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Mapas para o Antropoceno Feral Atlas CA1
Mapas para o Antropoceno Feral Atlas CA1
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 19 / Dezembro de 2020 / ISSN 2359-4705
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antropoceno, diferente daquele feito popu- os textos muitas vezes são técnicos e, ainda,
lar por Paul Crutzen. Confiando no potencial soma-se a isso o fato de que a navegação
transdisciplinar do termo, a autora pro- fluente pelas suas quase infinitas possibilida-
põe uma disputa aberta pelo seu sentido, des parece exigir certo domínio dos conceitos
com um “antropoceno remendado” (patchy que o atlas propõe (antropoceno remendado,
anthropocene). Essa outra abordagem para infraestrutura, eventos ferais etc.) e de suas
o antropoceno seria capaz de reconhecer unidades estruturais (detonadores do antro-
manifestações locais e os modos profunda- poceno, tippers e qualidades ferais).
mente diferentes com os quais as mudanças
climáticas e o capitalismo afetam diferen- Minha proposta acabou transformada pelo
tes espécies, territórios, mas também seres desafio que é desvendar o labirinto do Feral
humanos de diferentes raças, gêneros, etnias Atlas. À medida que fui estudando e criando
e classes sociais. O Feral Atlas é um projeto familiaridade com o projeto, o entendi como
grande e complexo, quase faraônico, que uma espécie de labirinto mutante, com
envolveu mais de cem autoras e autores, três entradas, nenhuma saída e múltiplas
para multiplicar e transformar um antropo- transformações internas, que se modificam
ceno remendado. O presente texto é uma enquanto você navega. É muito improvável
espécie de guia de leitura, que visa explorar que você faça os mesmos caminhos a cada
criticamente o Atlas mas também promover nova vez que interaja com site, pois cada
divulgação científica do seu conteúdo. clique abre muitas outras possibilidades de
caminhos para seguir.
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entre vários desses elementos. Antes de porque coloca mais requisitos. Mais amplo
navegar na estrutura do atlas, contudo, um porque permite o uso desse adjetivo para
passeio introdutório por alguns temas e con- uma infinidade de outras coisas que não ape-
ceitos pode nos equipar para navegar melhor nas animais, ou seres que foram alguma vez
em seguida. domesticados por humanos. É por isso que se
pode falar de eventos e efeitos ferais. Even-
tos e efeitos ferais se tornam visíveis quando
Três conceitos para começar buscamos e observamos as infraestruturas
do antropoceno. Apesar desse potencial de
Foram três os conceitos que julguei seminais expansão, o Feral Atlas dedica a noção de
para navegar os mapas com fluência. É prová- feralidade exclusivamente a não-humanos.
vel que quem quer que estude o Atlas tenha
outras sugestões, mas aqui tentei me ater a Infraestrutura é um termo que também
um número que fosse o menor possível. São ganha um sentido mais específico e mais
eles: feralidade, antropoceno remendado amplo no Atlas. No uso corrente tendemos
(patched anthropocene) e infraestrutura. a pensar em barragens ou a rede de ener-
Essa seleção pode se mostrar útil mesmo para gia elétrica, por exemplo, mas aqui seu sen-
aquelas que conhecem a obra de Tsing e que tido exige atenção histórica e sociológica.
trabalham em áreas correlatas, pois o Feral Ainda assim, não se trata da mesma asso-
Atlas dá sentidos bastante específicos para ciação entre infraestrutura e rede, popular
cada um desses conceitos. Por esse motivo, nos estudos sociais da ciência e tecnologia
não devem ser tomados por seu significado (STS). Aqui a atenção deve se voltar para um
mais comum em português ou mesmo por outro aspecto das infraestruturas, que foque
seu sentido mais popular na teoria social nos efeitos materiais não planejados dos
contemporânea. empreendimentos humanos de grande escala
nas paisagens e ecologias. Para ver esses
Começando pela feralidade. Em português efeitos, deve-se perceber relações que esca-
corrente, geralmente entende-se o feral pam à intenção humana. Furar um buraco no
como característica do animal que fugiu da seu quintal pode afetar a ecologia local, mas
domesticação para uma vida selvagem. Bus- nesse sentido de infraestrutura é necessário
cando o significado em inglês, alguns dicioná- pensar nos impactos estruturais da transfor-
rios vão numa direção mais específica e mais mação antropogênica da terra. É como dizer
próxima do Feral Atlas. O Cambridge Dictio- que esses “impactos estruturais” estão vin-
nary, por exemplo, define o feral como aquilo culados ao Antropoceno. Eventos e efeitos
que está em estado selvagem, em especial ferais tornam-se visíveis quando observa-
animais que foram mantidos por humanos mos as infraestruturas de perto e seguindo
outrora. Mas o que caracteriza o feral do feralidades outras infraestruturas se tornam
Atlas? Feral descreve algo que emergiu por visíveis. Assim, poderemos entender, por
meio de projetos humanos mas não é ou não exemplo, que a expansão colonial europeia
pode ser controlado por humanos. Essa defi- tem ligação direta com os surtos de febre
nição deixa o termo mais específico e mais amarela nas Américas: o Aedes aegypti, vetor
amplo ao mesmo tempo. Mais específico da febre amarela e de várias outras doenças
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virais, era um animal exótico ao continente revelaria uma falta de preocupação com
americano até ter sido transportado até aqui justiça social. Um antropoceno remendado
nos navios negreiros que carregavam pessoas exige atenção às diferenças de classe, terri-
escravizadas oriundas do continente africano tório, raça, gênero, etnia e espécie. Por fim,
(EBRON, 2020). A expansão genocida do colo- a dimensão espacial, para além da tempo-
nialismo europeu teve um efeito feral, não ral, que esse outro antropoceno exige (uma
planejado, onde navios repletos de pessoas das razões pela escolha de um Atlas, talvez).
escravizadas se tornaram um ambiente de São pelas paisagens modificadas que podere-
abundância de alimento para o mosquito, mos ver as infraestruturas e eventos ferais e,
que acabou transportado ao continente para esse objetivo, os relatórios de campo se
americano. As epidemias de dengue, febre tornam a metodologia mais apropriada.
amarela, zika e chikungunya que ocorrem no
Brasil contemporâneo têm sua dívida com a Tendo esses três conceitos como ferramentas
colonização europeia e com o encontro ines- vamos ao Feral Atlas em si e entenderemos
perado de diferentes infraestruturas, huma- como ele se organiza, com um princípio em
nos, não-humanos e paisagens transformadas mente: precisamos aprender a contar his-
por esses encontros. Em resumo, no Feral tórias terríveis. Feralidades podem ser pro-
Atlas infraestruturas são projetos humanos fundamente destrutivas e podem recuperar
com impactos sociais e na paisagem, não pla- paisagens destruídas. O Atlas quer contar
nejados e de grande escala. histórias que vão além do salvacionismo e
catastrofismo (FERAL ATLAS AS A VERB, 2020).
Por fim, chegamos ao antropoceno remen-
dado (patchy anthropocene). O que o Feral
Atlas pensa como antropoceno leva em consi- Infraestruturas reveladas
deração um recorte histórico específico, que
são os últimos 500 anos. Ao invés de entrar No último dia 28 de outubro, Anna Tsing lide-
em disputa aberta pelo evento histórico ou rou um evento online produzido pelo Cen-
indício material que marcaria o início do ter for Cultural Studies da Universidade da
antropoceno, aqui emerge um antropoceno Califórnia em Santa Cruz. O evento trazia
mais amplo, com a minúsculo, que considera a antropóloga para introduzir o Feral Atlas
vários deles (que serão descritos em seguida aos interessados. Marcado como reunião no
como “detonadores do antropoceno”). A tra- Zoom, para permitir a participação direta
dução “remendado” pode não ser a ideal, mas daqueles que fizessem inscrição prévia, essa
é um esforço de alcançar três de suas princi- forma de evento foi abortada no dia anterior
pais características. Primeiramente, rebater ao evento. Ao menos para a maioria dos ins-
a ideia de um antropoceno que só possa ser critos. Todas e todos que se inscreveram para
entendido de modo global, apagando seus o evento receberam um email informando
aspectos locais e a diferente gravidade com que o evento no Zoom seria destinado ape-
que as mudanças climáticas atingem dife- nas ao corpo docente e discente da UCSC,
rentes habitantes da terra, humanos e não- aos demais restando acompanhar um strea-
-humanos. Em segundo lugar, o termo reage ming no Vimeo, sem a possibilidade de inte-
a uma crítica de que estudar não-humanos ragir com o evento, contudo. A debatedora
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informou que a expectativa para o evento site. Boa parte dos presentes, tanto do lado
era de oitenta inscritos e até o dia anterior mudo como do lado de Santa Cruz, seguiram
ao evento já havia mais de dois mil – quanti- a orientação, pois o site voltou a ficar aces-
dade de pessoas que de fato se mostrou pre- sível. Na sequência, contudo, alguns dos que
sente no streaming feito pelo Vimeo. puderam fazer perguntas deixaram explícito
que não seguiram a orientação, pois faziam
Ainda que seja verdadeira a justificativa, perguntas específicas enquanto navegavam
uma conversa com colegas brasileiros que pelo Atlas.
também participaram do evento mostrou
um incômodo compartilhado. Primeiro por- Faço esse relato porque o considero impor-
que nos pareceu equivocado que imaginas- tante para localizar alguns problemas que
sem que um evento online, com divulgação fazem parte de um antropoceno remendado.
e inscrições abertas a todo o mundo, com a Por que usá-lo de introdução ao guia? Porque
participação de uma acadêmica conhecida sigo a sugestão que Anna Tsing ela própria deu
como Anna Tsing, pudesse atrair um número no evento: para entender um antropoceno
de pessoas que mal encheria um auditório. mais que humano, comece das infraestru-
Depois, a decisão em fazer do evento no turas e dos efeitos não previstos associados
zoom exclusivo para a UCSC nos pareceu a elas. Um evento para o lançamento do
contraditória com a proposta política do site não deixou dúvidas que as infraestrutu-
Feral Atlas, ao reforçar infraestruturas que ras que compõem o Feral Atlas também são
marcam diferenças. Do lado dos participan- compostas de remendos de diferença. Uma
tes mudos vimos do outro lado alguns ros- característica do site mostra isso com pre-
tos mundialmente conhecidos, como Donna cisão: repleto de animações, sons, vídeos e
Haraway e James Clifford, apenas para citar movimento, o site é muito demandante de
alguns. As perguntas para Anna Tsing ficaram banda e de uma conexão estável. Entrei no
restritas àqueles que participaram do evento site incontáveis vezes nos últimos trinta dias
pelo Zoom. Essa situação revelou e reforçou e não foram raras as vezes que não conse-
infraestruturas, mas não foi a única a fazer o guia acessá-lo por alguma instabilidade na
mesmo em torno do site. rede de minha casa – que é de banda larga
por cabo e custa cerca de R$120 mensais.
Em certo momento de sua apresentação, Além disso, o acesso por dispositivos móveis
Tsing sugeriu que navegássemos todas juntas é quase impossível, não apenas pelo grande
pelo Atlas, para percorrer na prática alguns consumo de dados que o site exige, mas por-
caminhos dentro do labirinto. O que aconte- que o Atlas foi pensado para ser visto numa
ceu em seguida foi que o site caiu, incapaz tela grande. Em suma, há várias camadas de
de lidar com tantos acessos simultâneos, o infraestrutura que selecionam quem pode
que gerou atraso e certa confusão no evento. navegar no site como ele foi imaginado e isso
Se infraestruturas se tornavam visíveis, apa- o torna mais complicado e bom para pensar.
recia também um efeito feral correlato. Por Não há dúvidas que são mapas pensados para
fim, a debatedora solicitou às/aos presentes serem lidos em condições ideais e, sabemos
que deixassem o site para que a própria pales- bem, condições ideais tornam o acesso muito
trante projetasse sua tela em navegação pelo mais difícil para alguns que para outros.
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INVASÃO: Esse detonador tem como refe- Como disse antes, os detonadores do antro-
rência a invasão dos europeus ao continente poceno são as estruturas de maior escala den-
americano. A palavra, contudo, não marca tro do Atlas e somente a eles é dedicado um
exatamente uma data, porque tem o sen- mapa. Cada relatório de campo é associado a
tido expandido para as invasões que ocorrem um dos quatro mapas, e alguns poucos a dois.
ainda hoje e aos efeitos direta ou indireta- Há, contudo, mais duas estruturas de menor
mente relacionados às primeiras invasões escala que cruzam os relatórios de campo.
europeias. A maioria deles estão associadas a apenas um
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que compõem o mosquito no Atlas. No caso, o uma série de outros que fazem parte de sua
detonador IMPÉRIO, o tipper CROWD e várias composição. Imagens produzidas para esse texto,
qualidades ferais. O mesmo vai acontecer em não estão no Atlas. Aedes aegypti (7); EMPIRE (8).
caso de interação com outras palavras.
A variação escalar a qual me referi tam-
bém aparece de outras formas. Quando as
usuárias e usuários abrem um relatório de
campo, passagens do texto ficam marcadas
e mostram outras possibilidades de nave-
gação. Cada um dos retângulos que juntos
compõem o círculo Aedes aegypti (Figura 8)
tem seu link navegável em partes marcadas
do texto escrito por Paulla A. Ebron. Além
disso, o pé da página sugere outras figuras
Figura 6 - Colocando o mouse sobre uma figura ferais associadas que podem dar prossegui-
feral, o super index dá destaque ao conjunto mento ao labirinto. Em resumo, os caminhos
que faz a composição do relato de campo. Traços são infinitos porque há sempre a possibili-
vermelhos feitos por mim. dade de comparar duas figuras ferais ou mais
por uma característica em comum ou por
características diferentes. O labirinto exibe
combinações, mas nós podemos criar outras
combinações com o conteúdo do Atlas.
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4. A gaveta revirada
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a potência das histórias que virão depois de TSING, Anna. The mushroom at the end of the
muitas visitas aos labirintos mutantes e suas World: on the possibility of life in capitalist ruins.
Princeton University Press, 2015.
gavetas.
Referências
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