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Documentários: recortes históricos construídos como verdades absolutas em uma

realidade interdependente

Maximiliano Augusto Sawaya1

Resumo
A proposta desse artigo é refletir como os documentários são construídos para serem
vistos como verdades históricas fixas, ao invés de recortes interpretativos de uma realidade
interdependente. Como se dá essa tentativa de fixar um recorte como uma verdade através das
tecnoimagens? O que leva o público a tomar esse gênero de filme como verdade com mais
facilidade? Se vivemos em uma realidade interdependente, interpretativa, como aceitamos tais
verdades fixas?

Palavras-chave: Documentário; Interdependência; Tecnoimagens.

1 Introdução
A melhor forma de iniciar essa reflexão é definindo o que é um documentário:

A oposição documentário/ficção é uma das grandes divisões que estruturam


a instituição cinematográfica desde suas origens. Ela governa a classificação
das “séries” nos primeiros catálogos das firmas de distribuição que
distinguem as “vistas ao ar livre”, as “atualidades”, os “temas cômicos e
dramáticos”. Chama-se, portanto, documentário, uma montagem
cinematográfica de imagens visuais e sonoras dadas como reais e não
fictícias. O filme documentário tem, quase sempre, um caráter didático ou
informativo, que visa, principalmente, restituir as aparências da realidade,
mostrar as coisas e o mundo tais como eles são. (AUMONT; MARIE, 2013,
p. 86)

Aqui os autores já expõem a oposição presente no meio cinematográfico entre


realidade e ficção. E também como o próprio gênero documentário já é pré-interpretado como
uma “documentação” da realidade tal como ela é. Entretanto, no meio cinematográfico, a
insustentabilidade dessa definição não passa despercebida, dada a presença do termo
“montagem cinematográfica”. Como algo montado retrata a realidade tal como ela é, sem
passar pela interpretação daquele que o monta? Além disso, não seria a própria definição de
documentário uma causa para o problema de tomá-lo como o registro de uma verdade fixa,
absoluta? Há tal verdade para ser captada e registrada pela filmadora?

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1
Graduado no curso de Educação Artística da Unicamp. E-mail: maxsawaya@gmail.com
Mas fazer da realidade, por definição “afílmica”, um critério de distinção
entre textos traz, evidentemente, muitos problemas. Pressupõe-se que o filme
documentário tem o mundo real como referência. O que postula que o
mundo representado existe fora do filme e que isso pode ser verificado por
outras vias. A questão é saber se tais provas de autenticidade são internas a
obra ou se existem componentes discursivos específicos e suficientemente
discriminatórios em relação ao filme de ficção. Esses traços distintivos,
porém, podem também ser externos à obra e proceder de imposições
institucionais. Em termos de pragmática, a situação de recepção determina,
notadamente, “instruções de leitura” (Odin), que levam o espectador a adotar
uma atitude mais “documentarizante” do que “ficcionalizante”. (AUMONT;
MARIE, 2013, p. 86)

Há a possibilidade de uma atitude prévia a interpretação pré-dispor o espectador a


interpretar o documentário como sendo registro da realidade, e não interpretação de um
recorte que por si só já é escolhido entre diversas possibilidades interpretativas. Há uma
realidade objetiva a ser registrada? Quais os limites que a câmera ou filmadora possibilita
para que esse “registro seja feito”? A partir do momento que algo é registrado, o que ocorre
com aquilo que deixou de ser, por conta da escolha do documentarista?
Contudo, há outros fatores a serem levados em conta, pois o clima de “registro” da
realidade criado no documentário ocorre também por seu formato: utiliza-se narrativas visuais
que tornam críveis os eventos por ele representado.

O documentário não coloca apenas o problema do universo de referência.


Ele concerne também às modalidades discursivas, já que pode utilizar as
mais diversas técnicas: filme de montagem, cinema direto, reportagem,
atualidades, filme didático e até filme caseiro. A evolução da história das
formas no cinema está ai para demonstrar que as fronteiras entre
documentário e ficção nunca são estanques e variam, consideravelmente, de
uma época a outra e de uma produção nacional a outra. (AUMONT;
MARIE, 2013, p.86)

Mas se o documentário não registra uma realidade objetiva, o que ele faz? Se aquilo
que é apresentado em um documentário não é um documento que comprova uma verdade
objetiva de algo que ocorreu no passado, o que então é exposto em um documentário?
É ai que entra nessa investigação o sistema interdependente que é um dos elementos
caracterizadores da tradição budista indiana desenvolvida entre a época do Buddha
Shakyamuni e a sangha original, por volta do século V a.C., até o século XI d.C. (TSAI,
2017). Nessa perspectiva, a realidade é uma rede de relações causais, com várias
possibilidades interpretativas, impermanente, sem algo objetivo a ser agarrado como existente
independente de todas as relações que o sustentam. Um documentário é capaz de se sustentar
como “registro” da realidade em uma realidade interdependente? Se não é, como aqueles que
se relacionam com essa linguagem são convencidos de sua veracidade fixa e absoluta? Como
isso se relaciona com o uso dos documentários como objetos da história?

2 Recortes Históricos Construídos como uma Verdade Absoluta em uma


Realidade Interdependente
Mesmo que o estudo da história esteja dentro do campo do imanente, das relações,
muitas vezes busca-se uma segurança na descoberta de uma universalidade ou verdade
absoluta. Essa perspectiva, que afirma “algo transcendente e fixo dentro do campo da
relacionalidade” leva a adoção de “conceitos fixos, preconceitos, verdades científicas tratadas
como ‘imperativos categóricos’”, ou seja, a “contaminações na teoria histórica” (TSAI, 2017,
p.61).
Os documentários acabam servindo para essa “contaminação na teoria histórica”
quando adotados como registros de uma realidade objetiva, como eles se propõem a ser.
Como tecnoimagens, eles tentam alterar sua função de meio interpretativo da realidade, para
reveladores da realidade. Desse modo, na verdade, o resultado difere do que é proposto, pois
enquanto “representam o mundo, são, como mapas, instrumentos para a orientação no mundo.
Enquanto se interpõem entre homem e mundo são, como biombos, encoberturas do mundo”
(FLUSSER, 2007, p. 115). E isso ocorre pois:

As tecnoimagens pretendem que não são simbólicas como o são as imagens


tradicionais. Pretendem que são sintomáticas, ‘objetivas’. A diferença entre
símbolo e sintoma é que o símbolo significa algo para quem conhecer o
convênio de tal significação, enquanto o sintoma está ligado causalmente
com seu significado. A palavra ‘cachorro’ simboliza, a pegada sintomatiza o
bicho. Tal pretensão à sintomaticidade, à objetividade, das tecnoimagens é
fraude. Na realidade os aparelhos transcodam sintomas em símbolos, e o
fazem em função de determinados programas. A mensagem das
tecnoimagens deve ser decifrada, e tal decodagem é ainda mais penosa que a
das imagens tradicionais: é ainda mais ‘mascarada’. (FLUSSER, 2007,
p.118).

Essa pretensa sintomaticidade das tecnoimagens, faz com que se olhe os vídeos, filmes
e documentários, como se fossem nosso próprio olhar. Como se estivesse testemunhando o
ocorrido, mas o que se vê no monitor, na verdade, “não é seu próprio olhar, mas o olhar da
câmera, do operador de câmera. É um espelho que espelha sobre nós a visão do outro”
(FLUSSER, 2015, p. 238). E, por conta disso, se distancia da historicidade do tema que se
pretende estudar:
(...) aquela interpretação que se pretende fixa, única, singular, segura, é uma
forma de alienação, de separação da realidade do ser-relações em função de
uma pretensa segurança, que de fato é uma alienação, uma separação, da sua
própria natureza relacional. (TSAI, 2017, p.61)

Desse modo, o documentário se dispõe como uma janela que ao ser aberta irá revelar a
verdade, mas que de fato afasta o homem da historicidade que forma a realidade da qual faz
parte. A própria definição de documentário já leva a cometer esse erro. A participação de
personagens, locais, situações, apresentadas como reais, reforçam ainda mais isso. Um bom
exemplo disso é o documentário Ilha das Flores, de Jorge Furtado, que se apropria dessa
roupagem de documentário para contar uma história fictícia, que muitos tomaram como
verídica, inclusive causando polêmicas que afetaram os personagens que participaram do
curta metragem em suas relações reais.

Ilha das Flores serve-se da fórmula didática da repetição para estabelecer um


discurso científico, justificado, real (...) O efeito de real, já é estimulado
desde o início, quando os primeiros créditos nos garantem: “Este não é um
filme de ficção”; “Existe um lugar chamado Ilha das Flores”. (POLETTO,
2002, p.194-195)

Fotografia: Pôster Ilha das Flores

FONTE: www.taringa.net
Nesse documentário é retratado a vida de pessoas que vivem em estado de miséria na
Ilha das Flores, se alimentando de lixo junto a porcos. Para que essa história fosse contada, o
diretor Jorge Furtado filmou o dia a dia de pessoas que trabalhavam com lixo, seja em aterros,
seja em cooperativas, montando as imagens de maneira que desse a entender que a ficção
criada em cima dos registros cinematográficos fosse uma verdade. Segundo os relatos do
curta “Ilha das Flores: Depois que a Sessão Acabou”, os personagens reais da história
sofreram como resultado da imagem passada por sua contraparte fictícia.

Depois do acontecimento desse filme, quando as pessoas iam trabalhar na


cidade, [...] Porto Alegre [...], que conseguia um emprego fora... mas você
mora na Ilha Grande, você mora na Ilha... demitiu as pessoas, e as pessoas
não sabiam porquê. Porque ninguém queria trabalhar com quem comia
comida dos porcos, que vivia no meio do lixo. E aí as ilhas foram sendo
excluídas, e excluídas, e o povo começou a ter medo de sair da Ilha. Ao
mesmo tempo, de tão excluída que foram, o povo daqui começou a se excluir
[...] para não sentir a exclusão. Aí paramos no tempo. (TRONCO, 2011)

Criou-se dessa forma um registro fictício que levou a uma relação inautêntica da
realidade, trazendo suas consequências. Mesmo que a intenção de Jorge Furtado (2011),
segundo entrevistas no mesmo vídeo, fosse de quebrar a barreira dos gêneros documentário e
ficção, os resultados foram um pouco além, justamente pela veracidade que carrega o conceito
de documentário.
O mesmo, entretanto, ocorre com documentários que não se utilizam da ficção em sua
construção. Quando o cineasta pensa em um tema a ser abordado e escolhe o que e como
captar com sua câmera, ele está direcionando seu olhar àquilo que considera mais importante
para defender suas ideias, interpretando suas relações e as estruturando de forma a ser
consumível por espectadores. O documentário acaba sendo a interpretação de uma
interpretação, sendo assim, história, “essa interpretação que se envolve na escolha das
relações e as constrói” (TSAI, 2017, p. 59). Mas, ao invés de deixar isso claro, auxiliando na
compreensão da realidade interdependente, o documentário esconde-se em sua definição e
estrutura.
Mesmo com esse exemplo, não se pode concluir que é apenas a definição do conceito
que influencia as pessoas a absorverem o conteúdo da tecnoimagem como uma verdade fixa,
nem tão pouco sua estrutura e narrativa, pois, somado a isso, tem outros fatores. Entre eles
está a busca do ser-relação2 pela pretensa segurança que uma verdade fixa aparenta trazer.

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2
Adoto aqui o termo utilizado por Plínio Tsai, no livro História da Tradição Budista Indiana, no sentido do ser
que é parte de uma rede de relações interdependente e não é possível determina-lo independente delas (TSAI,
2017)
Assim, essa pretensa segurança que se busca com a adoção de conceitos fixos, é outro
fator que tem que ser levado em conta quando se reflete sobre esse tipo de alienação
produzida pela forma de se relacionar com o documentário. Adentra-se a perspectiva do
espectador que consome tais formas de montagem cinematográficas desejando por encontrar
verdades fixas que lhe traga alguma segurança, ou não sendo capaz de decifrar as
tecnoimagens. Uma espécie de analfabetismo audiovisual.
No primeiro caso, o que ocorre é uma pré-disposição a se enganar ou enganar aos
outros. Sabe-se que irá ver uma montagem de cenas direcionadas por um roteiro ou de cenas
escolhidas como representativas por aquele que está filmando. Ainda assim, toma-se aquela
estrutura de relações interpretativas como sendo a única possível, causando a separação da
realidade interdependente, que “é aquilo com que ele pode se relacionar dentro de suas
limitações como homem, como ser-relações, dentro da impermanência” (TSAI, 2017, p. 76).
No segundo caso, temos a possibilidade de um analfabetismo das tecnoimagens. A
falta de conhecimento sistemático que ajude o ser-relações a decifrar as relações apresentadas
em uma fotografia, um vídeo ou um filme. Do mesmo modo que “quem escreve precisa
dominar as regras da gramática e ortografia” (FLUSSER, 2011, p. 73), aquele que fotografa e
filma também necessita conhecer as estruturas dessas linguagens, caso contrário se tornará
incapaz de decifrá-la.
Contudo, pelo filme, vídeo e fotografia serem linguagens fáceis de serem produzidas,
pois dependem apenas de um aparelho, tem-se a impressão de que não há necessidade de
conhece-las estruturalmente, o que leva ao analfabetismo das tecnoimagens.

Fotógrafo amador apenas obedece a modos de usar, cada vez mais simples,
inscritos ao lado externo do aparelho. Democracia é isso. De maneira que
quem fotografa como amador não pode decifrar fotografias. Sua práxis o
impede de fazê-lo, pois o fotógrafo amador crê ser o fotografar gesto
automático graças ao qual o mundo vai aparecendo. Impõe-se conclusão
paradoxal: quanto mais houver gente fotografando, tanto mais difícil se
tornará o deciframento de fotografias, já que todos acreditam saber fazê-las.
(FLUSSER, 2011, p.73)

Ao se relacionar dessa forma “amadora” com as tecnoimagens, nos pré-dispomos


também, mas desta vez por falta de conhecimento, a sermos enganados pela veracidade de um
documentário. Não possuímos ferramentais para decifrar a estruturas que o compõe.
Juntamos então os dois casos: o desejo por uma pretensa segurança e o analfabetismo
tecnoimagético. A situação é bem mais complicada do que se apresenta quando tomamos
apenas uma dessas perspectivas. Tememos a morte e não queremos passar por ela, mesmo que
sejamos condicionados para ela (FLUSSER, 2015). É por esse medo que buscamos a
segurança. Só que esse medo e essa busca, nada tem a ver com nossa capacidade ou não
decifrar as tecnoimagens. Elas podem andar juntas, e na maioria das vezes o fazem.
Algo semelhante ocorre com o ser-relações em suas relações mais amplas. Busca-se a
segurança em uma verdade fixa, cuja existência é confirmada pela ignorância distorciva, e
necessitamos de estudos, análises, para irmos compreendendo as relações que compõe a
realidade interdependente, corrigindo dessa forma nosso entendimento.

A compreensão da realidade última, a interdependência total de todas as


coisas, o que foi chamado pelo Buddha de correção do entendimento, ou
entendimento correto, leva para uma interpretação das coisas que afirma a
sua causalidade. As coisas em suas relacionalidades geram efeitos, e esses
efeitos podem ser controlados pelo homem a partir de uma compreensão da
causalidade. Então os efeitos que o homem pode controlar e nos quais ele
tem participação direta são formados a partir de causas nas quais ele pode
atuar. (TSAI, 2017, 76-77).

Ao refletir sobre as relações interdependentes, entende-se a impossibilidade de uma


verdade fixa e imutável. Os próprios documentários passam a ser vistos como interpretações
de um tema escolhido por seu autor, que por sua vez, também advém de interpretações
anteriores. É por essa possibilidade interpretativa que os documentários se tornam ferramentas
para a compreensão da historicidade.
Adentra-se então, a alfabetização nas tecnoimagens como meio de construção do
conhecimento-histórico, da interpretação sobre os fatos (TSAI, 2017, p.58). Uma
alfabetização que possibilita não só a criação de filmes e vídeos que não se escondem em uma
roupagem de pretensa veracidade, mas também, que permite o seu decifrar.
A pretensão de ser um registro de uma realidade objetiva, coloca o documentário em
uma situação de risco, pois ao ser desvendada essa fraude, se igualará aos filmes de ficção.
Esses por sua vez, são também interpretações de relações que tomam forma de narrativas
audiovisuais, e que por trás dessa aparência, contém as interpretações, crenças, premissas e
argumentos do autor, aproximando também essa linguagem da história enquanto passado.

O conceito de passado enquanto história e de história enquanto passado, é o


mais comum e construído por todos os seres humanos. Cada um tem sua
história e ela é formada por um conjunto de memórias e de interpretações
sobre essas mesmas memórias, que podem ser parte do que existe como
mente ou ainda como algum registro exterior, como fotos, documentos
escritos, filmes, e assim por diante. Junto com isso, há as relações que
formamos com as memórias dos outros, com as narrativas e interpretações
feitas por eles.

Narrar é interpretar. Assim como descrever também é interpretar. E isso


significa que o intérprete escolhe quais relações ele quer falar e constrói a
partir disso o que quer comunicar, e essa comunicação expressa
necessariamente o que ele escolheu para dizer e como ele interpreta aquilo
que escolheu dizer. E escolhemos dizer o que tem significado para o
momento atual, para as nossas necessidades atuais, e diante dessas
necessidades é que trazemos as memórias e a interpretação delas, antes sem
valor, para o campo de uma valoração ética, religiosa, economica, diretiva, e
assim por diante. A sede nos faz valorizar a água, e quanto maior a sede
maior o valor projetado sobre a água, um valor existencial-interpretativo que
segue a necessidade de saciar a sede. E pensar a história dessa maneira me
parece estar no mesmo fluxo interpretativo que Heidegger, no sentido inicial
de história não como ciência da realidade, mas como história do ser-relações
(Dasein). (TSAI, 2017, p.63-64)

O decifrar do documentário e o decifrar da ficção, aproxima o espectador da


interpretação das relações feitas pelo autor da obra, seu conhecimento-histórico, e do tema
abordado. O mesmo ocorre quando aprendemos a linguagem escrita e passamos a decifrar
textos. Quando ainda somos parcialmente iletrados, nos agarramos àquilo que conseguimos
ler como algo sagrado, inquestionável. À medida que vamos sendo alfabetizados, o texto vai
deixando de ser um mistério, de nos distanciar da realidade interdependente. Ao contrário do
afastamento decorrente do analfabetismo. Ainda assim, no caso das tecnoimagens, por serem
elas tão novas e tão fáceis de serem produzidas, a relação com elas será analfabética ou, no
máximo, a de um analfabeto funcional.

O gesto de codificar e decifrar tecnoimagens se passa em nível afastado de


um passo do nível da escrita, e de dois passos do nível das imagens
tradicionais. É o nível da consciência pós-histórica. Trata-se de nível ainda
dificilmente sustentável. É demasiadamente novo para podermos ocupá-lo, a
não ser por instantes fugazes. Recaímos constantemente para o nível da
historicidade. Somos, em relação às tecnoimagens, como o são os iletrados
em relação aos textos. (FLUSSER, 2011, p.118)

Estabelecendo a alfabetização em relação às tecnoimagens, as definições de


documentário e ficção serão colocadas à prova e uma mudança se fará necessária. Vive-se em
um tempo em que vídeos, filmes, fotografias, tornam-se cada vez mais a forma de
comunicação mais utilizadas. Ao mesmo tempo, nos perdemos em suas superfícies mágicas,
aparentemente não causais, que nos seduz através de uma promessa de segurança.

Somos testemunhas, colaboradores e vítimas de revolução cultural cujo


âmbito apenas adivinhamos. Um dos sintomas dessa revolução é a
emergência das imagens técnicas em nosso torno. Fotografias, filmes,
imagens de TV, de vídeo e dos terminais de computador assumem o papel de
portadores de informação outrora desempenhado por textos lineares. Não
mais vivenciamos, conhecemos e valorizamos o mundo graças a linhas
escritas, mas agora graças a superfícies imaginadas. Como a estrutura da
medição influi sobre a mensagem, há mutação na nossa vivência, nosso
conhecimento e nossos valores. O mundo não se apresenta mais enquanto
linha, processo, acontecimento, mas enquanto plano, cena, contexto – como
era o caso na pré-história e como ainda é o caso para iletrados. (FLUSSER,
2008, p.11)

3 Conclusão
Mesmo que o documentário se coloque em uma posição de registro da realidade,
sendo o autor um mensageiro da verdade, toda essa prepotência pode ser derrubada, pelo
desenvolvimento da capacidade de decifrar as tecnoimagens que o compõe. Assim, a
necessidade de repensar e transformar os conceitos dos gêneros fílmicos, mesmo que no
momento ocorra, em sua grande parte, dentro das academias, quando essa alfabetização se
expandir, ocorrerá uma obrigatoriedade de transformação, pois haverão cada vez menos
iletrados para adotar as tecnoimagens como verdades.
Os documentários, nesse futuro hipotético, não mais serão registros da realidade
histórica, mas passarão a ser interpretações de recortes históricos para aqueles que os
assistem. Passarão assim a não mais ser um obstáculo para a compreensão da realidade
interdependente, mas se tornarão parte das possibilidades de compreensão das relações.

Abstract
The purpose of this article is to reflect how documentaries are constructed to be seen
as fixed historical truths, rather than interpretive cuts of an interdependent reality. How is this
attempt to make a cut fixed as a truth through the tech-images? What drives audiences to take
this film genre as truth more easily? If we live in an interdependent, interpretative reality, how
do we accept such fixed truths?

Keywords: Documentaries; Interdependence; Tech-images.


Referencias
BERNHARDT, Eduardo. Ilha das Flores: O Filme, A Polêmica e Os Catadores.
Recicloteca, 2017. Disponível em: < http://www.recicloteca.org.br/videos/ilha-das-flores-o-
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FLUSSER, Vilém. Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar São Paulo:


Annablume. 2011.

FLUSSER, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas: elogio da superficialidade. São


Paulo: Annablume. 2008.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da
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FLUSSER, Vilém. Comunicologia: reflexões sobre o futuro. São Paulo: Martins Fontes.
2015.

ILHA das Flores: depois que a sessão acabou. Produção e Direção de Giordano Tronco. Rio
Grande do Sul: Editorial J, PUCRS, 2011. Disponível em: < https://youtu.be/Ch-LIsnG9Wc>.
Acesso em: 23 maio 2018.

ECONOMÍA Básica, La Isla de Las Flores. In: Taringa! Disponível em:


<https://www.taringa.net/posts/ciencia-educacion/17421691/Economia-Basica-La-isla-de-las-
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POLLETO, Thays R. Cine-dobradura: o discurso rizomático de Ilha das Flores. Paraná:


UTP, 2002.

TSAI, Plinio M. História da Tradição Budista Indiana. Valinhos: ATG. 2017.

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