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(LIDO) A Religião, A Ciência e A Psicanálise - Sidi Askofaré
(LIDO) A Religião, A Ciência e A Psicanálise - Sidi Askofaré
e a Psicanálise
Sidi Askofaré
PERCURSO 43
É preciso identificar o que na Psicanálise se apre-
senta como retorno do religioso e do científico, um empobrecimento, uma espécie de estruturalismo espon-
para que a direção do tratamento seja a da eman-
cipação do sujeito tanto em relação ao discurso
tâneo e selvagem: e se as coisas sérias, as coisas realmente in-
da religião quanto ao discurso da ciência. teressantes e decisivas – não é um dos sentidos da orientação
Palavras-chave genealogia da Psicanálise; ciência; re- borromeana do último ensinamento do Lacan? – começas-
ligião; Kant; dialética; Lacan.
sem em três, e até mesmo em quatro? Examinar a tríade re-
Tradução: Fernanda Mendes / Revisão: Eliana Borges ligião/ciência/Psicanálise, em vez dos três binários (religião e
Pereira Leite e Renato Mezan ciência, ciência e Psicanálise; Psicanálise e religião), é de certa
Sidi Askofaré é psicanalista da École de Psychana-
lyse des Foruns du Champ Lacanien, diretor do
forma colocar essa hipótese à prova.
Departamento “Découverte Freudienne” da Uni- No entanto, a questão principal permanece: como abar-
versidade de Tolouse 2 (Le Mirail), e diretor de car um tema tão monstruoso? Monstruoso por sua dificulda-
pesquisa do Laboratório de Psicopatologia Clíni-
ca e Psicanálise das universidades de Toulouse 2,
de, por sua complexidade e por sua gravidade. Dificuldade,
Provence e Paul Valéry (Montpellier). porque cada um dos termos remete a um campo de saberes e
de práticas específicas das quais é difícil ter um conhecimen-
to igual e aprofundado; complexidade, porque as ligações, re-
lações e articulações entre esses três campos não são simples,
nem unívocas, nem pertencem a um contínuo. Nelas estão em
que chamamos “o retorno do religioso” (como ou seja, separadas, proibidas, crenças e práticas
dizemos o retorno do recalcado). que unem em uma mesma comunidade moral,
A questão é no fundo – é por isso que me chamada Igreja, todos aqueles que a ela aderem”.
parece grave: qual o lugar da Psicanálise, entre o É a esta definição, embora canônica, se pos-
retorno fundamentalista, integrista e/ou sectá- so dizer, que objetava recentemente o filósofo e
rio do religioso, e a dominação de um discurso midiólogo Régis Debray:
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to às formas, aos tipos e às encarnações. vemos bem que, se a religião tem parte nisso, não
O que permanece é que há, se não religião, se trata de qualquer uma. Acontece que, histori-
em todo caso o religioso. Nele ocorrem – não camente (por necessidade ou por contingência?),
apenas copresentes, mas interligados – a cren- foi ao cristianismo que coube – é certo que com 11
ça partilhada em uma transcendência (ou seja, alguma resistência: imaginemos, para dizer o
Assim, à primeira pergunta quem responde a nenhuma dessas perguntas, ao menos nas for-
é a ciência. Com efeito, “o que posso saber” (para mulações e acepções kantianas. Certamente, nela
Kant, isso significa conhecer pela experiência e se trata de saber, mas tal saber não é nenhum
pela razão) se refere à Natureza – o fisicamente conhecimento, e menos ainda conhecimento da
natural, na medida em que obedece ao princípio Natureza. Certamente, nela se trata igualmen-
da identidade e ao princípio da causalidade. E te de ação, e mesmo de ato, mas seu princípio e
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se posso saber algo dela, isso se deve à ciência, à sua força não dependem da obediência a uma lei
aplicação do método científico tal como se dese- moral transcendente. Claro, podemos esperar al-
nha na obra de Isaac Newton. A essa pergunta guma coisa de uma análise, mas a Psicanálise em
corresponde, portanto, a primeira Crítica, a Crí- si não promete nada. Por sua operação, ela torna
tica da Razão Pura. algo possível, mas a realização desse “algo” depen-
A questão “o que devo fazer?” é respondida de ao menos em parte do sujeito que se submete
pela moral enquanto não dedutível de qualquer a ela. Lacan o formula assim: “trazer à luz o in-
saber positivo. Kant a examina primeiramente consciente do qual você é sujeito”.
nos Fundamentos da Metafísica dos Costumes, e, A Psicanálise não se confunde tampouco com
na segunda Crítica – a Crítica da Razão Práti- a quarta e última questão: “o que é o homem?”.
ca –, propõe sua abordagem transcendental. Com efeito, ela não é nem uma antropologia
Uma vez feito dever enquanto sujeito moral, nem um humanismo. Não opera sobre o ho-
posso indagar: “o que me é permitido esperar?” É mem – que não é nada sem Deus –, mas so-
a essa questão que responde a religião. Kant trata bre um sujeito, um “sujeito real”, quer dizer, um
dela – e o título de seu opúsculo basta para indicar “falaser”. Por este motivo, a Psicanálise só pode
que está longe de a assimilar à fé do carvoeiro – se situar nas questões kantianas subvertendo-
em A Religião nos Limites da Simples Razão. -as todas, e substituindo a última por “o que sou
Na perspectiva crítica, os campos estão cla- eu?”, “quem sou eu?”, “qual o objeto que, enquan-
ramente identificados e nitidamente separados. to causa, me faz desejante?”
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. Tese: a religião. E aqui “religião” não quer melhor definição que guardei dela, e que data
dizer simplesmente dizer “cristianismo”, ainda dos meus anos de formação, a de Louis Althus-
que, para Hegel, seja este que realize a essência ser: “ultrapassagem que conserva o ultrapassado
dela. A religião é, como indiquei acima, o reino como ultrapassado interiorizado”. 13
da heteronomia absoluta: heteronomia do ho- Nessa perspectiva, podemos dizer que a Psi-
. Não há religião sem linguagem, sem fala e (como polo de defesas) são os operadores que per-
sem discurso; não há religião sem crença, sem mitem compreender o modo específico para tratar
laço, sem comunidade. do gozo que cada discurso propõe e garante.
É nesse ponto, em torno do que se passa
Penso que isso basta para considerar que em relação ao gozo, do lugar que lhe é reservado
o religioso não é uma superestrutura, no senti- no dispositivo discursivo, que se manifestam as
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mar de clínica. Religião, ciência e Psicanálise são Se fosse preciso definir a religião quanto
apenas práticas e instituições. Embora as duas ao real de que ela trata, pelo simbólico e pelo
primeiras não tenham sido elevadas por Lacan à imaginário, eu diria que é o real da origem,
condição de discursos fundamentais, são também o real do pai, e em última instância o real do 15
discursos, em outras palavras, laços sociais fun- tempo e da morte. Façam desaparecer a ques-
Canguilhem G. (1968). Qu’est-ce que la psychologie? In Études d’histoire et de Abstract This lecture deals with the connections between religion,
philosophie des sciences. Paris: Vrin. science and Pychoanalysis according to three viewpoints: histori-
Debray R. (2005). Les communions humaines. Pour en finir avec “la religion”. Paris: cal, critical – in a Kantian sense – and psychoanalytical. In an era in
Fayard. which technoscientific ideology pervades subjectivity and when a
return to religious fundamentalisms is under way, is there a place for
Lacan J. (1974). Télévision. Paris: Le Seuil. Psychoanalysis? The author claims that the latter cannot be unders-
_____. (2002). Les complexes familiaux dans la formation de l’individu. In Autres tood without investigating its genealogy. For, although it is neither a
écrits. Paris: Le Seuil. science nor a religion, it was determined by both. Also, if we want
treatments to go towards emancipation of the patient from both the
discourses of science and of religion, it is necessary to detect whate-
ver subsists of them in Psychoanalysis.
Keywords genealogy of Psychoanalysis; science; religion; Kant; dia-
lectics; Lacan.