Você está na página 1de 8

LARISSA SOUSA COSTA

CONCEIÇÃO EVARISTO E O CÂNONE LITERÁRIO

Uma discussão proposta por Rafael Barbosa Julião sobre o (re)fazer literário

Rio de Janeiro

2017
“Se a arte e a literatura não tivessem importância, ninguém se preocuparia em
incendiar a Biblioteca de Alexandria (repetidas vezes), destruir os budas de Bamiyan ou as
ruínas de Palmira.”
-Afonso Cruz, Vamos Comprar um Poeta

Há o pensamento de que um certo espaço não é adequado, de que um corpo e a roupa


que lhe cobre não são aprazíveis, de que uma voz e sua legitimidade não importam. São,
contudo, partes de pensamentos sobre partes de corpos. Ao homem é inevitável sentir o
anseio da necessidade de expressar-se e dar forma à sua experiência. Almeja-se contar
histórias, aquilo que sucedeu no dia anterior e situar o interlocutor em tempo e espaço,
mesclado à sua interpretação do fato descrito. A ação de propalar sua história – seja ela
verídica ou não – produz no receptor aquilo que Ítalo Calvino chama de cinema mental, ou
seja, a interpretação pictórica mental do que lhe foi dito, sendo o percurso da narração seu
ápice constante.
Paralelamente ao desenvolvimento da sociedade há a ampliação e disseminação da
Igreja e sua interpretação acerca do que circunda o mundo, como questões profundas,
perguntas fundamentais de existência humana e o que a cerceia, fazendo com que grande
quantidade de fiéis seguissem sua linha de raciocínio. A instituição vira, portanto, a
protagonista do pensamento coletivo crítico por meio de discursos incisivos e, em seguida, de
imagens a fim de ilustrar e expandir sua ideologia. A quebra do domínio da palavra divina
através da igreja se dá no momento em que diferentes interpretações são dispostas à
sociedade. Dante, por exemplo, foi um dos mais influenciáveis nessa ruptura, pois dá forma
aos dois ambientes mais polêmicos da época: o céu e o inferno. Existe, então, a descrição
mais impetuosa até então vista de como seria o lugar mais almejado do ser pós-morte e o
mais temível.

A partir do momento em que a imagem criada por Dante se cristaliza intensa e


ativamente, o que foi dito anteriormente é posto em dúvida e interpelado e, dessa forma,
criam-se outras visões para um mesmo conceito (seja ele o céu ou o inferno, seguindo o
exemplo antes dado). O equivalente ocorre em relação a outros conceitos e teorias, que são
moldadas e reformuladas na medida em que a sociedade cresce, isto é, outras representações
e outras formas de imagem e texto se desenvolvem para representar e transfigurar(-se).

Dentro da literatura, tal quadro pode ser ilustrado a partir da discussão, já há muito
existente, sobre o que é cânone, qual texto pode ou não ser levado em real consideração para
consagrar-se literatura e, definir um padrão concreto ou simplesmente elegê-lo
momentaneamente, pressupõe um indivíduo ou um grupo de indivíduos que já foram em
algum nível nomeados ou consagrados, com base em sua experiência de produção.
Obedecendo à lógica de ascensão social na história ocidental, ganha louvores - no caso, maior
possibilidade de eleger - aquele que melhor dispor de um cargo respeitável e admirável.
Portanto, são de fato escolhidos aqueles que já historicamente ocupam uma posição de poder,
ou têm forte influência nesse meio.

Esta lógica, no entanto, está em processo de desconstrução e é percebida de forma


mais clara, visto que a partir do início do século, com a propagação dos meios de
comunicação, principalmente a internet, o palco onde são exibidos o texto, imagens, a arte em
geral, deixa de ser estritamente in loco e passa a ocupar outros cenários que ganham cada vez
mais visibilidade, com a incrível possibilidade de deixar-se contaminar e perpassar
subcategorias dentro do próprio meio virtual, fomentando debates para além da leitura pela
leitura. Há aqui uma reviravolta histórica, onde autor e leitor encontram-se no mesmo
patamar; artistas e escritores (e todos que são públicos, mas me atenho à nossa classe em
questão) descem do cômodo palanque do enaltecimento, tornam-se alcançáveis.

Em meio ao caos da propagação ininterrupta de feitura de textos, encontram-se novas


produções de indivíduos factualmente marginais a esse tipo de criação canônica textual e
artística. Conceição Evaristo, escritora contemporânea, poetisa, mestra em Literatura
Brasileira, doutora em Literatura Comparada, carrega títulos difíceis de serem conseguidos
pela condição de negra, favelada, proveniente de família trabalhadora em labores
tradicionalmente ocupados por uma classe a serviço dos brancos, ou seja, dos mais
favorecidos1. Escreve sobre sua condição de mulher negra e com a sua voz, imerge na
literatura personagens e vivências alheias às da classe dominante. Adere às suas narrativas
figuras femininas fortes e de íntegra representatividade, ocupando um espaço já há muito
atingido majoritariamente por homens e tão só, homens brancos. A protagonização de
mulheres é marca de sua literatura, bem como a problematização de reclamar para si esta
posição previamente demarcada. Proponho a análise de seu poema “Eu-mulher” para dar
seguimento ao debate da importância de diferentes pontos da narrativa de nossas
experiências.
1 Entre 2005 e 2015, aumentou o número de negros entre os brasileiros mais ricos, de 11,4% para 17,8%.
Apesar disso, a população branca ainda é maioria – oito em cada dez – entre o 1% mais rico da população. Entre
os mais pobres, por outro lado, três em cada quatro são pessoas negras, segundo informou o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). Mais da metade da população brasileira (54%) é de pretos ou pardos (grupos
agregados na definição de negros), sendo que a cada dez pessoas, três são mulheres negras.
Eu-Mulher
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.

Uma interpretação primeira salta aos olhos nos dois primeiros versos do poema, em
que há a representação do corpo da mulher através de elementos que são consideradas tabu
em nossa sociedade, como os seios femininos, o leite materno, a amamentação, rechaçada por
muitos quando mencionada ou quando se torna pública sua aparição. Em seguida, a
menstruação, que comumente aparece relacionada ao nojo, ao asco, principalmente quando
há vazamentos - e junto a ele a vergonha do desleixo -, é versada como um enfeite às pernas,
portanto, uma transgressão na forma de pensar o sangue mensal natural às que possuem útero.
Os versos seguintes exprimem a dificuldade da expressão feminina, que muitas vezes se
transparece truncada, sendo a conquista da fala uma “fuga”. O último verso da primeira
estrofe, a esperança não é vista como pressupostamente natural à mulher, muito menos a
capacidade de possuir desejos.

Eu-mulher em rios vermelhos


inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo

Mais uma vez faz alusão ao sangue, mas agora é ao sangue do parto, ela, mulher, dá
luz a um filho que chora, grita e vive. O jogo de palavras precedidas por “ante” exprime a
característica não tão somente extintiva do eu-lírico frente ao novo indivíduo que acaba de
nascer, já que sua experiência enquanto mulher, que desde cedo é ensinada a cuidar dos
filhos, também deve ser levada em consideração. O último verso, diferentemente dos dois
precedentes, é uma composição de duas palavras, que produz mais de uma possível
interpretação. Antes já era o ser vivo, mesmo antes que tenha nascido; antes que ele tenha
nascido, ela já era viva, sujeita de si.

Antes – agora – o que há de vir.


Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo2.

A dualidade antes/agora se mistura, configura os dois tempos de indecisão e incerteza,


ou seja, desconhecimento do que está por vir. Novamente a criação de palavras por meio de
hífens abrange a gama de significados das palavras tão cuidadosamente selecionadas, junta a
“fêmea”, - não a “mulher” - que aproxima mais o humano a um ser animalesco, à matriz,
órgão das fêmeas dos mamíferos, na cavidade pélvica, onde o embrião e posteriormente o
feto se desenvolvem3. Diz ela ser a força-motriz, o que move ou provê de movimento; força
que impulsiona, que faz mover ou ocasiona movimento 4, ou seja, é ativa no processo de
desenvolvimento e continuidade da vida e um moto-contínuo ou máquina de movimento
perpétuo (o termo em latim perpetuum mobile também é comum) são classes de máquinas
hipotéticas as quais reutilizariam indefinidamente a energia gerada por seu próprio
movimento5, significando ela mesma como insaciável ser pulsante, forte, que nunca esgota. É
a mulher essa máquina que utiliza sua própria força para gerar e dar continuidade ao
movimento natural da reprodução.

Outra interpretação, conseguida a partir de uma segunda leitura é mais cabível ao


poema, onde fica mais explícito seu tema:

Uma gota de leite


me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.

2 Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008
3 Dicionário online
4 idem
5 idem
Vagos desejos insinuam esperanças.

Logo no segundo verso da primeira estrofe, o eu-lírico diz ter uma “gota de leite” a
escorrer-lhe “entre os seios”, não “dos” seios, sendo impossível que o referido leite seja o
materno e sim, uma alusão ao sêmen comumente ejaculado e fetichizado por homens nas
zonas erotizadas da mulher, no caso, os seios. A mancha de sangue e o pressionar dos lábios,
sufocando palavras, alui uma cena de estupro, onde a mulher se encontra atada à não
possibilidade de livre sentir, sendo a esperança uma mera insinuação (impossível), por meio
de desejos abafados.

Eu-mulher em rios vermelhos


inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo

Ela em meio ao caos traumático do estupro carrega agora consigo o invasor embrião.
Os versos três e quatro montam uma imagem de grito contido e desesperado da dor da
violação. Os três últimos versos, precedidos por “ante”, indicam sua percepção (ou
interpretação) da situação, a qual já dantes fora simulada ou mesmo experimentada, já que
este tipo de violação é tão comumente experienciada por mulheres em diferentes níveis de
abuso.

Antes – agora – o que há de vir.


Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo

Reforço à interpretação anterior a ilustração mais clara da força necessária para ser
mulher e simplesmente existir num contexto em que tudo pode recair como uma faceta de
insegurança e inquietude frente à própria condição de ser mulher.
Dentro de toda a obra da autora, às protagonistas somam-se agravantes, para além de
ser mulher, o de ser de baixa classe social e ter explícito na pele o “ser negro”. O processo de
aparecimento da protagonização desse recorte do indivíduo tradicionalmente marginalizado é
o que há de mais inusitado na história da literatura. Evaristo faz com que diversas pautas
problemáticas amplamente debatidas dentro do Movimento Negro e Feminista (e todas suas
subseções) entrem em via circulatória por meio do texto.
Tanto se caracteriza como um processo, que as repercussões acerca do assunto se
tornam cada vez mais frequentes. Faz-se importante o discurso de que o racismo no Brasil
muito se dá pelo tom da pele. É considerado negro aquele que tem pele escura, nariz largo e
lábios avantajados ou quem se aproxima mais deste modelo, sendo outros, pejorativamente
chamados “mulatos”, como “não tão negros assim”, “de traços finos”, “quase branco”. A cor
da pele está diretamente ligada à legitimidade que se dá ao discurso e à produção laboral ou
artística do indivíduo e esta percepção é ainda mais nítida, à medida em que o negro assume
funções sociais mais altas, antes ocupadas apenas por brancos. Se vê necessária a quebra dos
territórios previamente delimitados pela classe alta, majoritariamente branca. A partir do
momento que há maior fluidez nas esferas sociais cristalizadas, pode-se esperar que haja mais
veracidade e legitimidade na visão da figura do leitor-mediador.

BIBLIOGRAFIA

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, 1990. Iª ed.
[Lezioni americane – Sei proposte per il prossimo millennio, 1988] Tradução: Ivo Barroso.

BARTHES, Roland. A morte do autor


PENNA, J. C. Mediação e discurso. In: PENNA, J. C. Escritos da sobrevivência. Rio de
Janeiro: Editora 7 Letras, 2013. p. 275-297.
VIEIRA, Isabela, IBGE: negros são 17% dos mais ricos e três quartos da população mais
pobre, 2016, disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-12/ibge-
negros-sao-17-dos-mais-ricos-e-tres-quartos-da-populacao-mais-pobre>
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte:
Nandyala, 2008.

Você também pode gostar