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FICHAMENTO: A PARTILHA DA ÁFRICA NEGRA HENRI BRUNSCHWIG

“A partilha de um país ocorre quando várias potências estrangeiras se põem de


acordo para colocá-lo, inteira ou parcialmente, sob sua soberania.” (pág. 13)
A Conferência de Berlim, também chamada de Conferência do Congo
uma vez que a disputa por essa região motivou o encontro, selou o
destino do continente africano, pondo fim a autonomia e a soberania
das nações africanas.

“No fim do século XVIII, só havia soberania estrangeira em alguns pontos da


costa de Angola: e de Moçambique, sob dominação portuguesa, na Gârnbia
britânica e no Senegal francês.” (pág. 13)

Diante da discrepância entre a forma como a Conferência


de Berlim é apresentada em materiais didáticos – e, até
mesmo, em bibliografia especializada sobre o
imperialismo – e o que de fato ficou estabelecido a partir
do encontro, cabe questionar qual teria sido a origem do
mito da partilha de Berlim. Nesse sentido, no livro A
partilha da África Negra, o historiador francês Henri
Brunschwig (1904-1989) apresenta hipóteses para o
surgimento das interpretações equivocadas sobre a
conferência.

“A situação evoluiu lentamente no decorrer dos dois primeiros quartéis do


século XIX. O escravo foi progressivamente substituído pelo óleo de palmeira e
por diversos produtos de menor importância, como o marfim, o ouro, ou penas
de avestruz. Sob a influência dos humanitaristas, dos missionários ou dos
comerciantes, os ingleses foram conduzidos a criar as colônias da Coroa em
Serra Leoa (1807), na Costa do Ouro (1830- 1874) e em Lagos (1861).” (págs.
13-14)

Elemento que chama a atenção naquele artigo é a


restrição do alcance de sua aplicação. A proibição do
tráfico – pelo menos, a partir das determinações da ata
da conferência – não seria extensiva a todo território
africano, mas ficava limitada ao entorno do rio Congo.
Nesse sentido, o pouco espaço reservado a esse tema
está em desacordo com o lugar que a questão
humanitária ocupava na retórica imperialista, sendo
esta uma das principais justificativas para as incursões
coloniais.        

“Houve rivalidade somente com a França. Esta não tinha nenhuma razão de se
apaixonar pela África” (pág. 14)

Algumas das principais vias de acesso ao interior do


continente africano eram seus rios, e, nesse sentido, as
redes fluviais eram objeto de especial interesse por parte
das nações europeias na corrida imperialista. Partindo
desse princípio, eventos ocorridos a partir das últimas
décadas do século 19 são considerados, por muitos
historiadores, fundamentais para explicar a rivalidade da
qual foi alvo a região central da África – mais
especificamente, a região da bacia do rio Congo.

“Por volta de 1870, os franceses pouco haviam contribuído para a imensa obra
de exploração do continente; essa prosseguira sob a égide dos ingleses,
principalmente.” (págs. 14-15)

Alemanha e França, de forma conjunta, decidiram


previamente quais seriam os três pontos que iriam
nortear os debates em Berlim: a liberdade de comércio na
bacia e no estuário do rio Congo; a liberdade de
navegação nos rios Congo e Níger; e as formalidades que
deveriam ser cumpridas para que novas ocupações na
costa da África fossem consideradas efetivas. 

“A partida era disputada no seio de uma combinação limitada, até 1871, à


Inglaterra, à França, à Áustria-Hungria, à Prússia e à Rússia.” (pág. 15)
Foi diante desse cenário de corrida europeia por colônias africanas,
que o chanceler alemão Bismarck convocou representantes de 13
nações da Europa e dos Estados Unidos para participarem da
Conferência de Berlim com o objetivo de elaborar uma política
conjunta no continente africano.

“As grandes questões sobre as quais todos os candidatos à diplomacia fizeram


suas provas foram a unidade italiana, a unidade alemã e os negócios do
Oriente.” (pág. 15)
Os representantes europeus reunidos em Berlim também
definiram as regras de legitimação para as futuras
anexações nas costas do continente africano. A partir
daquele momento, para que novas possessões ou
protetorados fossem considerados efetivos, seria
necessário o envio de notificação aos demais países
signatários da ata, para viabilizar possíveis
reivindicações.

“A África branca, inclusive o Magreb, após a instalação da França na Argélia


em 1830, entrava, portanto, com o Mediterrâneo e o Oriente Médio, na órbita
das preocupações cotidianas dos diplomatas.” (pág. 16)
Desde o início, os participantes, começando por Bismarck,
estabeleceram objetivos nobres, como a erradicação da escravidão e
do comércio muçulmano de escravos.

“A África negra não interessava aos diplomatas. Eles não se constrangiam por
ignorar sua geografia. Deixavam-na de bom grado aos Ministros da Marinha ou
das Colónias, e até à iniciativa das autoridades locais, do Cabo, de Bourbon
(Reunião), do Senegal e de Serra Leoa.” (pág. 16)
A primeira constatação feita pelo autor se refere ao caráter tardio dessa

atribuição de significado. Isso porque, até por volta da  Primeira Guerra

Mundial, os historiadores não colocavam a Conferência de Berlim em

posição de destaque entre os acontecimentos mais significativos do

imperialismo. Mesmo participantes do encontro diplomático, como o

britânico Edward Malet (1837-1908), manifestaram descrença quanto à

possibilidade de a ata alterar a situação preexistente em relação ao

continente africano.
“O descobrimento casual do diamante no Transvaal em 1867, depois o do ouro
no Rand em 1881 e do cobre na Rodésia, colocaram a África entre os
continentes onde, como na Austrália e na América, emigrantes de espírito
aventureiro, podiam realizar fortunas fabulosas.” (pág. 18)

“Essas descobertas e esse interesse coincidiram com realizações técnicas que


pareciam mostrar a inexistência de barreiras ao acesso e à valorização dos
países novos.” (pág. 19)
Um dos momentos decisivos para a Partilha da África foi
a Conferência de Berlim, que tinha por principal objetivo estabelecer
um acordo pacífico e “amigável” para a disputa por território entre os
países europeus, já que esses territórios da África eram cobiçados
pelas nações europeias desde a queda do império napoleônico e as
resoluções do Congresso de Viena em 1815.

“Em 1869, Ferdinand de Lesseps (...) inaugurara, o Canal de Suez diante de


uma plateia de reis. (...) Sua Companhia Universal do Canal de Suez era
dirigida aos pequenos subscritores do mundo inteiro, o canal que aproximava
três continentes era neutro, e todos os países aproveitaram-se da aceleração
do comércio internacional.” (pág. 19)

“Por isso, a opinião pública, que jamais fora sensível às expedições coloniais,
que preferia talvez a colonização moderna à conquista militar tradicional,
mesmo que esta provasse, após a derrota de 1871, que o exército francês
ainda era capaz de vitórias, aprovou a extensão da soberania nacional sobre
vastas regiões do globo.” (págs. 23-24)
Da imprensa nacional, os jornais de língua alemã representam uma fonte ímpar sobre o
imperialismo e o colonialismo na África. A “Partilha da África” foi assunto constante nas
páginas da imprensa teuto-brasileira do Brasil meridional. Isso permite inferir um interesse
diferenciado dos leitores dos jornais de língua alemã sobre o que se passava naquele
continente, especialmente sobre as colônias alemãs na África.
“Os militares tomaram a iniciativa neste sentido. Solidamente instalados no
Senegal, eles se inspiraram, às vezes, nas ideias novas. Os projetos dos
técnicos precederam a conquista do Sudão.” (pág. 24)

“Não insistiremos, na minúcia das operações que permitiram aos militares


franceses apossar-se do Sudão Ocidental entre 1880 e 1898. [...] No decorrer
desses vinte anos, os militares do Sudão impuseram sua política de conquista
tão bem aos africanos quanto ao governo francês, que teria preferido uma
penetração pacífica.” (pág. 25)

“O descobrimento do Congo atraiu, repentinamente, a cobiça dos europeus. [...]


Nada mais inesperado, pois nenhum governo, por volta de 1870, se
preocupava com essa bacia de difícil acesso.” (pág. 28)
Para o Congo, seria instituída uma comissão internacional encarregada de

assegurar o cumprimento das determinações da ata. Para o  Níger, onde

o Reino Unido já tinha domínio de regiões antes da conferência, não haveria

um órgão internacional responsável por garantir a execução das decisões do

encontro.

“O Rei, corno particular, deseja somente possuir propriedades na África. A


Bélgica não quer nem colônias nem territórios. Cumpre, portanto, que Stanley
compre ou obtenha territórios, atraia para aí habitantes e proclame a
independência dessas aglomerações sob a discrição do bom consentimento do
comitê.”” (pág. 31)
Os processos de independência na África se iniciaram no início do século
XX, com a independência do Egito. No entanto, somente após Segunda
Guerra Mundial, com as potências europeias enfraquecidas, os países
africanos alcançaram a independência
“O obstáculo a temer seria que Brazza e o Dr. Balloy (...) agissem oficialmente
em nome de uma grande potência e anexassem o Congo à França, como os
ingleses haviam feito com o Transvaal no momento em que Leopoldo
negociava um acordo em 1877.” (pág. 32)
A França ainda conquistou outras regiões, como a Tunísia, a chamada
África Ocidental Francesa, que compreendia Guiné, Senegal, Daomé,
Níger, Costa do Marfim, Alto Volta e Mali; a África Equatorial Francesa,
que compreendia o Gabão, o Congo, o Chade e a República Centro-
Africana; além de também exercer domínio sobre o Marrocos e a ilha
de Madagascar.

“Brazza retornou ao Congo, com o título de "Comissário da República no Oeste


africano". Dotado de um orçamento de 1.275.000 francos, prosseguiu a
exploração e esforçou-se para expandir a dominação francesa.” (pág. 34) “

“A Ordem do dia, aceita pelo Foreing Office previa três pontos: 1) Liberdade do
comércio na bacia do Congo e em suas embocaduras. 2) Aplicação ao Congo
e ao Niger dos princípios adotados pelo Congrego de Viena tendo em vista
consagrar a liberdade de navegação sobre vários rios internacionais, princípios
estes aplicados mais tarde no Danúbio 3) Definição das formalidades a serem
observadas para que novas ocupações nas costas da África fossem
consideradas efetivas.” (pág. 35)

“Discutiu-se muito sobre as razões que incitaram Bismarck a praticar uma


política colonialista. (...) Nada em sua atividade passada o havia orientado para
a expansão colonial.” (pág. 37) “
Essa apropriação provocou mudanças profundas não apenas no dia a dia, nos

costumes, na língua e na religião dos vários grupos étnicos que viviam no

continente, como também criou fronteiras que, ainda hoje, são responsáveis por

tragédias militares e humanitárias.


“Por volta de 1870, a África Oriental era ainda mal conhecida pelos europeus.
Eles frequentavam suas costas a partir do descobrimento pelos portugueses.
Mas esses últimos foram isolados em Moçambique por comerciantes árabes
mais ou menos vassalos dos sultões de Oman, que controlavam o comércio no
Norte da Rovuma, e pelos ingleses, cuja colônia de Natal fora oficialmente
criada em 1845.” (pág. 47) “
A colonização comprometeu duramente o desenvolvimento da África. Hoje o

continente abriga boa parte dos países mais pobres do planeta. “No plano político,

o legado do colonialismo inclui a tradição de administração de cima para baixo.

A miséria dessas populações indefesas e a crueldade dos potentados negros


que as subjugavam impressionaram os exploradores e os missionários
europeus que se aventuraram pela África interlacustre.” (pág. 48)

“Todo esse complexo de política e de comércio, tingido de interesses africanos,


ocidentais e asiáticos, misturado com crenças islâmicas, animistas e cristãs,
consolidado por meio século de equilíbrio relativo, prosperava sem que
nenhuma das potências europeias tradicionalmente ativas no Oceano Indico –
Portugal, França, Inglaterra – tivesse motivo para perturbá-lo.” (pág. 49)
Mesmo Portugal, que, pelo menos, desde o século 15 manteve contato com

populações africanas ao sul do deserto do Saara, esteve, por  séculos,

praticamente restrito às regiões costeiras, com localidades pontuais no

interior em que tinha um pequeno aparato administrativo. Apesar de tênue

e frágil, essa presença na África antes do século 19 foi usada como

argumento pelos portugueses para reivindicar importantes regiões em

disputa durante o imperialismo.

“A expansão da África do Sul para o norte, a sedução dos anos 80 pelos


caminhos de ferro transcontinentais e os projetos de ligação Cabo-Cairo,
finalmente a ocupação do Egito em 1882, faziam com que ela desejasse isolar
as potências tanto das fontes do Nilo quanto dos territórios pelos quais
passaria a futura via férrea.” (pág. 49)
A conferência de Berlim, encerrada em 26 de fevereiro de 1885, teve
pouca repercussão na Europa, a opinião pública não se interessava
pela conquista colonial. Mas foi crucial para as populações africanas.

“A situação mudou quando Leopoldo II lançou seu interesse sobre a África


Central. A Associação Internacional Africana, criada pela conferência dos
geógrafos em Bruxelas em 1876, recomendava aos vários comitês
internacionais multiplicar as "estações hospitalares, científicas e humanitárias"
na África Central.” (pág. 50)

“Tudo isso era iniciativa privada. Os últimos a desejarem uma intervenção


oficial eram certamente os comerciantes hamburgueses que asseguravam
mais ou menos um quarto das importações e a metade das exportações de
Zanzibar. As grandes firmas, O’swald, Hansing, viviam em bons termos com
Bargash e com os ingleses.” (pág. 50)

“A Conferência de Berlim caminhava para seu fim. Bismarck esperava que


Rohlfs conseguisse insinuar-se na graça de Bargash e afastar os ingleses.
Nada aconteceu. Mas o sistema internacional de Bismarck parecia sólido, e a
Inglaterra se encontrava isolada na Europa.” (pág. 51)

“Uma comissão tripartida germano-anglo-francesa foi formada em dezembro.


Seus membros percorreram lentamente a costa, recolhendo por toda a parte
testemunhos favoráveis ao seyyid.” (pág. 52)

“Para impedir este abastecimento dos "mercados de escravos", Bismarck


decretou o bloqueio da costa. Pediu aos ingleses, em seguida aos italianos e
aos portugueses, que participassem da tarefa. (...) O bloqueio, aliás, não
impediu o contrabando, e a conferência de Bruxelas, reunida para pôr fim ao
tráfico de escravos em 1889-90 também não teve êxito.” (pág. 54)
Depois de três meses e meio de negociações e apenas oito reuniões
plenárias intercaladas com recepções, bailes, banquetes e outros
entretenimentos, os participantes finalmente assinaram, em 26 de
fevereiro de 1885, a Ata Geral da conferência.

“Resultou que os grandes acordos de princípio, as divisões em zonas de


influência de julho e agosto de 1890 e de abril de 1904, foram seguidos de
inúmeros tratados elaborados por comissões mistas que trabalharam in loco no
decurso dos anos.” (pág. 58)
Ponto que vale ser destacado sobre as futuras anexações é a delimitação

espacial feita pelos representantes europeus. O artigo da ata referente a

elas trata apenas das regiões costeiras do continente africano. Isso indica

que as deliberações sobre futuras ocupações não teriam validade para todo

o continente, deixando de fora as regiões do interior.

“Na ausência do negro, os acordos de divisão refletiram as preocupações dos


brancos: desejo de poder e medo de perder o prestígio se eles cedessem sem
"compensação", avaliação da rentabilidade económica vindoura, elaboração da
rede de alianças diplomáticas. A divisão da África, desde então, se realizou em
função dos interesses das potências na Europa ou de outros continentes, e o
estatuto de muitos territórios africanos dependeu de concessões que os
partidos se faziam além-mar.” (pág. 60)
Diferente do que comumente se afirma, a Conferência de Berlim não
dividiu a África entre as potências europeias. A partilha não constava
na Ata Geral, tema que sequer estava na agenda da conferência.
Porém, ela criou as condições para que isso acontecesse poucos anos
depois. Os dispositivos da Ata foram as linhas mestras que orientaram
a futura partilha do continente e a criação dos Estados africanos no
seu atual formato.

“O acordo anglo-germânico de 1° de julho de 1890 é um bom exemplo disso. A


iniciativa vem de Bismarck. Este desejava ligar a Inglaterra de novo a seu
sistema, do qual, pelo acordo secreto de fevereiro de 1887 sobre o status quo
no Mediterrâneo, já estivera aproximado.” (pág. 60) “Ele insistiu no seu pedido
no fim da vida, propondo sanar as desavenças na África, onde as rivalidades
entre as companhias alemã e inglesa se exasperavam e as iniciativas de
Peters em Uganda ameaçavam a supremacia britânica na bacia do Nilo.”
(págs. 60-61)

“Os acordos de 1890 tinham esboçado o mapa da África na época imperialista.


Eles tinham assegurado o triunfo da noção de zona de influência. Tinham
estreitado a ligação entre a política geral das potências e sua expansão na
África. A questão mais difícil continuava, entretanto, a da rivalidade entre a
França e a Inglaterra no Egito. Muito ineptamente, o governo francês acreditou
poder obrigar a Inglaterra a resolvê-la, ao comprar por substanciais
compensações o reconhecimento da predominância britânica, quando
resolveu, em 1894, enviar uma missão a Bahr-elGhazal e ao Alto Nilo.” (pág.
66)

“[...] de vias férreas, em particular de transsaarianos franceses para o Níger e


para o Tchad, e do Cabo-Cairo inglês, figuram incontestavelmente entre os
detonadores da "explosão colonial" dos anos de 1890- 1904.” (pág. 71-72)
Os custos com a guerra colonial no sudoeste africano foi debate acirrado no parlamento
alemão. No final de 1906, houve inclusive o fechamento do Reichstag.

“Aos olhos dos africanos, que se queixam com razão de terem sido privados de
sua liberdade, este episódio aparentemente banal de uma conquista e de uma
dominação estrangeira criou um direito a reparação: já que a Europa impôs à
África uma civilização, ela lhe deve fornecer meios para seu desenvolvimento.”
(pág. 72)

Mesmo que seja possível sugerir caminhos que levaram à


construção do mito da Conferência de Berlim, é difícil
definir qual tenha sido o elemento determinante para que
o evento ficasse conhecido como a partilha da África
entre os países europeus. De qualquer forma, essa
interpretação continua sendo erroneamente reproduzida
em materiais sobre o imperialismo do século 19. 

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