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Documentários - Recortes Históricos Construídos Como Verdades Absolutas em Uma Realidade Interdependente - Max Sawaya
Documentários - Recortes Históricos Construídos Como Verdades Absolutas em Uma Realidade Interdependente - Max Sawaya
realidade interdependente
Resumo
A proposta desse artigo é refletir como os documentários são construídos para serem
vistos como verdades históricas fixas, ao invés de recortes interpretativos de uma realidade
interdependente. Como se dá essa tentativa de fixar um recorte como uma verdade através das
tecnoimagens? O que leva o público a tomar esse gênero de filme como verdade com mais
facilidade? Se vivemos em uma realidade interdependente, interpretativa, como aceitamos tais
verdades fixas?
1 Introdução
A melhor forma de iniciar essa reflexão é definindo o que é um documentário:
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1
Graduado no curso de Educação Artística da Unicamp. E-mail: maxsawaya@gmail.com
Mas fazer da realidade, por definição “afílmica”, um critério de distinção
entre textos traz, evidentemente, muitos problemas. Pressupõe-se que o filme
documentário tem o mundo real como referência. O que postula que o
mundo representado existe fora do filme e que isso pode ser verificado por
outras vias. A questão é saber se tais provas de autenticidade são internas a
obra ou se existem componentes discursivos específicos e suficientemente
discriminatórios em relação ao filme de ficção. Esses traços distintivos,
porém, podem também ser externos à obra e proceder de imposições
institucionais. Em termos de pragmática, a situação de recepção determina,
notadamente, “instruções de leitura” (Odin), que levam o espectador a adotar
uma atitude mais “documentarizante” do que “ficcionalizante”. (AUMONT;
MARIE, 2013, p. 86)
Mas se o documentário não registra uma realidade objetiva, o que ele faz? Se aquilo
que é apresentado em um documentário não é um documento que comprova uma verdade
objetiva de algo que ocorreu no passado, o que então é exposto em um documentário?
É ai que entra nessa investigação o sistema interdependente que é um dos elementos
caracterizadores da tradição budista indiana desenvolvida entre a época do Buddha
Shakyamuni e a sangha original, por volta do século V a.C., até o século XI d.C. (TSAI,
2017). Nessa perspectiva, a realidade é uma rede de relações causais, com várias
possibilidades interpretativas, impermanente, sem algo objetivo a ser agarrado como existente
independente de todas as relações que o sustentam. Um documentário é capaz de se sustentar
como “registro” da realidade em uma realidade interdependente? Se não é, como aqueles que
se relacionam com essa linguagem são convencidos de sua veracidade fixa e absoluta? Como
isso se relaciona com o uso dos documentários como objetos da história?
Essa pretensa sintomaticidade das tecnoimagens, faz com que se olhe os vídeos, filmes
e documentários, como se fossem nosso próprio olhar. Como se estivesse testemunhando o
ocorrido, mas o que se vê no monitor, na verdade, “não é seu próprio olhar, mas o olhar da
câmera, do operador de câmera. É um espelho que espelha sobre nós a visão do outro”
(FLUSSER, 2015, p. 238). E, por conta disso, se distancia da historicidade do tema que se
pretende estudar:
(...) aquela interpretação que se pretende fixa, única, singular, segura, é uma
forma de alienação, de separação da realidade do ser-relações em função de
uma pretensa segurança, que de fato é uma alienação, uma separação, da sua
própria natureza relacional. (TSAI, 2017, p.61)
Desse modo, o documentário se dispõe como uma janela que ao ser aberta irá revelar a
verdade, mas que de fato afasta o homem da historicidade que forma a realidade da qual faz
parte. A própria definição de documentário já leva a cometer esse erro. A participação de
personagens, locais, situações, apresentadas como reais, reforçam ainda mais isso. Um bom
exemplo disso é o documentário Ilha das Flores, de Jorge Furtado, que se apropria dessa
roupagem de documentário para contar uma história fictícia, que muitos tomaram como
verídica, inclusive causando polêmicas que afetaram os personagens que participaram do
curta metragem em suas relações reais.
FONTE: www.taringa.net
Nesse documentário é retratado a vida de pessoas que vivem em estado de miséria na
Ilha das Flores, se alimentando de lixo junto a porcos. Para que essa história fosse contada, o
diretor Jorge Furtado filmou o dia a dia de pessoas que trabalhavam com lixo, seja em aterros,
seja em cooperativas, montando as imagens de maneira que desse a entender que a ficção
criada em cima dos registros cinematográficos fosse uma verdade. Segundo os relatos do
curta “Ilha das Flores: Depois que a Sessão Acabou”, os personagens reais da história
sofreram como resultado da imagem passada por sua contraparte fictícia.
Criou-se dessa forma um registro fictício que levou a uma relação inautêntica da
realidade, trazendo suas consequências. Mesmo que a intenção de Jorge Furtado (2011),
segundo entrevistas no mesmo vídeo, fosse de quebrar a barreira dos gêneros documentário e
ficção, os resultados foram um pouco além, justamente pela veracidade que carrega o conceito
de documentário.
O mesmo, entretanto, ocorre com documentários que não se utilizam da ficção em sua
construção. Quando o cineasta pensa em um tema a ser abordado e escolhe o que e como
captar com sua câmera, ele está direcionando seu olhar àquilo que considera mais importante
para defender suas ideias, interpretando suas relações e as estruturando de forma a ser
consumível por espectadores. O documentário acaba sendo a interpretação de uma
interpretação, sendo assim, história, “essa interpretação que se envolve na escolha das
relações e as constrói” (TSAI, 2017, p. 59). Mas, ao invés de deixar isso claro, auxiliando na
compreensão da realidade interdependente, o documentário esconde-se em sua definição e
estrutura.
Mesmo com esse exemplo, não se pode concluir que é apenas a definição do conceito
que influencia as pessoas a absorverem o conteúdo da tecnoimagem como uma verdade fixa,
nem tão pouco sua estrutura e narrativa, pois, somado a isso, tem outros fatores. Entre eles
está a busca do ser-relação2 pela pretensa segurança que uma verdade fixa aparenta trazer.
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2
Adoto aqui o termo utilizado por Plínio Tsai, no livro História da Tradição Budista Indiana, no sentido do ser
que é parte de uma rede de relações interdependente e não é possível determina-lo independente delas (TSAI,
2017)
Assim, essa pretensa segurança que se busca com a adoção de conceitos fixos, é outro
fator que tem que ser levado em conta quando se reflete sobre esse tipo de alienação
produzida pela forma de se relacionar com o documentário. Adentra-se a perspectiva do
espectador que consome tais formas de montagem cinematográficas desejando por encontrar
verdades fixas que lhe traga alguma segurança, ou não sendo capaz de decifrar as
tecnoimagens. Uma espécie de analfabetismo audiovisual.
No primeiro caso, o que ocorre é uma pré-disposição a se enganar ou enganar aos
outros. Sabe-se que irá ver uma montagem de cenas direcionadas por um roteiro ou de cenas
escolhidas como representativas por aquele que está filmando. Ainda assim, toma-se aquela
estrutura de relações interpretativas como sendo a única possível, causando a separação da
realidade interdependente, que “é aquilo com que ele pode se relacionar dentro de suas
limitações como homem, como ser-relações, dentro da impermanência” (TSAI, 2017, p. 76).
No segundo caso, temos a possibilidade de um analfabetismo das tecnoimagens. A
falta de conhecimento sistemático que ajude o ser-relações a decifrar as relações apresentadas
em uma fotografia, um vídeo ou um filme. Do mesmo modo que “quem escreve precisa
dominar as regras da gramática e ortografia” (FLUSSER, 2011, p. 73), aquele que fotografa e
filma também necessita conhecer as estruturas dessas linguagens, caso contrário se tornará
incapaz de decifrá-la.
Contudo, pelo filme, vídeo e fotografia serem linguagens fáceis de serem produzidas,
pois dependem apenas de um aparelho, tem-se a impressão de que não há necessidade de
conhece-las estruturalmente, o que leva ao analfabetismo das tecnoimagens.
Fotógrafo amador apenas obedece a modos de usar, cada vez mais simples,
inscritos ao lado externo do aparelho. Democracia é isso. De maneira que
quem fotografa como amador não pode decifrar fotografias. Sua práxis o
impede de fazê-lo, pois o fotógrafo amador crê ser o fotografar gesto
automático graças ao qual o mundo vai aparecendo. Impõe-se conclusão
paradoxal: quanto mais houver gente fotografando, tanto mais difícil se
tornará o deciframento de fotografias, já que todos acreditam saber fazê-las.
(FLUSSER, 2011, p.73)
3 Conclusão
Mesmo que o documentário se coloque em uma posição de registro da realidade,
sendo o autor um mensageiro da verdade, toda essa prepotência pode ser derrubada, pelo
desenvolvimento da capacidade de decifrar as tecnoimagens que o compõe. Assim, a
necessidade de repensar e transformar os conceitos dos gêneros fílmicos, mesmo que no
momento ocorra, em sua grande parte, dentro das academias, quando essa alfabetização se
expandir, ocorrerá uma obrigatoriedade de transformação, pois haverão cada vez menos
iletrados para adotar as tecnoimagens como verdades.
Os documentários, nesse futuro hipotético, não mais serão registros da realidade
histórica, mas passarão a ser interpretações de recortes históricos para aqueles que os
assistem. Passarão assim a não mais ser um obstáculo para a compreensão da realidade
interdependente, mas se tornarão parte das possibilidades de compreensão das relações.
Abstract
The purpose of this article is to reflect how documentaries are constructed to be seen
as fixed historical truths, rather than interpretive cuts of an interdependent reality. How is this
attempt to make a cut fixed as a truth through the tech-images? What drives audiences to take
this film genre as truth more easily? If we live in an interdependent, interpretative reality, how
do we accept such fixed truths?
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da
fotografia. São Paulo: Annablume. 2011.
FLUSSER, Vilém. Comunicologia: reflexões sobre o futuro. São Paulo: Martins Fontes.
2015.
ILHA das Flores: depois que a sessão acabou. Produção e Direção de Giordano Tronco. Rio
Grande do Sul: Editorial J, PUCRS, 2011. Disponível em: < https://youtu.be/Ch-LIsnG9Wc>.
Acesso em: 23 maio 2018.