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Artigo - TCC Bruno Batista (Final) - Ufra
Artigo - TCC Bruno Batista (Final) - Ufra
Tomé-Açu
2022
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DA AMAZÔNIA
CAMPUS TOMÉ-AÇU
PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LINGUAGEM,
CULTURA E FORMAÇÃO DOCENTE
Tomé-Açu
2022
DEDICATÓRIA
A todos os meus familiares, avós, tios, primos, irmãos (Arthur, Bruna, Roberta e
Isabelly).
Ao meu queridíssimo orientador, Profº. Dr. Geovane Silva Belo, pelos valiosos
conselhos e relevantes contribuições ao trabalho e pela amizade demostrada ao longo do
curso, bem como as divagações noturnas.
O presente artigo tem por objetivo comparar os contos “Na rede, o navegar”, de Alfredo
Garcia e “Movimento no porão”, de Haroldo Maranhão, elencando as aproximações
narrativas presentes nos contos, principalmente no que diz respeito ao erotismo, ao corpo e ao
desejo. A base teórico-metodológica utilizada pautou-se nas relações de erotismo de Bataille
(1987), Octávio Paz (1994), nas concepções de corpo de Foucault (1984) e nos estudos de
literatura comparada de Sandra Nitrini (1994), além de outros autores. O objetivo principal
deste trabalho é relacionar traços discursivos e estéticos entre os dois contos, buscando
analisar o erótico e suas inter-relações nas obras de Alfredo Garcia e Haroldo Maranhão.
This article aims to compare the short stories “Na rede, o browse”, by Alfredo Garcia and
“Movimento no porão”, by Haroldo Maranhão, listing the narrative approximations present in
the tales, especially with regard to eroticism, the body and to desire. The theoretical-
methodological basis used was based on the erotic relations of Bataille (1987), Octávio Paz
(1994), on Foucault's conceptions of the body (1984) and on the comparative literature studies
of Sandra Nitrini (1994), in addition to others. authors. The main objective of this work is to
relate discursive and aesthetic traits between the two stories, seeking to analyze the erotic and
its interrelationships in the works of Alfredo Garcia and Haroldo Maranhão.
1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................................................11
3. EROTISMO NA LITERATURA...................................................................................................... 15
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................................25
REFERÊNCIAS.......................................................................................................................................27
ANEXOS.....................................................................................................................................................29
Conto 1: “Na rede, o navegar” (Alfredo Garcia).............................................................................29
Conto 2: “Movimento no porão” (Haroldo Maranhão).................................................................32
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1. INTRODUÇÃO
Deste modo, coube aos artistas produzir a arte do confronto, do deboche ou até
mesmo recorrer ao abrandamento ou à utilização de recursos poéticos para dar voz ao erótico.
Com as mudanças no âmbito cultural, o avanço nas lutas por diversidade e liberdade sexual,
no século XX, nas últimas décadas o tema foi se tornando cada vez mais explícito e popular.
Um exemplo disso são os romances considerados best-sellers, com grande circulação na
cultura de massa, o que alcança milhares de leitores e até mesmo traduções para o cinema.
Um dos casos é o de “Cinquenta Tons de Cinza” (2011) da escritora britânica E. L. James, no
qual o erótico é a peça principal da narrativa, que possui descrição explícita e práticas sexuais
que incitam a imaginação dos leitores, por isso a leitura destas obras causa fascínio e torna-se
um sucesso editorial.
Levando em conta esta ambientação temática, esse trabalho também procura dar
maior visibilidade à Literatura da Amazônia, em especial aos contos eróticos de dois autores
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paraenses. Ambos nestas narrativas evocam o erotismo, o corpo e o desejo com abordagens
que podem se aproximadas do ponto de vista discursivo e estético.
O trabalho tem como objetivo principal realizar, então, uma análise comparada dos
contos “Na rede, o navegar”, de Alfredo Garcia e “Movimento no porão”, de Haroldo
Maranhão, comparando-as sobre o viés da literatura comparada, que segundo Sandra Nitrini
em seu artigo “Teoria literária e literatura comparada” (1994, p. 11), são “estudos
comparatistas da literatura, voltados para a história da literatura comparada e de suas relações
com as Teorias e a crítica literária bem como o estudo das relações da literatura brasileira com
outras literaturas e da literatura com outras artes.”.
Esse trabalho compreende que os dois contos tratam do surgimento do desejo sexual
e do despertar das relações sexuais na adolescência e carregam, portanto, as concepções do
corpo como objeto de prazer e desejo insurgentes. Haroldo Maranhão e Alfredo Garcia
constroem, assim, narrativas que podem ser consideradas eróticas, pois a construção das
personagens, do ambiente e o desenrolar dos fatos gira em torno do prazer e das insinuações
do desejo sexual.
como a condução para o inesperado. O Livro de Eros, título muito adequado à coletânea de
contos escrita sob o signo do docemente erótico, traz o conto “Na rede, o navegar” que nos
apresenta a história da prima Joíra, que se aventura sexualmente com um de seus primos.
O título “Na rede, o navegar” já insinua a ideia do ato sexual como o “navegar”, o
narrador nos revela a história da prima Joíra, morena de peitos em flor e olhos castanhos e
calmos, bem como uma boca de lábios cor de jambo. O desejo velado pelo primo-narrador
fica explícito durante toda a narrativa, como citado ao descrever os banhos de igarapés e
encontros no balançar da rede. Joíra era prima distante do narrador-personagem e foi durante
as férias na casa do tio, em uma madrugada fria, no entrelaçar das redes que Joíra deu um
salto para dentro da rede do primo, entregando-se ao prazer dos corpos. Nesse jogo de carnes,
o corpo ganha destaque na voz do narrador, corpo esse que aparece durante a narrativa como
símbolo do desejo. Joíra é descrita como descolada nas “safadezas gostosas”. Neste conto, a
rede é um símbolo da cultura amazônica, mas é também o espaço onde o prazer se constrói.
Jogos Infantis faz parte daqueles textos da literatura que se destacam pela sua
específica linguagem poética, seu ritmo, suas expressões regionais e imagens sugestivas que
“brincam” com o imaginário. A obra faz um percurso pelo espaço urbano de Belém nos anos
1930 e 1940, demonstra ficcionalmente a sexualidade de crianças e adolescentes e constrói
um roteiro de experiências sexuais. Assim, Haroldo Maranhão traz narrativas que, para a
época já indicam a insurgência da liberdade sexual feminina e a ruptura também de tabus,
embora ainda ecoe sua visão masculina do corpo feminino como objeto, principalmente pelos
narradores serem, sobretudo, vozes masculinas.
3. EROTISMO NA LITERATURA
Alguns estudiosos consideram o erotismo como o tema mais antigo da literatura que
surgiu com a necessidade de falar sobre a sexualidade. Deste modo, o erotismo na literatura
requer sempre mais investigações, principalmente quando se refere a literaturas não
canônicas, como as produzidas por mulheres, por minorias ou isoladas de centros culturais
como as obras literárias da Amazônia paraense.
figura mítica do teogonia grega. Este termo traz em sua raiz etimológica a noção do Eros
literário, dentre as mais conhecidas está a de Platão em O Banquete (2001), obra que busca
evocar a essência do amor.
Na mitologia grega, a paixão, matriz propulsora das relações humanas, era tão
incompreensível que sua gênese só podia ser atribuída a um deus: o deus do amor. A
genealogia de Eros (ou Cupido no panteão romano) é incerta. Para Hesíodo (2005), Eros é
filho de Caos sendo portando um deus primordial. Para Platão (1987), Eros seria filho de
Poros e Pênia, concebido em uma festa para comemorar o nascimento de Afrodite. Em outros
mitos, Eros ainda é considerado como deus olímpico, filho ora de Afrodite e Hermes, ora de
Iris e Zéfiro ou ainda de Hermes e Ártemis. O que é certo é que Eros era o deus que unia e
multiplicava as espécies vivas. Seu poder assegurava a ordem e a coesão do Cosmos, além de
dar continuidade à vida. Com suas flechas, difundia o impulso erótico, considerado a força
visceral de perpetuação do mundo. Nesse sentido, está ligado não apenas ao amor espiritual,
mas também ao amor carnal: Eros era o deus da paixão, do desejo e também do sexo. Da sua
relação com Psiquê nasceu Hedonê, a personificação da luxuria e do prazer. A origem
etimológica da palavra erotismo alude a Eros. Os dicionários contemporâneos atribuem
diferentes manifestações a esse conceito, oscilando entre o amor romântico e os desejos
carnais. Essa ambivalência denuncia o caráter instável e aberto do erotismo, evidenciando
como o valor semântico do que é (ou não) erótico sofreu alterações ao longo da história.
Nesse sentido, valer-se do conceito de erotismo significa não adotar um posicionamento
estanque, mas considerá-lo como todas as manifestações do desejo sensual e amoroso, cujo
imaginário evoca elementos simbólicos e subjetivos. A partir dessa consideração é possível
pensar nas relações que se estabelecem entre o erotismo e a literatura.
Desse modo, percebe-se que a literatura erótica surge como uma forma de louvar o
deus Eros – o deus do amor e da força vital, depois vai se ramificando, até os tempos atuais.
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O erotismo está presente na literatura desde a antiguidade e tem sido tema recorrente na
cultura ocidental, aparece na literatura como forma de representar o desejo e o prazer através
da escrita e da imaginação erotizada. O erotismo, pela força da ética moralizante no
medievalismo, passou a ser visto por muitos como uma manifestação nefasta, capaz de levar o
leitor a se corromper, caminhando entre o sagrado e o profano dentro da literatura.
Atualmente, a literatura erótica tem ganhado espaço na sociedade, porém sua abordagem na
literatura, foi de certo modo, por algum tempo ignorada pela crítica literária, tornando-se um
campo obscuro e de discussão secundária.
Bataille também se refere ao assunto ao citar a oposição que a igreja sustentou contra
o comportamento erótico: “O cristianismo elaborou um mundo sagrado, donde estão
excluídos os aspectos horrendos e impuros” (BATAILLE, 1987, p. 127).
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Sendo assim, escrever algo com erotismo não é o mesmo que fazê-lo como
pornografia, tendo em vista que o erótico é algo que provoca amor ou desejo sexual, que
aborda ou descreve o amor sexual, designando, de modo geral, a exaltação do sexo no âmbito
das artes. Já o pornográfico supõe certa capacidade de excitar os apetites sexuais do outro,
algo que fale à libido, descreve a luxúria ou libidinagem, ou seja, qualquer material que
desperta pensamento sexuais de forma vulgar e explícita, mas não estética. Decerto, esta linha
limite é tênue e passível de crítica e validação cultural.
Outra aproximação entre erotismo e literatura é a operada por Octávio Paz (1994)
entre a poesia e o erotismo. Segundo o autor mexicano, “a relação entre erotismo e poesia é
tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma
erótica verbal” (PAZ, 1994, p. 12).
Pois bem, a partir da década de 1950, o cenário erótico dentro da literatura começou
a mudar, principalmente na América Latina, influenciando os escritores que começaram a
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Essa ligação entre imaginação e os desejos ocultos, tanto do corpo como da poética,
faz com que a literatura erótica consiga transcender o explícito e conduzir os leitores a uma
jornada de descobertas e ideias muitas vezes impossíveis de se reproduzirem publicamente.
Platão foi o primeiro pensador a falar sobre o corpo, através de reflexões que
perpassam inúmeras de suas obras, entre quais se destacam A república e o Banquete
(PLATÃO, 1991). Para o filósofo, o corpo é apenas prisão da alma. Vazio por essência é o
lugar que abriga o ser em sua subjetividade, sendo por isso apenas um suporte, o “eu” estaria
enclausurado em seu corpo.
Foucault afirma que “o dispositivo de sexualidade produz efeitos nos corpos, nos
comportamentos, nas relações sociais” (FOUCAULT, 1976/2006, p. 139). Assim, a própria
sexualidade é o que movimenta o psiquismo através do desejo e da energia sexual que investe
as representações (libido). Assim, a sexualidade não diz respeito apenas a excitações
corporais, mas também faz parte do funcionamento do aparato psíquico e das relações sociais
assim como afirma Foucault.
[...] Pois então, vi Joíra. Era uma morena de peitos em flor, bonita de fazer
marinheiro perder o embarque próximo. Tinha uns olhos que desconfio que
o próprio rio eram, de tão castanhos e calmos. A boca era de uma cor que
não vira ainda, um tom de jambo, talvez. Os cabelos escorriam lisos pelos
ombros, sobre a pele morena, uma beleza cabocla pura, me acreditem. [...]
(GARCIA, 2020, p. 34).
[...] Tudo estava ali, os corpos colados nos vestidos ou o contrário que seja.
Era um espantar, para meus olhos e desejos verdes de menino que crescia,
aqueles peitos, aquelas curvas, aquelas abundâncias, ora. [...] (GARCIA,
2020, p. 34).
[...] E a Normélia era dona de uma senhora bunda: de tremer todo, não que
fosse bunda dessas escandalosas, nada disso, era apenasmente bem
feitíssima, bundazinha caprichada, que ela arrebitava quando nos pressentia
bicorando por perto. [...] (MARANHÃO, 1986, p. 26).
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Como visto acima, o corpo é objeto de sedução, é alvo de desejo: o corpo não apenas
concretiza a relação erótica, mas também é potencializador dessa prática, desse modo, o culto
ao corpo evoca a existência do prazer, ou seja, torna-se o lugar onde se manifesta o desejo
como suporte do prazer, do gozo, da vontade. Ali as práticas eróticas operam. O corpo é fonte
do deleite, do prazer, como podemos observar nas imagens finais dos contos:
[...] Minha boca parece que já sábia onde sugar cada pedaço do corpo da
morena. Lambia os peitos, a barriga, enfronhava-me, perdia-me mesmo,
entre as pernas e a flor negra, o cheiro de vida que ela exalava. Eu sorvia
todos os sumos que, porventura, existissem no corpo de Joíra. E a gente
vinha, via eu assim, como numa gangorra humana. [...] (GARCIA, 2020, p.
37).
Nos trechos acima das obras, podemos estabelecer uma relação de aproximação nos
modos de narrar e no discurso masculino. Os narradores se apresentam como sujeitos
dominados pelo desejo, mas revelam indícios de que estão em uma experiência de iniciação
sexual, de aprendizado, pois demonstram nervosismo e espanto pela postura ativa de Joíra e
Normélia. Há uma objetificação do corpo feminino e, além disso, um estado de descoberta
sobre a liberdade sexual feminina. As mulheres são as guias da atividade sexual, assumem
uma postura de comando, donas do desejo, regentes do ato sexual. Para os narradores, o ato
sexual revela uma verdade oculta sobre estas mulheres.
os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar [...] como sujeitos
do desejo, estabelecendo de si para consigo certa relação que lhes permite descobrir, no
desejo, a verdade de seu ser” (FOUCAULT, 1984, p. 11).
No conto “Na rede, o navegar”, de Alfredo Garcia o desejo do primo por Joíra fica
explícito durante a narrativa, quando o narrador relata: [...] “De dia eram olhares e re-olhares,
uns risinhos bestas entre a gente. Mas, de noite, tudo silenciava e eu ficava lá com meus
desejos tesos por baixo do lençol feito de sacos de trigo.” (GARCIA, 2020, p. 35). Já no conto
“Movimento no porão”, de Haroldo Maranhão, esse desejo é demostrado pelo narrador no
trecho: [...] “Eu ficava em pé, o coração aos pinotes, tremiam as mãos, eu tremia todo, mas o
peru endurecia doendo no pijama.” [...] (MARANHÃO, 1986, p. 27).
Deste modo, o corpo é habitado pela linguagem do desejo. O corpo traduz uma
linguagem carregada de símbolos, de imagens e de afetos. A linguagem do desejo é a
expressão de um inconsciente plural e dinâmico. É uma linguagem que nos remete a um corpo
erógeno, corpo-linguagem de desejo. Este corpo, fala, transmite e produz linguagem. O corpo
é, pois, erótico. Ele apresenta-se como uma abertura polissêmica, simbolizando a
possibilidade de libertação.
A transgressão feminina também aparece nas narrativas. Tanto no conto de Alfredo
Garcia, quanto no conto de Haroldo Maranhão há o destaque para o feminino que se liberta
sexualmente. As protagonistas Joíra e Normélia revelam uma força potencializadora do
erótico desatado. A focalização nas personagens parte do narrador, no conto “Na rede, o
navegar”, de Alfredo Garcia, o narrador enfatiza o corpo da prima Joíra, uma morena de
peitos em flor que salta para a rede. Já no conto “Movimento no porão”, de Haroldo
Maranhão, é apresentada a figura de Normélia, empregada doméstica autoritária e mal
humorada que se torna livre nas noites sexuais. Assim, Joíra em “Na rede, o navegar” e
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[...] Virei e dei com os olhos de joíra bem na direção dos meus. Foi um susto
e um deslumbramento, confesso. Ah, se ela soubesse naquela horinha o
quanto eu queria aquela morenez, aqueles olhos de rio calmo, a boca
jambo.... O meu espanto maior foi quando ela deu o salto para dentro da
rede. O coração quase que pulava pela boca, lhes juro. Ela deixou de lado o
lençol que trouxera e enfronhou-se no meu. Mil formigas de fogo andavam,
parecia isso, pelo meu corpo todo naquela hora. [...] (GARCIA, 2020, p. 35).
[...] E ela sabia fazer os movimentos com jeito de quem fosse escolada. Nem
um gemido escapava da rede. Eu só sentia os peitos em flor que furavam o
camisolão dela e, depois, vi que a danada não tinha uma vestizinha que fosse
por baixo! Nua. Nuazinha da Silva! Ela é que levou minhas mãos para o
corpo moreno dela. [...] (GARCIA, 2020, p. 35).
[...] Certa ocasião eu devia estar bastante cansado e dormir com o livro no
peito. E quando quando acordo quem é que estava na minha cama? A
Normélia! Nem vi chegar, ela veio nuínha-nuínha, senti logo a febrona me
queimando a pele. Ela tirou o meu pijama, fingi que estava no maior dos
sonos e encostou-se em mim como eu me encostava nela, isto é, na bunda,
que a bunda era o que mais me atraía na Normélia. Então deu não sei o quê
nela, ela me virou e aí eu estremeci com aqueles cabelos duros me espetando
a barriga. [...] (MARANHÃO, 1986, p. 28).
[...] A Normélia trazia o diabo na alma, foi pegando o peru e levando para
um buraquinho no meio do matagal, e aí aconteceu minha primeira
felicidade, a Normélia me agarrava e me apertava como se quisesse me
quebrar as costelas, as coxas dela se fechavam e me estrangulavam que
chegou a dar medo. [...] (MARANHÃO, 1986, p. 29;).
Podemos perceber que o papel do erotismo tanto no conto de Alfredo Garcia, quanto
no de Haroldo Maranhão vai além somente da tradução da sexualidade. Os textos fazem um
mergulho psicológico no comportamento dos adolescentes, representam com detalhes as
cenas, discursos e afetações próprios da iniciação sexual, do despontar dos desejos e
descobertas do corpo.
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Sabe-se que outro aspecto transgressor diz respeito ao “tabu” acerca do erotismo
feminino. A mulher, embora tenha seu corpo erotizado e até “coisificado” pelo pensamento
masculino, não poderia, em uma conduta moralizante, verbalizar sua potência erótica, porque
sua voz silenciada sofre interditos, um banimento resultante de um sistema patriarcalista e
cristão, em que a mulher teria de ser virtuosa e contida sexualmente.
A concepção de erotismo para Bataille é vizinha da transgressão, pois o autor
concebe o erotismo humano na sua relação com a dialética da lei do desejo, no qual a
transgressão é o movimento necessário à consumação do desejo, como podemos observar nos
trechos abaixo:
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[...] Um corpo dentro do outro como se fossemos um só, carne única gerada
pela ligadura dos sumos de cada ser, sei lá explicar melhor como era aquilo.
Era um dentro do outro, navegar sem estrelas, sem rotas, só pelo gosto de ir
vencendo as distâncias. (GARCIA, 2020, p. 37).
[...] A Normélia veio como uma fome do cão pra cima de mim. Não falava,
não dizia nenhuma palavra, que ela não ia me dar semelhante confiança.
Gemer, ela gemia, isso ela gemia, me apertava, até que nos braços ia
afrouxando, afrouxando, e ela desfalecia como se estivesse morta. [...]
(MARANHÃO, 1986, p. 29;).
Sobre a transgressão feminina nos contos, percebe-se que tanto Joíra, quanto
Normélia estão no centro da narrativa, o erótico parte do corpo-vontade para o corpo-
liquefeito, nelas é que reside a ação e gozo como ápice do prazer. Ou seja, as duas
personagens rompem com a figura da mulher passiva. Pois são dominadoras e ativas do ponto
de vista sexual, tendo em vista que ambas são meninas-mulheres. Ambas possuem o controle
das práticas eróticas, e conduzem os personagens masculinos passivamente, como se fossem
guiados ou surpreendidos por uma “deusa de eros”. Mas, como enfatizamos anteriormente,
não seria este um anseio masculino? Não seria uma fantasia do narrador masculino que
confessa uma aventura erótica surpreendente? Talvez a mulher lasciva resulte da sua própria
imaginação ou apetite erótico, capaz de até fazê-lo mentir para provocar ou excitar o leitor.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora a literatura erótica já circule às claras, a crítica literária sobre esta produção
de autores de Literatura da Amazônia é limitada. Os contos selecionados e os autores Alfredo
Garcia e Haroldo Maranhão apresentam uma experiência estética que requisitam maior
investimento de pesquisadores. A crítica especializada no Brasil ainda não se lançou
profundamente no desafio de desvelar a relação entre erotismo e literatura, fazendo dessa uma
modalidade ainda mais controvérsia. Entende-se então que o universo da literatura erótica é
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construído a partir de elementos que geram um desconforto, não apenas pragmático, mas
conceitual. Nesse sentindo, percebe-se a relevância de discutir e realizar estudos acerca dessa
tradição literária, analisando o erotismo como elemento estético e admitindo a presenças de
marcas especificas e delimitáveis.
Por tanto, este artigo objetivou realizar uma análise comparativista nos contos “Na
rede, o navegar”, de Alfredo Garcia e “Movimento no porão”, de Haroldo Maranhão,
possibilitando um olhar sobre os textos literários aqui apresentados e analisados, cujos
espaços literários representam a paisagem amazônica e traduzem experiências psicológicas e
autoficcionais. Ler os contos de Alfredo Garcia e Haroldo Maranhão são um “convite de
eros”, pois fecundam uma aproximação imaginária com o leitor, um observador que ouve e
contempla uma confissão sexual.
Como as leituras nunca se encerram, mas multiplicam a visão, esta pesquisa surge
como segundo ensaio diante das interfaces do tema, a partir de comparação entre Alfredo
Garcia e Haroldo Maranhão. A conclusão deste trabalho não se afirma como fim da jornada,
mas como porta entreaberta por onde se possa olhar ou espiar o erótico na Literatura da
Amazônia.
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REFERÊNCIAS
CARVALHAL, T. F. Literatura Comparada. 4ª Ed. São Paulo: Ática, 2006. 368 p. 2006.
FOCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. 20ª ed. São Paulo: Edições
Graal, 2010.
GARCIA, Alfredo. O Livro de Eros. Pará.grafo Editora: Bragança - Pa. 3ª Ed, p. 32-37.
MARANHÃO, Haroldo. Jogos Infantis. Livraria Francisco Alves Editora. Rio de Janeiro.
1986. p. 25-29.
NITRINI, S. Teoria Literária e literatura comparada, IN: Estudos Avançados. São Paulo,
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, V. 8, n. 22, sept./dec. 1994, p.
473-480. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0103-40141994000300068&script=sei_arttext .
Consulta em 05 de jun. 2019.
OLIVERI, Rita. Mística e erotismo na poesia de Adélia Prado. USP: São Paulo, 1994 (Tese
de doutorado).
PAZ, Octávio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução: Wladir Dupont. São Paulo:
Siciliano, 1994.
PAZ, Octavio. 1999. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim.
PLATÃO. 1987. O Banquete. São Paulo: Nova Cultura.
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Anexos
CONTOS
- Ah, meus amigos, essas coisas de intimidades, essas partes de alcova como se diz, tenho eu
lá minhas histórias também.
O homem cuspiu amarelado no chão batido da barraca de comidas, bebeu mais um gole da
cachaça à frente dele e, aprumando a voz, diante do silêncio dos ouvintes, falou:
- Agora me desculpem os discordantes, mas entendo eu que nada há de melhor que fazer
essas travessuras que Deus nos concedeu depois da expulsão do Paraíso, os tão falados
concluios; não há nada melhor do que fazê-los em uma rede...
Calou a voz e ficou olhando a boca enorme da baía de Guajará, o mercado do Ver-o-peso,
o silêncio que tomava a noite, o luar. Falou de novo:
- A rede está na vida e na morte do caboclo, por que não havia de estar nesse embate de
pernas e sem-vergonhices, hem? Posso jurar aqui agorinha mesmo que nunca vi arrumação
mais safada para se fazer entre as pernas de uma cabocla que não seja de toda gostosa no
balançar da rede, ah isso posso! Não sou homem de muitas letras, o pouco que aprendi foi
desenhar o nome e uns noves-fora que não me fazem passar por besta por completa em tempo
de eleição e na conferência das contas no caderno do vendeiro da esquina. Fora isso sou um
burro. Chucro. Mas em termos de safadezas sou um desatinado; isso de se perder entre as
pernas de uma cabocla, então, é oficio por mais de meu conhecimento, ainda que tenha gente
que assevere que isso tem lá é parte com o sem-jeito, o tinhoso, descreia, hem?
Mas lhes conto um ocorrido no quando eu-menino, ainda verdejando em desejos, para
ilustrar o que eu falei agora... Pois nesse tempo eu tinha meus treze anos e, se digo que ainda
não via interesse nas sem-vergonices, eu minto. Que via, isso lá eu via. Muitas vezes fiquei
espiando, abestalhado, o nosso potro batoré cruzar com uma e outra fêmea que aparecia por
lá. Ah, que vinha um comichão lá pelo meio das pernas, ah isso vinha, sim! No interior, como
os amigos deviam já saber, menino mesmo até uns quatorze anos, olhe lá se não faço contra
errado. E mulher então, Virgem Nossa Senhora, é botar uns peito no corpinho ainda menina
de primeira comunhão, criar malícia no jeito de andar e já tem pretendente a dar no pescoço e
que cobiçam a carne fresca da cabocla.
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Eu era, nesse tempo, um bicho arisco, capaz de subir feito macaco em pé de árvores das
mais diversas, amar tapagens e cacuris, caçar pela noite com meu tio e os primos. Um dia
deparei com Joíra, justo quando estava voltando de observar o potro Batoré cruzando com
uma fêmea. Se lhes digo que, ainda agora, bote anos passados do acontecido, ainda sinto um
arrepio que percorre a espinha, podem os amigos crer que não é potoca. Pois, então, vi Joíra.
Era uma morena de peitos em flor, bonita de fazer marinheiro perder o embarque próximo.
Tinha uns olhos que desconfio que o próprio rio eram, de tão castanhos e calmos. A boca era
de uma cor que não vira ainda, um tom de jambo, talvez. Os cabelos escorriam lisos pelos
ombros, sobre a pele morena, uma beleza cabocla pura, me acreditem. Isso tudo eu fui
reparando depois, com o tempo. Bem na primeira vez que eu vi Joíra não vi tudo isso não.
Acho até que foi ela mesma, lhes digo, quem primeiro prestou atenção em mim. Mas de tanto
ir ver o potro cobrindo as fêmeas e, ainda mais, nos banhos de igarapés, os olhos a descobrir
dentre os vestidos molhados das mulheres as vergonhas delas... Era mesmo como olhar os
segredos, acreditem. Tudo estava ali, os corpos colados nos vestidos ou o contrário que seja.
Era um espantar, para meus olhos e desejos verdes de menino que crescia, aqueles peitos,
aquelas curvas, aquelas abundâncias, ora. Meu primo Zeca ainda me contava história da
mulata Dionísia que tomava banho nua no Rio das Mulheres, o que me acendia ainda mais a
gana do desejo. Primo Zeca ainda me contava a história da mulata Dionísia que tomava banho
nua no Rio das Mulheres, o que me acendia ainda mais a gana do desejo. Primo Zeca era
danado, também, para fazer pé de bananeira de mulher, vixe. Furava um buraco triangular na
dita bananeira e se espojava ali mesmo. Dizia ele que era assim bem melhor que com as
cabras, coisas que eu sempre – mas sempre mesmo, veja só – tive nojo.
Mas com a morena Joíra é que foi meu batismo em “escolação” nessas safadezas gostosas.
Era um tempo de férias aquele, bem lembro disso. Joíra era uma prima distante, parenta lá de
grau inferior. Na casa do meu tio, nessa época, juntavam-se famílias, a casa enchia de gente.
Na hora de dormir meu tio agasalhava alguns no casarão ao lado, um galpão aberto de paredes
de tábua onde se depositavam sacos de alimentos. Era de se ver o entrelaçar de redes, de
punhos e cordas, da algazarra que era feita para isso tudo se ajeitar. De cima eu presumo que
aquele entrelaçar assemelhava-se a uma gigantesca flor de redes, de gentes ressonando. Com
pouco tudo se aquietava-se, mesmo os mais afoitos e brincalhões sentiam o cansaço do dia
que fors levado nas pescarias, nos banhos de igarapé, nas folias todas. Aí vinha um silêncio
onde se ouvia só os pios de bichos da noite. A rede de Joíra era quase que grudada na minha.
De dia eram olhares e re-olhares, uns risinhos bestas entre a gente. Mas, de noite, tudo
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silenciava e eu ficava lá com meus desejos tesos por baixo do lençol feito de sacos de trigo.
Um vento cortante veio naquela noite anunciando a friorenta madrugada que ia fazer. Bendito
frio! E veio uma chuva como nunca se vira, o barulho da água no telhado de cavaco fazia um
som lúgubre, coisa de assustar mesmo. Eu ali encolhido na rede, olhos abertos para o teto.
Um barulho no salão me incomodou. Virei e dei com os olhos em Joíra bem ali na direção dos
meus. Foi um susto e um deslumbramento, confesso. Ah, se ela soubesse naquela horinha o
quanto eu queria aquela morenez, aqueles olhos de rio calmo, a boca de jambo... O meu
espanto maior foi quando ela deu um salto para dentro da rede. O coração quase que pulava
pela boca, lhes juro. Ela deixou de lado o lençol que trouxera e esfrenhou-se no meu. Mil
formigas de fogo andavam, parecia isto, pelo meu corpo todo naquela hora. Um frio
destamanho (esticou os dois braços) me tomou; em seguida um calor maior ainda me
queimou, sei lá eu porque raios tais discordâncias no corpo da gente, hem? Ela ria um risinho
leve, abrindo os lábios de jambo, se enrodilhava em mim como uma cobra faz com a presa.
Eu ali bestificado, no verdor dos meus trezes anos, o desejo teso entre-pernas. E ela sabia
fazer os movimentos com jeito de quem fosse escolada. Nem um gemido escapava da rede.
Eu só sentia os peitos em flor que furavam o camisolão dela e, depois, vi que a danada não
tinha uma vestezinha que fosse por baixo! Nua. Nuazinha da Silva! Ela é que levou minhas
mãos para o corpo moreno dela. Ah, com o tremor que fosse, meus dedos passearam pelas
ancas que iam avultando nela, pelas costas, pela traseira empinada, pelos ombros redondos.
Depois pelos peitos, ah! Umas coisinhas assim, uma carne pulsando nas minhas mãos, pela
barriga lisa, a cavidade do umbigo, até pousarem na flor negra entre as pernas da cabocla.
Reinou um silêncio por uns segundos no ambiente. Depois o homem voltou a falar.
- Sei lá que instinto era aquele para um moleque, um destrambelhado como eu era naquele
tempo, um bestalhão! Mas fui fazendo aquilo como se fosse coisa que eu oficiasse de há
muito tempo. Ela me mordia nas orelhas, coisa que me incomodava no princípio. Depois fui
gostando das mordiscadas, dava um torpor, uma coisa que era boa demais para deixar
incomodar com o que quer que ela fizesse, me tomou. Com um jeito de corpo ela me dominou
os movimentos, fez uma menear leve. Aí senti que estava por dentro dela, lá bem dentro
mesmo. Escalavrando. Indo no mais fundo que fosse dela. Era como estar num carrossel, lhes
digo. O teto girava, o mundo ficava parado, a gente estava acima de tudo e de todos. A rede
era como uma canoa perdida num mundo onde ninguém mais havia, só eu e ela. De novo
Adão e Eva, o paraíso. Uma parte de mim, latejante, pulsava dentro dela, escalavrava como
eu disse antes. Eu que antes me encolhia de frio e de medo que alguém acordasse com os
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nossos sussurros, agora via que o medo se apequenara e receio mais nenhum no mundo me
faria sair daquele corpo tão cedo e deixar a rede, a quentura da carne de Joíra, o navegar...
Minha boca parece que já sabia onde sugar cada pedaço do corpo da morena. Lambia os
peitos, a barriga, enfronava-me, perdia-me mesmo, entre as pernas e a flor negra, o cheiro de
vida que ela exalava. Eu sorvia todos os sumos que, por ventura, existissem no corpo de Joíra.
E a gente ia e vinha, via eu assim, como numa gangorra humana. E mais vinha e ia e repetia o
movimento pela noite adentro. Como que se, juntos, nada houvesse de medos, de primos, de
rios, de nada. Só os dois vencendo a noite, os medos, os escuros, numa canoa – a redezinha
nossa, o paraíso – pelos rios que explorávamos. Um jogo de esconde-esconde, um ajeitar das
carnes dentro da rede. Um corpo dentro do outro como se fossem um só, carne única gerada
pela ligadura dos sumos de cada ser, sei lá explicar melhor como era aquilo. Era um dentro do
outro, navegar sem estrelas, sem rotas, só pelo gosto de ir vencendo as distâncias.
- Já naveguei muito por rios, furos, paranás, mas nunca vi noite mais longa na vida que
aquela na qual fui escolado em safadeza por Joíra, lhes juro. Era um navegar, navegar, e um
nunca querer se encontrar a outra margem, o destino. Um jorrar de sumos, um encontrar de
corpos, nova renga, novo brincar que eu conhecia. Latejar, pulsar, um estar no outro pelo
querer. Eu em Joíra. Ela em mim. Como um só: peitos, barrigas, umbigos, os sexos unidos. E
Joíra era escolada na arte da rede, lhes garanto que era. Até hoje esse lembrar é um, quadro na
minha memória. Eu e ela, a noite enorme, os pios dos bichos, a rede, o navegar. O navegar...”
Minha avó me punha no porão para dormir quando eu ia passar as férias em Algodoal.
O porão praticamente se achava entupido de livros. O teto era alto, o pé-direito creio que dava
umas duas vezes esses pés-direitos de hoje. Os livros cheiravam a mofo e pertenciam a um tio
metido a grandes coisas, mas penso que não passava de embromador de primeira, que os
livros ficavam fechados, uns por cima dos outros, parecia mais um depósito. Duvido que
alguém pudesse encontrar uma cartilha se precisasse de uma cartilha, que era a maior
desarumações, pilhas e pilhas pelo chão, as traças jantando e almoçando livros em francês.
Aos domingos eu gostava de ir à Praça da Estação para ver um teatrinho de marionetes, os
garotos daquele tempo eram mais soltos, não havia essas mãos cheias de nove-horas,
algumas, né? Que até sufocam as coitadas das crianças. Pipoca havia, pirulito havia, soverte
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havia. Nada de cokas-kolas e xicabõs, esses sovertes americanos que nem gelados são, sendo
feitos de preparados químicos onde as frutas nem comparecem, os sovertes de antigamente é
que eram. Tinha um que vendiam entre duas bolachinhas redondas e fininhas, um pouco
maiores que as hóstias de comunhão e que a gente ia lambendo pelos lados. Como dizia,
nunca eu consegui esquecer as pernaças da Normélia. Eram grossonas, porém, mais grossas
na batata da perna, que eu para falar a verdade detesto, considero horrível, jamais me casaria
com mulher de pernas como a de Normélia. Naquele tempo eu nem prestava atenção para
detalhes que hoje acho importantíssimo, só enxergava mesmo a bunda dessas na minha frente.
E a Normélia era dona de uma senhora bunda: de se tremer todo, não que se fosse bunda
dessas escandalosas, nada disso, era apenasmente bem feitíssima, bundazinha caprichada, que
ela arrebitava quando nos pressentia bicorando por perto. Meus irmãos dormiam com a vó,
viviam cochicahando e essa foi a perdição deles, que eu ficava compenetradíssimo, nem
parecia que estava olhando, mas ela tinha certeza, a diaba da Normélia eu penso que
adivinhava meu olhar de cão tristinho. Eu, hein! Rosa? Eu não ficava de cochichinhos com os
outros e deve ter sido essa a minha sorte. Sempre fui passado na casca do alho, meninozinho
comportado, que não abre o bico, sempre de nariz nos livros. Ou vocês o que acham por que é
que sempre fui de leituras? Ler dá uma puta de uma pose, e usando-se óculos, então!
Ninguém sabe o que o calado quer. Não sabe? A Normélia bem que sabia, a Normélia era
escovadíssima, mas andava o dia todo de cara enfezada, tratava a gente com brutalidades,
exigia demais, reclamava, ralhando por qualquer besteirinha. Era superautoritária, a rainha da
Inglaterra de Algodoal e minha avó gostava, elogiava, queria impusesse respeito. Meus
irmãos mijavam-se de medo, mas eu, hein! Eu não dava pé para as ranzinzices dela, de mau
humor, sempre para variar, que vivia dando rabanadas e até gritava com a gente, e a burra da
minha avó conforme disse foi quem lhe deu semelhante autoridade de gritar conosco e ela
abusava. A Normélia dormia no porão, porém bem afastada de mim, sua cama ficava
encostada na parede dos fundos. Eu lia e lia para afugentar o sono. Há pessoas que pegam um
livro e minutos depois estão roncando. Já comigo livro me tira o sono, fico horas na leitura,
posso até entrar pela madrugada e amanhecer como já amanheci diversas vezes. Queria estar
sempre acordado para quando Normélia surgisse. Mal escutava passos na sala de cima, mas
depressa apagava a luz e via o vulto descendo a escada. Ela passava pela minha cama sem dar
a menor confiança, com aqueles passos de mulher durona, que ela sabia e como sabia ser
durona. Enxergava malmente no escuro ela mudar de roupa e por mais que firmasse a vista,
divisava pouco mais que nada, só ouvia quando ela deitava e respirava forte, parece que
aliviava, de se escutar na rua, aquele suspiro de pessoa cansada. Penso que dormia logo. Aí eu
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me levantava, devagarinho e descalço para não fazer o mínimo barulho, que a vó podia estar
acordada, velho não dorme, passa a noite penando na casa. Mas a velha não descia nunca para
vigiar o porão, que ela metia a mão no fogo pela Normélia, quem olhasse a Normélia tinha a
impressão de ver uma freira, sendo dessas mulheres de se entregar o governo de uma casa,
como hoje nem se encontra mais. Eu ficava de pé, o coração aos pinotes, tremiam as mãos, eu
tremia todo, mas o peru endurecia doendo no pijama. A primeira vez foi difícil, nem recordo
como achei tamanha coragem. Avancei devagarinho: e sentei na cama da Normélia. Tinha
engatada a resposta na ponta da língua se ela acordasse e me expulsasse: uma bruta de uma
dor na barriga que não me deixava dormir. Sempre encontrava ela descoberta, só de calcinha,
que nas minhas férias fazia em Algodoal um calor dos seiscentos. A bunda torneadinha me
deixava zonzo, a cabeça só faltava incendiar sozinha, botava a mão na fronte e a fronte fervia,
não sei como não me dava uma coisa. Uma noite tive um atrevimento que até hoje me
espanta, parece que me empurraram, sei lá, tive a audácia de deitar ao lado da Normélia, na
caminha estreita, que era uma cama Patente Faixa Azul. Fiquei quase-quase colado,
recebendo aquele calor que subia, pele quente que eu não chegava a sentir diretamente, mas
de onde vinha uma quentura que entrava em mim, entrava pelos poros, dos poros dela para os
meus porinhos. Aquilo era todos as noites, eu já me enfiava na Patente da Normélia com a
maior das naturalidades, nem tinha mais medo nem nada, e já ia me encostando mesmo. Certa
ocasião eu devia estar bastante cansado e dormir com o livro no peito. E quando acordo quem
é que estava na minha cama? A Normélia! Nem vi chegar, ela veio nuínha-nuínha, senti logo
a febrona me queimando a pele. Ela tirou meu pijama, fingi que estava no maior dos sonos e
encostou-me em mim como eu me encostava nela, isto é, na bunda, que a bunda era o que eu
mais me atraía na Normélia. Então deu não sei o quê nela, ela me virou e aí eu estremeci com
aqueles cabelos duros me espetando a barriga. Pegou minha mão, guiou a mão e aín eu senti
um travesseirinho de cabelo, que meti foi os dedos, estava nervosão, como nunca. A Normélia
trazia o diabo na alma, foi pegando o peru e levando para um buraquinho no meio do matagal,
e aí aconteceu minha primeira felicidade, a Normélia me agarrava e me apertava como se
quisesse me quebrar as costelas, as coxas dela se fechavam e me estrangulavam que chegou a
me dar medo. Na hora do café, pensei: “Hoje vou comer do bom e do melhor, um pedação de
queijo, vou repetir, na certa ela vai me dar dois pães com bastante manteiga.” Deu, uma ova!
Parece que ela tinha ficado com mais raiva de mim, me tratou péssimo, mais mal que aos
meus irmãos, fazia mesmo de propósito, nessa manhã me pôs de castigo sem eu ter feito nada
de nada. À noite disse comigo: “Acabou-se o que era doce!” Qual! A Normélia veio com uma
fome do cão para cima de mim. Não falava, não dizia nenhuma palavra, que ela ia me dar
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semelhante confiança. Gemer, ela gemia, isso ela gemia, me apertava, até que os braços iam
afrouxando, afrouxando, e ela desfalecia como se estivesse morta. Na manhã seguinte, era a
mesmíssima inana, me dava até menos pão, cortava ao meio, dizia que tinha pouco, que o
queijo havia acabado, eu sabia que não havia acabado, mas quem é que tinha coragem de
contradizer a mandona? Derramava o café no pires, tenho certeza que de propósito, e botava
mais café do que leite, quando sempre gostei de mais leite e de pouquíssimo café. De noite,
eu podia apostar o que fosse que ganhava a aposta, se ela não ia direto para a aminha cama.
Ora, se ia!