-
vadem nossa percepção no instante em que o corpo
precisa criar soluções no espaço. Evidencia-se que so-
luções neste estado de moveres nos levam a descobrir
outras possibilidades de organizar o corpo no espaço,
isto é, não há separação entre mente e corpo. Deste
modo, um pensamento práticoteórico é elaborado.
(BASTOS, 2013, p. 94).

Acoplado a este pensamento de corpo, é importante


compreendermos que a cada nova criação, de alguma forma o
artista contemporâneo discute ou cria conceitos. Cada criação é
apreendida como um ato cujo resultado é desconhecido. Neste
contexto, “experimentar o experimental” é acionar caminhos e
conexões que alterarão circunstâncias e padrões conhecidos.
Neste caso, se o artista organiza-se com ênfase na dança,
serão conceitos de dança que ele formalizará dançando. Recordo
a pesquisa “Vapor”3 (2006), em que um dos eixos era discutir o
conceito de queda. Não à toa, praticamente todo o trabalho são
quedas. Elas surgem como necessidade da proposição inicial, isto
é, entender o sentido de queda, como elas se dão e como o cor-
po resolve a cada imposição de solução no/do corpo, que a obra
aponta aos seus dançarinos. Apesar de a obra ter nossa autoria, o
modo como ela acontece no espaço cênico é resolvendo, em tem-
po real, os ajustes do corpo em situações que surgem de acasos e
nos obrigam a cair. Quando digo “tempo real”, estou sublinhan-
do que no instante da ação “dançar” acontecem descobertas de
arranjos compositivos. Muitas vezes, elas são vislumbres, que de
tanto se repetirem e de insistirem num mesmo padrão de movi-
mento, criam conexões que se transformam de modo vertical no
corpo. Alguns ajustes corporais se refinam diante de uma mesma
proposição. “Repetir, repetir, até ficar diferente”, como ressalta o
3 Espetáculo de dança, coreografia de minha autoria, Raul Rachou e Vera Sala, sele-
cionado para o Rumos Itaú Dança 2006.

Dança no século XXI 15


poeta Manuel de Barros. Outras vezes, de fato, algo de diferen-
te surge no contexto “Vapor”. Desse modo, processo e produto
acontecem numa mesma escala temporal.
Retomando os estudos da queda que a obra “Vapor”
propõe, a cada ação em queda devolve-se ao dançarino o de-
safio de reconhecer outras possibilidades no corpo, neste caso,
de verticalizar as possibilidades de queda/movimento no corpo.
Percebo nesses atos um comprometimento do artista com o ins-
tante em que decisões são tomadas e formuladas. No panorama
cênico, trata-se de um “pensarfazer” em quedas. Nesses ajustes,
como artista encontro-me num espaço que é “dentrofora”, assim
como “foradentro”. Apesar de ser cocriadora da obra citada, na
permanência dos seus acontecimentos, ela vai impondo cami-
nhos conectados entre pensamentos de moveres com propósitos
e escolhas. Tudo acontece ao mesmo tempo. São instâncias de
níveis de descrição distintas, mas que se dão em simultaneidades
no ambiente da “dança das distâncias”.

Vapor leva os intérpretes a recombinarem o pensamen-


to coreográfico que pressupõe que o sujeito pode orga-
nizar informações em um grande número de formas
complexas e flexíveis, sem se afastar do pensamento
que promoveu todas estas diferentes conexões. Vapor
cria estados na cena que muitas vezes nos remetem lei-
turas destes corpos como argilas, estruturas porosas re-
modeladas a cada instante. (BASTOS, 2012, p. 9-10).

Aqui evoco o termo liminar. Quando sugiro “dança das


distâncias” é importante pensarmos que ela se processa num am-
biente de moveres entre distanciamentos e aproximações em re-
lação ao objeto dança, em que não só outras linguagens artísticas
a contaminam, mas também pensamentos de outros campos do
conhecimento. Para alguns observadores pode dar a impressão de
artes visuais ou teatro, mas o modo como essa dança se processa é
o das contaminações pelos diversos “moveres” que a influenciam,
16 Célia Gouvêa (Organizadora)
desde um conceito ou teoria, assim como outras formas de orga-
nização artística de diferentes campos.
Menciono alguns artistas da dança em quem percebo
escolhas de formalização nesse ambiente liminar. Nesse panora-
ma, uma referência é a coreógrafa Lia Rodrigues, uma paulistana
que há muito tempo elegeu o Rio de Janeiro como sua residência.
Ela é a diretora da Companhia Lia Rodrigues, fundada em 1990.
Na sua obra “Pindorama” (2013):

Como abordar, ainda uma vez, as possíveis relações do


estar junto? Misturando-se até a diluição? Afirmando
limites e singularidades? Quais rituais, sacrifícios e
acordos seriam necessários para a constituição de um
coletivo, ainda que temporário? Que paisagens criar
para Pindorama - nome indígena dado às terras brasi-
leiras antes da chegada dos europeus? Ciclos de morte,
transformação, vida. (RODRIGUES, 2013. Disponível
em: http://liarodrigues.com/page2/page3/styled-3/index.
html Acesso em: 5/10/2016)

O tratamento cênico nos remete também às artes visuais,


como também a um pensamento da performance. De todo modo,
no ambiente de Rodrigues “Só a ANTROPOFAGIA nos une.
Socialmente. Economicamente. Filosoficamente” (ANDRADE,
Manifesto Antropofágico, 1928). Pindorama, em tupi “terra de
palmeiras”, designa por extensão o Brasil, cuja costa litorânea
era coberta pela planta. A palmeira, desde o poema Canção do
Exílio, do poeta romântico Gonçalves Dias (1823-1864), trans-
formou-se em um dos ícones do país.
Numa das apresentações da Cia. Lia Rodrigues (2014), no
galpão do Sesc Fábrica Pompéia na cidade de São Paulo, um silên-
cio contagiou todo o ambiente. “Pindorama”, um pedaço de plás-
tico transparente, água, corpos nus. A música é o próprio som dos
corpos e do plástico. Esta obra completa uma trilogia sobre a água.
“Estamos no teatro, mas mergulhamos em um mar arrebatador…
Dança no século XXI 17
Uma vertigem de situações belas e breves” (Disponível em: redes-
damare.org.br/blog/noticias/pindorama/ Acesso em: 5/10/2016).
Outra artista que alinho à proposta “dança das distâncias”
é Vera Sala, criadora-intérprete que desenvolve pesquisa em dança
desde 1987. O seu trabalho “Estudo Para Lugar Nenhum” (2014),
em parceria com o arquiteto Hideki Matsuka e o videoartista
Marcus Bastos, ocupou o antigo prédio do incinerador municipal,
localizado na Praça Victor Civita, em São Paulo. A artista dá con-
tinuidade à pesquisa iniciada em 2002 do conceito de “corpo-ins-
talação”, na qual ela propõe um diálogo contínuo com o espaço.

O corpo modificado pelo tempo, exposto continu-


amente àquilo que é e faz, num espiralar sem fim,
constrói na sua trajetória redes de inquietações e
ações que operaram e operam como detonadoras de
instabilidades, e que neste momento se traduzem
numa reflexão dos estados de deriva, incompletu-
de, errância e dissolução dos limites do corpo. Cabe
destacar que o que resulta deste fazer/ser são sempre
formatos provisórios. Desestabilizam-se as fronteiras
entre os estados corporais e os estados do ambien-
te. Habitar diferentes locais faz deste tensionamen-
to corpo/ambiente em que se instala, o seu modo de
existir. É um corpo que nunca se conclui porque só
existe neste aparecer/desaparecendo, não como oposi-
ção, mas como indistinção.(SALA, 2014, Disponível
em: http://www.sescsp.org.br/programacao/36367_
ESTUDOS+PARA+LUGAR+NENHUM Acesso
em: 5/10/2016).

À proposta de uma “dança das distâncias” alinho tam-


bém Marta Soares e sua pesquisa coreográfica “Vestígios”, desen-
volvida para o Programa Rumos Itaú Cultural Dança, em 2009.
O projeto tem como ponto de partida os aspectos monumental e
sagrado de um sambaqui, sítio arqueológico pré-histórico, loca-
lizado na região de Laguna, Santa Catarina, o qual é sobretudo
18 Célia Gouvêa (Organizadora)
um cemitério e, portanto, resultado da repetição de cerimônias
durante mais de mil anos.

Nesse contexto o projeto explora os aspectos monu-


mental e sagrado desse sambaqui através dos vestígios
dos sepultamentos que o compõem e, a partir do con-
ceito de rastro segundo o filósofo francês Emmanuel
Levinas, entre outros, para quem rastro é a ausência de
uma presença, “aquilo do qual propriamente falando
nunca esteve lá, do qual é sempre passado”. SOARES,
2009, Disponível em: https://coletadevestigios.wor-
dpress.com/2009 Acesso em: 5/10/2016).

Lia Rodrigues, Vera Sala e Marta Soares são referên-


cias, para mim, da “dança das distâncias”; uma dança provocada
entre falas, contextos, gestos, movimentos e poesias. Entre fic-
ção e realidade, ela se organiza por acontecimentos entre assi-
metrias, isto é, deslocamentos que se dão pelas diferenças, que
geram novas informações a partir de informações que em algum
nível transformaram nossa percepção do ambiente de dança. Há
uma dilatação nesse contexto. A transformação acontece em re-
lação a alguma coisa. Neste caso, é do corpo que dança e das
suas circunstâncias que criam um espaço de estranhamento, um
silêncio a provocar confrontos em circulação com os sentidos de
suas múltiplas camadas.
Nessa proposta, tenho sublinhado a implicação de pro-
cessos criativos e de linguagens que se dão por procedimentos
de contaminação. Esta palavra colabora para entendermos um
ambiente que se formaliza para além de prefixos ou outras no-
meações como “trans”, “inter”, “pós”, “ex”, entre outros. Nessa
imersão, o tecido cultural atravessa a experiência da “dança das
distâncias”, contaminado por práticas políticas e estéticas que
de alguma forma refletem a natureza de certa convivência so-
cial e geopolítica. A pesquisadora Ileana Diéguez propõe a ideia
de “Liminaridade”. Diéguez percebe o liminal como tecido de
Dança no século XXI 19
constituição metafórica, isto é, situação ambígua, fronteiriça, em
que se condensam fragmentos de mundo, com uma temporali-
dade delimitada por acontecimentos produzidos e vinculados às
circunstâncias do entorno:

Estou inclinada à teorização como prática relacional


e metafórica que procura uma aproximação dialógi-
ca com diferentes problemáticas, sem pretender gerar
um metacorpo que empacote os “objetos de estudo”.
Prefiro negociar relações temporais com os processos,
sem propósitos taxonômicos. Imagino uma teoria rela-
cional que possa dialogar com os fenômenos artísticos,
sem que chegue a constituir um corpo autônomo; uma
espécie de tecido híbrido constituído por fragmentos
conceptuais de outros corpos que entram numa nova
relação e geram um espaço onde convivem diferentes
modos de olhar. (DIÉGUEZ, 2014, p.64)4.

No ambiente de moveres entre distâncias, implica-se


uma postura existencial, um tecido perecível e relacional entre
o criador, desde sua obra, e seu contexto, sem ter a pretensão de
sistematização, ele é modificado segundo as particularidades de
cada sujeito. “Dança das Distâncias” se faz no mundo a partir de
planos vastos em que cada obra desses artistas coreógrafos exala
outros mundos, assim como o passado e futuro se fazem presen-
tes na distância de meus olhos. Vislumbro encontros. Variâncias
entre corpos provisórios de tantos mundos. Vãos. Desejos fluidos
de impermanências.

4 “Me inclino por la teorización como práctica relacional y metafórica que busca
una aproximación dialógica con diferentes problemáticas, sin pretender generar un
metacuerpo que empaque a los “objetos de estudio”. Prefiero negociar relaciones tem-
porales con los procesos, sin propósitos taxonómicos. Imagino una teoría relacional
capaz de dialogar con los fenómenos artísticos, sin que llegue a constituir un cuerpo
autónomo; una especie de tejido hibrido constituido por fragmentos conceptuales de
otros cuerpos que entran en una nueva relación y generan un espacio donde conviven
diferentes maneras de mirar.” [DIÉGUEZ, 2014, p.64]

20 Célia Gouvêa (Organizadora)


Referências Bibliográficas:

BASTOS, Helena. Variações de um corpo errante. Coleção corpo em


cena, v. 5. RANGEL, Lenira; THRALL, (Orgs.). São Paulo: Anadarco,
2013, p. 87-107.
______________. Experiência estética do espetáculo vapor a partir de
uma visão sistêmica. II Congresso ANDA, 2012.
DIÉGUEZ, Ileana. Escenarios Liminales. Teatralidades, performativi-
dades, políticas. 1ª Ed.,México, D.F.: Toma, Ediciones y Producciones
Escénicas y Cinematográficas, 2014.
GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. 3. ed.
São Paulo: Annablume, pg.125 a 133, 2008.
TAYLOR, Diana. O Arquivo e o repertório. Performance e memória
cultural nas Américas. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2013.

Referências Digitais:

redesdamare.org.br/blog/noticias/pindorama/
h t t p : / / w w w. s e s c s p . o r g . b r / p r o g r a m a c a o / 3 6 3 6 7 _
ESTUDOS+PARA+LUGAR+NENHUM
https://coletadevestigios.wordpress.com/2009

Dança no século XXI 21


Sobre a autora

Helena Bastos é coreógrafa e bailarina. Cofundadora


do grupo Musicanoar em 1992. Doutora em Comunicação
e Semiótica pela PUC/SP. Professora da graduação do
Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP. Integra o
Programa de Pós-Graduação (PPGAC/ECA), cuja linha de
pesquisa é “Texto e Cena”, além de coordenar o Laboratório de
Dramaturgia do Corpo/LADCOR. Cofundadora e associada da
ANDA (Associação Nacional de Pesquisadores em Dança). (he-
lenahelbastos@gmail.com).

22 Célia Gouvêa (Organizadora)


Onde está a dança?
Milene Lopes Duenha,
Paloma Bianchi
Raquel Purper

Por onde anda a dança nesses tempos de guerra contra


a arte, principalmente no Brasil, onde o Ministério da Cultura é
considerado irrelevante5 e artistas são chamados de desocupados6?
A dança está na vida das pessoas? Ela está no movimento? No
corpo do bailarino? No olhar do público/participante? Não está
em nenhum desses lugares? Terá ela se transportado para além do
gesto do artista? Ela consegue se infiltrar na sociedade? Que dança
diz das relações humanas, ou melhor, que dança propõe relações?

Desfazendo expectativas

Um palco com dez cadeiras vermelhas postas ao centro


em semicírculo. Do início ao fim o espetáculo7 obedece à mesma
estratégia: a mulher sentada na lateral da cena apresenta as tare-
fas-ações para que, em seguida, os atores as realizem sob o olhar
5 O atual presidente (não eleito) do Brasil, Michel Temer (PMDS-SP) tentou extin-
guir o Ministério de Cultura no início de seu governo interino em 2016. A exclusão foi
revogada somente após ocupações de prédios públicos e muitas outras manifestações
realizadas por todo o Brasil.
6 Fala do deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), gravada em vídeo e publica-
do nas redes sociais em maio de 2016. O vídeo encontra-se disponível em: < https://
youtu.be/G9WFsqXqrbs >. Acesso em: 27 de setembro de 2016.
7 No dia 2 de outubro de 2014, no FID - Fórum Internacional de Dança ocorrido
em Belo Horizonte (MG), a companhia suíça Theater Hora, composta por artistas com
dificuldade de aprendizado, apresentou seu trabalho Disabled Theater, dirigido pelo
coreógrafo francês Jérôme Bel.

Dança no século XXI 23


atento dos espectadores. São pessoas realizando ações no palco,
porém não são nem bailarinos, nem atores tradicionais: são pes-
soas portadoras de deficiências de aprendizado, como Síndrome
de Down e Autismo. As tarefas são simples: olhar a plateia por
um minuto; falar seu nome, idade e profissão; descrever a sua
deficiência; dançar; falar como se sente ao fazer esse trabalho.
Na primeira tarefa, a mulher sentada na lateral do palco
pede para que cada um dos atores entre sozinho em cena e olhe a
plateia por um minuto. Um deles entra, faz o que lhe foi pedido e
sai do palco. Essa ação é repetida por todos os artistas. A segunda
e terceira tarefas se assemelham: falar o nome, idade, profissão e
revelar qual sua deficiência. O discurso são relatos sobre fatos. Na
tarefa-ação seguinte, alguns artistas mostram uma dança; eles mes-
mos escolhem a música e o tipo de movimentação que apresentam.
A última tarefa pede um posicionamento claro de cada
artista em relação ao espetáculo: Como se sentiu ao fazer esse
trabalho? O que achou do espetáculo? Cada um foi ao microfone
e pelo alto-falante ouviram-se os mais diversos posicionamentos
e algumas confissões: alguns dizem da decepção que sentiram
por não terem seus solos escolhidos para serem mostrados e aca-
bam, então, expondo a dança excluída. Onde está a dança?

Isso não é um espetáculo

Um corredor estreito e uma fila de dobrar a esquina.


Como caberá tanta gente nesse espaço? Você entra num ambien-
te amplo pouco iluminado. Muitas bexigas vermelhas com fitas
de cetim marcam o espaço entre o teto e as cabeças; é possível to-
cá-las, apossar-se de quantas quiser. Sem cadeiras ou lugares de-
marcados para o público, perambulamos a desvendar o ambiente.

24 Célia Gouvêa (Organizadora)


De repente, um mascarado (com uma touca preta e um nariz ver-
melho pontudo) te encara demoradamente em uma espécie de
jogo de forças: quem desistirá primeiro? O jogo se intensifica e,
além da provocação com o olhar, os corpos mascarados começam
a esbarrar em você. Alguns breves ruídos produzidos pela batida
de panelas e latas compõem o ambiente. A população mascarada
começa a aumentar e um cortejo se inicia com a intensificação
das batidas. São cinquenta pessoas vestidas com roupas esfarra-
padas que abrem caminho ao roçar seus corpos suados em todos
os presentes e que, ao passarem por lugares apertados, provocam
deslocamento: uma coreografia da multidão. Durante esse corte-
jo eles deixam suas roupas, pouco a pouco, pelo caminho.
Deu para perceber que não se trata de um espetáculo?
Pois bem, não é um espetáculo, mas um acontecimento artístico.
Trata-se de uma “parada político-alegórica, um rito urbano, uma
procissão civil”8. E essa é a real sensação: a de integrar um ritual.
Não, não há corpo mostrando a técnica de uma ou outra escola
de dança, não há frente bem definida, não há apresentação, há
batuque. Onde está a dança?
O cortejo faz o público se mover por quase todo o espa-
ço, confinando-o e libertando-o. E o público? Dança seus afetos,
tenta fugir timidamente desse arrastão ou o acompanha dan-
çando, batucando, produzindo sons e movimentos como pode;
compondo o ritual em uma espécie de embriaguez rítmica. No
momento em que todos se despem, o ritual fica mais efusivo
com ritmo acelerado e intenso. Os mascarados batucam e dan-
çam como em uma orgia. Os corpos nus se enfileiram diante do
público. Mais batuque. Pausa repentina e longa. Ninguém ba-
tuca, os mascarados, nus e ofegantes, ficam expostos. O público
começa a dançar e a bater palmas na tentativa de continuar o

8 Como descrito no site Demolition incorporada, no qual se tem acesso a alguns traba-
lhos do coreógrafo desse trabalho. Disponível em: <http://www.demolitionincorpora-
da.com/batucada>. Acesso em: 27 de setembro de 2016.

Dança no século XXI 25


rito. A pausa se mantém por mais alguns minutos, até que é in-
terrompida repentinamente pelo retorno vigoroso do batuque, a
mesma altura e intensidade anteriores. Os mascarados se espa-
lham e retornam em grupo, formam um amontoado de corpos
que não cessam de tocar, deixando-se contaminar pelo batuque.
Os corpos, inquietos, não param de produzir o batuque. Pausa...
Recomeço. O cortejo se direciona para a saída, o público o segue.
Os corpos nus, mascarados, ofegantes e suados, estão dispostos
no chão, por todo o espaço de passagem, obrigando o público a
encontrar espaços para conseguir sair do ambiente. Os corpos
ficam ali. Onde está a dança?9

Como estamos aqui?

Imaginaram alguma vez não sermos governados por algo


ou alguém? Quem nos governa nesse momento? Quem governa esse
espetáculo? O que aconteceria se tomássemos o espetáculo? De quem
seria o espetáculo?10
Uma ocasião para perguntar como gerimos nossa pre-
sença. A responsabilidade do arbítrio é apresentada por uma não
presença, que só não é ausência devido ao documento word que
projeta perguntas/provocações sobre as possibilidades de gover-
nança artística e política do/no momento presente. De início, a
gestão desse espetáculo se transfere ao público, as tarefas/provo-
9 Essa descrição refere-se à Batucada, trabalho desenvolvido pelo coreógrafo bra-
sileiro Marcelo Evelin, e se reporta à apresentação que aconteceu no dia 23 de mar-
ço de 2016, como parte da programação do Festival de Teatro de Curitiba, PR. Um
vídeo que traz algumas imagens desse trabalho está disponível em: <https://vimeo.
com/128784122>. Acesso em: 27 de setembro de 2016.
10 Frases contidas em um documento word projetado na parede, que abre o espetá-
culo Nosostros estamos aqui de Olga Gutiérrez, realizado no dia 29 de maio de 2016,
em Florianópolis, SC.

26 Célia Gouvêa (Organizadora)


cações delegadas perfuram a ação artística e se expandem para a
reflexão sobre o nosso estar no mundo. Onde está a dança?
Frases projetadas incitam à ação. Há um estado de ação
iminente, todos a desejam. Mas aguardam a ação do (ou de um)
outro. Há uma hologramação de ações possíveis, mas a ausência
de indicações de conduta e modos de proceder aparentemente
impede a decisão de agir. Além da projeção, estão presentes ca-
deiras, cartazes em branco, microfones, uma guitarra, um celular
e um aparelho mp3. O fazer do espetáculo depende da mediação
que essas coisas podem disparar. Os objetos por si sós não con-
vidam o público à governança do espetáculo. Onde está a dança?
Diante do impasse, a artista mexicana Olga Gutiérrez
assume a gestão do espetáculo. O telefone toca, alguém atende
e uma voz feminina indica vários exercícios: escreva algo num
cartaz e mostre a todos; atravesse o palco lentamente; fale algo
ao microfone. Aquela que fala ao telefone não propõe modos de
convívio, pelo menos não na perspectiva de estabelecer formas
de encontro entre os que lá estavam. Descobrimos assim que o
encontro se dará de forma premeditada; a coreografia é uma se-
quência predeterminada de ações, não uma composição em que
o jogo pode emergir.
Em seguida aos exercícios, a artista, para surpresa dos
presentes, entra no palco, começa a correr e a fazer uma dança.
Uma moça tenta abraçá-la, mas é rechaçada. O espetáculo vai
chegando ao seu fim, não há espaço para o imprevisível do en-
contro. Onde está a dança?11

11 A palavra onde é utilizada ao longo de todo o texto como licença poética. Diz res-
peito a uma localização geográfica, corporal e conceitual.

Dança no século XXI 27


Onde está a dança?

O engajamento nas questões do mundo é uma das ca-


racterísticas que mais chama a nossa atenção nos trabalhos de
Jérôme Bel12. Suas escolhas estéticas, por serem relacionadas aos
corpos diversos, são potencialmente políticas e essa condição
confere uma atualização do olhar para o corpo dançante, des-
fazendo expectativas e, consequentemente, abarcando uma nova
visão para os processos de dança-mundo. O coreógrafo francês
vai além quando, de fato, monta um espetáculo com pessoas que,
para o senso comum, nunca teriam capacidade de dançar profis-
sionalmente. Ele extrapola a expectativa sobre que tipo de corpo
pode dançar e essa atitude é uma das que fundamenta o pensar/
fazer dança na contemporaneidade.
O diretor traz ao palco artistas deficientes, mas não
oferece protagonismo somente às deficiências. Ele coloca em
cena uma comunidade de sujeitos que possui como característica
partilhada ao déficit de aprendizado. Porém, também expõe a
singularidade de cada um: seus temperamentos, seus modos de
mover, suas personalidades. O que está em jogo é a desmonta-
gem de suas deficiências. Jérôme Bel mostra quem são eles e não
o que são eles, expõe o que os atravessa e o que os compõe para
além de suas deficiências, propõe um olhar sobre aqueles sujeitos,
com aquelas características singulares, apresenta cada um como
cidadão, como sujeito e como profissional, e traz para o centro da
discussão a fronteira entre o que é considerado normal e o que
não é, o que é aceito e não aceito, ou ainda, quem pode fazer arte
e o que/quem ganha visibilidade em nossa sociedade.

12 A trajetória profissional de Bel, que conta com espetáculos como Shirtology (1997),
The show must go on (2001) e Gala (2015), possui como marca o desejo de dar visibi-
lidade ao que se encontra escondido ou em segundo plano ou ao que à primeira vista
não faria parte do universo da dança, razão essa que contribui para que se chame o
trabalho de Jérôme Bel de não-dança.

28 Célia Gouvêa (Organizadora)


A dança convocada por Marcelo Evelin é efeito de es-
cavação de alguns dos nossos aspectos identitários, dentre eles,
uma brasilidade afirmada na visceralidade e na voluptuosidade
carnavalesca. Ao acessar essas características, de modo proposital
ou não, por meio da adesão ao ritual que propõem, uma dan-
ça acontece nos diferentes corpos e de diversos modos, gerando
uma comunidade momentânea, composta por afetos e ações sin-
gulares. A dança em Batucada não acontece somente no corpo
dos cinquenta batuqueiros ou na exposição de sua diversidade,
mas também na recepção dos que habitam esse mesmo ambien-
te. Não é só o corpo suado e mascarado que dá a ver a dança, mas
o que acontece no encontro entre esses corpos. A dança pode
acontecer na sensação de repulsa ao corpo suado; no desenho
espacial formado pela aglomeração dos corpos que são encurra-
lados contra uma parede; na sensação de estar acuada; na altera-
ção dos batimentos cardíacos quando a batucada se intensifica;
no desejo de continuação desse ritual; na hesitação diante dos
corpos nus quando da saída do local; no movimento provocado
pela necessidade de sair sem pisar nos corpos que estão deitados.
Em Nosostros estamos aqui, a hesitação dos presentes em
agir nos impele a responder que delegar a responsabilidade ao pú-
blico leva a ação artística a certo fracasso. Ao fazer isso, Gutiérrez
coloca em risco a potência de seu trabalho, permitindo a evidência
dos efeitos da adesão ou não adesão do público à proposta. A co-
reógrafa trouxe à cena objetos como dispositivos disparadores de
ação, mas não conseguiu, somente com esses objetos, convencer o
público a agir. Por fim, ela toma a direção do trabalho, recolocando
o público em um lugar de obediência. De repente aquilo que era
um convite à criação coletiva se torna um exercício de obediên-
cia: a autonomia do público desaparece. Mas se não aconteceram
coisas que pareciam previstas, aconteceram outras, imprevistas. A
inação aparente explodiu em reflexões imanentes. Se o público
não se comprometer com a ação em curso, ele também se tornará

Dança no século XXI 29


responsável pela sua não efetividade. Onde está a dança? A dança
acontece na decisão de realizar ou não um ato, mas também na
pergunta acerca da efetividade da ação artística.
O trabalho de Gutiérrez coloca questões acerca da pos-
sibilidade da autogestão de uma comunidade em que as frontei-
ras hierárquicas não estão bem definidas. Na radicalidade de sua
proposta, em Nosostros estamos aqui, a dança transborda o espaço
da ação artística e se revela como virtualidade que pode, ou não,
se atualizar em ação13. A partir da hologramação de possibilidades,
a dança vai com o espectador para casa, ela acontece na diversi-
dade de sua ação ou da não ação, na potência de uma decisão ou
na impossibilidade dela.
Brasil, 2017: onde poderia estar a dança nesse cenário
sócio-político-econômico que nos submerge em um comum
que não se complexifica na coexistência de singularidades?
Retroceder não nos parece uma opção diante da imposição do
pacote golpe/alienação que conduz a grande massa populacional,
a largos passos, rumo a um retrocesso descomunal. As pergun-
tas iniciais desse texto teriam ainda reverberação? Importa se a
dança está no movimento do bailarino, no olhar do público ou
no conceito? Talvez sim, mas importa mais se a dança e seus
deslocamentos dizem de nossa existência, de nossa resistência,
se a dança discorda e ainda assim conecta. Importa se a dança se
afirma como arte que considera seu entorno, que cria e mantém
relações que potencializam a vida, caracterizando-se como um
bom encontro espinosiano (1992). Caso nos pautemos por um
desejo de fazer dança de modo relacional afetivo, vale dançar no
mundo e com ele. Esse ato implica fazer junto a outros corpos/
coisas que nos rodeiam e nos habitam. Nosso fazer/desfazer/re-
fazer, faz/desfaz/refaz mundo.
13 O plano de imanência compreende a um só tempo o virtual e sua atualização,
sem que possa haver aí limite assimilável entre os dois. O atual é o complemento ou o
produto, o objeto da atualização, mas esta não tem por sujeito senão o virtual. A atu-
alização pertence ao virtual. A atualização do virtual é a singularidade, ao passo que o
próprio atual é a individualidade constituída (DELEUZE, 1996, p. 51).

30 Célia Gouvêa (Organizadora)


Referências Bibliográficas:

DELEUZE, Gilles. O atual e o virtual. In: ALLIEZ, Eric. Deleuze


filosofia virtual. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 47-57.
ESPINOSA, Bento. Ética. Parte II (Da natureza e da origem da alma)
e Parte III (Da origem e da natureza das afecções). Lisboa: Relógio
D’Água, 1992.

Referências Digitais:

Demolition Incorporada. Batucada. 2015. Disponível em: http://www.


demolitionincorporada.com/batucada Acesso em: 27 de setembro de
2016.
TWITCHELL, Alan. Marcelo Evelin’s Batucada. 2015. Disponível em:
https://vimeo.com/128784122. Acesso em: 27 de setembro de 2016.
Youtube. Deputado Marco Feliciano manda recado ao Presidente Michel
Temer. “Não Faça acordo com bandido”. 2016. Vídeo (3min03s).
Disponível em: https://youtu.be/G9WFsqXqrbs. Acesso em: 27 de
setembro de 2016.

Dança no século XXI 31


Sobre as autoras

Milene Lopes Duenha

Dançarina, atriz e performer, doutoranda em Teatro


pela UDESC. Integra o Coletivo Mapas e Hipertextos de
Florianópolis-SC desde 2012.

Paloma Bianchi

Performer e dançarina, doutoranda em Teatro pela


UDESC. Integra o Coletivo Mapas e Hipertextos de Florianópolis-
SC desde 2013.

Raquel Purper

Dançarina, diretora e coreógrafa, doutoranda em


Teatro pela UDESC. Integra o Coletivo Mapas e Hipertextos de
Florianópolis-SC desde 2013.

32 Célia Gouvêa (Organizadora)


Desmonte: remontando o trajeto
Juliana Moraes

Quando Célia Gouvêa me fez o convite para escrever


este texto, disse-me que havia visto meu solo Desmonte e que
tinha ficado impressionada com o fato de eu nunca cair. Meu
corpo nunca vai para o chão e, ainda assim, o título do trabalho
é Desmonte. Eu queria dizer para Célia que não caio diretamente
no chão, mas meus membros se desmontam todos um pouco, em
pequenas quedas que desorganizam meus movimentos. E essas
pequenas e infinitas quedas combinadas fazem com que eu me
mexa muito, sem parar, durante vários minutos. Eu não vou para
o chão porque essa peça fala de uma queda interna, um desmonte
psíquico que reverberou em meu corpo — ela fala do medo que
senti quando meu marido Gustavo Sol, na época meu namorado,
foi diagnosticado com câncer no olho direito.
Eu não sabia, mas o efeito de uma doença como essa
não é derrubar você literalmente no chão. Você continua vivendo,
pegando o metrô, trabalhando, saindo com amigos, namorando.
Mas todas essas ações se tornam distrações, passatempos para
seguir a vida. E o corpo que acorda e sai de casa não é mais o
mesmo de antes: meu corpo se tornou um conjunto de membros
soltos amarrados por juntas.
Ninguém sabia se Gustavo ficaria bom, se o tratamento
daria certo, se o câncer era local ou se havia se espalhado… Aos
poucos, os exames foram dizendo que a doença era local e os
tratamentos foram dando certo. Ele foi achando um jeito para se
acostumar a conviver com um olho incapaz de se lubrificar, pois a
radiação queimou as vias lacrimais. Gustavo passou a usar óculos
o tempo todo e a andar com um colírio no bolso, que ele pinga a
cada vinte minutos, às vezes mais, às vezes menos.

Dança no século XXI 33


Durante o dia, com a claridade, até que as coisas iam
bem para mim. Eu mantinha minha cabeça serena, comia direito,
tentava fazer exercícios. O problema eram as noites. Emagreci
três quilos em um mês, pois tive graves crises de diarreias notur-
nas e comecei a acordar às quatro horas da manhã todos os dias.
Aos poucos, passei a acordar às seis horas da manhã, de segunda
a domingo. Era impossível ficar sequer mais um minuto deitada
depois de abrir os olhos. Meu cérebro, que a essa hora do dia
ainda é frouxo, criava imagens angustiantes, levava-me para lu-
gares desconfortáveis e para evitar isso eu me punha em pé assim
que meus olhos se abriam. Durante três anos foi assim. Somente
após um intenso tratamento de shiatsu consegui perder o medo
de ficar deitada depois de acordar.
Célia me pediu para escrever sobre Desmonte em junho
de 2016; ela havia assistido à peça em abril do mesmo ano na
Galeria Olido, em São Paulo. Fazia exatamente um ano que eu
havia estreado o solo, no SESC Belenzinho, em abril de 2015. O
diagnóstico do Gustavo aconteceu em agosto de 2013, três anos
antes do convite para a escrita deste texto. Provavelmente, se ele
não tivesse sobrevivido eu nunca teria feito essa peça e jamais
escreveria este texto. Cada linha que digito agora está marcada
pelo fato de que ele viveu.
Um jornalista me perguntou, em maio de 2016, em
Goiânia, logo após ver o solo, se não era difícil voltar à memória
daquela época a cada apresentação de Desmonte. Respondi: “Eu
não tenho que acessar aquela emoção de quando ele adoeceu.”
Essa frase resume o modo como eu e Gustavo, que é codiretor
do trabalho, criamos o solo, e por isso acho importante explicar
como fizemos isso.
Na época em que ele fazia os exames para encon-
trar a causa daquela ferida no olho direito, eu era diretora da
Companhia Perdida, um grupo que foi criado por mim em 2008,
quando o Programa de Fomento à Dança da Cidade de São

34 Célia Gouvêa (Organizadora)


Paulo financiava somente trabalhos coletivos. Desde 2000, ao fi-
nal de meu mestrado no Centro Laban, em Londres, eu havia me
especializado em solos e duetos. Com a Companhia Perdida pela
primeira vez criei para um grupo. Eu não sabia naquele momen-
to, mas gerenciar tantas pessoas demanda muito tempo e energia.
Se inicialmente eu pensava que conseguiria continuar dançando
e criando meus solos, aos poucos me dei conta de que era impos-
sível. Dediquei-me à direção da Companhia Perdida até que, no
segundo semestre de 2013, época do diagnóstico e tratamento do
Gustavo, percebi que não dava mais. O grupo estava se desmon-
tando. Os motivos são tantos que não vale a pena descrevê-los.
Basta dizer que eu não queria mais dedicar tanto tempo e energia
a algo que não me permitia dançar. Eu precisava voltar a dançar.
Enquanto desenvolvíamos as pesquisas para o 14º
Edital de Fomento à Dança da Cidade de São Paulo, que havía-
mos recebido em 2013, inventei um procedimento para tentar
quebrar as previsibilidades dinâmicas que observava em alguns
bailarinos: gravávamos textos falados que modificávamos a partir
de regras inventadas (por exemplo, apagar todas as letras “a” de
um texto ou a cada três palavras inverter uma etc.), depois os es-
cutávamos com fones de ouvido e tentávamos nos mover repro-
duzindo as dinâmicas que ouvíamos. Acho que para os bailarinos
do grupo não foi muito interessante, mas para mim esse exercício
foi absolutamente brilhante. Descobri que para me mover tão ra-
pidamente quanto a fala que eu escutava, não daria para fazer um
movimento por vez. Antes de uma ação acabar outra já tinha que
começar, em outra parte do corpo. Aos poucos e intuitivamente
meu rosto começou a acordar para os impulsos, pois mexer o
rosto é uma ação rápida, que pode ser feita associada a outras.
Hoje, assistindo aos vídeos dos ensaios desse período,
observo essa textura corporal se desenvolvendo aos poucos em
meu corpo. Inicialmente pela coluna, depois estendendo-se para
a bacia e os ombros e, com o tempo, chegando até os pulsos,

Dança no século XXI 35


dedos das mãos, rosto e levando meu corpo a se deslocar pelo
espaço por meio do deslizamento dos pés com meias. As meias
passaram a fazer parte desse corpo, assim como os fones de ouvi-
do, que comecei a grudar nas orelhas com fita adesiva.
Essa pesquisa corporal, que fui fazendo bem sozinha
dentro dos ensaios da Companhia Perdida, acabou dando ori-
gem a um solo de cinco minutos dentro de um projeto maior,
que nunca foi ao palco, pois a equipe se desfez antes, mas que
foi apresentado, ainda com o grupo, em dois ensaios abertos em
dezembro de 2013. Gustavo fez o tratamento com radiação entre
os dias 3 e 5 de dezembro. Os ensaios abertos foram nos dias 14
e 15 do mesmo mês. Assistindo aos vídeos dessas apresentações
noto que, mesmo estando visivelmente abatida, dançava algo
muito interessante corporalmente. Eram cinco minutos muito
potentes. Um corpo bem mais magro do que o atual, mexendo-se
de um jeito que era novo para mim e, ainda assim, coreografica-
mente muito instigante. Senti que havia descoberto algo pessoal,
que somente eu era capaz de fazer (sei disso porque propus aos
outros integrantes do grupo e não funcionou, assim como eu ha-
via tentado no meu corpo coisas que funcionavam nos deles e
comigo não deram certo). Essa textura corporal é bem minha,
ela mistura questões técnicas que me interessam desde que co-
mecei a coreografar (como gestualidade, fragmentação, polirrit-
mia e repetição) com um estado emocional que vivia na época.
Eu conseguia manter aquilo que me define como criadora em
um corpo novo, que passava por uma experiência de vida que eu
nunca havia imaginado que ocorreria. Essa movimentação tem a
minha impressão digital daquele período.
Após o término do tratamento do Gustavo e o fim da
Companhia Perdida, comecei a ir para o estúdio sozinha. Eram
ensaios esporádicos e eu não tinha nada em mente, nenhum projeto,
nenhum desejo específico. Minha vontade era ficar sozinha e
inventar o que me desse na telha, livre de qualquer obrigação como

36 Célia Gouvêa (Organizadora)


prazos ou expectativas. Mantive o hábito, que havia começado
com a Companhia Perdida, de filmar todas as experiências práticas
e iniciei um segundo hábito: o de escrever um diário ao final de
cada ensaio. São textos bastante secos, descritivos, que explicam as
experimentações que fazia, analisam o que funcionava e o que não
funcionava (pois eu assistia às filmagens do dia ainda no estúdio)
e propõem tarefas para o próximo ensaio — procedimentos que
podiam ser desde organizar uma nova ideia de laboratório, rever
filmes que eu achava que dialogavam com os experimentos do dia,
reler livros ou até mesmo editar poemas e sons para usar nas pes-
quisas. Ao reler os registros do diário percebo que duas frases se
repetem sempre: “isso funciona” e “isso não funciona”. Durante os
seis anos que dirigi a Companhia Perdida muitas das minhas de-
cisões foram inseguras. Às vezes, decidia algo simplesmente por-
que havia tanta gente dependendo disso que escolhia o que dava,
mesmo que não tivesse certeza. Depois da doença do Gustavo e
do final da Companhia Perdida, o drama da indecisão se dissipou.
E assim organizei o solo Desmonte em nove ensaios de três horas
cada, um recorde absoluto para mim, que sempre demorei muito
para criar qualquer coisa.
O solo se compõe de três partes. Nos primeiros dezesseis
minutos, escuto pelos fones de ouvido os sons e vozes que gravei e
me movimento seguindo esses sons. Depois, durante dez minutos,
sigo uma campainha externa audível também para os espectado-
res, que determina o tempo das seguintes ações: 1. respirar muito
rapidamente durante três minutos; 2. executar muito lentamente
um adagio de balé durante três minutos; 3. repetir o adagio ainda
muito lentamente com a respiração extremamente acelerada. Na
terceira e última parte do solo entra a única música que o público
ouve, None but the lonely heart (Op. 6, Nº 6, de Pyotr Tchaikovsky
e interpretação de Christianne Stotijn e Julius Drake), e danço
durante seis minutos mesmo completamente exausta.
A segunda parte do solo, que usa a respiração acelerada e
o adagio de balé clássico, foi um experimento que Gustavo fez co-
Dança no século XXI 37
migo antes de sabermos que ele estava doente. Estávamos na sala
de ensaio da faculdade onde leciono e ele queria testar os efeitos
da respiração no estado corporal do intérprete e, para tanto, me
solicitou que executasse passos reconhecíveis de balé, um código
bastante fechado e de fácil compreensão pelo público. Ao repetir
o mesmo adagio respirando aceleradamente, meus músculos não
recebem a oxigenação necessária e começam a entrar em câimbra.
Inseri esse experimento na segunda parte de Desmonte.
Durante vários minutos tento sustentar elevações de pernas e
equilíbrios, mesmo com meu corpo se contraindo devido às do-
res decorrentes dos espasmos musculares provocados pela defi-
ciência de oxigênio. Toda vez que apresento esse solo, sinto que
não vou conseguir chegar até o final dessa cena. Minhas costas
se espremem, percebo as costelas apertadas tentando puxar o ar
como podem. Ao mesmo tempo, sei que preciso dessa tensão e
desconforto para conseguir relaxar quando a campainha tocar e
eu puder, finalmente, parar. Quando escuto a campainha, coloco
os dois pés paralelos no chão, olho o público de frente, respiro
com toda a capacidade dos meus pulmões e sempre choro.
Os espectadores acham que choro porque me lembro
do fato de que Gustavo quase morreu, mas na verdade estou
chorando de alívio por ter terminado a cena que me causa tan-
ta dor. Eu me provoco uma dor real em cena, não busco uma
memória. Quando sinto que estou muito treinada e que as cai-
bras não ocorrerão, forço-me para tornar a situação ainda mais
difícil, respirando mais rápido e permanecendo mais tempo nos
equilíbrios. Eu preciso sofrer na cena do balé para poder relaxar
na cena seguinte, pois, como a ciência já comprovou, o choro é
o relaxamento do cérebro. Mas não me permito chorar copiosa-
mente, pois certa vez fiz isso em um ensaio e Gustavo me disse
que é mais tocante quando percebemos alguém que quer chorar,
mas que tenta se controlar. Então, eu me forço a chorar, mas de-
pois tento me segurar. Eu me manipulo. Crio uma dramaturgia

38 Célia Gouvêa (Organizadora)


da emoção, coreografo meus estados físicos para que eles forcem
meus estados psíquicos e vice versa.
Depois de chorar e tentar me controlar, escuto a música
linda que escolhi um dia sentada sozinha à mesa de um restauran-
te, pesquisando em meu celular tudo que podia de Tchaikovsky…
E quando o som entra, sei que preciso começar a dançar, pois foi
assim que elaborei o roteiro, mas é quase impossível. Preciso de
uma energia enorme para conseguir me mover depois de tudo que
vivenciei nos minutos anteriores. Aos poucos, vou saindo do lu-
gar e conseguindo mexer os braços e a coluna e, depois de alguns
minutos, consigo dançar por todo o palco. Todos os dias, antes do
público entrar, testo essa cena e percebo o quanto eu poderia fazer,
quantos giros, quantos desenhos espaciais… Mas quando a cena
finalmente chega meu corpo é outro, ele já passou por uma histó-
ria à vista dos espectadores e está tão cansado, estou tão exausta e
emocionalmente mexida que nunca danço o que gostaria, mas o
que consigo. E quando a música termina, eu vou embora.
Eu queria dizer para Célia que em Desmonte não caio
fisicamente no chão porque cair dentro de si e desmontar em sua
própria vida é muito diferente do que se entregar ao chão. E se
eu caísse no palco estaria representando uma imitação pobre do
que senti quando tive medo.

Dança no século XXI 39


Sobre a autora

Juliana Moraes

Bailarina, coreógrafa e professora. Doutora em Artes


e Bacharel em Dança pela UNICAMP. Possui especialização e
mestrado pelo Laban Centre for Movement and Dance - City
University, Londres, revalidado pela ECA-USP. Desde 2005, é
professora de performance no Bacharelado em Artes visuais do
Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Desde 2010, tra-
balha como professora convidada da Accademia Teatro Dimitri,
em Verscio, na Suíça italiana.

40 Célia Gouvêa (Organizadora)


Dança contemporânea: reflexões
sobre conceitos que se entrelaçam a
uma briga de território
Vanessa Macedo

“O que é dança contemporânea? Quem faz dança con-


temporânea? Para quem se faz dança contemporânea?” - esses
questionamentos em algum momento atravessaram o pensamen-
to de pesquisadores, artistas e público. Não são perguntas jovens,
ao contrário. São perguntas que vêm resistindo bravamente à
ideia de serem solucionadas, e seguem fomentando fartas discus-
sões, principalmente, quando se trata de políticas públicas. Em
São Paulo, por exemplo, o Programa Municipal de Fomento à
Dança14, que tem como escopo o apoio a trabalhos continuados
de dança contemporânea, tem sido motivo de ferrenhos debates
nos últimos anos. Isso porque é preciso fazer “dança contempo-
rânea” para concorrer ao Programa e, muitas vezes, não tem sido
simples traçar fronteiras que delimitam quem está ou não traba-
lhando com esse modo de produção. E isso é um bom indicador: o
entendimento de que se está falando sobre “modos de produção”.
Em rodas de debate, reuniões de movimentos políticos,
fóruns, encontros com bancas julgadoras, congressos e eventos
acadêmicos, se o assunto é dança contemporânea, em algum mo-
mento nos deparamos com um nó que não desata. A discussão,
ainda que por vezes pareça redundante, continua valendo a pena e,
mais ainda, quando se trata de refletir sobre espaços de validação.
Laurence Louppe investigava o assunto nos anos 1990.
Ela afirma que, provavelmente, será acusada de não diferenciar a

14 O Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo foi ins-
tituído pela Lei n°14071 de 18 de outubro de 2005.

Dança no século XXI 41


dança moderna da contemporânea, e seus estudos discutem ques-
tões que se estendem desde o início do século XX até quase o
século XXI. Não entraremos no mérito dessa não diferenciação
entre moderno e contemporâneo, o que interessa aqui são ideias
que vêm de longe, mas que preservam sua atualidade e suscitam
reflexões para além do campo estético. A autora explica sua abor-
dagem: “Na minha opinião, só existe uma dança contemporânea
desde que a ideia de uma linguagem gestual não transmitida sur-
giu no início do século XX; ou melhor, através de todas as escolas,
eu reencontro, talvez não os mesmos princípios estéticos [...], mas
os mesmo valores.” (LOUPPE, 2010, p. 45 - grifo da autora).
O que pretendo destacar da citação acima é o pensa-
mento sobre uma dança contemporânea que não comunga ne-
cessariamente princípios estéticos e sim valores. Nesse contexto,
os princípios estéticos perdem um pouco a importância frente
à possibilidade de tratarmos de valores reconhecíveis. Em síntese,
os valores apontados por Louppe (2012, p. 45) são: a individua-
lização de um corpo e de um gesto sem um modelo que exprima
uma identidade ou um projeto insubstituível; a produção e não
a reprodução de um gesto; o trabalho sobre a matéria do corpo e
do indivíduo; a não antecipação da forma (referindo-se aos pla-
nos coreográficos); e a importância da gravidade como impulso
do movimento. A esses, somam-se valores morais: a autentici-
dade pessoal; o respeito pelo corpo do outro; a não arrogância;
uma solução justa e não somente espetacular; a transparência e o
respeito por diligências e processos empreendidos.
Podemos nos perguntar se os valores apontados acima
continuam valendo nos dias de hoje. Arrisco dizer que sim, que
não só continuam valendo como talvez não tenham sido sufi-
cientemente discutidos. Não são poucos os artistas que, tratando
do tema “dança contemporânea”, apontam como principal ca-
racterística a sua “diversidade”, possivelmente, porque é de sua
natureza a busca por “caminhos próprios”. No entanto, não é raro

42 Célia Gouvêa (Organizadora)


ouvirmos que é uma dança que se tornou repetitiva (e chata), até
mesmo espectadores que não são da área são capazes de reconhe-
cer padrões corporais que foram se instaurando. Sobre isso, há
algo interessante a se pensar:

Não é seguramente uma questão de reconhecimento


exterior de vocabulário ou de forma, sob qualquer confi-
guração, ainda que, desde o início do século XX, o movi-
mento tenha sido submetido a uma abordagem que pro-
duziu similitudes de coloração corporal. A questão da
dança contemporânea é outra. (LOUPPE, 2012, p. 51).

É inevitável que se construam semelhanças, seja especi-


ficamente na movimentação ou na cena como um todo. Os mo-
dos de produção vão se disseminando, gerando repetições, e isso
aparece nas propostas artísticas. O que merece a nossa atenção é
justamente o fato de não estar aí a chave da questão, não se trata
de uma abordagem sobre resultados coreográficos, e essa ideia
pode ser ressaltada na seguinte afirmação: “[...] a dança contem-
porânea não é uma escola, tipo de aula ou dança específica, mas
sim um jeito de pensar a dança”15 (TOMAZZONI, 2006).
Também se acredita, com alguma frequência, que con-
temporâneo é o que está hoje no nosso tempo, o que parece in-
compatível com o que foi desenvolvido até aqui. Essa distinção
não se dá pela análise do tempo cronológico, tanto que o pen-
samento de Louppe continua potente nos dias de hoje, mesmo
tendo sido desenvolvido olhando para a dança do século XX. É
nessa direção que penso o conceito dança contemporânea como
um modo de produção artística interessado em discutir a si mes-
mo, conectar-se aos ambientes com os quais interage, pesquisar
os seus próprios parâmetros, construir um corpo crítico. Para
isso, quer desprender-se de modelos dados, considera bem-vin-

15 TOMAZZONI, Airton. Esta tal de dança contemporânea. Disponível em:


<http://idanca.net/esta-tal-de-danca-contemporanea/>. Acesso em: 26/12/2012.

Dança no século XXI 43


das as diferenças, não separa criador, criação, processo e contexto.
É investigativo. E, como consequência, é também um modo de
existir impreciso, inespecífico, de natureza turva.
Não é o caso de pensarmos o “novo”. Dificilmente hoje
iremos nos deparar com uma dança jamais vista ou uma proposta
cênica totalmente inovadora, sem precedentes, capaz de romper
com o que já foi feito. Não se trata disso.

Que o corpo possa encontrar uma poética própria em


sua textura, nas suas flutuações e nos seus apoios é um
aspecto que diz respeito à própria invenção da dança
contemporânea. Inventar uma linguagem, de fato, já
não significa manipular um material preexistente, mas
criar esse mesmo material, justificando artisticamente
a sua gênese e comprometendo nesse empreendimen-
to o sujeito, ao mesmo tempo produtor e leitor da sua
própria matéria. (LOUPPE, 2012, p. 64).

Por tudo o que foi dito, são muitas as danças da dança


contemporânea: a dança que quase não dança, a dança que se
funde a outras linguagens, a dança que ocupa o espaço urbano,
a dança como depoimento autobiográfico, a dança que é sempre
processo. São essas e outras tantas. Em suas diferenças, todas
parecem se interessar pela construção de um corpo e um discurso
próprios. Seguindo essa ideia, podemos dizer que “a dança con-
temporânea evidencia que escolhas estéticas revelam posturas
éticas”16 (TOMAZZONI, 2006).
Agora, vejamos como essa discussão se instaura nos modos
de produção da atualidade, mais precisamente nos editais da cidade
de São Paulo, que se referem ao Programa Municipal de Fomento
à Dança. Vale começar com a fala da crítica Helena Katz (2014).

16 TOMAZZONI, Airton. Esta tal de dança contemporânea. Disponível em:


<http://idanca.net/esta-tal-de-danca-contemporanea/>. Acesso em: 26/12/2012.

44 Célia Gouvêa (Organizadora)


Criada para proteger um tipo de dança (conhecida
como ‘dança contemporânea independente’) que en-
frentava, na época, dificuldade para sobreviver, acabou
catapultando-a para uma posição de poder (excluía to-
das as outras). [...] Os avanços são lentos, e dentro de
uma certeza: a de que não existe mundo possível para a
dança fora deste que surgiu com a sua Lei de Fomento.
Os artistas, obedientes, foram sendo disciplinados
dentro da lógica da inclusão (de alguns) pela exclusão
(de muitos, que resmungam, mas aguardam, calmos e
esperançosos, a sua vez de serem os escolhidos)17.

Quando o primeiro edital da Lei de Fomento à Dança


foi lançado, no ano de 2006, já era comum a dificuldade de explicar
“dança contemporânea” tanto para leigos, como para os artistas. E
quanto mais híbrido e performático os trabalhos foram ficando,
mais se confirmava essa dificuldade. Mas o que destaco neste mo-
mento “pós-fomento” é que não se trata tão somente da complexi-
dade de refletir sobre conceitos, mas de uma “briga por território”.
A Lei de Fomento é um Programa Municipal para a
cidade de São Paulo, mas ela não se restringiu a ampliar radi-
calmente a dança existente nessa capital. É possível perceber sua
influência no modo como vem sendo entendida a produção da
dança independente, de uma forma abrangente. Um exemplo
disso é a ideia de “pesquisa em dança”, termo presente em artigos
da Lei e debatido com recorrência entre artistas de todo Brasil.
Não que isso se deva exclusivamente ao Fomento, até porque
muito antes dele ser criado já se falava de pesquisa em dança e,
na atualidade, esse assunto passou a ser pauta também em razão
do crescente número de cursos universitários na área.
O que ocorre é que o Fomento de São Paulo é enten-
dido como um programa único, que de fato possibilita a ma-

17 KATZ, Helena. Lei de Fomento mudou os caminhos da dança em São Paulo.


Disponível em: <http://www.helenakatz.pro.br/midia/helenakatz11411061436.pdf>.
Acesso em: 2/4/2015.

Dança no século XXI 45


nutenção de grupos por um período continuado, sendo usado
como exemplo na tentativa de construção de políticas públicas
em muitas outras cidades. Além disso, com o Fomento, a dança
paulistana ganhou mais visibilidade e os grupos contemplados
têm mais possibilidade de difundir os seus modos de entender
dança, pesquisa, produção.
A “pesquisa em dança” destacada aqui também tem rece-
bido muitas interpretações. Não por acaso ela está atrelada à “dança
contemporânea” no texto da Lei. Assim, prescreve o seu Artigo 1º:
“Entende-se por dança contemporânea um modo de produção artís-
tica, que envolve investigação, pesquisa e criação [...]18” (grifo meu).
Pronto. A confusão está feita. Não se sabe mais ao cer-
to se a complexidade está em definir dança contemporânea ou
pesquisa em dança, sendo este o assunto que se ouve em muitas
discussões, seminários, bancas julgadoras de projetos. Penso que a
questão nesse momento não é a discussão sobre história da dan-
ça, conceitos, teorias ou qualquer coisa nesse sentido. O que está
em jogo é uma “briga por território”. É preciso pertencer à dança
contemporânea, é preciso fazer pesquisa, tudo isso virou um lugar
de “poder”, um lugar de aceitação, um lugar de sobrevivência. Isso
porque a lógica dos editais se instaura e com ela, o desejo de caber
naquele espaço para poder produzir e ser “validado”. Nesse senti-
do, vale citar Tiche Vianna (2014, p. 33): “Eu ouvi numa reunião
que o fomento é para grupos que não estão na mídia. Mas essa é
uma grande contradição do Programa, pois o fomento criou uma
mídia própria, com os grupos que têm padrão fomento.”
O percurso da dança paulistana nos últimos 10 anos é
muito interessante. Estamos falando de uma dança contempo-
rânea que deixou de estar à margem para ser vista, por muitos,
como um lugar de privilégio. O que antes representava a luta por
um espaço fora da lógica do mercado, reivindicação que culmi-

18 Lei de Fomento à dança. Disponível em: http://fomentoadanca.blogspot.com.


br/p/lei-de-fomento-danca.html. Acesso em: 13/8/2016.

46 Célia Gouvêa (Organizadora)


nou no Fomento à Dança, passa a ser um lugar de forte disputa
dentro de um “mercado próprio” ou talvez de uma lógica dos edi-
tais: “O edital, nascido para funcionar apenas como uma forma
jurídica de distribuição de dinheiro, extrapolou a sua função e
transformou-se em uma lógica do pensar, que agora nos coman-
da” (KATZ, 2014)19.
A ausência de políticas públicas apropriadas e a neces-
sidade de se adequar aos editais geram mudanças nos modos de
produção - me pergunto no que isso resultará em longo pra-
zo. O que representa, por exemplo, essa política (ou a falta dela)
para grupos que trabalham com tradições populares brasileiras
e terminam por defender um modo de produção que não diz
respeito à sua natureza? O que esses editais representam para
artistas que desejam manter vivas matrizes estéticas específicas e
não encontram espaço para isso? Vivemos num tempo em que a
autodenominação é uma forma de validação? É suficiente que o
próprio artista defina o seu fazer?
O que ressalto, em síntese, é que a discussão sobre dança
contemporânea continua viva e necessária, estendendo-se para
outros campos e friccionando lugares que dizem respeito a per-
tencimento, validação, políticas de estado e governo.

19 KATZ, Helena. A última edição do programa Rumos. Disponível em: <http://


www.helenakatz.pro.br/midia/helenakatz91418125662.pdf>. Acesso em: 5/6/2015.

Dança no século XXI 47


Referências Bibliográficas:

KATZ, Helena. A última edição do programa Rumos. Estado de


S. Paulo. São Paulo, 9 de dez. de 2014. Caderno 2. Disponível em:
<http://cultura.estadao.com.br/noticias/teatro-danca,lei-de-fomento-
-mudou-os-caminhos-da-danca-em-sao-paulo,1561673>. Acesso em:
5/6/2015.
______. Lei de Fomento mudou os caminhos da dança em São Paulo.
Folha de S. Paulo. São Paulo, 18 de set, de 2014. Ilustrada. Disponível
em: <http://www.helenakatz.pro.br/midia/helenakatz11411061436.
pdf>. Acesso em: 2/4/2015.
LOUPPE, Laurence. Poética da dança contemporânea. Trad. Rute Costa.
1. Ed. Portuguesa. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.
SÃO PAULO (Cidade). Lei de Fomento à Dança. Lei n° 14.071, de 18
de outubro de 2005. Disponível em http://fomentoadanca.blogspot.
com.br/p/lei-de-fomento-danca.html.
TOMAZZONI, Airton. Esta tal de dança contemporânea. Aplauso
Cultura em Revista, Porto Alegre, nº 70, dez. de 2015. Disponível em:
<http://idanca.net/esta-tal-de-danca-contemporanea/>. Acesso em:
26/12/2012.
VIANNA, Tiche. Um olhar sobre as comissões julgadoras. In:
GOMES, Moreira; MELLO, Marisabel (Orgs.). Fomento ao Teatro:
12 anos. São Paulo: SMC, 2014.

48 Célia Gouvêa (Organizadora)


Sobre a autora

Vanessa Macedo

Bailarina, coreógrafa e pesquisadora. Fundou e dirige,


desde 2002, a Cia Fragmento de Dança, em São Paulo-SP. É
bacharel em Direito pela UFRN (1998), mestra em Artes pela
Universidade de Campinas (2008) e doutora em Artes Cênicas,
pela ECA-USP (2016). Sua pesquisa atual envolve dramaturgia
em dança, autobiografia nas artes e políticas públicas para a dan-
ça. Desde 2011, milita no “Movimento a Dança se Move”.

Dança no século XXI 49


50 Célia Gouvêa (Organizadora)
Dança, cidade e Trisha Brown
Marina Guzzo

Em 1970, na cidade de Nova Iorque, Trisha Brown fez


um homem descer pela lateral de um edifício. Suspenso a partir
de um único cabo, desceu, não agarrado como Homem-Aranha,
mas em linha reta e totalmente perpendicular à fachada do pré-
dio. A peça desafiou o que até então se tinha como suposições
sobre a relação do corpo com a cidade e com a gravidade, mas
também foi apresentada como dança. Intitulada simplesmente
Man Walking Down the side of a building, aconteceu ao ar livre e
não tinha coreografia reconhecível além do imperativo de “ca-
minhada” e um performer, Joseph Schlichter, que usava roupas
simples, como um morador de rua.
Roof Piece (1971), outro exemplo da mesma coreógra-
fa, é uma performance que toma como cenário alguns telhados
de Manhattan, tendo como pano de fundo os edifícios e o efeito
escultórico das caixas d’água que compõem o skyline da região. A
performance é uma espécie de “siga o mestre” e começa quando
Trisha realiza movimentos improvisados, que remetem a um si-
nalizador de trânsito estabelecendo comunicação com os outros
performers, que “reproduzem” o movimento instruído pelo pri-
meiro. Os espectadores da performance eram tanto pessoas que
sabiam de antemão do acontecimento, mas também incidentais,
isto é, pessoas da vizinhança que encontraram o acontecimento
em seu caminho.
Trisha coreografava a cidade e seus encontros, apre-
sentando em seu trabalho algumas questões centrais à reinser-
ção social, à política da dança e à busca pela ressignificação da
prática. Ela não estava sozinha, mas em um coletivo de artis-
tas do qual fazia parte Steve Paxton, Yvonne Rainer, Debora

Dança no século XXI 51


Hay, David Gordon, entre outros. Esse grupo, conhecido como
Judson Dance Theather, era caracterizado pelo ambiente intenso
de troca e experimentação. Os protagonistas se reuniam sema-
nalmente na Judson Memorial Church, uma igreja protestante
no Greenwich Village, em Nova Iorque, para discutirem seus
últimos trabalhos coreográficos, que misturavam dança, música,
performance e política. Todos os presentes deveriam assistir ao
trabalho de cada um e em seguida comentá-lo. Essas reuniões
eram abertas ao público, que era convidado a fazer observações
de qualquer tipo: “sobre qualquer aspecto político, social ou esté-
tico envolvido... na forma de pintura ou poemas ou pôsteres ou
ensaios ou sentenças ou esculturas ou um clipping de jornal, ou
fotos […]” (BANES, 1983, p. 37).
As apresentações do Judson Dance Theater eram orga-
nizadas com a plateia sentada em bancos, posicionada de costas
para o altar e nas laterais da igreja, de modo a criar mais espaço
para a atuação do(s) artista(s). Com essa iniciativa democratiza-
va-se a dança, colocando os artistas no mesmo plano dos espec-
tadores e bem próximos uns dos outros - diferente do palco ita-
liano. Era a criação de um espaço de troca, de encontro, de outro
modo de existir e de fazer dança. Uma espécie de manifesto.
O movimento inaugurou a chamada dança pós-moder-
na americana e sua prática crítica e engajada rompeu com os pa-
drões anteriormente estabelecidos pela dança moderna, abrindo
novas fronteiras de ação e criação. Nesse tom de investigação
sobre o corpo e o movimento, livre da coreografia e do texto, o
grupo do Judson Dance pesquisava a dança para além das re-
presentações ou das narrativas “teatralizadas” ou dramatizadas.
Buscavam o movimento “puro” a partir dos estudos de anatomia
do corpo e do movimento, explorando gestos cotidianos, como
caminhar, pausar, olhar. Tendo isso como foco, a dimensão do
corpo tomava força como resistência à institucionalização da
arte e como desejo de vinculação das ações aos espaços onde a

52 Célia Gouvêa (Organizadora)


vida acontecia: a rua, a cidade e em espaços outros considerados
“apropriados para arte”.
Trisha Brown se formava e se fortalecia nesse ambiente.
Surgia uma variedade de intervenções artísticas efêmeras e experi-
mentais, nas quais os artistas, incluindo ela, se valiam de meios di-
versos, transitando entre ambientes distintos, como também o espa-
ço urbano. A coreógrafa, imersa nesse contexto, estabelecia relações:

Brown cresceu em maturidade artística em meados dos


anos 1960, quando a arte visual e a performance esta-
vam em calorosa colaboração e às vezes eram indistin-
guíveis umas das outras. Os happenings como os de
Robert Rauschenberg e Claes Oldenburg desfizeram
as distinções entre escultura e teatro, e foram realizados
no tempo real e no espaço do espectador. Estas perfor-
mances romperam com a boca de cena, assim como a
pintura tinha rompido a sua estrutura, para confrontar
o espectador no espaço dele ou dela. Do mesmo modo,
com o trabalho da jovem Brown, que se apresentou em
várias peças de Rauschenberg (KERTESS, 1998, p.
127 apud TIDEI; SPERLING, 2015, p.67).

Durante seu percurso, Brown desenvolveu táticas que a


levariam a uma abordagem que buscava no cotidiano subsídios
para as performances que realizava no circuito alternativo das
artes. Com o intuito de desnaturalizar as circunstâncias físicas e
institucionais para a ocorrência da dança e libertar-se dos limites
que a caixa cênica inscrevia sobre o corpo, deslocou sua atividade
para o espaço urbano, apropriando-se dele como palco (TIDEI;
SPERLING, 2015). Trisha deslocou o espectador da dança para
um encontro na cidade.
Para o filósofo Jaques Rancière (2012), em seu livro o
Espectador Emancipado, o que interessa na relação entre o ar-
tista e os espectadores, ou entre a obra e os espectadores, são as
camadas perceptivas de análise e as formas como somos afetadas
Dança no século XXI 53
por elas, sugerindo que o que seria importante destacar nessa
relação é o potencial especulativo das imagens, o modo como
podemos relacioná-las, distinguindo, nelas e através delas, a rea-
lidade da qual partem. O espectador, para Rancière (2012), não é
apenas um sujeito passivo perante um objeto artístico a consumir
e aplaudir, mas alguém que pode fazer coisas (construir referên-
cias, por exemplo) a partir de um manancial de objetos artísticos,
culturais, sociais e políticos. O espectador no espaço público ou
fora do palco, como nessas obras de Trisha Brown, pode ser des-
de um transeunte, alguém que está de passagem, um trabalhador
que não necessariamente se programou para ir a um espetáculo
de dança, até alguém que foi a uma casa tombada, um viaduto
abandonado para assistir ou participar de uma ação em dança.
A emancipação da relação entre a performance e quem
a assiste, argumenta Rancière (2012), é sobretudo o poder de
escolher entre uma imagem dominante e uma outra construída
a partir de relações individuais, dos espaços e dos tempos que ela
se apresenta. Na criação artística a questão não é a de representar
a realidade o mais fielmente possível, mas a de apresentar uma
cartografia do real que não o reproduza. Ou seja, passar de um
regime de percepção para outro. De certa forma, a arte muda as
hierarquias sensíveis do pensamento e de apreensão da cidade,
oferecendo as mesmas experiências a pessoas diferentes, que vi-
vem em universos sensíveis muito diferentes.
O paradigma centrado no olhar do espectador pressu-
põe um olhar na mente desligado de um corpo. Uma noção mais
adequada para o que vivemos hoje é a noção de performance
ou performatividade (CVEJIC, 2015), como um novo modo de
estarmos no mundo, como algo motivado por um impulso capi-
talista de mostrar que alguém ou alguma coisa sempre pode ir
mais longe ou ter um desempenho melhor. A imposição hoje é
da performance ou performatividade como força de uma crítica à
razão instrumental, na qual se entende o ato de performar como

54 Célia Gouvêa (Organizadora)


uma ideia de ambivalência em relação à motivação de “ser me-
lhor” do espírito capitalista.

Ela [a performance], mostra uma cuidadosa ideia de


ambivalência, que nos força a considerar, em cada
situação específica e em diversos registros ao mes-
mo tempo (ontológico, político, econômico e assim
por diante) qual é a questão da performance e o quê,
como, para quem e por quê a performance faz o que
faz: constrange, normatiza, monitora, permite ou in-
venta. (CVEJIC, 2015, p. 30).

Então, a diferença entre a Sociedade do Espetáculo,


baseada na imagem e na representação que nos leva a uma es-
pécie de cegueira (DEBORD, 1967), é pouco a pouco substi-
tuída pela da performance, que aponta numa direção de fazer e
mostrar que faz consciente, auto-supervisionado e corporificado
(SCHECHNER, 2006). Mas a dança quando sai do palco se co-
loca nessa relação? Não necessariamente, pois, de alguma forma,
ela se aproxima mais de espectadores e de espaços com os quais
ela não se relacionaria a priori.
Eleonora Fabião, atriz e performer da Escola de
Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nomeia
as ações performativas de “programas”, pois entende como sendo
a palavra mais apropriada para descrever um tipo de ação meto-
dicamente calculada, conceitualmente polida, que em geral exige
extrema tenacidade para ser levada a cabo e que se aproxima do
improvisacional exclusivamente na medida em que não seja pre-
viamente ensaiada. Performar programa é fundamentalmente di-
ferente de lançar-se em jogos improvisacionais (FABIÃO, 2009).
Para a autora, o performer, que neste caso é pensado
como o artista da dança no encontro com a cidade, não improvi-
sa uma ideia: ele cria um programa e organiza-se para realizá-lo
(mesmo que planeje convidar espectadores para ativarem suas

Dança no século XXI 55


proposições, por exemplo). “Ao agir seu programa, des-programa
organismo e meio” (FABIÃO, 2009, p. 237). A inspiração para
a inserção dessa ideia na teoria da performance apresentada por
Elenora Fabião (2009) vem do texto “Como criar para si um cor-
po sem órgãos”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, no qual pro-
põem em síntese que o programa é “motor de experimentação”
(DELEUZE; GUATARRI, 1999, p. 12). Um programa pensado
como um ativador de experiência. Longe de um exercício, prática
preparatória para uma futura ação, a experiência é a própria ação.
A palavra experiência, em sua etimologia, inclui os sentidos de
risco, perigo, prova, aprendizagem por tentativa, rito de passa-
gem. Existe implícita a ideia de transformação, de passagem de
um conhecimento para um reconhecimento no corpo.
André Lepecki (2012) nomeia essas imagens coreo-
grafadas de “coreopolítica dissensual”, algo como um “refrão
global contemporâneo” que ousa agir e fazer parte por meio de
movimentos de ocupação da pólis, performando e endereçando
esse tipo de intervenção para nossa vida ativa e nossa função
política. Em seu artigo “Coreopolítica e coreopolícia”, o autor
(LEPECKI, 2012) dá visibilidade ao poder da mídia e da polícia
na coreografia, por exemplo, ao citar uma série de imagens, que
a mídia produziu no ano de 2011, de grandes ocupações e mani-
festos de rua em nível global, afirmando que

[...] todas essas imagens que a mídia global produz, re-


produz e faz circular são já coreografadas pela câmera
e por um aparato de representação midiático que, em
si mesmo, já é produtor e reprodutor de certa imagem
do que é fazer política e manifestar dissenso no espaço
urbano [...]. (LEPECKI, 2012, p. 50).

Assim como para Rancière (2012), Lepecki (2012) en-


tende que arte e política são atividades co-constitutivas e funda-
mentais para o exercício de convivência nas cidades contemporâ-

56 Célia Gouvêa (Organizadora)


neas. A partir da reflexão estética e política, os corpos e a cidade
criam uma capacidade de “coreografar” ou “performar” espaços a
partir de suas mobilizações, ocupações e fluxos de contestação.
Em sua obra Exausting dance: performance and the poli-
tics of movement, Lepecki (2006) discute uma ontologia da dança
ligada à exaustão, ou de como coreógrafos contemporâneos es-
tão questionando a maneira de produzir a partir da concepção
“moderna” de dança, considerada como corpo em movimento. O
autor usa uma série de performances como exemplo para discu-
tir dança e espaço público, destacando a obra de Trisha Brown
para mostrar o uso do espaço. Para ele, Trisha se vale da dança
como ação no espaço - pensado como instabilidade, fluidez, mul-
tivetorialidade, assimetria. Lepecki (2006) destaca também sua
inventividade em relação às questões artísticas contemporâneas
e como sua obra é uma forte referência histórica para pensar a
coreografia e política: incerto, possível, provável, instável, assi-
métrico, nunca pronto, e ainda por ser feito, por excelência, de
maneira aberta.
Trisha estabeleceu outra forma de relação com o público
e com sua própria dança ao atuar nas ruas, nos telhados e estacio-
namentos de Manhattan, misturando a dança e a cidade, criando
ecos na história da dança até os dias de hoje. Trisha desafiou a
ideia de espetáculo, borrando as fronteiras entre dança, perfor-
mance e cidade. Seu trabalho serve de disparador para pensar te-
mas em torno da política e da coroegrafia, a partir de uma forma
de espetáculo que se perpetua na história da dança ocidental.

Dança no século XXI 57


Referências Bibliográficas:

BANES, S. Democracy’s Body: the Judson Dance Theater 1962-1964.


Ann Arbor: UMI Research Press, 1983.
CVEJIC, Bojana. Notas para uma sociedade da performance: sobre
dança, esportes, museus e seus usos. In: RIBEIRO, Felipe (Org.).
AdF14. Atos de Fala. Rio de Janeiro: Telemar Ed., 2015.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,
1997.
FABIÃO, E. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena con-
temporânea. In: Revista Sala Preta, 2009. P. 235-247.
LEPECKI, André. Coreopolítica e Coreopolícia. In: Ilha: Revista
de Antropologia, Universidade Federal de Santa Cataria - UFSC,
Florianópolis, SC, Brasil, v. 13, nº 1, p. 41-60, jan./jun.
_____________. Exhausting dance. Performance and the politics of move-
ment. New York: Routledge, 2006.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction.
London: Routledge, 2006.
STUART, I. A experiência do Judson Dance Theater. In: PEREIRA,
R.; SOTER, S. (Orgs.). Lições de Dança 1. Rio de Janeiro: UniverCidade,
1998, p. 191-204.
RANCIERE, J. Será que a arte resiste a alguma coisa? In: LINS, D.
(Org.). Nietzsche, Deleuze, Arte, Resistência. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007.
___________. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes,
2012.
__________. A partilha do sensível. São Paulo: Ed. 34, 2005.
TIDEI, Mariana Dobbert; SPERLING, David Moreno. Práticas críticas no
espaço urbano: Trisha Brown, Duane Michals e Bernard Tschumi. In:
OCULUM Ensaios, Revista de Arquitetura e Urbanismo. v. 12, nº 1.
Disponível em: http://periodicos.puc-campinas.edu.br/seer/index.php/
oculum/article/view/2713. Acesso em: 10/02/2016.

58 Célia Gouvêa (Organizadora)


Referências Digitais:

Trisha Bown Dance Company (site oficial). Disponível em: http://www.


trishabrowncompany.org Acesso em: 12/09/2016.
Manifesto Project. Yvone Rainer no Manifesto. Disponível em: http://
www.1000manifestos.com/yvonne-rainer-no-manifesto/. Acesso em:
12/09/2016.

Dança no século XXI 59


Sobre a autora

Marina Guzzo

Artista e pesquisadora das artes do corpo, tem pós-


-doutorado pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.
Professora Adjunta da Unifesp no Campus Baixada Santista, pes-
quisadora do Laboratório Corpo e Arte e coordenadora do Núcleo
Interdisciplicinar de Dança – N(i)D. Concentra suas criações na
interface das linguagens artísticas e a incerteza da vida contem-
porânea, misturando dança, performance e circo para explorar os
limites do corpo e da subjetividade nas cidades e na natureza.

60 Célia Gouvêa (Organizadora)


Reencenações fictícias para
realidades reencenadas
Laura Junqueira Bruno

Primeiramente, #foratemer.
Gostaria de propor um exercício estético-político de re-
encenação fictícia de alguns trabalhos de dança contemporânea
no contexto político brasileiro atual.
Imaginei um diálogo fictício meu com o professor de
artes da performance, crítico, curador e dramaturgista André
Lepecki e o doutor em literatura, escritor, crítico e dramaturgista
Marco Catalão.
LAURA BRUNO: Estou impressionada com as nar-
rativas feitas em torno do impeachment da presidenta Dilma
Rousseff. Me parece que a atualização do termo golpe deflagra
precisamente a atualidade de profundas feridas que a frágil de-
mocracia brasileira carrega desde seu recente reestabelecimento.
A reencenação destas narrativas me fez pensar no que significa
atualizar discursos, dos pontos de vistas políticos e performáticos.
ANDRÉ LEPECKI: A quantidade crescente de re-e-
nactments na dança contemporânea nos fala da vontade de obras
querendo se “reobrar” numa possibilidade outra daquilo que já
foram uma vez. No conceito de re-enactment estão contidas as
ideias de tradução, recriação, repetição com/como diferença. Um
modo de “transcriação”, como queriam os irmãos Campos20.
LAURA BRUNO: Imaginei que Trisha Brown reen-
cena If you couldn’t see me – coreografia de 1994 criada com o ar-
tista Robert Rauschenberg – em São Paulo, no TUSP, em 2016.
Na mesma noite em que intelectuais fazem um ato de vigília na
PUC–SP contra o golpe de impeachment em curso no Brasil.

20 (LEPECKI, 2010:19)

Dança no século XXI 61


Os ânimos estão acirrados e manifestantes pró impeachment
se aglomeram em frente à Universidade e ao teatro. Em algum
momento um clima que ecoa Maria Antônia versus Mackenzie,
1968, se instala na Rua Monte Alegre. Até que a Universidade e
o teatro são invadidos, no momento da apresentação de Brown.
MARCO CATALÃO: a narrativa sobre o experimento
cênico ganha um grau de autonomia tão grande, a ponto de tor-
nar-se ela mesma, a narrativa, um material artístico independente,
com suas próprias latências e potencialidades – que podem ou não
coincidir com as do experimento cênico que lhe deu origem21.
LAURA BRUNO: Trisha esperou pelo momento de
entrar. Não se sentia menos preparada desta vez. “Esqueci de car-
regar o celular. Saco.” Os murmúrios soavam tão alto que duvidou
se estava mesmo na hora de começar. “Lembrar de não acelerar
os passos, as mãos já estão muito rápidas”. Parecia que o volume
aumentava em vez de diminuir. Mas não dava para entender o
que diziam. “O começo da frase pode ser mais fraco” mentali-
zou, tentando não perder a concentração. Era difícil manter o
pensamento em alguma coisa por muito tempo. “Talvez esperem
um pouco mais pra...” ponderava quando tocou o terceiro sinal.
“Merda” murmurou. O frio na barriga cresceu. Assim que come-
çou a se movimentar sentiu uma grande tensão nas costas. Não
bastasse a lesão não curada, agora seus músculos dorsais se rete-
saram em alerta. Forçou-se a conter o ímpeto de voltar-se para o
público. “Não vou virar, não posso virar”. Seu corpo não tinha a
mesma determinação. Cada novo impulso era desajeitado e va-
cilante. “Se virar, acabou”. Resistiu com dor e alguma convicção.
Continuou se movendo ali de costas, ouvindo a plateia inquieta.
Não deturpou a coreografia até que um estrondo ecoou do lado
de fora. Num susto, virou. “Pronto, agora acabou.”
ANDRÉ LEPECKI: O re-enactment não recria uma
obra passada, não resgata uma dança parada no tempo que já
foi. O re-enactment atualiza virtuais presentes e concretos da
21 (CATALÃO, 2014:148)

62 Célia Gouvêa (Organizadora)


obra que já foi mas que, no entanto, ainda age e por isso ainda
é (uma obra é uma “matéria fantasma”, seu fim não tem térmi-
no). Funciona assim: uma obra se agencia a um coreógrafo; nes-
se agenciamento, atualiza-se uma vontade: a vontade de ser não
aquilo que já foi, mas tudo aquilo que não foi e que ainda pode vir
a ser (porém, continuando a ser a mesma obra)22.
LAURA BRUNO: Imaginei também que Yvonne Rainer
e Steve Paxton estão ensaiando no Itaú Cultural, em São Paulo, em
2016, uma remontagem da versão de Trio A feita para The People’s
Flag Show em 1970. As manifestações pró impeachment atingem
seu auge na Avenida Paulista com seu QG na FIESP; pato pla-
giado inflável, boneco “pixuleco” inflável, ânimos golpistas inflados.
Yvonne entra no teatro do Itaú Cultural, onde Steve Paxton já se
encontra. A sede da FIESP exibe uma bandeira verde e amarela,
dos carros flamejam bandeiras verde e amarelas, pedestres usam a
camisa da seleção brasileira de futebol verde e amarela.
MARCO CATALÃO: podemos formular a hipótese
de que o discurso crítico participa da criação do objeto artístico,
não apenas o difundindo, mas também o retificando e reformu-
lando. Nesse sentido, as narrativas inseridas pelo crítico-rapso-
do apenas tornam mais evidente uma característica presente em
qualquer texto crítico: seu aspecto poético e criativo23.
LAURA BRUNO: Yvonne entrou no teatro afobada e
jogou a sacola semiaberta no chão do palco.
A tarde abafada lá fora era refrescada pelo ar-condicio-
nado da sala e o silêncio contrastava com o ruído da rua.
– Não vai dar pra usar as bandeiras, Steve – disse, esva-
ziando a sacola.
– Mas Yvonne, qual o sentido de fazer sem? – perguntou.
– Não sei ainda. Mas com também perdeu o sentido. Ou
melhor, ganhou um sentido péssimo – ela respondeu.

22 (LEPECKI, 2010:19)
23 (CATALÃO, 2014: 148)

Dança no século XXI 63


– Tá, mas imagina todos se movimentando nus, sim-
plesmente. Numa coreografia que se chama “The people’s flag
show” – disse ele.
– Sei, mas quando apresentamos a situação era comple-
tamente diferente. Agora o contexto é outro – disse Yvonne.
– Ainda sim. Não é sobre o contexto? – falou Steve apa-
nhando uma das bandeiras do Brasil que ela tinha tirado da sa-
cola e espalhado no tablado.
– Dá uma olhada você mesmo – disse Yvonne dando
play em um vídeo no celular. Sem tirar os olhos da tela, Steve
foi se desnudando e amarrando a bandeira em volta do pescoço.
Yvonne sentou-se devagar na boca de cena, apoiando os cotove-
los nos joelhos e segurando o rosto com a outra mão. Conforme
assistia Steve ficava boquiaberto e seus ombros se curvavam pra
frente. Esboçou um movimento mas seu corpo se deteve.

Versão de Trio A para The Judson’s Flag Show em 1970.

Disponível em: https://www.pinterest.com/pin/534802524473774303/

64 Célia Gouvêa (Organizadora)


Manifestação pró impeachment na Av. paulista em 2016.

Disponível em: http://odia.ig.com.br/diversao/celebridades/2016-04-18/


musa-da-manifestacao-fica-nua-na-av-paulista-apos-votacao-de-impeach-
ment.html Acesso em 07/10/2016.

ANDRÉ LEPECKI: Em sua atualização renovada,


isso é, no seu re-enactment, a obra passa a ser algo que nem o
original imaginava ser possível – muito embora o possibilitasse.
O re-enactment sobrepõe o plano de desejo da obra ao plano da
vontade autoral do coreógrafo. Nesse movimento, se redesenham
as bordas de ser da obra e se revela todo um sistema de formação
e de transformação de seus enunciados24.
LAURA BRUNO: Imaginei ainda que o vídeo do co-
reógrafo Richard Move – que recria as performances de Martha
Graham – com a coreógrafa Yvonne Rainer25 viraliza no Brasil
em 2016. Ativistas LGBT usam-no como símbolo do traves-

24 (LEPECKI, 2010:19)
25 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hXgascpElKA Acesso em
07/10/2016.

Dança no século XXI 65


tismo artístico. Laerte e Jean Wyllys o postam em suas redes
sociais. Imediatamente, o pastor Silas Malafaia tuita: “aquela
moça de preto bem que tenta corrigir o pervertido. se bem que
ela parece sapatona”. O pastor Marco Feliciano retuita: “homem
tem que ser homem, mulher tem que ser mulher. tá na bíblia”.
A modelo Lea T posta o vídeo em seu FB com um coração e
uma legenda: “pai, te dedico”. Seu pai, o ex-jogador de futebol
Toninho Cerezo, comenta o post com três corações.
MARCO CATALÃO: Se, como aponta Bourdieu, “o
discurso sobre a obra não é um simples acessório, destinado a
favorecer sua apreensão e sua apreciação, mas um momento da
produção da obra, de seu sentido e de seu valor”, podemos for-
mular uma proposição ainda mais radical: a de que é possível
instaurar um discurso crítico que crie seu próprio objeto26.
LAURA BRUNO: Richard vestia-se como Martha e
comportava-se como ela. Os cabelos negros presos em um coque
alto, volumoso e impecável. Usava cílios postiços e maquiagem
carregada, com um batom vermelho desenhando lábios maiores
do que os seus. Yvonne usava calça e blusa pretas, cabelos curtos
e óculos de aros finos e arredondados em seu rosto limpo.
– E você termina apontando o braço direito em direção
ao canto da sala, assim – mostrou Yvonne, finalizando a sequên-
cia sóbria de movimentos – Quer tentar?
Richard moveu-se com afetação, esboçando um sorriso en-
quanto olhava dramaticamente o horizonte por cima do braço estendido.
– Eu só quero fazer um pequeno ajuste – disse Yvonne
corrigindo a mão dele que insistia em manter a palma levantada
em vez de voltá-la para o chão – Ok, relaxa seu braço, Martha,
mais solto, relaxa...
Richard não assimilava as instruções de Yvonne, que re-
solveu fazer outra tentativa.
26 (CATALÃO, 2014:148)

66 Célia Gouvêa (Organizadora)


– Bom, a próxima coisa é assim – disse Yvonne enquan-
to movia seus braços em movimentos pendulares, com tônus su-
ave em um gesto cotidiano, neutro em intenção.
Richard desenhou círculos nos ares com os braços, com
tônus alto em gestos impetuosos.
– Não é assim, Martha – disse Yvonne – não é uma
dança vingativa, pelo amor de Deus!
MARCO CATALÃO: Abre-se caminho, assim, para a
criação de uma escrita crítica-artística que se coloca em risco e
se desloca do terreno seguro das “experiências comprovadamente
reais” para as experiências virtuais, em perpétuo devir, que não
existem como objeto externo – “exprimível” ou “representável” –
mas unicamente como possibilidades27.
LAURA BRUNO: Imaginei por fim que Anne
Teresa De Keersmaeker, corógrafa belga do grupo Rosas, está
saindo de seu camarim no SESC Pinheiros após reapresentar
Rosas danst Rosas em 2011. Rafael Rodrigues, vocacionado do
Céu Paraisópolis, vai assistí-la e a aborda na saída do vestíbu-
lo. Traduzido por sua orientadora do Programa Vocacional de
Dança, Adriana Macul, interpela a coreógrafa e se apresen-
ta. Rafael se traveste de Beyoncé e performa nas noites de São
Paulo dançando como a pop star28. Diz que conheceu o trabalho
do Rosas através de Macul e pergunta à coreógrafa se ela acha
Beyoncé ‘uma biscate’. Anne Teresa sorri e respode enquanto
ajeita os cabelos molhados atrás das orelhas.
MARCO CATALÃO: A abertura para a ficção também
propicia a utilização de recursos quase ausentes dos textos mais
estritamente acadêmicos, como a multiplicidade de perspectivas,
o humor, a ironia, a metáfora, a hipérbole, o paradoxo, bem como
outras figuras literárias usualmente banidas dos textos críticos29.
27 (CATALÃO, 2014:150)
28 Sob a direção de Adriana Macul criou e performou com outros vocacionados o
espetáculo ‘Corpo Diva’ em 2012: https://www.youtube.com/watch?v=5j1sy0ViUUM
Acesso em 07/10/2016.
29 (CATALÃO, 2014:150)

Dança no século XXI 67


LAURA BRUNO: “Já falei trocentas vezes. Não, não
fiquei puta. Nem lisonjeada. Fiquei surpresa. Beyonce é uma
mulher linda. Tem bom gosto. Mas é claro que tem os direitos
autorais. Imagina se fosse o contrário. Que ridículo. Não, não é
a mesma coisa. São estudantes no Youtube. Com a música da
Madonna. Foi tocante de ver. Agora pela enésima vez se vou
acionar advogados. É interessante, ela gostou da coreografia. Mas
ficou tão clichê. Eram os anos oitenta. Datado. Eu também esta-
va grávida. Fora isso, nada em comum. Like a virgin tem mais a
ver. Na época era experimental. Demorou mais de trinta anos pra
virar mainstream. Acharam feminista. Agora achei só sedutor.
Puro entretenimento. Deve ser uma megaequipe. Mas o filme
é melhor que o videoclipe. Ela dança bem. Não, não vou convi-
dá-la. Já postaram. Dá pra ver, é muito parecido. Tem também
outra coreografia ali, menos óbvia. Não, não saberia o que fazer
com o videoclipe. Mas gerou uma repercussão. Adoro as versões
amadoras. Não são afetadas. Tão comoventes!”

Rosas de Angola.

http://www.rosasdanstrosas.be/en-videos/

68 Célia Gouvêa (Organizadora)


Rafael Rodrigues em ‘Corpo Diva”

https://www.facebook.com/GrupoMovi/ Acesso em 07/10/2016.

Dança no século XXI 69


Referências Bibliográficas:

CATALÃO, Marco. Crítica e ficção na análise do teatro contemporâ-


neo. Sala Preta, Revista de Artes Cênicas, v. 14, nº 2, p. 143 a 152. São
Paulo: Departamento de Artes Cênicas, ECA/USP, 2014 (a).
LEPECKI, André. Planos de composição. In: CARTOGRAFIA: Rumos
Itaú Cultural Dança; criações e conexões, por Christine GREINER,
Cristina ESPÍRITO SANTO e Sonia SOBRAL, 13-20. São Paulo:
Itaú Cultural, 2010.

70 Célia Gouvêa (Organizadora)


Sobre a autora

Laura Junqueira Bruno

Artista da dança e doutoranda em Artes Cênicas no


PPGAC da ECA/USP. Criou e atuou no Projeto DR e no nú-
cleo Tríade e integrou a equipe do 7x7 desde o início. É mestre
em Artes pela ECA/USP e bacharel em Ciências Sociais pela
FFLCH/USP.

Dança no século XXI 71


72 Célia Gouvêa (Organizadora)
Nó(s) de temporalidades
Tatiana Melitello

O presente texto pretende refletir sobre a relação espa-


ço-temporal experienciada no século XXI no campo da dança
contemporânea, observando como essa área do conhecimento
é criadora de distintas formas de tempo. A análise entrecruza
exemplos de minhas investigações como dançarina e coreógrafa
no processo de criação do espetáculo Nó(s), que integra o pro-
jeto Temporalidades, e a reflexão proposta pelos pesquisado-
res Helena Katz, Christine Greiner, Fabiana Britto, Laurence
Louppe, Marie Bardet, Geisha Fontaine e Mark Johnson.
A pesquisadora, professora e crítica de dança, Helena
Katz, sugere que embora a noção de tempo em dança seja abstrata,
ela se torna concreta por meio do movimento e das relações30. Esta
reflexão se coaduna à compreensão de corpo como um processo
evolutivo em relação ao ambiente de existência, proposta pela teoria
Corpomídia (KATZ; GREINER, 2005). O campo da dança lida
com a sobreposição de diferentes tempos, que se processam devido
à habilidade do corpo humano de articular relações, ou seja, tem-
poralidades são geradas devido aos fatores relacionais (BRITTO,
2008) e essa noção temporal está associada ao tempo emaranhado,
enovelado e assimétrico, assim percebido no século XXI.
Segundo a pesquisadora e professora de dança da
Universidade Federal da Bahia, Fabiana Britto (2008), essa di-
nâmica relacional é baseada em mecanismos de caráter interativo
que se propagam ao longo do tempo, gerando a organização de
um sistema dança. Britto afirma: “[...] sobretudo o tempo: tudo
o que dele deriva está inscrito no fluxo da temporalidade” (2008,

30 Matéria do jornal O Estado de São Paulo sobre a Cia. de Dança Rosas publicado
em 25/10/2011. KATZ, H. Corpos que Narram o Mundo. Disponível em: http://
www.helenakatz.pro.br/midia/helenakatz21319549070.pdf Acesso em: 24/09/2016.

Dança no século XXI 73


p. 41). Baseada no conceito de tempo assimétrico proposto pelo
físico Ilya Prigogine, a autora explica que o tempo dos processos
de criação de uma dança registra a assimetria entre passado e fu-
turo. Nos processos de elaboração do movimento, entram em um
jogo de vai e vem as experiências do passado, as percepções do
presente e as projeções futuras de um dançarino. Segundo Britto,
“[...] sabemos do passado pela sua ressonância na atualidade: a
irreversibilidade é uma restrição que impõe o presente como me-
diador do nosso acesso ao passado” (2008, p. 85).
As ideias de tempo labiríntico, tempos sobrepostos,
convergentes, divergentes e paralelos, tempos que se entrecru-
zam, mobilizaram o processo de criação do espetáculo Nó(s). A
proposta coreográfica encenada por dois corpos diferentes, da
dançarina e coreógrafa Tatiana Melitello e do ator Pablo Perosa,
apresenta diferentes tempos em dança, que por sua vez provo-
cam diferentes relações. Por exemplo, em uma das cenas os dois
corpos experienciam um tempo elástico: eles são presos e susten-
tados por uma corda elástica que atravessa o espaço, o material
promove tensão e distensão, proximidades e distanciamentos,
graduações rítmicas mediadas pela lentidão e a rapidez. A rela-
ção entre os dois corpos e a corda elástica possibilita um estado
de permanente tensão, são construídas relações de força tendo
a gravidade como base de sustentação e apoio. Esses elementos
promovem os diálogos temporais do trabalho.

74 Célia Gouvêa (Organizadora)


Legenda: Tempo Elástico

Foto: Edson Kumasaka

A corda elástica, que produz a tensão necessária ao con-


trapeso dos dois corpos, se articula com o elemento gravitacional.
O peso do corpo também é um fator espaço-temporal, trata-se de
uma temporalidade percebida na relação com a gravidade, aten-
ção e propriocepção dos movimentos, tendo o presente como
atualizador dessas relações. Segundo a doutora em Filosofia e
pesquisadora em dança contemporânea Marie Bardet (2012), a
temporalidade se constitui por um presente singular de atenção
ao movimento através da experiência da relação com a gravidade.
Para Bardet (2012), o corpo que dança trabalha com o
refinamento da percepção, ou seja, com a atenção aos pequenos
arranjos do corpo. Nessa atitude, a respiração e o jogo de peso
desse corpo processam a relação com a gravidade, permitindo
a construção de uma temporalidade singular. Em uma atitude
temporal caracterizada pelo acordo dos músculos posturais pro-
fundos, a sensação de peso e a orientação espacial, que continua-
mente estão em processos de atualizações, os movimentos como
Dança no século XXI 75
variações de pesos, massas e forças se enredam de maneira espe-
cífica, construindo também a temporalidade dos corpos “[...] que
se redistribui radicalmente em uma heterogeneidade que defor-
ma o esquema clássico de causa/consequência” (BARDET, 2012,
p. 203). Nesse jogo dinâmico que acontece em cada movimento,
a temporalidade submerge da duração heterogênea entre a me-
mória corporal desse corpo, dotada de consciência, e as imprevi-
sibilidades do presente.

Legenda: O tempo do Outro

Foto:Edson Kumasaka

Para compreendermos melhor a ideia de “tempo-


ralidades” recorremos ao professor de Artes e Ciências do
Departamento de Filosofia da Universidade de Oregon, Mark
Johnson (2007). Em sua explicação as temporalidades são cons-

76 Célia Gouvêa (Organizadora)


truídas de acordo com a qualidade de movimento trabalhada em
cada processo coreográfico. Para o autor, distintas qualidades
temporais são realizadas nos diferentes modos de ação corporal:
a produção de um movimento manifesta qualidades temporais
dependendo de como o ato é performado. Ações como andar,
correr, saltar ou andar na ponta dos pés oferecem distintas expe-
riências de passagem do tempo.

Contudo, quero conectar nossa consideração fenome-


nológica das qualidades dos fluxo temporal com nossa
habilidade de conceituar tempo e relações temporais.
Pois, já em nossa percepção e movimento corporais,
experimentamos essa correlação íntima entre movi-
mento e mudança temporal, que é a base para algumas
das maneiras pelas quais nós pensamos de forma mais
abstrata sobre o tempo, e são precisamente as várias
qualidades de diferentes movimentos que nos permi-
tem conceituar diferentes experiências de passagem
do tempo31. ( JOHNSON, 2007, p. 28).

Segundo Johnson (2007), conceituamos o tempo por


meio do movimento corporal e da percepção motora dos objetos
nas experiências vividas. O autor afirma que as ideias de tempo são
construídas a partir do movimento do nosso corpo e das relações
com os objetos no ambiente. Realizamos esquemas de imagens
a partir das atividades sensório-motoras, pois é nos movimentos
espaciais que compreendemos como o tempo se “move” ou “passa”
para nós. Ele explica que a elaboração de metáforas, significados,
qualidades, emoções, perceptos, imagens e estruturas imaginativas

31 Tradução nossa a partir do original: “However, by way of anticipation, I want to


connect our phenomenological account of the qualities of temporal flow with our
ability to conceptualize time and temporal relations. For, already in our perception and
bodily movement, we experience this intimate correlation of movement and temporal
change that is the basis for some of the ways we think more abstractly about time, and
it is precisely the various qualities of different movements that permit us to conceptu-
alize different experiences of the passing of time”.

Dança no século XXI 77


realizadas por esquemas cognitivos32 possibilita relacionar infor-
mações e preparar conceitos como Tempo, por exemplo. Esse
processo é formado pela experiência na interação do corpo com o
ambiente, por meio de experiências atuais e possíveis.
A reflexão acerca da construção de tempos em dan-
ça possibilita-nos observar que as escolhas coreográficas dão a
ver diferentes combinações de fatores espaço-temporais. Como
exemplo de alguns deles voltamos a citar o espetáculo Nó(s), que
buscou explorar o fator tempo por meio de especificidades tem-
porais, tais como repetição, defasagem e uníssono. O espetáculo
é propositalmente dividido em três momentos distintos para que
a construção do tempo possa emergir de diferentes maneiras. A
questão principal que permeia esse trabalho coreográfico par-
te de uma pergunta metafórica: Como criar tempo em Nó(s)?
Indagação que também foi estimulada pela leitura dos escritos
da filósofa e coreógrafa Geisha Fontaine (2004), em seu livro Les
danses du temps. Fontaine propõe a seguinte pergunta: como criar
tempo em dança?

O parâmetro de tempo intervém nos diferentes campos


que a dança reagrupa, o movimento, a frase de movi-
mentos, a composição coreográfica, a ligação aos ele-
mentos não coreográficos (música, luz, cenografia, fi-
gurino e por vezes vídeo ou texto), as diversas frases do
processo criativo, o desenvolvimento do espetáculo (sua
apresentação e sua recepção), a memória. O parâmetro
de tempo está ligado à abordagem estética do coreógra-
fo, à sua cultura e à corrente que pertence. O coreógrafo
trata a questão do tempo em função de sua abordagem

32 “Cognição é um tipo particular de ação: uma estratégia que envolve processos in-
conscientes e conscientes que são solicitados na avaliação e organização dos problemas
práticos do mundo”. Tradução nossa a partir do original: “Cognition is a particular
kind of action: a response strategy that apply some measure of forethought in order to
solve some practical, real-world problem […].” ( JOHNSON, 2007, p. 120).

78 Célia Gouvêa (Organizadora)


física do movimento dançado e das problemáticas artís-
ticas que elas dão33. (FONTAINE, 2004, p. 46).

Os elementos de um trabalho de dança implicam esco-


lhas temporais e os problemas que elas suscitam; no espetáculo
Nó(s), por exemplo, a repetição, o uníssono e a defasagem são
fatores temporais bem explorados na última cena da coreografia.
Em um jogo entre a escuta e o estar junto, utilizamos um diálogo
temporal formado pela repetição de movimentos pulsados em
uníssono entre os criadores-intérpretes. Concomitante à frase
coreográfica compartilhada, realizamos um jogo entre o real e o
virtual em um tempo em defasagem, com a projeção de imagens
pré-gravadas. Esse continuum temporal traz consigo a questão:
Quais os ritmos de Nó(s)?

33 Tradução nossa a partir do original: “Le paramètre du temps intervient dans les
différents champs que ‘la’danse regroupe, le mouvment, la phrase de mouvements, la
composition chorégraphique, le rapport aux éléments non chorégraphiques (musique,
lumières, scénographie, costumes et parfois vidéo ou texte), les diverses phases du pro-
cessus créatif, le déroulement du spectacle (sa présentation et sa réception), la mé-
moire. Le paramètre du temps est aussi lié à l’approche esthétique du chorégraphe, à
sa culture et aux courants auxquels il appartient. Le chorégraphe traite la question du
temps en fonction de son approche physique du mouvement dansé et des probléma-
tiques artistiques qu’il se donne”.

Dança no século XXI 79


Legenda: Tempo em Defasagem

Foto:Edson Kumasaka

As temporalidades apresentadas no presente texto im-


plicam um fluxo de processos simultâneos de relações interativas,
possibilitando propriedades particulares que formam um con-
junto na criação de uma dança. A perspectiva das condições de
existência dos elementos em dança, construídos por modos re-
lacionais, cancela a ideia de linearidade de acontecimentos pre-
visíveis. Nessa abordagem, o tempo em dança se liberta da preo-
cupação com uma causa e um efeito, em termos de definição da
sucessão ou da continuidade linear de um movimento para outro.
Brito esclarece: “[...] o principal fator de caracterização da dança
está relacionado com as diversas escalas de tempo que operam
simultaneamente no processo de sua feitura – que é, também, o
seu modo de relacionar-se com o ambiente prévio e ulterior à sua
existência” (2008, p. 26).

80 Célia Gouvêa (Organizadora)


Observamos no século XXI, que as composições coreo-
gráficas se articulam pela dinâmica de interações nas constantes
experiências com o ambiente (KATZ; GREINER, 2005). Porém,
já no século XX, um dos mais importantes coreógrafos de toda a
história da dança e também um dos precursores da exploração da
noção espaço-temporal, Merce Cunningham, trabalhava o acaso,
a não-linearidade e a descentralização.
A professora e crítica em história da dança da
Universidade do Quebec, especialista em estética da dança,
Laurence Louppe afirma que “[...] para Cunningham, o tempo
não se sobrepõe ao movimento; ele provém da verdadeira essên-
cia do movimento” (2012, p. 151). Ou seja, além de pensarmos
que temporalidades se tornam concretas por meio de relações,
Cunningham nos ajuda a compreender o tempo não como um
elemento separado do movimento, mas como constituinte desse.
Estas ideias possibilitaram ao processo de criação do es-
petáculo Nó(s) a concretização dos tempos da escuta, dos entre-
laçamentos articulares, de tempos elásticos, em defasagem e si-
multaneidade na repetição e uníssono de movimentos. Distintos
tempos que não estão dados, mas que são construídos. A cons-
trução e criação dos tempos em dança indicam assim distintos
modos de pensar e de se relacionar.

Dança no século XXI 81


Referências Bibliográficas:

BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em Dança: parâmetros para


uma história contemporânea. Belo Horizonte: FID Editorial, 2008.
BARDET, Marie. Pensar con mover: Un encuentro entre danza y filo-
sofia. Argentina: Editora Cactus, 2012.
FONTAINE, Geisha. Les danses du temps. Centre National de la danse.
França: Pantin, 2004.
GREINER, Christine; KATZ, Helena. Por uma teoria do Corpomídia.
In: O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume,
2005.
LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. 1. ed. Lisboa:
Orfeu Negro, 2012.
JOHNSON, Mark. The meaning of the body: aesthetics of human un-
derstanding. Chicago & London: The University of Chicago Press,
2007.

82 Célia Gouvêa (Organizadora)


Sobre a autora

Tatiana Melitello

Bailarina, coreógrafa, professora e pesquisadora na


área de dança contemporânea. Mestra em Artes Cênicas pela
Universidade de São Paulo (ECA/USP) e doutoranda pela
mesma instituição. Em sua formação em dança destacam-se o
Estúdio Nova Dança, em São Paulo, e o Henny Jurriens Stichting
Foundation, em Amsterdã. Graduada em Comunicação Social
(1999) e formada pelo método Pilates (CPGA-2006). Entre os
espetáculos criados estão “A troco”, “Alvéolos”, “Temporários
Escapes” e “Trajetórias Coreográficas”.

Dança no século XXI 83


84 Célia Gouvêa (Organizadora)
A internet como aliada na
preservação da memória da dança
brasileira
Natália Gresenberg
Talita Bretas

Um museu da dança! Uma reunião de passado, presente e


futuro. A concentração no presente urgente costuma ser
consumida pelo fazer, pelo produzir. Ainda que atravessa-
do pela força da memória, como os resistentes palimpsestos
que se negam a desaparecer, o mar que já foi, ainda que
concreto, tende ao descarte no presente, mais propício à
projeção de devires. O propósito é tornar o passado ativo,
atuante. A iniciativa do Museu da Dança é antes de tudo
generosa, pois abriga vertentes múltiplas da dança, atenta
aos artistas e estabelece trocas, contatos, afetos e informa-
ções valiosas. (Célia Gouvêa34).

Como salvaguardar um bem cultural que é por sua pró-


pria natureza efêmero? Como pensar em políticas de gestão cul-
tural aptas a criarem mecanismos hábeis para a difusão da his-
tória da dança? Estes questionamentos foram enfrentados pelas
autoras e gestoras Natália Gresenberg e Talita Bretas quando da
criação do Museu da Dança, instituição sem fins lucrativos de-
dicada à preservação da memória da dança brasileira dentro de
uma realidade globalizada, conectada e digital.
A dança possui a característica intrínseca de ser pas-
sageira, diferentemente do que ocorre com as artes plásticas e
visuais. Uma pintura, se bem preservada, permanece para a eter-
nidade, possibilitando que a história e a identidade cultural que
ela carrega sejam conduzidas pelo tempo. O mesmo não ocorre
nas artes cênicas, uma vez que o espetáculo/performance é finito,

34 Depoimento de Célia Gouvêa quando da inauguração do Museu da Dança, em 2014.

Dança no século XXI 85


por mais que o seu público guarde impressões e sensações que
ecoarão indefinidamente.
Cabe aqui alertar para a importância do registro em pro-
jetos de dança, pois serão as fotos, vídeos, diários, críticas, mate-
riais gráficos e outros documentos reunidos durante o processo
de criação até o fim de cada temporada, que terão o condão de
transmitir fragmentos da obra a um novo público. Este conjunto
de itens são acervos históricos considerados patrimônio imaterial
brasileiro, merecedores de proteção de acordo com o que prevê
a Constituição Federal (Artigos 215 e 216) e a Convenção da
UNESCO para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial,
ratificada pelo Brasil. Ocorre que grande parte destes acervos,
quando existentes, são armazenados pelos próprios artistas, difi-
cultando a consulta pública e, portanto, restringindo a preservação
da memória da dança, bem como a difusão da história da dança.
É comum a confusão dos conceitos de história e me-
mória que, embora distintos, são interdependentes. “A história
é um processo de acrescentamento. Ou seja: é um processo de
sucessivas mudanças em que cada mudança depende das que
vieram antes” (FRENTESS, 2007, p. 42). A história é composta
de fatos inseridos em certo contexto social, político, econômico
ou cultural, os quais influenciam o como ela se desenrola. Nesse
sentido, é interessante pensar a representação da história como
escrita dos fatos que ocorrem no dia a dia. Mesmo a história da
arte guarda certa objetividade, afinal, é composta por fatos pra-
ticados por determinados atores, imbuídos de certo pensamento
ou motivados por questões sociais, políticas ou econômicas que
irão desembocar, inevitavelmente, em uma ruptura do status quo.
Aproximando este raciocínio de nosso tema, faremos
uma breve apresentação da história recente da dança cênica
em São Paulo, repassando rapidamente seus ciclos e rupturas.
O primeiro grande momento foi a chegada do balé clássico e
os primeiros cursos de profissionalização ministrados pela esco-
la Maria Olenewa no Rio de Janeiro (1927) e pela Escola de
86 Célia Gouvêa (Organizadora)
Bailados em São Paulo35 (1940) e, posteriormente, a formação da
primeira companhia oficial de balé financiada pela Prefeitura de
São Paulo – o Ballet do IV Centenário (1954). A primeira ruptu-
ra é marcada pelo fechamento abrupto desta instituição (1955),
que deixou dezenas de profissionais desempregados, resultando
na migração destes para os balés dos programas de televisão na
década de 50 e 60 e no surgimento de algumas companhias in-
dependentes, como o Ballet dos Amigos da Dança (1958) e o
Ballet Experimental de São Paulo (1962).
Por volta da década de 70, São Paulo começa a receber
profissionais com novas proposições e técnicas, como Ruth Rachou
e a técnica de Martha Graham (1894-1991), Maria Duschenes
(1922-2014) e a liberdade de expressão corporal, Renée Gumiel
(1913-2006) e o expressionismo. Ocorre então mais uma ruptura
promovida pelo Teatro de Dança Galpão (1974), que culminou
com o nascimento da dança contemporânea em São Paulo e a
formação de grandes expoentes, alguns deles atuantes até hoje. E
mais recentemente, a criação da lei de Fomento à Dança para a
cidade de São Paulo (2005) possibilitou a manutenção de com-
panhias independentes de dança e a produção de diversos espe-
táculos e performances. Todos estes fatos concatenados contam,
grosso modo, a história da dança cênica de São Paulo.
Acontece que não basta conhecer os fatos históricos
para analisar a história. Interessa saber também o que movi-
mentou cada artista nos diferentes momentos históricos. O que
pensavam? Como faziam? Por que faziam? Quem os inspirou?
E aí entra a memória desses fatos, composta das subjetividades
experimentadas por seus protagonistas ou pelos espectadores que
os presenciaram. Por isso podemos dizer que a história da dança
contém as memórias dos protagonistas que a escreveram.
Como bem ressaltado por Cristiane Batista Santana
(2011, p. 29), a memória, por mais que não diga o que aconteceu,
merece proteção por representar um fragmento do ocorrido e,
35 A denominação atual é Escola de Dança de São Paulo.

Dança no século XXI 87


como tal, um patrimônio histórico. Por mais que necessite e de-
penda do passado, a memória é construída no presente. Portanto
é mutável e passível de ser atravessada por memórias coletivas,
que em nada retiram a sua importância na construção de sig-
nificados. O mesmo acontece com documentos e acervos his-
tóricos, produzidos e referentes ao passado, eles criam relação e
significação no presente, principalmente quando acostados por
memórias. A linguagem permite que a memória seja um veículo
de socialização de experiências individuais (MENESES, 2007,
p. 17), portanto, a transmissão oral de memórias referentes aos
patrimônios imateriais confere significação à história pelas expe-
riências individuais.
O Museu da Dança, ou simplesmente MUD, foi criado
com a missão de desassociar a história daquilo que é considerado
velharia, além de desmistificar a ideia de que um museu é um
guardião de acervos imutáveis. Pelo contrário, um museu vive do
diálogo constante com a sociedade, buscando aproximar o seu
acervo do público em potencial, sendo as memórias importan-
tes ferramentas nesta conquista, pois são capazes de transmitir
conhecimento e significações, criando significados, como bem
destacado por Ulpiano Bezerra de Meneses (2007, p. 17).
Mesmo sendo recente a história da dança cênica brasileira,
como brevemente mostrado, importantes iniciativas se dedicaram
e se dedicam a ela. Projetos como o Acervo Mariposa com cura-
doria de Nirvana Marinho, Acervo RecorDança de Pernambuco
e o Acervo Multimeios do Centro Cultural São Paulo reuniram
um conjunto significativo de bens referentes à dança brasileira.
Mais recentemente, o acervo Gouvêa-Vaneau compartilhou online
todo o acervo bidimensional (fotos, vídeos, materiais gráficos, do-
cumentos, desenhos e outros) do casal de artistas Célia Gouvêa e
Maurice Vaneau36 (1926-2007), articuladores importantes na cria-
ção do Teatro de Dança Galpão, já mencionado.

36 Saiba mais sobre os artistas e acesse o acervo em www.acervogouvea-vaneau.com.br

88 Célia Gouvêa (Organizadora)


O Museu da Dança surge como um aliado na preserva-
ção não apenas de acervos históricos relacionados à dança brasi-
leira, mas também das memórias dos protagonistas desta recente
história. É um museu virtual por definição, o que quer dizer que
a interação com seu conteúdo se dá por uma plataforma virtu-
al (www.museudadanca.com.br), na qual os acervos doados por
diversos artistas brasileiros estão catalogados e arquivados em
formato digital em um banco de dados, permitindo o acesso e a
pesquisa para qualquer interessado.
São acervos compostos por fotos, vídeos, materiais grá-
ficos, documentos e também memórias. A maneira mais fide-
digna encontrada para compartilhá-las foi por meio de entre-
vistas audiovisuais coletadas junto aqueles que vivenciaram os
fatos históricos, ou seja, artistas, alunos, pesquisadores, colegas de
profissão, familiares, entre outros. É através da fala com o grande
público que as memórias das experiências individuais são socia-
lizadas, auxiliando na construção de significados para a compre-
ensão da obra e, mais do que isso, da história da dança.
Para além do banco de dados, o Museu da Dança lança
também exposições virtuais, uma forma criativa e interativa de
tomar contato com a história desta arte. O diferencial das exposi-
ções virtuais é a interatividade que visa à mediação entre o público
navegante e a história da dança por meio de recursos audiovisuais
(fotos, vídeos, entrevistas, documentos etc), com navegação aces-
sível e visita mediada por entrevistas com artistas e profissionais
da dança, especialmente desenvolvidas pela curadoria.
Em dois anos de existência, o Museu da Dança rea-
lizou “A Poética do Encontro”, exposição sobre a ação artísti-
co-pedagógica do grupo Lagartixa na Janela com crianças da
Escola de Dança de São Paulo e do Instituto de Cegos Padre
Chico; “Maria Duschenes – expressão da liberdade”, sobre esta
importante pioneira da dança moderna no Brasil; “Trajetória(s)
Mariana Muniz”, exposição sobre os 40 anos de sua carreira e

Dança no século XXI 89


produções mais importantes; “A dança no espaço urbano – ou-
tros modos de estar e conviver na cidade de São Paulo”, abor-
dando o universo de oito grupos da cidade de São Paulo que
produzem dança em espaços públicos; e em breve, a exposição
“Ruth Rachou – 90 anos” sobre a importância desta pioneira na
formação de gerações de artistas da dança.
A virtualidade do Museu da Dança promove a demo-
cracia comunicacional de acordo aos preceitos, traçados pelo
Relatório Mundial da UNESCO, para a Diversidade Cultural e
Diálogo Intercultural e estimula várias iniciativas culturais ino-
vadoras dentro de um contexto de mediação e gestão cultural.
Rompendo barreiras físicas, um museu virtual possibilita a ex-
pansão de fronteiras, atingindo o objetivo de compartilhamento
da memória e difusão da história nacional e internacionalmente.
Fora isso, o intercâmbio cultural também se torna possível e viá-
vel dentro de uma realidade virtual ao permitir o acesso de pú-
blico bastante diverso e projetar a dança brasileira para além mar.
A proposta da criação de um novo tipo de museu, sem pa-
redes, sem horário de funcionamento e em constante diálogo com o
público, vai ao encontro da necessidade de contextualizar o museu
dentro do seu papel social. A ele cabe muito mais do que meramente
expor obras em um prédio arquitetônico imponente. É sua função
social ser interlocutor entre o acervo que ele resguarda e o público
que a ele deseja ter acesso. Como bem explica Bernard Deloche, “O
museu virtual é um espaço virtual de mediação e de relação do pa-
trimônio com os utilizadores. É um museu paralelo e complemen-
tar que privilegia a comunicação como forma de envolver e dar a
conhecer determinado patrimônio” (2001, p. 261).
Na realidade globalizada, em que a tecnologia e a veloci-
dade da informação se fazem presentes, o Museu da Dança busca
preencher de significados a história da dança e proteger acervos
e memórias de seus atores, possibilitando que o grande público
tenha contato com a diversidade cultural existente no Brasil.

90 Célia Gouvêa (Organizadora)


Referências Bibliográficas:

DELOCHE, Bernard. Le musée virtuel: vers un éthique des nouvelles


images. Paris: Presses Universitaires de France, 2001.
FRENTESS, James. Preservação e modernidade. In: MIRANDA,
Danilo Santos de (Org.). Memória e cultura: a importância da memória
na formação cultural humana. São Paulo: SESC SP, 2007.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Os paradoxos da Memória. In:
MIRANDA, Danilo Santos de (Org.). Memória e cultura: a impor-
tância da memória na formação cultural humana. São Paulo: SESC
SP, 2007.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain
François et. al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
SANTANA, Cristiane Batista. Museus e comunicação: uma relação
em processo. In: Sistema Estadual de Museus – SiSEM-SP (Org.).
Para além dos muros: por uma comunicação dialógica entre museu e
entorno. Brodowski, SP: ACAM Portinari; Secretaria de Estado da
Cultura de São Paulo, 2011 (Coleção Museu Aberto).

Dança no século XXI 91


Sobre as autoras

Natália Gresenberg

Gestora cultural, idealizadora e diretora do MUD –


Museu da Dança. Advogada formada em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pós-gradu-
ada em Gestão Cultural pelo Centro Universitário SENAC.
Especialista em leis de incentivo à cultura e direito do entreteni-
mento. É consultora em elaboração de projetos e fomentadora de
ações de mediação e formação de público.

Talita Bretas

Gestora cultural, idealizadora e diretora do MUD


– Museu da Dança. Graduada em Dança pela Universidade
Anhembi Morumbi e pós-graduada em Gestão Cultural pelo
Centro Universitário SENAC. Fez intercâmbio em Santiago do
Chile cursando Dança na Universidad de las Americas através
da Rede Laureate de Universidades. Desde 2009 desenvolve pro-
jetos e eventos para diversos artistas e companhias independen-
tes da cidade de São Paulo.

92 Célia Gouvêa (Organizadora)


Dança mestiça nipo-brasileira: um
ensaio, um insight
Isis Akagi

Contexto: Brasil, São Paulo, capital; cenário artístico


da dança.
Personagens: artistas do corpo nipo-descendentes.

Brasil e Japão: relações de diplomacia 37

1895 – Assinatura do Tratado de Amizade, Comércio


e Navegação
1908 – Início da imigração japonesa no Brasil (chegada
do navio Kasato Maru)

Os primeiros imigrantes chegaram ao Brasil há mais


de um século. Ainda hoje, no entanto, quando a refe-
rência é o descendente de japoneses, a discussão quase
sempre recai sobre a imigração.

Brasil: “Nem todos sabem, mas o Brasil não possui


apenas a maior colônia de imigrantes e descendentes japoneses
fora do Japão, como também o maior número de pesquisadores
em estudos japoneses de toda a América Latina.” (GREINER,
2011: 07).
Maior comunidade japonesa fora do Japão: São Paulo
(1,9%); Paraná (1,5%); Mato Grosso do Sul (1,4%) 38

37 Fonte: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/ficha-pais/5284-japao Acessado em


29/08/2016.
38 Fonte: http://www.japaoemfoco.com/paises-com-maior-concentracao-de-japo-
neses/ Acessado em 30/08/2016.

Dança no século XXI 93


Japão: minha morada dos cinco aos seis anos de idade.
Memórias. Invenções. Sensações. Referências.

Retorno ao país dos ancestrais. Dekassegui 39. Imin 40.

Memória. “A palavra memória procede do latim memor-oris,


que se traduz como ‘o que se lembra’. E recordação vem de re-cordis,
que significa ‘voltar para o coração’. E assim a palavra memória, eti-
mologicamente, é um retorno ao coração.” (BÁEZ, 2010: 260).

心臓 (shinzô, palavra que designa o órgão coração);


心(kokoro, palavra que designa ao mesmo tempo, cora-
ção e mente, onde acontecem os sentimentos)

Pode kokoro ser o lugar da memória?

Jornada. Tabi (旅) 41. 2002: espetáculo 42. Emilie Sugai:


“Espécie de depoimento em forma de dança. Questões
da cultura entre Brasil e Japão.
Envolvimento artístico com o diretor já falecido Takao
Kusuno.
Se eu não trabalhasse com arte/dança acho que nunca
teria tido olhos para isto. Vejo pelos meus irmãos que nunca se
interessaram pela cultura japonesa.
Sou da terceira geração, geração que ainda carrega coi-
sas da cultura, resquícios ou tradição japonesa no corpo. Penso
que as atuais gerações não têm mais nada.” 43
39 Palavra formada por dois ideogramas: deru (出る, sair) e kasegu (稼ぐ, trabalhar,
ganhar dinheiro), literalmente significa “trabalhando distante de casa”. Neste caso es-
pecífico, nos referimos aos brasileiros que fizeram o caminho oposto ao de seus ascen-
dentes e viajaram ao Japão para trabalhar.
40 Imin (移民) significa imigrante.
41 Tabi significa jornada, viagem.
42 https://vimeo.com/35703506 Acessado em 28/08/2016.
43 Palavras de Emilie Sugai enviadas a mim por e-mail.

94 Célia Gouvêa (Organizadora)


“Tabi em japonês significa viagem: neste espetáculo re-
presenta uma busca no tempo da ancestralidade. Não se trata de
um resgate histórico da imigração japonesa no Brasil, mas sim
dos questionamentos a partir do meu corpo, misturando frag-
mentos de memórias tanto individuais quanto coletivas, deste
corpo que carrega genes e sangue japonês, e paradoxalmente o
modo de ser brasileira.” 44
Eu? Eu sou bisneta de japoneses. Quarta geração. Yonsei.

Foto: Acervo particular. Avós paternos dançando. Casa da família. Ano des-
conhecido.

tudo dança
hospedado numa casa
em mudança
(Paulo Leminski)

44 Sinopse do espetáculo “Tabi” http://www.emiliesugai.com.br/criacoes/tabi.html


acessado em 28/08/2016.

Dança no século XXI 95


Entre. Vão. Vazio. Gap. Ma (間).
Vazio para os japoneses tem uma cono-
tação diferente da nossa, no Ocidente.
1. (espaço) sem nada 2. destituído 3. desabitado 4. fútil
Ma “[...] algo reconhecível, mas não verbalizável como
conceito e que constitui um modo de pensar próprio
dos japoneses. Muitos fazem referência à conjunção
espaço-tempo [...]. Ken’mochi salienta que ‘Ma é um
espaço vazio, mas não no sentido da vacuidade, mas
prenhe de energia Ki’. [...] Alguns correlacionam o
Ma à memória cultural ou pessoal, considerando-o
como uma transmissão secreta da memória da cultu-
ra.” (OKANO, 2007: 01).

間= 門(Mon; portão) +日(Hi; sol)


Literalmente significa entrever o sol por entre o portão.

96 Célia Gouvêa (Organizadora)


Ma pode ser o lugar-entre, a possibilidade de ser brasi-
leiro, mas ser japonês.
Vazio do devir. Vácuo prenhe, preenchido.

Corpo. Corpo nipo-brasileiro. Corpo artista.


Corpomídia (KATZ & GREINER)

Teoria do Corpomídia, que vem sendo desenvolvida pe-


las pesquisadoras Helena Katz e Christine Greiner des-
de 2001, entende que corpo é mídia de si mesmo; corpo
e ambiente estão em constante troca: co-evoluem e co-
-transformam mutuamente e de maneira ininterrupta.

Corpo e ambiente em co-mutação. Um altera o outro.


O outro altera um.
O imigrante altera a nova terra. A terra altera o imigrante.
Muda. Mudança. Dança.

Sou brasileira? Sou japonesa? O que eu sou?

“Disseram que eu era japonesa”. 2004: Letícia Sekito45.

Expectativas que as pessoas tem a partir da imagem. O


gatilho para a criação do espetáculo foram as palavras
dos outros. 46

“Como descendente de japoneses, nascida no Brasil,


a questão das marcas da descendência foi um tema
sempre presente. Nos dizeres a mim e sobre mim, nas
relações interpessoais, nos (des)entendimentos, nas
identificações, vários foram e são os momentos em
que a descendência é lembrada, pontuada, como se
pudesse explicar ou determinar os sentidos. O que não
ficava explicado para mim mesma, por muito tempo,

45 https://www.youtube.com/watch?v=R-LGSt3bwUM Acessado em 29/08/2016.


46 Anotações da autora. Conversa com Letícia Sekito realizada em 2015.

Dança no século XXI 97


era o fato de não me sentir japonesa, apesar de assim
nomeada, nem mesmo de me lembrar ser descendente
de japoneses, a não ser que lembrada, mas de enfim,
na presença de outros brasileiros, ser sempre, e indu-
bitavelmente, “japonesa”. As perguntas que passaram
a inquietar, então, foram: o que, apesar da brasilidade
sentida, me faz japonesa? Será que sou mais japonesa
do que penso ser?

Essa interrogação identitátia, que creio ser a mesma de


muitos descendentes de japoneses no Brasil, foi verba-
lizada, dessa maneira formulada, a partir da vivência
acadêmica, das reflexões sobre linguagem. Antes, era a
sensação de ocupação de um lugar de entremeio entre
uma ‘japonesidade’ e uma ‘brasilidade’ possíveis, um
certo não-lugar.” (HASHIGUTI, 2008; 02-03).

Ma pode ser o lugar-entre, a possibilidade de ser brasi-


leiro, mas ser japonês.
Vazio do devir. Vácuo prenhe, preenchido. Um “quase”
(GREINER, 2015)

“Prefiro trabalhar com a noção de ‘quase’, deslocando


a discussão dos lugares e das coisas da cultura para
os processos. Cadeias perceptivas acionam estados
que não se localizam em territórios demarcados por
nacionalidades ou identidades específicas. Elas só po-
dem ser reconhecidas em sua própria impermanência
e descontinuidade, a partir de leituras das singularida-
des da vida e do corpo.” (GREINER, 2015; 198).

Ma pode ser o lugar-entre, a possibilidade de ser brasi-


leiro, mas ser japonês.
Vazio do devir. Vácuo prenhe, preenchido. “Quase”
(GREINER, 2015)

98 Célia Gouvêa (Organizadora)


“Mestiçagem aqui não remete ao cruzamento de raças,
ainda que obviamente o inclua, mas à interação entre
objetos, formas e imagens da cultura. A mestiçagem
não opera por fusão, que apaga as diferenças, nem
por mero reconhecimento das diversidades, que as
mantém isoladas: é sim um conhecimento a partir do
bote canibalizante no alheio, em vaivém e ziguezague,
montagem em mosaico móvel dessas multidões de ou-
tros, suas linguagens e civilizações.” (PINHEIRO)

Ma pode ser o lugar-entre, a possibilidade de ser brasi-


leiro, mas ser japonês.
Vazio do devir. Vácuo prenhe, preenchido. “Quase”
(GREINER, 2015). Mestiçagem (PINHEIRO, 2009).

Ma. Corpomídia. Quase. Mestiçagem. Noções que


norteiam meu atual pensamento sobre corpo nikkei 47,
sobre corpo artista nikkei.

Um olhar além dos estereótipos e clichês. Um olhar que


capte as singularidades de cada descendente, com suas histórias
e vivências.

Para os corpos artistas da cena, dançantes (e não ape-


nas), mote para o início da conversa, da criação, da in-
quietação. Gatilho para memórias, construções de um
passado vivido e/ou criado que geram (mu)danças.

Os termos em japonês, transcritos para o alfabeto ro-


mânico estão de acordo com o sistema Hepburn. Alguns apre-
sentam seu correspondente em ideograma.

47 Nikkei (日系) refere-se ao descendente de japoneses nascido em outra localidade


que não o Japão.

Dança no século XXI 99


Referências Bibliográficas:

GREINER, Christine (Org), SOUZA, Marcos (Org). Imagens do


Japão: pesquisas, intervenções poéticas, provocações. São Paulo:
Annablume: Fundação Japão, 2011.
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São
Paulo: Annablume, 2005.
_______________. O corpo em crise: novas pistas e o curto-circuito das
representações. São Paulo: Annablume, 2010.
_______________. Leituras do corpo no Japão: e suas diásporas cogniti-
vas. São Paulo: N-1 Edições, 2015.
HASHIGUTI, Simone Tiemi. Corpo de memória. Tese de Doutorado,
Linguística Aplicada, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
Estadual de Campinas, 2008.
OKANO, Michiko. Ma: entre-espaço da comunicação no Japão – um es-
tudo acerca dos diálogos entre Oriente e Ocidente. Tese de Doutorado,
Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica, 2007.
PINHEIRO, Amálio (Org). O meio é a mestiçagem. São Paulo: Estação
das Letras e Cores, 2009.
_______________. Pensamento. Acessível pelo site: http://www.pucsp.
br/barroco-mestico/pensamento.html

100 Célia Gouvêa (Organizadora)


Sobre a autora

Isis Harumi Akagi.

Artistapesquisadora. Cantoratriz. Graduou-se em


História pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (FFLCH – USP) (2010); cur-
sou Especialização em Estudos Contemporâneos em Dança na
Universidade Federal da Bahia (UFBA) (2014); cursa Mestrado
no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de
Comunicações e Artes (ECA) da USP.

Dança no século XXI 101


102 Célia Gouvêa (Organizadora)
A dança de João Fiadeiro: posição-
com-posição
Carolina Camargo De Nadai

Já não se pode mais crer na noção de início, matriz ou


origem. Nem a Ciência, nem a Arte, nem a Filosofia suportam
mais essas fixações. Mas, mesmo trabalhando com hipóteses ri-
zomáticas48, caímos com frequência em armadilhas que nos le-
vam a querer saber dos ditos “pontos de partida”.
Este texto tem o propósito de verticalizar a compreen-
são do processo de organização, criação do método e proposta
de improvisação do trabalho de Composição em Tempo Real
(CTR), desenvolvido pelo coreógrafo português João Fiadeiro
desde o início da década de 1990. Ao revisitar uma entrevista que
o coreógrafo me concedeu em outubro de 2015, crio um jogo de
tensões entre ficção e realidade a partir do material registrado
em áudio e posteriormente transcrito. A proposta é que o texto
emerja como jogo compositivo e para isso utilizo-me de ferra-
mentas da própria CTR49 e tomo nosso diálogo-entrevista como
chão para improvisação.
Somos sempre apanhados ao meio.
“O presente é tão avassalador”50.
48 “O rizoma não se deixa reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. Ele não é o
Uno que se torna dois, nem mesmo que se tornaria diretamente três, quatro ou cinco
etc. Ele não é um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno se acrescentaria
(n+1). Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças.
Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda.
Ele constitui multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto, exibíveis
num plano de consistência e do qual o Uno é sempre subtraído (n-1) (DELEUZE;
GUATTARI, 2009, p. 32).
49 Sempre que me referir à Composição em Tempo Real, utilizarei a sigla CTR.
50 João Fiadeiro em entrevista realizada, registrada e transcrita pela autora no Atelier
Real (Lisboa, Portugal), dia 15 de outubro de 2015. (FIADEIRO, Entrevista. 2015).

Dança no século XXI 103


Somos sempre apanhados ao meio.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
“[...] durante muito tempo a minha estratégia era dar
ênfase ao fazer, não que o fazer seja uma resposta, mas é um ‘estar
fazendo’, é um perguntar acontecendo”51.
Somos sempre apanhados ao meio.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
“É isso que define um afeto, algo que não tem um nome,
que não se pode nomear [...] a CTR emerge de um afeto, de uma
força interna, de intuição que tem origem em diferentes lugares
no meu corpo, na minha vida quer artística, quer pessoal”52.
Somos sempre apanhados ao meio.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
Somos sempre apanhados ao meio e em determinado
espaço-tempo entramos em relação.
“[...] havia sempre um delay53 entre o ser afetado por
algo e o me posicionar em relação a essa coisa, que não podia
nunca ser nomeada como instantâneo. Na verdade é uma anto-
logia que vai sendo lentamente estabelecida enquanto método,
gradualmente [...]. Não houve um dia em que eu disse: Hoje vou
fazer CTR!” 54.
Somos sempre apanhados ao meio.

51 Idem. Ibidem.
52 Idem. Ibidem.
53 Demora.
54 Idem. Ibidem.

104 Célia Gouvêa (Organizadora)


Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
Somos sempre apanhados ao meio e em determinado
espaço-tempo entramos em relação.
Somos sempre apanhados ao meio e dos possíveis de
um encontro, nos posicionamos.
“Eu sabia que não era improvisação, eu estava mais per-
to de uma ideia de composição, mas eu sabia que não era uma
escrita coreográfica no sentido de antecipação, de haver um ob-
jetivo [...] não é uma composição prévia! Então, a relação entre
o tempo real e a ‘composição’ pareceu-me justa. E também havia
uma espécie de contraponto a uma expressão que na época55 era
muito utilizada, que era a composição instantânea” 56.
Somos sempre apanhados ao meio.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
Somos sempre apanhados ao meio e em determinado
espaço-tempo entramos em relação.
Somos sempre apanhados ao meio e dos possíveis de
um encontro, nos posicionamos diante de outra posição para en-
tão entrarmos em posição-com-posição.
“[...] o viver junto é quase uma consequência ou uma
necessidade que a própria CTR tem [...]. A obrigação da partilha
daquilo que chamaríamos um gesto ou um acontecimento, gera
‘o junto’. Portanto ‘o junto’ está dentro do meu trabalho, mas ele
55 “Na década de 1990 já nos meus pares, na comunidade em que eu me relacionava
já havia uma reflexão óbvia e já antiga em torno da questão da composição e da impro-
visação, só que havia a necessidade de não se chamar de improvisação, porque isso era
confundido com uma espécie de jam session.” (FIADEIRO, Entrevista. 2015).
56 Idem. Ibidem.

Dança no século XXI 105


não é a minha preocupação central ou inicial [...] ele é uma con-
sequência. Está ali porque acontece, acontece que, de fato, para
se conseguir praticar a CTR é preciso se abdicar de um controle
ou de uma manipulação, e isso gera um junto [...]”57.
Somos sempre apanhados ao meio.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
Somos sempre apanhados ao meio e em determinado
espaço-tempo entramos em relação.
Somos sempre apanhados ao meio e dos possíveis de
um encontro, nos posicionamos diante de outra posição para en-
tão entrarmos em posição-com-posição. Do encontro, inaugura-
-se (ou não) a tensão que mantém viva a relação.
“Esse é um conflito que eu sempre vivi: como partilhar
uma coisa que por natureza tem que ficar na penumbra? [...]
quando vou à maquete58 é só para esclarecer alguma dúvida con-
ceitual e depois volto ao terreno outra vez. Porque é como a ar-
quitetura, não é? Tu não podes experimentar no terreno. Porque
se fazes um buraco num terreno pra experimentar uma coisa tu
não podes depois voltar a pôr a terra, e é como nas relações, tu
não podes fazer um buraco numa relação e depois meter a terra.
Mas na maquete podes. A ferramenta maquete é muito incrível,
mas ela tem, pra mim, que estar em relação à aplicação na arte”59.
Somos sempre apanhados ao meio.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.

57 Idem. Ibidem.
58 Jogo de composição desenvolvido com Fernanda Eugénio, no qual se tem uma
visão panorâmica do acontecimento. A situação “maquete” refere-se a 1m². Nesta di-
mensão do jogo, os corpos não entram para improvisar, há apenas o manuseio de ob-
jetos, tal qual num jogo de tabuleiro.
59 Idem. Ibidem.

106 Célia Gouvêa (Organizadora)


Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
Somos sempre apanhados ao meio e em determinado
espaço-tempo entramos em relação.
Somos sempre apanhados ao meio e dos possíveis de
um encontro, nos posicionamos diante de outra posição para en-
tão entrarmos em posição-com-posição. Do encontro, inaugura-
-se (ou não) a tensão que mantém viva a relação. Mas não basta
encontrá-la, é preciso alimentá-la na duração do próprio fazer.
“Durante muito tempo eu defendi a ideia de que o modo
para esquivar-me, a explicação é colocar o foco na operação, ou
seja, no ‘como’ e não no ‘o que’. Como é impossível partilhar ‘o
que’ – essa era a premissa – como eu não posso partilhar o afeto,
o que eu partilho é uma forma de estar, é uma ética na linguagem
do AND60. É a ética do encontro. E a CTR nasce dessa premissa,
da premissa de que eu abdico de certa maneira, ponho em pausa,
suspendo a questão, a inquietação e dedico-me de corpo e alma à
prática, à formulação e à sistematização daquilo que é um modo
operativo no fundo. A CTR é um modo operativo, é um modo
de estar, de operar, é um modo de compor”61.
Somos sempre apanhados ao meio e dos possíveis de
um encontro, nos posicionamos diante de outra posição para en-
tão entrarmos em posição-com-posição. Do encontro, inaugura-
-se (ou não) a tensão que mantém viva a relação. Mas não basta
encontrá-la, é preciso alimentá-la.
Somos sempre apanhados ao meio e em determinado
espaço-tempo entramos em relação.
Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
60 O Modo Operativo AND é uma prática-teórica que pensa a sustentabilidade e o
viver juntos. Parte do seu desenvolvimento se deu numa colaboração entre João Fia-
deiro e Fernanda Eugénio. Hoje, a antropóloga Fernanda Eugénio é quem verticaliza
os estudos e práticas do MO_AND a partir workshops, encontros e grupos de pesquisa,
em que se pratica o jogo do AND.
61 Idem. Ibidem.

Dança no século XXI 107


Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio.
“[...] o fim dos anos 1990 foi o período que eu precisei
para fazer esse clique. E durante um tempo eu começo a trabalhar
com dois sistemas simultâneos, com o Windows e o Macintosh ao
mesmo tempo (risos), em que ainda estou a operar dentro de uma
lógica sustentada nas premissas da Nova Dança Portuguesa e
também do Contact Improvisation da Nova Dança Belga, a Nova
Dança em geral, ou seja: Wim Vandekeybus, o Pós-Modernismo
Americano, Trisha Brown, sobretudo... Algumas influências que
eu tive no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990 ainda esta-
vam muito presentes em mim”62.
Somos sempre apanhados ao meio e dos possíveis de
um encontro, nos posicionamos diante de outra posição para en-
tão entrarmos em posição-com-posição.
Somos sempre apanhados ao meio e em determinado
espaço-tempo entramos em relação.
Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio.
“Em 1999 eu crio, depois de uma série de pequenos
workshops que eu dou na Europa, um Atelier, que eu chamei
de Atelier Real (antes de haver esse Atelier Real), num lugar
chamado Lugar Comum, fora de Lisboa, em que convido uma
série de pessoas desses workshops, que eu dei por toda a Europa,
pra virem a estar comigo por três ou quatro semanas. E daí nasce
aquele livro, o Doc Lab63, que eu tento fazer uma sistematização

62 Idem. Ibidem.
63 O livro DOC.LAB uma publicação lesível sobre práticas do corpo foi editado pela
RE.AL Lda., em 2000. Encontra-se disponível para consulta na Biblioteca da Escola

108 Célia Gouvêa (Organizadora)


daquilo que eu já considerava ser um método”64.
Somos sempre apanhados ao meio e dos possíveis de
um encontro nos posicionamos.
Somos sempre apanhados ao meio e em determinado
espaço-tempo entramos em relação.
Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio.
“Se eu não tivesse sido aceito ou se eu não tivesse cons-
truído uma posição enquanto autor, provavelmente eu não teria
conseguido fazer a CTR porque ela foi feita camuflada, diga-
mos. Ela foi feita como ferramenta de colaboração, ou seja, para
refletir sobre a colaboração, sobre a des-cisão, sobre o modo de
partilhar questões que são por natureza, ainda muito frágeis e
muito pouco claras [...]”65.
Somos sempre apanhados ao meio e em determinado
espaço-tempo entramos em relação.
Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio.
“Como eu tive a sorte ou a coincidência de estar den-
tro da arte, da dança e dentro da dança contemporânea, ou seja,
dentro da improvisação, da reflexão sobre improvisação e o lugar
da improvisação dentro da composição artística, de fato não po-
deria haver território mais justo para investigar fazendo ou fazer
investigando” 66.
Superior de Teatro e Cinema e no Centro de Documentação e Informação da Escola
Superior de Dança, ambos em Lisboa.
64 Idem. Ibidem.
65 Idem. Ibidem.
66 Idem. Ibidem.

Dança no século XXI 109


Somos sempre apanhados ao meio e deste modo somos
afetados.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio.
“É um lugar que me permite experimentar, fazer, agir
sem conseguir formular ainda a razão desse gesto. Em outras
áreas isso não é possível, digamos, somos impedidos de agir se
não soubermos por que é que agimos, não é?”67.
Somos sempre apanhados ao meio e com frequência
não (re)paramos.
Somos sempre apanhados ao meio.
“[...] e o que é o tempo real? É o corpo em acontecimen-
to, em ato [...] é o próprio corpo a acontecer e tu enquanto acon-
tece, olhas para o teu corpo que acontece enquanto acontece”68.
Somos sempre apanhados ao meio.
“O que importa agora é o corpo em velocidade, em
composição, no tempo real da coisa.”69.

67 Idem. Ibidem.
68 Idem. Ibidem.
69 Idem. Ibidem.

110 Célia Gouvêa (Organizadora)


Referências Bibliográficas:

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e es-


quizofrenia. Vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2009.
Entrevista concedida por FIADEIRO, João. Entrevista I. [out. 2015].
Entrevistadora: Carolina Camargo De Nadai. Lisboa, 2015. 1 arquivo
wav. (122:51 min.).
EUGÉNIO, Fernanda. FIADEIRO, João. Secalharidade: uma confe-
rência performance. Lisboa, Portugal: Ed. Culturgest, 2012.
EUGÉNIO, Fernanda; FIADEIRO, João. Dos modos de re-existência:
Um outro mundo possível, a secalharidade. 2011. Disponível em: ht-
tps://ladcor.files.wordpress.com/2013/06/manifesto.pdf. Acesso em:
Ago. 2016.
NADAI, Carolina Camargo de. Pôr-se com, compor: corresponsa-
bilidades no encontro performer-espectador. Revista aSPAs. v. 4, nº
1. 2014. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/aspas/article/
view/75730. Acesso em: Ago. 2016.
Spinoza, Baruch de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

Dança no século XXI 111


Sobre a autora

Carolina Camargo De Nadai

Bailarina, produtora e pesquisadora em dança; atua com


dança contemporânea, performance, criação e propostas articu-
ladas entre ambientes acadêmicos e artísticos. Doutora em Artes,
com pesquisa voltada à composição coreográfica, pelo Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas na Universidade de São
Paulo. (http://cargocollective.com/cacanadai).

112 Célia Gouvêa (Organizadora)


Porosidades do corpo na dança do
século XXI
Marcelo Reis

Equivale a dizer que meu presente consiste na consciência


que tenho de meu corpo.
Henri Bergson

Minha formação nas artes cênicas se deu pelo teatro,


ao qual devo o entendimento de sendo um artista, trabalhar pela
conquista da expressão do corpo, pelas possibilidades de inserção
política da arte e pela força do trabalho coletivo, características
também presentes na dança. Sendo assim, coloco-me aqui como
apreciador e investigador diletante da dança, com um juízo ama-
dor, no melhor sentido da palavra, sobre o ofício.
As artes do corpo progressivamente rompem precon-
ceitos, investigam as intersecções com novos dispositivos e lin-
guagens, propondo uma transgressão de limites. Tanto o teatro
quanto a dança estabeleceram novos marcos de relação com o
espaço e com o público a partir do início do século passado e,
de maneira mais contundente, a partir dos anos 1960. Com o
advento da performance, formas híbridas de criação como a dan-
ça-teatro, teatro-performativo, work in progress70 e outras, torna-
ram-se mais frequentes.
No teatro, o limiar entre atriz/ator e personagem torna-
-se mais fluido. Busca-se cada vez mais o artista permeável às in-
fluências do ambiente, capaz de reagir criticamente ao papel que
porventura represente. A perspectiva palco-plateia deixa de ser
hegemônica e os espaços públicos passam a ser incorporados às

70 Definição de Renato Cohen para seu trabalho, iniciado nos anos 80, no Brasil, que
unia performance, teatro, dança e artes visuais. (COHEN, 2013).

Dança no século XXI 113


criações. Privilegia-se a experiência em lugar do acabamento for-
mal. O público muitas vezes é inserido na construção da obra. As
narrativas lineares deixam de ser protagonistas. Aliás, os protago-
nismos não são mais considerados, buscando-se paridade tanto
na função dos artistas, quanto na participação dos elementos que
compõem a obra. A reação dos criadores ao fato de o teatro ter
sido convertido a produto da indústria cultural, transformando-o
em mero entretenimento, também faz parte desse contexto.
Estudiosos da cena atual propõem conceitos e reflexões,
que me dão sustentação para pensar a dança no século que se ini-
cia, em especial numa perspectiva que muito me interessa, a do ar-
tista atuante. Denis Guénoum, em seu livro O Teatro é Necessário?
(2004), aponta para as transformações ocorridas no teatro:

Hoje, com a deserção do imaginário teatral, para fora


do teatro, com sua migração para o universo das ima-
gens (sua captação pelo cinema e seus derivados), o
sentido do jogo se viu devolvido ao espaço do próprio
jogo. [...] o sentido do jogo é um sentido imanente, um
sentido da imanência que dispensa, por default, a exte-
rioridade transcendente do imaginário para reconduzir
o sentido para o âmbito da existência, o estar aí, aí diante,
do ator: em sua prática. (GUENOUM, 2004, p. 138).71

E também sobre o deslocamento do modo como se dá


o trabalho de criação do ator:

O jogo dos atores diante de nós resulta, em segundo


lugar, de um trabalho, de protocolos, de técnicas ou
de inspiração que não obedecem mais ao imaginário
do personagem. [...]. Trata-se, em primeiro lugar, de
um certo rigor da existência cênica. Existência física:
o primeiro requisito do jogo provém da apresentação
do corpo. Não da representação pelo corpo de alguma

71 Grifo meu.

114 Célia Gouvêa (Organizadora)


coisa da qual o corpo seria a figuração, mas da exibição
do próprio corpo. (GUENOUM, 2004, p. 132-133)72.

Podemos dizer como o autor, que essa nova proposição


do teatro nos remete à dança, “[...] porque a dança aparece em
cena como uma arte finalmente liberta do mimetismo. A dança
já não se define mais a partir dos atributos de papéis, supondo-se
que algum dia ela tenha realmente feito isto. Ela experimenta uma
precisão cênica do movimento” (GUENOUM, 2004, p. 133).
Chegamos ao momento, com mais ênfase no início des-
te século, em que as artes do corpo não se limitam mais aos pa-
péis da representação e buscam uma relação caracterizada pela
troca contínua com o ambiente, seja uma sala de ensaio, uma sala
de espetáculo ou um espaço público. Ao artista não cabe mais o
aprisionamento numa atuação representacional, mas a busca por
um estado de atenção que o torne permeável, capaz de conectar-
-se com os acontecimentos aqui e agora, de tornar-se vulnerável.
Segundo Suely Rolnik, colocar-se em vulnerabilidade é deixar-se
ter a sensibilidade abalada, deslocada pelos acontecimentos do
mundo ou pelo outro. Diz a autora:

Uma das buscas que tem movido especialmente as


práticas artísticas é a da superação da anestesia da vul-
nerabilidade ao outro, própria da política de subjeti-
vação em curso. É que a vulnerabilidade é condição
para que o outro deixe de ser simplesmente objeto de
projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se tor-
nar uma presença viva, com a qual construímos nossos
territórios de existência e os contornos cambiantes de
nossa subjetividade. (ROLNIK, 2006, p. 2).

A construção da subjetividade flexível surgiu com força


nos anos da contracultura, sendo depois cooptada pelo sistema

72 Grifo de Denis Guénoun.

Dança no século XXI 115


capitalista e difundida pela publicidade como o novo way of life,
fomentando o processo de subjetivação vigorante. A diferença,
segundo Rolnik, está na estratégia de criação de territórios e, im-
plicitamente, na política de relação com o outro.

[...] para que este processo se oriente por uma ética


de afirmação da vida é necessário construir territórios
com base nas urgências indicadas pelas sensações – ou
seja, os sinais da presença do outro em nosso corpo
vibrátil. É em torno da expressão destes sinais e de sua
reverberação nas subjetividades que respiram o mes-
mo ar do tempo que vão se abrindo possíveis73 na exis-
tência individual e coletiva. (ROLNIK, 2006, p. 10).

Construir territórios com base nas urgências indicadas


pelas sensações é desde sempre uma ocupação da arte e nos tem-
pos atuais, uma emergência. As últimas décadas têm apresenta-
do fundamentalismos, imobilidade, congelamento de emoções,
desligamento da natureza e desumanização. Para Rolnik, o que
caracteriza os regimes totalitários - tanto os de direita, quanto os
de esquerda - é o enrijecimento patológico do princípio identi-
tário, que se vê ameaçado pelas expressões do corpo vibrátil, ou
seja, pelas formas culturais e existenciais engendradas numa re-
lação viva com o outro, tornando-se, assim, um desestabilizador
das cartografias vigentes.
Não por acaso, as artes do corpo têm ousado subverter
a ordem, sondar os limites da existência e disporem-se a experi-
mentações que ultrapassam a finalidade estética, projetando uma
fusão entre vida e arte. Mais ainda: construir um corpo vibrá-
til torna-se uma tarefa essencial para a convivência. Um corpo
atento ao outro é um corpo que se atenta a si, capaz de se reco-
nhecer como sujeito e também parte de um todo, percebendo-se
inacabado e em constante transformação. Estar vulnerável, apto

73 Grifo de Suely Rolnik.

116 Célia Gouvêa (Organizadora)


a correr riscos, aberto ao inesperado, ao que é diferente e desco-
nhecido. Tornar-se poroso, consciente dos próprios limites como
individualidade, mas capaz de promover uma permuta entre o
que está dentro e o que está fora.
Com o avanço das neurociências, assim como dos estu-
dos das ciências comportamentais, descobertas importantes re-
lacionadas ao mapeamento do cérebro, de suas múltiplas funções
e a forma como se distribuem e se organizam os movimentos,
sensações, sentimentos e pensamentos nos seres vivos, têm auxi-
liado de maneira significativa a compreensão do complexo fun-
cionamento de nosso corpo. Encontramo-nos em permanente
intercâmbio com o universo, em constante luta pela vida. Somos
afetados e interferimos de forma contínua no ambiente que nos
rodeia. Estes acontecimentos e o conjunto de nossas memórias,
registradas no decorrer da existência, contribuem para a defini-
ção e a indefinição do ser que somos.
Stanley Keleman, em uma abordagem somática da
identidade humana, afirma como mito moderno a decodificação
da criação, a compreensão do código genético e a nossa evolu-
ção biológica. Ele traz ainda um aspecto adicional que é o vir a
existir da subjetividade do corpo. Escreve: “A partir do momento
da concepção, a organização das nossas imagens do passado está
disponível para nós como um guia para estarmos no mundo, no
presente” (KELEMAN, 2001, p. 52).
O autor vê o trabalho corporal como um processo de-
codificador das estruturas do soma, que se apresentam como um
complexo de imagens sociais e emocionais inatas ou aprendidas,
traduzidas em um comportamento e em um modo de comunicar
as nossas intenções a nós mesmos ou aos outros. Ao fazermos
experiências com esses padrões de expressão, começamos a or-
ganizar outras imagens corporais e a estrutura estabilizada tor-
na-se mais móvel (KELEMAN, 2001, p. 55). Nesta perspectiva
somática, somos o resultado do que existiu antes de nós, da nossa

Dança no século XXI 117


história individual, da nossa relação com o presente e do modo
como coletivamente construímos o futuro. Isso faz de nós seres
complexos e responsáveis pelas escolhas que fazemos como cida-
dãos, e aqui em especial, como artistas.
As artes do corpo são mobilizadoras por natureza.
Cabe ao artista fazer a disputa pelos territórios do imaginário
dominante e propor novas formas de organização no tempo e
no espaço. Para além de uma discussão sobre a função da arte,
podemos afirmar que toda manifestação artística é política e
que, como artistas do corpo, temos um compromisso com a afir-
mação de nossa corporeidade no mundo. De um modo geral,
isso vem acontecendo de forma cada vez mais assertiva. Vemos
propostas ousadas de ocupação de espaços públicos, manifesta-
ções individuais e coletivas de cunho desafiador aos padrões de
comportamento hegemônicos, demonstrações sensíveis de novas
possibilidades de relação com as diferenças, propostas radicais de
denúncia do grau de embrutecimento presente nos corpos. No
entanto, o risco de um retrocesso está sempre presente, com o re-
crudescimento das formas de repressão, que sempre surgem pela
via social, legal, política e econômica ou pelo conjunto da obra.
O fortalecimento das subjetividades na construção de
corpos porosos, que se afetam mutuamente na busca individual e
coletiva pela transformação da vida no modo atual como ela está
posta, é tarefa contínua a todas as artes. Mas existe um traba-
lho de autodescoberta que cabe ao artista empreender, como diz
compadre Quelemém no Grande Sertão Veredas: “Riobaldo, a
colheita é comum, mas o capinar é sozinho”. (ROSA, 2001, p.74)
Presumo e desejo que a vocação da dança no século XXI
seja crescer e multiplicar porosidades pelos espaços. Um corpo
livre para se manifestar torna-se expressão política, exercício de
liberdade individual e coletiva. Mesmo num solo de dança, en-
contra-se ali a representação de uma coletividade, um aconteci-
mento em que o corpo é atravessado por sensações, sentimentos,

118 Célia Gouvêa (Organizadora)


pensamentos e imagens que são coletivas. A cultura da dança en-
contra-se presente desde a nossa pré-história e apresenta conota-
ções sagradas, artísticas ou de pura brincadeira O corpo em mo-
vimento, a dança em todas as suas manifestações, é capaz de nos
apresentar pontos de vista diferentes do habituado, de modificar
comportamentos e gerar reflexão. Um corpo poroso torna-se um
corpo vivo, conectado com as pulsações dentro e fora e, portanto,
em constante avaliação de nosso estado no aqui e agora.
Peço licença para finalizar essas considerações com um
texto de Yoshi Oida, ator do Centro Internacional de Pesquisa
de Teatro, dirigido por Peter Brook, na França. O relato de uma
situação vivenciada por ele e transcrita a seguir, parece-me a sín-
tese do que seria um corpo poroso, aberto às influências do am-
biente, capaz de reconhecer-se como parte de um todo, sendo ele
mesmo o todo:

Quando estive na África com Peter Brook, levamos


muitos dias atravessando o deserto do Saara. Numa
certa região, não havia árvores, nem montanhas, nem
prédios, nem postes telegráficos, nem seres humanos.
Apenas céu, terra plana e a linha do horizonte em to-
das as direções. Comecei a me sentir perdido na imen-
sidão daquele mundo à minha volta.

Passei a experimentar maneiras de posicionar meu


corpo, de modo que pudesse estar naquele imenso va-
zio. Ficar de pé não era bom. Algo me dizia que não
estava certo. Então tentei me deitar na planície, que
estava coberta de minúsculos seixos, e olhar para cima,
em direção ao céu. Tendo me deitado dessa maneira,
senti como se me tornasse parte do solo do deserto,
sendo absorvido pela terra como um cadáver. Eu não
tinha uma existência individual. Finalmente, tentei me
sentar no chão com a coluna ereta e concentrei minha
energia no hara. Naquele momento, repentinamente
senti como se tivesse um novo tipo de existência, sus-
Dança no século XXI 119
penso entre o céu e a terra, conectando o céu e a terra
como se fosse uma ponte. Por tentativa e erro, descobri
a posição que me capacitava a estar plenamente na-
quele espaço particular. (OIDA, 2007, p. 37-38).

Oida nos mostra como é possível, ao nos colocarmos


em estado de vulnerabilidade, tornando-nos porosos, às vezes
por tentativa e erro, chegarmos à plenitude, seja numa relação
pura com o ambiente ou com o outro.

120 Célia Gouvêa (Organizadora)


Referências Bibliográficas:

BARDET, Marie. A filosofia da dança: um encontro entre dança e fi-


losofia. Trad. Regina Schöpke; Mauro Baladi. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do cor-
po com o espírito. Trad. Paulo Neves. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
COHEN, Renato. Work in Progress na Cena Contemporânea: criação
encenação e recepção. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.
FABIÃO, Eleonora. Corpo Cênico, Estado Cênico. In: Folhetim #17
– Revista do Teatro do Pequeno Gesto. maio/ago. Rio de Janeiro:
Funarte, 2003.
GUENOUN, Denis. O teatro é necessário? Trad. Fátima Saadi. São
Paulo: Perspectiva, 2004.
KELEMAN, Stanley. Mito e corpo: uma conversa com Joseph Campbell.
Trad. Denise Maria Bolanho. São Paulo: Summus, 2001.
OIDA, Yoshi; MARSHALL, Lorna. O ator invisível. Trad. Marcelo
Gomes. São Paulo: Via Lettera, 2007.
ROLNIK, Sueli. Geopolítica da Cafetinagem. Arquivo PDF. São Paulo:
PUC, 2006. http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/
SUELY/Geopolitica.pdf - acessado em ago/2016
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro.
Nova Fronteira, 2001.

Dança no século XXI 121


Sobre o autor

Marcelo Reis

Ator (ECA – USP, 1992), professor e dramaturgo da


Cia São Jorge de Variedades desde 2001. Artista-educador com
passagens pelo Programa de Teatro Vocacional (PMSP) e pelo
CLAC – Curso Livre de Artes Cênicas (PMSBC). Integrante
do LADCOR – Laboratório de Dramaturgias do Corpo, com
coordenação da Profa. Dra. Helena Bastos.

122 Célia Gouvêa (Organizadora)


Dramaturgia de um corpo
melancólico em Anatomia da
Melancolia – experiência I.
Nathalia Catharina

De Aristóteles na sua Problemata (30, I) à Schiller (Sobre


a poesia ingênua e sentimental, 1795), Walter Benjamin
(Origem do Drama Barroco Alemão, 1916-1925) e até os nos-
sos dias, o sol negro da melancolia não cessa de se mostrar
como esse rasgo, no próprio centro de nossa identidade, que
acompanha ou mesmo engaja o esforço de pensar e de falar.
(KRISTEVA, 1990, p. 44)

Este artigo pretende ser uma breve introdução acerca


da melancolia de um corpo contemporâneo visto, por um lado,
como reflexo de um abatimento anímico e subjetivo e, de ou-
tro, como resistência ao próprio esvaziamento que ocupa este
corpo. Tomo o corpo melancólico como o sujeito que é reflexo
de um macrocosmo social ao mesmo tempo em que ele próprio
é transformador de sua condição. Nesta reflexão, me valho do
entrelaçamento dos pensamentos de autores que abordaram a
ideia de melancolia com minha experiência prática na criação do
solo Anatomia da Melancolia – experiência I (2015). Para pensar o
corpo do século XXI, me parece interessante também tomá-lo a
partir do seu estado, qualidade e potência melancólicos.
No Ocidente a palavra melancolia designa o sujeito que
se vê em posição excêntrica frente à norma de sua época. Da
Grécia homérica até o romantismo, passando por Aristóteles e
pela crise do Renascimento, o melancólico foi considerado como
um ser de excessão, sujeito à alternância entre momentos de ins-

Dança no século XXI 123


piração poética e ataques de fúria ou de inapetência para a vida.
Desde o filósofo grego, a reflexão sobre a melancolia é indisso-
ciável da pergunta sobre a criação estética, já que se relaciona
diretamente à uma experiência subjetiva e anímica. Freud rompe
com esta tradição ao utilizar o significante melancolia para inau-
gurar uma nova explicação psicanalítica para a chamada psicose
maníaco-depressiva. Ao trazer o tema para o campo da psica-
nálise, Freud apartou-se da longa tradição de pensamento que
articulava o melancólico à cultura e à criação artística.
Walter Benjamin (2015), a partir de sua reflexão sobre
a poesia de Baudelaire, foi um dos últimos pensadores modernos
a tomar a palavra melancolia no sentido pré-freudiano, ao rela-
cionar o desencanto do melancólico ao efeito de um desajuste
ou de uma recusa quanto às condições simbólicas do laço social.
O melancólico benjaminiano pode ser entendido como o sujeito
que se sente apartado da dimensão pública no que diz respeito
à hegemonia dos mandatos éticos e morais de sua época. A me-
lancolia não seria apenas um mero sentimento de tristeza, mas
ainda, o resultado de uma contradição reveladora de um desejo
utópico de reconstituição e preenchimento de um todo perdido
e vazio. Ela é a ocupação deste vazio – sua crispação – podendo
ser vista como um alerta, uma epécie de “alarme de incêndio” do
sujeito diante de seu contexto; o corpo melancólico parece ver e
reagir ao fogo que se espalha em uma época em que a tragédia
se tornou norma, em que o incêndio é aparentemente invisível.
Tendo em vista a urgência de dar visibilidade a este in-
cêndio, crio Anatomia da Melancolia – experiência I. O solo co-
meça com uma paralisia generalizada do corpo e da fala; a gra-
vidade supera a possibilidade deste corpo se colocar de pé. Um
corpo em dissolução que, contraditoriamente, procura resistir a
esta gravidade, sendo muitas vezes tragado por sua condição trá-
gica. Um corpo que ao tentar falar, falha. A articulação narrativa,
antes familiar, parece agora inútil como linguagem. Sua função
foi explorada, esgotada, exaurida; a ordem do mundo antes re-
124 Célia Gouvêa (Organizadora)
conhecível não lhe serve mais e no lugar desta ordem subjetiva,
a melancolia parece operar como uma qualidade de linguagem.
Os limites entre tecidos, ossos, orgãos, mente, líquidos, músculos,
pele estão embaralhados, sem lugar definido: borrados em um
mapa anatômico em ruínas. Ao invés de fronteiras entre partes, o
corpo está organizado a partir dos limiares entre elas, assim como
sua própria existência deve ser compreendida no limiar entre in-
dividual, social e histórico.
Perfazer uma anatomia da história, escavando seus es-
trondos e buracos, talvez seja um modo de retraçar uma anato-
mia para um corpo que é também coletivo. Daí a inquietação do
corpo melancólico: o que havia antes (formas, definições, fron-
teiras, linguagem) se dissolve e o corpo passa a ocupar um campo
liminar74, movendo-se por resistência e contradição entre o corpo
indivíduo e o coletivo. Segundo Diéguez, “[...] refletir sobre as
teatralidades liminares não implica apenas considerar seu com-
plexo hibridismo artístico, mas também considerar as articula-
ções com o tecido social no qual se inserem” (2004, p. 4)75. É deste
limiar que parece emergir a subjetividade melancólica.
A experiência da modernidade produziu corpos melan-
cólicos que, ao mesmo tempo, são objetos de abatimento de sua
época e sujeitos de resistência e de estranhamento de seu con-
texto histórico-social. Ainda que estejamos de fato colocados no
século XXI (e não no XIX), entendo que a ideia de um corpo
pós-moderno pode incorrer no risco de pressupor um salto tem-

74 O limiar não faz só separar dois territórios, mas permite a transição entre eles.
O conceito de limiar implica dois sentidos contraditórios: significa ao mesmo tempo
delimitação e passagem, separação e transição. Para Benjamin, “[...] é preciso distin-
guir cuidadosamente o limiar da fronteira. O limiar (Schwelle) é uma zona. As ideias
de variação, de passagem de um estado a um outro, de fluxo são conteúdos do termo
schwellen”. (BENJAMIN, 1989, p. 512-513, frag. O 2a 1). (Tradução nossa).
75 Aproximando o ponto de vista filosófico do cênico, a autora Ileana Diéguez, a par-
tir de sua leitura sobre a obra de Victor Turner, nos ajuda a refletir ao considerar o li-
miar “um estado resguardado e extracotidiano”, tomando-o como um “estranhamento
do estado habitual da teatralidade tradicional e como aproximação à esfera cotidiana”
(DIÉGUEZ, 2004, p. 3). (Tradução nossa).

Dança no século XXI 125


poral – uma cisão/fronteira – entre o ontem e o hoje, desprezan-
do os limiares históricos e as implicações da modernidade no que
dizemos ser contemporâneo.
O historicismo baseia-se em um paradigma progressis-
ta e linear sobre a história, colaborando para o aprisionamento
do sujeito contemporâneo em um tempo vazio e homogêneo, em
que o ontem é apagado pelo hoje. Giorgio Agamben nos ajuda
nesta problematização:

A contemporaneidade [...] é uma singular relação com


o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo,
dele toma distância [...]: contemporâneo é aquele que
mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber
não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para
quem deles experimenta contemporaneidade, obscu-
ros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe
perceber essa obscuridade, que é capaz de escrever
mergulhando a pena nas trevas do presente [...] perce-
ber esse escuro não é uma forma de inércia ou de pas-
sividade, mas implica uma atividade e uma habilidade
particular que, no nosso caso, equivalem a neutralizar
as luzes que provém da época para descobrir suas tre-
vas, o seu escuro especial [...]. [o contemporâneo] é
também aquele que, dividindo e interpolando o tem-
po, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em
relação com os outros tempos, de nele ler de modo
inédito a história [...]. É como se aquela invisível luz,
que é o escuro do presente, projetasse sua sombra so-
bre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra,
adquirisse a capacidade de responder às trevas do ago-
ra. (AGAMBEN, 2009, p. 59-72).

Entrever este escuro é de certo modo a tarefa do Anjo


da história76, a alegoria de Walter Benjamin (2013) que descreve

76 “Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece
preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbu-

126 Célia Gouvêa (Organizadora)


o sujeito que caminha de costas em direção ao futuro enquanto
seu olhar está direcionado às trevas do passado. Este anjo é, para
esta reflexão, a alegoria de um corpo melancólico. O Anjo da his-
tória não está passivo em sua época ou em postura de desprezo
à ela, ao contrário, ele se insere em seu tempo, mas em constante
atividade de contradição em relação a este, em um exercício de
negação e estranhamento de seu contexto.
Talvez seja preciso problematizar a ideia de corpo con-
temporâneo como o “atual”, o que justifica trabalhar com a ideia
de que ele é também ruína, que contém a sombra da modernida-
de, seu escuro espectral, um corpo que existe na e da confluência
de tempos passados, nos limiares entre passado, presente e futuro
– em um “Agora” (Jetztzeit) – temporalidade que se relacionaria a
um tempo messiânico que investe o corpo melancólico:

O historicismo limitou-se a estabelecer um nexo cau-


sal entre os vários momentos da história. Mas um fato,
por ser causa de outro, não se transforma por isso em
fato histórico. Tornou-se nisso postumamente, em
circunstâncias que podem estar a milênios de distân-
cia dele [...]. [O historiador] Apreende a constelação
em que sua própria época se insere, relacionando-se
com uma época anterior. Com isso, ele fundamenta
um conceito de presente como “Agora” (Jetztzeit), um
tempo no qual se incrustaram estilhaços do messiâni-
co. (BENJAMIN, 2013, p. 20).

galhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto.
Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos
é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e
lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir
de seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que
se enrodilha nas suas asas, é que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Esse
vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o
monte de ruínas à sua frente cresce até o céu. Aquilo a que chamamos o progresso é
este vendaval.” (BENJAMIN, 2013. p. 14).

Dança no século XXI 127


Entendo o corpo contemporâneo melancólico como
uma sombra das ruínas da modernidade: não somos um outro
novo, cujo passado industrial, progressista, bélico e civilizatório
foi apagado. Nossa devastação subjetiva atual atesta a continui-
dade da modernidade, ainda que em outra fase, em sua destrui-
ção implosiva, ou mesmo, em sua explosão incendiária bastante
concreta, a despeito de nossa era virtual. A melancolia contem-
porânea poderia ser compreendida tanto como sintoma deste
abatimento subjetivo, quanto como antídoto de resistência ao
historicismo que vulgariza a experiência do corpo desde a mo-
dernidade, concebendo-o como objeto produtivo, a serviço da
ideologia e do progresso.
A sombra melancólica que acompanha a modernidade
(com seus diversos modelos de campos de concentração) revela a
tragédia como norma. A potência da melancolia se ancora na ca-
pacidade que este corpo parece ter de revelar esta tragédia como
um estado de exceção, desnaturalizando o corpo e a narrativa
histórica, libertando a história individual e coletiva de seu farses-
co progresso linear. O corpo melancólico parece reconhecer nos-
sa tragédia histórica ao atestar um esvaziamento anímico e social.
Talvez, fazer emergir a tragédia no corpo seja uma primeira ação
em vista de uma nova anatomia social, tarefa do Anjo da história.
Para que enxerguemos a sombra histórica é preciso, ao
mesmo tempo, sermos contaminados por ela e negá-la, colocan-
do-nos em experiência de resistência e contradição melancólicas,
no entanto, o que fez a civilização moderna? Criou tecnologias
de cegueira e de apagamento subjetivo, a começar pela divisão
econômica do trabalho, que rege as relações sociais e subjetivas
do corpo contemporâneo, evitando ao máximo abrir espaço para
uma experiência coletiva e social autênticas, dado o perigo que
um investimento como este poderia acarretar para a “ordem e
progresso” da civilização dos últimos três séculos.
O vazio do indivíduo contemporâneo testemunha o
extermínio anímico coletivo. A falta de ânimo e de desejo do
128 Célia Gouvêa (Organizadora)
corpo melancólico advém de um cotidiano que se repete como
um eterno presente, sem passado e sem futuro, sem memória e
sem história. Experiência próxima a do corpo do Alzheimer, que
vive um eterno e triste presente dos dias que se sequenciam em
violenta e perversa harmonia:

A nova ideologia se apropria dos fatos da desordem e


cancela o sofrimento no momento em que encontra o
nome de um período ou fase. Da noite para o dia po-
demos transformar tudo em passado, porque acredita-
mos no futuro. O nosso presente verdadeiro, no qual
a desordem é radical, está tão eficazmente escondido
[...]. (WILLIAMS, 2002, p. 90).

O corpo melancólico, embora tributário do esqueci-


mento, está fundado sobre esta “desordem radical” que, contradi-
toriamente, o presentifica e o coloca em deslocamento, movido
pela inquietação de encontrar seu objeto perdido, seu ideário e
potência anímica. Para o melancólico, o objeto perdido é o pró-
prio sujeito de recalque do corpo contemporâneo, emudecido
pelo progresso ideológico civilizatório. Talvez seja a partir do
deserto de corpos exterminados, de “homens reduzidos a obje-
tos e mortos a partir de listas; perseguição e tortura; os muitos
tipos de martírio contemporâneo” (WILLIAMS, 2002, p. 90), que
possamos trazer à tona a experiência anímica recalcada de nosso
sujeito histórico.
Se por um lado nosso trauma civilizatório (sintoma de
um recalque coletivo) emudece e paralisa o corpo melancólico,
por outro, dialeticamente, faria retornar tudo aquilo que precisou
ser deixado: um corpo desejante não apenas individual, mas tam-
bém social. Por esta razão, o corpo melancólico pode nos pro-
vocar “[...] uma inquietante perturbação e, de algum modo, nos
faz sentir, ao menos uma ou outra vez, sem que saibamos dizer
bem por quê, certo mal-estar de vivermos em civilização [...]”.

Dança no século XXI 129


(WILLIAMS, 2002, p. 90). Diante desta paisagem, na qual o esta-
do de exceção figura como norma, em que o corpo subsiste soter-
rado sob escombros e que nossa potência anímica e capacidade
de espanto parecem assoladas, qual a corporeidade dramatúrgica
que poderia emergir? O melancólico parece vislumbrar a proe-
minência de uma utopia a partir destas ruínas, uma linguagem
que parece brotar dos rastros e das cinzas do incêndio.
Em Anatomia da Melancolia – experiência I a contradi-
ção de um corpo que emerge de suas próprias cinzas, que ainda
respira sob o pó, manifesta-se a partir de uma síncope entre um
corpo mudo e paralisado, que se move com esforço e resistência,
e um corpo do discurso verbal, ancorado sobre dois pés e que
discursa sobre o conceito de melancolia. O primeiro corpo (pa-
ralisado e mudo, que ocupa o plano baixo da cena) está em luta
constante para se erguer, se deformando a todo tempo em vista
de adquirir uma forma, porém, assim que esta forma é alcançada,
configurando um segundo corpo (sustentado sobre o apoio dos
pés e que ocupa o plano alto), e sua fala se desenvolve, em pouco
tempo são as próprias palavras que começam a se desmanchar,
fissurando a narrativa e criando lacunas no discurso. O sujeito
verbal se congela, as palavras sofrem interrupções, ficam suspen-
sas no ar. A suspensão do sujeito designa um estado de cisão
e fracionamento do corpo, refletindo o espaço do discurso do
melancólico. A coreodramaturgia é construída por uma dialética
entre a movimentação e a fala, entre um estado de paralisia e de
furor, em resistência ao seu próprio esgotamento e dissolução.
Diante do colapso da narrativa, como analisado por
Walter Benjamin (2014), me parece que estamos hoje suspen-
sos diante de um estado de exceção tanto corporal/dramatúrgi-
co quanto histórico e social; suspensão que engaja a melancolia
contemporânea e que, paradoxalmente, pode nos ajudar a resistir
ao nosso progressivo apagamento. O corpo melancólico situa-se
na contemporaneidade em uma espécie de síncope liminar entre

130 Célia Gouvêa (Organizadora)


passado, presente e futuro, suspenso por fios contraditórios que
se de um lado paralisam seu corpo/linguagem, de outro, engajam
sua fúria, angústia e qualidade de resistência em oposição ao pro-
gresso a qualquer custo.

Dança no século XXI 131


Referências Bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo. Chapecó: Ed. Argos,


2009.
BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. Belo Horizonte: Ed
Autêntica, 2015.
_________________. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 2014.
_________________. O Anjo da História. Belo Horizonte: Ed.
Autêntica, 2013.
_________________. Paris, capital du XIX siècle. Le Livre des Passages.
Paris: Les Éditions du Cerf, 1989.
DIÉGUEZ, Ileana. Escenarios y teatralidades liminales. Prácticas artís-
ticas y socioestéticas. Revista ARTEA – Investigación y creación escéni-
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KRISTEVA, Julia. L’Infigurable mélancolie (artigo); Magazine
Littéraire. Paris, setembro, 1990.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac & Naify,
2002.

132 Célia Gouvêa (Organizadora)


Sobre a autora

Nathalia Catharina

Bailarina, diretora, dramaturga, educadora e atriz. É


bacharel em Comunicação e Artes do Corpo (PUC-SP) e mes-
tranda em Teoria e Prática do Teatro – linha de pesquisa Texto
e Cena – no Departamento de Artes Cênicas da ECA – USP,
com pesquisa sobre a dramaturgia de um corpo melancólico, com
apoio da bolsa Capes.

Dança no século XXI 133


134 Célia Gouvêa (Organizadora)

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