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OS LIVROS DA FUVEST

NÓS MATAMOS O
CÃO TINHOSO!
LUÍS BERNARDO HONWANA

Análise da obra, seleção de textos e questionário


MARIA DE LOURDES DA CONCEIÇÃO CUNHA
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NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO!


1. BIOGRAFIA DO AUTOR

Luís Bernardo Honwana, apelidado como Ginho, nasceu em 1942


e viveu em Moamba (localidade situada a quase 80 km ao norte da cidade
de Maputo, chamada de Lourenço Marques no período colonial). Como veio
de uma família da pequena burguesia africana, letrada e assimilada, foi
registrado como Luís Augusto Bernardo Manuel, omitindo-se o seu
sobrenome africano.
Seus pais, Raul Bernardo Manuel e Nelly Jeremias Nhaca, adeptos
do protestantismo, casaram-se na Igreja Wesleyana, em 1940, que, na época,
tinha estreita relação com a filantropia abolicionista dos Estados Unidos.
O pai do escritor exercia uma função burocrática junto à Administração de
Moamba, como intérprete colonial, e sempre priorizou a formação
educacional de seus filhos. Criado numa família de dez irmãos, Honwana se
mostrou resoluto e determinado, prosseguindo os estudos acadêmicos num
cenário político pouco promissor às identidades negras.
O autor cresceu em contato com a Língua materna, o Ronga, falada
por seus genitores e avós, ao mesmo tempo em que ingressou na educação
formal, estudando a Língua Portuguesa. Ao completar 17 anos, Honwana
se mudou para a capital, onde estudou jornalismo, destacando-se pelo seu
talento excepcional e interagindo com escritores famosos, como José
Craveirinha e Rui Knopfli. Nessa fase, fez desenhos à pena, participou de
exposições de artes plásticas, assistiu a muitos filmes e escreveu para o
cinema. Ademais, dedicou-se à fotografia e participou com jornalistas,
poetas e pintores do seu tempo na efervescente vida cultural dos anos de
1960 de Lourenço Marques.
Após a publicação e a censura política de Nós Matamos o Cão
Tinhoso!, em 1964, Luís Bernardo Honwana foi preso pelas autoridades
coloniais, permanecendo encarcerado por três anos e meio. No mesmo ano
em que foi publicado o livro de contos pela primeira vez, iniciou-se a luta
popular pela independência do país, organizada pela Frente de Libertação de
Moçambique (FRELIMO), que levou a cabo uma insurreição de origem
africana, usando estratégias de guerrilha. Após a pressão internacional para
libertar Honwana, e outros agentes culturais também detidos, o autor foi
solto e, em 1970, partiu para Portugal a fim de estudar Direito na
Universidade de Lisboa.

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Ainda que o escritor não tenha enveredado numa produção


profícua de obras literárias, ele tem um percurso público edificante e
notável. Na juventude atuou como jornalista nacionalista, combatente pela
liberdade, sendo perseguido pela política colonialista. Após a independência
do país, tornou-se diretor do Gabinete do Presidente da República e, mais
tarde, foi nomeado como secretário de Estado e ministro da cultura.
Conhecido como autor de uma obra única, até 2017, Honwana publicou o
livro de ensaios A Velha Casa de Madeira e Zinco nesse mesmo ano.
No terreno da literatura e da cultura, ele desempenhou um papel
fundamental, colaborando firmemente para a fundação da Associação dos
Escritores Moçambicanos (AEMO) em 1982, sendo também o fundador e
presidente do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa (FBLP), ambas as
instituições, até hoje, em atividade no país africano. Mais recentemente,
Honwana representou a África Austral no Conselho Consultivo da
UNESCO e, atualmente, é diretor-executivo da Fundação para a
Conservação da Biodiversidade (BIOFUND).

2. NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO!

2.1. APRESENTAÇÃO DA OBRA

A obra literária Nós Matamos o Cão Tinhoso!, de Luís Bernardo


Honwana, é considerada uma das produções artísticas mais excepcionais da
literatura do século passado. Segundo a crítica especializada, a sua
publicação é um marco narrativo e ficcional tanto no âmbito das literaturas
africanas como nas de Língua Portuguesa.
A coletânea de sete contos foi publicada no ano de 1964, em
Moçambique, território nacional africano, que esteve sob o domínio de
Portugal até 1975. A edição inaugural ficou a cargo do jornalista e escritor
João Salva-Rey, da Sociedade de Imprensa, integrada ao jornal A Tribuna.
Na altura, o autor era um jornalista de apenas 22 anos, que publicava na
página juvenil “Despertar”, no Jornal Notícias, de ampla circulação no país,
bem como em outros periódicos de relevo, como Voz de Moçambique,
Diário de Moçambique e A Voz Africana.

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O livro do jovem causou grande polêmica no cenário artístico e
intelectual da época. Sua reprovação virulenta foi fomentada por Rodrigues
Júnior, então romancista e jornalista renomado, que escreveu um artigo, no
qual questionou a boa-fé de Honwana e de seus apoiadores ligados às igrejas
protestantes, como Pancho Miranda Guedes e Dori, mencionada na
dedicatória da coletânea. Nesse artigo histórico, o jornalista afirmou que
tais histórias não eram verdadeiras e nunca deveriam ter sido escritas.
Por outro lado, as considerações de Rodrigues Júnior foram
efusivamente reprovadas por intelectuais consagrados no país,
como Malangatana, poeta e artista plástico, que defendeu publicamente a
qualidade literária do livro. No entanto, na sequência, a obra foi censurada
e recolhida pelo regime colonialista e, em razão disso, poucos
moçambicanos puderam ler a primeira edição naquele ano.
Após seis décadas de sua primeira publicação, além de ser um
marco na luta popular pela libertação, o livro foi laureado pela crítica como
precursor da prosa moderna moçambicana, que floresceu com grande
ímpeto na segunda metade do século XX. Ainda que o autor, desde então,
nunca mais tenha publicado outra obra de ficção literária, até hoje, Nós
Matamos o Cão Tinhoso! figura na lista dos 100 melhores livros africanos,
selecionados por um júri internacional, presidido pelo escritor sul-africano
Njabulo Ndebele, em 2001, por iniciativa da Feira Internacional do Livro do
Zimbábue.

2.2. CONTEXTO DE PRODUÇÃO

As literaturas africanas são, em grande parte, derivadas da


confluência entre as línguas e recursos das literaturas europeias e as técnicas
e valores africanos, vinculados à tradição oral de suas populações. No caso
moçambicano, os povos oriundos do seu território comunicam-se em línguas
advindas, principalmente, do tronco étnico e cultural banto, somando-se a
umas dez Línguas principais, embora as variantes delas possam se ramificar
a cerca de 60 dialetos (Rocha, 2006, p. 18). As instituições de conhecimento
locais transmitem saberes filosóficos, sociais e econômicos por intermédio
de um arcabouço folclórico, constituído de narrativas, provérbios, enigmas
e canções.

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Na ficção banta, personagens humanas e animais participam de
contos e epopeias, que representam dramas e conflitos sociais de forma
lúdica e, por vezes, cômica. A função ou a finalidade das narrativas
tradicionais africanas é representar advertências e normas que visam o
convívio harmonioso da sociedade. No caso das populações moçambicanas
mais próximas da Costa Índica, a influência das culturas árabe e indiana é
notável, uma vez que elas já transitam no seu território antes mesmo da
chegada dos europeus. Assim, o imaginário literário dos povos ao oeste da
África também auxiliou a formar o cabedal artístico e filosófico dos agentes
culturais de Moçambique.

2.3. CONTEXTO HISTÓRICO


Não é possível discutir sobre a literatura moçambicana do século
XX sem situá-la diante do Imperialismo. Embora os portugueses tivessem
rotas comerciais no território do país, antes mesmo de se instalarem no
Brasil, apenas houve a penetração e domínio efetivo dos europeus nos
territórios ao Sul do Saara após a Conferência de Berlim. Nessa ocasião, o
ex-chanceler alemão Bismarck convocou as potências europeias, que se
reuniram de dezembro de 1884 até abril de 1885, para discutir o futuro da
África. Como resultado, decretou-se a liberdade de navegação pelos rios
Níger e Congo e a ocupação efetiva das terras interioranas. Reconheceu-se
o rei Leopoldo, da Bélgica, como soberano da bacia do Congo e a proteção
imperial alemã sobre quatro imensas áreas da África tropical: Togo,
Camarões, Sudeste Africano e a Hinterlândia, situada na costa oriental, na
qual se desafiava o domínio árabe de Zanzibar.
Segundo o historiador britânico Roland Oliver, em A Experiência
Africana, “a Conferência de Berlim foi encarada como o primeiro sinal
público de que a África tropical estava a leilão ou simplesmente disponível
a quem chegasse primeiro” (Oliver, 1994, p. 200). Nessa ocasião, o então
primeiro-ministro inglês, Lord Salisbury, reconheceu que uma partilha
pacífica dependia do fato de ser aproximadamente equivalente aos ganhos
atribuídos à França e à Grã-Bretanha. Oliver acrescenta que a partilha da
África também significaria uma satisfação generosa às reivindicações
alemãs, embora estas não tivessem uma base histórica. Representaria, por
fim, um lugar ao sol para o recém-unificado Reino da Itália e algum respeito
ao que ele chamava de “reivindicações arqueológicas portuguesas” (Oliver,
1994, p. 202).
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A partir de então, a política colonial de Portugal se acirra
militarmente, formando nas colônias, nesse ínterim, uma administração
burocrática para atender à chegada de grandes Companhias. Estando
Portugal nas mãos dos investimentos ingleses desde o século XVIII, em
pouco tempo, as sociedades que conjugavam capitais oriundos dos
principais países industrializados, criaram empresas, que ocuparam dois
terços do território moçambicano. Eram transnacionais de matéria-prima,
cuja produção na colônia era mais vantajosa do que na Europa, uma vez
que teria taxas de lucro mais rentáveis à indústria, ao comércio e ao
consumo, implementando um sistema de vastas monoculturas de açúcar,
algodão, tabaco, sisal, ópio e chá. Entre tais companhias, havia as
Majestáticas, que conjugavam “as funções do Estado e do Capital” (Serra,
1983, p. 104), que podiam, inclusive, exercer o papel de administração
governamental no território para onde foram destinadas.
Deve-se frisar que, até o último quarto do século XIX, como atesta
Carlos Serra (1983, pp. 21 e 34), nunca antes o trabalho escravo ou servil
tinha sido empregado em grandes plantações destinadas a um mercado de
exportação em Moçambique. Havia apenas o que é possível chamar de
economia de tráfico, na qual as comunidades camponesas produziam e
colhiam os recursos naturais à disposição no território onde viviam,
dispondo os excedentes ao pagamento de certos tributos locais e ao
comércio com outros grupos. Essa mudança causou uma desestruturação
socioeconômica sem precedentes, provocando grandes emigrações das
populações locais a áreas em que o trabalho exigido fosse menos fatigante.
Os africanos nunca precisaram de um salário para desfrutar de
bem-estar econômico, assim as empresas não podiam simplesmente contar
com que as pessoas se oferecessem, de bom-grado, a suportar longas
jornadas de trabalho – de até catorze horas – em troca de um salário muito
baixo, durante boa parte de todos os anos. Nesse sentido, os documentos do
regime alegavam que os “indígenas” eram indolentes e relapsos no trabalho,
impondo-lhes oficialmente um imposto predial, ou seja, por cada residência,
chamado de Imposto de Palhota. Ademais, conforme aumentava a demanda
do capital estrangeiro, a população era coagida violentamente ao trabalho
forçado, conhecido como Xibalo, cuja similaridade ao sistema de escravidão
dos séculos passados é inegável.

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Além disso, uma das partes mais significativa do lucro do Estado
Colonial português era obtido por meio da coerção de um grande
contingente de homens que emigravam, em geral, às minas insalubres de
extração de ouro e carvão nos domínios britânicos da África do Sul e das
antigas Rodésias. A população nativa era submetida ao Regime do
Indigenato, no qual não se tinha direito à cidadania, obrigando-a ao porte de
caderneta indígena, à prestação de trabalho obrigatório, à proibição de
acesso a certas áreas da cidade ao escurecer e autorizando apenas um
número reduzido dela em lugares de divertimentos. Segundo a Promoção
Social em Moçambique da Junta de Investigações do Ultramar (Lisboa,
1964), a população moçambicana, no início da década de 1960, era formada
por 2,5% de minoria ocidentalizada, habitantes de zonas urbanas; 3,5% de
proletariados das periferias de centros populacionais; e 94% de camponeses,
classificados pelo Estado Colonial, como dito, de “indígenas”.
Por sua vez, ideologicamente, o regime promovia o Luso-Tropi-
calismo, isto é, a imagem de um Portugal não racista e “cego à cor”,
estabelecendo um código político-social de assimilação de africanos ‘à
comunidade lusíada’, como dizia Marcelo Caetano, último presidente do
conselho do Estado Novo, ditadura portuguesa que vigorou por 41 anos.
Segundo Newitt (1997), na década de 1950, dos seis milhões de habitantes
do território moçambicano, 4.554 foram reconhecidos oficialmente como
assimilados. Após uma década, a participação social de africanos no Estado
ainda era ínfima: em 1964, segundo o censo do período, entre uma
população de 6.592.994, eram eleitores qualificados 93.079, sendo 163.149
a população de assimilados e não africanos.
Em 1961, foi abolido o Estatuto do Indígena e todos foram
declarados cidadãos portugueses, porém havia diferença entre os cartões de
identidade dos ex-indígenas e dos efetivos portugueses. Na prática, os
africanos haviam sido exonerados do direito de votar e não tinham
representatividade política. Além disso, havia um impedimento de acesso às
atividades comerciais e, no exercício de uma profissão, os salários
baseavam-se em considerações estritamente raciais. Pela discrepância no
acesso à educação, o único meio que restava aos moçambicanos nativos
para ganhar a vida era a agricultura ou o trabalho assalariado.
Foi nesse âmbito que, vivendo nas cidades, os poucos que tiveram
possibilidades de estudar e tinham perdido o estatuto pejorativo de

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indígenas, obtendo o de assimilados, procuraram combater os excessos do
colonizador, usando as associações africanas, os grêmios e os jornais para
reivindicar tratamento digno e melhores condições de vida aos africanos,
sobretudo, requerendo uma situação de paridade no acesso ao ensino (Serra,
1983, p. 39).
Na cena literária, antes dos anos de 1950, “Godido”, personagem
do conto de João Dias1 denuncia a exploração colonial, ao mesmo tempo
que o herói assimila o modo de vida imposto pelos europeus. Também,
diversos poetas africanos, como Noémia de Sousa e José Craveirinha, foram
fundamentais na conscientização das elites intelectuais negras, revelando
as agruras do colonialismo e a necessidade de uma força-tarefa conjunta
para se libertar da política de exploração, que invadira suas terras e suas
comunidades.

2.4. CARACTERÍSTICAS GERAIS DA OBRA

O livro, Nós Matamos o Cão Tinhoso!, foi originalmente publicado


com sete narrativas, incluindo recortes autobiográficos evidentes em
algumas delas, o que, aliás, é assumido pelo autor. O conto de título
homônimo ao livro “Nós Matamos o Cão Tinhoso!” é narrado pelo
personagem Ginho. O mesmo narrador-personagem consta nos contos
“Inventário de Imóveis e Jacentes” e “Papá, Cobra e Eu”. Ainda assim, as
marcas verídicas da obra coadunam com o modo discursivo afeito à
objetividade da prosa realista, na qual o hiato e o silêncio funcionam como
recursos narrativos. Já o conto epistolar “Rosita, até morrer,”, incluída na
edição brasileira da Kapulana, de 2017, só foi escrito por Honwana após já
publicada a primeira edição de Nós Matamos o Cão Tinhoso!, enquanto o
autor estava na cadeia, e tornado público em 1971, na revista Vértice.
Os contos variam no foco narrativo, mas a maioria deles apresenta
narradores que expressam uma perspectiva aguda da realidade social, desde
a infância até a idade adulta. Sem dúvidas, a obra é um testemunho do
extraordinário poder de observação, vinculado ao talento de sincronizar as
tendências vanguardistas da época. Sobretudo, nota-se a estética do nouveau

1 – João Bernardo Dias (1926-1949), falecido aos 22 anos, tem sua única obra,
Godido e Outros Contos, publicada postumamente, no ano de 1952, em Lisboa.

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roman (“novo romance”), integrada à evolução das técnicas que estavam
em voga no cinema. A prosa prefere excluir as motivações psicológicas das
ações das personagens, dando margem a um discurso marcado pela
descrição obsessiva dos objetos, no tempo psicológico, da qual provém a
designada escola do olhar.
Ademais das notadas influências do romance francês e estadunidense,
os autores das escolas literárias modernistas de Língua Portuguesa, da primeira
metade do século passado, que antecedem a publicação da obra, como o
Neorrealismo em Portugal e o Regionalismo do Brasil, deram primazia à
composição de retratos verossímeis da sociedade. Na prosa de Graciliano
Ramos, Alves Redol, Jorge Amado e Carlos de Oliveira, por exemplo,
denunciam-se as injustiças sofridas pelas classes populares por meio de
personagens esféricas, marcadas pela sua realidade geográfica, condição
econômica de pertença e pelo meio social em que transitam.
Desse modo, nos contos de Luís Bernardo Honwana, o usual
narrador-protagonista, da prosa romântica tradicional, tange mais ao
narrador-testemunha e ao recurso do fluxo de consciência. Tal tendência à
objetividade se expressa, na linguagem escrita, como uma câmera em
movimento, que registra uma sucessão de cenas alternadas, simulando
quadros cinematográficos, como ocorre mais claramente no conto “Dina”.
As narrativas do livro catalisam e transportam para o texto literário
a atmosfera vivida na colônia africana durante meados do século XX. O
mal-estar experimentado pelas personagens é intensificado por uma noção
de tempo psicológico arrastado, isto é, que demora muito para passar. Essa
estratégia confere um sentimento perene de exaustão e um comportamento
de abnegação dos agentes, que se assoma a uma atitude de vigília e
constante espera. Ainda assim, nos contos, desaponta um ressentimento
generalizado, suportado pelas personagens, sujeitas a um estado mental que
beira o limite da resiliência.
De forma geral, os discursos dos protagonistas subalternizados na
sociedade colonial indicam um movimento de esperança de um futuro
melhor, quando houver o término da opressão sistemática, vivida no
cotidiano. Nós Matamos o Cão Tinhoso! apreende e registra o alastramento
do senso de revolta popular de seu tempo, que se materializa no início da
insurreição conjunta dos moçambicanos, por meio da FRELIMO, eclodida
em 1964, no mesmo ano de publicação da obra.

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A linguagem do livro de Honwana sinaliza a mudança de
perspectiva do sujeito desencontrado, do não lugar, para uma visão mais
crítica da presença estrangeira e colonial. Portanto, rompe-se com a ideia de
inadequação e inabilidade para a ideia de impossibilidade e inviabilidade.
Desse modo, Nós Matamos o Cão Tinhoso! é fruto de um momento crucial
da história moderna de Moçambique, em que a exploração e a falta de
liberdade dos povos locais culminam num sentimento intenso de revolta, que
dá origem a uma luta popular corajosa, a qual se estende por uma década.
O conflito só se encerra na assinatura do Acordo de Lusaca, em
setembro de 1974, quando Portugal se compromete, por fim, a transferir o
poder estatal de Moçambique aos próprios moçambicanos. Assim, o
emergente Estado Republicano elege, em 1975, o primeiro presidente negro
de sua história moderna, Samora Moisés Machel, que participou dos
combates em prol da libertação das terras e etnias de Moçambique.

3. RESUMO E ANÁLISE DOS CONTOS DO LIVRO NÓS


MATAMOS O CÃO TINHOSO!

3.1. “NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO!”

O Cão Tinhoso era um animal de grandes olhos azuis, sem brilho


e lacrimejantes, amedrontando todos que o viam. Sempre dormindo ou
andando devagar, com os ossos à mostra, o Cão Tinhoso tremia o corpo
constantemente, sendo observado pelos demais cães da região, os quais
latiam, às vezes, para ele, mas o deixavam só e quieto. Certa vez, Bobi, o
cão do Senhor Sousa avançou até o rabo de Tinhoso para cheirar e, depois,
falou algo para os demais cães que começaram a latir até provocarem a fuga
do Cão Tinhoso em direção à escola.
O narrador, o menino Ginho, ao ver o Cão passando soturno e com
lágrimas nos olhos, como se estivesse a pedir algo, consternou-se com a
situação do animal:

O Cão Tinhoso tinha a pele velha, cheia de


pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas.
Ninguém gostava dele porque era um cão feio.
Tinha sempre muitas moscas a comer-lhe as
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crostas das feridas e quando andava, as moscas


iam com ele, a voar em volta e a pousar nas
crostas das feridas. Ninguém gostava de lhe
passar a mão pelas costas como aos outros cães.
Bem, a Isaura era a única que fazia isso.
(NMCT2, 2020, p. 13)

Quim contou ao narrador que Tinhoso tinha feridas na pele por


causa da guerra e da bomba atômica, o que não era plausível de crédito,
pois Quim costumava contar histórias como a dos filmes que passavam nos
cinemas da capital moçambicana Lourenço Marques (atualmente Maputo).
Mas Quim deixou a história incompleta.
Durante uma prova, o narrador passou para Quim as respostas
corretas das questões, o que resultou na punição de oito reguadas nos glúteos
de Quim, aplicadas pela Senhora Professora, que era uma mulher severa e
impaciente com os alunos.
Certa ocasião, quando estavam todos jogando no Senhor Sá, Quim
terminou de contar a história sobre a bomba atômica, mas omitiu a presença
do Cão Tinhoso, frente a um grupo de ouvintes impressionados.
Isaura era a única aluna que gostava do Cão Tinhoso, chegando a
dar seu lanche para ele comer. Todos diziam que ela não tinha as ideias no
lugar e que sairia da escola na época do Natal. A Senhora Professora sempre
castigava Isaura porque ela errava as lições e, na hora do intervalo das aulas,
as demais meninas da escola rodeavam Isaura, dançando e cantando:

“Isaura-Cão Tinhoso, Cão Tinhoso, Cão


Tinhoso, Tinhoso, Isaura-Cão Tinhoso, Cão
Tinhoso, Tinhoso”. A Isaura parecia que não
ouvia e ficava com aquela cara de parva, a olhar
para todos os lados à procura de não sei quê,
como dizia a Senhora Professora. (NMCT, 2020,
p. 15)

2
Todas as citações extraídas do livro Nós Matamos o Cão Tinhoso! serão
indicadas pela abreviação NMCT.
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Certo dia, Isaura perguntou ao narrador se havia visto seu Cão.
Nesse mesmo instante, o animalzinho surgiu no portão, Isaura
imediatamente correu até ele e o abraçou, mas a Senhora Professora
apareceu ordenando-lhe que lavasse as mãos e espantando o Cão de perto
delas.
Isaura, em lágrimas, disse ao narrador que a Senhora Professora
era má, tal qual todos assim o eram com relação ao Cão Tinhoso.
Aos sábados, Tinhoso ia ao clube à tarde, enquanto os meninos
jogavam futebol, frequentemente valendo algum prêmio em dinheiro,
motivo que excluía o narrador da partida. Simultaneamente ao futebol dos
meninos, o Senhor Administrador e outros homens jogavam sueca (jogo de
cartas) juntamente com o Doutor da Veterinária, que se vangloriava de sua
vitória na jogatina. No entanto, ao ver que o narrador e o Cão Tinhoso
também estavam rindo, o Senhor Administrador repreendeu-os cuspindo
neles:

– Ouve lá, o que é que este cão está a


fazer ainda vivo? Está tão podre que é
um nojo, caramba! Bolas para isto! Ai
que eu tenho de me meter em todos os
lados para pôr muita coisa em ordem...
(NMCT, 2020, p. 20)

O narrador, então, correu até o campo de futebol para avisar os


demais meninos de que o Cão Tinhoso morreria, mas foi espantado por
Gulamo, o qual responsabilizou o narrador pelo gol que Quim acabara de
fazer contra seu time. Gulamo espantou o narrador do local e ele começou
a pensar que ninguém se importava com o Cão Tinhoso. Telmo veio até o
narrador pedindo-lhe que atrapalhasse mais o jogo para eles poderem
ganhar, provocando o afastamento de Ginho.
Na segunda-feira, o narrador, na escola, pensava que a morte do
Cão não era desejo do Doutor da Veterinária, mas que ele tinha que obedecer
às ordens do Senhor Administrador. Ginho perguntou a Quim como o
Doutor da Veterinária mataria Cão Tinhoso e ouviu que seria com a
aplicação de antibióticos. O narrador questionou se era para isso que serviam
os antibióticos, sendo imediatamente chamado de burro por Quim, o qual,
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desmerecendo a capacidade intelectual de Ginho, acrescentou que uma bala
de Ponto 22 também mataria o animal.
A Senhora Professora repreendeu a conversa dos meninos,
perguntando sobre o que eles falavam e, ao saber do que se tratava, alertou-os de
que questões sigilosas de Estado deveriam ser conversadas no intervalo da aula.
Na hora do intervalo, Isaura perguntou a Ginho se matariam o Cão Tinhoso e
ele negou, dizendo que Quim estava mentindo, o que tranquilizou a menina.
Isaura se aproximou do animal, conversou com ele, mostrou-lhe a saia nova e,
ao perceber que Ginho estava observando a cena, perguntou-lhe o que ele queria,
mas o menino fingiu que estava pegando qualquer coisa e afastou-se.
Alguns dias depois, o Senhor Duarte da Veterinária procurou pelos
meninos e ofereceu-lhes a oportunidade de matarem o Cão Tinhoso,
praticando tiro ao alvo, mas sem fazerem muito barulho para que não se
ouvissem os tiros na vila. Além disso, Duarte avisou-os de que não deveriam
contar a ninguém, pois eles não tinham porte de arma, nem licença para
caçar e, se fossem pegos, ficariam presos por alguns meses:

– Ouçam, rapazes, eu estou a falar entre homens,


porra! Isto escusa de ser propalado por aí aos
quatro ventos, estão a ouvir? Eu só quis dar um
prazer à malta porque sei que vocês gostam de dar
uns tiritos de vez em quando e eu não levo a mal...
Sim, sei que vocês gostam de dar por aí uns tiritos
às rolas e aos coelhos, mesmo sem terem licença
de uso e porte de arma, para não falar da licença
de caça, e vocês sabem que se são apanhados por
mim ou por um fiscal de caça, chupam uns meses
de prisão que se lixam. Mas deixa lá que eu não
levo a mal nem digo a ninguém que vocês usam as
armas dos vossos pais ilegalmente. Eu só quero
que não me façam essas coisas mesmo debaixo do
nariz, porque tenho responsabilidades, vocês
sabem. Eu não levo isso a mal, porque conheço
bem a malta, mas isto não é para ser espalhado
por aí, vocês não acham? De resto, isto nem tinha
de ser dito, porque estou a falar entre homens...
(NMCT, 2020, p. 26)
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NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO!


Ao voltarem para a escola, o Cão Tinhoso observou e se aproximou
de Ginho, encostando-se nele e lambendo-lhe os sapatos. Quim organizou
a estratégia para matarem o animal. Os meninos foram buscar as armas em
casa e começaram a caminhada para executarem Tinhoso:

O Quim, o Gulamo, o Zé, o Xangai, o Carlinhos,


o Issufo e o Chico iam pelo meio da estrada com
as espingardas apontadas para a frente. Atrás
deles ia o Faruk, que não tinha espingarda, a
arrastar o Cão Tinhoso pela corda. O Cão
Tinhoso não queria andar e chiava que se
danava, com a boca fechada. Nós, eu e o Telmo
de um lado, o Chichorro e o Norotamo do outro
lado, íamos também armados, meio metidos no
capim, como o Quim tinha mandado, a bater o
mato. (NMCT, 2020, p. 28)

No percurso até o matadouro os moleques do Costa zombaram dos


garotos, perguntando se eles iriam caçar, enfatizando que, se esse era o
propósito, o cachorro deles para nada prestava:

Quando chegamos ao matadouro os moleques


do Costa vieram ver a malta a passar:
– Onde vai jimininu? Leva xipingar, vai no caça?
Mas aquele cão num prrêsta!
– Fora daqui, negralhada! – Era o Quim.
Os moleques julgaram que o Quim falava na
brincadeira e não se mexeram, mas o Quim
apontou-lhes a arma e repetiu:
– Fora daqui, negralhada, fora daqui cabroada
escura!
Desapareceram todos num instante, a correr, que
batiam com os calcanhares no cu, como dizia o
Quim. (NMCT, 2020, p. 29)

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Faruk pediu a outro garoto que puxasse o Cão e Quim ordenou a
Ginho que o fizesse. Ao chegarem ao destino, os garotos discutiram sobre
qual munição deveriam usar para matar o animal. Os olhos de Quim
brilhavam de satisfação enquanto Ginho, sentindo vontade de chorar,
sugeriu ficar com o Cão, cuidar dele e mantê-lo longe da vila.
Quim não deu atenção ao que Ginho propôs e, voltando-se para os
demais, disse que atiraria no animal com o cartucho que quisesse,
iniciando-se, assim, um desentendimento entre os meninos:

O Quim olhou para o Gulamo e perguntou


devagar e em voz baixa:
– Ó meu filho da mãe, queres que eu te rebente
o focinho?
– Rebentas uma ova, tu aqui não armes em
mandão que eu não tenho medo de ti!
O Gulamo tinha se virado para o Quim, com
arma e tudo.
– Ouve lá, queres ter alguma coisa comigo,
monhé de um raio?
O Quim não teve medo da arma do Gulamo.
– Isso era o teu avô, meu labreguinho ordinário!
Nunca te contaram isso lá na tua aldeia? Seu
maguerre!...
– Monhé! Filho de um corno!
– Ó Quim, não atires com SG nem com 3A que
isso é ser chato...
– Não atires, Quim, isso é bera...
O Quim tinha descido da pedra e avançava para
o Gulamo.
– Ó Quim, mete-lhe o número 4 ou outro número
qualquer, o Senhor Duarte disse que nós também
podíamos atirar...
– Pôça, Quim, isso não!. (NMCT, 2020, p. 32)

Xangai alertou para a necessidade de acelerarem o processo porque


estava anoitecendo,

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NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO!


– Eh, malta, vamos acabar com isto que é tarde
e está quase escuro. Vocês não desatem aqui aos
tiros para os cornos um do outro...
O Quim parou e virou-se para o Xangai:
– Cornos tem o teu pai, estás a ouvir? Eu não
deixo que um monhé abuse sem levar na cara!
De mim ninguém se fica a rir... E se ladras mais
também comes no focinho... Tu ou qualquer
outro! Vocês todos estão a ouvir? (NMCT, 2020,
p. 33)

Gulamo arregaçou as mangas da camisa e Faruk disse: – “É pá,


vamos deixar isto para o outro dia, – o Faruk olhava para o brilho do cano
da Ponto 22 de Um Tiro – vamos deixar isto para amanhã ou outro dia...”
(NMCT, 2020, p. 33). Quim perguntou aos garotos se estavam com medo,
sendo Ginho o único a assumir o temor, o que provocou risos dos demais.
O narrador se sentiu envergonhado do que disse e Quim ordenou-lhe que
soltasse a corda do Cão Tinhoso:

O nó estava feito de tal maneira que custava a


desatar, e eu não tinha força nenhuma nos
dedos. Tinha vontade de chorar ou fugir com o
cão e tudo.
– Anda lá, senão rebentamos contigo, preto de
um raio!
– Anda lá com isso, caramba, – agora era o
Faruk – anda lá com isso, preto de um raio!...
No pescoço, as feridas do Cão Tinhoso já não
tinham crosta por causa da corda, mas só saía
delas uma aguadilha vermelha que me molhava
as mãos.
– Anda lá, não tentes ser besta, Toucinho!
Quando acabei de desapertar o nó, agarrei a
corda com força para ela não cair e continuei a
mexer no pescoço do cão, mesmo com os olhos
fechados. (NMCT, 2020, p. 35)

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Ginho, de olhos fechados, falou baixinho com o animal:

– Eu tenho medo, desculpa-me, Cão Tinhoso –


eu disse aquilo tão baixinho que só o Cão
Tinhoso me podia ouvir. – Eu tenho medo, Cão
Tinhoso. Eu vou pedir isso ao Quim e à malta, e
eles deixam com certeza, e eu levo-te e trato-te e
depois vais outra vez dormir para as camas de
poeira das galinhas do Senhor Professor. Eu vou
pedir ao Quim e à malta e eles deixam. Mas, não
me olhes como se eu tivesse culpa, Cão Tinhoso!
Desculpa, mas eu tenho medo dos teus olhos...
(NMCT, 2020, p. 35,36)

O narrador disse a Quim que ficaria com o Cão, mas este o agarrou
pela gola. Faruk sugeriu deixar a morte do animal para outro dia, porque já
estava escurecendo e alguém poderia se machucar. O grupo queria que
Ginho desse o primeiro tiro, mas ele recusou porque não queria matar o Cão
Tinhoso, pois seu pai poderia bater nele se soubesse da travessura:

– Vamos, vamos, deixa-te dessas coisas, não


sejas medroso... Já viram isto, malta, um de nós
a borrar-se todo por causa do cão... É que eu
não sei por que é que este tipo anda conosco se
não é macho de verdade... Já viram?
– Eu não me estou a borrar todo, Quim, eu só
não quero dar o primeiro tiro... É que eu sou um
bocado amigo do cão e é chato ser eu a dar o
primeiro tiro...
– Isso são desculpas, isso são desculpas... Tu não
és macho, como a gente... Maricas! Não tens
vergonha? Dá lá o tiro, anda... (NMCT, 2020, p.
37)

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Todos começaram a provocar Ginho, chamando-o de medroso e
ele, para provar sua coragem, apontou a arma para o Cão Tinhoso. Quim
alertou que se ele quisesse poderia atirar para matar, assim provaria sua
masculinidade e pouparia o trabalho aos demais. O narrador apontou a
espingarda em direção do animal, dizendo baixinho:

– Desculpa-me, Cão Tinhoso, mas não vou atirar


a matar... Eu disse aquilo muito baixinho, e só o
Cão Tinhoso é que ouvia. Eu só havia de dar o
primeiro tiro porque a malta queria que fosse eu,
mas não havia de matar o Cão Tinhoso!
– É que eu tenho medo, eu tenho medo, Cão
Tinhoso, mas eu vou atirar para a malta não
dizer que eu tenho cagufa.
Depois vi que afinal não estava a puxar o
gatilho, porque tinha o dedo no guarda-mato.
Comecei a puxar o gatilho devagar para ter
tempo de dizer tudo ao Cão Tinhoso:
– Eu não tenho outro remédio, Cão Tinhoso, eu
tenho de atirar... Eu estou cheio de medo,
desculpa, Cão Tinhoso... Deixa-me atirar e não
me olhes dessa maneira...
Eu estou é com medo, estás a ouvir?... Estou com
medo!... Se pudesse, fugia e levava-te comigo...
E depois tratava-te e nunca mais aparecias pela
vila com essas feridas que é um nojo, mas o
Quim...
[...]
– Tu morres e vais para o céu, diretinho ao céu...
Vais gozar lá no céu... Mas antes disso eu hei de
enterrar o teu corpo e hei de pôr uma cruz
branca... E tu vais para o limbo... Sim, antes de
ires para o céu, vais para o limbo, como uma
criança pequena... Estás a ouvir, Cão Tinhoso?
(NMCT, 2020, p. 39 a 41)

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Ginho disparou. O Cão soltou um grito monstruoso e gemeu,
parecendo uma pessoa em sofrimento. Ao abrir os olhos, o narrador viu
Isaura agarrada ao animal. Era ela quem estava gemendo muito alto. Os
meninos do Costa observavam tudo por detrás das árvores. Quim apontou
a arma na direção do capataz dos moleques e todos fugiram amedrontados.
Voltando-se para Isaura, Quim disse:

– Ó tipinha, não te disseram que nós não


queremos fêmea a esta hora? O que é que vieste
para aqui fazer? Não queremos gajas a
atrapalhar o que nos mandaram fazer, ouviste?
A Isaura não dizia nada e só gemia para a malta.
(NMCT, 2020, p. 42)

Quim mandou Ginho tirar Isaura de cima do Cão. Todos olhavam


para ele a fim de identificar-lhe algum sinal de medo. O narrador pegou
Isaura que resistiu:

Agarrei-a por debaixo dos braços e ela sacudiu-se


toda para que eu a deixasse. Fiz mais força mas
ela dobrava as pernas e não ficava de pé. Mas já
não lutava como no princípio e só gritava como
se eu lhe estivesse a bater.
– Isaura, não vês que foi o Senhor Duarte que
mandou? – o Xangai também queria explicar
aquilo à Isaura.
Puxei-a devagarinho e ela largou o pescoço do
Cão Tinhoso, que ficou a olhar para ela e a
ganir com a boca fechada como ainda há pouco.
– Isaura...
O Quim estava em cima da pedra e toda a malta
apontava as espingardas para o cão.
[...]
– Ummmm... – o Quim começou a contar. Todos
haviam de atirar ao mesmo tempo e por isso as
balas não haviam de ser muito custosas para o

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Cão Tinhoso. Ele estava ainda a pensar em
qualquer coisa e já estava morto.
– Isaura... O Cão Tinhoso deve já ter visto que os
outros cães não querem brincar com ele...
Ninguém gosta dele... Eu nunca vi ninguém a
passar-lhe a mão pelas costas como se faz com
os outros cães...
– Doooooiiiis... – o Quim levou um tempo
enorme a dizer dois.
– Ele deve saber que é melhor morrer do que
aturar aquilo tudo, os miúdos da primeira classe
a atirar-lhe pedras e a fazer rodinhas para lhe
chamar Cão Tinhoso, a Senhora Professora a
dizer-lhe suca e o Senhor Administrador a
mandar o Doutor da Veterinária matá-lo por ele
ter feridas por causa da bomba atômica...
– Iiiii...
A Isaura gemia e estava toda mole, a não querer
andar e com os olhos todos saídos a olhar o Cão
Tinhoso. Eu também tinha pena de ver o Cão
Tinhoso a morrer, mas não adiantava nada levá-lo
para casa e tratar-lhe as feridas e fazer uma
casinha para ele dormir, porque ele era capaz de
não gostar disso. Eu sabia que ele já sabia de
muitas coisas para só querer o que qualquer cão
podia ter. O Cão Tinhoso devia estar à espera de
qualquer coisa diferente do que os outros cães
costumam ter, sempre com os olhos azuis a olhar,
mas tão grandes que parecia uma pessoa a pedir
qualquer coisa sem querer dizer. E mesmo
quando olhava para os outros cães, para as
árvores, para os carros a passar, para as
galinhas do Senhor Professor a debicar o chão
por entre as patas dele, para os miúdos da
primeira classe a jogar berlindes ou outra coisa

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qualquer, para o Senhor Administrador e para
os outros a jogar à sueca na varanda do Clube
aos sábados à tarde, para o Quim a contar
coisas na loja do Sá, para a Isaura a dar-lhe o
lanche e a falar com ele, sempre quando olhava,
estava a pedir qualquer coisa que eu não
entendia mas que não devia ser só para lhe
tratarem as feridas, para lhe darem de comer ou
para lhe fazerem uma casinha.
– TRÊS!
Ficou tudo parado e até a Isaura calou-se e ficou
dura.
– Atirem, porra!
– Isaura... – eu queria dizer-lhe qualquer coisa,
queria dizer-lhe tudo o que estava a pensar.
– Poça, ninguém atira? (NMCT, 2020, p. 43 a
45)

Quim recomeçou a contagem, Isaura protegeu-se nos braços de


Ginho e diversos tiros foram disparados. Os meninos, vangloriando-se do
feito, partiram. Isaura fugiu para as árvores. No dia seguinte, na escola,
Quim conversou com Ginho:

– Ginho... Tu estás zangado comigo? A gente


não devia ter liquidado o cão?...Foi o Senhor
Duarte que mandou... Tu também estavas lá...
– Eu não estou zangado nem nada...
– Então passas-me os problemas?... Passas-me?...
Eu faço-te o desenho...
– Está bem.
– Meninos! Para a aula! Para aula, já disse.
E fomos para a aula. (NMCT, 2020, p. 48, 49)

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3.1.1. ANÁLISE

Um dos primeiros questionamentos que o leitor se faz, ao ler o


conto “Nós Matamos o Cão Tinhoso!”, é qual seria a representatividade do
animal: o colonizador ou o colonizado? Tal dúvida se faz com muita
propriedade, uma vez que o texto se apresenta frequentemente ambíguo
quanto ao que simboliza o polimorfo Cão Tinhoso, isto é, ele representa o
bem, afinal o cão é o melhor amigo do homem, no caso do texto, de Isaura
e Ginho, mas, também representa o mal, o Tinhoso, ou seja, o nojento, o de
má índole ou o que sofre de tinha, doença de pele, ou ainda, de acordo com
a significação popular, o diabo. Nesse sentido, o Cão Tinhoso simbolizaria,
respectivamente, o colonizado e o colonizador.
Grandes estudiosos a respeito da literatura moçambicana teorizam
a representatividade do Cão Tinhoso de maneiras distintas. Inocência Mata,
por exemplo, defende que o animal simbolizaria o declínio do sistema
colonial em Moçambique, sendo a morte do Cão Tinhoso a destruição
daquela sociedade cruel e o primeiro passo para o surgimento de uma
sociedade justa, sem preconceitos ou discriminação.
José Luís Pires Laranjeira, em Literaturas africanas de expressão
portuguesa, vincula os contos de Nós Matamos o Cão Tinhoso!, à luta
armada pela libertação de Moçambique, a qual teve início em 25 de
setembro de 1964, mesmo ano da primeira publicação do livro de Honwana.
Desse modo, para o estudioso, o comportamento do Cão Tinhoso
metaforizaria o comando do colonizador português, já enfraquecido nessa
altura em suas colônias africanas.
Considerando-se que, no enredo do conto, o animal é morto com
diversos tiros, quase uma cena de festejo da morte do Cão Tinhoso,
poderíamos vincular a morte dele a uma alegoria representativa do fim do
domínio do colonizador português e da comemoração da retomada do
comando de Moçambique pelas mãos dos moçambicanos natos.
Partindo do pressuposto de que o Cão Tinhoso representa o
colonizador português, encontramos no conto elementos comprovadores
dessa tese, como, por exemplo, a imagem decadente do animal, velho, cheio
de feridas, em processo de apodrecimento, como o domínio português já se
apresentava, e com os olhos azuis que remetem a características étnicas
comuns ao homem branco europeu.

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O Senhor Administrador, um dos representantes do colonialismo
no conto, defende a necessidade de o Cão Tinhoso ser abatido, expurgado
do convívio social, perspectiva similar a de outras personagens vinculadas
ao poder colonial, como o Doutor da Veterinária, a Senhora Professora e, até
mesmo, o menino Quim. Mas, por que personagens representativas do
colonizador branco português, residentes em Moçambique colonial, seriam
coniventes com a morte do sistema que eles mesmos representavam e que
traziam para eles diversos privilégios no território africano? Seria uma
conspiração contra o Estado Português por acreditarem-no decadente?
Não há dúvida alguma, no texto, quanto à morte do Cão Tinhoso
ter sido encomendada por parte da elite colonizadora, mas o que desperta
certo pasmo é o motivo que teria levado os privilegiados daquela sociedade
a se voltarem contra suas próprias regalias. Talvez, Honwana esteja aludindo
à existência de um comando anticolonial, formado pelos próprios
colonizadores insatisfeitos com o rumo da situação moçambicana, ou, ainda,
à constituição de uma espécie de exército português “moçambicanizado”
para pôr fim às lutas, já iniciadas a esta altura, por parte dos nativos
insatisfeitos com o domínio perverso português.
Qual seria a lógica dessa situação? O colonizador, se aliando aos
interesses dos moçambicanos, estaria livre de alguma possibilidade de
retaliação por parte destes últimos, caso o poder mudasse para as mãos
deles, o que era muito mais provável de ocorrer do que a manutenção do
comando pelo colonizador português.
É claro e notório que a presença do branco português era indesejada
em território moçambicano havia um bom tempo. Mas, também podemos
observar que o colonizado passivo do domínio europeu não dispunha de ser
benquisto pelos moçambicanos, que repugnavam a descaracterização de sua
terra e cultura provocada pelo colonizador. É nesse instante que partimos
para a segunda possibilidade de representação da personagem do Cão
Tinhoso: o colonizado.
Assim como o colonizador, o colonizado, conivente com o domínio
português, torna-se abjeto tanto para os moçambicanos defensores de seus
valores originais quanto pelo próprio colonizador, o qual os discriminam,
uma vez que, mesmo adeptos do sistema português, continuam sendo
negros, ou mestiços, configurando-se o preconceito racial e a imagem do
indivíduo odiado pelo branco.

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Dessa maneira, o Cão Tinhoso seria metáfora do moçambicano
pobre, negro, não assimilado, e que, embora possa parecer um excesso
interpretativo, é viável de aceitação. Nessa perspectiva, Honwana teria
argumentos que o protegeriam de acusações de autor subversivo e contrário
ao colonizador, sem que leitores menos atentos percebessem o exercício
irônico do autor, intuindo-se o pensamento de que o domínio branco devesse
se manter à base da eliminação do homem nativo de Moçambique,
simbolizada na morte do Cão Tinhoso e dissimulando assim a verdadeira
simbologia do animal.
Confuso? Não. Ambíguo.
Vejamos: o Cão Tinhoso é descrito por Ginho como um animal
frágil e doente, estados em que se encontram tanto o colonizador português,
às vésperas de perder o poder, quanto o moçambicano nato, fragilizado
justamente pelo branco europeu. Assim, pelo olhar do colonizador, o Cão
Tinhoso simbolizaria o homem natural de Moçambique, inferiorizado,
repugnante e doente e, pelo olhar do colonizado, o português demoníaco,
que deveria ser expurgado daquela sociedade. Tinhoso é um adjetivo que
tem significados como teimoso, obstinado; que provoca nojo, repugnância;
que sofre ou apresenta tinha, doença de pele causada por fungos; ou o diabo
na expressão popular, sentidos que podem ser atribuídos tanto ao
colonizador quanto ao colonizado, dependendo de quem é o emissor da
adjetivação.
Observe-se que minha interpretação cria um círculo vicioso quanto
à simbologia do Cão Tinhoso: para o colonizador, ele é o colonizado, para
o qual, o cão é o colonizador, para quem o animal é o colonizado, para o qual
é o colonizador ... e, assim, ad aeternum.
Embora a principal personagem do conto seja o Cão Tinhoso,
daremos destaque também a algumas outras personagens:
Ginho: narrador do conto, símbolo da criança moçambicana em
processo de travessia da vida infantil para a maturidade, já que matar o Cão
é seu rito de passagem. Daí a instabilidade inicial de seu comportamento e
a insegurança frente a uma situação inesperada. Escolher entre matar o
animal ou deixá-lo viver, representa uma desestabilização emocional, que
parece ser superada no final do conto, quando ele retorna à escola e retoma
a rotina, semelhante situação vivida em “As mãos dos pretos”, em que ele,
depois de ouvir diversas e absurdas justificativas sobre o motivo de as

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palmas das mãos dos pretos serem brancas, volta às suas brincadeiras
infantis, seguindo a suposta normalidade da vida. Assim como o Cão
Tinhoso, Ginho é marginalizado pelo sistema colonial, sendo também
ridicularizado pelos outros meninos;
Isaura: menina, tida como lunática pelos demais alunos da escola,
que nutria verdadeira afeição pelo Cão Tinhoso, fazendo oposição constante
à morte do animal. Assim como o Cão Tinhoso, ela simboliza o silêncio ao
qual está condenado o moçambicano, vítima de preconceito e discriminação,
e a invisibilidade da mulher na sociedade. No entanto, Isaura, tomada por
tristeza e raiva, grita no desfecho da narrativa, indicando que é necessário
coragem para bradar contra as injustiças;
Quim: garoto autoritário, preconceituoso e agressivo, que exibe
pretensa superioridade em relação aos demais.

3.2 “INVENTÁRIO DE IMÓVEIS E JACENTES”

O narrador relata que seu pai não dormia com portas e janelas
abertas, talvez por causa da doença, e que, por recomendação médica, ele
precisava usar uma cama dura, motivo pelo qual Papá ficava no quarto do
narrador, junto com cinco ou seis pessoas. Tina, Gita e Mamã dormiam na
cama anteriormente usada pelo pai.
Quase todos os membros da família, Papá, Lolota, Gita, Nelita,
Nandito, Tina e Mamã, ressonavam, enquanto dormiam, o que levava o
narrador a questionar se ele fazia o mesmo. A casa tinha dois quartos, uma
sala de visitas, um banheiro e uma sala de jantar, onde Mamã cozinhava.
Nela havia um fogão, uma mesa, sete cadeiras, vários sacos colocados atrás
da porta e um armário onde alguém escrevera “Elvis”.
Durante as refeições, Gita e Nelita sentavam-se no chão por não
haver lugar à mesa para elas. A comida servida era sempre arroz com molho
de amendoim, o que, talvez, tenha levado uma das duas meninas, enjoada
de comer invariavelmente a mesma refeição, a escrever “Elvis” no armário
como uma forma de rebeldia.
Como as paredes da sala de jantar estavam enegrecidas da fumaça,
Mamã passou a cozinhar numa palhota construída no quintal. Na parede do
corredor, na verdade um pequeno quartinho, cujas portas davam para os
quartos, sala de jantar e banheiro, havia uma estante com cinco prateleiras
repletas de livros e coberta por uma cortina feita de pano grosso e amarelado.
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Quando o pai esteve preso, no período colonial, talvez, por
envolvimento com as forças estruturantes da descolonização, Tina usou duas
cortinas para fazer uma saia. Os colchões eram de palha, com exceção o da
Mamã, que era de sumaúma, comprado já usado de Mano Mário, o qual já
o tinha adquirido de segunda mão. O narrador e Tina gostavam de se deitar
no colchão da Mamã, mas só o faziam quando o Papá não estava em casa.
Para a Mamã, a preguiça é um defeito feiíssimo numa mulher
(NMCT, 2020, p. 53, 54), argumento empregado pelo narrador para evitar
que Lolota se deitasse no colchão de sumaúma.
No quarto de Mamã, além de três camas e duas mesinhas de
cabeceira, havia também “um berço em que dormiam Joãozinho e a
Carlinha, 1 cômoda, 1 guarda-fatos3, 2 mesinhas de cabeceira, uma de cada
lado da cama do colchão de sumaúma, e 1 mala de cânfora sobre a qual
estão várias malas de viagem” (NMCT, 2020, p. 54), e debaixo da cama dois
caixotes de madeira, contendo três livros e o material de desenho e pintura
do narrador. Sob a cama de Papá também havia caixotes com livros. Nas
mesinhas de cabeceira, estavam revistas mais velhas, porque

As mais apresentáveis estão na sala de visitas,


sobre a mesa do centro, sobre o aparador, sobre
a máquina de costura e na mesinha do rádio. Se
agora quisesse ler uma revista, ia direitinho à
mesa do centro, porque lá é que estão as “Lifes”,
as “Times” e os “Cruzeiros” mais recentes. Nos
outros lugares da sala de visitas estão as revistas
mais antigas e as mais ordinárias. Na mesa do
centro está também o “Reader’s”, mas talvez
nem lhe tocasse porque parece que não é grande
coisa. O Papá diz que é uma porcaria. Bem, mas
para ele todas as revistas que a Mamã costuma
pôr na sala de visitas são uma porcaria. É por
isso que não tenho assim tanta vontade de sair
da cama, embora não tenha sono nenhum.
(NMCT, 2020, p. 54, 55).

3
Guarda-roupas

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3.2.1. ANÁLISE

No conto, “Inventário de Imóveis e Jacentes”, a descrição do


ambiente é o eixo da narrativa, pois, por meio dela pode-se perceber como
era estruturada a vida familiar daquela residência de moçambicanos
assimilados. Embora seja um inventário da pobreza, que acomete grande
parte da população indígena, a casa é aparentemente confortável, dividida
em cinco cômodos pequenos demais para abrigarem a família numerosa:
pai, mãe e oito filhos.
A disposição dos móveis e dos objetos remete ao modelo europeu
de decoração, num ambiente de conforto remediado. Há um único colchão
de sumaúma, sendo os demais de palha; um berço, em que dormem duas
crianças; uma mesa de jantar com sete cadeiras diferentes umas das outras;
uma máquina de costura; um rádio; cortinas de tecido amarelado e grosso;
revistas antigas; caixotes com livros; uma estante de livros na sala; materiais
de pintura e de desenho, bem como uma mesinha de centro.
Percebe-se que, embora a pobreza seja evidente, a família vive num
aparente conforto básico adequado aos assimilados, os quais não têm acesso
às mesmas condições materiais dos portugueses natos, levando a crer que,
embora haja um esforço da família para cumprir o papel de pessoas
“civilizadas” capazes de aprender os costumes do colonizador, o alcance da
igualdade com os portugueses fica praticamente impossível. Assim, a
necessidade de assimilação metaforiza a conquista de um lugar integrado à
categoria de pessoas de prestígio social, sendo o ambiente descrito símbolo
da tentativa de a família sair do estado de inferioridade alimentado por meio
do preconceito racial reinante.
Destaque-se que os livros escondidos por trás da cortina são forte
representação da importância da ampliação do conhecimento abortador de
ideias impostas pelo colonizador. Desse modo, também na
representatividade da importância da leitura, as revistas estrangeiras, tais
como Life, Reader’s, Time, O Cruzeiro, configurariam um acesso
desnecessário à cultura massificadora de imposição do dominador. O pai da
família rejeita qualquer uma dessas revistas, que acabam assumindo apenas
o papel decorativo da casa.
A posição contrária do pai, em relação às leituras gastronômicas,
indica que, naquele meio, ele é o único que tem consciência de que um
assimilado nunca deixará de ser tratado como um ser inferior e, talvez, a
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única forma de libertação seja a luta pela Independência total de
Moçambique.

3.3. “DINA”4
Madala5, coberto de suor, ouviu as badaladas do meio-dia e
observou as calças do capataz a dez passos de distância, aguardando que
ele gritasse para largarem o trabalho. Ao longe, também com o corpo
abaixado, Filimone esperava a ordem para poder deixar o trabalho
exaustivo. O ofício de arrancar as ervas daninhas produzia insuportável dor
nos rins e joelhos, além de o horário ser propício para o aparecimento de
“escorpiões, lacraus, lagartixas e até mesmo cobras” (NMCT, 2020, p. 59).
Pitarrossi morrera picado por uma cobra naquela machamba e, depois de
sua morte, a esposa passara a dormir com diversos “homens que lhe
pagavam bebidas nas cantinas” (NMCT, 2020, p. 59). Madala, como fora
amigo de Pittarrossi e já estava velho, nunca se aproveitara da viúva.
Aguardando a liberação do capataz, Madala sentia dores
insuportáveis, mas se erguia, recompondo-se da crise de dor, já que não era
possível arrancar as ervas de joelhos. Ao levar as folhas de uma planta à
boca, Madala ouviu a ordem do capataz para irem almoçar. N’Guiana e
Muthakati ergueram-se rapidamente, mas Madala não o fez, para evitar uma
repreensão do capataz, como a ouvida pelos dois colegas de trabalho: – Para
começar são umas comichões que nunca mais acabam, mas para despegar
é a correr, não, meus cabrõezinhos? Continuem assim que eu desanco-vos
o lombo!... (NMCT, 2020, p. 61).
Todos seguiram o capataz em silêncio. Madala caminhava mais
distante dos demais. Durante a hora do almoço, alguns trabalhadores
dormiam para recompor as forças. Madala sentou-se a uma sombra, perto
dos homens do curral, os quais pararam de falar sobre mulheres e assumiram
um ar mais solene à presença dele. Um dos homens puxou conversa com
Madala que preferiu se manter em silêncio. O jovem insistiu:

4
Meio-dia; interrupção do trabalho para o almoço
5
Significa idoso, ancião

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– O branco é mau... – continuou o rapaz. – Ele
demora muito antes de mandar largar... Eu via
isso quando trabalhava na machamba... Também
não deixa as pessoas endireitarem-se por um
bocado para descansar as costas... Eu vi isso
numa vez... – Subitamente inspirado, o jovem
virou-se para os outros. – Isto não é mentira,
juro que não é mentira... Uma vez, estávamos
nós a trabalhar na machamba com o branco.
Fazia muito sol... toda a gente sabe que faz
muito sol na machamba... Vocês vão ver por que
é que eu digo que o capataz é mau. Estávamos
nós a trabalhar na machamba... Fazia muito sol
na machamba... – o jovem continuou a narração,
cada vez mais tomado pelo entusiasmo,
transferindo a audiência das suas palavras de
Madala para os seus companheiros. (NMCT,
2020, p. 63, 64)

O capataz almoçava e regalava-se com o vinho, que nunca oferecia


aos demais. Djimo chamou Madala para comer. Surgiu Maria, filha de
Madala, que dormia com diversos homens, e, por isso, ninguém queria
casar-se com ela. Madala perguntou à filha pelos familiares, enquanto todos
os homens do acampamento olhavam para ela desejosos.
Djimo chamou Madala, novamente, para comer e ele disse que
ficaria com a filha. O capataz se aproximou de Maria:

– Olá, Maria! O que é que vieste cá fazer? Estás


a engatar o Madala?... Ao Madala não deve ser
porque está muito cocuana... Talvez seja ao
Djimo... Maria, tu estás a engatar o Djimo?...
– Eu não está a engatar Djimo... – respondeu
Maria, tentando falar em português. (NMCT,
2020, p. 65)

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Maria aconselhou o pai a ir comer. Ele, percebendo o nervosismo
da filha, perguntou:
– Por que é que tu pensas assim?
Ao ouvir a voz cava mesmo junto à sua cara,
Maria esquivou-se ainda mais, quase que
ficando de costas para o pai.
– Bem, eu não tenho nada... Eu não tenho nada
que me faça pensar assim... – calou-se por um
bocado, mas logo continuou, um pouco mais
animada. – Eu não sei, pai, mas penso que tu
precisas de ir comer...
Madala contornou o corpo de Maria e pôs-se-lhe
em frente, com os joelhos exageradamente
dobrados, tentando ver-lhe os olhos
definitivamente escondidos por detrás das
pálpebras. (NMCT, 2020, p. 66)

Ao ser questionada pelo pai, a filha disse-lhe que não sabia e


repetiu que ele deveria se alimentar. Madala disse que não tinha fome
nenhuma da barriga (NMCT, 2020, p. 67), mas Maria poderia comer. Ela
respondeu:

– Eu comi nas cantinas, antes de vir ver-te.


Quando eu ia a passar pelas cantinas, uma
pessoa amiga viu-me e chamou-me lá para
dentro. Essa pessoa amiga comprou-me umas
coisas e disse “toma lá, isto é para tu comeres”,
e eu comecei a comer.
Maria abriu os olhos, mas fechou-os
imediatamente. (NMCT, 2020, p. 67)

Frente à insistência da filha, Madala foi comer. De longe, ele viu


o capataz se aproximar de Maria e lamentou não poder ouvir o que falavam.
O capataz afastou-se na direção do celeiro, seguido depois por Maria.
O jovem, que, anteriormente, procurava conversar com Madala,
lhe disse que Maria estava conversando com o capataz, sendo repreendido

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por Elias, o encarregado do grupo do curral (NMCT, 2020, p. 68): –
Quando as pessoas não compreendem certas coisas devem calar-se...
(NMCT, 2020, p. 69). Madala voltou o olhar para a direção da machamba,
e Djimo ordenou-lhe que não olhasse para aquele lado.
Maria tentou resistir à investida do capataz, mas ele conseguiu
contê-la e ela acabou aceitando o ato sexual. Nesse mesmo momento, vários
homens do grupo rodeavam Madala em solidariedade ao que acontecia com
sua filha. Maria questionou ao capataz o motivo de tê-la forçado à atividade
sexual e ele perguntou a ela se não havia gostado. Maria respondeu:

– Assim não é bom... De noite é mais melhor! – E


houve pânico na sua voz. – Agora Madala viu!...
Madala viu... – Gemeu. – Mas você disseste é só
para combinar para gente contrar de noite...
– Vamos, rapariga, acabou a festa. Depois dou-te
a massa... (NMCT, 2020, p. 72)

O capataz retornou ao acampamento, seguido à distância por


Maria, que não erguia os olhos do chão, bem como o faziam os demais
homens. O jovem rapaz disse a Madala que eles não tinham medo de morrer
e todos estavam solidários ao sofrimento dele.
O capataz arremessou uma moeda na direção de Maria dizendo-lhe
que era o que ele lhe devia:

– Mas o que é que tens, rapariga? Não queres o


dinheiro? Tens medo de o receber? – Calou-se,
aguardando a resposta da Maria. Mas
continuou: – Tens medo que os rapazes
descubram que és uma puta?
Maria abraçou-se mais apertadamente e,
cravando as unhas nas costas, choramingou:
– Madala viu nós... Madala viu...
– E o que é que isso tem? – O capataz abriu os
braços, reforçando a admiração, e depois
cruzou-os sobre o peito.
– Madala é minha pai!...

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– O quê?! – Articulou por fim o capataz. A cara
amarela tingia-se-lhe rapidamente de sangue. –
Eu não sabia que eras filha do Madala... –
Gesticulou asfixiado. – Eu não sabia... palavra
de honra, Madala, palavra que não sabia... eu
não sabia que tinhas uma filha... tão bonita...
eu... sou amigo dela...
O silêncio dos homens do acampamento latejava
de tensão. (NMCT, 2020, p. 74)

Para reparar o que havia feito, o capataz dispensou o pai de Maria


de trabalhar no período da tarde. Madala levou os olhos ao chão e o capataz,
então, ofereceu-lhe dinheiro, mas, como não obteve resposta, retirou-se do
local, retornando, depois, com uma garrafa de vinho. Ordenando aos demais
homens que retornassem ao trabalho, o capataz ofereceu a bebida a Madala,
que a recebeu, ingeriu rapidamente o vinho e devolveu a garrafa ao capataz.
O silêncio tomou conta do lugar. Só a voz do capataz, ordenando
que todos voltassem ao trabalho, era ouvida. O jovem do grupo do curral
passou por Madala, cuspiu para seus pés e o chamou de “cão” (NMCT, 2020,
p. 76). Diante daquela situação, Madala ignorou a atitude do jovem e voltou
ao trabalho com os demais, sob os gritos do capataz.

3.3.1. ANÁLISE

Único conto a ter um narrador em terceira pessoa no livro Nós


Matamos o Cão Tinhoso!, “Dina” apresenta um dia de trabalho na
machamba (cujo significado em Língua Banto é campo para lavoura) e as
precárias, insalubres, degradantes e desumanas condições de trabalho.
Havia outros grupos, além do da machamba, resultantes da divisão
do trabalho: o grupo do desbravamento, da horta e do curral. A situação no
ambiente, no entanto, representa a estrutura dos conflitos entre colonos e
filhos da terra, vítimas da invasão violenta do mundo do colonizador,
metaforizada, no conto, por exemplo, no âmbito da sexualidade, já que o
capataz estupra Maria, cena que alude à convivência forçada e baseada na
sobreposição das raças, a qual surge com o regime colonialista representado
na figura da autoridade.

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Os trabalhadores da machamba em nenhum momento questionam
a decisão de o capataz retardar, de forma arbitrária, o início do “dina”(cujo
significado em Fanagalô, Língua Crioulo das minas da África do Sul, é a
hora do almoço) possivelmente por medo de serem apenados pelo homem
branco.
A aparente paciência de Madala, personagem principal da
narrativa, indica, simultaneamente, a aceitação e a indignação interior que
se revela por meio de seus pensamentos e gestos. Por exemplo, arrancar as
ervas daninhas da plantação representa o autocontrole de Madala, mas, ao
extrair com certa violência uma planta, expressa sua revolta e força. Além
disso, a presença de escorpiões e cobras revela a periculosidade do local de
trabalho, o que não merece atenção por parte do colonizador, já que
Pitarrossi morrera picado por um desses animais peçonhentos.
Uma questão que perpassa pela mente do leitor é o motivo de
Madala não reagir ao tratamento dispensado a ele e aos demais por parte do
capataz. Vejamos: revoltar-se contra o representante do colonizador não
traria, naquele momento, nenhum benefício, já que qualquer luta para ser
vitoriosa necessita de planejamento e organização.
Além disso, do alto de sua sabedoria, Madala percebia que o
capataz estava testando a paciência dos trabalhadores, à espera de que algum
deles se revoltasse e, desse modo, ele pudesse exercer seu poder de mando
com violência, o que seria uma espécie de “lição” para que os demais se
comportassem passivamente frente à sua autoridade.
Portanto, a resignação de Madala é aparente, pois, quanto mais ele
apresentasse um comportamento de aceitação do domínio, num exercício
da prudência adquirida com a sabedoria da idade, mais o momento da reação
tornar-se-ia uma surpresa para o capataz, que, pego desprevenidamente
sucumbiria ao ataque, o que não ocorre no conto, mas fica subentendido
como algo que, um dia, virá a acontecer.
Em oposição à paciência de Madala, o jovem trabalhador apresenta
um comportamento reativo e, frente às atitudes do idoso, ele o destrata.
Destaque-se que, na cultura moçambicana, as pessoas mais velhas são
símbolo de sabedoria, mas o jovem, no seu afã revoltado, não percebe isso,
nem a liderança que Madala representa para o grupo que identifica nele o
exemplo de como se deve ter cautela e, aparentemente, ser resignado frente
ao dominador.

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A relação da maioria dos trabalhadores com Madala norteia-se pelo
respeito, baseado na confiança, e pela preocupação, como se pode perceber
no momento em que Maria, filha de Madala, chega ao local. Djimo torna-se,
então, uma espécie de protetor do idoso ao tentar fazer com que ele não veja
a filha sendo seduzida pelo capataz e, dessa forma, evitar que uma reação
de Madala desencadeasse alguma espécie de violência desferida contra ele.
Por sua vez, o capataz não demonstra nenhum respeito a qualquer
um dos trabalhadores, seja pelo seu tom autoritário, seja pelo prazer que
tem em adiar o horário do almoço dos trabalhadores, seja pela exposição de
Maria como objeto sexual. Embora o capataz aparente um certo
arrependimento ao saber que Maria era filha de Madala, e tente compensar
sua atitude dispensando-o do trabalho e oferecendo a ele o vinho, esse
constrangimento inicial rapidamente desaparece e o capataz reassume a
postura tirânica frente aos trabalhadores.
Aliás, ao aceitar e beber o vinho, Madala faz com que o capataz se
convença que está no comando de toda a situação, transformando-o,
indiretamente, em um idiota que é ludibriado com facilidade sem ter a
mínima consciência disso. É uma metaforização da estratégia de luta, pois,
quanto mais o colonizador se acredite no topo do comando, menor atenção
ele dispensará a pequenas atitudes construtoras de uma grande ação final
que culminará na independência moçambicana. Madala, na sua aparente
passividade, é a figura do grande e sábio líder.
O abuso de poder do capataz, representante do colonizador, não se
limita às suas ações frente aos trabalhadores, mas se amplia na cena do
abuso sexual, que envolve Maria, a qual metaforiza a invasão do território
moçambicano e sua exploração não consentida pelo nativo, que,
enfraquecido, cede aos avanços selvagens do colonizador.
O choro de Madala, ao perceber a violência da qual Maria é vítima,
corresponde à dor do pai incapaz diante do mais forte naquele momento.
Mas, ele não se curva perante o capataz, pois, aceitando dele a bebida
ofertada, Madala, embora aparente a aceitação do poder do dominador, se
projeta como superior, uma vez que ele ilude o homem branco com sua
atitude.
Os demais trabalhadores, no entanto, chegam a manifestar uma
pequena revolta contra o capataz quando este lhes ordena que retomem o
trabalho e eles não o obedecem imediatamente.

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A desobediência desencadeia a ira do capataz que grita insultos
racistas, comparando os trabalhadores a animais sem direitos ou dignidade.
Mas, indiretamente influenciados pela atitude de Madala em aceitar o vinho do
capataz, os trabalhadores percebem que o momento não é, ainda, propício ao
enfrentamento, que necessita de condições mais favoráveis para a obtenção da
vitória da justiça, a qual não permitirá mais ao colonizador que use os
moçambicanos como “dina”, isto é, não se alimentem mais das forças das mãos
negras que, no momento, apenas postergam a luta em busca da liberdade.

3.4. “A VELHOTA”

Eu juraria que não cheguei a perder o


conhecimento, embora pouco antes de cair
tivesse experimentado aquele estado de
embotamento da sensibilidade que, quando nos
toma, restringe a nossa capacidade de defesa
aos gestos puramente instintivos mas
estupidamente lentos, que todos conhecem nos
boxeurs “grogues”. Acho que ninguém podia
avaliar o esforço tremendo que fiz nesses não sei
se longos se breves momentos, para conduzir os
meus punhos, brutalmente pesados antes de
ganharem movimento e incrivelmente flutuantes
depois de erguidos. Entretanto, às pancadas que
recebia não se aliviava qualquer sensação física
porque só lhes percebia o eco diluindo-se
lentamente dentro da minha cabeça. Esse
maldito eco e só esse é que foi o culpado de eu
cair. É que atrapalhava-me muito e fazia com
que antes de levantar um braço tivesse de pensar
com força que tinha que levantar um braço. Caí
lentamente, com plena consciência de estar
caindo. (NMCT, 2020, p. 79)

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Assim, o narrador iniciou o relato da surra que levou de um
homem, o qual, prazerosamente, se exibia da brutalidade aos demais, a fim
de provar-lhes sua valentia no bar. Consciente de que tinha vontade de ir
para casa, mesmo antes de entrar no local, o narrador relatou que, nos
últimos tempos, chegava muito tarde ao lar e saía muito cedo de casa,
evitando o contato com a velhota insípida e as crianças chatas e barulhentas.
Comparando sua vida familiar com a surra que levara, o narrador
revelou que se sentia como um elemento estranho e ridículo naquela
sociedade, mas, no bar, era muito pior. Ele precisava ir para casa para
encher os ouvidos de berros, os olhos de miséria e a consciência de arroz
com caril de amendoim (NMCT, 2020, p. 81).
Ao chegar ao lar, a velhota lhe perguntou se desejava comer e o
narrador respondeu não saber se queria, ou não, se alimentar. Ao ser
questionado se estava zangado, ele negou. As crianças discutiam por causa
de um pedaço de carne, que Quito furtara do prato de Khatidja. A velhota
impôs o silêncio a todos e insistiu para o narrador comer, deixando-o mais
irritado. Na panela só havia o resto do arroz queimado que a velhota não
comera para deixar ao narrador. Mas, ambos diziam não ter fome.
Repentinamente, o narrador abraçou a velhota, que estranhou esse
comportamento incomum dele. Ela beijou o filho, perguntou-lhe se tinha
fome e, finalmente, questionou se haviam batido nele, ouvindo a negativa
do narrador. As crianças se aproximaram dele pedindo que contasse o
ocorrido:

Não, eu não contaria. Não fora para isso que


viera para casa. Além disso, não seria eu a
destruir neles fosse o que fosse. A seu tempo
alguém se encarregaria de os pôr na raiva. Não,
eu não contaria. (NMCT, 2020, p. 84)

A velhota disse ao filho que entendia o que ele estava passando,


mesmo assim, o narrador recusou-se a contar a surra levada no bar. As
crianças foram dormir e, então, o narrador conversou com a mãe:

– Meu filho, os miúdos já se foram...


– Sim, eu vou dizer: eles bateram-me.

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– Quem foi? Mas isso não é tudo, tu tremes...
– Sim, isso não é tudo. E até não é nada. Eles
fizeram-me pequenino e conseguem que eu me
sinta pequenino. Sim, é isso. Isso é que é tudo. E
por quê? Eles nem o dizem de alto. E tudo cai,
cai de repente, com barulho aqui dentro, e cai e
cai e cai...
– Bem, acho que o melhor é não querer saber
disso para nada, porque não percebo nada do
que tu dizes...
Ficamos silenciosos os dois, e de tal maneira
estávamos abraçados que não sabia se era
realmente ela que tremia. Tenho a impressão de
que só neste momento é que vi as chamas,
embora estivesse há muito tempo a olhar para
elas. O seu calor era bom e envolvia-nos, mas
para isso elas torciam-se num bailado
estranhamente rubro. Só deixei de as olhar
quando a velhota falou duma maneira que me
fez logo pensar que ela tinha estado um bom
pedaço a matutar na maneira de me dizer
qualquer coisa que afinal não disse. Acho que
ela só disse:
– Meu filho... (NMCT, 2020, p. 85, 86)

3.4.1. ANÁLISE

No conto “A Velhota”, o narrador moçambicano assimilado, após


ter sido vítima de agressão física e moral por parte de um soldado da polícia
colonial, passa por uma situação de reflexão sobre a sua impotência frente
ao domínio português.
O tema do racismo e da verdadeira condição do assimilado em
Moçambique é a mola condutora do conto, que explicita a revolta silenciosa
frente à violência e humilhação impostas pelo poder colonial. Desse modo,
embora o motivo desencadeador do espancamento do narrador não seja
explicitado no conto, fica sugerido que tenha sido provocado pela entrada
do narrador em um bar frequentado pelos colonos.
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Aos africanos assimilados, havia o bilhete de identidade, no qual
constava sua situação de civilizado; tal documento deveria ser apresentado
sempre que fosse solicitado, como, por exemplo, ao ingressar em ambientes
sociais a eles proibidos. O descumprimento dessa exigência implicaria a
força violenta empregada contra o assimilado, situação que, talvez, tenha
dado origem ao espancamento do narrador.
Percebe-se que, independentemente da causa da violência, fica
evidente o prazer do soldado em demonstrar sua ilusória superioridade
frente ao narrador, acrescida de sadismo comprovado pelo sorriso satisfeito
do agressor.
Psicologicamente perturbado, o narrador vê-se entre a vida
familiar, sem recursos financeiros, já que, mesmo sendo assimilado, ele não
tem acesso à cultura e aos confortos econômicos do colonizador, e a
violência exercida sobre ele e contra a qual nada pode fazer, a ponto de
deixar-se espancar até o soldado ter conseguido mostrar seu poder e força
aos demais frequentadores do bar.
Desse modo, para o narrador, ser assimilado, aos olhos daquela
sociedade faz dele um preto civilizado, mas ainda sem posição positiva na
sociedade colonial. Vítima da desigualdade social, o narrador tem vontade
de reagir às agressões, no entanto, não o pôde fazer por causa da velhota e
dos ranhosos dos miúdos (NMCT, 2020, p. 80).
Assim, a estratégia da assimilação, ilusão coletiva de igualdade
entre os nativos e os colonizadores, na verdade, reúne indivíduos
fragilizados na dominação do colonizador, configurando uma manipulação
coletiva de falsa igualdade social, como se pode ler na passagem a seguir:

Eu precisava ir para casa. Ia comer arroz e caril


de amendoim como eles queriam que fizesse,
mas não para encher a barriga. E precisava ir
para casa para encher os ouvidos de berros, os
olhos de miséria e a consciência de arroz com
caril de amendoim. (NMCT, 2020, p. 81)

O domínio colonial impunha ao assimilado a violência,


humilhação, pobreza, racismo e injustiça, que levaram o colonizado a ver o
sistema como o inimigo a ser combatido, por meio da luta em busca da
recuperação da dignidade perdida. Dignidade esta importante para o
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narrador, que tinha significado no seio familiar, sendo o arrimo da família,
mas, paradoxalmente, não tinha nenhuma importância para a sociedade,
sendo, por enquanto, obrigado a aceitar a imposição de uma condição
injusta.
A revolta do narrador estende-se à raiva que ele nutre, em alguns
momentos, pela família, mas, depois, ele percebe que sua situação de
inferiorizado, frente à suposta superioridade europeia, é resultado do
racismo alimentado e criado pelo colonizador. O narrador, por sua vez,
acaba buscando conforto no abraço da velhota esperançosa de que, no
futuro, a situação haveria de melhorar para eles.

3.5. “PAPÁ, COBRA E EU”

Ginho, um garoto na fase de puberdade, narrador do texto literário,


conta que, numa tarde de sábado, sua mãe levou seu pai até a capoeira das
galinhas, localizada no quintal, onde encontraram uma das aves morta, sinal
indicativo de que havia uma cobra no local.
Sartina, empregada da casa, que não entendia bem o português e se
comunicava em Língua Ronga, tinha como função recolher e lavar a louça,
alimentar o cão e servir o lanche às crianças. Ela nunca retrucava a patroa,
quando lhe tratava de modo ríspido, mas ficava zangada e cantava uma
canção monótona em algumas ocasiões. Sartina também flertava com o
empregado Maduana e, embora evitasse intimidade com o narrador, Ginho,
ele pensava nela durante a noite.
Como o garoto escutara a conversa sobre a possível presença de
uma cobra no galinheiro, depois de o pai deixar a casa para voltar ao
trabalho e a mãe sair para visitar sua comadre Lúcia, ele decidiu retirar
alguns materiais de construção, como tubos e blocos, que estavam
empilhados no local. Nandito, irmão mais novo de Ginho, acompanhou-o na
perseguição à cobra na capoeira das galinhas.
Após tirar o último bloco, depararam-se com uma cobra mamba
escura, a qual o personagem observava ao lado de Nandito. Na sequência,
aproximou-se Totó, o cão da casa, animal de índole impetuosa, que se
divertia em perseguir as galinhas, quando elas tentam se alimentar da
comida de sua tigela, e costumava ser feroz com os outros cães da
vizinhança, junto com Lobo, um cão da vizinhança, que acabou sendo
mordido pela peçonhenta.
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Depois desse episódio, Madunana, empregado da casa que
carregava a lenha e comprava o pão, ajudou Ginho a matar a cobra mamba.
Nandito se abrigou em seus braços ao sentir medo da serpente, que foi
apresentada ao Papá e a Mamã ao chegarem em casa. Nesse momento, Sr.
Castro, dono do cão perdigueiro picado pela cobra, Lobo, estacionou o seu
carro diante da residência da família e ameaçou o pai de Ginho de forma
hostil.
O narrador presenciou a conversa do pai com o homem, Sr. Castro,
vizinho branco (ao que tudo indica) da família de Ginho, exigindo, com tom
ameaçador, uma indenização pela morte de seu cão ao pai do narrador.
Ginho notou que o seu genitor não reagia às ofensas.
O pai do narrador era um assimilado que apreciava ler jornais e,
preocupado com a situação moçambicana, principalmente com a condição
em que viviam os nativos, decidiu compartilhar com o filho a sua
indignação, após receber ameaças de um vizinho.
Após o jantar, o chefe da família afirmou que não leriam a Bíblia,
como de costume, mas apenas rezariam naquela noite, o que foi feito em
Língua Ronga. Já a mãe do narrador, personagem ativa de comportamento
protetor e controlador, continuava a impor uma série de ordens aos filhos e
aos empregados.
Antes de se recolher para a cama, o rapaz perguntou ao pai a razão
de ele rezar quando estava zangado. O pai respondeu que havia necessidade
de se obter força e esperança de que um dia aquela situação terminaria. No
fim, ambos riram do episódio que viveram com o Sr. Castro e Papá afirmou
que já era tempo de serem doidos e que os seus filhos soubessem ver outras
coisas.

3.5.1. ANÁLISE

O conto é narrado em primeira pessoa pelo autor-personagem


Ginho. A trama se passa no ambiente doméstico, num sábado e o título
destaca a cumplicidade e aliança que se estabelece entre o narrador e o seu
pai, em razão dos eventos decorrentes do aparecimento de uma cobra
mamba na capoeira das galinhas, localizada no quintal da casa onde reside
a família.

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LUÍS BERNARDO HONWANA


Em primeiro plano, o texto expressa os sinais de amadurecimento
do jovem Ginho, curioso e observador, que começa a adquirir consciência da
realidade social e política em que está imerso, bem como a importância de
proteger sua identidade, mantendo a esperança da chegada de um novo tempo.
O narrador descreve o ambiente e as ações dos membros da casa de
forma minuciosa, apresentando uma sequência de ações domésticas numa
tarde escaldante, salientando aspectos comportamentais deles após a hora do
almoço. Ao que tudo indica, a casa é a mesma retratada em pormenores no
conto “Inventário de Imóveis e Jacentes”.
O espaço representa elementos da vida assimilada, como o jornal
que o Papá leva consigo embaixo do braço a caminho do trabalho, palitando
os dentes. Porém, há traços da vida rural africana indicativos de que as
personagens estão atreladas a uma cultura produtiva de subsistência: as
micaias, o moinho da machamba (horta), os bois, a cana-de-açúcar e as
galinhas do quintal auxiliam a conferir a cor local ao conto.
A assimilação pressupõe a reprodução dos modos de tratamento
impositivo com os empregados da casa, Sartina e Maduana, que realizam as
tarefas domésticas, como lavar a louça, alimentar as crianças e buscar lenha,
enquanto Papá volta ao escritório e a Mamã faz uma visita à Lúcia, sua
comadre. Há de se lembrar que a assimilação seria o meio de ascensão
econômica e social, que se atrelava ao mantenimento de uma série de
hábitos ditados pelos colonialistas.
O lugar de interatividade cultural também se nota no trato
linguístico pelos pais do narrador. O Ronga é uma Língua de uso corrente
no Sul de Moçambique, que tem bastante familiaridade com o Changana e
o Tsua, cujas Línguas constituem o tronco linguístico Tsonga.
A mãe do narrador prioriza a comunicação com Ginho em Língua
Portuguesa, ainda que o trato com os empregados se dê em Ronga, a Língua
local. O texto faz questão de enfatizar, ao longo da narrativa, as
circunstâncias em que o Português e o Ronga são usados pelos pais do
narrador, salientando que a Língua europeia seria um sinal de distinção e
educação do assimilado. No entanto, quando ambos estão em situações de
desassossego, a Língua Ronga prevalece, como faz o pai do narrador ao
rezarem, depois do jantar, demonstrando o apreço íntimo das personagens
com a Língua materna.

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3.6. “AS MÃOS DOS PRETOS”

O narrador inicia o conto dizendo que o Senhor Professor, certa


ocasião, disse que

(...) as palmas das mãos dos pretos são mais


claras do que o resto do corpo porque ainda há
poucos séculos os avós deles andavam com elas
apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem
as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o
resto do corpo. (NMCT, 2020, p. 107)

O motivo de o narrador lembrar-se dessa definição do Senhor


Professor decorre de quando o Senhor Padre, após a catequese, durante a
qual, inclusive, afirmou a todos que não prestavam para nada e até os pretos
eram melhores do que nós (NMCT, 2020, p. 107), disse que as mãos dos
pretos eram mais claras porque eles andavam sempre com elas em posição
de reza.
A curiosidade fez o narrador iniciar uma busca por definições a
respeito do motivo de as palmas das mãos dos pretos6 serem mais claras do
que o resto do corpo. Dona Dores disse que Deus havia feito as mãos mais
claras para que os pretos não sujassem a comida feita por eles para seus
patrões, ou ainda qualquer coisa que eles tocassem, ou a eles fosse ordenado
fazer, se mantendo tudo limpo justamente porque as mãos eram claras.
O Senhor Antunes da Coca-Cola disse:

– Antigamente, há muito anos, Deus, Nosso


Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro,
muitos outros santos, todos os anjos que nessa
altura estavam no céu e algumas pessoas que
tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma
reunião e resolveram fazer pretos. Sabes como?

6
Optou-se pelo emprego da palavra “preto” como forma de manter a
originalidade do texto.

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Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes
usados e para cozer o barro das criaturas,
levaram-nas para os fornos celestes; como
tinham pressa e não houvesse lugar nenhum ao
pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés.
Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como
carvões. E tu agora queres saber por que é que
as mãos deles ficaram brancas? Pois então se
eles tiveram de se agarrar enquanto o barro
deles cozia?! (NMCT, 2020, p. 108)

No mesmo dia, Senhor Frias afirmou que tudo o que havia sido
ouvido pelo narrador era mentira, pois a verdade era que Deus, quando
terminou de fazer os homens, mandou-os ao banho num Lago do céu, e dele
resultaria a brancura dos corpos. Como os pretos foram feitos de madrugada,
período em que a água do Lago ficava muito fria, alguns homens molharam
apenas as palmas das mãos e as plantas dos pés antes de virem para o
mundo.
Mas, o narrador havia lido que

(...) os pretos têm as mãos assim mais claras por


viverem encurvados, sempre a apanhar o
algodão branco de Virgínia e de mais não sei
onde. Já se vê que a Dona Estefânia não
concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é
só por as mãos deles desbotarem à força de tão
lavadas. (NMCT, 2020, p. 108)

Já a mãe do narrador, que segundo ele era a única a ter razão nessa
questão, depois de muito rir das definições anteriores, afirmou:

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– Deus fez pretos porque tinha de os haver. Tinha
de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente
tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os
ter feito porque os outros homens se riam deles
e levavam-nos para as casas deles para os pôr a
servir como escravos ou pouco mais. Mas como
Ele já os não pudesse fazer ficar todos brancos
porque os que já se tinham habituado a vê-los
pretos reclamariam, fez com que as palmas das
mãos deles ficassem exatamente como as palmas
das mãos dos outros homens. E sabes por que é
que foi? Claro que não sabes e não admira
porque muitos e muitos não sabem. Pois olha:
foi para mostrar que o que os homens fazem, é
apenas obra de homens... Que o que os homens
fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas
que se tiverem juízo sabem que antes de serem
qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido
a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos
pretos fossem iguais às mãos dos homens que
dão graças a Deus por não serem pretos.
Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me
as mãos.
Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia
a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a
chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.
(NMCT, 2020, p. 109)

3.6.1. ANÁLISE

O enredo do conto “As Mãos dos Pretos” é marcado pela


rememoração do narrador a respeito de uma ocasião escolar em que o
Senhor Professor esclarece o motivo de as palmas das mãos dos pretos
serem mais claras que o tom da pele do corpo. Segundo o professor, os avós
da sua geração andavam com as mãos apoiadas no chão, semelhantemente
aos bichos do mato sem as porem ao sol que lhes foi escurecendo o resto do
corpo.

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Embora a explicação do Senhor Professor tenha uma ligação com
os conceitos biológicos, já que associa o andar dos pretos à ancestralidade
animal do homem, vinculada à teoria darwinista, percebe-se que, ocultado
pelo cientificismo aparente, o preconceito racial se impõe, uma vez que a
justificativa reforça a diferença racial. Se tal definição fosse aplicada a toda
espécie humana, todos seriam iguais no tom da pele do corpo e das palmas
das mãos.
Na tentativa de esclarecer a diferenciação racial imposta,
principalmente pelo discurso colonial de opressão, mantido à base da
repetição de ideias fortalecedoras da hierarquia social em que o tom de pele
mais claro é beneficiado e o jovem preto inferiorizado frente ao branco, o
narrador busca esclarecer seus questionamentos a partir de explicações de
outras pessoas.
O Senhor Padre, após a aula de catequese, afirmou que as mãos
serem mais claras decorria de estarem com elas sempre em posição de reza,
ou seja, valeu-se de uma explicação religiosa, indicando a necessidade de os
pretos seguirem o catolicismo e rezarem continuamente, talvez, para ser
libertarem dos pecados, o que configura certa ironia do autor.
Dona Dores apresenta uma justificativa inaceitável ao dizer que
Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que
fazem para seus patrões ou qualquer coisa que eles mandem fazer e que
não deva ficar senão limpa (NMCT, 2020, p. 107), o que reforça a
perspectiva de que cabe ao preto servir ao branco, além de associar sujeira
ao preto. Fica evidente na explanação de Dona Dores a ideia de inferioridade
dos pretos em relação aos brancos colonizadores, uma vez que cabe ao preto
servir ao patrão branco, perspectiva de que tal divisão social fosse natural.
Senhor Antunes da Coca-Cola também se vale de uma justificativa
de cunho religioso, mas a mistura com filosofia platônica reforçando o
racismo e reproduzindo, mais uma vez, a perspectiva colonial. Além disso,
o viés capitalista se destaca já no sobrenome da personagem: Coca-Cola.
Saliente-se que, após ter evocado Deus, Jesus Cristo, Virgem Maria e os
Santos, o tom da conversa é envolvido por uma perspectiva galhofeira como
se a dúvida do narrador fosse uma idiotice óbvia.
Senhor Frias, assim como os demais, à exceção do Senhor
Professor, argumenta de maneira religiosa, mas irônica, dando a ideia de
que os pretos feitos por Deus de madrugada, período em que a claridade já

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inexiste, com o frio, evitaram banhar-se na água do Lago, a qual lhes traria
a cor da pele branca, e, apenas molharam as palmas das mãos e a planta dos
pés. Tal explicação remete a um episódio do livro Macunaíma de Mário de
Andrade, em que um dos irmãos da personagem homônima só consegue
lavar as palmas das mãos e as solas dos pés nas gotas que sobraram da água
mágica do Lago.
Dona Estefânia, por sua vez, teoriza que as mãos dos pretos são
brancas nas palmas porque desbotaram à força por terem sido intensamente
lavadas, talvez buscando a pureza.
A mãe do jovem narrador é quem traz uma justificativa aceita pelo
menino, talvez por ser ela preta ou por apresentar uma visão distinta da
estabelecida por determinação do jugo colonial. Observe-se que o ponto de
vista da mãe, além de ponderado, oculta do filho as dificuldades e injustiças
vividas pelos pretos, uma vez que ela omite dele qualquer perspectiva
vinculada ao preconceito racial e à violência aplicada pela estrutura colonial
separatista e maldosa.
Ao chorar, percebemos um misto de emoções no sentimento da
mãe do narrador, tocada pela situação vivida pelos moçambicanos que
sofrem o preconceito, a violência e a injustiça por não corresponderem à
cor de pele tida como perfeita pelos dominadores. É a conscientização da
dor provocada pelo preconceito.
O conto “As Mãos dos Pretos” é um exemplo de que na Literatura
o menos é mais, isto é, no menor conto de Nós Matamos o Cão Tinhoso!
estão reunidas perspectivas que englobam a situação dos pretos de
Moçambique (e não apenas desse país) quanto ao racismo e ao processo de
colonização e descaracterização da terra original.
Note-se que os argumentos empregados pelas personagens, para
justificarem o motivo de as palmas das mãos dos pretos serem mais claras,
giram em torno da decisão de Deus com ingredientes das narrativas
populares, exceto a do Senhor Professor que o vincula ao Evolucionismo e
à Filosofia.
É importante ressaltar que as personagens questionadas pelo
narrador são associadas à perspectiva de autoridade tanto que elas são
tratadas pelo primeiro nome ou apelido, acompanhado pelo pronome de
tratamento (senhor, dona), indicando, assim, posicionamento social de
importância.

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O jovem narrador procura por explicações que fujam dos
estereótipos consagrados pelo tempo, como, por exemplo, os discursos de
autoridades representados pelo professor e pelo padre.
O questionamento, a curiosidade do menino e a busca por respostas
caracterizam seu comportamento diferenciado em relação aos demais
moçambicanos pela não aceitação passiva de uma explicação única,
aproximando-se a uma espécie de rito de iniciação na vida adulta em que o
olhar fantasioso infantil abre espaço ao olhar mais maduro do adulto.
No entanto, no desfecho do conto, o menino narrador regressa à
sua vida infantil, satisfeito com a perspectiva mais positiva ao seu
questionamento, voltando ao quintal para jogar bola, mas refletindo sobre
o motivo pelo qual levaria alguém a chorar sem ter apanhado, como fez sua
mãe.
Desde o título do conto, até a escolha de um narrador menino, a
sinédoque se faz presente: as mãos, parte do corpo humano, representam o
todo do indivíduo; o menino, parte da população infantil moçambicana,
simboliza todas as crianças de Moçambique, que, embora ainda não
tivessem total consciência da situação do país como vítima do jugo colonial,
representam uma população futura mais questionadora e capaz de discernir
com positividade qual o melhor caminho para o país: a libertação da
supremacia racial branca.

3.7. “NHINGUITIMO”

Na primeira parte do conto, intitulada “As rolas”, o narrador dedica-se


a descrever os pássaros na paisagem local:

(...) as rolas reúnem-se nas matas que dividem as


machambas do vale. Durante duas ou três semanas, em
bandos numerosos, sobrevoam os campos em largos
círculos. Nesses voos as rolas demarcam do ar os
caminhos que os tratores e os lavradores utilizam mais
frequentemente e, de posse desse pormenor, preparam a
estratégia para o ataque às espigas acabadas de torrar
pelo sol poderoso de setembro.
[...]

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(...) o bando é dirigido pelos guias para as machambas
onde o bago de milho é mais pequeno e mais redondo,
onde o pé da planta não teve tempo de crescer para além
de um metro do chão.
[...]
Por uma questão de segurança, o bando procura cobrir
áreas não muito sulcadas pelos caminhos dos homens e
dos tratores. Mas, mesmo depois de tomada essa medida
de precaução, uma dezena de rolas, geralmente das mais
novas, organizam um cordão de vigilância que borda toda
a superfície de atuação do bando. (NMCT, 2020, p. 111)

O narrador acrescenta que o cantar das rolas é triste, nada poético


e “horrivelmente direto” (NMCT, 2020, p. 112). No período em que o milho
seca e a espiga endurece, o vento assusta as rolas que fogem, mas voltam ao
ataque após o susto inicial. Eis que, então, chega o Nhinguitimo, vento que
vem do Sul, e torna o céu cinzento, derrubando pés de milho e assustando
as rolas, que procuraram refúgio nas folhagens das figueiras.
Na segunda parte do conto, intitulada “Como seria possível
esquecer aquela noite, caramba?!”, o narrador diz que, em noites úmidas, o
horário de a família se recolher era mais tardio e

(...) o administrador, o médico, o chefe dos


correios, o veterinário e o chefe da estação iam
beber para o balcão da cantina do Rodrigues,
sítio geralmente tido como impróprio para a
gente grada da vila; os trabalhadores das
machambas do vale abandonavam os
acampamentos e iam abancar no salão da frente
da cantina do Rodrigues, sítio onde só eram
admitidas pessoas “da nossa melhor
sociedade”, no dizer do próprio Rodrigues; as
prostitutas da vila, normalmente tímidas e
obscuras, circulavam alegremente por entre as
mesas, deixando que os rapazes e os
trabalhadores das machambas lhes beliscassem

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amigavelmente as coxas, e que os membros da
tal melhor sociedade da vila lhes acariciassem
sub-repticiamente os traseiros. (NMCT, 2020, p.
114)

Rodrigues ficava extremamente satisfeito, pois sua tasca tornava-se o


centro da reunião da vila, e vangloriava-se de ter comprado um frigorífico, já
que as bebidas geladas atraiam mais frequentadores. As conversas dentre os
fregueses, normalmente, estavam relacionadas com a agricultura, o preço do
milho e os sonhos que poderiam ser realizados graças a abundância da colheita.
O narrador diz que não era amigo de Vírgula Oito, o qual, embora
trabalhasse na machamba7 do Rodrigues, tinha sua própria terra do outro
lado do rio. Para fazer inveja aos demais, Vírgula Oito falou sobre sua
produção de milho, feijão, amendoim, couves e batatas:

Também se fartou de falar da N’teasse, uma


rapariga lá do Goano, filha do Sigolohla. A voz
do Vírgula Oito lembrou-me o arrulhar das rolas
que, para exercitar a pontaria, nós “abatíamos”
todas as tardes nas machambas próximas à
curva do rio... (NMCT, 2020, p. 116)

O narrador, cansado de perder no jogo de cartas, retirou-se do local


e, ao chegar em casa, lembrou-se da frase de Vírgula Oito:

– Quando chegar o nhinguitimo tudo vai mudar


– dissera ele. – As machambas grandes que eles
fazem vão ficar destruídas pela fúria do vento.
As nossas machambas continuarão a amarelecer
calmamente, porque as grandes árvores do outro
lado do rio protegem-nas dos ventos. O preço do
milho vai subir e nós amos ter algum dinheiro.
Deus tem de querer que seja assim... (NMCT,
2020, p. 117)

7
Terreno agrícola para produção familiar, terreno de cultivo.

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A terceira parte do conto, “O Rodrigues da loja fartou-se de
esfregar o tampo do balcão” informa que, percebendo o interesse dos
companheiros, Vírgula Oito disse também que, se ele colocasse fogo à mata
e não apagasse as chamas durante três dias, ficaria com uma machamba
duas vezes maior, ganhando muito dinheiro e podendo comprar o que
quisesse, além de casar-se com N´teasse. Além disso, poderia contratar
alguns homens para ajudar e, assim, seria ele o patrão.
Rodrigues disse ao Senhor Administrador que seria bom se ele
mesmo fosse ver as terras, mas obteve como resposta que ele tinha mais o
que fazer. Depois de ter sido zombado pelo Senhor Administrador,
Rodrigues foi motivo de risadas do grupo todo e, envergonhado, ele voltou
ao trabalho.
Matchumbutana disse que não seria permitido a Vírgula Oito obter
tantos bens. Maguiguana concordou acrescentando que eles não gostariam
de que Vírgula Oito tivesse dinheiro como os brancos. Vírgula Oito
argumentou dizendo que não matava nem roubava, mas seus ganhos vinham
por meio de trabalho, além de pagar o imposto e os seus trabalhadores,
argumento que fez os demais concordarem com ele.
Rodrigues, após algum tempo, voltou a falar com o Senhor
Administrador:

– Senhor Administrador, se eu insisto nisto é só


porque me custa ver uma terra tão rica a ser
desperdiçada pelos pretos – o Rodrigues tinha
conseguido deter a palavra depois das três
rodadas de whisky que durou a festejar o aparte
do administrador, – e sempre lhe digo que esta
vila podia ter melhor sorte se se desse um pouco
mais de atenção às pretensões das suas gentes...
(o Rodrigues dava a sua mordidela vingativa...)
Senhor administrador, eu sempre confiei na
clarividência com que Vossa Excelência dirige
superiormente os interesses das populações
neste momento conturbado... – o Rodrigues
retificava a canelada – mas isto lá do baixio do
Goana é tão importante... (NMCT, 2020, p. 120,
121)

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Rodrigues chamou Vírgula Oito, que saudou o Senhor
Administrador, o qual, perguntou-lhe o nome. Vírgula Oito disse chamar-se
Alexandre Vírgula Ôto Massinga, e foi interrompido pelo Rodrigues que
pediu ao Senhor Administrador que o interrogasse. Vírgula Oito ouviu as
perguntas feitas em tom ríspido:

– Onde é que tu trabalhas? – interrompeu


brutalmente o administrador. – Onde é que tu
trabalhas, rapaz?
Vírgula Oito atrapalhou-se com a ira do
administrador. Quando se dominou, respondeu:
– Eu trabalha machamba patrão Lodrica.
Trabalha muito tempo mesmo...
– Alexandre Vírgula Oito Massinga... Raio de
nome... De onde é que tu és?
– Eu são do induna Goana, senhoro Mixadoro...
[...]
– Tu tens machamba lá no Goana?
– Eu tem machamba lá mesmo na Goana sinhoro
Mixadoro...
– Tem muito machamba lá?
– Tem muito machamba lá sinhoro Mixadoro...
– Machamba lá no Goana é produtiva? Raios...
Produtiva não!... É bom?... Machamba lá no
Goana é bom?... Jesus, isto só com intérprete lá
na administração... (NMCT, 2020, p. 121, 122)

A conversa começava a ficar tensa e os demais comentavam que o


Senhor Administrador não estava gostando do que ouvia de Vírgula Oito,
mas, mesmo assim, dispensou Vírgula Oito, o qual percebeu a zanga do
homem e não conseguiu disfarçar sua perturbação.
Na parte “A terra do Goana era boa que se fartava”, o narrador
descreve em detalhes como estava a terra e a plantação de milho. Havia
entusiasmo e uma corrida contra a diminuição do valor do produto, pois
havia abundância dele:

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Encravadas entre grandes propriedades
agropecuárias, tituladas e demarcadas com
cercados de arame farpado, as reservas
indígenas cresciam em profundidade, dando
para o rio uma frente estreitíssima. Contra a
regra, a reserva da região do Goana dava ao rio
uma das faces do seu comprimento. Todas as
suas pequenas machambas tinham por isso
acesso às águas do Incomáti. (NMCT, 2020, p.
125)

Vírgula Oito andava pela machamba e, entontecido pelo aroma da


terra, deitou-se sobre as ervas. Ao se levantar, viu N´teasse e os dois
começaram a correr um do outro, numa brincadeira de sedução até
concretizarem um momento íntimo.
Na penúltima parte, “Nhinguitmo”, Vírgula Oito ouviu de
Matchumbutana que os colonizadores se apropriavam das terras e eles nada
poderiam dizer:

– Matchumbutana... – Vírgula Oito falava


lentamente, titubeante – Matchumbutana... Eu
nasci naquela terra... O meu pai também nasceu
lá. Toda a minha família é do Goana... Os meus
avós todos estão lá enterrados... Maguiguana, o
Lodrica tem lojas, tem tratores, tem machambas
grandes... Por que é que ele quer o nosso sítio?
Por quê?... (NMCT, 2020, p. 128)

O caminhão já recolhia a produção de milho do patrão de Vírgula


Oito:

– Ei rapazes! – gritou o capataz, saltando para


o chão – Carregar num instante! Tenho pressa!...
Vá!...
Zedequiel deixou cair uma espiga e chamou os
companheiros com um gesto. Vírgula Oito

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continuou acocorado, por detrás de uma
pirâmide de milho.
– Onde é que está o Vírgula Oito? – perguntou o
capataz. – Esse Vírgula parece que anda a
querer brincar...
Vírgula Oito aproximou-se:
– Eu está doente, patrão... Dói cabeça... Dói
muito...
– Está bem, quando largares podes ficar doente
à vontade, mas agora vai ajudar os outros a
carregar o caminhão... (NMCT, 2020, p. 129)

Vírgula Oito voltou-se para os demais trabalhadores e perguntou se


eles achavam que estava certo tudo aquilo ser do Lodrica, mas ninguém
respondeu. Todos se olhavam com medo e Vírgula Oito protestou:

– Os outros também se encheram de medo... –


disse por fim Vírgula Oito, todo sufocado pelo
riso. – Estão todos com medo...
Surgindo do sul, as nuvens avançaram
rapidamente, tingindo o céu de negro.
– Estão todos com medo... Nós vamos ficar sem
nada e todos continuam com medo...
O estrondo enorme do primeiro trovão esmagou
o riso de Vírgula Oito. Rugindo, o vento trouxe
uma nuvem de poeira que envolveu os homens.
Vírgula Oito ergueu o olhar e abriu os braços
pateticamente.
– É o nhinguitimo!... – gritou alguém. (NMCT,
2020, p. 130)

Veio o Nhinguitimo e as rolas voaram para as florestas do outro


lado do rio. Na última parte do conto, “Nessa noite juro que senti raiva”, o
narrador jogava cartas quando Maguiguana entrou no local dizendo que
Vírgula Oito havia ficado maluco, já assassinara os colegas de trabalho e,
agora, corria atrás dele. Imediatamente Rodrigues disse:

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– Homens! Peguem em armas e vamos abater
esse tipo antes que ele mate mais gente! Vamos
depressa antes que aconteça qualquer coisa de
muito mau nesta vila!... Meu Deus!...
Pouco depois de eles saírem levantei-me da
mesa:
– Vão todos à merda mais a estupidez deste jogo!
Ninguém se preocupou comigo. Saí. Poucos
passos tinha dado quando senti a Marta a
chapinhar atrás de mim.
Caramba, como é que é possível haver tipos
como eu? Enquanto eu matava rolas e jogava ao
sete e meio aconteciam uma data de coisas e eu
nem me impressionava! Nada, ficava na mesma,
fazia que não era comigo...
– Marta! – chamei. A rapariga veio a correr.
Poça, aquilo tinha que mudar!... (NMCT, 2020,
p. 131)

3.7.1. ANÁLISE

O título do conto “Nhinguitimo” destaca um fenômeno climático


natural, comum na costa leste africana, banhada pelo Oceano Índico: o forte
vento marítimo que marca a chegada das chuvas de monções, ocorridas
durante o verão tropical. O termo é utilizado pelas populações do Sul de
Moçambique para se referirem à chegada do vento úmido e quente, propício
à colheita do milho:

De repente, o “nhinguitimo” irrompe pelo vale e


varre instantaneamente a poeira que enche o ar.
Célere, vasculha as matas, derruba os pés de
milho e dobra as micaias, que gemem de aflição.
As rolas procuram refúgio no mais recôndito da
folhagem espessa das figueiras que seguram o
rio no seu leito. Enquanto as mais novas se

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apertam umas às outras, tremendo de medo, as
mais idosas comentam o tempo com o seu
arrolhar soturno. (NMCT, 2020, p. 112)

Pelas referências espaciais presentes no texto, a trama é ambientada


na região de Moamba, na província de Maputo, onde Luís Bernardo
Honwana passa a sua juventude. O espaço geográfico retratado são as
margens férteis do rio Incomáti, que nasce na África do Sul, cruza Essuatíni
e tem sua foz na baía oceânica de Maputo, um pouco ao Norte da capital do
país.
Os vales do Incomáti, que compõem os arredores da capital
nacional, são muito propícios à produção agrícola. Assim, no século XX,
instalam-se ali grandes lavouras para o abastecimento da cidade e da
indústria colonial.
Nas economias de subsistência, a maior parte das pessoas
costumam se dedicar às atividades de semeadura e colheita, dominando,
desse modo, as técnicas no amanho da terra.
Há de se salientar que as propriedades agrícolas, chamadas de
machambas em Moçambique, fundamentam a cultura e a economia das
populações nativas do país, influenciando, portanto, o imaginário literário.
Como indica uma pesquisa realizada com um corpus de narrativas
tradicionais do Arquivo do Patrimônio Cultural do país africano, mais de
20% dos contos tradicionais desse acervo representam o espaço das
machambas (Carmo, 2023, p. 93).
O foco narrativo do conto, como na maioria dos contos do livro,
apresenta um narrador-testemunha, que está presente nos ambientes da
história, mas não é o personagem central dela. O narrador, embora pertença
ao meio retratado, tange a um apelo emocional na última cena do conto,
quando emite seu único discurso direto em todo o conto: — Vão todos à
merda mais a estupidez deste jogo! (NMCT, 2020, p. 131). A identidade do
narrador se revela melhor ao se considerar como parte da “malta”, situando-se
num grupo de jovens que frequenta a cantina do Rodrigues, personagem
também conhecida como Lodrica.
O local da cantina é primordial ao desenvolvimento do enredo,
onde os trabalhadores agrícolas, as autoridades locais e as prostitutas se
entretêm, fazendo uso de bebidas, cigarros e carteados. Embora se afirme

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que a “malta” consuma somente Coca-Cola, o grupo juvenil integra-se no
ambiente com os trabalhadores e as prostitutas, dedicando-se ao sete e meio,
um jogo de cartas, no qual os rapazes apostam maços de cigarros.
Outra marca do jovem narrador está na sua interação com uma
personagem apenas mencionada, Marta, que o acompanha nas noites,
quando ele deixa a cantina, bem como na última cena do conto:

Caramba, como é que é possível haver tipos


como eu? Enquanto eu matava rolas e jogava
aos sete e meio aconteciam uma data de coisas
giras e eu nem me impressionava! Nada, ficava
na mesma, fazia que não era comigo…
— Marta! — Chamei. A rapariga8 veio a correr.
Poça, aquilo tinha que mudar!… (NMCT, 2020,
p. 131)

Destaque-se que as condições do clima e do ambiente incidem


direta e persistentemente na experiência das personagens. O tempo úmido
e quente das noites, que antecedem o período do ano da chegada das chuvas,
leva as personagens a ficarem, por exemplo, acordadas até tarde.
Por outro lado, o ar fresco do amanhecer suscita uma série de
sensações físicas e emocionais em Vírgula Oito, que sente a volúpia em
sorver o ar orvalhado, em deitar-se na relva de suas terras de braços abertos
e em se divertir nos campos cultivados com sua namorada, N’teasse.
A personagem principal é Alexandre Massinga, conhecido como
Vírgula Oito: um lavrador magro, desengonçado, de olhos muito
expressivos, descrito como de aparência nova. O herói trabalha com outros
lavradores da região na machamba de Rodrigues, que também é o
cantineiro.
O texto sugere que o dono da monocultura domina a Língua
Portuguesa, bem como a Língua local, o Changane, oferecendo-se para
traduzir os diálogos entre Massinga e o Administrador. Ele se orgulha,
sobretudo, por ter adquirido um balcão frigorífico, no qual mantém as
bebidas geladas.

8
O termo “rapariga” em Moçambique, tal qual no contexto lusitano,
significa o feminino de rapaz, isento de qualquer concepção pejorativa.

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Embora Vírgula Oito labute muito na produção alheia, também
possui sua própria machamba, onde planta diversas culturas hortícolas,
como feijão, amendoim, couves e batata.
As suas terras, que estavam sob o auspício do Induna da região do
Goana, ficavam localizadas do outro lado do rio Incomáti, reserva nativa
em que a administração ainda não demonstrara interesse de se apropriar até
então. Ali também vive uma moça chamada N’teasse, por quem o
protagonista demonstra desejo de se casar.
O texto confere alguns indícios de que Vírgula Oito já havia
emigrado anteriormente como magaíça, ou seja, ao trabalho penoso de
mineração no estrangeiro, principalmente na África do Sul, que poderia
resultar na obtenção de algum dinheiro. Esse fator fica sugerido no
cumprimento que ele dirige aos colegas na cantina de Rodrigues em Língua
Suazi ou nas calças de caqui, cheias de bolsos e de remendos coloridos
(NMCT, 2020, p. 116) que utiliza.
Durante o tempo da narração, o protagonista sente-se animado com
a esperança de ter uma colheita promissora e rentável, pretendendo negociar
seus produtos antes de iniciar a venda da safra dos grandes produtores
brancos. Entretanto, ao perceber que Vírgula Oito poderia ter lucro na sua
produção própria, que significaria a emancipação econômica do “nativo”
na ordem vigente, Rodrigues se esforça em convencer o Senhor
Administrador Mixadoro a desapropriar os indígenas das terras do Goana,
onde se encontram as plantações da população local.
No fim das contas, inconformado com a conjuntura em que vive,
o protagonista enlouquece e assassina alguns de seus companheiros de
trabalho, terminando a narrativa perseguido como um fugitivo.
A narrativa é organizada em seis partes, na qual se salienta mais
claramente a perspectiva de um narrador-testemunha na segunda, na terceira
e na última subdivisão. Quanto à primeira parte, “As rolas”, caracteriza-se
o ambiente das machambas e o desempenho dos pássaros. A quarta parte, “A
terra do Goana era boa que se fartava”, narra uma cena íntima de felicidade
conjugal entre Vírgula Oito e N’teasse. Já a quinta parte, “Nhinguitimo”,
relata a chegada das chuvas enquanto os trabalhadores estão na lavoura.
Na primeira parte do conto, a ênfase no aspecto geográfico e
espacial está atrelada ao comportamento das rolas, aves que são descritas
dinamicamente como seres aptos a terem juízo de valor e vontade própria.

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Elas cruzam as machambas em bandos, reconhecendo os campos
sob a liderança de guias que verificam a madureza dos grãos de milho,
estabelecendo a elas uma linha tênue entre instinto e consciência, que se
reflete no canto triste e nostálgico das rolas.
A observação e a personificação de animais, como os pássaros, são
recursos bastante habituais da produção literária banta, como se percebe na
tradição oral moçambicana, na qual a maioria das narrativas são fábulas
protagonizadas por animais.
Segundo Carmo (2023, p. 90), mais de 67% dos contos da
Campanha de Preservação e Valorização do Patrimônio Cultural contêm
animais personificados, sendo uma ferramenta notável da ficção africana,
em que tanto homens como animais seriam agentes de conhecimento.
A relação evidente da chegada do bando de rolas com as alterações
dos ventos de setembro, nas machambas prestes à ceifa, é uma alegoria das
mudanças das condições sociais vividas pelos africanos em meados do
século XX, tempo histórico representado na trama.
Essa relação metafórica entre o ecossistema e a realidade das
personagens fica evidente quando o narrador afirma: A voz do Vírgula Oito
lembrou-me o arrulhar das rolas que, para exercitar a pontaria, nós
abatíamos todas as tardes nas machambas próximas à curva do rio (NMCT,
2020, p. 116).
Analogamente, a espera atenta dos pássaros pela mudança dos
ventos pode ser comparada à esperança dos moçambicanos por uma nova
ordem social que fica sugerida na fala do protagonista:

Quando chegar o “nhinguitimo” tudo vai mudar


– dissera ele. As machambas grandes que eles
fazem vão ficar destruídas pela fúria do vento.
As nossas machambas continuarão a amarelecer
calmamente porque as grandes árvores do outro
lado do rio protegem-nas dos ventos (NMCT,
2020, p. 117).

Além das minuciosas descrições dinâmicas presentes no conto, um


recurso narrativo que se destaca é o encadeamento de cenas simultâneas,
emulando a linguagem do cinema e da dramaturgia.

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Assim, constrói-se um mosaico mais amplo das motivações dos
agentes a partir de fragmentos separados em cenas independentes. Na terceira
parte do conto, “O Rodrigues fartou-se de esfregar o tampo do balcão”, por
exemplo, há uma justaposição de diálogos ocorridos no mesmo espaço, a
cantina de Lodrica, onde se sentam, numa das mesas, o administrador
colonial e seus amigos e, noutra, Vírgula Oito e outros trabalhadores.
Nesse contexto, destaca-se um recurso de linguagem que diferencia
o registro das falas de Vírgula Oito: com os trabalhadores, quando o texto em
Língua Portuguesa se trata de uma tradução do Changane(a), língua em que
se efetua o discurso; e com colonialistas, quando o texto procura transliterar
a pronúncia usada por ele em Língua Portuguesa. Vejamos tais diferenças:

a) Discurso de Vírgula Oito com os trabalhadores:

— O Lodrica deixa-me ir porque eu disse-lhe que precisava de ir


para casa para consertar as palhotas. Chego lá e dou uma ajuda
à minha mãe e à minha irmã na colheita. Se colhermos depressa
podemos vender o milho antes de o preço começar a baixar,
quando os brancos também fizerem a suas colheitas… E vejo a
N’teasse… (NMCT, 2020, p. 120)

b) Discurso de Vírgula Oito com os colonialistas:

— Como é que tu te chamas, ó rapaz? — Perguntou o


administrador.
— Eu chama Alexandre Vírgula Ôto Massinga, sinhoro Mixadoro!
(NMCT, 2020, p. 121)

Embora o texto não apresente o nome do narrador, pode-se


presumir que o conto também esteja vinculado às memórias de Ginho,
durante os anos de sua juventude.
O texto converte os trabalhadores rurais nos heróis da trama,
apresentando seus sonhos e paixões. Mas o que se sinaliza com evidência é
a ideia de um mal-estar coletivo das populações moçambicanas diante das
relações de trabalho e hierarquias sociais que foram regimentadas pelo
colonialismo no país africano, tal como ocorre no conto “Dina”.

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3.8. ROSITA, ATÉ MORRER,9
Luís Bernardo Honwana

Chiguidela, 17 de Abril de 1961

Manuel do meu coração:


Então como está? Eu está boa obrigado com minha mãe que manda
os cumprimentos está com doença das costa que dói de noite com os
sofrimento de idade avançado. Tua filha também manda os cumprimento,
está brincar, está crenscer, está pruguntar todos dia onde está papá, onde
está papá, depois chora, não quer brincar. Um dia ela é grande mas não vai
no escole, pai dela não liga, não escreveu nome dela no dimistração, mas
Deus que sabe.
Sorita com Matilida com as outra manda os cumprimento também,
está boas obrigado. Elas faz pôco, eu sabe é assim quando mulher tem disgraça,
sai uma filha e homem não faz lobolo. Eu não diz nada, Deus que sabe.
Eu encontrou mamana Rita no bazara, ela veio por causa os
curandero está tratar ela, ela diz mulher que você fugiste com ela largou
vocé, um infirmeiro drabou ela, agora tu está sofrer, não trabalha, não come
nem nada, não tem ninguém.
Eu não esquence tu drabou, dormiu comigo, eu era menina – você
encontrou – deixou eu com prenha, fugiste com outra mulher. Eu não
esquence mas eu já não zanga nem nada, minha mãe diz é assim, os homem
é maluco. Eu não foi no escola, não tem o estudo nem nada, escrever meu
nome foi vocé que ensinaste. Só sabe fazer machamba, fazer comida para
vocé, lavar teu roupa, gostar vocé. Tratar tua filha também. Mulher
çimilado quema os cabelo, veste çapato com vestida bonita, com português
que fala tu não guenta drabar ela. Ela que draba vocé. Deixa vocé chorar:
Ó minha mãe, eu mata-lhe, eu mata-lhe! Eu diz: não mata-lhe. Vocé
drabaste a mim ela drabou vocé: vocé que começou.
Aqui em casa cabrito não pariu cinco nem pariu um com dois
cabeça. Não tem fiticero. Nem inveja as pessoa tem comigo não faz nada.
Veio chuva. Eu fez machamba grande de milho com fijão com mandoinha,
com mapila. Chegou um dia eu acordou contente, vendeu um saca

9
Considerando-se o tamanho diminuto desse conto epistolar, optamos por
transcrevê-lo na íntegra.

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mandoinha, comprou vestida bonita com taralatana com çapato incarnado
com chapeu para tua filha! Ermelinda que é nome dela mas eu costumou
chamar ela Linda, às vez Nyeleti, tu gosta?
Quando tu quer tu vem escançar, só escançar, conhecer tua filha
comer os ovo com galinha, com cabrito quando vocé guenta, beber ucanhi
nas família da terra, tomar banho no rio, dançar xingombela no casa de
N’Dlamini, mais nada. Quer? Vocé vai pruguntar as pessoa que anda aqui
a falar assim: Ô! Manuel tem esta nossa pele mas agora é branco, comprou
ser branco nos papel, esquenceu os vovô dele que morreu, esquenceu filha
dele que nasceu, esquenceu terra, esquenceu tudo. Eu diz é mentira. Manuel
não pode esquencer. As pessoa ri, as pessoa diz eu não sabe, as pessoa diz
cada vez eu é polícia também. Vocé é? Ô, vem dizer mesmo!
Depois vocé vai tembora quando não gosta ficar aqui fazer
machamba, ensinar as pessoa no escole de noite que voces tinha no casa de
Mussá. Vocé vai, eu não vai agarar vocé, só vai chorar mesmo. Quando
vocé vai eu dá vocé saca mandoinha que vocé guenta levar no machibomba,
pode ser 4, fica muito ainda, eu é pobre mas tem mãos bom para trabalhar
também pra dar vocé vai vender os saca, comer dinheiro sòzinho.
Quando vocé quer vir vocé escreve carta, dá chofer de
machibomba de Olivera para entregar no cantina de Mohano. Vocé diz eu
vai chegar dia assim assim. Eu manda carroça com os meudo esperar vocé.
Minha boca não gosta falar coisa que meu coração está dizer, mas
minha cabeça fica maluco quando minha boca não diz: eu gosto muito vocé.
As vez eu pensa tu foi nos curandero ranjar remeido para eu gostar vocé.
Tu faz eu sofrer, eu chora, eu zanga, eu esquence, eu gosta vocé outra vez
muito! Tu que não presta: tu gosta mulher çimilado que draba vocé.
Sou eu Rosa de teu coração que manda esta carta para teu
coração. Chico Mandlate está escrever carta também manda os
cumprimento. Chico não vai dizer ninguém coisa que escreveu para vocé.
(NMCT, 2020, p. 139 a 141)

3.8.1. ANÁLISE

O texto literário “Rosita, até Morrer,” foi escrito por Luís Bernardo
Honwana enquanto estava na prisão, sendo publicado em 1971, na revista
Vértice. Assim, o texto não participou da primeira edição do livro Nós
Matamos o Cão Tinhoso!, de 1964.
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O conto é de gênero epistolar, imitando o estilo de uma carta, cuja
mensagem tem como destinatário uma personagem identificada como
Manuel, um ex-professor da localidade. A epístola seria remetida por uma
mulher, que se nomeia como Rosa, escrita em Chiguidela, na província de
Gaza, região ao Sul de Moçambique.
O texto simula o registro linguístico dos habitantes nativos em
ambiente rural, que pouco domínio tinham da ortografia e do vocabulário da
Língua Portuguesa, adaptando também a sintaxe à organização presente na
Língua materna, provavelmente, o idioma Changana. Ao longo do texto,
evidencia-se que a personagem Rosa é analfabeta, solicitando o auxílio de
Chico Mandlate para a composição da escrita.
A carta segue as formalidades de se dizer, primeiro, o estado de
saúde de familiares e conhecidos, principalmente da filha de ambos,
Ermelinda, que também é chamada por Rosa de Nyelete, que significa
“Estrela” em português. Após isso, a remetente diferencia seu modo de vida,
ligado ao cuidado doméstico e à subsistência, da mulher assimilada, que
quema os cabelo, veste çapato com vestida bonita (NMCT, 2020, p. 140).
Ela evidencia saber que Manuel fora desprezado por uma moça
assimilada, assim como ela fora deixada por ele. Por último, a jovem
changana convida Manuel a lhes fazer uma visita a fim de descansar e
usufruir dos prazeres de sua terra: Só escançar, conhecer tua filha comer os
ovo com galinha, com cabrito quando você guenta, beber uchanhi nas
família da terra, tomar banho no rio, dançar xingombela no casa de
N’Dlamini, mais nada (NMCT, 2020, p. 140).
Rosa, deixada por Manuel em sua terra, esperando uma filha dele,
reitera que deve receber o amado com muita hospitalidade e confessa ainda
nutrir sentimentos profundos pelo emigrado, cogitando estar sob a influência
de algum remédio produzido por curandeiros. De todo modo, ela demonstra
saber que o amado se apaixonara por outra mulher: Tu que não presta: tu
gosta mulher çimilado que draba você (NMCT, 2020, p. 141).
Assim, o texto reflete sobre o lugar do assimilado que vai viver
nos meios urbanos, abandonando suas comunidades de nascença e os modos
tradicionais de se viver e produzir, o que indica, em certa medida, o
menosprezo às suas afeições do passado.

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LUÍS BERNARDO HONWANA


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portuguesa. In: Nau Literária: crítica e teoria de literaturas. PPG-LET-
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NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO!


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NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO!


5. EXERCÍCIOS

1. No conto “A Velhota”, o narrador vive a experiência de ser espancado


cruelmente pelo soldado da polícia colonial. A forte violência e grave
humilhação metaforizam uma determinada situação vivida pelos
moçambicanos na época. Explique.

2. No conto “Nós Matamos o Cão Tinhoso!”, Isaura tem um


comportamento diferenciado das demais personagens em relação ao animal.
Qual é esse comportamento e o que ele representa?

3. Uma marca das literaturas tradicionais bantas é a representação dos seres


da natureza como personagens animados, ou seja, agentes com consciência.
Entre os enunciados abaixo do conto “Nhinguitimo”, de Luís Bernardo
Honwana, indique a(s) alternativa(s) em que haja a figura de linguagem da
prosopopeia ou personificação:
a) “Cantando, a rola não lamenta, como fazem muitos outros pássaros,
acusa.”
b) “Célere, vasculha as matas, derruba os pés de milho e dobra as micaias,
que gemem de aflição.”
c) “Enquanto as mais novas se apertam umas às outras, tremendo de medo,
as mais idosas comentam o tempo com o seu arrulhar soturno.”
d) “Por certo também ninguém ouviu dizer que uma rola tenha passado uma
manhã inteira a catar piolhos no ventre, a estufar o peito e a alisar a
penugem.”
e) “Com os olhinhos negros sempre vigilantes, a rola viaja na esteira dos
grãos e volta pontualmente todos os anos, semanas antes do início das
colheitas.”

Texto para responder à questão 4.

— Vocês sabem… Eu não sei falar como o intérprete ou como o


enfermeiro, eu não sei falar bem a língua deles, mas vi o que o Mixadoro
não gosta de ver que as pessoas sabem o que ele pensa… Ele ficou zangado
porque… Bem, eu vi que ele ficou zangado…

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4. A fala do excerto anterior, atribuída à personagem Vírgula Oito, do conto
“Nhinguitimo”, de Luís Bernardo Honwana, revela que

a) o produtor agrícola é estrangeiro e, por essa razão, tem problemas com


a administração local de Moamba.
b) o dono das terras do Goana considera Mixadoro um concorrente em
potencial na safra de milho que se aproxima.
c) o trabalhador nativo percebe o incômodo do administrador por ele ter
plantações em terras férteis.
d) o sagaz comerciante se sente inapto a fazer negócios com o
administrador, por causa de seu domínio linguístico limitado.
e) o herói nacional nunca deixou seu país e, por isso, apresenta dificuldades
de se comunicar em outras línguas, causando desentendimentos.

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6. RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS

1) Embora o conto não esclareça o motivo para a atitude do policial,


o espancamento por ele praticado representa os desmandos do
poder colonial, o uso arbitrário do abuso de poder ao qual
Moçambique esteve subjugado por ter sido colônia portuguesa,
além de denunciar a desumanização a que estavam condenados os
colonizados.

2) Isaura é a única personagem que expõe claramente seu vínculo


emocional com o Cão Tinhoso, chegando a protegê-lo. Representa,
metaforicamente, o moçambicano que não acoberta as suas ideias
nem se mantém preso ao silêncio imposto pelo colonialismo. No
entanto, suas atitudes são avaliadas pelas outras pessoas como
reflexo da loucura de Isaura.

3) As prosopopeias se encontram em: (a) a rola não lamenta... acusa;


(b) o vento vasculha... as micaias... gemem de aflição; (c) tremendo
de medo... arrulhar soturno; e (e) olhinhos negros sempre
vigilantes.
Resposta: alternativas a, b, c, e.

4) Vírgula Oito é oriundo do Vale do Incomáti e trabalha nas


plantações do cantineiro Rodrigues. O discurso da personagem
ocorre após ser inquirida pelo administrador local, que a obriga a
relatar as condições das terras do Goana, situadas do outro lado
do rio.
Resposta: C

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