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27/09/2021 21:01 O conceito de região em três registros.

Exemplificando com o Nordeste brasileiro

Confins
Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia

14 | 2012
Numéro 14

O conceito de região em três


registros. Exemplificando com o
Nordeste brasileiro
Le concept de région dans trois registres. L’exemple du Nordeste brésilien
The concept of region in three registries, exemples from the Brazilian Northeast

José William Vesentini


https://doi.org/10.4000/confins.7377

Résumés
Português Français English
Este ensaio é uma reflexão sobre regionalização que utiliza como exemplo o Nordeste do Brasil.
Ele compara regionalização em geografia com periodização em história e mostra que em ambos
os procedimentos existem elementos objetivos e subjetivos. Faz ainda um resumo crítico das três
principais concepções sobre a região Nordeste: uma tradicional, centrada na análise das
paisagens; outra moderna, preocupada com a divisão territorial do trabalho; e a terceira pós-
moderna e que enfatiza a invenção dessa região – por determinados políticos, intelectuais e pela
mídia – a partir dos anos 1920. No final há um balanço que mostra os prós e contras de cada uma
dessas concepções regionais.

Cet essai est une réflexion sur la régionalisation qui utilise comme un exemple le Nord-est du
Brésil. Il compare la régionalisation en géographie avec la périodisation en histoire et démontre
que dans les deux procédures il y a des éléments objectifs et subjectifs. En plus, il fait un résumé
critique des trois conceptions principales sur la région du Nord-est: une conception traditionnel
mettant l'accent sur l'analyse des paysages; une autre, moderne, préoccupé de la division
territoriale du travail; et la troisième conception qui est post-moderne, mettant l'accent sur
l'invention de cette région – par certains politiques, des intellectuels et la média – depuis les
années 1920. A la fin de l’article, il y a un bilan qui affiche les pours et les contres de chacune de
ces conceptions régionales.

This essay is a reflection on regionalization which makes use of Northeast Brazil as an example. It
compares the regionalization in geography with periodization in history showing that, in both
procedures, there are subjective and objective elements. It also contains a critical summary of
three main conceptions concerning the Northeast region: one of them is traditional and focus on
the landscape; the other one is modern and its concerns lay on the territorial division of labor;
finally, the last one is postmodern and puts emphasis on the fact that this region has been an
invention – produced by certain politicians, intellectuals and the media – since the 1920’s. At the
end of this article there is a review showing the pros and cons of each of these regional
conceptions.
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Entrées d’index
Index de mots-clés : division territoriale du travail, invention de la région, Nord-est du Brésil,
paysage, région, régionalisation
Index by keywords: invention of the region, landscape, Northeast Brazil, region,
regionalization, territorial division of labor
Index géographique : Nordeste
Índice de palavras-chaves: divisão territorial do trabalho, invenção da região, Nordeste do
Brasil, paisagem, região, regionalização

Texte intégral

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Crédits : Hervé Théry
1 Região é um conceito geográfico clássico e essencial. Talvez até o mais importante
deles, ou, pelo menos, o mais identificado com a ciência geográfica. Foram inúmeros os
autores que asseveraram ser a geografia regional – logo, o estudo das regiões – o âmago
mesmo da ciência geográfica. Por sinal, essa ênfase na geografia regional, no estudo das
regiões como o intuito último da geografia, apesar de no século XX ter sido identificada
com a escola capitaneada por Vidal de La Blache (1845-1918), na verdade é bastante
antiga, tendo sido já apadrinhada pelo geógrafo Estrabão, que viveu provavelmente no
século I a.C. (Strabo, s/d: passim)
2 Em termos comparativos, regionalização em geografia é algo que se assemelha
bastante a periodização em história. Periodizar ou separar o tempo histórico em
períodos – etapas ou fases – é um procedimento metodológico análogo ao de
regionalizar ou dividir o espaço geográfico em regiões, isto é, em áreas ou porções
distintas de um todo. Nos dois casos há uma divisão, um corte, seja no tempo ou no
espaço, e também um agrupamento. Daí a necessidade de, por um lado, escolher limites
ou marcos entre essa região ou período e os demais; e, por outro lado, estabelecer
“traços em comum” num período ou no interior de uma região. Ambos têm os mesmos
problemas e, ao mesmo tempo, inúmeros aspectos similares. Nenhum deles, nunca, é
algo exato ou indiscutível. Sempre há um elemento subjetivo no corte, no marco ou no
limite que se faz no tempo ou no espaço. Mas esse elemento subjetivo, essa escolha
afinal, quase nunca é fruto de um puro arbítrio; normalmente se apoia em elementos
objetivos, isto é, em determinados aspectos – sejam “fatos”, processos ou características
– deste ou daquele período do tempo, desta ou daquela parcela do espaço. Só que
sempre existem outros elementos ou aspectos igualmente tangíveis ou detectáveis que
poderiam ser levados em conta e que, ao serem valorizados, implicariam num recorte
ou numa delimitação muitas vezes bastante diversa.
3 É por isso que tanto a periodização quanto a regionalização colocam de forma
imediata e explícita o problema epistemológico do realismo (ou materialismo) versus o
idealismo. As regiões – ou os períodos históricos – têm vida efetiva ou real, de forma
independente do observador, da nossa consciência? Ou no fundo são apenas produtos
da nossa mente, do nosso intelecto? Já existiram e ainda existem autores que adotam
esta ou aquela perspectiva. Há os que asseveram que as regiões existem de forma
positiva ou objetiva, independentemente das escolhas do investigador; elas seriam
então “fatos” ou realidades indiscutíveis. E há também os que, embora minoritários na
geografia (na qual sempre predominou o realismo ou materialismo, com a existência de
raríssimos idealistas), advogam serem as regiões nada mais nada menos que

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constructos ou invenções do pesquisador ou da ideologia de determinados grupos ou


classes sociais. Acreditamos que ambos os pontos de vista têm um pouco de razão e que
no final das contas o correto é uma síntese, um meio termo. Ou seja, as regiões existem
e não existem concomitantemente, são e não são produtos da nossa imaginação. Elas
evidenciam com clareza a validade tanto do realismo quanto do idealismo, ou melhor, a
necessidade de superar esses opostos, de transcendê-los numa síntese que os inclua.
4 Podemos exemplificar esse raciocínio com um exemplo didático, um modelo tal como
denominam certos economistas (cf. Krugman, 1995, p. 65-86)1: a formação de grupos
de alunos numa hipotética sala de aula. Essa operação intelectual, embora bem mais
simples, é algo similar àquela de periodizar o tempo ou de regionalizar o espaço. Ela
evidencia com clareza a validade tanto do idealismo (podemos imaginar e adotar
inúmeros critérios para dividir os alunos em grupos) quanto do materialismo
(praticamente todo conjunto com alunos reais tem ou passa a ter uma existência
empírica). É possível dividir ou agrupar os estudantes de várias maneiras e, segundo
nosso ponto de vista, todas elas são ao mesmo tempo objetivas e subjetivas. Uma
primeira maneira seria a de juntar os alunos em dois conjuntos: os do sexo masculino e
os do feminino. Podemos talvez, dependendo de suas idades, dividi-los em três ou
quatro grupos etários. Pode-se ainda reuni-los em certo número de conjuntos de acordo
com o local onde residem: por exemplo, os que moram ao norte da escola (ou da cidade,
ou do bairro) formam um grupo, a leste outro e assim sucessivamente. Existe ainda a
maneira tradicional de agrupá-los, embora política e pedagogicamente incorreta,
formando três conjuntos de acordo com os seus desempenhos na disciplina que
lecionamos: os mais adiantados, os medianos e os retardatários. E por aí afora,
dependendo de nossa imaginação e também dos nossos objetivos, isto é, do porque ou
para que estamos agrupando ou dividindo os alunos dessa classe. Seriam todos esses
conjuntos ou grupos de alunos totalmente subjetivos? Sim e não. Por um lado sim, por
sinal o mais evidente: eles são antes de tudo resultados de uma construção intelectual e
não, como apregoam os materialistas vulgares, de um “reflexo da realidade”. Mas, por
outro lado, os dois diferentes sexos (estamos falando de sexo biológico e não de
orientação sexual) existem efetivamente, as diferenças de idade idem, assim como as de
local de moradia ou de desempenho passado (que não significa, necessariamente,
predição futura) nas avaliações da disciplina. São elementos objetivos, embora com
maior ou menor valorização dependendo de nossos objetivos, de nossas escolhas do que
priorizar. No final das contas, podemos até mesmo utilizar um rodízio de critérios: para
uma determinada tarefa (elaborar seminários, por exemplo) um deles, outro para uma
atividade diferente (uma gincana, por exemplo), e assim sucessivamente.
5 Os estudos sobre o Nordeste brasileiro nos oferecem um excelente panorama para
avaliarmos essa questão. Isso porque é a porção do território nacional mais estudada e
discutida na produção geográfica e também na de ciências afins (sociologia, economia,
história) que também abordam de alguma forma regiões e regionalismos. E sobre ela
existem concepções mais díspares do que as que foram elaboradas a respeito de outras
porções deste território. Iremos evidenciar diferentes tipos de regionalização que de
alguma forma explicitam essa porção do território nacional. [Falamos dessa porção ou
parte do território brasileiro, no singular, mas é evidente que os seus limites e traços
definitórios podem variar bastante dependendo da regionalização. Em suma, o singular
pode virar plural, pois elas – as diferentes concepções do Nordeste – não são
necessariamente a “mesma” região, isto é, delimitada e caracterizada de maneira
idêntica]. Existem a nosso ver pelo menos três compreensões bastante distintas sobre o
Nordeste brasileiro. Para efeitos de simplificação, podemos designar a primeira delas
como tradicional ou lablacheana; a segunda como moderna e a terceira como pós-
moderna. As duas primeiras sem nenhuma dúvida são materialistas ou realistas, e a
terceira pode ser considerada como idealista. Entretanto, estes rótulos – tradicional,
moderno e pós-moderno – são apenas classificações cômodas e provisórias, além de
questionáveis – sem dúvida que outras poderiam ter sido escolhidas –, que não devem
implicar em maior ou menor valorização desta ou daquela concepção regional. Na
escolha dessas denominações apenas seguimos uma tendência recente, sem a
preocupação – que não é nosso escopo – de questionar essa rotulagem que, como
qualquer outra, no fundo é problemática. Cabe ainda ressaltar que este ensaio não
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procura explicar ou compreender o que é o Nordeste brasileiro. Ele objetiva, no


essencial, refletir sobre o ato mesmo de regionalizar e, como exemplificação, comparar
três diferentes e paradigmáticas concepções sobre essa região brasileira.
6 A noção mais tradicional sobre a região Nordeste do Brasil é que ela é algo “dado” ou
relativamente natural, fruto de uma determinada ocupação humana sobre uma parcela
do nosso espaço geográfico. Uma forma de ocupação que, evidentemente, interagiu com
o meio ambiente, num certo sentido se adaptou ou se moldou frente a ele. O espírito
desta concepção é o binômio “a Terra e o Homem”, a natureza original e a sociedade
que a ocupou e que, mesmo a modificando neste ou naquele aspecto, muito deve a ela
na sua formação espacial. Daí se dividir a região em Zona da Mata, Agreste e Sertão,
além do Meio Norte, um agrupamento e uma segmentação que tem como alicerce o
meio ambiente: o clima tropical úmido com os solos de massapê naquela primeira sub-
região, uma área de transição com altitudes mais elevadas na segunda e o clima
semiárido com o bioma caatinga na terceira; também o Meio Norte é definido como
zona de transição, só que do Nordeste para a Amazônia e não entre a Zona da Mata e o
Sertão como no caso do Agreste.
7 O segundo modo de ver o Nordeste brasileiro toma como base a divisão inter-
regional do trabalho. Também é um ponto de vista materialista ou realista, como o
anterior, mas com a diferença que parte do todo – o espaço brasileiro – e não da região
em si, de suas (pretensas) características inerentes, como naquela primeira concepção.
A industrialização do país teria promovido uma (nova) divisão territorial do trabalho,
na verdade a construção de um espaço geográfico nacional integrado, e nesse processo a
região Nordeste teria ficado com o papel de uma zona periférica destinada a fornecer
matérias primas e mão-de-obra barata para o Sudeste ou, segundo alguns, para o
Centro-sul do país. A ênfase aqui é mais na economia e a sua dinâmica espacial, ao
contrário da regionalização anterior que parte das relações entre o Homem (a
sociedade) e a Terra (o seu meio ambiente).
8 A terceira concepção sobre o Nordeste afirma que essa (suposta) região na realidade
é uma invenção ou construção. Uma invenção produzida por determinados grupos
sociais – internos (a elite da própria região, ou pelo menos boa parte dela) e também
externos (de São Paulo ou do Rio de Janeiro, capital federal até 1960) – num processo
político no qual a criação de uma “região problema”, que deve ser alvo de
assistencialismo e de transferência de verbas, foi uma atitude adaptada ao controle
social e a um determinado acomodamento entre as diversas partes (com as suas classes
dirigentes e dominantes) do espaço nacional. Esse engendramento da região teria sido
operado na mídia, nos discursos políticos, na produção intelectual e até mesmo nas
artes (por exemplo, com a invenção de uma pretensa “música nordestina”). É um ponto
de vista que podemos denominar idealista, sem nenhum demérito – afinal, o idealismo
também tem o seu valor e de alguma forma compreende a realidade e até permite uma
ação sobre ela. Idealismo na medida em que não foi a partir da análise objetiva ou
empírica de nenhuma “realidade” material, de nenhum traço seja da região seja do
espaço nacional, que esse conceito de “região Nordeste” foi construído. Ele foi
construído em função, basicamente, dos interesses materiais e ideológicos de
determinados grupos dominantes, que acabaram por impor certa visão da região com
as suas hipotéticas “características” tais como as secas e a pobreza, a música e a
literatura regionais, um determinado modo de ser ou de se comportar, etc.
9 Uma obra que ilustra muito bem aquela primeira visão do Nordeste é A Terra e o
Homem no Nordeste, de Manuel Correia de Andrade (Andrade, 1964)2. Não que seja a
única. Na verdade existem inúmeras – centenas – de obras que desde pelo menos a
terceira década do século XX reproduzem, com algumas nuanças, essa concepção
tradicional da região, sendo que algumas, mesmo sendo datadas, possuem uma
inegável qualidade científica: livros e artigos publicados pelo IBGE, trabalhos de Josué
de Castro, Gilberto Freyre, Jacques Lambert, Roger Bastide, Marília Velloso Galvão,
Nilo Bernardes e vários outros. Mas o livro de Andrade é o que melhor exemplifica esse
esquema “a Terra e o Homem”, essa ênfase nas paisagens e, bem ou mal, se tornou o
mais popular de todos, tendo conhecido sucessivas edições e citações ou reproduções
num sem número de trabalhos acadêmicos e mesmo didáticos.

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10 Já a segunda concepção sobre o Nordeste do Brasil é ilustrada de forma magnífica


pelo livro Elegia para uma re(li)gião, de Francisco de Oliveira (Oliveira, 1977). Também
não é o único nessa perspectiva. Existem algumas dezenas de outros trabalhos que, com
algumas diferenças, vão pelo mesmo caminho de priorizar a divisão inter-regional do
trabalho e o papel do Nordeste nesta: obras de Celso Furtado (por sinal um grande
inspirador de Oliveira, que trabalhou na SUDENE idealizada por Furtado e o seu
estudo crítico é um resultado dessa experiência), de Yves Chaloult, Manoel Seabra e Léa
Goldenstein, Tânia Bacelar de Araújo, Antônio Barros de Castro e vários outros3. Mas a
nosso ver o estudo de Oliveira é o mais exemplar, o mais acabado – e também o mais
referenciado – dentro desse ponto de vista.
11 Por fim, a terceira leitura do Nordeste brasileiro tem no livro A invenção do Nordeste
e outras artes, de Durval Muniz de Albuquerque Jr (Albuquerque Jr, 2001), o seu
melhor exemplo. Talvez pela própria natureza do tema, no qual sempre predominaram
de forma avassaladora os empiristas e materialistas, existem poucos trabalhos –
geralmente recentes – que adotam total ou parcialmente este viés mais idealista. Na
verdade, a recente ascensão do idealismo e também do construtivismo epistemológico,
através, por exemplo, da ideia de invenção ou construção de um objeto social (uma
nação, certas tradições, um regionalismo e por aí afora) é algo relativamente recente [a
partir dos anos 1970] e costuma ser etiquetado como pós-moderno.
12 O livro de Andrade define a região Nordeste em função das suas paisagens,
entendidas principalmente como obras da natureza com a sua posterior ocupação
humana. Logo de início ele exclui o Maranhão e o Piauí, o chamado Meio Norte,
afirmando que essa área, pelas paisagens naturais que apresenta, seria mais uma
transição entre o “verdadeiro Nordeste” (do Ceará até o norte da Bahia) e a Amazônia
(Andrade, 1964, p. 3-4). Nas suas palavras:

“Estendendo-se por uma área de mais de 750.000 km2 caracteriza-se o Nordeste


do Brasil, como toda região geográfica, pela influência de uma série de fatores,
entre os quais, para usar a terminologia empregada por Cholley, sobressaem-se os
domínios físicos – estrutura geológica, relevo, clima e hidrografia –, o meio
biológico – vegetação e fauna – e a organização dada ao espaço pelo homem. (...)
No Nordeste, o elemento que marca mais sensivelmente a paisagem e mais
preocupa ao homem é o clima, através do regime pluvial e exteriorizado pela
vegetação natural. Daí distinguir-se desde a época colonial entre a ‘Zona da Mata’
com o seu clima quente e úmido e duas estações bem definidas – uma chuvosa e
outra seca – do Sertão, também quente, porém seco, e não só seco como sujeito,
desde a época colonial, a secas periódicas que matam a vegetação, destroçam
animais e forçam os homens à migração. Entre uma área e outra firma-se uma
zona de transição, com trechos quase tão úmidos como a Zona da Mata e outros
tão secos como o Sertão, alternando-se constantemente e a pequena distância, que
o povo chamou de Agreste. Daí, dessa diversidade climática, surgiria a dualidade
consagrada pelos nordestinos e expressa no período colonial em dois sistemas de
exploração agrária diversos, que se complementam economicamente mas que,
política e socialmente se contrapõem: o Nordeste da cana-de-açúcar e o Nordeste
do gado, observando-se entre um e outro, hoje, o Nordeste da pequena
propriedade e da policultura.”(Andrade, 1964, p. 6-7).

13 Como se nota por inúmeros traços – a geografia física como ponto de partida, seguida
pela ocupação humana que vai se adaptar (mesmo que suscitando algumas mudanças)
a esse meio ambiente, uma forte ênfase no meio rural e na questão agrária – e por sinal,
a análise dessa questão agrária nordestina no início dos anos 1960 é o grande mérito
deste livro de Andrade, neste ponto elogiado por Caio Prado Júnior e José de Souza
Martins –, trata-se de mais um rebento, no ultramar, da escola geográfica francesa que
teve em Vidal de La Blache o seu grande mentor. A região assim é quase que “dada”, um
fruto mais da natureza do que do social. Não se interroga sobre a sua gênese do ponto
de vista de construção pelos grupos humanos, mas se supõe que ela existiria
anteriormente (a geomorfologia, o clima, os solos, as águas, a vegetação) e que a
sociedade, apesar de ter sido produzida por outras determinações (o colonialismo
mercantil, neste caso), acabou por se adaptar muito bem a essa natureza original
mesmo, reiteramos, ocasionando nela esta ou aquela alteração (desmatamentos e
aumento da aridez em certas áreas, assoreamento e mudanças na hidrografia em

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outras). É exatamente o tipo de análise regional lablacheana, que sempre valorizou as


regiões com séculos de história, praticamente desde o feudalismo – os pays da França,
com forte tradição camponesa – e principalmente uma ênfase na questão agrária (cf.
Thrift, 1996, p. 215-47).
14 Essa tradição de análise regional, como bem assinalou este último autor (Thrift, 1996,
p. 221)4, sempre teve sérias dificuldades na compreensão de áreas mais industrializadas
e urbanizadas e até mesmo na explicação da dinâmica do social moderno reorganizado
ou reproduzindo o seu espaço. Talvez por isso mesmo Andrade focaliza o seu estudo na
questão agrária, deixando completamente de lado a discussão, já iniciada desde pelo
menos o governo Juscelino Kubitscheck (com a criação da SUDENE em 1959 a partir de
estudos de Celso Furtado sobre a necessidade de industrializar a região), de promover o
desenvolvimento regional nos moldes apregoados pela CEPAL, da qual Furtado foi um
dos principais teóricos (cf. Bielschowsky, 2000, p. 15-68)5.
15 Já o livro de Oliveira aborda exatamente aquilo que Andrade omitiu e, de forma
inversa, ignora solenemente aquilo que ele estudou com mais detalhes: as paisagens e a
questão agrária. A principal preocupação do marxista Oliveira não é a persistência de
relações de trabalho coloniais e sim algo meio negligenciado nas análises lablacheanas:
a mudança, a dinâmica do social na sua permanente reconstrução do espaço. O espaço
para ele – como para os marxistas em geral – é o econômico (produção em sua
localização, trocas, reprodução e fluxos de capitais, mercadorias e mão-de-obra) e
nunca uma relação qualquer entre a sociedade e a natureza original. Esta obra no fundo
reflete uma forte decepção do autor com a SUDENE e com o planejamento regional no
Brasil. Logo no início ele afirma que existe uma “impossibilidade para se construir
qualquer teoria do planejamento”, pois este “é uma forma técnica de divisão do
trabalho num sistema capitalista” (Oliveira, 1977, p. 15-16). Nas suas palavras:

“O marco teórico desta investigação recusa(...) a compreensão da emergência do


planejamento regional no Nordeste do Brasil sob o enfoque dos ‘desequilíbrios
regionais’, para examina-los sob a ótica da divisão regional do trabalho no Brasil,
vale dizer sob a ótica do processo de acumulação do capital e de homogeneização
do espaço econômico(...) Poder-se-ia dizer, com Paul Baran(...) que não é o
planejamento que planeja o capitalismo, mas é o capitalismo que planeja o
planejamento(...) Privilegia-se aqui um conceito de região que se fundamenta na
especificidade da reprodução do capital, nas formas que o processo de acumulação
assume, na estrutura de classes peculiar a essas formas e, portanto, também nas
formas de luta de classes e do conflito social em escala mais geral(...) No limite,
num sistema econômico de base capitalista, existe uma tendência para a completa
homogeneização das relações do capital e de suas formas, sob a égide do processo
de concentração e centralização do capital, que acabaria por fazer desaparecer as
‘regiões’(...) Talvez a economia norte-americana seja o exemplo mais completo, é
inegável o grau de homogeneização propiciado pela concentração e centralização
do capital, de forma a quase borrar por inteiro as diferenças entre os vários
segmentos do território nacional norte-americano. Uma ‘região’ seria, em suma, o
espaço onde se imbricam dialeticamente uma forma especial de reprodução do
capital e por consequência uma forma especial de luta de classes, onde o
econômico e o político se fusionam e assumem uma forma especial de aparecer no
produto social e nos pressupostos de reposição(...) A recuperação possível da
noção de conflito entre nações no sistema capitalista somente pode ser viável
quando se incorporam os interesses populares como se opondo à coalisão
imperialismo-classes dominantes locais e, portanto, passará a reconhecer que a
Nação na periferia do mundo capitalista somente pode ser construída pelas
classes populares, e seu vir-a-ser é o socialismo.” (Oliveira, 1977, p. 26-9, os grifos
são do autor).

16 Deixando-se de lado o amplo uso de clichês, sendo que alguns francamente soam
ridículos nos dias de hoje – tais como que o engajamento pela “construção da nação”
vai se contrapor ao capitalismo e conduzir ao socialismo, que a forma de reprodução do
capital determina a luta de classes ou que só no capitalismo é que o sistema planeja o
planejamento e não o contrário [será que o autor acreditava sinceramente que no
socialismo real o planejamento é que planejava o sistema?] –, observamos que a ideia
central, no que diz respeito à nossa problemática da regionalização, é que as regiões são
formas específicas de reprodução do capital, acompanhadas mecanicamente [apesar de
o autor falar em “dialeticamente”] pelas lutas sociais “correspondentes”, e que no
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desenvolvimento do capitalismo, principalmente o monopolista como o autor repete


várias vezes no livro, existiria uma tendência para a homogeneização do espaço
econômico e, portanto, as regiões se dissolveriam, deixando de existir enquanto tais.
17 O Nordeste, nessa interpretação, estaria condenado a ser uma imitação, uma
reprodução, um novo Centro-sul do Brasil. A região Nordeste existe, tem uma inegável
realidade material, embora tenha sido remodelada várias vezes – o autor se refere ao
“velho Nordeste” dos coronéis e da cana-de-açúcar em oposição ao “novo Nordeste” da
SUDENE e da expansão do capital monopolista oriundo do Centro-sul do país. E, ao
mesmo tempo, essa região Nordeste estaria meio que – já que o autor fala em
“tendência” – condenada a desaparecer, a se dissolver num hipotético futuro espaço
nacional homogeneizado. Uma leitura marxista-leninista no final das contas, não
apenas porque o autor cita com total concordância o livro de Lênin, O desenvolvimento
do capitalismo na Rússia, mas principalmente por certo mecanicismo e economicismo
que o próprio Marx sem dúvida evitaria e que Gramsci, apesar de lembrado numa nota
de rodapé do livro de Oliveira, repudiou veementemente quando analisou os
desequilíbrios regionais na Itália (Gramsci, 1987)6.
18 Vejamos agora o ponto de vista de Albuquerque Júnior. Sua fundamentação teórica
não é Vidal de La Blache; tampouco Marx ou Lênin. É Michel Foucault com o seu
entendimento a respeito do poder (ou melhor, poderes), um exercício – pois o poder
não é uma teoria e sim um ato, uma relação social – indissociável de certa
reorganização ou reconstrução do espaço (Foucault, 1979, p. 212). O autor também, a
nosso ver, foi bastante influenciado pela interpretação do “orientalismo” operada por
Edward SAID (1990), um crítico literário e historiador da literatura que, por sinal,
também assumiu certa influência, embora parcial, de Foucault7. Albuquerque Jr detecta
uma invenção da região Nordeste nos anos 1920; antes disso costumava-se dividir o
Brasil – na mídia, nos discursos políticos e intelectuais – em “Norte” (incluindo aí o que
depois passou a ser o Nordeste) e “Sul” (que depois passou a ser o Centro-sul). Antes de
serem “nordestinos”, os moradores dessa região eram vistos como os “nortistas”. Essa
construção do Nordeste teria sido operada na mídia, na literatura, nas artes plásticas,
no folclore, etc. Nas suas palavras:

“Assistimos, na década de vinte, à emergência de um novo regionalismo(...) Com


as mudanças substanciais no campo econômico e técnico, como a industrialização
e a urbanização, a imigração em massa, o fim da escravidão, o Centro-sul,
notadamente São Paulo, vai se tornando uma área bastante diferenciada do
restante do país. No antigo Norte, vive-se um período de crise acentuada, com
mudanças também substanciais que advêm do processo de aprofundamento de
sua dependência econômica, de sua submissão política em relação às outras áreas
do país(...) O discurso da seca, traçando ‘quadros de horrores’, vai ser um dos
responsáveis pela progressiva unificação dos interesses regionais e um detonador
de práticas políticas e econômicas que envolve todos ‘os Estados sujeitos a esse
fenômeno climático’(...) O cangaço e o messianismo, lidos pejorativamente tanto
por ‘nortistas’ como por ‘sulistas’, surgem, no discurso da seca, ligados a esse
fenômeno, tornando-se mais um argumento a favor dos ‘investimentos e da
modernização do Norte’(...) O Nordeste nasce da construção de uma totalidade
político-cultural como reação à sensação de perda de espaços econômicos e
políticos por parte dos produtores tradicionais de açúcar e algodão, dos
comerciantes e intelectuais a eles ligados. Lança-se mão de topos, de símbolos, de
tipos, de fatos para construir um todo que reagisse à ameaça de dissolução, numa
totalidade maior, agora não dominada por eles: a nação(...) A necessidade de
reterritorialização leva a um exaustivo levantamento da natureza, bem como da
história econômica e social da área, ao lado de todo um esforço de elaboração de
uma memória social, cultural e artística que pudesse servir de base para sua
instituição como região(...) Não é à toa que as pretensas tradições nordestinas são
sempre buscadas em fragmentos de um passado rural e pré-capitalista; são
buscadas nos padrões de sociabilidade e sensibilidade patriarcais, quando não
escravistas. Uma verdadeira idealização do popular, da experiência folclórica, da
produção artesanal, tidas sempre como mais próximas da verdade da terra.”
(Albuquerque Jr, 1996, p. 40-77, passim).

19 Não apenas a região Nordeste teria sido inventada, mas também os nordestinos com
o seu “comportamento típico”, suas músicas regionais, seu folclore característico e por
aí afora. Não que antes inexistissem músicas, folclore, artesanato, etc., nessas diversas
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áreas que foram juntadas nessa pretensa unidade denominada Nordeste: o litoral
pernambucano e paraibano, o sertão cearense, o recôncavo baiano ou a parte
amazônica do Maranhão, para citar apenas algumas. O que o autor assinala é a
arbitrariedade dessa reunião, que dilui as diversidades e heterogeneidades existentes
nesse imenso espaço. O autor insiste que não pretendeu elaborar outra concepção de
Nordeste, seja ela de “esquerda” (o Nordeste como “região explorada”, o nordestino
como trabalhador que “construiu São Paulo”, o cangaço ou as ligas camponesas como
“revolucionários”, etc.) ou de “direita” (o Nordeste como região parasita que vive de
recursos advindos do Centro-sul, o nordestino como indivíduo atrasado, sofredor e que
inspira piedade, etc.), pois isso seria pressupor algo incorreto: a existência efetiva da
região e dos “nordestinos”. No seu entendimento:
20 “Não quer este livro defender o Nordeste, mas ataca-lo; ele não quer sua salvação,
mas sua dissolução enquanto esta maquinaria imagética-discursiva(...) Assumir a
nordestinidade é assumir estas várias representações excludentes sobre este espaço e
povo; é emitir um discurso preso à lógica da submissão; é ocupar um lugar que esperam
para nossa voz e para nosso olhar: voz para pedir, suplicar, denunciar(...) Não é
assumindo a nordestinidade e usando-a como se fosse um enunciado revolucionário
que denunciaremos a teia de poder que exclui grande parte dos chamados nordestinos,
que estereotipa como marginais socioculturais a grande parte daqueles que nele habita.
Mas é nos afirmando como não-nordestinos, no sentido consagrado, é mostrando que
existem diferentes formas de ser nordestino(...) É preciso questionar as lentes com que
os nordestinos são vistos e se veem.” (Albuquerque Jr, 1999, p. 315-6).
21 Agora que resenhamos três pontos de vista sobre o Nordeste brasileiro, com
diferentes formas de regionalização, podemos fazer um balanço ou algumas
considerações finais. Qual ou quais desses pontos de vista são válidos? Qual ou quais
seriam equivocados? Na verdade, a questão não se coloca desta forma. Cada uma dessas
interpretações detecta algo da realidade e ao mesmo tempo é um ponto de vista
particular no sentido de colado a certos objetivos como também a certos pressupostos.
E também cada um deles corresponde mais ou menos a uma “época” (mesmo que elas
se interpenetrem e coexistam) no sentido intelectual – e não, necessariamente,
cronológico – do termo: o tradicional, o moderno e o pós-moderno. Não que uma
suceda a outra e a torne ultrapassada. Elas representam leituras diferentes, mas que
captam aspectos da realidade a partir de perspectivas distintas. Como já havia
assinalado uma determinada tradição geográfica – infelizmente, negligenciada em prol
de uma supervalorização da escola lablacheana de estudos regionais –, existente desde
no mínimo o início do século passado:

“A questão sobre qual critério deve ser escolhido para determinar regiões não tem
resposta na natureza [na realidade], afirmou Hettner. A escolha deve ser feita pelo
geógrafo de acordo com o seu julgamento subjetivo sobre sua importância.
Consequentemente, não podemos falar em falsa ou verdadeira divisão regional(...)
Não existe uma divisão universalmente válida que corresponda efetivamente a
todos os fenômenos.” (Hartshorne, 1939, p. 362-4).

22 As análises lablacheanas, tal como a realizada por Andrade, objetivam


essencialmente apreender a permanência de certas paisagens e de certo modo de vida –
o cultivo da terra, o mercado regional, as relações sociais e em especial as de trabalho –,
sempre com ênfase no tradicional, no que perdura do passado. Isso existe efetivamente,
mesmo sendo cada vez mais extinguido ou desarranjado pelo avanço da modernidade,
da industrialização e urbanização, dos meios de transportes e de comunicações, de
novas relações de sociabilidade. Andrade na verdade, coerente com esse approach, quis
mostrar ou denunciar a persistência de métodos e principalmente de relações de
trabalho coloniais e extremamente injustas, mesmo depois da proibição oficial da
escravidão, no meio rural nordestino. Isso ele fez muito bem, daí ter obtido referências
elogiosas daqueles dois supramencionados importantes estudiosos do meio rural
brasileiro.
23 Quanto a Oliveira, o que ele buscou de fato foi empreender uma dura crítica ao
planejamento regional no Brasil – que tinha e ainda tem a SUDENE como o seu maior
exemplo – e, principalmente, mostrar que a atuação desse órgão de planejamento, no

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seu entendimento, favoreceu a entrada do capital monopolista oriundo do Centro-sul


na região Nordeste, transformando-a de forma profunda. Também é uma obra de
denúncia, como o de Andrade, mas procurando mostrar não a permanência de relações
tradicionais e sim a mudança, a dinâmica da expansão do capitalismo no espaço
brasileiro com a reprodução de novas injustiças, de novas formas de exploração do
trabalho. Deixando de lado o amplo uso de clichês e a sua crença soteriológica no
nacionalismo como agente revolucionário que conduzirá ao socialismo [praticamente
ocupando o lugar do proletariado idealizado por Marx], também é um estudo perspicaz
e que compreende pelo menos um aspecto da realidade – ou esta vista sob um
determinado prisma.
24 Já as análises de Albuquerque Jr são mais complexas na medida em que o seu escopo
não foi explicar ou reconstruir um conceito de Nordeste e sim desconstruir uma
regionalização, uma noção de Nordeste inventada nos anos 1920 e que ora o vê como
atraso e miséria que necessita ajuda, ora como tradição genuína (o folclore, a música, a
literatura, o artesanato), e ora ainda como revolucionário. Albuquerque Jr não
pretendeu engendrar uma nova concepção regional, como Andrade e Oliveira, e sim
desmantelar certa visão da região que passou a ser dominante na mídia, nas artes
(literatura, música, pintura, cinema) e até na produção intelectual em geral desde pelo
menos aquela referida década. Também não deixa de ser um trabalho de denúncia –
mas não de denúncia da exploração dos trabalhadores no capitalismo, como de certa
forma os dois anteriores –, na medida em que afirma existirem relações de poder por
trás desse discurso sobre o Nordeste. É igualmente uma interpretação talentosa e
extremamente interessante, que mostra como a imagem do Nordeste foi sendo
inventada e constantemente reinventada sob uma mesma matriz a partir dos anos
1920.
25 Voltando às nossas comparações iniciais – da regionalização com a periodização e
com o modelo simples de divisão/ agrupamento dos alunos de uma sala de aula –,
acreditamos que as análises anteriores corroboram nossa tese de que em todos esses
casos coexistem elementos objetivos e subjetivos nas divisões ou nos limites, como
também nos traços, fatos ou processos marcantes da região, do período ou do
agrupamento. Sem dúvida que todo ponto de vista regional depende dos nossos
objetivos e pressupostos, bem como de nossa visão do mundo. De forma esquemática e
simplificada, podemos fazer as seguintes afirmações sobre as três obras e autores.
26 Andrade elaborou a sua obra a partir de uma perspectiva lablacheana num contexto,
que o influenciou fortemente, de intensas lutas pela reforma agrária em especial com as
ligas camponesas do Nordeste do final dos anos 1950 e inícios dos 60. Oliveira, por sua
vez, engendrou o seu trabalho a partir de sua visão de mundo marxista-leninista – no
qual o advento do socialismo é praticamente inevitável – e objetivando encetar uma
forte crítica do planejamento regional no Brasil; isso o conduziu a idealizar o
nacionalismo e até mesmo a vaticinar uma suposta dissolução das regiões num virtual
espaço homogeneizado. Quando a Albuquerque Jr, seu approach pluralista e pós-
moderno aliou-se à sua condição – na visão dos “outros”, principalmente daqueles do
Centro-sul – de “nordestino”, um estereótipo que ele buscou desconstruir ao mostrar
como essa imagem do Nordeste e dos nordestinos foi inventada.
27 Ipso facto, cabe lembrarmos as análises de Habermas (1982), que evidenciam as
ligações entre conhecimento, inclusive o científico, e interesses; não interesses no
sentido vulgar do termo (isto é, como busca de vantagens ou lucros) e sim como
pressupostos apriorísticos, como asserções ou valores sempre ligados à experiência de
vida e que deveriam ser objetos de uma autorreflexão crítica. Podemos ainda recordar
as conclusões do lógico Quine (1953, p. 1-19), segundo as quais toda discordância
ontológica implica numa divergência de linguagem e de conceitos, que em última
instância advém de pressupostos, de objetivos ou de interesses, de visões de mundo
diferenciadas enfim.
28 Estes sim – os pressupostos e objetivos, os interesses, as visões do mundo, e não as
pretensas “características inerentes” da região, como normalmente imaginam os
geógrafos – é que devem ser objetos de reflexões críticas, de cuidadosas ponderações.
Pois no final das contas serão eles – e não os aspectos objetivos da realidade, que,
todavia, também existem – que determinarão qual concepção regional adotaremos e
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quais traços ou características da região ou do todo iremos priorizar. A região, qualquer


que seja a regionalização que adotamos, também está dentro de nós e não apenas no
mundo empírico.

Bibliographie
Albuquerque Jr D. M. de, A invenção do Nordeste e outras artes, 2ª. Edição, São Paulo, Cortez,
2001.
Andrade M. C. de, A Terra e o Homem no Nordeste, 2ª. Edição, São Paulo, Brasiliense, prefácio
de Caio Prado Júnior, 1964.
Bielschowsky Ricardo, “Cinquenta anos de pensamento na CEPAL – uma resenha”, In R.
Bielschowsky (Org.), Cinquenta anos de pensamento na CEPAL, Volume 1. Rio de Janeiro,
Record, 2000, p.15-68.
Foucault M., Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
Gramsci A., A questão meridional, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
Habermas Jürgen, Conhecimento e Interesse, Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
Hartshorne R., The Nature of Geography, Lancaster, Derwent Whittlesey Editor, 1939.
Krugman Paul, Desarrollo, Geografía y Teoria Económica, Barcelona, Antoni Bosch editor,
1995.
Oliveira F. de, Elegia para uma Re(li)gião. Sudene, Nordeste, Planejamento e conflito de
classes, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
Quine W. V. O., From a Logical Point of View, Harvard University Press, 1953.
Said Edward, Orientalismo, São Paulo, Cia. das Letras, 1990.
Strabo, The Geography of Strabo, Loeb Classical Library edition, 1917, disponível in
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Strabo/ (capturado em setembro de
2010).
Thrift Nigel, “Visando o âmago da região”, In K. Gregory, R. Martin e G. Smith (Org.),
Geografia Humana. Sociedade Espaço e Ciência Social, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996,
pp.215-47.

Notes
1 Para o autor um exemplo ou uma metáfora complexa funciona como modelo, que nada mais é
que uma simplificação didática da realidade sem, necessariamente, fazer uso de fórmulas
matemáticas. Krugman gosta – ele repetiu esse exemplo em vários livros – de fazer uso de um
modelo de cooperativa que funciona na base de distribuição de cupons entre os membros para
analisar a realidade da inflação (ou deflação) num determinado contexto.
2 É verdade que o autor, nas reedições mais recentes desta obra [a partir do final dos anos 1980],
em parte a reescreveu acrescentando novos itens e adotando algumas ideias da segunda
concepção regional, aquela alicerçada na divisão territorial do trabalho. Mas nosso interesse aqui
não está nos desdobramentos da leitura andradeana e sim na comparação entre três modelos ou
“tipos ideais” de entendimento a respeito do Nordeste brasileiro.
3 Assim como na concepção regional anterior, nesta há divergências entre os autores que a
adotam, interpretações às vezes contraditórias neste ou naquele aspecto, assim como a existência
de obras que estão numa posição intermediária entre duas leituras da região. Mas não estamos
interessados numa análise exaustiva a respeito das diversas obras que abordaram o Nordeste
brasileiro e sim numa reflexão sobre regionalização exemplificando com esses três “tipos ideais”
ou modelares.
4 O autor lembra ainda que Vidal recusava a classificação da Geografia como uma ciência social,
afirmando que ela seria uma “ciência dos lugares” com forte ênfase na “harmonia” entre as
comunidades humanas e o seu meio ambiente. Há estudos franceses que procuram demonstrar
que no transcorrer do tempo Vidal engendrou diferentes concepções de região, inclusive – no
final de sua vida e após uma viagem aos Estados Unidos – uma que valoriza mais a vida urbana e
os meios de transportes. Mas reiteramos que este ensaio não busca esmiuçar a evolução do
entendimento regional em Vidal e nossa caracterização deste autor, que sem dúvida influenciou
Andrade, tem por base o mencionado texto de Thrift.
5 Ideólogos da CEPAL, como principalmente Celso Furtado e Raul Prebisch, faziam uso de uma
análise marxista com frequência disfarçada sob um vocabulário keynesiano devido ao fato dessa
instituição pertencer à ONU e esta ser financiada principalmente pelos Estados Unidos. Eles
apregoavam invariavelmente a necessidade de industrialização e planejamento (inspirado no
socialismo real) para desenvolver as “regiões deprimidas”.

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27/09/2021 21:01 O conceito de região em três registros. Exemplificando com o Nordeste brasileiro
6 Nesta obra, Gramsci analisa o desequilíbrio entre o Norte e o Sul da Itália numa perspectiva
que não parte da produção ou do espaço econômico e sim do conceito de “bloco histórico”, por ele
engendrado, centrado sobre a hegemonia – intimamente ligada à cultura – de uma classe sobre
outra(s). O acomodamento entre essas duas regiões teria sido um pressuposto da forma de
unificação do país, isto é, da construção da nação italiana no século XIX. A nosso ver, Oliveira
desvirtua completamente a análise de Gramsci quando afirma (longa nota de rodapé nas pp. 122-
3) que fez o mesmo que o intelectual italiano.
7 Said demostrou como esse “objeto”, o orientalismo, foi inventado pelos intelectuais ocidentais
e sofreu várias metamorfoses neste ou naquele contexto: em alguns períodos o “oriental” era
principalmente o árabes e/ou muçulmano, em outros o indiano, hoje mais do que tudo o japonês
e os chinês, etc., mas sempre visto de forma estereotipada.

Pour citer cet article


Référence électronique
José William Vesentini, « O conceito de região em três registros. Exemplificando com o Nordeste
brasileiro », Confins [En ligne], 14 | 2012, mis en ligne le 19 mars 2012, consulté le 28
septembre 2021. URL : http://journals.openedition.org/confins/7377 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/confins.7377

Auteur
José William Vesentini
Professor Livre Docente do Departamento de Geografia da FFLCH da USP, jwilliam@uol.com.br

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Controvérsias geográficas: epistemologia e política [Texte intégral]
Paru dans Confins, 2 | 2008

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