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CONCEIÇÃO EVARISTO e o Cânone Literário
CONCEIÇÃO EVARISTO e o Cânone Literário
Uma discussão proposta por Rafael Barbosa Julião sobre o (re)fazer literário
Rio de Janeiro
2017
“Se a arte e a literatura não tivessem importância, ninguém se preocuparia em
incendiar a Biblioteca de Alexandria (repetidas vezes), destruir os budas de Bamiyan ou as
ruínas de Palmira.”
-Afonso Cruz, Vamos Comprar um Poeta
Dentro da literatura, tal quadro pode ser ilustrado a partir da discussão, já há muito
existente, sobre o que é cânone, qual texto pode ou não ser levado em real consideração para
consagrar-se literatura e, definir um padrão concreto ou simplesmente elegê-lo
momentaneamente, pressupõe um indivíduo ou um grupo de indivíduos que já foram em
algum nível nomeados ou consagrados, com base em sua experiência de produção.
Obedecendo à lógica de ascensão social na história ocidental, ganha louvores - no caso, maior
possibilidade de eleger - aquele que melhor dispor de um cargo respeitável e admirável.
Portanto, são de fato escolhidos aqueles que já historicamente ocupam uma posição de poder,
ou têm forte influência nesse meio.
Uma interpretação primeira salta aos olhos nos dois primeiros versos do poema, em
que há a representação do corpo da mulher através de elementos que são consideradas tabu
em nossa sociedade, como os seios femininos, o leite materno, a amamentação, rechaçada por
muitos quando mencionada ou quando se torna pública sua aparição. Em seguida, a
menstruação, que comumente aparece relacionada ao nojo, ao asco, principalmente quando
há vazamentos - e junto a ele a vergonha do desleixo -, é versada como um enfeite às pernas,
portanto, uma transgressão na forma de pensar o sangue mensal natural às que possuem útero.
Os versos seguintes exprimem a dificuldade da expressão feminina, que muitas vezes se
transparece truncada, sendo a conquista da fala uma “fuga”. O último verso da primeira
estrofe, a esperança não é vista como pressupostamente natural à mulher, muito menos a
capacidade de possuir desejos.
Mais uma vez faz alusão ao sangue, mas agora é ao sangue do parto, ela, mulher, dá
luz a um filho que chora, grita e vive. O jogo de palavras precedidas por “ante” exprime a
característica não tão somente extintiva do eu-lírico frente ao novo indivíduo que acaba de
nascer, já que sua experiência enquanto mulher, que desde cedo é ensinada a cuidar dos
filhos, também deve ser levada em consideração. O último verso, diferentemente dos dois
precedentes, é uma composição de duas palavras, que produz mais de uma possível
interpretação. Antes já era o ser vivo, mesmo antes que tenha nascido; antes que ele tenha
nascido, ela já era viva, sujeita de si.
2 Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008
3 Dicionário online
4 idem
5 idem
Vagos desejos insinuam esperanças.
Logo no segundo verso da primeira estrofe, o eu-lírico diz ter uma “gota de leite” a
escorrer-lhe “entre os seios”, não “dos” seios, sendo impossível que o referido leite seja o
materno e sim, uma alusão ao sêmen comumente ejaculado e fetichizado por homens nas
zonas erotizadas da mulher, no caso, os seios. A mancha de sangue e o pressionar dos lábios,
sufocando palavras, alui uma cena de estupro, onde a mulher se encontra atada à não
possibilidade de livre sentir, sendo a esperança uma mera insinuação (impossível), por meio
de desejos abafados.
Ela em meio ao caos traumático do estupro carrega agora consigo o invasor embrião.
Os versos três e quatro montam uma imagem de grito contido e desesperado da dor da
violação. Os três últimos versos, precedidos por “ante”, indicam sua percepção (ou
interpretação) da situação, a qual já dantes fora simulada ou mesmo experimentada, já que
este tipo de violação é tão comumente experienciada por mulheres em diferentes níveis de
abuso.
Reforço à interpretação anterior a ilustração mais clara da força necessária para ser
mulher e simplesmente existir num contexto em que tudo pode recair como uma faceta de
insegurança e inquietude frente à própria condição de ser mulher.
Dentro de toda a obra da autora, às protagonistas somam-se agravantes, para além de
ser mulher, o de ser de baixa classe social e ter explícito na pele o “ser negro”. O processo de
aparecimento da protagonização desse recorte do indivíduo tradicionalmente marginalizado é
o que há de mais inusitado na história da literatura. Evaristo faz com que diversas pautas
problemáticas amplamente debatidas dentro do Movimento Negro e Feminista (e todas suas
subseções) entrem em via circulatória por meio do texto.
Tanto se caracteriza como um processo, que as repercussões acerca do assunto se
tornam cada vez mais frequentes. Faz-se importante o discurso de que o racismo no Brasil
muito se dá pelo tom da pele. É considerado negro aquele que tem pele escura, nariz largo e
lábios avantajados ou quem se aproxima mais deste modelo, sendo outros, pejorativamente
chamados “mulatos”, como “não tão negros assim”, “de traços finos”, “quase branco”. A cor
da pele está diretamente ligada à legitimidade que se dá ao discurso e à produção laboral ou
artística do indivíduo e esta percepção é ainda mais nítida, à medida em que o negro assume
funções sociais mais altas, antes ocupadas apenas por brancos. Se vê necessária a quebra dos
territórios previamente delimitados pela classe alta, majoritariamente branca. A partir do
momento que há maior fluidez nas esferas sociais cristalizadas, pode-se esperar que haja mais
veracidade e legitimidade na visão da figura do leitor-mediador.
BIBLIOGRAFIA
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, 1990. Iª ed.
[Lezioni americane – Sei proposte per il prossimo millennio, 1988] Tradução: Ivo Barroso.