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ESTRATÉGIAS DE CRIAÇÃO COMO ESTRATÉGIAS DE EXISTÊNCIA

Flavia Meireles, mestranda em artes visuais EBA/UFRJ, artista, professora,


pesquisadora e coordenadora do projeto “Reestruturando Histórias da Dança”

Resumo do artigo: Este artigo visa compartilhar algumas questões que tem,
recentemente, me estimulado na pesquisa em artes - especialmente na relação
entre artes visuais, dança contemporânea e performance. Minha intenção é traçar
estratégias que possibilitem o estabelecimento de redes de compreensão entre o
fazer artístico e o mundo em que ele se insere, focando a experiência da dança pós -
moderna americana e a relação entre as artes visuais e dança. Conceituo
‘estratégias de criação’ como estratégias de existência, apontando alguns exemplos
na dança pós-moderna americana e relatando recente experiência de retrospectiva
da obra de Yvonne Rainer. Intuo que a noção de estratégia de criação/existência, tal
como procuro formular, sirva, provisoriamente, como ferramenta de leitura de
determinado criador ou contexto. Até onde elas servem e como aproximá-las de
outras experiências são questões que me inquietam e tenho vontade de construí-las
em conjunto, justamente em rede, para que eu seja por elas amparadas quando me
deparar cotidianamente com o fazer artístico.

Abstract: This article aims to share some issues that have recently encouraged me in
the research in arts field - especially the relationship among visual arts,
contemporary dance and performance. My intention is to establish strategies that
enable the understanding between the artistic field and the world in which it operates,
focusing on the experience of American post-modern dance and the relationship
between the visual arts and dance. I conceive 'creation strategies' as existing
strategies, pointing out some examples in American post-modern dance and
reporting a recent experience of Yvonne Rainer’s presentations of retrospective
work. I guess that the notion of ‘creation strategy’as I try to conceive serves
provisionally as a tool for reading a certain artist or context. As far as they serve and
how to approach them from other experiments are issues that I wish and I want to
build them together, on a network basis, so that I may be supported by them in the
future.

palavras-chave: dança, artes visuais, performance, estratégias


key-words: dance, visual arts, performance, strategies
Este artigo visa compartilhar algumas questões que tem, recentemente, me
estimulado na pesquisa em artes - especialmente na relação entre artes
visuais, dança contemporânea e performance. Além disso, ele é também
fruto da reflexão sobre/com artistas que me “cutucam” o pensamento, abrindo
horizontes em que a invenção de modos de viver/pesquisar constitui tônica.

Falo da perspectiva de artista/pesquisadora que a todo momento retoma


seus próprios interesses e que lança mão de múltiplas metodologias tentando
se situar com distância crítica em relação às referências que traz nesse texto
como estudos de caso. Entendo que o fazer artístico está conectado a outros
agentes culturais, políticos e sociais, vi nculados no tempo e na história.
Minha intenção é traçar estratégias que possibilitem o estabelecimento de
redes de compreensão entre o fazer artístico e o mundo em que ele se
insere, focando a experiência da dança pós-moderna americana e a relação
entre as artes visuais e dança.

Para tal, tomo como base de reflexão o que nomeio ‘estratégias de criação’,
que são os procedimentos inventados pelos artistas em resposta a uma
necessidade, pergunta ou contexto. Tais estratégias poderiam também ser
formuladas como ‘estratégias de existência’ já que a criação, a invenção
muitas vezes se relaciona com novos modos de existência.

Concebo estratégias de criação (ou de existência) a partir do entendimento


flusseriano acerca das estratégias 1 , que busca na etimologia da palavra
estratégia – posteriormente apropriada pelo vocabulário militar – que em seu
radical se liga a stratos, camadas, superfícies. Estas camadas, numa
imagem, assemelham-se a peles, isto é, superfícies suficientemente
consistentes mas que guardam porosidade, que são passíveis de serem
combinadas e extravasadas. Ademais, as peles confundem categorias de
interioridade e exterioridade, a exemplo da já bastante conhecida fita de
Moebius. Distanciam-se, portanto, de couraças ou meramente superposição
de superfícies, pois são plásticas e permeáveis. As estratégias de criação
são, então, operações sensíveis, onde mutação e permeabilidade são modos
de fazer (examino a minha própria pele e penso em algumas formulações
sobre suas propriedades).

Arte experimental, anos 60, Nova York.


O campo entre dança e as artes visuais.

A arte com a qual irei me relacionar é uma arte centrada no corpo e em


novos modos de produção e organização. Usarei como campos artísticos
particularmente as artes performáticas (dança, teatro e performance) e as
artes visuais, assim como o contexto da cidade de Nova York nos anos 60
em relação à primeira década do século XXI.

Os anos 60, período que inicia o meu recorte, representam um marco na


história cultural e política do Ocidente pelas intensas transformações que
então se iniciaram. Transformações essas que incidiram sobretudo no modo
de experimentação e politização do corpo. O Movimento Hippie nos Estados
Unidos, o Tropicalismo no Brasil, as insurreições estudantis em 68 na
Europa, a formulação e a criação das disciplinas em estudos culturais, o
surgimento dos estudos biopolíticos por Michel Foucault, Gilles Deleuze e
Félix Guattari, são representativos dessas mudanças, que, através de
desdobramentos múltiplos e singulares, ecoam até nossos dias.

A dança também foi profundamente transformada nesse período, através do


questionamento dos cânones que até então direcionavam o fazer artístico
nessa área. Desde o projeto ético-político da chamada dança pós-moderna
norte-americana, formada pelo grupo da Judson Dance Theatre, até os
experimentos de artistas como Klauss e Angel Vianna e Graciela Figueroa no
Brasil, o que se viu foi uma multiplicação das possibilidades de pensar o que
pode ser dança, desvinculada de padrões estéticos pré-definidos.

É a partir dos anos 60, também, que existe mais espaço para o hibridismo
que alarga o campo de atuação das artes, aproximando arte e vida, seja
através da instauração de situações ou através do corpo como suporte da
obra-de-arte, como é o caso dos happenings e das performances. Neste
momento onde a dança pós-moderna americana aparecia, estas formas
híbridas ganhavam força e as correspondências são inevitáveis não só em
termos de estratégias de criação, mas também entre seus agentes, isto é, a
colaboração na criação de artistas não treinados na dança, a exemplo de
Robert Morris, Carolee Scheemann e Robert Rauschenberg.

Situando historicamente e num só fôlego, considera-se dança pós-moderna


americana um grupo de artistas vindos de uma série de workshops
ministrados por Robert Dunn, discípulo de John Cage, no estúdio de Merce
Cunningham nos anos 1960-61. No estúdio de Merce Cunningham, unindo
artistas com formação em dança, música e artes visuais que o grupo iniciou
seus experimentos os quais foram levados mais longe, dois anos depois, no
espaço de uma igreja protestante (a Judson Church) em Greenwich Village.
Surgia então a Judson Dance Theatre, onde havia apresentações
autointituladas de performances ou concertos, ocupando o espaço livre da
igreja.

É importante ressaltar que, embora coletivo, no âmbito da criação o sistema


era colaborativo: cada artista tinha suas próprias ideias (a função-autor não
foi abolida) e chamava outros artistas do grupo para colaborar em suas
criações, como pontua Yvonne Rainer 2 . Mais do que um projeto estético
comum era um projeto ético-político (não como uma bandeira mas como uma
prática) que se inaugurava com a abertura para não-dançarinos.

Meu olhar se interessou realmente pela dança pós-moderna americana


quando percebi que a dança pós-moderna americana são, na verdade,
danças pós-modernas norte-americanas. Duas decorrências desta alteração:
1. essas danças contêm em si uma multiplicidade de agentes vindos de
muitos lados e que as marcam diferentemente, transformando suas
características em referentes elásticos e contamináveis e que 2. seus
agentes desenvolvem seus projetos em relação à história e ao contexto
norte-americano. Essas duas observações mudam bastante coisa.
Compreendo então a dança pós-moderna aqui descrita como apenas parte
de uma história aberta e engendrada a partir de uma localidade, o que
permite me situar fora de uma relação linear e progressista com o tempo.

O que se passa é que vejo o aparecimento de redes e conexões entre os


referentes ao longo do tempo, as estratégias de criação e domínios artísticos
que vão se mostrando mais intrincados, tal como uma pele que, se vista de
perto, mostra sua complexidade. Penso que a noção de rede comporta
melhor o alargamento de campo que a arte desta época propõe.

Algumas estratégias de criação/existência

Vale a pena olhar nas danças pós-modernas americanas, algumas


estratégias de existência/criação de alg uns de seus criadores. Uma vez mais,
nomeio suas estratégias como de existência/criação, pois elas são, ao
mesmo tempo, uma resposta singular ao entorno norte -americano (uma
possibilidade de existência 3) e um artifício próprio à criação.

Os agentes destas danças vêm de distintas formações e revezam papéis nos


trabalhos: ora Yvonne Rainer chama Trisha Brown para colaborar (e vice-
versa), ora Robert Morris, vindo das artes visuais, começa a fazer
performances, ora dança com Yvonne Rainer, ora Steve Paxton mistura
dançarinos e não-dançarinos em seus trabalhos, e tantas outras
combinações e possibilidades sejam desejáveis entre os seus agentes. Esse
variado background e mobilidade nos ‘papéis’ assumidos nos trabalhos cria
uma rede temporária e móvel desmontando hierarquias e usando da
hibridação como motor de criação. Não é surpresa aparecerem mo vimentos
cotidianos e found movements4 nessas danças, como resultados que podem
ser ao mesmo tempo, pontos de partida.

Outra estratégia de existência/criação bastante recorrente, ligada à


composição: a utilização de tarefas (tasks) como geradoras de movimento,
com ênfase na justa energia de fazer (em contraposição à representação, ao
ilusionismo) e também a criação de jogos (games) com regras estritas
(scores) para atuação.

Nova York, Yvonne Rainer, século XXI

Dito isto, neste ponto, começo a tatear caminhos mais recentes em termos de
datas e fatos, e mais perpassados por uma leitura ainda fresca a partir de
uma recente experiência que se iniciou em 2009 com a artista norte-
americana Yvonne Rainer, radicada atualmente em Nova York.

Em 2009, organizei o evento “Yvonne Rainer e amigos”, palestra-conferência


e performance da referida artista e convidados no Rio de Janeiro, onde pude
ter contato estreito com a obra e com a artista, e perceber sua enorme
contribuição para o desenvolvimento das artes cênicas e audiovisuais. Nesta
ocasião, por meio de conversas e textos que me chegaram às mãos através
de uma de suas colaboradoras (Patrícia Hoffbauer, uma das “raindears” -
como são chamados os colaboradores de Rainer), pude intuir, fato que me foi
confirmado em subsequente palestra de Rainer no Whitney Museum, em
2011, que o movimento da dança pós-moderna norte americana influenciou
simultaneamente o campo das artes visuais e da dança.

Mais uma nova oportunidade de aproximação de Rainer e sua obra, em


outubro de 2011, através da minha ida a Nova York para acompanhar a
retrospectiva da obra de Yvonne Rainer na instituição Dia Art Foundation.
Nesta ocasião ela apresentou as danças dos anos 60 a fim de “celebrar a
5
profundidade da [sua] contribuição para a dança e artes” . Fiz um
acompanhamento desta artista e compilarei material inédito sobre esta
ocasião ao longo do ano de 2012/2013 como mestranda no Programa de
Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
sob orientação da Profa. Dra. Giselle Ruiz. Esta fala é uma primeira
articulação sobre essa experiência, um balbuciar que tenho o prazer de
compartilhar aqui. A viagem foi possibilitada pelo Programa de Intercâmbio e
Difusão Cultural do MINC.
A retrospectiva da obra de Rainer aconteceu em uma instituição de artes
visuais: o Dia Art Foundation, em Beacon, a 40 minutos de Nova York, um
lugar bucólico com os acampamentos ensolarados com luzes de outono.
Nesta instituição está reunida boa parte das coleções de arte minimalista e
conceitual a partir dos anos 60, com presença de obras como as de Bruce
Nauman, Robert Morris, Richard Serra, Carl Andre, entre outros. A lista é
extensa. Yvonne e seus “raindears” - Rainer mantem uma companhia com
atualmente cinco integrantes, de idades entre 30 e 78 anos, que moram em
Nova York e na Europa - se apresentaram no porão desse museu, num
espaço multiuso com arquibancadas e colunas (que lembram às colunas do
espaço de apresentação da Judson Church). No programa da retrospectiva,
que reencenou o trabalho inicial de Rainer, a curadora Kelly Klivland nos
conta:
Central para a prática mais reconhecida de Yvonne Rainer está

uma inegável, enérgica rebelião. Imediatamente a partir de sua

emergência como coreógrafa, no início dos anos 60, Rainer se

distinguiu por ativamente desafiar as convenções do movimento

expressivo e a estrutura narrativa popularizada pela

estabelecida dança moderna. Inspirada por seu interesse no

cotidiano, Rainer foi pioneira numa linguagem autônoma de

dança – radicada em considerar o corpo como objeto material –

que enfatiza as nuances de movimentos orientados por tarefas

e trouxe atenção para a fisicalidade do corpo.6

Quando a prática coreográfica de Rainer se desenvolveu durante os anos 60,


sua pronunciada preferência por uma “persona neutra” (que ela rediscute
recentemente na palestra/performance - “Onde está a paixão? Onde está a
política? ou Como eu me interessei pela ‘mimesis’, por aproximações e
acabei correndo em volta dos meus Selfs e Outros, e Onde eu olho quando
você está olhando para mim?”, de 2009), juntamente com sua adesão aos
movimentos simples, não-adornados – andar, correr, cair, interagir com
objetos – ecoaram e promoveram influência recíproca em alguns preceitos
nas artes visuais. Ao longo da década, Rainer continuou sua imersão com
uma comunidade de artistas que incluíam Carl Andre, Donald Judd, Simone
Forti, Robert Morris, Richard Serra e muitos outros que estavam associados à
estética minimalista.

É interessante notar como, no contexto norte-americano, estas experiências


singulares de dança e artes visuais do período se influenciaram mutuamente .
Isso me confirma um dado, que eu antes somente intuía, sobre a penetração
que o pensamento de Rainer teve nas artes visuais norte-americanas.

Sobre as estratégias de criação/existência, assombros e cutucadas tem sido


meus companheiros cotidianos: compreender a recente experiência com
Yvonne Rainer e relacioná-la com minha experiência singular como artista,
tecendo, talvez, um texto-pele, que articule a noção de estratégia de criação.
Intuo, mais uma vez, que a noção de estratégia de criação/existência, tal
como acima formulada, sirva, provisoriamente, como ferramenta de leitura de
determinado criador ou contexto. Até onde elas servem e como aproximá-las
de outras experiências são questões que me inquietam e tenho vontade de
construí-las em conjunto, justamente em rede, para que eu seja por elas
amparadas quando me deparar cotidianamente com o fazer artístico.

Referências Bibliográficas

FLUSSER, “O universo das imagens técnicas - Elogio da superficialidade”.


Santa Catarina: Annablumme, 2008
KLIVLAND, Kelly. Programa da retrospectiva de Yvonne Rainer. Dia Art
Foundation.

1 in FLUSSER, “O universo das imagens técnicas - Elogio da superficialidade”


2 Entrevista com Yvonne Rainer, Centre National de la Danse, Paris, 2004 (DVD).
3
Em entrevista, Trisha Brown, ao ser perguntada porque teve interesse em fazer peças fora
do estúdio, respondeu que estas eram fruto de uma observação continuada que ela vinha
tendo nos jardins, ao levar seu filho, então bebê, para passear. E dessas observações
surgiram o interesse em trabalhar com “equipamentos” e com o espaço das cidades. Aqui
fica evidente como a estratégia de criação está intrincada à uma possibilidade de existência.
4
Traçando uma correspondência com os ready-mades duchampianos.
5
site do Dia Art Foundation
6
Programa da retrospectiva da obra de Yvonne Rainer, Dia Art Foundation (2011).

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