Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Conceito de Região em Três Registros. Exemplificando Com o Nordeste Brasileiro
O Conceito de Região em Três Registros. Exemplificando Com o Nordeste Brasileiro
Confins
Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia
14 | 2012
Numéro 14
Résumés
Português Français English
Este ensaio é uma reflexão sobre regionalização que utiliza como exemplo o Nordeste do Brasil.
Ele compara regionalização em geografia com periodização em história e mostra que em ambos
os procedimentos existem elementos objetivos e subjetivos. Faz ainda um resumo crítico das três
principais concepções sobre a região Nordeste: uma tradicional, centrada na análise das
paisagens; outra moderna, preocupada com a divisão territorial do trabalho; e a terceira pós-
moderna e que enfatiza a invenção dessa região – por determinados políticos, intelectuais e pela
mídia – a partir dos anos 1920. No final há um balanço que mostra os prós e contras de cada uma
dessas concepções regionais.
Cet essai est une réflexion sur la régionalisation qui utilise comme un exemple le Nord-est du
Brésil. Il compare la régionalisation en géographie avec la périodisation en histoire et démontre
que dans les deux procédures il y a des éléments objectifs et subjectifs. En plus, il fait un résumé
critique des trois conceptions principales sur la région du Nord-est: une conception traditionnel
mettant l'accent sur l'analyse des paysages; une autre, moderne, préoccupé de la division
territoriale du travail; et la troisième conception qui est post-moderne, mettant l'accent sur
l'invention de cette région – par certains politiques, des intellectuels et la média – depuis les
années 1920. A la fin de l’article, il y a un bilan qui affiche les pours et les contres de chacune de
ces conceptions régionales.
This essay is a reflection on regionalization which makes use of Northeast Brazil as an example. It
compares the regionalization in geography with periodization in history showing that, in both
procedures, there are subjective and objective elements. It also contains a critical summary of
three main conceptions concerning the Northeast region: one of them is traditional and focus on
the landscape; the other one is modern and its concerns lay on the territorial division of labor;
finally, the last one is postmodern and puts emphasis on the fact that this region has been an
invention – produced by certain politicians, intellectuals and the media – since the 1920’s. At the
end of this article there is a review showing the pros and cons of each of these regional
conceptions.
https://journals.openedition.org/confins/7377 1/11
27/09/2021 21:01 O conceito de região em três registros. Exemplificando com o Nordeste brasileiro
Entrées d’index
Index de mots-clés : division territoriale du travail, invention de la région, Nord-est du Brésil,
paysage, région, régionalisation
Index by keywords: invention of the region, landscape, Northeast Brazil, region,
regionalization, territorial division of labor
Index géographique : Nordeste
Índice de palavras-chaves: divisão territorial do trabalho, invenção da região, Nordeste do
Brasil, paisagem, região, regionalização
Texte intégral
Afficher l’image
Crédits : Hervé Théry
1 Região é um conceito geográfico clássico e essencial. Talvez até o mais importante
deles, ou, pelo menos, o mais identificado com a ciência geográfica. Foram inúmeros os
autores que asseveraram ser a geografia regional – logo, o estudo das regiões – o âmago
mesmo da ciência geográfica. Por sinal, essa ênfase na geografia regional, no estudo das
regiões como o intuito último da geografia, apesar de no século XX ter sido identificada
com a escola capitaneada por Vidal de La Blache (1845-1918), na verdade é bastante
antiga, tendo sido já apadrinhada pelo geógrafo Estrabão, que viveu provavelmente no
século I a.C. (Strabo, s/d: passim)
2 Em termos comparativos, regionalização em geografia é algo que se assemelha
bastante a periodização em história. Periodizar ou separar o tempo histórico em
períodos – etapas ou fases – é um procedimento metodológico análogo ao de
regionalizar ou dividir o espaço geográfico em regiões, isto é, em áreas ou porções
distintas de um todo. Nos dois casos há uma divisão, um corte, seja no tempo ou no
espaço, e também um agrupamento. Daí a necessidade de, por um lado, escolher limites
ou marcos entre essa região ou período e os demais; e, por outro lado, estabelecer
“traços em comum” num período ou no interior de uma região. Ambos têm os mesmos
problemas e, ao mesmo tempo, inúmeros aspectos similares. Nenhum deles, nunca, é
algo exato ou indiscutível. Sempre há um elemento subjetivo no corte, no marco ou no
limite que se faz no tempo ou no espaço. Mas esse elemento subjetivo, essa escolha
afinal, quase nunca é fruto de um puro arbítrio; normalmente se apoia em elementos
objetivos, isto é, em determinados aspectos – sejam “fatos”, processos ou características
– deste ou daquele período do tempo, desta ou daquela parcela do espaço. Só que
sempre existem outros elementos ou aspectos igualmente tangíveis ou detectáveis que
poderiam ser levados em conta e que, ao serem valorizados, implicariam num recorte
ou numa delimitação muitas vezes bastante diversa.
3 É por isso que tanto a periodização quanto a regionalização colocam de forma
imediata e explícita o problema epistemológico do realismo (ou materialismo) versus o
idealismo. As regiões – ou os períodos históricos – têm vida efetiva ou real, de forma
independente do observador, da nossa consciência? Ou no fundo são apenas produtos
da nossa mente, do nosso intelecto? Já existiram e ainda existem autores que adotam
esta ou aquela perspectiva. Há os que asseveram que as regiões existem de forma
positiva ou objetiva, independentemente das escolhas do investigador; elas seriam
então “fatos” ou realidades indiscutíveis. E há também os que, embora minoritários na
geografia (na qual sempre predominou o realismo ou materialismo, com a existência de
raríssimos idealistas), advogam serem as regiões nada mais nada menos que
https://journals.openedition.org/confins/7377 2/11
27/09/2021 21:01 O conceito de região em três registros. Exemplificando com o Nordeste brasileiro
https://journals.openedition.org/confins/7377 4/11
27/09/2021 21:01 O conceito de região em três registros. Exemplificando com o Nordeste brasileiro
13 Como se nota por inúmeros traços – a geografia física como ponto de partida, seguida
pela ocupação humana que vai se adaptar (mesmo que suscitando algumas mudanças)
a esse meio ambiente, uma forte ênfase no meio rural e na questão agrária – e por sinal,
a análise dessa questão agrária nordestina no início dos anos 1960 é o grande mérito
deste livro de Andrade, neste ponto elogiado por Caio Prado Júnior e José de Souza
Martins –, trata-se de mais um rebento, no ultramar, da escola geográfica francesa que
teve em Vidal de La Blache o seu grande mentor. A região assim é quase que “dada”, um
fruto mais da natureza do que do social. Não se interroga sobre a sua gênese do ponto
de vista de construção pelos grupos humanos, mas se supõe que ela existiria
anteriormente (a geomorfologia, o clima, os solos, as águas, a vegetação) e que a
sociedade, apesar de ter sido produzida por outras determinações (o colonialismo
mercantil, neste caso), acabou por se adaptar muito bem a essa natureza original
mesmo, reiteramos, ocasionando nela esta ou aquela alteração (desmatamentos e
aumento da aridez em certas áreas, assoreamento e mudanças na hidrografia em
https://journals.openedition.org/confins/7377 5/11
27/09/2021 21:01 O conceito de região em três registros. Exemplificando com o Nordeste brasileiro
16 Deixando-se de lado o amplo uso de clichês, sendo que alguns francamente soam
ridículos nos dias de hoje – tais como que o engajamento pela “construção da nação”
vai se contrapor ao capitalismo e conduzir ao socialismo, que a forma de reprodução do
capital determina a luta de classes ou que só no capitalismo é que o sistema planeja o
planejamento e não o contrário [será que o autor acreditava sinceramente que no
socialismo real o planejamento é que planejava o sistema?] –, observamos que a ideia
central, no que diz respeito à nossa problemática da regionalização, é que as regiões são
formas específicas de reprodução do capital, acompanhadas mecanicamente [apesar de
o autor falar em “dialeticamente”] pelas lutas sociais “correspondentes”, e que no
https://journals.openedition.org/confins/7377 6/11
27/09/2021 21:01 O conceito de região em três registros. Exemplificando com o Nordeste brasileiro
19 Não apenas a região Nordeste teria sido inventada, mas também os nordestinos com
o seu “comportamento típico”, suas músicas regionais, seu folclore característico e por
aí afora. Não que antes inexistissem músicas, folclore, artesanato, etc., nessas diversas
https://journals.openedition.org/confins/7377 7/11
27/09/2021 21:01 O conceito de região em três registros. Exemplificando com o Nordeste brasileiro
áreas que foram juntadas nessa pretensa unidade denominada Nordeste: o litoral
pernambucano e paraibano, o sertão cearense, o recôncavo baiano ou a parte
amazônica do Maranhão, para citar apenas algumas. O que o autor assinala é a
arbitrariedade dessa reunião, que dilui as diversidades e heterogeneidades existentes
nesse imenso espaço. O autor insiste que não pretendeu elaborar outra concepção de
Nordeste, seja ela de “esquerda” (o Nordeste como “região explorada”, o nordestino
como trabalhador que “construiu São Paulo”, o cangaço ou as ligas camponesas como
“revolucionários”, etc.) ou de “direita” (o Nordeste como região parasita que vive de
recursos advindos do Centro-sul, o nordestino como indivíduo atrasado, sofredor e que
inspira piedade, etc.), pois isso seria pressupor algo incorreto: a existência efetiva da
região e dos “nordestinos”. No seu entendimento:
20 “Não quer este livro defender o Nordeste, mas ataca-lo; ele não quer sua salvação,
mas sua dissolução enquanto esta maquinaria imagética-discursiva(...) Assumir a
nordestinidade é assumir estas várias representações excludentes sobre este espaço e
povo; é emitir um discurso preso à lógica da submissão; é ocupar um lugar que esperam
para nossa voz e para nosso olhar: voz para pedir, suplicar, denunciar(...) Não é
assumindo a nordestinidade e usando-a como se fosse um enunciado revolucionário
que denunciaremos a teia de poder que exclui grande parte dos chamados nordestinos,
que estereotipa como marginais socioculturais a grande parte daqueles que nele habita.
Mas é nos afirmando como não-nordestinos, no sentido consagrado, é mostrando que
existem diferentes formas de ser nordestino(...) É preciso questionar as lentes com que
os nordestinos são vistos e se veem.” (Albuquerque Jr, 1999, p. 315-6).
21 Agora que resenhamos três pontos de vista sobre o Nordeste brasileiro, com
diferentes formas de regionalização, podemos fazer um balanço ou algumas
considerações finais. Qual ou quais desses pontos de vista são válidos? Qual ou quais
seriam equivocados? Na verdade, a questão não se coloca desta forma. Cada uma dessas
interpretações detecta algo da realidade e ao mesmo tempo é um ponto de vista
particular no sentido de colado a certos objetivos como também a certos pressupostos.
E também cada um deles corresponde mais ou menos a uma “época” (mesmo que elas
se interpenetrem e coexistam) no sentido intelectual – e não, necessariamente,
cronológico – do termo: o tradicional, o moderno e o pós-moderno. Não que uma
suceda a outra e a torne ultrapassada. Elas representam leituras diferentes, mas que
captam aspectos da realidade a partir de perspectivas distintas. Como já havia
assinalado uma determinada tradição geográfica – infelizmente, negligenciada em prol
de uma supervalorização da escola lablacheana de estudos regionais –, existente desde
no mínimo o início do século passado:
“A questão sobre qual critério deve ser escolhido para determinar regiões não tem
resposta na natureza [na realidade], afirmou Hettner. A escolha deve ser feita pelo
geógrafo de acordo com o seu julgamento subjetivo sobre sua importância.
Consequentemente, não podemos falar em falsa ou verdadeira divisão regional(...)
Não existe uma divisão universalmente válida que corresponda efetivamente a
todos os fenômenos.” (Hartshorne, 1939, p. 362-4).
https://journals.openedition.org/confins/7377 8/11
27/09/2021 21:01 O conceito de região em três registros. Exemplificando com o Nordeste brasileiro
Bibliographie
Albuquerque Jr D. M. de, A invenção do Nordeste e outras artes, 2ª. Edição, São Paulo, Cortez,
2001.
Andrade M. C. de, A Terra e o Homem no Nordeste, 2ª. Edição, São Paulo, Brasiliense, prefácio
de Caio Prado Júnior, 1964.
Bielschowsky Ricardo, “Cinquenta anos de pensamento na CEPAL – uma resenha”, In R.
Bielschowsky (Org.), Cinquenta anos de pensamento na CEPAL, Volume 1. Rio de Janeiro,
Record, 2000, p.15-68.
Foucault M., Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
Gramsci A., A questão meridional, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
Habermas Jürgen, Conhecimento e Interesse, Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
Hartshorne R., The Nature of Geography, Lancaster, Derwent Whittlesey Editor, 1939.
Krugman Paul, Desarrollo, Geografía y Teoria Económica, Barcelona, Antoni Bosch editor,
1995.
Oliveira F. de, Elegia para uma Re(li)gião. Sudene, Nordeste, Planejamento e conflito de
classes, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
Quine W. V. O., From a Logical Point of View, Harvard University Press, 1953.
Said Edward, Orientalismo, São Paulo, Cia. das Letras, 1990.
Strabo, The Geography of Strabo, Loeb Classical Library edition, 1917, disponível in
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Strabo/ (capturado em setembro de
2010).
Thrift Nigel, “Visando o âmago da região”, In K. Gregory, R. Martin e G. Smith (Org.),
Geografia Humana. Sociedade Espaço e Ciência Social, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996,
pp.215-47.
Notes
1 Para o autor um exemplo ou uma metáfora complexa funciona como modelo, que nada mais é
que uma simplificação didática da realidade sem, necessariamente, fazer uso de fórmulas
matemáticas. Krugman gosta – ele repetiu esse exemplo em vários livros – de fazer uso de um
modelo de cooperativa que funciona na base de distribuição de cupons entre os membros para
analisar a realidade da inflação (ou deflação) num determinado contexto.
2 É verdade que o autor, nas reedições mais recentes desta obra [a partir do final dos anos 1980],
em parte a reescreveu acrescentando novos itens e adotando algumas ideias da segunda
concepção regional, aquela alicerçada na divisão territorial do trabalho. Mas nosso interesse aqui
não está nos desdobramentos da leitura andradeana e sim na comparação entre três modelos ou
“tipos ideais” de entendimento a respeito do Nordeste brasileiro.
3 Assim como na concepção regional anterior, nesta há divergências entre os autores que a
adotam, interpretações às vezes contraditórias neste ou naquele aspecto, assim como a existência
de obras que estão numa posição intermediária entre duas leituras da região. Mas não estamos
interessados numa análise exaustiva a respeito das diversas obras que abordaram o Nordeste
brasileiro e sim numa reflexão sobre regionalização exemplificando com esses três “tipos ideais”
ou modelares.
4 O autor lembra ainda que Vidal recusava a classificação da Geografia como uma ciência social,
afirmando que ela seria uma “ciência dos lugares” com forte ênfase na “harmonia” entre as
comunidades humanas e o seu meio ambiente. Há estudos franceses que procuram demonstrar
que no transcorrer do tempo Vidal engendrou diferentes concepções de região, inclusive – no
final de sua vida e após uma viagem aos Estados Unidos – uma que valoriza mais a vida urbana e
os meios de transportes. Mas reiteramos que este ensaio não busca esmiuçar a evolução do
entendimento regional em Vidal e nossa caracterização deste autor, que sem dúvida influenciou
Andrade, tem por base o mencionado texto de Thrift.
5 Ideólogos da CEPAL, como principalmente Celso Furtado e Raul Prebisch, faziam uso de uma
análise marxista com frequência disfarçada sob um vocabulário keynesiano devido ao fato dessa
instituição pertencer à ONU e esta ser financiada principalmente pelos Estados Unidos. Eles
apregoavam invariavelmente a necessidade de industrialização e planejamento (inspirado no
socialismo real) para desenvolver as “regiões deprimidas”.
https://journals.openedition.org/confins/7377 10/11
27/09/2021 21:01 O conceito de região em três registros. Exemplificando com o Nordeste brasileiro
6 Nesta obra, Gramsci analisa o desequilíbrio entre o Norte e o Sul da Itália numa perspectiva
que não parte da produção ou do espaço econômico e sim do conceito de “bloco histórico”, por ele
engendrado, centrado sobre a hegemonia – intimamente ligada à cultura – de uma classe sobre
outra(s). O acomodamento entre essas duas regiões teria sido um pressuposto da forma de
unificação do país, isto é, da construção da nação italiana no século XIX. A nosso ver, Oliveira
desvirtua completamente a análise de Gramsci quando afirma (longa nota de rodapé nas pp. 122-
3) que fez o mesmo que o intelectual italiano.
7 Said demostrou como esse “objeto”, o orientalismo, foi inventado pelos intelectuais ocidentais
e sofreu várias metamorfoses neste ou naquele contexto: em alguns períodos o “oriental” era
principalmente o árabes e/ou muçulmano, em outros o indiano, hoje mais do que tudo o japonês
e os chinês, etc., mas sempre visto de forma estereotipada.
Auteur
José William Vesentini
Professor Livre Docente do Departamento de Geografia da FFLCH da USP, jwilliam@uol.com.br
Droits d’auteur
Confins – Revue franco-brésilienne de géographie est mis à disposition selon les termes de la
licence Creative Commons Attribution - Pas d’Utilisation Commerciale - Partage dans les Mêmes
Conditions 4.0 International.
https://journals.openedition.org/confins/7377 11/11