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john rink

SOBRE A
PERFORMANCE
O ponto de vista da musicologia1

JOHN RINK
University of Cambridge
jsr50@cam.ac.uk

1 Uma versão anterior desse ensaio foi publicada em Psychology of Music 31 (2003),
303–23; a versão usada neste artigo foi adaptada e atualizada pelo autor. O texto foi traduzido
para o português por Pedro Sperandio. A revisão foi realizada pelo Prof. Mário Videira.

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revista música 13||nno o1,1,p.p.32-60,
32-60,ago.
ago.2012
2012
sobre a performance

RESUMO

Este artigo examina uma série de abordagens musicológicas em relação à


performance musical. Aborda-se, primeiramente, o lugar da música erudita
ocidental no âmbito do mundo da performance em geral; em seguida, con-
sideram-se os meios retrospectivos pelos quais os musicólogos investigaram
performances individuais e as diversas questões relacionadas. Em seguida, a
discussão se volta para a aplicação prática da pesquisa à performance. Um
estudo de caso do Noturno em Mi bemol maior Op. 9 No. 2 de Chopin de-
monstra como as lacunas entre a pesquisa e a prática podem ser preenchidas
de modo a realçar o momento de verdade que cada performance representa.
A ênfase é colocada sobre a necessidade tanto de uma mediação como de
uma compreensão contextualizada do que quer que seja que a investigação
histórica, analítica, bem como outros modos de pesquisa, possam oferecer ao
intérprete.

palavras-chave: Chopin; variantes composicionais; musicologia histórica;


análise musical; práticas interpretativas; “conceito de obra”.

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john rink

IN RESPECT OF PERFORMANCE: THE VIEW FROM MUSICOLOGY

ABSTRACT

This article surveys a range of musicological approaches to musical


performance. It first addresses the place of Western art music within the world
of performance at large; it then considers the retrospective means by which
musicologists have investigated individual performances and the manifold
issues related to them. The discussion turns thereafter to the practical
application of research to performance. A case study of Chopin’s Nocturne
in E-flat major Op. 9 No. 2 demonstrates how the gaps between research
and practice might be bridged to enhance the moment of truth that each
performance represents. Emphasis is placed on the need for both mediation
and a contextualized understanding of whatever it is that historical, analytical
and other modes of research might offer the performer.

keywords: Chopin, compositional variants, historical musicology, music


analysis, performance practice, ‘work concept’

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sobre a performance

O MUNDO DA PERFORMANCE

O
ato de fazer música não considerações isoladas sobre “a mú-
apenas é uma “atividade sica” e suas respectivas práticas inter-
humana virtualmente uni- pretativas, típicas dos trabalhos mu-
versal”, mas “ao longo dos tempos e sicológicos mais tradicionais.
das civilizações do mundo é a expe- Porém, apesar de a musicolo-
riência musical real, direta e ao vivo gia poder alegar ser uma “disciplina
[...] que parece ter sido integral à [...] abrangente”, a arte musical ocidental
cultura humana” (DUNSBY, 2000, p. tradicionalmente tem estado (e, em
346). Estas referências à universali- certa medida, continua) firmemen-
dade e às civilizações do mundo são te posicionada “no centro” (NET-
salutares, na medida que os acadê- TL, 1999, p. 301). Ao me focar nesse
micos passam a reconhecer cada vez centro, desejo evitar os problemas
mais a necessidade de uma perspec- que têm perseguido as pesquisas
tiva global no estudo da performan- musicológicas do passado tomando
ce musical, independentemente do o caminho de maior resistência; re-
foco individual de suas iniciativas de sistindo a quaisquer suposições de
pesquisa (e, como irei argumentar, a que a música ocidental seja funda-
especificidade é, ao mesmo tempo, mentalmente superior às outras mú-
desejável e inevitável). A pesquisa sicas; resistindo a uma divisão estrita
etnomusicológica serve como um entre tradições escritas e orais (por
modelo útil, com sua atenção tipica- mais sofisticado que seja, nosso siste-
mente voltada à performance como ma de notação musical não consegue
evento e processo, em oposição às capturar todos os elementos de uma

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performance); resistindo à distinção O QUE ACONTECEU?


dominante entre composição e im-
provisação2; e resistindo àquela du- Conforme indiquei acima, os musi-
radoura noção de obra musical que cólogos se concentram tipicamente
ignora o fato de que a música surge a e de maneira retrospectiva nos atos
partir da performance, e dela depen- individuais de performance, no que
de. Nicholas Cook encorajava os mu- está por trás destes, e nos contextos
sicólogos não apenas a lembrar que ou circunstâncias particulares que os
“música é uma arte da performance”, cercam4. No âmbito de qualquer mu-
mas também a dissolver “qualquer sicologia da performance ocorre uma
distinção estável” entre performan- tensão inevitável entre generalidade e
ces e obras, pensando, ao invés disso, especificidade, dada a vasta gama de
“num número ilimitado de instancia- tipos de performance e as questões
ções ontologicamente equivalentes, que aí intervêm e que surgem a par-
todas elas existentes sobre um mes- tir daí, exigindo certa atomização de
mo plano ‘horizontal’”3. Retornarei maneira a sustentar um enfoque inte-
a estes pontos mais tarde, após fazer ligível acerca do assunto em questão.
um levantamento das maneiras pelas Paradoxalmente, tanto os pontos de
quais a musicologia tem investigado vista mais próximos quanto os mais
a performance até a presente data. periféricos podem ser necessários, se

2 Carl Dahlhaus (1979, p. 9-23) afirma em seu ensaio “Was heißt Improvisation?”, que
estas [distinções] existem em um continuum; para discussão cf. John Rink (2000, p. 117-21).

3 Cf. Cook (2001, § 7, 16 e 17). O autor (Cook, 2001, § 2) também lamenta a separa-
ção entre música e performance na musicologia, notando que “a linguagem nos leva a cons-
truir o processo de performance como suplementar ao produto que o ocasiona ou no qual ele
resulta; é isso que nos leva a falar bastante naturalmente sobre música ‘e’ sua performance.”

4 Os títulos desta seção e da próxima, respectivamente, evitam a problemática dicoto-


mia entre pesquisa “pura” e “aplicada”, que é às vezes empregada.

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quisermos que uma pesquisa musi- em jogo, e a ampliação gradual dos


cológica possa ser aplicada à prática estudos históricos da performance
e que possa reivindicar alguma via- deve ser genuinamente bem-acolhi-
bilidade musical: um enfoque muito da, justamente no momento em que
limitado nos resultados particulares as barreiras que cercam a música oci-
dessa pesquisa e uma concomitante dental estão ruindo, indefesas.
falta de atenção ao contexto e à sín- De fato, a variedade de tópicos e
tese podem vir a distorcer ou causar modos de investigação que preocu-
parcialidade à concepção e realização pam os historiadores da performance
da performance. está se tornando cada vez mais vas-
A pesquisa psicologicamente ta. Inúmeras fontes de informação
orientada no âmbito da musicologia garantem um estudo minucioso, in-
talvez se preste mais prontamente a cluindo:
uma generalização através de uma
variedade de meios de performance e 1. instrumentos remanescentes
idiomas presentes na música ociden- 2. material iconográfico
3. registros históricos dos mais varia-
tal, do que a uma generalização atra-
dos tipos (ex. contas domésticas, extratos
vés de campos de pesquisa global- postais, contratos, etc.)
mente mais definidos. Não explorarei 4. fontes literárias, tais como: escritos
esse domínio aqui, concentrando-me críticos, cartas e diários
em vez disso na musicologia históri- 5. tratados práticos e livros de instru-
ca, à qual Nettl (1999, p. 303) outro- ção
ra se referiu como “‘musicologia’ par 6. tratados teóricos
7. partituras, incluindo manuscritos
excellence”. O estudo da performance
autógrafos e de copistas, impressões ori-
no âmbito da musicologia histórica ginais e subsequentes de primeiras edi-
não deve se restringir a investigações ções, e todas as edições posteriores
na área de práticas interpretativas, 8. gravações de áudio e vídeo.
tais como estas são tradicionalmente
compreendidas, isto é, “todos os as- A partir destes materiais, pode-se
pectos da maneira pela qual a música buscar um conhecimento aprofun-
é e tem sido executada” (DUNSBY dado sobre questões de interpretação e
2000, p. 349). Há muito mais coisas estilo em relação aos seguintes aspectos:

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1. notação (a qual, como afirmei an- 4. escuta


teriormente, é incompleta e pode ser in- 5. recursos financeiros (ex. Quanto
compreensível) ganharam os músicos? Quais eram suas
2. articulação condições profissionais? Quanto o públi-
3. inflexão melódica co pagou para assistir ao concerto, e o que
4. acentuação isso significou para eles do ponto de vista
5. tempo e alteração rítmica financeiro?)
6. outros aspectos da técnica, relacio- 6. mecenato
nados à estrutura física dos instrumentos 7. instituições de ensino e as práticas
e a questões de produção instrumental e de professores específicos
vocal 8. edição musical (é preciso saber
7. ornamentações improvisadas qual repertório estava disponível, onde e
8. improvisação de maneira geral, quando, e quem teve acesso a ele e o exe-
incluindo acompanhamento de baixo- cutou)
contínuo5. 9. outras formas de publicação (ex.
jornais, revistas, livros, livros, métodos,
Pode-se propor ainda uma outra lis- etc)
10. performance em domicílio ou em
ta de questões relacionadas à perfor-
algum outro lugar privado (em oposição
mance e que convidam à atenção do aos locais públicos em geral)
pesquisador de musicologia históri- 11. questões de gênero e sexualidade
ca, incluindo o que Lawson e Stowell6 12. a relação entre música “popular” e
se referem como “condições e práti- “artística” (uma distinção que possui uma
cas”, entre eles: legitimidade relativa, por vezes baseada
em barreiras artificiais, como se pode ob-
1. registro, afinação e temperamento servar no caso da música para piano do
2. formação (i.e. solo versus música de século XIX).
câmara)
3. local de apresentação e programação As investigações detalhadas de cada

5 Naturalmente, esta e as demais listas deste artigo poderiam ser ampliadas: cf. Ker-
man (1985) e Lawson & Stowell (1999).

6 Cf. Capítulo 4 de Lawson & Stowell (1999).

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uma dessas evidências – ao longo to8. Cook9 encorajou a “integração de


de uma enorme gama de períodos som, palavra e imagem” no estudo
cronológicos e tipos de performan- da performance, possivelmente ex-
ce – resultaram em um monumental plorando tecnologias de hipermídia.
corpus de conhecimento acadêmico Mais recentemente, um centro de
que continua a crescer e florescer. pesquisa inteiro foi fundado com o
Paralelamente a isto, há progressos intuito de explorar o fazer musical ao
recentes, tais como a análise de per- vivo e, particularmente, como a mú-
formance, que constitui uma maneira sica “toma forma” durante a perfor-
diferente de determinar “o que acon- mance10. Esta é uma das muitas e am-
teceu”, tanto em performances grava- biciosas iniciativas recentes na nova
das quanto ao vivo. Tal análise, que área dos estudos de performance.
é de natureza essencialmente des-
critiva, pode também lançar mão de
dados capturados através de meios E DEPOIS?
tecnológicos envolvendo oscilações
de andamento e dinâmica, técnicas Outros caminhos para se prosseguir
espectrográficas e assim por diante. podem também ser encontrados
Essa abordagem tem estado muito ao reavaliar a potencial aplicação
em evidência em textos analíticos re- da pesquisa musicológica a novas
centes, bem como na literatura psico- atividades de performance musi-
lógica7. Outras inovações incluem es- cal. Aplicar os frutos de tal pesqui-
tudos longitudinais de performance sa diretamente à performance não é
e pesquisas sobre prática em conjun- uma tarefa simples, e as inúmeras

7 Para exemplos de “análise de performance”, cf. os projetos empreendidos no Centro


de Pesquisas AHRC para a História e Análise da Música Gravada (CHARM) descritos no
site: www.charm.kcl.ac.uk.

8 Veja, por exemplo, Goodman (2002, p. 153–67).

9 Cook (2001, § 29).

10 Trata-se do AHRC, Centro de Pesquisa em Performance Musical como Prática Cri-


ativa (CMPCP), descrita no site www.cmpcp.ac.uk.

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injunções na literatura acadêmica a musicologia histórica e um bom


ao longo desses caminhos só têm número de intérpretes se dedicaram
servido habitualmente para limi- por décadas (em parte por razões
tar a liberdade dos intérpretes, em comerciais); atualmente, um propó-
vez de libertá-los como seria de se sito mais típico é a “interpretação
esperar; e, no entanto, [esta aplica- historicamente informada”11, ainda
ção] é perfeitamente factível, dadas que a presença de “informações his-
as mediações apropriadas. Contudo, tóricas” na interpretação não garanta
frequentemente falta essa mediação. sua qualidade e não necessariamente
Além disso, existe há muito tempo funcione musicalmente, pela razão
na musicologia uma suposição im- supracitada. Igualmente, do campo
plícita, segundo a qual os acadêmi- de análise e performance originaram-
cos ocupariam um patamar superior se muitas prescrições doutrinárias,
em termos de conhecimento e dis- que incitam um mapeamento uni-
cernimento, e que os intérpretes que lateral desde a análise rigorosa até o
não buscam assimilar avidamente os ato da performance, onde conclusões
resultados dessas pesquisas em suas sincrônicas e analíticas que podem
performances correriam o risco de se não ter nenhuma relação com a reali-
entregar a um fazer musical super- zação temporal da música deveriam,
ficial e desprovido de sentido, que de alguma maneira, ser comunicadas
serviria apenas a eles enquanto indi- por meio do som. Eu questionei esta
víduos, ao invés de atender a um ide- abordagem e propus alternativas, as
al mais elevado. Tal ponto de vista é quais demonstrarei posteriormente.12
insustentável e deve ser abandonado Musicólogos que trabalham com
de uma vez por todas. performance precisam reconhecer os
Um exemplo disto é a busca por múltiplos fatores que estão por trás
uma “autenticidade” quimérica à qual de uma determinada interpretação e

11 Para discussão cf. Butt (2002).

12 Cf. Rink (1990, p. 319–39) e Rink (2002, p. 35–58).

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que lhe atribuem forma. Eles devem


resistir à tentação de impor que este
fato analítico ou aquele achado histó-
rico deve necessariamente dominar
ou até mesmo influenciar a leitura de
um intérprete acerca da música em
questão. Requer-se compreensão e
respeito diante da amplitude e com-
plexidade da concepção musical do
intérprete, além da percepção de que
a performance não é algo que diz res-
peito a verdades eternas: os intérpre-
tes podem muito bem desejar refletir
os frutos de suas próprias investiga-
ções musicológicas em suas perfor-
mances, mas não como uma questão
de prioridade absoluta.

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figura 1: Chopin, Noturno em Mi Bemol Maior Op. 9 No. 2: Primeira edição francesa, primei-
ra impressão. Paris: Maurice Schlesinger, 1833. Reproduzido com a permissão da Biblioteca da
Universidade de Chicago, Special Collections Research Center.

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PREENCHENDO LACUNAS primeiras edições muito semelhan-


tes, embora distintas entre si: a ver-
Uma série de excertos do Noturno são francesa foi publicada por Mau-
Op. 9 No. 213 em Mi Bemol Maior de rice Schlesinger (Figura 1) e a alemã,
Chopin exemplificará os vários tipos por Kistner no início de 1833, ao pas-
de investigação descritos anterior- so que Wessel produziu a primeira
mente – acerca das fontes, questões edição inglesa alguns meses depois.
de interpretação e estilo, condições e Cada uma delas foi sucessivamente
práticas – aludindo também à exten- reeditada em impressões subsequen-
sa variedade de fatores que podem tes, contendo, por vezes, “correções”
intervir numa performance. Em se- equivocadas e outras emendas; o No.
guida, farei breves comentários a res- 2 também apareceu em edições sepa-
peito de como poderia ser efetuada radas, derivadas das versões alemã e
a mediação entre as descobertas de inglesa.14 Todas essas “primeiras edi-
pesquisas musicológicas e a perfor- ções” demandam atenção acadêmica,
mance propriamente dita, mesmo se e qualquer intérprete que se interesse
a “verdade” que daí resulta for con- pelas complexidades relacionadas às
tingente. fontes que cercam as composições de
Além de um incipit escrito à mão Chopin encontrará, nestas edições
por Chopin datado de 1835, não res- e em outras semelhantes, uma série
tou nenhum material autógrafo do de evidências acerca da evolução das
Noturno em Mi Bemol, peça com- concepções do compositor.
posta entre 1830 e 1832. Assim como Dezenas de novas edições da mú-
a maior parte da música de Chopin, sica de Chopin surgiram após o mo-
os Noturnos Op. 9 foram publicados mento decisivo marcado pelas leis de
em Paris, Leipzig e Londres em três direitos autorais, na França em 1859

13 Selecionei esta obra pelo fato de ela se apresentar num vasto âmbito de bibliografia
relevante, e também porque já a executei em algumas das versões abaixo descritas.

14 Para detalhes cf. Grabowski & Rink (2010).

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e na Alemanha em 1879; particular- final do compasso 3; cf. Figura 1). A


mente notáveis e ainda em circula- Edição Henle Urtext é mais confiável,
ção até os dias de hoje são as assim embora ocorra no compasso 16 uma
chamadas edições “Paderewski”, a mudança no ritmo das fioriture: ao
“Henle Urtext”, a “Wydanie Naro- invés das semi-colcheias de Chopin
dowe” (Edição Nacional Polonesa) e (que evocam uma flexibilidade rít-
“The Complete Chopin – A New Cri- mica improvisatória – cf. Figura 1),
tical Edition”.15 O uso amplamente a edição adota as fusas matematica-
difundido da edição Paderewski por mente “corretas”. As semi-colcheias
pianistas modernos pode parecer foram preservadas na Edição Na-
lamentável ao se comparar o frase- cional Polonesa, mas em sua seção
ado nos compassos de abertura do de Comentários Críticos há uma
Op.9 No. 2 àquele da primeira edição referência errônea às supostas fusas
Francesa,16 que conta com ligaduras na primeira Edição Alemã, quando
muito mais curtas ao invés dos ges- na verdade a primeira impressão de
tos com menor riqueza de detalhes Kistner, datada de 1833, apresenta as
impostos pela edição Paderewski mesmas semi-colcheias também en-
(estendendo-se, por exemplo, da contradas nas versões de Schlesinger
anacruse inicial à penúltima nota da e Wessel. Somente na segunda im-
mão direita no compasso 1 e, de ma- pressão de Kistner (publicada antes
neira semelhante, da última nota da de 1841) aparece o ritmo “incorreto”,
mão direita do compasso 2 até a nota juntamente com o símbolo de terci-

15 Os Noturnos foram publicados da seguinte maneira: Edição Paderewski, ed. Ignacy


Jan Paderewski, Ludwik Bronarski e Jozef Turczynski (Cracóvia: PWM, 1951); Henle Urtext,
ed. Ewald Zimmermann (Munich: Henle, 1980); Wiener Urtext, ed. Jan Ekier (Vienna and
Mainz: Schott/Universal Edition, 1980); Wydanie Narodowe, ed. Jan Ekier and Pawel Ka-
minski (Cracóvia: PWM, 1995).

16 A presença de Chopin em Paris e, portanto, o fato dele estar apto a participar na


correção das versões e impressões originais francesas atribui a essas edições uma autoridade
ausente nas versões inglesas e alemãs, as quais eram preparadas sem intervenções recorrentes
por parte do compositor.

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na “3” adicionado às notas 14-16 da é suficientemente lógica, o ritmo da


mão direita.17 Edição Schlesinger imbui a descida
A Edição Nacional Polonesa tam- melódica de uma parada intencional,
bém descreve erroneamente o ritmo uma qualidade enfática característica
do primeiro tempo do compasso 24, do estilo bel canto, o favorito de Cho-
no qual as primeiras edições fran- pin e no qual esse Noturno tão clara-
cesa e inglesa apresentam um ponto mente se inspira.
de aumento na terceira nota da mão O dedilhado na primeira Edição
direita desse compasso, um dó#3 (cf. Francesa lança ainda mais luz à es-
Figura 1), enquanto a primeira edição tética da performance chopiniana,
alemã, tal como publicada original- na medida que as repetições anota-
mente, não conta com nenhum pon- das para o dedo 5 e os agrupamen-
to de aumento (o que não faz sentido tos 4-5/5-4 nos compassos 26–28
do ponto de vista rítmico), embora a obrigam os dedos a soltar as teclas
edição polonesa comente exatamente precisamente em determinados mo-
o contrário. Na segunda impressão mentos e assim, através da rearticu-
de Kistner, contudo, adiciona-se um lação, atribuem uma inflexão sutil a
ponto – indubitavelmente sem a au- notas significativas do ponto de vista
torização de Chopin – à quarta nota expressivo. Um estudo detalhado do
da mão direita, um dó natural3, à qual dedilhado, articulação, dinâmica e
a maioria dos pianistas está acostu- de outras glosas anotadas a lápis nas
mada e, além disso, é como aparece partituras de seus alunos Jane Stirling
editado na Henle Urtext. O efeito na e Camille Dubois, bem como nas de
performance é completamente dife- sua irmã Ludwika Jedrzejewicz e
rente: enquanto esta última versão de seu amigo violoncelista Auguste

17 Cf. Grabowski & Rink (2010, p. 58). Os responsáveis pela Edição Nacional Polonesa
aparentemente utilizaram não a primeira, mas a segunda impressão de Kistner para confec-
cionar a sua própria.

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Franchomme, também se mostra es- consequências para a performance.


clarecedor.18 Por exemplo, uma liga- Não obstante, somente a fidelidade
dura foi adicionada (provavelmente aos aspectos individuais acima des-
por Chopin) entre o arpejo da mão critos serão, em si, insuficientes para
direita que precede o primeiro tempo recriar a estética original da música,
do compasso 13 e a nota da mão es- isto é, se este for realmente o obje-
querda no tempo forte, com o objeti- tivo. Porém, uma falta de fidelidade
vo de produzir um ataque simultâneo a esses aspectos não necessariamen-
de ambas as mãos na cabeça do tem- te a destruirá.19 É preciso haver não
po – uma maneira de articulação do apenas contextualização e síntese,
século XVIII usada com o intuito de deve-se ainda ter em mente a abor-
evitar o brilhantismo típico das prá- dagem idiossincrática de Chopin (em
ticas interpretativas vigentes no sécu- suas execuções e no seu ensino, ele
lo XIX. O que está em jogo aqui é o não se submetia nem a regras, nem
efeito expressivo da música, corpori- a sistemas), bem como as filosofias
ficado em minúcias de notação cuja editoriais vigentes naquela época,
influência potencial na performance conforme as quais o texto impresso
não poderia ser maior. carecia da autoridade suprema que se
É em parte por esta razão que a es- lhe atribui atualmente, com erros fla-
colha de um texto editado tem tantas grantes de natureza variada que não

18 Para um agrupamento dessas glosas, cf. Eigeldinger (1986) e (2000). Em seu artigo
“Présence de Thomas D. A. Tellefsen dans le corpus annoté des oeuvres de Chopin (exem-
plaire Stirling),” Eigeldinger (1998, p. 260) observa que algumas anotações nas partituras de
Stirling podem ser atribuídas ao pupilo de Chopin, Thomas Tellefsen (embora possivelmente
não seja o caso do Op. 9 No. 2).

19 A esta luz é interessante considerar a performance de Shura Cherkassky do Prelúdio


em mi menor de Chopin Op. 28 No. 4 (Decca 433 653-2) datada de 1975; embora Cherkas-
sky toque notas erradas em uma passagem e use um rubato aparentemente inautêntico, bem
como uma articulação “incorreta” de alguns ornamentos, sua execução (ao vivo) é extrema-
mente comovente. Para discussão cf. Rink (2001, p. 441).

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necessariamente ofendiam ou preo- e-performance tem sua origem no


cupavam os compositores e intérpre- fato de que ela geralmente subtrai aos
tes. Naturalmente, seria aconselhável intérpretes a prerrogativa de tomar
aos intérpretes modernos o uso do decisões, forçando-os, em vez disso,
melhor texto possível, por mais es- a seguir sobretudo questões estrutu-
quivos que estes possam vir a ser no rais (indiferente de como estas sejam
caso de Chopin. Mas eles não devem definidas) ao invés de uma “forma”
confiar cegamente nesses textos. É mais dinâmica, à qual tenho conti-
essencial ponderar as alternativas e nuamente me referido em meus es-
determinar o que funciona melhor critos nesta área durante os últimos
no contexto e em cada ocasião de vinte anos.20 Compare, por exemplo,
performance, de acordo com a esco- os gráficos de plano intermediário
lha de preceitos estéticos do intérpre- do Op. 9 No. 2 na Figura 2, publi-
te e quaisquer outras considerações cados respectivamente por Heinrich
às quais ele deseje obedecer. Schenker no segundo anuário Meis-
Uma das críticas que manifestei terwerk21 e em um ensaio de minha
sobre a literatura acerca de análise- autoria.22

20 Para maiores discussões, cf. Rink (2002)

21 Schenker (1996); o gráfico da figura 2a aparece à página 5.

22 Rink (1999); o gráfico na figura 2b aparece à página 119.

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Figura 2a: Diagrama de plano intermediário de Schenker do Noturno Op. 9 No. 2 de Chopin.
Reproduzido com a permissão da Cambridge University Press.

Figura 2b: Diagrama de plano intermediário do Noturno Op. 9 No. 2 de Chopin. Reproduzido
com a permissão da Cambridge University Press.

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No gráfico de Schenker (Figura cure inferir a partir daí os “insights”


2a), não é atribuído conteúdo algum especificamente musicais que estão
aos últimos 10 compassos; as pala- latentes. Mais uma vez, é preciso que
vras “folgt Coda” (segue-se a Coda) haja aqui inferência ou mediação.
indicam que a passagem não possui Por essa razão, os intérpretes se-
importância estrutural, pelo menos riam sábios ao resistirem a qualquer
nesse nível analítico. Se interpretado injunção para “ressaltar” sistema-
literalmente, tal diagrama pode dar ticamente os motivos constituintes
origem a uma performance desprovi- do Noturno durante a performan-
da de direção, até mesmo desprovida ce.23 Mesmo assim, vale a pena notar
de propósito, carente de uma trajetó- um motivo particular de potencial
ria em larga-escala ou um gesto mais importância a esse respeito – a fi-
amplo como o implícito em minha guração circular da mão esquerda
adaptação (Figura 2b). Sem dúvida, encontrada ao longo de toda a peça,
meu gráfico não é de maneira algu- como mostrada na Figura 3.24 Usado
ma suficiente para constituir a base reiteradamente na seção principal da
de uma concepção interpretativa; peça (i.e. os vinte e quatro compassos
mas ao menos ele tem o potencial de grafados por Schenker), esse padrão
conduzir a uma interpretação mais retorna em uma forma fragmentada
coerente e equilibrada – contanto, nos compassos 27–28, depois por
obviamente, que o pianista não tente completo nos compassos 30–32, en-
fazer uma tradução direta deste ou de quanto a música caminha em direção
outros gráficos similares para os ter- ao clímax. É possível conceber uma
mos da performance, mas sim, pro- “narrativa” temporal para a perfor-

23 Rothstein (1995) defende uma questão similar sobre a performance de temas fugais.

24 A Figura 3 é reproduzida a partir de Rink (1999, p. 118). Este tipo de justaposição de


passagens similares pode ser um exercício útil para intérpretes, inclusive durante o processo
de memorização da música. Para discussão, cf. Rink (2002).

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mance desse Noturno, em parte tendo


como base essas afirmações motívi-
cas, cujas repetições sucessivas criam
uma expectativa de continuidade
que se mantém presente nos compas-
sos 31-32, ao mesmo tempo em que,
paradoxalmente, destaca justamente
o modo dramático através do qual a
música foi introduzida nessa expan-
são culminante. Em outras palavras,
uma trajetória em larga-escala se
origina e se liga a uma fórmula ca-
dencial aparentemente comum, cuja
função é, em todos os sentidos, de
fundamental importância.

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Figura 3: Motivo de figuração circular no Noturno Op.9 No. 2 de Chopin. Reproduzido com a
permissão da Cambridge University Press.

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A natureza aparentemente “ino- a segunda variação deveriam ser cantados


cente e inócua” do Noturno também a plena voz, expressivamente, mas isentos
de sentimentalismos. O estilo deve seguir
foi notada de maneira mais genérica
o modelo de [Giuditta] Pasta e a grande
por Wilhelm von Lenz, aluno ocasio-
Escola Italiana de canto, e o pathos deve-
nal de Chopin, cujas longas conside- ria se intensificar ao longo das variações
rações datadas de 1872 sobre os ensi- (lenz apud eigeldinger, 1986, p. 77)25.
namentos de Chopin a respeito desta
peça referem-se a “problemas parti-
culares de execução”, frequentemente Não apenas a intensificação do “pa-
observados pelo próprio compositor. thos” é relevante para a narrativa
De acordo com Lenz: da performance descrita acima, mas
também as referências de von Lenz
Chopin queria que o baixo fosse estuda- ao “tempo estrito” e a um andamen-
do separadamente, dividido entre as duas to “absolutamente estável” levantam
mãos; e cada um dos acordes que seguem questões significativas para a inter-
os tempos principais marcados pelos bai-
pretação desse Noturno e para a mú-
xos no 12/8 deveriam soar como um con-
junto de violões. Uma vez que se domina
sica de Chopin de uma maneira geral.
a parte do baixo – com as duas mãos – Esses comentários foram publicados
empregando uma sonoridade plena, mas numa época em que a estética de
com dinâmica piano e em tempo estrito, performance de Chopin estava sendo
mantendo um andamento allegretto ab- ameaçada por certas tendências nas
solutamente estável sem que o 12/8 se re- práticas interpretativas; em particu-
duza a tercinas, aí então pode-se confiar à
lar, por uma maior flexibilidade de
mão esquerda o acompanhamento toca-
do dessa maneira, e o tenor é convidado
andamento empreendida em prol da
a cantar sua parte na voz superior. A se- expressão, mas potencialmente pre-
gunda variação deveria ser um Andante; a judicial à lógica de pequena e gran-
terceira, um comovente Adagio. O tema e de escala. Tal flexibilidade era uma

25 Wilhelm von Lenz, “Übersichtliche Beurtheilung der Pianoforte-Kompositionen


von Chopin,” Neue Berliner Musikzeitung 26, no. 36–38 (1872), 297; tradução de Eigeldinger
(1986, p. 77).

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das principais características de uma canto, outro derivado da música fol-


“tradição” ostensiva em voga naque- clórica polonesa, e o terceiro definido
la época envolvendo a interpretação em termos de “mudanças passageiras
da obra de Chopin, e que foi posta de ritmo relativas ao andamento bá-
em questão por várias pessoas próxi- sico” (EIGELDINGER, 1986, p. 120).
mas a Chopin – notadamente Lenz, Neste Noturno, o significado especí-
Carl Mikuli e a Princesa Marcelina fico de “poco rubato” no compasso 26
Czartoryska.26 Mikuli (apud EIGEL- não é desprovido de ambiguidade,27
DINGER, 1986, p. 49), por exemplo, mas o rubato herdado do bel canto
afirmava em tom de protesto, que “o sem dúvida modelou a concepção de
metrônomo nunca deixou o piano Chopin a respeito de melodia e acom-
[de Chopin],” embora isso não signi- panhamento em geral. O intérprete
fique que a execução de Chopin fosse certamente precisa estar ciente desse
rigidamente metronômica: deve-se tipo de rubato – não em uma busca
entender esse comentário de Mikuli fútil por uma suposta “autenticidade”,
em seu contexto polêmico, destinado mas simplesmente com a finalidade
a combater uma tendência que tanto de respeitar o sentido da música. Sem
ele como outros de seus contemporâ- a flexibilidade simbiótica e lógica ca-
neos consideravam perniciosa. Mui- racterísticas da própria execução de
to pelo contrário, sabe-se que Chopin Chopin, uma performance do Op. 9
empregava pelo menos três tipos de No. 2 pode acabar soando tão afetada
rubato – um inspirado pelo estilo bel e antinatural quanto um texto verbal

26 Para discussão, cf. Eigeldinger (1993).

27 Segundo Eigeldinger (1986, p. 121) o poco rubato se aplica a “uma frase particular
de um caráter mais patético – usando as próprias palavras de [Pier Francisco] Tosi.” Cf. tam-
bém Rink (1999)

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declamado em uma língua em que o sua sofisticação e sutileza ultrapas-


orador não compreende ou que car- sem as de seu predecessor. O objetivo
rega um sotaque tão pesado que che- de tal comparação não é mostrar um
ga a ser quase ininteligível.28 progresso composicional ou superio-
A prosódia “natural” da música, ridade, mas sim, ao posicionar uma
quando interpretada de acordo com peça frente a outra, apreciar em sua
a estética temporal de Chopin, vem à totalidade justamente o que foi al-
tona quando se compara esse primei- cançado em cada uma, além de ob-
ro Noturno em Mi bemol com os no- ter maior conhecimento no âmbito
turnos de John Field (1812 e 1816), da lógica temporal da música e sobre
que soam um pouco estáticos e atá- seu ritmo em uma larga escala.
xicos por causa das inúmeras finali- Além da atenção ao contexto his-
zações cadenciais e a resultante falta tórico e estilístico ser útil nesse as-
de dinamismo no âmbito do mate- pecto, ela também possibilita que se
rial harmônico e melódico, assim faça um bom uso das numerosas va-
como em sua estrutura de um modo riantes anotadas a lápis por Chopin
geral.29 Uma comparação com o ou- em cópias do Noturno pertencentes a
tro Noturno em Mi bemol de Cho- seus alunos. Essas variantes – repro-
pin – o Op. 55 Nº. 2, composto entre duzidas na Wiener Urtext e na Edi-
1842–44, possivelmente em resposta ção Nacional Polonesa, entre outras
à peça homônima anterior – também – englobam desde pequenas notas de
se mostra instrutiva. Sua maestria em passagem cromáticas até ornamenta-
termos de fluidez, flexibilidade e im- ções de tirar o fôlego nos principais
pulso em níveis tanto remotos quan- pontos cadenciais (incluindo a ca-
to imediatos parecem criticar, mas dência no compasso 32); sendo que
também lançar luz sobre a dinâmica tais figurações situam-se fora do al-
interna do Op. 9 Nº.2, mesmo que cance de pianistas amadores que avi-

28 Mikuli (apud EIGELDINGER, 1986, p. 42) nota a insistência de Chopin “na im-
portância do fraseado correto” e sua “analogia adequada” sobre uma recitação desprovida de
sentido de um “discurso em uma língua desconhecida, memorizado laboriosamente”.

29 Cf. Rink (1999).

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damente tocavam e popularizavam o geralmente associados a Chopin, re-


Noturno. Na opinião de Eigeldinger sultando em uma versão sobrecarre-
(1986, p. 152), estas variantes extra- gada típica do que há de pior (e não
ordinariamente abundantes podem de melhor) no bel canto.
indicar o desejo de Chopin de que o Uma abordagem mais sensível a
Op. 9 Nº. 2 se distanciasse do mundo essas variantes e ao Noturno em geral
da “música de salão”, bem como dos pode ser constatada nas gravações de
noturnos de Field, aos quais eram Raoul Koczalski,30 que estudou com
frequentemente relacionados. Elas Carl Mikuli, o qual havia sido alu-
também refletem a abordagem im- no de Chopin. Suas gravações cons-
provisatória de Chopin, tanto no que tituem a herança mais próxima da
diz respeito à composição quanto à estética de performance de Chopin,
performance, revelando uma falta de a qual procurei descrever aqui. As in-
fidelidade ao “conceito de obra” que terpretações de Koczalski são sempre
manteria sua influência por cerca dignas de uma escuta mais detalhada,
de 150 anos. Os pianistas modernos e ele se mostra particularmente escla-
podem pensar que estas variantes recedor no caso do Op. 9 Nº. 2. Não
acrescentam à sua execução a espon- obstante, há uma certa discrepância
taneidade e o brilho que as próprias entre suas interpretações e as evidên-
interpretações de Chopin parecem cias encontradas tanto nas primeiras
ter tido – mas o melhor seria evitar edições quanto, especialmente, nas
a abordagem indulgente daqueles cópias do Noturno pertencentes aos
que amontoam praticamente todas alunos de Chopin (por exemplo, ele
elas em uma única performance. Tal toca as anacruses arpejadas nos com-
variedade embaraçosa de ornamen- passos 13 e 21 antes da cabeça do
tações é dificilmente compatível com compasso, e não no tempo), de modo
a postura, a discrição e o refinamento que algumas das variantes empre-

30 Estas foram feitas em 1925 (Polydor 65786), 1938 (Polydor 62746) e 1948 (MEWA
no. 33); as duas primeiras contém muitas das variantes às quais fez-se referência neste ensaio.
Cf. também Koczalski (1909, p. 70–71).

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gadas por Koczalski podem não ser XVIII, mas evitar os dedilhados do
originais de Chopin. Além disso, ele compositor. O mais importante não é
toca em um piano moderno em vez a presença ou ausência desses aspec-
de escolher um instrumento vienen- tos, mas sim, como eles são emprega-
se ou francês da época de Chopin, dos – e isto não apenas em si e por
nos quais a delicadeza da música e si mesmos mas, principalmente, no
sua clareza cristalina são, talvez, mais interior da concepção musical como
facilmente capturadas. Mas de modo um todo. Para que isso tenha êxi-
algum esses aspectos devem ser en- to, é necessário o uso de mediações
carados como equívocos fatais, pelas como as descritas anteriormente, de
razões acima descritas. Com efeito, maneira que o intérprete se aproprie
as interpretações de Koczalski ainda desses elementos a serviço da músi-
estão entre as mais impressionantes ca, tal como ele a entende, em vez de
da história das gravações. simplesmente trilhar os caminhos já
Emular ativamente o estilo de abertos por musicólogos ou outros
execução de Koczalski, pelo fato de músicos. Este é o motivo pelo qual
representar o registro que mais se muitas interpretações podem vir a
aproxima da execução do próprio fracassar em um ou outro aspecto no
Chopin, é uma questão de escolha teste decisivo de autenticidade, mas
individual. É possível que o intérpre- ainda assim gerar um resultado sa-
te deseje emprestar apenas algumas tisfatório e inspirador; é também por
de suas ideias, e prescindir de outras. isso que até mesmo o conhecimento
Igualmente, pode-se ou não tocar as mais vasto pode vir a resultar não em
variantes de Chopin; ou empregar uma verdadeira concepção musical,
apenas um determinado número de mas em uma versão de segunda cate-
marcações dinâmicas provenientes goria, com um forte sotaque, mais ou
das cópias de seus alunos; ou conside- menos incompreensível.
rar somente certos aspectos das aná-
lises motívicas, harmônicas ou me-
lódicas às quais me referi; ou mesmo MOMENTOS DA VERDADE
buscar inspiração a partir do rubato
de Chopin e da articulação do século Esta discussão apresentou uma série

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de perspectivas sobre o Noturno de envolve uma visão centrada e perifé-


Chopin com a intenção de demons- rica ao mesmo tempo, especialmente
trar não apenas o quanto a pesqui- no momento da verdade decisiva.
sa “pura” pode influenciar direta ou As performances nunca são defi-
indiretamente a interpretação mu- nitivas: isto é óbvio. Mas isto tende a
sical, mas também a necessidade de ser esquecido pelos musicólogos, que
se adotar uma visão global ao in- insistem em colocar suas pesquisas
terpretar obras particulares. Para em primeiro plano, em detrimento
este fim, minha apresentação desses do ato da performance. Poder-se-ia
vários elementos em sucessão é de muito bem perguntar se poderá ha-
certa maneira forjada, uma vez que ver algum dia uma conciliação entre
os intérpretes não constroem uma o rigor exigido pelos acadêmicos em
organizada mise-en-place cujos in- suas pesquisas e a liberdade necessá-
gredientes individuais são então lan- ria à prática dos músicos. Talvez tudo
çados um por um no óleo incandes- o que se pode esperar é uma “flexibi-
cente de uma panela. Mesmo que a lidade por princípio”, ao invés de uma
performance de fato apresente certo retidão moral (há algo de hipócrita e
“aspecto de frigideira” (e ocasionais puritano envolvendo algumas pres-
saltos batismais para dentro do fogo), crições para performance – e também
a fusão dos ingredientes no calor da a práxis – em meios acadêmicos de
performance é idealmente mais com- tempos passados). Por outro lado,
pleta, assim como pode ser também a uma promiscuidade desenfreada é
mais resistente ao exame minucioso e tampouco desejável. As performan-
à compreensão. A arte envolve a habi- ces precisam nos convencer que elas
lidade de transformar a performance representam a verdade, mesmo se ela
em algo que represente mais do que é contingente e incompleta. A verda-
somente a soma de suas partes, in- de do momento pode ser inaceitável
cluindo as influências da história, da para o acadêmico, mas ela é tanto
análise e muito mais (além da dimen- uma aspiração quanto um motivo a
são técnica, não menos importante e celebrar quando se trata da perfor-
tão frequentemente ignorada na li- mance musical.
teratura sobre interpretação). A arte

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