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Ficha Técnica

Título: Um Legado de Espiões


Título original: A Legacy of Spies
Autor: John le Carré
Edição: Cecília Andrade
Revisão: Clara Joana Vitorino
Capa: Rui Garrido
ISBN: 9789722063920
Publicações Dom Quixote uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© 2017, David Cornwell
© 2017, Publicações Dom Quixote
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www.dquixote.leya.com
www.leya.pt

Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


John le Carré
UM LEGADO DE ESPIÕES

Romance

Tradução de
J. Teixeira de Aguilar
1

O que se segue é o relato verídico, tanto quanto me é possível fazê-lo,


do meu papel na operação de embuste britânica que teve o nome de
código Bambúrrio, montada contra o Serviço de Informações da
Alemanha de Leste (Stasi) em finais da década de 1950 e princípios da de
1960 e da qual resultou a morte do melhor agente secreto britânico com
que alguma vez trabalhei e da mulher inocente pela qual deu a vida.
Um oficial de informações profissional não é mais imune aos
sentimentos humanos do que o resto da humanidade. O que lhe importa é
a medida em que é capaz de os reprimir, quer em tempo real, quer, no meu
caso, cinquenta anos a fio. Até há um par meses, à noite, deitado na cama
na longínqua propriedade da Bretanha que é a minha casa, a ouvir o
grasnar do gado e a zaragata das galinhas, combatia resolutamente as
vozes acusadoras que de tempos a tempos tentavam perturbar-me o sono.
Era demasiado jovem, protestava eu, era demasiado inocente, demasiado
ingénuo, demasiado verde. Se andam à procura de escalpes, dizia-lhes eu,
vão ter com esses grandes mestres do embuste, George Smiley e o seu
patrão, o Controlo. Foi a sua refinada argúcia, insistia eu, foram os seus
tortuosos e ilustrados intelectos, e não o meu, que concretizaram o triunfo
e a angústia que foi a operação Bambúrrio. Só agora, depois de ter sido
chamado a contas pelo Serviço ao qual dediquei os melhores anos da
minha vida, me sinto impelido, com a idade e o desconcerto, a expor,
custe o que custar, os lados claros e escuros da minha intervenção no
assunto.
Antes de mais, a maneira como vim a ser recrutado para os Serviços
Secretos – o «Circus», como nós, os jovens turcos, lhe chamávamos
naqueles tempos supostamente tranquilos em que estávamos instalados,
não numa grotesca fortaleza à beira do rio Tamisa, mas num bombástico
edifício vitoriano de tijolos erigido na curva de Cambridge Circus –
permanece para mim tão misteriosa como as circunstâncias do meu
nascimento; tanto mais que os dois acontecimentos são inseparáveis.
O meu pai, que mal me recordo de ter conhecido, era, segundo a minha
mãe, o filho esbanjador de uma abastada família anglo-francesa dos
condados centrais de Inglaterra, homem de apetites irrefletidos, com uma
herança em rápido emagrecimento e um amor redentor pela França. No
verão de 1930 estava a águas na cidade termal de Saint-Malo, na costa
norte da Bretanha, a frequentar os casinos e maisons closes1 e
genericamente a fazer um figurão. A minha mãe, filha única de uma longa
linhagem de agricultores bretões, à época com vinte anos, encontrava-se
também por acaso na cidade, a desempenhar as funções de dama de honor
no casamento de um endinheirado leiloeiro de gado. Era, pelo menos, o
que ela dizia. Contudo, é uma fonte única e, não sendo incapaz de um
pequeno embelezamento quando os factos lhe eram desfavoráveis, não me
admiraria nada que tivesse ido à cidade com propósitos menos retos.
Depois da cerimónia, assim reza a sua história, ela e outra colega dama
de honor, animadas por uma ou duas taças de champanhe, escaparam-se
da receção e, ainda todas bem-postas, foram dar uma volta vespertina pelo
concorrido passeio, onde o meu pai deambulava também resolutamente. A
minha mãe era bonita e volúvel, e a amiga menos. Seguiu-se um
impetuoso romance. A minha mãe era compreensivelmente reservada no
tocante ao seu andamento. Foi rapidamente agendado um segundo
casamento. O produto fui eu. O meu pai, ao que parece, não era
naturalmente dado à vida conjugal, e mesmo nos primeiros anos de
casamento arranjou maneira de estar mais ausente do que presente.
Nesta altura, porém, a história sofre uma reviravolta heroica. A guerra,
como sabemos, modifica tudo, e num abrir e fechar de olhos modificou o
meu pai. Assim que foi declarada, ei-lo a bater à porta do Ministério da
Guerra britânico, oferecendo os seus préstimos a quem quer que o
aceitasse. A sua missão, no dizer da minha mãe, era salvar a França
sozinho. Se era também para se eximir aos grilhões da família, é uma
heresia que nunca me foi permitido pronunciar na presença da minha mãe.
Os britânicos tinham um Executivo de Operações Especiais de
constituição recente, que o próprio Winston Churchill celebremente
incumbira de «incendiar a Europa». As cidades costeiras do Sudoeste da
Bretanha eram um viveiro de atividade submarina e a nossa cidade local
de Lorient, uma antiga base naval francesa, o maior viveiro de todos.
Cinco vezes largado de paraquedas nas planícies bretãs, o meu pai aliou-se
aos grupos da Resistência que conseguiu encontrar, provocou a sua quota-
parte de caos e encontrou uma morte macabra na prisão de Rennes às
mãos da Gestapo, deixando atrás de si um exemplo de dedicação altruísta
que seria impossível a qualquer filho igualar. O seu outro legado foi uma
fé despropositada no sistema de ensino privado britânico que, a despeito
do seu péssimo aproveitamento na escola privada inglesa que frequentou,
me condenou à mesma sorte.
Os meus primeiros anos de vida decorreram no paraíso. A minha mãe
cozinhava e tagarelava, o meu avô era severo mas bondoso e a herdade
prosperava. Em casa falávamos bretão. Na escola primária católica da
nossa aldeia, uma jovem freira bonita que tinha passado seis meses em
Huddersfield como precetora ensinou-me os rudimentos da língua inglesa
e, por decreto nacional, francês. Nas férias escolares eu corria descalço
pelos campos e falésias à roda da nossa herdade, apanhava trigo-mourisco
para os crepes da minha mãe, tratava de uma velha porca chamada Fadette
e brincava desenfreadamente com as crianças da aldeia.
O futuro não significava nada para mim enquanto não me atingiu.
Em Dover, uma senhora roliça chamada Murphy, prima do meu falecido
pai, fez-me largar as saias da minha mãe e levou-me para a sua casa de
Ealing. Eu tinha oito anos. Pela janela do comboio vi os primeiros balões
de barragem. Ao jantar, Mr. Murphy disse que aquilo acabaria em questão
de meses e Mrs. Murphy disse que não, um e outro falando devagar e
repetindo-se, em atenção a mim. No dia seguinte Mrs. Murphy levou-me
ao Selfridges e comprou-me um uniforme escolar, tomando o cuidado de
guardar os recibos. No dia a seguir a esse, postada no cais da estação de
Paddington, chorou enquanto eu lhe dizia adeus com o meu novo boné da
escola.
A anglicização que o meu pai desejaria para mim dispensa que sobre ela
me espraie. Havia uma guerra em curso. As escolas eram obrigadas a
governar-se com o que tinham. Eu já não era Pierre, mas sim Peter. O meu
fraco inglês era ridicularizado pelos meus colegas e o meu francês de
sotaque bretão pelos meus sitiados professores. A nossa aldeola de Les
Deux Églises, segundo me informaram quase como quem não quer a
coisa, tinha sido tomada pelos alemães. As cartas da minha mãe
chegavam, quando chegavam, em envelopes castanhos com selos
britânicos e carimbos de correio de Londres. Só anos mais tarde consegui
imaginar por que corajosas mãos deviam ter passado. As férias eram uma
mancha indistinta de acampamentos de rapazes e pais substitutos. As
escolas secundárias de tijolos transformaram-se em escolas privadas de
granito cinzento, mas o programa manteve-se igual: a mesma margarina,
as mesmas homilias sobre o patriotismo e o Império, a mesma violência
fortuita, a crueldade despreocupada e o desejo sexual insatisfeito e por
abordar. Numa noite da primavera de 1944, pouco depois do desembarque
do Dia D, o diretor chamou-me ao gabinete e disse-me que o meu pai
tinha morrido como um soldado e que eu devia orgulhar-me dele. Por
razões de segurança, não fora disponibilizada mais nenhuma explicação.
Eu tinha dezasseis anos quando, no final de um período de verão
particularmente enfadonho, regressei à Bretanha em paz como um
inadaptado inglês meio crescido. O meu avô morrera. Um novo
companheiro chamado Monsieur Émile partilhava a cama da minha mãe.
Eu não gostava de Monsieur Émile. Metade de Fadette tinha sido dada aos
alemães e a outra à Resistência. Fugindo das contradições da minha
infância e instigado por um sentimento de obrigação filial, embarquei
clandestinamente num comboio para Marselha e, acrescentando um ano à
idade, tentei alistar-me na Legião Estrangeira francesa. A minha
quixotesca aventura teve um final abreviado quando a Legião, fazendo
uma rara cedência aos rogos da minha mãe com o fundamento de que eu
não era estrangeiro, mas sim francês, me libertou para o cativeiro, desta
feita no arrabalde londrino de Shoreditch, onde o improvável meio-irmão
de meu pai, Markus, tinha uma empresa comercial que importava peles e
tapetes preciosos da União Soviética – só que lhe chamava sempre Rússia
– e se ofereceu para me iniciar no negócio.
O tio Markus permanece outro mistério por solucionar na minha vida.
Ainda hoje não sei se a sua oferta de emprego foi de algum modo
inspirada pelos meus ulteriores patrões. Quando lhe perguntei como tinha
morrido o meu pai, abanou a cabeça com ar reprovador – não do meu pai,
mas da crassidão da minha pergunta. Às vezes pergunto a mim mesmo se
é possível nascer-se secreto, da mesma maneira que se nasce rico, alto ou
com aptidão para a música. Markus não era mau, nem sovina, nem
antipático. Era apenas secreto. Oriundo da Europa Central, o seu apelido
era Collins. Nunca soube qual fora antes desse. Falava um inglês muito
rápido com sotaque, mas nunca cheguei a saber qual era a sua língua
nativa. Tratava-me por Pierre. Tinha uma amiga chamada Dolly, dona de
uma chapelaria em Wapping, que o ia buscar à porta do armazém às
sextas-feiras à tarde. Nunca soube, porém, onde eles iam aos fins de
semana, nem se eram casados um com o outro ou com outras pessoas.
Dolly tinha um Bernie na sua vida, mas nunca soube se Bernie era o
marido, um filho ou um irmão, porque Dolly nascera igualmente secreta.
Também não sei, mesmo em retrospetiva, se a Collins Trans-Siberian
Fur & Fine Carpet Company era uma casa comercial genuína ou uma
empresa de camuflagem criada para fins de recolha de informações. Mais
tarde, quando tentei descobri-lo, bati com o nariz na porta. Sabia que de
todas as vezes que se preparava para ir a uma feira comercial, fosse ela em
Kiev, Perm ou Irkutsk, o tio Markus fartava-se de tremer; e que, no
regresso, bebia imenso. E que nos dias que antecediam uma feira
comercial, havia um inglês bem-falante chamado Jack que passava por lá,
assomava a cabeça à porta da sala de triagem e cumprimentava: «Viva,
Peter, tudo bem contigo?» – nunca Pierre –, e a seguir levava Markus para
um bom almoço algures. A seguir ao almoço, Markus voltava para o seu
gabinete e fechava a porta à chave.
Jack intitulava-se intermediário de marta-zibelina de qualidade, mas
hoje sei que aquilo de que realmente se ocupava eram as informações,
porque quando Markus anunciou que o médico já não o deixava ir a feiras,
Jack sugeriu que fosse eu almoçar com ele em seu lugar e levou-me ao
Travellers Club, em Pall Mall, perguntando-me se eu teria preferido a vida
na Legião, se algum dos namoros que eu tinha era a sério, por que razão
saíra da escola privada, uma vez que tinha sido capitão da equipa de
pugilismo, e se alguma vez me tinha ocorrido fazer algo de útil pelo meu
país, querendo com isso referir-se à Inglaterra, porque, se eu pensava que
tinha falhado a participação na guerra por causa da idade, era a minha
oportunidade de me ressarcir. Só se referiu uma única vez ao meu pai,
durante o almoço, em termos tão informais que eu seria levado a pensar
que o assunto podia perfeitamente ter-se-lhe varrido por completo da
memória:
– Ah, e a propósito do teu falecido e muito venerado paizinho.
Rigorosamente aqui para nós, e olha que eu nunca disse isto. Combinado?
– Combinado.
– Ele era um sujeito muito corajoso, e fez um trabalho do caraças pelo
seu país. Por ambos os seus países. E não se fala mais nisso.
– Como queira.
– Então brindemos a ele.
Brindemos a ele, concordei eu, e bebemos silenciosamente em sua
honra.
Numa elegante casa de campo no Hampshire, Jack e o seu colega
Sandy, mais uma rapariga eficiente chamada Emily, pela qual me
apaixonei imediatamente, ministraram-me um curso abreviado de
levantamento de mensagens de uma caixa de recolha de correio no centro
de Kiev – na realidade uma lasca de alvenaria solta na parede de um velho
quiosque de tabaco –, da qual tinham montado uma réplica no laranjal. E
ensinaram-me a ler o sinal de segurança que me indicaria que podia
levantá-la – no caso um pedaço de fita verde esfarrapada amarrado a uma
balaustrada. E a indicar posteriormente que tinha retirado a mensagem da
caixa de recolha de correio, atirando um maço de cigarros russos vazio
para um caixote do lixo ao lado de um abrigo de paragem de autocarro.
– E talvez seja melhor, Peter, quando pedires o teu visto russo, usares o
passaporte francês em lugar da versão britânica – sugeriu ele jovialmente,
recordando-me que o tio Markus tinha uma sucursal em Paris. – E a
propósito, a Emily é terreno proibido – acrescentou, para o caso de eu
estar a pensar que o não era, como pensava.
*

Foi essa a minha primeira missão, o meu primeiríssimo trabalho para


aquilo a que mais tarde viria a conhecer como o Circus, e a minha
primeira visão de mim mesmo como um guerreiro secreto à imagem do
meu falecido pai. Não consigo já enumerar as outras missões que
desempenhei no par de anos seguinte, pelo menos uma boa meia dúzia, em
Leninegrado, em Gdansk e Sófia, e depois em Leipzig e Dresden, todas
elas, tanto quanto alguma vez soube, rotineiras, descontando aquela coisa
de a pessoa se equipar e se desequipar no final.
Durante longos fins de semana noutra casa de campo com outro belo
jardim, acrescentei outros truques ao meu reportório, tais como a
contravigilância e a passagem de raspão por estranhos no meio de uma
multidão para fazer uma entrega furtiva. A certa altura no meio destas
palhaçadas, numa recatada cerimónia num apartamento seguro de South
Audley Street, foi-me permitido tomar posse das medalhas de valentia do
meu pai, uma francesa e outra inglesa, e dos louvores que as
fundamentavam. Porquê o atraso? – podia eu ter perguntado. Mas por essa
altura já tinha aprendido a não o fazer.
Foi só quando comecei a ir à Alemanha de Leste que esse homem de
óculos atarracado e permanentemente preocupado, George Smiley, se
atravessou por acaso na minha vida, uma tarde de domingo no West
Sussex, onde estava a ser objeto de um debriefing, não já por Jack, mas
por um sujeito rude chamado Jim, de origem checa e mais ou menos da
minha idade, cujo apelido, quando finalmente o autorizaram a usá-lo, se
revelou ser Prideaux. Refiro-o porque mais tarde também ele
desempenhou um papel substancial na minha carreira.
Smiley não disse grande coisa durante o meu debriefing, limitando-se a
ouvir e ocasionalmente a perscrutar-me com olhos de mocho por detrás
dos óculos de aros grossos. Quando terminámos, porém, sugeriu que
déssemos uma volta pelo jardim, que parecia interminável e tinha um
parque anexo. Conversámos, sentámo-nos num banco, caminhámos,
voltámos a sentar-nos e continuámos a falar. A minha querida mãe: estava
viva e de boa saúde? Está bem, obrigado, George. Um bocadinho
taralhouca, mas bem. Depois o meu pai: eu tinha ficado com as medalhas
dele? Eu disse-lhe que a minha mãe as areava todos os domingos, o que
era verdade. Não referi que às vezes mas punha e chorava. Ao contrário de
Jack, todavia, nunca me fez perguntas sobre as minhas raparigas. Devia
pensar que quanto mais gente, maior a segurança.
Quando agora recordo a conversa, não posso deixar de pensar que,
conscientemente ou não, ele estava a propor-se como a figura paternal que
mais tarde veio a ser. Mas talvez essa sensação estivesse em mim, e não
nele. Seja como for, quando finalmente ele se saiu com a pergunta, tive a
sensação de voltar a casa, muito embora a minha casa ficasse do outro
lado do Canal, na Bretanha.
– Sabe? Estivemos a pensar – disse ele, com uma voz distante – se
alguma vez poria a hipótese de ter contrato connosco numa base mais
regular. As pessoas que trabalharam para nós no exterior nem sempre se
adaptam bem dentro. Mas no seu caso pensamos que era capaz disso. Não
pagamos lá muito bem, e as carreiras tendem a ser interrompidas. Mas
achamos que é um trabalho importante, isso sim, desde que a pessoa se
importe com o fim, e não demasiado com os meios.

1 Em francês no original: casas de passe. (N. do T.)


2

A minha propriedade em Les Deux Églises consta de um desempenado


manoir de granito do século XIX, sem nada de especial, um celeiro a cair
aos bocados com uma cruz de pedra na cumeeira, resquícios de
fortificações de guerras esquecidas, um velho poço de pedra, hoje em
desuso mas em tempos requisitado por combatentes da Resistência para
ocultarem as suas armas ao ocupante nazi, um forno exterior de pão
igualmente antigo, uma prensa para fazer sidra, obsoleta, e cinquenta
hectares de pastagens medíocres que descem até ao terreno escarpado e à
beira-mar. A herdade pertence à família há quatro gerações. Eu sou a
quinta. Não constitui uma aquisição nobre nem lucrativa. À direita,
quando olho pela janela da minha sala de estar, tenho o nodoso pináculo
de uma igreja do século XIX, e à esquerda uma solitária capela branca, de
telhado de colmo. Foram uma e outra que conferiram o nome à aldeia. Em
Les Deux Églises, como em toda a Bretanha, ou somos católicos ou não
somos coisa nenhuma. Eu não sou coisa nenhuma.
Para chegar à nossa propriedade a partir da cidade de Lorient, é preciso
percorrer durante uma meia hora a estrada que bordeja a costa sul, que de
inverno é flanqueada por escanzelados choupos, passando, na progressão
para oeste, por pedaços do Muro Atlântico de Hitler, que, sendo
inamovíveis, vão rapidamente adquirindo o estatuto de um Stonehenge
atual. Após cerca de trinta quilómetros começamos a estar atentos a um
restaurante de pizas que tem o imponente nome de Odyssée à esquerda e
pouco depois, à nossa direita, um nauseabundo parque de sucata onde o
impropriamente chamado Honoré, um bêbedo vagabundo que a minha
mãe sempre me preveniu que evitasse, e conhecido no local como o anão
venenoso, trafica bugigangas, pneus de carros antigos e estrume. Ao
chegar a um letreiro escalavrado onde está escrito Delassus, que é o nome
de família da minha mãe, vira-se para um carreiro esburacado, travando
com força ao passar por cima dos buracos ou, no caso de se tratar de
Monsieur Denis, o carteiro, ziguezagueando habilmente por entre eles a
toda a velocidade, que era o que estava a fazer naquela soalheira manhã do
princípio do outono, para indignação dos frangos do pátio e sublime
indiferença da Amoureuse, a minha amada setter irlandesa, que estava
demasiado atarefada a limpar a sua última porcaria para dar atenção a
meros assuntos humanos.
Quanto a mim, mal Monsieur Denis – aliás le Général, graças à sua
elevada estatura e à suposta parecença com o presidente de Gaulle – se
desenrolou da sua carrinha amarela e principiou a dirigir-se aos degraus da
frente, percebi à primeira vista que a carta que segurava na mão magricela
era do Circus.
*

A princípio não fiquei alarmado, mas apenas serenamente divertido. Há


coisas nos serviços secretos britânicos que nunca mudam. Uma delas é
uma preocupação obsessiva com o tipo de papel de carta a usar na sua
correspondência aberta. Não ter um aspeto demasiado oficial ou formal:
isso seria mau para camuflagem. O envelope não deve deixar ver à
transparência, e por conseguinte deve preferencialmente ter forro. O
branco puro é demasiado visível: é de optar por uma coloração, só que
nada de amoroso. Um azul-pálido, um toque de cinzento, são ambos
aceitáveis. Este era cinzento-claro.
Pergunta seguinte: datilografamos o endereço, ou escrevemo-lo à mão?
Para a resposta, tenha-se sempre em atenção o homem que está no terreno,
neste caso eu: Peter Guillam, ex-membro, posto na prateleira e grato por
isso. Residente há muito na França rural. Não vai a reuniões de veteranos.
Não consta nenhuma parceira. Recebe a pensão completa e é por
conseguinte passível de ser sujeito a tortura. Conclusão: numa longínqua
aldeola bretã onde os estrangeiros são uma raridade, um envelope cinzento
datilografado, com aspeto semiformal e um selo britânico, podia pôr os
habitantes de sobreaviso, de maneira que o melhor é optar por escrevê-lo à
mão. E agora o busílis. A Repartição, ou o que quer que o Circus se
intitule hoje em dia, não consegue resistir a uma classificação de
segurança, mesmo que seja apenas Particular. Acrescentar porventura um
Pessoal para lhe dar mais força? Particular e Pessoal, exclusivo para o
destinatário? Forte de mais. Fiquemo-nos pelo Particular. Ou melhor,
como neste caso, Personnel.
1 Artillery Buildings
Londres SE 14

Meu caro Guillam,

Não nos conhecemos, mas permita que me apresente. Sou gestor de negócios na sua
antiga empresa, tendo sob a minha alçada tanto os casos atuais como os históricos. Um
assunto no qual o senhor parece ter desempenhado um papel significativo há alguns
anos voltou inesperadamente à tona, e não tenho outra alternativa senão pedir-lhe que
compareça em Londres com a brevidade possível para nos ajudar a elaborar uma
resposta.
Estou autorizado a oferecer-lhe o reembolso das despesas de deslocação (em classe
económica) e ajudas de custo diárias, calculadas de acordo com o custo de vida em
Londres, de 130 libras durante o tempo que a sua presença seja necessária.
Uma vez que aparentemente não temos o seu número de telefone, pedimos-lhe o
favor de contactar Tania para o número acima, sendo a chamada a pagar no destino,
ou, caso tenha e-mail, para o endereço de e-mail abaixo. Sem querer causar-lhe
incómodos, devo salientar que o assunto se reveste de uma certa urgência. Permita-me,
a finalizar, que chame a sua atenção para o parágrafo 14 do seu acordo de rescisão.

Com os melhores cumprimentos,


A. Butterfield
(AJ do CS)

P.S.: É favor trazer o seu passaporte quando se apresentar na Receção. A.B.

Relativamente a «AJ do CS», leia-se Assessor Jurídico do Chefe do


Serviço. Quanto a «Parágrafo 14», leia-se dever vitalício de comparecer,
caso as necessidades do Circus o imponham. E «permita-me que lhe
recorde» quer dizer lembre-se de quem lhe paga a pensão. E eu não tenho
e-mail. E porque é que ele não põe a data na carta? Segurança?
Catherine está lá em baixo no pomar com a filha Isabelle, de nove anos,
a brincar com um par de cabritas manhosas que há pouco tempo nos
impingiram. É uma mulher bretã franzina, de largo rosto bretão e uns
vagarosos olhos castanhos que nos avaliam sem expressão. Se abre os
braços, as cabras saltam para eles e a pequena Isabelle, que se diverte à
sua maneira, junta as mãos e gira nos calcanhares, num deleite privado.
Catherine, porém, apesar de ser musculada, tem de tomar o cuidado de
apanhar uma cabra de cada vez, porque, se as deixar saltar todas juntas
contra ela, podem pregar com ela no chão. Isabelle ignora-me. O contacto
visual incomoda-a.
No campo atrás deles, o surdo Yves, o trabalhador ocasional, está
vergado a cortar couves. Com a mão direita corta os talos e com a
esquerda atira-as para um carrinho de mão, mas o ângulo das suas costas
arqueadas nunca se altera. É observado por um velho cavalo cinzento
chamado Artemis, outro dos enjeitados de Catherine. Há um par de anos
acolhemos um avestruz extraviado que se tinha soltado de uma herdade
vizinha. Quando Catherine alertou o agricultor, ele disse-lhe: fica com ele,
é demasiado velho. O avestruz expirou misericordiosamente e fizemos-lhe
um funeral de gala.
– Queres alguma coisa, Pierre? – pergunta Catherine.
– Lamento, mas vou ter de me ausentar por uns dias – respondo eu.
– Vais a Paris? – Catherine não concorda que eu vá a Paris.
– A Londres – respondo eu. E porque, mesmo aposentado, preciso de
uma história de camuflagem: – Morreu uma pessoa.
– Alguém que ames?
– Já não – respondo eu, com uma firmeza que me apanha desprevenido.
– Então não é importante. Partes hoje à noite?
– Amanhã. Apanho o primeiro voo de Rennes.
Houve um tempo em que bastava ao Circus apitar, que eu corria logo a
Rennes para apanhar um avião. Hoje em dia não.
*

Seria preciso ter alcançado o estatuto de espião no antigo Circus para


perceber a aversão que me assaltou quando, às quatro da tarde do dia
seguinte, paguei o táxi e principiei a subir o passadiço de cimento que
dava acesso à nova sede do Serviço, escandalosamente ostentosa. Teria de
se ser eu na primavera da minha vida de espião, de regresso, estafado, de
algum ermo posto avançado de império – muito provavelmente o império
soviético, ou algum membro dele. A pessoa veio diretamente do aeroporto
de autocarro e a seguir apanhou o metro até Cambridge Circus. A equipa
da Produção está à espera para lhe fazer o debriefing. Sobe cinco degraus
sebentos até à porta da hediondez vitoriana a que variavelmente
chamamos Sede, a Repartição ou simplesmente o Circus. E está em casa.
Esquece as guerras que tem tido com a Produção, os Requisitos ou os
Administrativos. São apenas querelas de família entre o terreno e a base.
O porteiro, no seu cubículo, dá-lhe os bons-dias com um entendido «Bem-
vindo de volta, Mr. Guillam» e pergunta-lhe se quer deixar a pasta. E a
pessoa responde obrigado, Mac, ou Bill, ou quem quer que esteja de
serviço nesse dia, e nem se incomoda a mostrar-lhe o passe. Sorri e não
sabe bem porquê. À sua frente estão os três velhos elevadores manhosos
que detesta desde o dia em que entrou – só que dois deles estão
encravados num andar de cima e o terceiro é exclusivo do Controlo, de
maneira que nem é bom pensar nele. E de qualquer maneira preferiria
perder-se no labirinto de corredores e caminhos sem saída que é a
encarnação física do mundo onde optou por viver, com as suas escadas
roídas pelo caruncho, os extintores lascados, os espelhos de olho de peixe
e os cheiros desagradáveis a fumo de cigarro cediço, Nescafé e
desodorizante.
E agora esta monstruosidade. Este Bem-vindo à Terra dos Espiões à
Beira-Tamisa.
Sob o escrutínio de homens severos e mulheres de fato de treino,
apresento-me diante do balcão de vidro blindado da receção e vejo o meu
passaporte britânico ser tragado por um tabuleiro metálico deslizante. O
rosto por trás do vidro é de mulher. Os absurdos ênfases e a voz eletrónica
são de Essex Man2:
– É favor colocar todas as chaves, telemóveis, dinheiro, relógios de
pulso, instrumentos de escrita e quaisquer outros objetos metálicos que
tenha na caixa que está na mesa à sua esquerda, guardar a ficha branca
identificadora da sua caixa e a seguir avançar devidamente com os sapatos
na mão pela porta que tem escrito Visitantes.
O meu passaporte regressa. Avançando devidamente, sou revistado com
uma raqueta de pingue-pongue por uma jovial rapariga dos seus catorze
anos e seguidamente irradiado num caixão vertical de vidro. Depois de
voltar a enfiar os sapatos nos pés e apertar os atacadores – de algum modo
um processo muito mais humilhante do que descalçá-los –, sou
acompanhado até a um elevador sem identificação pela jovial rapariga,
que me pergunta se tive um bom dia. Não tive. Nem tão-pouco uma boa
noite, se ela quiser saber, o que não é o caso. Graças à carta de A.
Butterfield há uma década que não dormia tão mal, mas também não lhe
posso dizer isso. Sou um animal de campo, ou era. O meu habitat natural
era o ar livre da espionagem. O que estou a descobrir na minha suposta
idade madura é que uma carta de rutura vinda inesperadamente do Circus
na sua nova encarnação a requerer a minha presença imediata em Londres
me lança numa jornada noturna da alma.
Chegámos ao que parece ser o andar de cima, mas nada o diz. No
mundo que outrora habitei, os seus maiores segredos estão sempre no
andar de cima. A minha jovem acompanhante tem um punhado de fitas à
volta do pescoço, com chaves eletrónicas agarradas. Abre uma porta sem
identificação, eu entro e ela fecha-a atrás de mim. Experimento o puxador.
Não se mexe. Já fui encerrado algumas vezes na vida, mas sempre pela
oposição. Não há janelas, apenas pinturas infantis de flores e casas. Obra
da descendência de A. Butterfield? Ou grafitos de anteriores ocupantes?
E que é feito de todo o barulho? Quanto mais escuto, pior se torna o
silêncio. Não há jovial martelar de máquinas de escrever, nem telefones
por atender a tocar fora do descanso, nem carrinhos de pastas a cair aos
bocados a matraquear como a carrinha de um leiteiro pelos corredores de
tábuas nuas, nem furiosos rugidos masculinos de vamos lá a parar com o
raio desse assobio! Algures no caminho entre Cambridge Circus e o
Embankment, houve qualquer coisa que morreu, e não foi apenas o chiar
dos carrinhos.
Encarrapito o traseiro numa cadeira de aço e pele. Folheio um seboso
exemplar da Private Eye e pergunto a mim mesmo qual de nós perdeu o
nosso sentido de humor. Levanto-me, experimento de novo a porta e
sento-me numa cadeira diferente. Por esta altura já cheguei à conclusão de
que A. Butterfield está a fazer um estudo aprofundado da minha
linguagem corporal. Pois bem, se está, boa sorte, porque quando a porta se
abre de par em par e uma mulher ágil, de cabelo curto, dos seus quarenta e
qualquer coisa, envergando um traje de passeio, entra de rompante e, com
um sotaque do Estuário, diz «Ah. Viva, Peter, ótimo. Eu sou a Laura, quer
entrar?», eu já devo ter recapitulado em rápida ordem todos os falhanços e
desastres em que estive envolvido ao longo de mais de meio século de
trapaças autorizadas.
Desfilamos por um corredor deserto e entramos num gabinete branco e
higiénico de janelas hermeticamente fechadas. Um rapaz de rosto fresco,
óculos de escola privada inglesa e idade indefinível, de camisa e
suspensórios, salta de trás de uma mesa e aperta-me a mão.
– Peter! Meu Deus, está com um ar absolutamente viçoso! E parece ter
metade da idade! Fez boa viagem? Café? Chá? Palavra que não? Estamos
mesmo, mesmo gratos por ter vindo. É uma enorme ajuda. Já travou
conhecimento com a Laura? Claro que sim. Lamento imenso fazê-lo
esperar ali dentro. Fui chamado lá acima. Já está tudo bem. Sente-se,
sente-se.
Tudo isto acompanhado de estreitamentos dos olhos a sugerir
confidências, visando ainda maior intimidade, enquanto me conduz a uma
cadeira de castigo de espaldar direito com braços para uma estada
demorada. Depois senta-se também ele do outro lado da mesa, que está
atravancada de pastas do Circus de aspeto antigo assinaladas com as cores
de todas as nações. A seguir assenta os cotovelos cobertos pelas mangas
da camisa entre elas onde eu não consigo ver, e entrelaça as mãos numa
cama de gato sob o queixo.
– Eu sou o Bunny, já agora – anuncia ele. – Um nome bastante pateta,
mas persegue-me desde a infância e não consigo livrar-me dele. Pensando
bem, talvez seja essa a razão pela qual vim parar a este sítio. Não é lá
muito fácil uma pessoa mostrar o que vale no Supremo Tribunal de Justiça
com toda a gente a correr atrás dela aos gritos: «Bunny, Bunny», pois não?
Tratar-se-á da sua tagarelice habitual? Será assim que fala o comum dos
assessores jurídicos de meia-idade dos Serviços Secretos nos dias que
correm? Ora atirado para a frente, ora com um pé no passado? O meu
ouvido para o inglês contemporâneo é fraco, mas, a julgar pela expressão
de Laura quando se instala ao lado dele, é mesmo. Sentada, ela é feroz,
pronta a atacar. Anel de sinete no dedo médio da mão direita. Do pai? Ou
um sinal cifrado de preferências sexuais? Eu tinha estado tempo de mais
fora de Inglaterra.
Conversa fiada sem sentido, conduzida por Bunny. As crianças dele
adoram a Bretanha, são ambas raparigas. Laura já esteve na Normandia,
mas na Bretanha não. Não diz com quem.
– Mas você nasceu na Bretanha, Peter! – protesta repentinamente
Bunny, sem mais nem menos. – Devíamos tratá-lo por Pierre!
Peter serve muito bem, digo eu.
– Ora bem, aquilo que temos, Peter, sem rodeios, é qualquer coisa como
uma séria salgalhada legal para deslindar – torna Bunny, a um ritmo mais
lento e mais sonoro, depois de ter reparado nos meus aparelhos auditivos a
despontar dos caracóis brancos. – Ainda não é uma crise, mas está ativa, e
estou em crer que é bastante volátil. E precisamos imenso da sua ajuda.
A isto respondo que tenho o maior prazer em ser prestável no que puder,
Bunny, e sabe bem pensar que ainda se pode ser de alguma utilidade
passados todos estes anos.
– Evidentemente eu estou aqui para proteger o Serviço. É o meu
trabalho – prossegue Bunny, como se eu não tivesse falado. – E você está
aqui como uma pessoa singular, um ex-membro, reconhecidamente, há
muito e afortunadamente aposentado, com certeza, mas o que eu não
posso garantir é que os seus interesses e os nossos interesses coincidam
em toda a linha. – Olhos convertidos em nesgas. Sorriso feito um ricto. –
Por conseguinte o que lhe estou a dizer é isto, Peter: por muito que o
respeitemos imensamente por todas as coisas esplêndidas que fez pelo
Gabinete nos tempos de antigamente, isto é a Repartição. E você é você, e
eu sou um assessor jurídico letal. Como está a Catherine?
– Está ótima, obrigado. Porque é que pergunta?
Porque eu não a pus na lista. Para me enervar. Para me dizer que se
acabaram os paninhos quentes. E como são grandes os olhos do Serviço.
– Estávamos na dúvida se ela devia ser acrescentada à lista bastante
extensa das suas parceiras – explica Bunny. – Regras do Serviço, e assim.
– A Catherine é minha inquilina. É filha e neta de anteriores inquilinos.
Eu moro no local por opção. Ela tem um terço da minha idade e, tanto
quanto isso é da sua conta, nunca fui para a cama com ela nem tenciono ir.
Assunto arrumado?
– Perfeitamente, obrigado.
A minha primeira mentira, competentemente pregada. Agora vamos à
rápida manobra de diversão:
– Quer-me parecer que também vou precisar dum advogado – sugiro.
– É prematuro, e não tem dinheiro para isso, aos preços que eles
atualmente cobram. Nós temo-lo registado como casado e depois não
casado. Ambas as coisas estão certas?
– Estão.
– Uma coisa e outra no mesmo ano. É obra.
– Obrigado.
Estamos a gracejar? Ou a provocar? Desconfio que seja a segunda
hipótese.
– Uma loucura juvenil? – sugere Bunny, no mesmo tom cortês de
interrogatório.
– Um mal-entendido – respondo eu. – Mais alguma pergunta?
Mas Bunny não desiste com facilidade, e quer que eu o saiba.
– Quero eu dizer, então e de quem veio… a criança? De quem era?
Quem era o pai? – Ainda com a mesma voz acetinada.
Eu finjo ponderar.
– Sabe? Acho que nunca me passou pela cabeça perguntar-lho –
respondo. E enquanto ele ainda está a meditar nisto: – Dado que estamos a
falar de quem faz o quê a quem, talvez me possa dizer o que faz a Laura
aqui – sugiro.
– A Laura é da História – responde sonoramente Bunny.
A História na figura de uma mulher inexpressiva de cabelo curto, olhos
castanhos e sem maquilhagem. E já ninguém está a sorrir, a não ser eu.
– Então o que é que consta no libelo acusatório, Bunny? – pergunto eu
jovialmente, agora que estamos a passar a vias de facto. – Deitar fogo aos
estaleiros reais?
– Ora vamos, libelo acusatório é ir longe de mais, Peter! – protesta
Bunny, no mesmo tom jovial. – Coisas a resolver, nada mais. Deixe-me
fazer-lhe só uma pergunta antes de mais nada. Posso? – Semicerra os
olhos. – Operação Bambúrrio. Como foi montada, quem a dirigiu, onde é
que falhou tão rotundamente e qual foi a sua participação nela?
Será que ocorre uma aquietação da alma quando nos damos conta de
que as nossas piores expectativas se concretizaram? No meu caso, não.
– Disse Bambúrrio, Bunny?
– Bambúrrio – mais alto, para o caso de não ter alcançado os meus
surdos aparelhos auditivos.
Vai com calma. Lembra-te de que és uma pessoa de idade. Nos dias que
correm a memória não é o teu forte. Não te apresses.
– Ora bem, o que veio a ser exatamente Bambúrrio, Bunny? Dê-me uma
dica. De que data é que estamos a falar?
– Princípios dos anos sessenta, grosso modo. Hoje.
– Uma operação, diz você?
– Encoberta. Chamada Bambúrrio.
– Contra que alvo?
Laura, vinda do lado oculto:
– Soviéticos & Satélites. Dirigida contra as Informações da Alemanha
de Leste. Também conhecidas por Stasi – a berrar, em atenção a mim.
Stasi? Stasi? Esperem um bocadinho. Ah, sim, a Stasi.
– Com que objetivo, Laura? – pergunto eu, depois de ter juntado as
peças todas.
– Montar um embuste, iludir o inimigo, proteger uma fonte vital.
Infiltrar o Centro de Moscovo com o propósito de identificar o suposto
traidor ou traidores dentro das fileiras do Circus. – E, engrenando num
tom francamente lamentoso: – Só que nós já não temos népia de ficheiros
sobre ela. Apenas um punhado de referências cruzadas a ficheiros que se
evaporaram. Como que desaparecidas, julga-se que roubadas.
– Bambúrrio, Bambúrrio – repito eu, abanando a cabeça e sorrindo
como os velhos, mesmo que não sejam tão velhos como os outros possam
julgar que são. – Lamento, Laura. Desculpe, mas não me diz nada.
– Nem sequer um sussurro distante? – Bunny.
– Nadinha, infelizmente. Um vazio total – afugentando imagens minhas
em jovem, envergando uma indumentária de distribuidor de pizas,
curvado sobre o guiador da minha motocicleta de principiante para, a altas
horas da noite, levar a toda a pressa uma encomenda especial de ficheiros
da sede do Circus a Algures em Londres.
– E para o caso de eu não o ter referido, ou você não ter ouvido – está
Bunny a dizer, na sua voz mais macia. – A nossa interpretação é que a
Operação Bambúrrio envolveu o seu amigo e colega Alec Leamas, que
talvez se recorde de que foi abatido no Muro de Berlim quando corria em
auxílio da namorada, Elizabeth Gold, que já tinha sido abatida no Muro de
Berlim. Mas talvez você se tenha esquecido disso também, não?
– Claro que não esqueci, raios – ripostei eu. E só nessa altura, à guisa de
explicação: – Estava a interrogar-me sobre a Bambúrrio, e não sobre o
Alec. E a resposta é não. Não me lembro dela. Nunca ouvi falar. Lamento.
*

Em qualquer interrogatório, a negação é o ponto de viragem. Pouco


importam as delicadezas que tenha havido antes. A partir do momento da
negação, as coisas nunca mais voltam a ser iguais. Ao nível do polícia
secreto, a negação é suscetível de provocar uma imediata retaliação, tanto
mais que o polícia secreto mediano é mais estúpido do que o seu sujeito.
O interrogador sofisticado, em contrapartida, ao levar com a porta na cara,
não tenta imediatamente forçá-la a pontapé. Prefere reorganizar-se e
avançar sobre o alvo a partir de um ângulo diferente. E, a julgar pelo
sorriso satisfeito de Bunny, é o que ele está a ponderar fazer agora.
– Pois bem, Peter. – A sua voz para duros de ouvido, apesar das minhas
asseverações. – Deixando a questão da Operação Bambúrrio de lado por
um momento, importava-se muito se a Laura e eu lhe fizéssemos umas
quantas perguntas de contexto a respeito da questão mais geral?
– O que vem a ser o quê?
– Responsabilidade individual. O velho problema de onde acaba a
obediência a ordens superiores e começa a responsabilidade pelas ações
individuais da pessoa. Está a ver onde eu quero chegar?
– Mais ou menos.
– Você está no terreno. A Sede deu-lhe luz verde, mas nem tudo corre de
acordo com o plano. Há derramamento de sangue inocente. Há a perceção
de que você, ou um colega que lhe é próximo, exorbitou das ordens.
Alguma vez pensou numa situação dessas?
– Não.
Ou ele se esqueceu de que sou surdo, ou chegou à conclusão de que
ouço bem:
– E não consegue pensar, você pessoalmente, em termos puramente
abstratos, que pudesse ocorrer uma situação stressante dessas? Analisando
em retrospetiva os muitos apertos em que deve ter-se visto durante uma
longa carreira operacional?
– Não, não consigo. Lamento.
– Nem um único momento em que sentisse que tinha exorbitado das
ordens da Sede, dado azo a alguma coisa a que não podia pôr travão?
Colocado os seus sentimentos, necessidades, apetites até, acima do dever,
porventura? Com consequências desastrosas que talvez não pretendesse ou
previsse?
– Bom, isso valer-me-ia uma reprimenda da Sede, não é? Ou uma ordem
de regresso a Londres. Ou, num caso realmente grave, a porta da rua –
sugiro eu, brindando-o com o meu franzimento de sobrolho disciplinar.
– Tente ir um bocadinho mais além do que isso, Peter. Eu estou a sugerir
que podia haver por aí terceiros melindrados. Pessoas vulgares do mundo
exterior que, em consequência de alguma coisa que você tenha feito, por
engano, no calor do momento ou quando a carne fraqueja um pouco,
digamos, sofreram danos colaterais. Pessoas que podem ter decidido,
passados anos, talvez uma geração depois, que têm motivos para levantar
um processo bastante suculento contra este Serviço. Ou por perdas e
danos ou, se isso não pegar, uma ação particular por homicídio
involuntário ou pior. Contra o Serviço em geral, ou – com um súbito
erguer de sobrancelhas de simulada surpresa – um seu antigo membro
identificado. Nunca considerou isso uma possibilidade? – parecendo
menos um assessor jurídico do que um médico a amaciar a pessoa para
uma notícia realmente má.
Dá-lhe tempo. Coça a velha cabeça. Não serve.
– Demasiado ocupado a fazer a vida negra à oposição, imagino – com o
sorriso fatigado de um veterano. – Com o inimigo pela frente e a Sede a
morder-nos os calcanhares, não havia lá muito tempo para filosofar.
– Sendo a atitude mais fácil que eles têm começar por uma iniciativa
parlamentar e preparar o terreno para um processo judicial através de uma
notificação por escrito, mas não ir até ao extremo.
Ainda estou a pensar, receio bem, Bunny.
– Depois, claro, uma vez iniciado o processo judicial, qualquer
inquérito parlamentar seria posto de parte. Deixando as mãos livres aos
tribunais. – Aguarda, em vão, e investe com mais vigor: – E Bambúrrio
continua a não lhe dizer mesmo nada? Uma operação encoberta que se
prolongou por três anos na qual você desempenhou um papel
considerável, diriam alguns que heroico? E não lhe diz mesmo nada?
E Laura a fazer-me a mesma pergunta com os seus olhos castanhos de
freira sem pestanejar, enquanto eu finjo mais uma vez vasculhar na minha
memória de velho e – com os diabos – não encontrar lá absolutamente
nada, mas para vocês deve ser a velhice, suponho eu – abanando
pesarosamente a cabeça, frustrado.
– Não foi um exercício de treino qualquer, nem nada? – pergunto eu
destemidamente.
– A Laura ainda agora lhe disse o que foi – retorquiu Bunny, e eu fiz um
«Ah, pois foi, pois disse», e tentei fazer um ar constrangido.
*

Pusemos a Bambúrrio de lado e voltámos a considerar o espectro de


uma pessoa vulgar do mundo exterior, primeiro a acossar um ex-membro
identificado do Serviço por via do Parlamento e depois tentando de novo a
sorte nos tribunais. Mas ainda não dissemos de que nome ou de qual ex-
membro poderemos estar a falar. Digo nós porque, se uma pessoa
participou alguma vez num interrogatório e se viu na situação de
inquirida, há uma cumplicidade que a coloca a ela e aos interrogadores de
um lado da mesa e as questões a serem discutidas do outro.
– Quer dizer, peguemos no seu processo individual, no que resta dele,
Peter – queixa-se Laura. – Não se trata apenas de ter sido depurado. Foi
truncado. Convenhamos que continha anexos sensíveis considerados
demasiado secretos para o Arquivo Geral. Ninguém pode reclamar por
isso, até certo ponto. É para isso que servem os anexos secretos. Mas
quando passamos ao Arquivo Restrito, o que é que encontramos? Um
grande vazio.
– Merda nenhuma – intervém Bunny à guisa de clarificação. – Toda a
sua carreira no Serviço, segundo o seu processo, é uma porrada de
certificados de destruição.
– Se tanto – comenta Laura, evidentemente nada incomodada por esta
exibição de linguagem grosseira.
– Ah, mas para sermos justos, Laura – Bunny a assumir agora a espúria
capa de amigo do prisioneiro –, aquilo que podemos estar a ver aqui podia
muito bem ser obra do Bill Haydon, de má memória, não podia? – E
depois, dirigindo-se a mim: – Mas talvez você se tenha esquecido também
de quem seja o Bill Haydon.
Haydon? Bill Haydon. Estou a ver o sujeito: um agente duplo a soldo
dos soviéticos que, como presidente da todo-poderosa Comissão Conjunta
de Coordenação do Circus, vulgarmente conhecida como Conjunta,
durante três décadas revelara diligentemente os respetivos segredos ao
Centro de Moscovo. É também o homem cujo nome me passa pela cabeça
durante a maior parte das horas do dia, mas não vou pôr-me aos saltos a
gritar «esse filho da mãe, era capaz de lhe dar cabo do canastro» – que por
acaso era o que toda a gente minha conhecida fazia em relação a ele, fosse
como fosse, para satisfação geral da equipa da casa.
Laura, entretanto, prossegue a sua conversa com Bunny:
– Ah, disso não tenho eu a mínima dúvida, Bunny. Todo aquele Arquivo
Restrito tem o cunho do Bill Haydon por tudo quanto é sítio. E aqui o
Peter foi um dos primeiríssimos a descobri-lo, não foi, Pete? No seu papel
de adjunto pessoal do George Smiley. O seu guardião e discípulo de
confiança, não foi?
Bunny abana a cabeça, reverentemente.
– George Smiley. O melhor funcionário que alguma vez tivemos. A
consciência do Circus. O seu Hamlet, como alguns lhe chamavam, talvez
não justamente de todo. Que homem! Ainda assim, não acha que no caso
da Operação Bambúrrio – prossegue, continuando a dirigir-se a Laura
como se eu não estivesse na sala – pode não ter sido o Bill Haydon que
andou a saquear o Arquivo Restrito, mas sim o George Smiley, por
qualquer razão? Há umas assinaturas muito estranhas naqueles
certificados de destruição. Nomes de que você e eu nunca ouvimos falar.
Não estou a dizer que fosse o Smiley pessoalmente. Havia de ter usado
um mandatário que se prestasse a isso, claro que sim. Alguém que
acatasse cegamente as suas ordens, fosse qual fosse a sua legalidade.
Nunca foi pessoa para sujar as mãos, o nosso George, como grande
homem que era.
– Tem alguma opinião sobre isso, Pete? – pergunta Laura.
Tenho efetivamente uma opinião, e bem firme. Detesto o tratamento
Pete, e esta conversa está a sair seriamente dos eixos:
– Por que carga de água é que o George Smiley, logo ele, precisaria de
roubar ficheiros do Circus, Laura? Foi o Bill Haydon, garanto-lhe. O Bill
seria capaz de roubar o óbolo duma viúva e mijar-se a rir com isso.
E uma risada entre dentes e uma abanadela da velha cabeça para indicar
que os jovens de hoje em dia não fazem a mínima ideia de como as coisas
eram na realidade.
– Bem, eu acho que o George era capaz de ter uma razão para os roubar,
sim – replica Bunny, em nome de Laura. – Foi Chefe das Encobertas
durante os dez anos mais frios da Guerra Fria. Travou um combate
territorial sem luvas com a Conjunta. Sem quaisquer restrições, fosse
sacarem agentes uns aos outros, fosse arrombarem os cofres uns aos
outros. Congeminou as mais negras operações em que este Serviço esteve
metido. Passava por cima da sua consciência quando as necessidades
preponderantes o ditavam. Coisa que parece ter feito com bastante
frequência. Acho que era capaz de imaginar facilmente o seu George a
enfiar uns quantos ficheiros debaixo do tapete. – Dirigindo-se agora a
mim, a olhar-me bem de frente: – E era capaz de o imaginar a si a ajudá-
lo, também, sem qualquer escrúpulo. Algumas daquelas assinaturas
esquisitas parecem-se extraordinariamente com a sua caligrafia. Nem
sequer tinha de os roubar. Bastava assiná-los com o nome de outra pessoa
e pronto. Quanto ao muito chorado Alec Leamas, que morreu de forma tão
trágica no Muro de Berlim, o seu processo pessoal nem sequer foi
truncado. Desapareceu sem deixar rasto. Não há sequer uma ficha com os
cantos dobrados no índice geral. Estranhamente, você não parece nada
abalado.
– Estou escandalizado, se quer que lhe diga. E abalado, também.
Profundamente.
– Porquê? Simplesmente porque eu estou a sugerir que você surripiou o
ficheiro do Alec Leamas do arquivo secreto e o escondeu num tronco oco?
No seu tempo você surripiou uma porção de ficheiros para o seu tio
George. Porque não o do Leamas? Alguma coisa para o recordar depois de
ele ter sido despachado juntamente com… como é que se chamava a
rapariga, diga lá?
– Gold. Elizabeth Gold.
– Ah, lembra-se. E Liz, como diminutivo. O ficheiro dela também
desapareceu. Se lhe desse para o romantismo, a pessoa podia imaginar os
ficheiros do Alec Leamas e da Liz Gold a sumirem-se juntos no além. A
propósito, como é que você e o Alec Leamas se tornaram tão amigos?
Irmãos de armas até ao fim, ao que consta.
– Fizemos coisas juntos.
– Coisas?
– O Alec era mais velho do que eu. E mais esperto. Se tínhamos uma
operação a decorrer e ele precisava de um companheiro, pedia-me a mim.
Se o Pessoal e o George estivessem de acordo, emparelhavam-nos.
Laura volta à carga:
– Dê-nos então um par de exemplos desse emparelhamento – com uma
voz que discordava claramente de emparelhamentos, mas eu não caibo em
mim de contente por poder desviar a conversa:
– Bem, o Alec e eu devemos ter começado no Afeganistão, em meados
dos anos cinquenta, acho eu. A nossa primeira temporada juntos foi a
infiltrar pequenos grupos pelo Cáucaso até à Rússia. Provavelmente vocês
acham isso um bocadinho antiquado. – Outra pequena risada. Uma
abanadela da cabeça. – Não foi um êxito retumbante, tenho de reconhecer.
Nove meses depois transferiram-no para o Báltico, a controlar tipos que
entravam e saíam da Estónia, da Letónia e da Lituânia. Ele pediu-me outra
vez a mim, de modo que eu fui até lá como ajudante dele. – E, para
elucidação dela: – Nesse tempo os estados bálticos faziam parte do bloco
soviético, Laura, como decerto é do seu conhecimento.
– E tipos quer dizer agentes. Hoje em dia dizemos ativos. E o Leamas
estava oficialmente baseado em Husum, certo? No Norte da Alemanha?
– Certo, sim, Laura. Sob o disfarce de membro do Grupo Internacional
de Inspeção Marítima. Proteção das pescas de dia e desembarques em
embarcações rápidas à noite.
Bunny interrompe o nosso tête-à-tête.
– Esses desembarques noturnos tinham algum nome?
– Navalha, se bem me lembro.
– Portanto não era Bambúrrio.
Ignora-o.
– Navalha. Decorreu durante um par de anos e a seguir foi arrumada.
– Como é que funcionava?
– Primeiro, arrebanhavam-se os voluntários. Treinavam-se na Escócia,
na Floresta Negra ou onde quer que fosse. Estonianos, letões. Depois
voltavam a pôr-se no local de onde tinham vindo. Esperava-se pela lua
nova. Barco de borracha. Motor fora de borda devagarinho. Visão noturna.
A equipa de receção na praia sinalizava que estava tudo desimpedido. E
entrávamos. Ou entravam os nossos tipos.
– E quando os vossos tipos já tinham entrado, o que faziam você e o
Leamas? Além de abrirem uma garrafa, obviamente, o que no caso do
Leamas era o pão nosso de cada dia, ao que consta.
– Bem, não íamos ficar paradinhos, não é? – volvo eu, recusando-me
mais uma vez a responder à provocação. – A ordem era pormo-nos
rapidamente a mexer. Deixá-los encarregarem-se. Porque é que me está a
perguntar tudo isso, vamos lá a saber?
– Em parte para me familiarizar consigo. E em parte porque estou a
perguntar a mim mesmo porque me intriga que você se lembre tão bem da
Navalha quando não se lembra de coisíssima nenhuma da Bambúrrio.
Laura de novo:
– Quando diz deixá-los encarregarem-se, presumo que significa deixar
os agentes entregues à sua sorte?
– Se quiser expressá-lo assim, Laura.
– Que vinha a ser o quê? A sorte deles. Ou já se esqueceu?
– Morriam-nos.
– Morriam literalmente?
– Alguns eram apanhados assim que desembarcavam. Outros, um par de
dias mais tarde. Alguns eram virados e trabalhavam contra nós e eram
apenas executados mais tarde – replico eu, ouvindo a raiva crescer-me na
voz e não desejando especialmente travá-la.
– Então quem é que responsabilizamos por isso, Pete? – É ainda Laura.
– Por quê?
– Pelas mortes.
Uma pequena explosão não faz mal nenhum.
– O estupor do Bill Haydon, o nosso traidor interno, quem é que você
pensa? Os pobres diabos foram denunciados antes de sairmos sequer da
costa alemã. Pelo nosso querido Presidente da Conjunta de Coordenação,
o mesmo organismo que tinha planeado a operação, para começar!
Bunny baixa a cabeça e consulta qualquer coisa abaixo do parapeito.
Laura olha primeiro para mim e depois para as próprias mãos, que prefere.
Unhas curtas como as de um rapaz, bem escaroladas.
– Peter – é a vez de Bunny, agora a disparar de rajada, em lugar de tiros
simples. – Estou bastante preocupado, como chefe da Assessoria Jurídica
do Serviço (não como seu advogado, repito), com certos aspetos do seu
passado. Quer isto dizer que por obra de um advogado habilidoso (se
alguma vez o Parlamento se retirasse e deixasse o caminho livre aos
tribunais, secretos ou não, Deus nos defenda), podia a certa altura criar-se
à sua volta a impressão de que, no decurso da sua carreira, você esteve
ligado a um número exorbitante de mortes e foi insensível em relação a
elas. Que foi indigitado, digamos que pelo impecável George Smiley, para
operações encobertas onde a morte de pessoas inocentes foi considerada
um desfecho aceitável, necessário, até. Mesmo, quem sabe, desejado.
– Desfecho desejado? Morte? De que é que você está para aí a falar?
– Bambúrrio – diz pacientemente Bunny.

2 Expressão pejorativa utilizada para designar um pretenso novo tipo de votante conservador comum
em Londres e no Sueste de Inglaterra no final da década de 1980, caracterizado como um jovem
empresário agressivo que subiu a pulso durante o Thatcherismo e faz alarde do seu novo estatuto
social. (N. do T.)
3

– Peter?
– Bunny.
Laura adotou um silêncio reprovador.
– Podemos voltar por momentos a 1959, quando, segundo creio, a
Operação Navalha foi posta na prateleira?
– Lamento, mas não sou brilhante em datas, Bunny.
– Posta na prateleira pela Sede com o fundamento de que a operação se
tinha mostrado improdutiva e dispendiosa em termos financeiros e de
vidas. Você e o Alec Leamas, em contrapartida, desconfiaram que havia
trabalho sujo na frente doméstica.
– A Conjunta de Coordenação apregoava que era uma cagada. O Alec
apregoava que era uma conspiração. Fosse qual fosse a parte da costa em
que desembarcássemos, a oposição antecipava-se-nos sempre. Ligações
rádio comprometidas. Tinha de ser alguém de dentro. Era essa a opinião
do Alec e eu, vendo as coisas de baixo, tendia a partilhá-la.
– Portanto resolveram ambos fazer uma démarche3 junto do Smiley.
Provavelmente consideravam o próprio Smiley fora de questão como
potencial traidor.
– A Navalha era uma operação da Conjunta. Sob o comando do Bill
Haydon. Era o Haydon e a seguir o Alleline, o Bland e o Esterhase. Os
rapazes do Bill, como nós lhes chamávamos. O George não estava nem
pouco mais ou menos perto.
– E a Conjunta e as Encobertas passaram a vias de facto?
– A Conjunta estava continuamente a conspirar para ficar com as
Encobertas sob a sua alçada. O George via isso como um açambarcamento
de poder e resistia. Tenazmente.
– Onde estava o nosso galhardo Chefe do Serviço em tudo isto? O
Controlo, como temos de lhe chamar.
– A pôr as Encobertas e a Conjunta uma contra a outra. Dividir para
reinar, como de costume.
– Não me engano ao pensar que havia questões pessoais entre o Smiley
e o Haydon?
– Pode ser que sim. Dizia-se à boca pequena que o Bill tinha tido uma
aventura com a Ann, a mulher do George. É o género de jogada que se
esperaria do Bill. Era um sacana dum espertalhão.
– O Smiley falava-lhe da sua vida privada?
– Nem lhe passava pela cabeça. Não se fala assim com um subalterno.
Bunny fica a pensar naquilo, não acredita, parece querer levar o assunto
por diante e muda de ideias.
– Portanto, com a extinção da Operação Navalha, você e o Leamas
transmitem as vossas preocupações ao Smiley. Cara a cara. Os três. Apesar
da vossa posição subalterna.
– O Alec pediu-me que fosse com ele. Não confiava em si próprio.
– Porquê?
– O Alec excitava-se com demasiada facilidade.
– Onde é que se realizou esse encontro à trois4?
– Por que raio é que isso há de ter importância?
– Porque eu estou a imaginar um refúgio seguro. Um sítio de que você
não me falou, mas a seu tempo há de falar. Achei que esta podia ser a
altura para perguntar.
Eu tinha-me deixado embalar pela ideia de que, com toda esta
tagarelice, talvez estivéssemos a derivar para águas menos perigosas.
– Podíamos ter usado uma casa segura do Circus, mas as casas seguras
eram rotineiramente mantidas sob escuta pela Conjunta. Podíamos ter
usado a casa do George na Bywater Street, mas a Ann estava a morar lá.
Havia uma espécie de entendimento entre todos de que não lhe deviam ser
dadas oportunidades de coisas que não pudesse controlar.
– Ela iria a correr para o Haydon?
– Não foi isso que eu disse. Havia uma sensação geral. Nada mais. Quer
que eu continue, ou não?
– Muito, se não se importa.
– Fomos buscar o George a Bywater Street e levámo-lo a passear pelo
South Bank fora para lhe fazer bem à saúde. Era uma tarde de verão. Ele
estava sempre a queixar-se de que não fazia suficiente exercício.
– E foi desse passeio vespertino à beira-rio que a Operação Bambúrrio
nasceu?
– Oh, por amor de Deus! Veja se cresce!
– Ah, eu já cresci, não se preocupe. E você está a ficar mais novo a cada
minuto que passa. Como correu a conversa? Sou todo ouvidos.
– Falámos de traições. Em termos gerais, não em pormenor, não era
caso disso. Quem quer que fosse membro atual ou recente da Conjunta era
por definição suspeito. Portanto havia cinquenta, sessenta pessoas, todas
elas potenciais traidores internos. Falámos sobre quem tinha o grau de
credenciação indicado para denunciar a Navalha, mas sabíamos que, com
Bill a chefiar a Conjunta, o Percy Alleline a comer-lhe à mão, e o Bland e
o Esterhase a participarem na coisa de qualquer maneira que pudessem,
tudo o que qualquer traidor tinha a fazer era aparecer nas caóticas sessões
de planeamento da Conjunta, ou ficar no bar dos funcionários superiores a
ouvir o Percy Alleline perorar. O Bill dizia sempre que a
compartimentação era uma maçada, o melhor era dar a saber tudo a toda a
gente. Isso dava-lhe toda a cobertura de que precisava.
– Como é que o Smiley reagiu à vossa démarche?
– Pensou maduramente e depois voltou a falar connosco. O que foi o
máximo que alguém conseguiu alguma vez do George. Olhem, acho que
vou tomar o café que vocês me ofereceram, se não se importam. Simples.
Sem açúcar.
Espreguicei-me, abanei a cabeça e bocejei. Já sou uma pessoa de idade,
por amor de Deus. Mas Bunny não ia na conversa e Laura já tinha
desistido há muito de mim. Estavam a olhar-me como um par de pessoas
que estivessem fartas de mim, e o café não constava da ementa.
*

Bunny tinha afivelado o seu rosto jurídico. Já não semicerrava os olhos.


Já não levantava a voz para um velhote de compreensão lenta que não
ouve lá muito bem.
– Quero voltar àquilo por onde começámos… Tudo bem, pela parte que
lhe toca? Você e o Estado de direito. O Serviço e o Estado de direito. Está
a prestar bem atenção?
– Suponho que sim.
– Eu referi-lhe o insaciável interesse público britânico pelo crime
histórico. Uma coisa que não está de maneira nenhuma ausente nos nossos
galhardos parlamentares.
– Referiu? Provavelmente.
– Ou nos tribunais. O jogo de responsabilização histórica que é a
coqueluche atual. O nosso novo desporto nacional. A irrepreensível
geração de hoje contra a sua, culpada. Quem expiará os pecados dos
nossos pais, ainda que à época não fossem pecados? Mas você não é pai,
pois não? Se bem que o seu processo dê a entender que devia estar cheio
de netos.
– Julgava ter-lhe ouvido dizer que o meu processo tinha sido truncado.
Agora está a dizer-me que não foi?
– Estou a tentar interpretar as suas emoções. Não consigo. Ou não as
tem, ou tem demasiadas. Você encara com ligeireza a morte da Liz Gold.
Porquê? Encara com ligeireza a morte do Alec Leamas. Finge ter uma
amnésia total acerca da Bambúrrio, quando nós sabemos perfeitamente
que tinha credenciação Bambúrrio. Significativamente, o seu falecido
amigo Alec Leamas não tinha essa credenciação, pese o facto de ter
morrido a trabalhar numa operação para a qual não estava credenciado.
Não lhe estou a pedir que interrompa, portanto queira abster-se de o fazer.
No entanto – continuou, perdoando-me a má educação – começo a
discernir os contornos de um acordo entre nós. Você reconheceu que
Bambúrrio lhe podia dizer muito vagamente qualquer coisa.
Possivelmente um exercício de treino, disse você benevolente e
idiotamente. Então que me diz a isto? A troco de maior transparência pela
nossa parte, poderá essa qualquer coisa tornar-se um pouco mais nítida
pela sua?
Eu reflito, abano a cabeça e tento captar essa qualquer coisa vaga. Tenho
a sensação de combater até ao último homem, e o último homem sou eu.
– Tanto quanto julgo recordar vagamente, Bunny – admito, indicando
uma pequena mudança de direção a seu favor –, Bambúrrio, se é que me
vem de todo à memória, não era uma operação, era uma fonte. Sem
préstimo. Acho que é nisso que temos estado a laborar num mal-entendido
– esperando alguma forma de alívio do outro lado da mesa e não o
obtendo –, uma fonte potencial que se estampou em cheio na primeira
barreira. E rápida e muito sensatamente, levou com os pés. Foi enfichada e
esquecida. – E continuo, lançado: – A fonte Bambúrrio era uma relíquia
do passado do George. Outro caso histórico, se quiser – um aceno de
cabeça deferente para Laura –, um professor alemão oriental de Literatura
Barroca da Universidade de Weimar. Um amigalhaço do George dos
tempos da guerra que tinha feito umas coisas aqui e além para nós.
Contactou com o George por intermédio dum académico sueco qualquer,
lá para 59, por aí – manter as coisas a correr, mantê-las imprecisas, uma
regra de ouro. – O Profe, como nós lhe chamávamos, afirmava ter notícias
escaldantes sobre um pacto supersecreto que estava a ser cozinhado entre
as duas metades da Alemanha e o Kremlin. Dizia que tinha sabido de tudo
através de um amigo que pensava como ele que estava na administração
da Alemanha de Leste. – Nesta altura já tenho tudo na ponta da língua,
exatamente como nos velhos tempos. – As duas metades da Alemanha
reunir-se-iam com a condição de se manterem neutrais e desarmadas. Por
outras palavras, exatamente aquilo que o Ocidente não queria: um súbito
vazio de poder no centro da Europa. Se o Circus conseguisse trazer o
Profe para o Ocidente, ele dir-nos-ia tudo tintim por tintim.
Um sorriso pesaroso, uma abanadela da idosa cabeça branca. E
nenhuma reação do lado de lá do grande fosso.
– Acontece que tudo o que o Profe queria para ele era uma cátedra em
Oxford, um emprego vitalício, o grau de cavaleiro e tomar chá com a
rainha – risadinha abafada. – E claro que ele tinha inventado tudo aquilo.
Puras balelas do princípio ao fim. Caso encerrado – concluí, sentindo que
era mesmo assim um trabalho bem feito, e que Smiley, onde quer que
estivesse, havia de aplaudir em silêncio.
Mas Bunny não estava a aplaudir. Nem tão-pouco Laura. Bunny parecia
fingidamente preocupado e Laura simplesmente incrédula.
– É que o problema, sabe, Peter – explicou Bunny, decorrido um pedaço
–, é que aquilo que você acaba de nos impingir é exatamente a mesma
estafada aldrabice que encontramos nos falsos ficheiros sobre Bambúrrio
que estão no velho arquivo central. Tenho ou não tenho razão, Laura?
Era evidente que tinha, porque ela interveio no momento certo.
– Praticamente palavra por palavra, Bunny. Cozinhada com o único
propósito de despistar qualquer investigador abelhudo. Nunca existiu esse
professor e a história é uma invenção completa do princípio ao fim. E
sempre direi que muito bem: se Bambúrrio tinha de ser protegida dos
olhos dos Haydons deste mundo, um falso ficheiro como cortina de fumo
no arquivo central faz sentido.
– O que não faz sentido, no entanto, Peter, é que você se ponha para
aqui, com a sua venerável idade, a impingir-nos as mesmas carradas de
desinformação que você e o George Smiley e o resto das Encobertas
deitavam cá para fora há uma geração – disse Bunny, exibindo um
semicerrar de olhos para parecer amistoso.
– Encontrámos os antigos relatórios financeiros do reinado do Controlo,
percebe, Peter? – explicou Laura prestavelmente, enquanto eu estou ainda
a ponderar a minha resposta. – Para o seu fundo especial. É a fatia do voto
secreto que o Controlo obtém para o seu fundo de maneio pessoal, mas
mesmo assim tem de ser justificado até ao último centavo, não é verdade,
Peter? – como quem se dirigisse a uma criança. – Entregue em mão pelo
próprio ao seu aliado de confiança das Finanças. Oliver Lacon, era como
ele se chamava, mais tarde Sir Oliver e hoje o falecido Lorde Lacon de
Ascot West…
– Importam-se de me dizer o que tem tudo isso que ver comigo?
– Tudo, na verdade – respondeu calmamente Laura. – Nos seus
relatórios financeiros às Finanças, de que só Lacon tomava conhecimento,
o Controlo fornece os nomes de dois funcionários do Circus que, se
preciso for, farão uma revelação completa e franca dos custos inerentes a
uma certa Operação Bambúrrio. Isto no caso de a despesa extra ser
alguma vez posta em causa pela posteridade. O Controlo tinha sólidos
princípios nesse campo, se bem que noutras coisas deixasse a desejar. O
Nome Número Um era George Smiley. O Nome Número Dois era Peter
Guillam. Você.
Durante um pedaço Bunny deu a impressão de não ter ouvido nada
desta troca de palavras. Estava novamente de cabeça baixa, com os olhos
abaixo do parapeito, e o que quer que estivesse a ler exigia-lhe toda a
atenção. Por fim voltou à superfície.
– Fale-lhe do apartamento seguro da Bambúrrio que desencantou,
Laura. O suspeito abrigo das Encobertas onde o Peter enfiou todos os
ficheiros que roubou – sugeriu, num tom que dava a entender que estava
ocupado com outros assuntos.
– Ah, sim, há o tal apartamento seguro que vem referido nos relatórios,
como diz o Bunny – explicou obsequiosamente Laura. – E além disso uma
governanta do apartamento seguro, para mais – indignadamente – e
também um misterioso cavalheiro chamado Mendel, que nem sequer
consta dos livros do Serviço mas foi contratado pelas Encobertas
exclusivamente a título de agente para a Bambúrrio. Duzentas libras por
mês depositadas na sua conta-poupança dos Correios de Weybridge, mais
deslocações e despesas no valor de mais duzentas, justificáveis, saídas de
uma conta de um cliente não identificado gerida por uma firma de
advogados finaça da City. E um tal George Smiley com uma procuração
válida para acesso à conta na sua totalidade.
– E quem vem a ser esse Mendel? – perguntou Bunny.
– Um funcionário da polícia reformado, do Special Branch5 – respondi
eu, já em piloto automático. – Nome de batismo Oliver. Não confundir
com o Oliver Lacon.
– Adquirido como e onde?
– O George e o Mendel conheciam-se há muito tempo. O George tinha
trabalhado com ele num caso antigo. Gostava da maneira de ser dele.
Gostava do facto de ele não ser do Circus. A minha lufada de ar puro, era
como ele lhe chamava.
Bunny estava subitamente exausto por toda a discussão. Tinha-se
deixado cair para trás na cadeira e estava a rodar os pulsos, como quem
desentorpece o corpo num voo prolongado.
– Então vamos lá a ser realistas, valeu? – sugeriu ele, com um bocejo
implícito. – O fundo especial do Controlo é neste preciso ponto ou
momento no tempo a única e exclusiva prova credível que nos
proporciona: primeiro, uma via para a condução e propósito da Operação
Bambúrrio, e, segundo, um meio para nos defendermos em qualquer
frívolo processo civil ou ação privada interposta contra este serviço, e
contra si, Peter Guillam, pessoalmente. Por um tal Christoph Leamas,
único herdeiro do falecido Alec, e uma tal Karen Gold, solteirona, filha
única da falecida Elizabeth ou Liz. Ouviu alguma coisa disto? Ouviu. Não
me diga que finalmente o surpreendemos.
Ainda afundado na cadeira, emitiu um abafado «meu Deus», enquanto
esperava pela minha reação. E provavelmente ela levou muito tempo a
ocorrer, porque também tenho a recordação de o ouvir a berrar-me um
imperioso: «Então?»
*
– A Liz Gold tinha uma filha? – ouço-me perguntar.
– Uma versão refilona dela própria, pela amostra. Tinha acabado de
fazer quinze anos quando foi emprenhada por um labrego qualquer na
escola secundária em que andava. Por insistência dos pais deu a bebé para
adoção. Houve alguém que a batizou Karen. Ou talvez não a batizasse. É
judia. Ao atingir a idade adulta, a dita Karen exerceu o seu direito legal de
conhecer a identidade da mãe biológica e manifestou uma compreensível
curiosidade acerca do local e circunstâncias da sua morte.
Fez uma pausa para o caso de eu ter alguma pergunta a fazer.
Tardiamente, eu tinha: onde diabo tinham eles ido desencantar os nossos
nomes? Ele ignorou-a.
– A Karen foi muito incentivada na sua busca da verdade e reconciliação
pelo Christoph, o filho do Alec, que desde a queda do Muro, sem que ela o
soubesse, se tinha esfarrapado para descobrir como e porquê o pai
morrera… Não, devo dizer, com a ajuda entusiástica deste Serviço, que se
esforçou ao máximo para lhe colocar no caminho todo o raio de
obstáculos que conseguimos arranjar, e mais alguns. Infelizmente, os
nossos melhores esforços revelaram-se contraproducentes, muito embora
o referido Christoph Leamas tenha uma ficha de todo o tamanho na polícia
alemã.
Outra pausa. E continuava a não haver perguntas da minha parte.
– Agora os dois queixosos aliaram-se. Convenceram-se, não sem razão,
de que os respetivos pais morreram por causa daquilo que parece ter sido
uma descomunal cagada deste Serviço, e sua e do George Smiley
pessoalmente. Estão a diligenciar para que haja uma divulgação integral,
indemnizações punitivas por perdas e danos e um pedido de desculpas
público que mencione os nomes. O seu, entre outros. Era do seu
conhecimento que o Alec Leamas tinha gerado um filho?
– Era. Onde está o Smiley? Porque não está ele aqui, em meu lugar?
– Então sabe por acaso quem foi a feliz mãe?
– Uma alemã que ele conheceu durante a guerra quando estava a
trabalhar atrás das linhas. Mais tarde casou-se com um advogado de
Düsseldorf chamado Eberhardt. O Eberhardt adotou o rapaz. O nome dele
não é Leamas, é Eberhardt. Perguntei-lhe onde está o George.
– Já lá vamos. E obrigado pela sua excelente capacidade de recordar.
Havia outras pessoas ao corrente da existência do rapaz? Outros colegas
do seu amigo Leamas? Nós havíamos de saber, mas os ficheiros dele
foram roubados, compreende? – E, já farto de esperar pela minha resposta:
– Era ou não era do conhecimento geral deste Serviço que o Alec Leamas
tinha gerado um bastardo alemão chamado Christoph, residente em
Düsseldorf? Sim ou não?
– Não.
– Como é que não, porra?
– O Alec não falava muito de si próprio.
– Exceto consigo, aparentemente. Conheceu-o?
– A quem?
– Ao Christoph. Não é ao Alec. Ao Christoph. Acho que você está outra
vez a ser deliberadamente obtuso.
– Não estou nada, e a resposta é não, não conheci o Christoph Leamas –
retorqui; porque havia eu de estragá-lo com mimos dizendo-lhe a verdade?
E, enquanto ele ainda está a digerir isto: – Perguntei-lhe onde está o
Smiley.
– E eu ignorei a pergunta, como terá porventura reparado.
Registou-se uma pausa enquanto tentávamos ambos recuperar o
autodomínio e Laura olhava taciturnamente pela janela.
– O Christoph, como podemos chamar-lhe – volveu Bunny, num tom
letárgico –, não deixa de ter os seus talentos, Peter, por muito que seja um
criminoso ou semicriminoso. Talvez os genes ajudem. Depois de ter
confirmado que o pai natural morreu no Muro de Berlim do lado oriental,
conseguiu ter acesso, por meios que não são do nosso conhecimento, mas
respeitamos, a um esconderijo de arquivos supostamente secretos da Stasi
e sacou de lá três nomes significativos. O seu, o da falecida Elizabeth
Gold e o do George Smiley. Daí a semanas estava na pista da Elizabeth e a
partir daí, através do registo civil, localizou a filha. Combinou um
encontro. O improvável par estabeleceu laços afetivos; até que ponto não
nos cabe bisbilhotar. Juntos consultaram uma daquelas advogadas de
direitos civis admiravelmente nobres, de sandálias que deixam os dedos
dos pés à mostra, que são a cruz deste Serviço. Nós, em resposta, estamos
a pensar oferecer aos queixosos uma fortuna do erário público a troco do
seu silêncio, mas temos plena consciência de que ao fazê-lo lhes
confirmamos que a causa deles tem pernas para andar, e assim os
encorajamos a tornarem-se ainda mais estridentes do que já são. «Vão-se
lixar mais o vosso dinheiro, malvados. Há que deixar a história falar. O
cancro tem de ser extirpado. Têm de rolar cabeças.» E a sua é uma delas,
receio bem.
– E a do George também, provavelmente.
– Estamos portanto perante a grotesca premissa shakespeariana em que
os fantasmas de duas vítimas de uma satânica intriga do Circus se
levantam para nos acusar sob a forma da sua descendência. Até agora
conseguimos conter os meios de comunicação social dando a entender (o
que não é inteiramente verdade, mas quantas vezes isso não aconteceu já?)
que, no caso de o Parlamento sair de cena para dar lugar ao processo
judicial, a causa será julgada no decente isolamento de um tribunal
secreto, e só nós decidiremos quem tem direito a bilhete. Os queixosos,
em resposta, incitados como sempre pelos seus muitíssimo incomodativos
advogados, dizem: «Que se lixe isso, queremos abertura, queremos
divulgação integral.» Você perguntou, com uma certa inocência, onde terá
a Stasi ido desencantar os vossos nomes. Ora essa! Ao Centro de
Moscovo, claro, que os passou diligentemente à Stasi. E onde foi o Centro
de Moscovo desencantar os vossos nomes? A este Serviço, claro, graças
uma vez mais ao sempre diligente Bill Haydon, à data muito à solta e
destinado a assim se manter por mais seis anos, até que S. George
apareceu no seu cavalo branco e o desmascarou. Continua em contacto?
– Com o George?
– Com o George.
– Não. Onde está ele?
– E não o teve nestes últimos anos?
– Não.
– Então a última vez que comunicou com ele foi quando?
– Há oito anos. Dez.
– Descreva-a.
– Eu estava em Londres. Fui procurá-lo.
– Onde?
– Em Bywater Street.
– Como estava ele?
– Bem, obrigado.
– Procuramo-lo aqui, procuramo-lo ali.6 E a caprichosa Lady Ann?
Também não tem contacto com ela? Contacto estritamente no sentido
metafórico, claro.
– Não. E também dispenso a insinuação.
– Bem, preciso do seu passaporte.
– Para quê?
– O mesmo que mostrou na receção lá em baixo, se faz favor. O seu
passaporte do Reino Unido – mão estendida por cima do parapeito.
– Por que carga de água?
Fosse como fosse, dei-lho. Que outra coisa havia de fazer? Lutar com
ele para o conservar?
– São todos os que tem? – folheando pensativamente as páginas. – No
seu tempo teve montes de passaportes, de várias formas. Onde estão todos
eles agora?
– Entreguei-os. Triturados.
– Você tem dupla nacionalidade. Onde está o seu passaporte francês?
– O meu pai era britânico, eu prestei serviço como britânico, ser
britânico chega-me bem. Agora pode devolver-me o passaporte, se faz
favor?
Mas ele já tinha desaparecido por baixo do parapeito.
– Ora bem, Laura. Você outra vez – disse Bunny, redescobrindo-a. –
Podemos ir um pouco mais fundo em relação a esse apartamento seguro
da Bambúrrio, se faz favor?
Acabou-se. Combati até à última mentira. Estou morto e esgotaram-se-
me as munições.
*

Laura volta a examinar papéis abaixo do nível do meu olhar e eu faço os


possíveis por ignorar as bagas de suor que me escorrem pela caixa
torácica.
– Pois bem, sim, apartamento seguro e bem seguro, Bunny – concorda
ela, ao mesmo tempo que a cabeça se ergue de novo, deleitadamente. –
Um apartamento seguro específico para uso exclusivo da Bambúrrio,
sendo esse praticamente todo o conteúdo funcional. Devendo situar-se
dentro dos limites do centro de Londres, com uma declaração por
acréscimo de que o referido apartamento será designado para efeitos de
camuflagem como os Estábulos e terá uma governanta permanente a ser
nomeada ao critério do Smiley. E é praticamente tudo o que temos.
– Já lhe diz qualquer coisa, afinal? – pergunta Bunny.
Eles esperam. Eu também. Laura retoma a sua conversa particular com
Bunny.
– É como se o Controlo não quisesse sequer que o Lacon soubesse onde
a casa ficava, nem quem tomava conta dela, Bunny. O que, face à posição
de poder que o Lacon detinha nas Finanças e o seu vasto conhecimento de
outras áreas de operação do Circus, me parece um tudo-nada paranoico da
parte do Controlo, mas quem somos nós para criticar?
– Quem somos, realmente? Estábulos como em… limpá-los? – inquire
Bunny, cheio de curiosidade.
– Presumo que sim – responde ela.
– Foi escolha do Smiley?
– Pergunte ao Pete – sugere ela, prestável.
Mas Pete, tratamento que eu detesto, ficou ainda mais surdo do que
finge ser.
– E a boa notícia é que – Bunny, dirigindo-se de novo a Laura – ainda
existe um apartamento seguro da Bambúrrio! Porque, quer
propositadamente, quer por simples desleixo, e desconfio que seja a
segunda hipótese, os Estábulos mantiveram-se no fundo privativo de nada
menos que quatro sucessivos Controlos. E ainda lá estão. E aqui o nosso
andar de cima nem sequer sabe que eles existem, quanto mais onde ficam.
Mas o mais engraçado é que, nestes tempos de austeridade, a sua
existência não foi questionada pelas nossas bem-amadas Finanças. Deram
sempre o seu aval, abençoadas sejam, ano após ano. – Adota um ceceio
homofóbico. – É demasiado secreto para perguntar, queridos. Assinem na
linha a ponteado, e nem uma palavra à Mamã. É arrendado, e não fazemos
a mínima ideia de quando o arrendamento expira, em nome de quem está
ou que generosa besta-quadrada paga as contas. – E virando-se para mim,
com o mesmo tom desabrido: – Peter. Pierre. Pete. Está muito calado.
Esclareça-nos, por favor. Quem vem a ser essa generosa besta-quadrada?
Quando estamos encurralados, quando já tentámos todos os truques que
temos em carteira e eles não resultaram, não restam muitas maneiras de
fugir com o rabo à seringa. Podemos forjar a história dentro da história.
Eu já o tinha feito e não resultara. Podemos tentar uma revelação parcial e
esperar que a coisa fique por aí. Eu também já o fizera, mas a coisa não
ficara por ali. Assim sendo, aceitamos que chegámos ao fim da estrada e a
única opção que nos resta é sermos ousados, dizermos a verdade, ou o
mínimo dela com que nos possamos safar, e ganharmos uns quantos
pontos por sermos bons rapazes; nenhum destes me parecia um desfecho
muito provável, mas podia pelo menos conseguir que me fosse devolvido
o passaporte.
*

– O George tinha um advogado ou advogada cooperante – disse eu, ao


mesmo tempo que o pecaminoso alívio da confissão me invadia contra
vontade. – Daqueles a que vocês chamam finaços. Com uma relação de
parentesco afastado com Ann. Ele ou ela concordou em servir de
intermediário ou intermediária. Não é um apartamento seguro, é uma casa
segura de três andares, e foi arrendada por uma sociedade offshore
registada nas Antilhas Holandesas.
– Falou como um herói – a aprovação de Bunny –, e a governanta da
casa segura?
– Millie McCraig. Uma antiga agente do George. Já antes tinha tomado
conta de casas para ele. Tinha todas as competências. Quando se iniciou a
Bambúrrio, estava a tomar conta de uma casa segura do Circus para a
Conjunta na New Forest. Um sítio chamado Campo 4. O George disse-lhe
para se aposentar e a seguir concorrer às Encobertas. Transferiu-a para o
fundo especial e instalou-a nos Estábulos.
– Que ficam onde, pode-se saber? – Ainda Bunny.
Nesta conformidade, disse-lhe também isso, sem omitir o número de
telefone dos Estábulos, que me saiu pela boca fora tão facilmente como se
tivesse sempre estado a esforçar-se por sair. Depois houve uma cena de
teatro quando Bunny e Laura abriram uma ravina pelo meio dos ficheiros
que estavam na mesa entre nós, e Bunny espetou no intervalo um telefone
de base larga, de uma complexidade que me ultrapassava por completo e,
depois de ter premido uma sucessão de teclas a uma velocidade
vertiginosa, estendeu-me o auscultador.
A um décimo da velocidade de Bunny, eu teclei o número de telefone
dos Estábulos e fiquei espantado ao ouvir o sinal de chamada a estrondear
pela sala inteira, o que não era apenas grandemente inseguro para o meu
ouvido culposo, como também um ato de franca traição, como se eu
tivesse sido denunciado, capturado e virado num único passo. O telefone
vociferava o seu sinal de chamada. Esperámos. Continuava a não haver
ninguém a atender. E eu estava a pensar: ou a Millie está na igreja, porque
era uma coisa que ela se fartava de fazer, ou está a andar de bicicleta, ou é
muito menos ágil que dantes, como todos nós. Mas o mais provável é que
esteja morta e enterrada porque, por mais bonita e inacessível que fosse,
tinha uns bons cinco anos a mais que eu.
O sinal de chamada parou. Houve um sussurro e eu pressupus que a
chamada tivesse ido para o atendedor. Nessa altura, para meu espanto e
incredulidade, ouvi a voz de Millie, a mesma voz, o mesmo tom cortante
de puritana reprovação escocesa que eu imitava para fazer rir George
quando ele se sentia deprimido:
– Sim? Alô? – E, quando eu hesitei: – Quem é que fala, se faz favor? –
indignadamente, como se fosse meia-noite, e não sete da tarde.
– Sou eu, Peter Weston, Millie – disse eu. E, por causa das dúvidas,
acrescentei o pseudónimo de Smiley: – Amigo de Mr. Barraclough, não
sei se se lembra.
Contava, tinha até essa esperança, que por uma vez na vida Millie
McCraig precisasse de tempo para recuperar o domínio de si mesma, mas
ela ripostou tão bruscamente que fui eu, e não ela, a ficar desconcertado.
– Mr. Weston?
– O próprio, Millie, não é a sombra dele.
– Queira fazer o favor de se identificar, Mr. Weston.
Identificar-me? Não tinha acabado de lhe dar dois pseudónimos? Nessa
altura percebi: ela quer o meu identificador, que era uma forma de obscura
comunicação cifrada utilizada mais frequentemente no sistema telefónico
de Moscovo que no de Londres, mas Smiley, nos nossos tempos mais
sombrios, tinha feito questão disso. Por conseguinte peguei num lápis de
madeira castanho que estava poisado na secretária à minha frente e,
sentindo-me um perfeito idiota, curvei-me sobre o telefone
ultrassofisticado de Bunny e vibrei junto do altifalante o meu código
identificador com mil anos de idade, fazendo votos por que ele lograsse o
mesmo efeito que se eu o tivesse vibrado no bocal: três pancadinhas,
pausa, uma pancadinha, pausa, duas pancadinhas. E logrou-o
manifestamente, porque, mal vibrei a última pancadinha, Millie voltou,
toda meiga e prestável, dizendo que tinha muito prazer em voltar a ouvir a
minha voz passados todos estes anos, Mr. Weston, e que podia ela fazer
para me ser útil?
A isto podia eu ter respondido: Bem, já que pergunta, Millie, pode fazer
o favor de confirmar que estes acontecimentos se estão a dar no mundo
real e não em algum recanto sombrio do mundo médio reservado a espiões
insones de antigamente?

3 Em francês no original: diligência. (N. do T.)

4 Em francês no original: a três. (N. do T.)

5 Departamento da polícia britânica que trata de questões de segurança nacional. (N. do T.)

6 Trata-se do primeiro verso de uma quadra feita por Sir Percy Blackeney, no livro O Pimpinela
Escarlate, da Baronesa Orkzy. (N. do T.)
4

Ao chegar da Bretanha na manhã do dia anterior, tinha-me alojado num


hotel manhoso próximo da estação de Charing Cross e desembolsado
noventa libras adiantadas por um quarto do tamanho de um carro
funerário. De caminho, fiz uma visita de cortesia ao meu velho amigo e
antigo tipo Bernie Lavendar, Alfaiate de Homens do Corpo Diplomático,
cuja alfaiataria ficava situada numa minúscula semicave relativamente
próxima de Saville Row. Mas para Bernie o tamanho nunca tivera
importância. O que tinha importância para ele – e para o Circus – era ter
acesso aos gabinetes diplomáticos de Kensignton Palace Gardens e St.
John’s Wood e fazer alguma coisa pela Inglaterra, com um modesto
rendimento adicional isento de impostos.
Abraçámo-nos, corremos as persianas e trancámos a porta. Em honra
dos velhos tempos experimentei um par das suas peças por levantar:
casacos e fatos feitos para diplomatas estrangeiros que por razões
desconhecidas não tinham chegado a ir buscá-los. Finalmente, ainda no
espírito dos velhos tempos, confiei-lhe um envelope fechado para ele
meter no cofre até ao meu regresso. Continha o meu passaporte francês,
mas já contivera os planos para os desembarques do Dia D. Bernie não
podia tê-lo tratado com maior reverência.
Agora vim recolhê-lo.
– E como está Mr. Smiley? – pergunta ele, baixando a voz por uma
questão de reverência ou por um exagerado sentido de segurança. – Temos
tido notícias dele, Mister G?
Não. E Bernie? Infelizmente, Bernie também não, de maneira que nos
contentamos com uma risadinha sobre o hábito de George de desaparecer
durante longos períodos sem se explicar.
Cá por dentro, porém, eu não me ria. Seria possível que George
estivesse morto? E que Bunny soubesse que ele tinha morrido e não
dissesse nada? Mas nem mesmo George podia morrer em segredo. E Ann,
a sua sempre infiel esposa? Tinha-me chegado aos ouvidos, há uns
tempos, que, cansada das suas muitas aventuras, ela tinha abraçado uma
instituição de beneficência em voga. Porém, fosse lá saber-se se essa
ligação tinha durado mais do que as suas antecessoras.
Com o meu passaporte francês novamente no bolso, dirigi-me a
Tottenham Court Road e investi num par de telemóveis descartáveis com
dez libras de saldo de chamadas cada. E, pensando melhor, na garrafa de
uísque que acabara por não comprar no aeroporto de Rennes, o que
provavelmente explica o misericordioso facto de não ter memória da noite
que de alguma maneira passou.
Levantando-me ao alvorecer, caminhei durante uma hora sob a chuva
miúda e tomei um pequeno-almoço reles num bar de sanduíches. Só então,
com um sentimento de resignação matizado de incredulidade, consegui
reunir coragem para mandar parar um táxi preto e dar ao taxista a morada
que durante dois anos tinha sido o cenário de maior júbilo, tensão e
angústia humana do que qualquer outro lugar na minha vida.
*

Tal como o recordava, o n.o 13 de Disraeli Street, aliás os Estábulos, era


a última de uma fila de casas vitorianas em banda, escalavrada e por
restaurar, numa rua lateral de Bloomsbury. E, para meu espanto, é essa a
casa que neste momento se ergue diante de mim: inalterada, impenitente,
uma perene censura às suas vizinhas reluzentes e aperaltadas. São nove da
manhã, a hora combinada, mas a soleira da porta foi açambarcada por uma
mulher esbelta, de calças de ganga, ténis e blusão de couro, que fala
injuriosamente ao telemóvel. Estou prestes a iniciar outro circuito quando
me apercebo de que se trata de Laura-que-é-da-História, com uma
indumentária moderna.
– Dormiu bem, Pete?
– Como um anjo.
– Que campainha é que toco sem apanhar gangrena?
– Experimente a Ética.
Ética fora uma escolha pessoal de Smiley para o botão de campainha
menos atraente que conseguira imaginar. A porta da rua abriu-se e surgiu
na semiobscuridade o fantasma de Millie McCraig, com o cabelo, outrora
negro de azeviche, tão branco como o meu e o corpo de atleta curvado
pela idade, mas com o mesmo brilho fervoroso nos húmidos olhos azuis
ao permitir-me um beijo no ar junto de ambas as suas frugais faces
célticas.
Laura passou-nos velozmente adiante, entrando no vestíbulo. As duas
mulheres perfilaram-se uma defronte da outra como pugilistas antes do
combate, enquanto eu era assaltado por sentimentos tão tumultuosos de
reconhecimento e remorso, que o meu único desejo era escapulir-me de
novo para a rua, fechar a porta atrás de mim e fingir que nunca ali tinha
estado. O que via à minha volta teria suplantado os sonhos do arqueólogo
mais exigente: uma câmara mortuária escrupulosamente preservada, com
os selos intactos, dedicada à Operação Bambúrrio e a todos os que nela
tinham tomado parte, não faltando a totalidade dos artefactos originais,
desde o meu equipamento de entrega de pizas pendurado no seu cabide até
à bicicleta urbana de senhora de Millie McCraig, um modelo clássico
mesmo no seu tempo, com cesta de verga, campainha de dlim-dlim e
bagageira de napa, estacionada no respetivo suporte no corredor.
– Quererá dar uma vista de olhos à casa? – está Millie a perguntar a
Laura, tão indiferentemente como se estivesse a falar com uma potencial
compradora.
– Há uma porta das traseiras – diz Laura a Millie, mostrando uma planta
do edifício; e onde raio teria ela ido desencantar aquilo?
Estamos diante da porta envidraçada da cozinha. Abaixo de nós, um
jardim minúsculo e, ao meio, a horta de Millie. Fomos Oliver Mendel e eu
que lhe demos a primeira cavadela. A corda da roupa está vazia, mas
Millie estava à nossa espera. A casa de pássaros é a mesma. Mendel e eu
tínhamo-la improvisado juntos a altas horas da noite com pedaços de
madeira sobrantes. Mendel, sob a minha orientação ligeiramente
embriagada, embelezara-a com uma placa pirogravada a dizer: Nenhum
pássaro recusado. E ali estava ela, tão altiva e direita como no aniversário
que tinha comemorado. Um carreiro de pedra conduz, por entre os
canteiros de hortaliças, à cancela que por sua vez leva ao estacionamento
privado que dá para a rua lateral. Não havia casa segura sancionada por
George que estivesse completa sem uma entrada das traseiras.
– Alguma vez entra alguém por aqui? – pergunta Laura.
– O Controlo – replico eu, poupando a Millie a necessidade de
responder. – Não entrava pela frente nem que fosse para salvar a vida.
– E os restantes de vocês?
– Usávamos a porta da frente. Uma vez decidido pelo Controlo que a
entrada pelas traseiras era sua, tornou-se o seu elevador privado.
Sê generoso nas pequenas coisas, aconselho-me a mim próprio. Mantém
fechado à chave o resto que há na tua memória e deita a chave fora.
Segue-se no itinerário dela a escada de caracol de madeira, uma réplica
em miniatura de todas as sórdidas escadas do Circus. Estamos prestes a
subi-la quando, com o tilintar de um guizo, aparece um gato: um animal
grande, negro, de pelo comprido e ar maligno, com uma coleira vermelha.
Senta-se, boceja e põe-se a olhar para nós. Laura devolve-lhe o olhar e a
seguir vira-se para Millie.
– Esta também entra no orçamento?
– É um macho, e sou eu que o sustento, obrigada.
– Tem nome?
– Tem.
– Mas é classificado?
– É.
Com Laura na dianteira e o gato a seguir-nos cautelosamente, subimos
até ao meio patamar e detemo-nos diante da porta de baeta verde com a
fechadura de segredo que conduz à sala de cifra. Quando George ocupou a
casa, a porta era envidraçada, mas Ben, o funcionário da cifra, não
permitia que lhe observassem os dedos, e daí a baeta.
– Certo. Quem é que tem o segredo? – Laura, em modo de chefe de
escuteiros.
Dado que Millie nada diz, eu recito relutantemente o segredo: 21 10 05,
a data da batalha de Trafalgar.
– O Ben era da Marinha – explico, mas, se Laura percebe a referência,
não dá sinais disso.
Instalando-se na cadeira giratória, franze o cenho perante o conjunto de
botões e interruptores. Aciona um interruptor. Nada. Roda um botão.
Nada.
– A eletricidade ficou sempre desligada – murmura Millie para mim,
não para Laura.
Girando na cadeira de Ben, Laura espeta um dedo na direção de um
cofre de parede Chubb de cor verde.
– Certo. Aquela coisa tem chave?
Aqueles certos começam a bulir-me com os nervos. São como Pete. De
um molho delas à ilharga, Millie escolhe uma chave. A fechadura gira, a
porta do cofre abre-se, Laura espreita lá para dentro e, com um movimento
de ceifeira com o braço, espalha o conteúdo na esteira de coco: livros de
códigos ornados com Ultrassecreto e Acima, lápis, envelopes reforçados,
chaves de uso único desbotadas em embalagens de celofane de doze.
– Deixamos tudo como está, certo? – anuncia ela, voltando-se de novo
para nós. – Ninguém toca em nada em sítio nenhum. Percebido? Pete?
Millie?
Vai a meio caminho do segundo lanço de escadas quando Millie, com
um «Desculpe lá!», a faz parar de chofre.
– Será que é mesmo nos meus aposentos pessoais que se propõe entrar?
– E se for?
– Pode muito bem proceder a uma inspeção do meu apartamento e dos
meus pertences desde que eu receba um aviso por escrito com a devida
antecedência assinado pela entidade competente da Sede – pronuncia
Millie numa única frase sem modulações, que eu desconfio que tenha
ensaiado. – Entretanto, lamento o incómodo, mas peço-lhe que respeite a
minha privacidade como compete à minha idade e posição.
A isto Laura riposta com uma heresia a que nem sequer Oliver Mendel
se teria atrevido em dia sim:
– Porquê, Millie? Tem alguém lá escondido?
*

O gato classificado foi-se embora. Estamos na Sala do Meio, assim


chamada desde o dia em que Mendel e eu retirámos as velhas divisórias de
cartão prensado. Ao vê-la da rua, a única coisa que se distinguia era mais
uma sórdida janela do rés do chão com uma cortina de rede. No interior,
porém, não havia janela, porque numa abafada tarde de sábado a tínhamos
entijolado, condenando a sala à eterna escuridão a menos que se
acendessem os candeeiros de mesa de jogo com abajures verdes que
compráramos numa loja de Soho.
Duas volumosas secretárias vitorianas ocupavam o centro, uma de
Smiley e a outra – mas apenas ocasionalmente – do Controlo. A sua
origem tinha permanecido um mistério até a uma noite em que Smiley nos
revelou, bebendo um uísque escocês, que um primo de Ann estava a
vender um casarão em Devon a fim de pagar impostos de transmissão.
– Por tudo o que há de mais sagrado, o que vem a ser aquela coisa
horrorosa?
Os olhos de Laura iluminaram-se, coisa que não me surpreendeu, ao ver
o berrante mapa de parede de um metro por sessenta centímetros
pendurado atrás da secretária do Controlo. Horrorosa? A meu ver, não.
Mas potencialmente fatal, isso sim. Quase sem dar por isso, peguei na
bengala de freixo poisada no espaldar da cadeira do Controlo e lancei-me
numa explicação destinada, não a esclarecer, mas a constituir uma
manobra de diversão.
– Esta secção aqui, Laura – agitando a bengala na direção de um
labirinto de linhas coloridas e nomes de código, a lembrar um desvairado
mapa do metropolitano de Londres –, é uma representação caseira da rede
do Circus na Europa de Leste, com o nome de código Primavera, tal como
era antes de a Operação Bambúrrio ser concebida. Aqui temos o grande
homem em pessoa, a fonte Primavera, inspirador, fundador, intermediário
e fulcro da rede, aqui as suas subfontes e aqui, por ordem descendente as
subfontes destas, conscientes ou não, acompanhadas de uma descrição
sucinta do seu produto, da sua cotação no mercado de Whitehall e da
nossa própria avaliação interna relativamente à fiabilidade das fontes e
subfontes numa escala de um a dez.
Dito isto, voltei a pôr a bengala na cadeira. Laura, porém, não se
mostrou tão desconcentrada ou confusa como eu esperaria. Estava a
examinar os nomes de código do mapa um a um, verificando-os. Atrás de
mim, Millie esgueira-se da sala.
– Ora bem, acontece que nós sabemos umas quantas coisas sobre a
Operação Primavera – observou Laura num tom superior. – Do ficheiro
desgarrado que você teve a gentileza de deixar no arquivo geral. Além de
um par de outras fontes nossas. – E, depois de deixar que isto produzisse o
seu efeito: – A que propósito é que toda a gente tem nomes de plantas de
jardim, não me diz?
– Ah, bom, isso é do tempo em que usávamos temas, Laura – respondi
eu, mantendo o melhor que podia um tom condescendente. – Primavera,
portanto flores, e não o navio.7
Mas mais uma vez tinha-a perdido.
– Que raio querem dizer estas estrelas?
– São faíscas, Laura, não são estrelas. Faíscas figurativas. Nos casos em
que os agentes no terreno foram equipados com equipamentos de rádio.
Vermelho para os ativos e amarelo para os escamoteados.
– Escamoteados?
– Enterrados. Normalmente em oleados.
– Se eu escondo uma coisa, escondo-a, certo? – informa-me ela, ainda a
esquadrinhar os pseudónimos. – Não escamoteio. Eu não uso linguagem
de espiões e não sou um clube de rapazes. E o que vêm a ser estes sinais
mais? – espetando a ponta do dedo no balão à volta de uma subfonte e
mantendo-a lá.
– Na realidade não são sinais mais, Laura. São cruzes.
– Quer dizer que faziam jogo cruzado? Foram denunciados por fazer
jogo cruzado?
– Quero dizer que estão extintos.
– Como?
– Comprometidos. Reformados. Uma pipa de razões.
– O que é que aconteceu a este homem?
– Nome de código Violeta?
– Isso. O que é que aconteceu ao Violeta?
Estaria a apertar o cerco à minha pessoa? Começava a desconfiar que
sim.
– Desapareceu, julga-se que interrogado. Sediado em Berlim Leste de
1956 até 1961. Chefiava uma equipa de observadores de comboios. Está
tudo no balão – querendo com isto dizer: leia você mesma.
– E este sujeito? O Tulipa?
– Tulipa é uma mulher.
– E o cardinal?
Será que ela esteve todo este tempo à espera para a ponta do dedo
aterrar onde agora está?
– O cardinal, como você lhe chama, é um símbolo.
– Acho que até aí cheguei eu. De quê?
– A Tulipa era uma ortodoxa russa convertida, de modo que lhe
atribuíram uma cruz ortodoxa russa. – Mantenho a voz firme enquanto ela
continua.
– Quem?
– As mulheres. As duas secretárias principais que aqui trabalhavam.
– Todos os agentes que tinham uma religião recebiam uma cruz?
– A ortodoxia da Tulipa foi parte da motivação que a levou a trabalhar
para nós. A cruz assinalava isso.
– O que é que lhe aconteceu?
– Desapareceu dos nossos monitores, infelizmente.
– Vocês não tinham monitores.
– A nossa suposição foi que ela tinha decidido desistir. Há tipos que
fazem isso. Cortam o contacto e desaparecem.
– O verdadeiro nome dela era Gamp, não era? Como a personagem de
Dickens. Doris Gamp?
Isto que estou a sentir não é de modo nenhum uma vaga de náusea.
Aquilo não era nenhuma espécie de volta no estômago.
– Provavelmente. Gamp. Sim, acho que era. Admira-me que você saiba.
– Talvez você não tenha roubado suficientes ficheiros. Foi uma grande
perda?
– O quê?
– A decisão dela de desistir.
– Não sei bem se ela anunciou a decisão. Deixou de operar, apenas.
Mesmo assim, foi, com o correr do tempo foi mesmo uma perda. A Tulipa
era uma fonte importante. Substancial. Sim.
De mais? De menos? Demasiado frívolo? Ela está a pensar nisso.
Durante demasiado tempo.
– Julguei que o que lhe interessava era a Bambúrrio – recordo-lhe.
– Bem, estamos interessados em tudo. A Bambúrrio foi só uma
desculpa. Onde é que a Millie se meteu?
Millie? Ah, a Millie. Não é a Tulipa. É a Millie.
– Quando? – pergunto eu estupidamente.
– Agora mesmo. Onde é que ela foi?
– Para o apartamento dela lá em cima, provavelmente.
– Não se importa de a chamar, se faz favor? Ela detesta-me.
Quando abro a porta, porém, Millie está ali à espera com as suas chaves.
Passando por ela, Laura enfia pelo corredor a passos largos, com o mapa
na mão. Eu deixo-me ficar para trás.
– Onde está o George? – murmuro para Millie.
Ela abana a cabeça. Não sei? Ou não pergunte?
– Chaves, Millie?
Millie abre obedientemente as portas duplas da biblioteca. Laura dá um
passo em frente e a seguir dá dois passos à retaguarda, tipo comédia
cinematográfica, ao mesmo tempo que emite o obrigatório grito de
Porra!, tão estridente que deve ter acordado os mortos no Museu
Britânico. Incredulamente, avança para as fileiras de esfarrapados tomos
que atafulham as estantes até ao teto. Cautelosamente faz a sua primeira
escolha, o tomo número 18 de um conjunto incompleto de trinta volumes
da Enciclopédia Britânica, publicado em 1878. Abre-o, folheia com
descrença umas quantas páginas, deixa-o cair numa mesa lateral e
obsequia-se em seu lugar com Treks Through Araby and Beyond,
publicado em 1908, também ele parte de um conjunto incompleto, com o
preço, como inexplicavelmente recordo, de cinco xelins e seis dinheiros
por volume, uma libra pelo lote, depois de Mendel ter regateado com o
vendedor.
– Importa-se de me dizer quem é que lê esta porcaria? Ou lia? –
dirigindo-se de novo a mim.
– Quem quer que possuísse credenciação Bambúrrio e tivesse boas
razões para isso.
– O que é que isso quer dizer?
– Quer dizer – respondo eu, com a maior dignidade a que consigo fazer
apelo – que o George Smiley era de opinião que, não tendo nós sido
bafejados com uma fortaleza armada à beira do Tamisa, o encobrimento
natural era melhor do que a proteção física. E que, enquanto umas janelas
gradeadas e um cofre de aço funcionariam como um franco convite a
qualquer salteador a entrar por arrombamento, ainda estava por nascer o
ladrão cujo produto ideal fosse uma cabazada de…
– Mostre-me e acabou-se, valeu? O que quer que roubou. O que quer
que aqui esteja.
Colocando um escadote de biblioteca em frente de uma lareira cheia de
flores secas de Millie, eu pesco da prateleira superior um exemplar de A
Layman’s Guide to the Science of Phrenology, de Henry J. Ramken, MA
(Cantab.), e do buraco assim escavado uma pasta parda. Passando a pasta
a Laura, devolvo o Dr. Ramken à sua prateleira e desço a terra firme para
a descobrir empoleirada no braço de uma cadeira de biblioteca a escrutinar
a sua presa; e Millie desapareceu novamente de vista.
– Tenho aqui um Paul – diz Laura acusadoramente. – Quem vem a ser o
Paul?
Desta feita não sou tão bem-sucedido no controlo das minhas reações
tonais:
– Não vem a ser coisa nenhuma, Laura. Já morreu. Paul, pronunciado à
alemã, era um dos vários pseudónimos que o Alec Leamas usava em
Berlim para os seus tipos. – Tardiamente, consegui o tom despreocupado:
– Alternava. Não confiava grandemente no mundo. Bem, não confiava na
Conjunta de Coordenação, digamos.
Está interessada, mas não quer que eu saiba.
– E estes são todos os ficheiros, certo? A cambulhada toda. Tudo o que
você roubou está aqui, escondido nestes livros velhos? Sim?
Tenho o maior prazer em esclarecê-la:
– Tudo, nem pouco mais ou menos, Laura, lamento dizer-lhe. A política
do George era guardar o mínimo possível. Tudo aquilo de que se pudesse
prescindir era triturado. Triturávamos e a seguir queimávamos as tiras. Era
a lei do George.
– Onde está o triturador?
– Ali mesmo ao canto.
Tinha-lhe passado despercebido.
– Onde é que as queimavam?
– Naquela lareira.
– Guardavam certificados de destruição?
– Nessa altura teríamos de destruir os certificados de destruição, não
era?
Enquanto estou ainda a saborear a minha pequena vitória, o olhar dela
desvia-se para o canto mais escuro e mais distante da sala, onde estão
penduradas lado a lado duas compridas fotografias de homens de pé. E
desta vez não emite o grito de «Porra» nem qualquer outra exclamação,
antes avançando para elas a passo lento, como se receasse que elas
levantassem voo.
– E estas beldades?
– Josef Fiedler e Hans-Dieter Mundt. Respetivamente chefe e subchefe
da direção operacional da Stasi.
– Vamos ao da esquerda.
– É o Fiedler.
– Descrição?
– Judeu alemão, único filho sobrevivente de pais académicos que
morreram nos campos de concentração. Estudou Humanidades em
Moscovo e Leipzig. Ingressou tardiamente na Stasi. Assentou praça em
general e era esperto; não pode ver o homem que está à direita dele nem
pintado.
– O Mundt.
– Por eliminatórias, sim, o Mundt – concordo. – Primeiro nome Hans-
Dieter.
Hans-Dieter Mundt vestindo um fato de trespasse com todos os botões
apertados. Hans-Dieter Mundt com os seus braços de assassino apertados
contra as ilhargas e os polegares virados para baixo, fitando
desdenhosamente a câmara. Está a presenciar uma execução. A sua. A de
outra pessoa. Seja como for, a sua expressão nunca se alterará, o golpe de
navalha que lhe atravessa a parte lateral do rosto nunca há de sarar.
– Tem a sua marca, certo? O homem que o seu amigalhaço Alec Leamas
recebeu ordens para eliminar, não foi? Só que afinal foi o Mundt que
eliminou o Leamas. Certo? – Volta a Fiedler. – E o Fiedler era a sua
superfonte? Certo? O supremo voluntário secreto. O trânsfuga que vos
bateu à porta e nunca chegou a entrar. Limitou-se a despejar uma porção
de informações escaldantes à entrada, tocar à campainha e desaparecer à
pressa sem deixar o nome. Uma e outra vez. E ainda hoje não sabem ao
certo se ele era um tipo vosso, como vocês lhe chamam. Certo?
Tomo fôlego.
– Todo o material espontâneo Bambúrrio que recebemos apontava na
direção do Fiedler – respondo, escolhendo as palavras com precisão. –
Chegámos a perguntar a nós próprios se o Fiedler estaria a posicionar-se
para desertar e, por assim dizer, a fazer o bem sem olhar a quem.
– Porque detestava o Mundt a esse ponto? O Mundt, o ex-nazi que
nunca se chegou propriamente a reabilitar?
– Isso seria um motivo. Combinado, supúnhamos nós, com a desilusão
quanto à democracia ou falta dela como praticada pela República
Democrática Alemã, a RDA. A sensação de que o seu deus comunista
podia tê-lo deixado ficar mal, convertida em certeza. Tinha havido uma
contrarrevolução falhada na Hungria, que os soviéticos tinham reprimido
brutalmente.
– Obrigada. Acho que sei isso.
Claro que sabia. Ela é da História.
Havia dois jovens desgrenhados à porta, um rapaz e uma rapariga. O
meu primeiro pensamento foi que deviam ter entrado pela porta das
traseiras, que não tinha campainha; e o segundo – peregrino, admito – foi
que se tratava de Karen, a filha de Elizabeth, e do seu companheiro
queixoso Christoph, filho de Alec, que vinham proceder a uma detenção
civil. Laura sobe mais um degrau do escadote para adquirir uma
autoridade acrescida.
– Nelson. Pepsi. Falem ao Pete – ordena.
Viva, Pete.
Viva, Pete.
Viva.
– Okay. Prestem atenção, todos. As instalações onde estão são um local
de crime. Além disso são instalações do Circus. Incluindo o jardim. Todos
os papéis, ficheiros, pedaços de detritos, tudo o que houver nas paredes
em termos de mapas, quadros perfurados, tudo o que houver nas gavetas e
estantes, é propriedade do Circus e potencialmente uma prova a apresentar
em tribunal, que deve ser copiada, fotografada e registada em
conformidade. Certo?
Ninguém diz que não esteja certo.
– Aqui o Pete é o nosso leitor. Para a sua leitura o Pete vai ser instalado
aqui na biblioteca. O Pete vai ler e será objeto de briefing e debriefing
pelo Chefe da Assessoria Jurídica e por mim. Apenas. – E de novo para os
jovens desgrenhados: – As vossas conversas com o Pete serão sociais,
certo? Serão corteses. Não abordarão em momento algum o material que
ele estiver a ler nem a razão pela qual ele está a lê-lo. Tudo isto já vocês os
dois sabem, mas estou a repeti-lo para o Pete ficar informado. Se algum de
vocês tiver motivos para supor que o Pete ou a Millie, por engano ou
deliberadamente, está a tentar retirar documentos ou provas das
instalações do Circus, notificará imediatamente a Assessoria Jurídica.
Millie.
Não há resposta, mas ela ainda está no umbral da porta.
– A sua área… o seu apartamento… alguma vez foi usado… está
atualmente a ser usado… para qualquer tipo de assunto do Serviço?
– Que eu saiba, não.
– A sua área contém equipamento do Serviço? Câmaras? Aparelhos de
escuta? Materiais de escrita secreta? Ficheiros? Documentos?
Correspondência oficial?
– Não.
– Máquina de escrever?
– A minha. Comprada por mim, com o meu dinheiro.
– Eletrónica?
– Remington manual.
– Rádio?
– Um transístor. Meu. Comprado por mim.
– Gravador?
– Para o transístor. Comprado por mim.
– Computador? iPad? Smartphone?
– Apenas um telefone vulgar, obrigada.
– Millie, acaba de receber o seu aviso prévio. A confirmação por escrito
vem pelo correio. Pepsi. Faça o favor de acompanhar a Millie ao seu
apartamento já, certo? Millie, faça o favor de prestar o auxílio de que a
Pepsi precise. Quero a casa completamente esmiuçada. Pete.
– Laura.
– Como é que identifica os volumes ativos nestas estantes?
– Todos os in-quarto da estante de cima de autores cujos apelidos
começam pelas letras A a R devem conter documentos, se não foram
destruídos.
– Nelson. Você fica aqui na biblioteca até a equipa chegar. Millie.
– Que mais?
– A bicicleta que está no átrio de entrada. Faça o favor de a tirar. Está a
empatar.
*

Sentados na Sala do Meio, Laura e eu estamos pela primeira vez


sozinhos. Ela ofereceu-me a cadeira do Controlo. Prefiro a de Smiley. Ela
apropria-se da do Controlo para si, reclinando-se de lado, para sua própria
descontração ou em atenção a mim.
– Eu sou advogada. Certo? Uma advogada e peras. Primeiro trabalhei na
privada e a seguir numa empresa. Depois chateei-me e concorri para me
juntar à sua malta. Era nova e bonita, de maneira que me puseram na
História. Tenho estado sempre na História. Quando o passado ameaça
expor rabos-de-palha do Serviço, chamem a Laura. E a Bambúrrio, pode
crer, parece ser um rabo-de-palha dos grandes.
– Deve estar muito satisfeita.
Se ela capta a ironia na minha voz, ignora-a.
– E aquilo que nós queremos de si, por muito antiquado que pareça, é
toda a verdade e nada mais do que a verdade, e que se lixe a sua lealdade
para com Smiley ou quem quer que seja. Certo?
Não está certo coisa nenhuma, mas para quê dar-me ao trabalho de o
dizer?
– Uma vez na posse da verdade, saberemos como manipulá-la. Talvez a
seu favor também, onde os nossos interesses coincidam. A minha missão é
afastar a merda antes que ela atinja a ventoinha. É também aquilo que
você quer, não é? Nada de escândalos, por mais históricos que sejam. São
um elemento de diversão, suscitam comparações desagradáveis com o
nosso tempo. Um Serviço impõe-se pela sua reputação e pela sua boa
imagem. As rendições extraordinárias, a tortura, os toques com os pés por
baixo da mesa a psicopatas criminosos, tudo isso é mau para a imagem
pública, mau para o negócio. Por conseguinte estamos do mesmo lado,
certo?
Mais uma vez, consigo não dizer nada.
– Portanto, aqui vai a má notícia. Não são só as vítimas da Bambúrrio
que querem vingar-se de si. O Bunny estava a dourar a pílula por uma
questão de amabilidade. Há um punhado de deputados ávidos de atenção
que querem usar a Bambúrrio como exemplo do que acontece quando se
permite que a sociedade da vigilância se descontrole. Não podem deitar a
mão aos factos reais, de maneira que lhes damos história. – E,
impacientando-se com o meu silêncio: – Já lhe digo, Pete. Se não tivermos
a sua colaboração total, esta coisa pode…
Fica à espera de que eu complete a frase. Em vez disso, sou eu que a
deixo à espera.
– E não teve mesmo notícias dele, certo? – pergunta por fim.
Levo uns instantes a compenetrar-me de que estou sentado na cadeira
dele.
– Não, Laura. Mais uma vez, não voltei a saber do George Smiley.
Ela recosta-se na cadeira e tira um envelope do bolso de trás. Por um
louco instante penso que é capaz de ser do George. Impresso
eletronicamente. Sem marca de água. Sem mão humana.
Foi-lhe obtido alojamento temporário a partir de hoje no apartamento
110B, Hood House, Dolphin Square, Londres SW. Aplicam-se as
condições que seguem.
Não posso ter animais de estimação. Não será permitido o acesso de
terceiros às instalações. Tenho de estar presente e disponível nas
instalações entre as 2200 e as 0700, ou notificar previamente a Assessoria
Jurídica. Dada a minha posição (não referida) será estabelecida uma renda
concessória de 50 libras por noite, a descontar na minha pensão. Não
haverá nada a pagar pelo aquecimento, luz ou eletricidade, mas serei
responsável por qualquer falta ou dano patrimonial.
O jovem desgrenhado chamado Nelson está a enfiar a cabeça pela porta.
– Chegou a carrinha, Laura.
O saque dos Estábulos está prestes a começar.

7 Mayflower, no original. (N. do T.)


5

Caía o anoitecer. Era uma tarde de outono, mas, pelos critérios ingleses,
fazia calor como de verão. De uma maneira ou de outra o meu primeiro
dia nos Estábulos tinha chegado ao fim. Caminhei durante um pedaço,
bebi um uísque num bar cheio de jovens ensurdecedores, apanhei um
autocarro para Pimlico, apeei-me umas quantas paragens antes e voltei a
seguir a pé. Não tardou que o vulto iluminado de Dolphin Square se
erguesse diante de mim por entre a neblina. Desde que passara a servir sob
a bandeira dos serviços secretos que o local me causava arrepios. No meu
tempo Dolphin Square tinha mais apartamentos seguros por pé cúbico que
qualquer edifício do planeta, e não havia nenhum deles onde eu não
tivesse feito o briefing e o debriefing a algum tipo desafortunado. Era
também o sítio onde Alec Leamas passara a última noite em Inglaterra
como convidado dos recrutadores de Moscovo antes de partir para a
viagem que o levaria à morte.
O apartamento 110B de Hood House não contribuiu em nada para
afugentar o seu fantasma. Os apartamentos seguros do Circus tinham sido
sempre modelos de premeditado desconforto. Este era um clássico da
fornada: um extintor de incêndios de tamanho industrial, vermelho, duas
poltronas cheias de altos, cujas molas já se tinham sumido, uma
reprodução em aguarela do lago Windermere, um minibar, fechado à
chave, um aviso impresso para não se fumar MESMO COM A JANELA
ABERTA, um televisor muito grande que eu depreendi automaticamente
que funcionava nos dois sentidos e um musgoso telefone preto sem
número inscrito, para ser usado, a meu ver, apenas para fins de
desinformação. E no pequeno quarto uma cama de dormitório dura como
uma pedra, de solteiro, a fim de desencorajar atividades venerárias.
Fechando a porta do quarto ao televisor, desfiz o meu saco de pernoita e
relanceei os olhos em redor à procura de um esconderijo para o meu
passaporte francês. Havia umas INSTRUÇÕES EM CASO DE
INCÊNDIO emolduradas deficientemente aparafusadas na porta da casa
de banho. Aliviando os parafusos, enfiei o passaporte no vão, voltei a
apertá-los, desci as escadas e devorei um hambúrguer. De regresso ao
apartamento, obsequiei-me com uma generosa porção de uísque e tentei
reclinar-me numa poltrona de austeridade. Mal me tinha deixado
adormecer, porém, dei por mim novamente desperto e completamente
sóbrio, desta vez em Berlim Oeste no ano de Nosso Senhor de mil
novecentos e cinquenta e sete.
*

É sexta-feira, ao final do dia.


Estou há uma semana na cidade dividida e anseio por um par de dias e
noites carnais na companhia de uma jornalista sueca chamada Dagmar,
pela qual me apaixonei desvairadamente no espaço de três minutos numa
receção dada pelo nosso Alto-Comissário britânico, que acumula o cargo
com o de embaixador britânico junto do eternamente provisório governo
da Alemanha Ocidental em Bona. Está combinado encontrar-me com ela
dentro de um par de horas, mas antes de o fazer resolvi passar pelo nosso
Posto de Berlim e cumprimentar e despedir-me do meu velho amigalhaço
Alec.
No Estádio Olímpico de Berlim, dentro de um quartel de tijolos cheio de
eco construído para glória de Hitler e outrora conhecido como Casa dos
Desportos Alemães, o Posto arruma as coisas para o fim de semana.
Encontro Alec numa fila junto à janela gradeada do Registo, à espera da
sua vez para entregar um tabuleiro cheio de documentos classificados.
Não está à minha espera, mas já não há nada que o surpreenda
grandemente, de maneira que eu digo: Olá, Alec, prazer em ver-te, e Alec
responde: Ah, olá, Peter, és tu, que diabo fazes aqui? Depois, a seguir a
uma certa hesitação pouco vulgar nele, pergunta-me se tenho algum
compromisso para o fim de semana. E eu respondo: De facto tenho. Ao
que ele volve: Ah, é pena, pensei que podias vir comigo a Düsseldorf. E
eu pergunto: Por que carga de água Düsseldorf? E ele tem mais uma
hesitação.
– É que tenho de sair do raio de Berlim por uma vez – esclarece ele,
com um pouco convincente encolher de ombros de indiferença. E como
ele parece aceitar que eu nunca poderia, nem nos meus mais desvairados
sonhos, imaginá-lo como um turista acidental: – Tenho de ir falar com um
homem acerca dum cão – explica, do que eu depreendo que quer que eu
perceba que tem um tipo do qual tem de tomar conta, e nesse caso eu
poderia ser-lhe útil como despiste ou reforço ou o que quer que seja. Mas
isso não é razão para deixar Dagmar pendurada:
– Lamento, mas não posso, Alec. Há uma dama escandinava que precisa
de toda a minha atenção. E eu da dela.
Ele fica a pensar nisto durante um bocado, mas não da maneira que eu
associo ao Alec. É como se se sentisse magoado, ou perplexo. Um
funcionário do Registo gesticula impacientemente do outro lado da grade.
Alec entrega-lhe os documentos. O funcionário dá-lhes entrada.
– Uma mulher seria bom – diz ele, sem olhar para mim.
– Mesmo uma mulher que julga que eu sou do Ministério do Trabalho, à
procura de um talento científico alemão? Ora, deixa-te disso!
– Trá-la. Ela há de sentir-se bem.
Se conhecessem Alec tão bem como eu conhecia, aquilo era a coisa
mais próxima de um grito de socorro que alguma vez se lhe ouviria.
Durante todos os anos que tínhamos andado à caça juntos, no meio de
todos os altos e baixos, nunca o vira atrapalhado, até agora. Dagmar
concorda, de maneira que nessa mesma noite atravessamos os três
rapidamente o corredor até Helmstedt, arranjamos um carro, viajamos até
Düsseldorf e fazemos o registo num hotel que Alec conhece. Durante o
jantar ele quase não abre a boca, mas Dagmar, que se revela uma
verdadeira compincha, mantém-se firme e esgueiramo-nos para a cama e
temos a nossa noite carnal, com ambas as partes plenamente satisfeitas
consigo próprias. No sábado de manhã encontramo-nos todos para um
pequeno-almoço tardio e Alec diz que tem bilhetes para um desafio de
futebol. Nunca na vida tinha visto Alec expressar o menor interesse por
futebol. Afinal, tem quatro bilhetes.
– Quem é o quarto? – pergunto-lhe eu, fantasiando que ele tem um amor
secreto escondido que só está disponível ao sábado.
– Um miúdo meu conhecido – diz ele.
Metemo-nos no carro, Dagmar e eu no banco traseiro, e lá vamos. Alec
encosta à esquina de uma rua. Um adolescente sem barba está por baixo
de um anúncio da Coca-Cola, à sua espera. Alec abre a porta, o rapaz salta
para o banco da frente e Alex diz: «É o Christoph», de maneira que nós
dizemos: «Olá, Christoph», e lá nos dirigimos para o estádio. Alec fala tão
bem alemão como inglês, provavelmente melhor, e conversa com o rapaz
em voz baixa. O rapaz resmunga e acena ou abana a cabeça. Que idade
tem? Catorze? Dezoito? Tenha a idade que tiver, é o eterno adolescente
alemão da classe autoritária: taciturno, borbulhento e rancorosamente
obediente. É louro, pálido e desempenado e, para um miúdo, não sorri
muito. Numa elevação, recuada em relação à linha de fundo, Alec e ele
sentam-se ao lado um do outro e trocam uma ou outra palavra que eu não
consigo ouvir, mas o rapaz não aplaude, olhando fixamente, e no intervalo
desaparecem os dois, suponho eu que para uma mija ou um cachorro-
quente. Porém, só Alec regressa.
– Onde está o Christoph? – pergunto eu.
– Teve de voltar para casa – responde ele rudemente. – Ordens da
mãezinha.
E durante o resto do fim de semana nada mais aconteceu. Dagmar e eu
passámos mais momentos felizes na cama e não tenho ideia do que Alec
fez. Supus apenas que Christoph era o filho de algum dos seus tipos e
precisava de uma escapadela, porque com os tipos o bem-estar está em
primeiro lugar e tudo o resto vem a seguir. Foi só quando estava prestes a
regressar a Londres e Dagmar voltara sem novidade a Estocolmo e para o
marido, e Alec e eu estávamos a beber um copo de despedida num dos
seus muitos bebedouros favoritos de Berlim, que lhe perguntei como
quem não quer a coisa «Como está o Christoph?», porque me tinha
passado pela cabeça que o rapaz parecia um bocadinho desnorteado, um
bocadinho difícil de contentar, e provavelmente terei chegado até a dizer
qualquer coisa nesse sentido.
A princípio pensei que ele ia ter como resposta um daqueles estranhos
silêncios, visto que se tinha virado para o outro lado, de maneira que eu
não lhe podia ver o rosto.
– Porra, eu sou pai dele, por amor de Deus! – disse ele.
A seguir, em golfadas curtas e relutantes, na sua maioria sem verbos, e
nem sequer se dando ao trabalho de me dizer que guardasse aquilo para
mim, porque sabia que eu o faria, a história, ou a porção dela que ele
estava na disposição de contar: um correio feminino alemão que ele tinha
usado quando estava colocado em Berna e ela vivia em Düsseldorf: boa
rapariga, bons compinchas, tive uma aventura com ela. Queria que eu me
casasse com ela. Eu não estive pelos ajustes, de maneira que ela se casou
com um advogado lá do sítio. O advogado adotou o rapaz, o que foi a
única coisa decente que fez na vida. Ela deixa-me vê-lo de vez em
quando. Não posso dizer nada ao sacana do marido, senão o filho da mãe
batia-lhe.
E a derradeira imagem que estou a ver agora, ao levantar-me da minha
poltrona austera: Alec e Christoph, o rapaz, de pé ao lado um do outro, a
assistirem rigidamente ao jogo. E a mesma expressão hirta nos rostos, e o
mesmo queixo irlandês.
*

A certa altura da noite devo ter adormecido, mas não me recordo disso.
Em Dolphin Square são seis da manhã e na Bretanha sete. Catherine já
devia estar a pé e a bulir. Se eu estivesse em casa, estaria também a pé e a
bulir, porque Isabelle desata na sua cantoria mal Chevalier, o nosso
galispo-mor, começa a sua. A voz dela chega-nos desde o casinhoto de
Catherine, do outro lado do pátio, porque Isabelle precisa da janela do
quarto aberta a toda a hora, independentemente do tempo que faça. Já
terão dado o pequeno-almoço às cabras e Catherine deve estar a dá-lo a
Isabelle, provavelmente num jogo da apanhada à volta do pátio, com
Isabelle a fugir e Catherine atrás dela com uma colher de iogurte. E as
galinhas, sob o inútil comando de Chevalier, a comportarem-se
generalizadamente como se o mundo estivesse a acabar.
Ao imaginar esta cena perpassou-me pelo espírito que, se telefonasse
para a casa-mãe e Catherine por acaso fosse a passar, e tivesse as chaves
com ela, talvez ouvisse o toque e atendesse. Por isso, pelo sim pelo não
tentei a minha sorte, servindo-me de um dos telemóveis descartáveis,
porque diabos me levassem se ia deixar que Bunny me escutasse. Não há
gravador de chamadas no telefone da herdade, de maneira que o deixei
tocar uns minutos e estava já a perder as esperanças quando ouvi a voz de
Catherine, que é bretã e por vezes um pouco mais severa do que ela
porventura pretende.
– Está tudo bem contigo, Pierre?
– Ótimo. E contigo também, Catherine?
– Despediste-te do teu amigo que morreu?
– Ainda faltam uns dias.
– Vais fazer um grande discurso?
– Enorme.
– Estás nervoso?
– Aterrado. Como está a Isabelle?
– A Isabelle está boa. Não mudou na tua ausência. – Por esta altura já
me tinha apercebido de um laivo de contrariedade, ou algo mais forte, na
voz dela. – Um amigo teu veio para te visitar ontem. Estavas à espera dum
amigo, Pierre?
– Não. Que espécie de amigo?
Mas, como todos os interrogadores difíceis, Catherine consegue levar a
água ao seu moinho nas respostas.
– Eu disse-lhe: não o Pierre não está, o Pierre está em Londres, está a
ser um bom samaritano, houve alguém que morreu e ele foi consolar as
pessoas enlutadas.
– Mas afinal quem era ele, Catherine?
– Não sorriu. Não foi bem-educado. Foi persistente.
– Quer dizer que tentou engatar-te?
– Perguntou quem tinha morrido. Eu disse que não sei. Ele perguntou
porque é que eu não sei. E eu respondi: Porque o Pierre não me conta
tudo. Ele riu-se. Disse que talvez, com a idade que o Pierre tem, todos os
amigos estejam a morrer. Perguntou se tinha sido de repente. Era uma
mulher ou um homem? Perguntou se estás num hotel em Londres. Qual?
Qual é a morada? Qual é o nome? Não sei, digo eu. Estou ocupada, tenho
uma filha e uma herdade.
– Era francês?
– Talvez alemão. Talvez americano.
– Vinha de carro?
– De táxi. Da estação. Com o Gascon. Primeiro paga-me, disse-lhe o
Gascon. Caso contrário, não o levo.
– Que aspeto tinha ele?
– Não era afável, Pierre. Áspero. Corpulento como um pugilista. Com
muitos anéis nos dedos.
– Idade?
– Talvez cinquenta. Sessenta. Não lhe contei os dentes. Talvez mais.
– Disse-te como se chamava?
– Disse que não era preciso. Disse que vocês eram velhos amigos. Disse
que tinham ido ao futebol juntos.
Deixo-me ficar na cama imóvel, quase sem respirar. Acho que devia
levantar-me, mas tenho uma fuite du courage8. Como diabo, Christoph,
filho de Alec, litigante, gatuno de ficheiros restritos da Stasi, criminoso
com uma ficha de todo o tamanho, foste tu parar à Bretanha?
A propriedade de Les Deux Églises coubera-me pelo lado da minha
mãe. Ainda tinha o seu nome de solteira. Não havia nenhum Peter Guillam
na lista telefónica local. Teria Bunny, por obscuras razões muito suas,
revelado a minha morada a Christoph? Com que imaginável propósito?
Recordo-me então da minha peregrinação de motocicleta em 1989 a um
cemitério de Berlim fustigado pela chuva num dia de inverno escuro como
breu, e tudo faz sentido.
*

O Muro de Berlim foi derrubado há um mês. A Alemanha está em


êxtase e a nossa aldeia na Bretanha um pouco menos. E eu aparentemente
estou hesitante entre uma e outra, tão depressa me regozijando com o
facto de se ter declarado uma espécie de paz como entregando-me à
introspeção, a pensar nas coisas que realizámos e nos sacrifícios que
fizemos, e não menos nas vidas de outras pessoas, nos longos anos em que
pensávamos que o Muro havia de estar eternamente lá.
Era neste estado de espírito incerto que eu estava a lutar com a
declaração fiscal anual da propriedade na sala da contabilidade de Les
Deux Églises quando o nosso novo jovem carteiro Denis, ainda não
enobrecido com o título de Monsieur, e nem pouco mais ou menos com o
de le Général, chegou, não de carrinha amarela, mas de bicicleta, e
entregou uma carta, não a mim mas ao velho Antoine, um veterano da
guerra perneta, que estava como de costume a vaguear pelo pátio com
uma forquilha nas mãos e nada de especial para fazer.
Depois de ter examinado o envelope pela frente e por trás, e admitido
que afinal de contas podia recebê-lo, Antoine coxeou até à porta,
entregou-mo e a seguir recuou para me escrutinar enquanto eu lia o
conteúdo.
Mürren
Suíça

Caro Peter,
Pensei que gostaria de saber que as cinzas do nosso amigo Alec foram recentemente
sepultadas em Berlim, perto do local onde ele morreu. Parece que os corpos das
pessoas assassinadas no Muro eram habitualmente incinerados em segredo, sendo as
cinzas espalhadas. Graças a meticulosos registos da Stasi, porém, afigura-se que foram
tomadas providências excecionais no caso do Alec. Os seus restos mortais viram a luz
do dia e foram objeto de um funeral decente, embora tardio.

Seu, sempre,
George

E, numa folha de papel separada – não se perdem facilmente os velhos


hábitos –, o endereço de um pequeno cemitério no bairro berlinense de
Friedrichshain, oficialmente reservado para vítimas da guerra e da tirania.
Na altura eu estava com Diane, outra paixoneta transitória que se
aproximava do fim. Penso que lhe disse que tinha um amigo doente. Ou
talvez que o amigo tinha morrido. Montei na minha moto – eram ainda
esses tempos – e guiei sem parar até Berlim, arrostando com o pior tempo
com que alguma vez me deparei, fui direito ao cemitério e perguntei à
entrada onde podia encontrar Alec. Uma chuva densa, ininterrupta. Um
velhote que era uma espécie de sacristão deu-me um guarda-chuva e um
mapa e indicou-me uma comprida alameda arborizada. Depois de uma
busca, encontrei aquilo que procurava: uma sepultura recente, com uma
lápide de mármore que tinha gravado ALEC JOHANNES LEAMAS,
fantasmagoricamente embranquecida pela chuva. Nem datas nem
indicação de profissão, e uma elevação do terreno a todo o comprido para
indicar um corpo onde só havia cinzas enterradas. Para encobrimento?
Conheci-te uma data de anos, pensei eu, e nunca me revelaste o Johannes:
típico. Não tinha trazido flores; pensei que ele se riria de mim. Por
conseguinte postei-me debaixo do guarda-chuva e travei uma espécie de
diálogo interior com ele.
Quando estava a montar de novo na minha moto, o velho perguntou-me
se queria assinar o livro de condolências. Livro de condolências? Era sua
obrigação pessoal mantê-lo, explicou ele; não era tanto uma obrigação, era
mais um serviço aos defuntos. Assim sendo, eu disse: Porque não? O
primeiro registo estava assinado por «GS», morada «Londres». Na coluna
das homenagens, uma única palavra: «Amigo». Portanto era George, ou
tanto dele quanto ele estava disposto a confessar. A seguir a George, uma
mancheia de nomes alemães que não me diziam nada, com homenagens
como «Sempre na nossa lembrança», até chegarmos ao único nome
«Christoph», isolado, sem apelido a seguir. E, na coluna homenagens, a
palavra «Sohn» – filho. E, por baixo da morada, «Düsseldorf».
Seria um efémero ataque de euforia pelo facto de o Muro ter sido
derrubado e todo o mundo estar novamente livre, coisa de que seriamente
duvido – ou um sentimento instintivo de que já tinha a minha conta de
secretismo na vida – ou simplesmente um anseio de estar de pé debaixo da
chuva copiosa e ser contabilizado como mais um dos amigos de Alec?
Fosse o que fosse, fiz tudo: escrevi o meu verdadeiro nome, a minha
morada verdadeira na Bretanha e, na coluna das homenagens, porque não
consegui lembrar-me de nada melhor, «Pierrot», que era o que Alec me
chamava nas raras ocasiões em que se sentia afetuoso.
E Christoph, meu áspero companheiro enlutado e filho de Alec? Que
fizeste tu? Numa das últimas visitas à sepultura do teu pai – parto do
princípio, sem qualquer fundamento específico, de que fizeste mais
algumas, quanto mais não fosse para efeitos de pesquisa –, calhou dares
outra olhadela ao livro de condolências, e que viste tu? Peter Guillam e
Les Deux Églises escarrapachadas para ti en clair9, não um pseudónimo,
não uma morada de camuflagem nem uma casa segura, mas apenas o meu
eu desprotegido e o sítio onde moro. E foi isso que te trouxe de Düsseldorf
até à Bretanha.
Portanto qual é o teu próximo passo, Christoph, filho de Alec? Parece-
me ouvir a patusca voz jurídica de Bunny de ontem:
O Christoph não deixa de ter os seus talentos, Peter. Talvez os genes
ajudem.

8 Em francês no original: perda de coragem. (N. do T.)

9 Em francês no original: em claro. (N. do T.)


6

– Aqui o Pete é o nosso leitor – declarou Laura à sua admiradora


assistência. – Para a sua leitura o Pete vai ser instalado aqui na biblioteca.
Vejo-me nos dias que se seguiram, não propriamente como um leitor,
mas mais como uma espécie de aluno veterano forçado a ir a um exame
que devia ter feito há meia vida. Intermitentemente, o aluno atrasado é
arrancado da sala de exames e obrigado a submeter-se a uma prova oral
perante examinadores cujo conhecimento da matéria é misteriosamente
desigual, mas isso não os impede de tentarem fazer-lhe a vida negra.
Intermitentemente, fica tão horrorizado com os disparates do seu eu
passado que fica à beira de os negar, até que as provas o condenam pela
sua própria boca. Todas as manhãs sou contemplado ao chegar com um
maço de ficheiros, alguns familiares, outros não. Só porque roubámos um
ficheiro, não quer dizer que o tenhamos lido.
Na manhã do meu segundo dia a biblioteca manteve-se fechada a todos
os visitantes. Pelos ruídos surdos que dela saíam, e pelas correrias de
jovens de fato de treino de ambos os sexos aos quais não fui apresentado,
depreendi que tivesse havido uma busca minuciosa durante a noite inteira.
Depois, à tarde, um silêncio ameaçador. A minha secretária não era uma
secretária, mas sim uma mesa de cavaletes colocada como um patíbulo no
meio do soalho da biblioteca. As estantes tinham desaparecido, deixando
apenas uma marca fantasmal que lembrava a sombra das grades de uma
prisão nas paredes forradas a papel Anaglypta.
– Quando chegar a uma roseta, pare – ordena-me Laura, saindo.
Roseta? Refere-se aos clipes de ponta cor-de-rosa intervaladamente
enfiados no meio dos ficheiros. Nelson ocupa silenciosamente a cadeira
do vigilante e abre um pesado livro de bolso. A vida de Tolstoi, de Henri
Troyat.
– Se precisar de ir fazer uma mija, apite, valeu? O meu pai mija para aí
de dez em dez minutos.
– Coitado.
– Não leve é nada consigo.
*

Uma tardinha insólita quando Laura, sem explicação, substitui Nelson


na cadeira do vigilante e, depois de me examinar obstinadamente durante
meia hora ou mais, diz:
– Que se lixe. Quer convidar-me para jantar de graça, Pete?
– Agora? – pergunto eu.
– Agora. Esta noite. O que é que acha?
De graça para quem? – pergunto eu com os meus botões ao mesmo
tempo que encolho os ombros para indicar a minha cautelosa
aquiescência. De graça para ela? Para mim? Ou de graça para ambos
porque é a Repartição que nos está a juntar? Vamos a um restaurante
grego ao fundo da rua. Ela reservou mesa. Está de saias. É uma mesa de
canto, com uma vela apagada numa gaiola vermelha. Não sei por que
razão a imagem da vela apagada persiste, mas é um facto. E o proprietário
a debruçar-se sobre nós, a acendê-la e a dizer-me que tenho a melhor vista
da sala, referindo-se a Laura.
Bebemos um ouso e a seguir outro. Puro, sem gelo, ideia dela. Por
conseguinte será ela uma sensual, estará no engate – a mim, com a idade
que tenho, por amor de Deus? – ou achará que o álcool vai soltar a língua
ao velhadas? E que devo pensar do vulgaríssimo casal de meia-idade que
está sentado na mesa contígua e resolutamente não olha para nós?
Ela traz um tope sem mangas que cintila à luz da vela e o decote
escorregou para sul. Mandamos vir as entradas habituais: tarama,
houmous, espadilha. Ela adora moussaka, de maneira que nos decidimos
por duas, e ela dá início a um tipo de interrogatório diferente, o tipo
atiradiço. Então é mesmo verdade, Peter, o que disse ao Bunny, que você e
a Catherine são apenas bons amigos?
– Porque, francamente, Pete – suavizando a voz para assumir um tom de
intimidade –, com o seu cadastro, como é possível viver na mesma casa
com uma rapariga francesa superatraente que nem sequer papa? A menos,
claro, que seja secretamente gay, que é o que o Bunny acha. Note-se que o
Bunny acha que toda a gente é gay. Portanto é provável que ele próprio
seja gay e não queira admiti-lo.
Metade de mim quer dizer-lhe que vá para o diabo e a outra metade quer
saber o que julga ela estar a tramar. Por conseguinte, deixo andar.
– Mas olhe que, sinceramente, Pete, não tem ponta por onde se lhe
pegue! – insiste ela. – Quero eu dizer, não me diga que retirou a sua
cavalaria da carga, como costumava dizer o meu pai: um velho garanhão
como você, não posso acreditar!
Pergunto-lhe, mais uma vez ao arrepio dos meus melhores instintos, o
que a leva a pensar que a Catherine seja assim tão atraente. E ela
responde: ah, foi um passarinho que lhe disse. Estamos a beber vinho tinto
grego, negro como tinta e sabendo a isso, e ela está debruçada para diante,
proporcionando-me o espetáculo completo do seu decote.
– Portanto, Pete, diga-me a verdade. Palavra de escuteiro, valeu? De
todas as mulheres que papou ao longo dos anos… quem é que espetaria no
primeiríssimo lugar? – A infeliz escolha do verbo «espetar» fá-la sucumbir
a um acesso de riso.
– E se começássemos por si? – retruco eu, e a brincadeira fica por ali.
Peço a conta e o casal da mesa ao lado pede a sua. Ela diz que vai
apanhar o metro. Eu digo que vou andar um bocado. E ainda hoje não faço
ideia se ela tinha a missão de me fazer falar, ou se era apenas outra alma
disponível, em busca de algum calor humano.
*

Eu sou o leitor. A capa parda da pasta que estou a ler encontra-se em


branco, à exceção de uma referência do ficheiro escrita à mão – numa
caligrafia que me escapa, mas provavelmente será minha. A série inicial
está marcada Ultrassecreto e Proteger, o que quer dizer mantê-la a coberto
dos americanos, e é um relatório – apologia seria uma palavra mais
apropriada – escrito por um tal Stavros de Jong, com o seu metro e oitenta
e oito, um desajeitado estagiário do Circus. Stas, é esse o seu diminutivo,
é um licenciado por Cambridge ao qual ainda faltam seis meses para
receber a confirmação. Está adstrito à secção de Encobertas do Posto de
Berlim, que é comandada pelo meu camarada de armas numa série de
operações fracassadas, o veterano operacional Alec Leamas.
Por questões de protocolo, Leamas, como comandante local é também
de facto Subchefe do Posto. Por conseguinte, o relatório de Stas é dirigido
a Leamas nessa qualidade, e enviado ao seu Chefe das Encobertas em
Londres, George Smiley.

Relatório de S. de Jong para SC/Posto Berlim [Leamas], cópia para CC [Conjunta de


Coordenação]

Recebi ordens para elaborar o relatório que segue.


Como o dia de Ano Novo estava frio mas soalheiro e era feriado, a minha mulher
Pippa e eu resolvemos levar os nossos filhos (Barney, de 3 anos, e Lucy, de 5) e o
nosso Jack Russell (Loftus) a Köpenick, em Berlim Leste, para fazermos um
piquenique à beira do lago bem agasalhados e darmos um passeio pelo bosque
adjacente.
O nosso carro de família é uma carrinha Volvo com chapas de matrícula militar
britânica à frente e atrás, permitindo-nos a passagem sem restrições entre os setores de
Berlim, sendo Köpenick, em Berlim Leste, um dos nossos habituais locais de
piquenique, que goza da predileção das crianças.
Estacionei como de costume ao lado do muro periférico da antiga fábrica de cerveja
de Köpenick, hoje abandonada. Não havia mais nenhum carro à vista e à beira de água
estavam sentados apenas alguns pescadores, que nos ignoraram. Do carro, levámos o
cesto de piquenique até ao habitual promontório de relva à beira do lago, e a seguir
brincámos às escondidas, com Loftus a ladrar muito alto, para irritação de um dos
pescadores, que nos gritou uns impropérios por cima do ombro, teimando que Loftus
tinha afugentado o peixe.
O homem era magro, andaria pelos cinquenta anos e era grisalho, e eu reconhecê-lo-
ia se voltasse a vê-lo. Tinha um boné de pala preto e um velho sobretudo da
Wehrmacht com as insígnias arrancadas.
Como já eram quase 1530 e estava na hora de Barney repousar, arrumámos as coisas
do piquenique e deixámos as crianças correrem de volta ao carro com o cesto entre
elas, com Loftus atrás, a ladrar.
Ao chegarem ao carro, porém, deixaram cair o cesto e desataram a correr em sentido
contrário, alarmadas, para comunicar que a porta do condutor tinha sido forçada por
um ladrão «que roubou completamente a câmara do Papá» (Lucy).
A porta do condutor tinha efetivamente sido forçada, tendo o puxador partido, mas a
velha câmara Kodak, que eu deixara inadvertidamente no compartimento das luvas,
não fora roubada, como tão-pouco o meu sobretudo ou os artigos de mercearia e outras
provisões que tínhamos comprado na Naafi10, que para nossa surpresa estava aberta no
dia de Ano Novo, antes de passarmos para Berlim Leste.
Longe de ter perpetrado um roubo, veio a saber-se, o intruso tinha deixado uma lata
de tabaco Memphis ao lado da minha câmara. Dentro dela estava um pequeno cartucho
de níquel que eu imediatamente identifiquei como um vulgar invólucro Minox para
filme subminiatura.
Uma vez que hoje é feriado e fiz recentemente um curso de fotografia operacional,
concluí que nesta fase não havia fundamentos suficientes para ligar ao funcionário de
serviço ao Posto. Por conseguinte, ao chegar a casa, revelei imediatamente o filme na
nossa casa de banho, que não tem janelas, utilizando o meu equipamento fornecido
pelo Serviço.
Às 2100, depois de ter examinado com uma lupa cerca de cem fotogramas de
negativo revelado, alertei o Subchefe do Posto [Leamas], que me deu ordens para levar
de imediato o material para a sede e elaborar um relatório por escrito, ao que dei o
devido cumprimento.
Admito inteiramente, em retrospetiva, que devia ter levado o filme por revelar
diretamente para o Posto de Berlim a fim de ser tratado pela secção fotográfica, e que
foi inseguro e potencialmente desastroso da minha parte, como estagiário, proceder à
revelação na minha própria casa. Como atenuante gostaria de repetir que o dia 1 de
janeiro era feriado e que tive relutância em acordar o Posto com aquilo que poderia ser
um rebate falso, acrescendo que tinha sido aprovado no meu curso de fotografia
operacional em Sarratt com classificações de Muito Bom em tudo. Não obstante,
lamento sinceramente a minha decisão e gostaria de declarar que aprendi a lição.
S. de J.

E, ao fundo da carta, a furiosa nota manuscrita de Alec para o seu Chefe


das Encobertas, Smiley:

George: o estúpido do cabrãozinho mandou cópia disto para a Conjunta antes que
alguém tivesse hipótese de o impedir. Para a próxima, já sabe. Sugiro que enrole o P.
Alleline, o B. Haydon, o T. Esterhase e o sacana do Roy Bland e companhia
convencendo-os de que foi uma argolada, ou seja: desnecessária qualquer ação ulterior,
material de informações forjadas de segunda ordem, etc.
Alec

Mas Alec nunca foi pessoa para ficar quietinha, muito menos quando
estava em jogo a sua carreira futura. O seu contrato com o Circus estava
na altura de ser renovado e ele já tinha passado há muito o limite de idade
para operacionais, com pouquíssimas perspetivas de um cómodo lugar
burocrático na Sede, o que explica o relato algo desconfiado de Smiley do
que Alec fez a seguir:

C/ Encobertas Marylebone [Smiley] para Controlo, Exclusivo. Pessoal, em mão.


Assunto: AL, C/Encobertas Berlim.
E, escrito à mão, na imaculada caligrafia de George:

C: Ficará tão surpreendido como eu fiquei com o facto de AL ter aparecido sem
aviso prévio à porta da minha casa de Chelsea às dez da noite de ontem. Como Ann
estava fora em tratamento, encontrava-me sozinho em casa. Ele cheirava a álcool, o
que não é invulgar, mas não estava embriagado. Fez questão de que eu desligasse o
telefone da tomada da sala de estar antes de falarmos, e de que, apesar do tempo muito
frio que fazia, nos sentássemos ao fundo da estufa que dá para o jardim, com o
argumento de que «não se pode instalar escutas no vidro». Depois disse-me que tinha
vindo de Berlim num avião civil nessa tarde a fim de não figurar na lista de voo da
RAF, que desconfia ser rotineiramente controlada pela Conjunta de Coordenação. Pela
mesma razão já não confia nos correios do Circus.
Primeiramente precisava de saber se eu tinha dado a volta à Conjunta, conforme ele
pedira, em relação ao material de Köpenick. Respondi que estava convencido de que o
tinha conseguido, porque era sabido que o Posto de Berlim estava atafulhado de
ofertas de informações forjadas sem qualquer valia.
Nessa altura mostrou-me a folha de papel anexa que tirou do bolso, explicando que
era um resumo, elaborado exclusivamente por ele, do material contido nas cassetes de
Köpenick, mas sem a garantia adicional de confirmação por parte de qualquer outra
fonte manifesta ou encoberta.

Tenho duas visões em simultâneo: uma de George e Alec apertados um


contra o outro, a conferenciarem, na gélida estufa de Bywater Street; a
segunda de Alec sozinho na noite anterior, debruçado sobre a sua antiga
Olivetti e uma garrafa de uísque no gabinete cheio de fumo da cave do
Estádio Olímpico, em Berlim Oeste. O resultado dos seus esforços está
diante de mim: uma sebenta página escrita à máquina, manchada de
corretor e envolvida em celofane, com o texto que segue:

1. Atas da reunião do KGB dos serviços de informações do Bloco Leste, Praga, 21


de dez. de 1957.
2. Nome e graduação de funcionários do KGB baseados no país adstritos às direções
da Stasi, referidos a 5 de julho de 1956.
3. Identidade dos principais agentes atuais da Stasi na África subsariana.
4. Nome, graduação e pseudónimo de todos os funcionários da Stasi que estão a
receber instrução do KGB na URSS.
5. Localização de seis novas instalações de comunicações soviéticas encobertas na
RDA e Polónia, referida a 5 de julho de 1956.
Viro a página e eis-me de volta ao memorando manuscrito de Smiley
para o Controlo, sem uma única palavra riscada.

O resto da história do Alec é como segue. Todas as semanas regularmente, a seguir


ao furo do de Jong, se é que o foi, o Alec requisitava o Volvo e o cão da família do de
Jong e punha 500 dólares no compartimento das luvas juntamente com um livro
infantil para colorir com o número da sua linha direta no Posto de Berlim rabiscada,
metia o equipamento de pesca no porta-bagagens (ainda hoje não sei se o Alec pescava
e tendo a duvidar), ia até Köpenick e estacionava no local onde o de Jong tinha
estacionado à mesma hora. Com o cão ao lado, ia pescar e punha-se à espera. À
terceira tentativa, foi bafejado pela sorte. Os 500 dólares tinham sido substituídos por
duas cassetes. O livro infantil para colorir com o número de telefone desaparecera.
Passadas duas noites, de regresso a Berlim Oeste, recebeu uma chamada pela linha
direta de um homem que se recusou a dizer o nome, mas disse que pescava em
Köpenick. O Alec mandou-o apresentar-se à porta de um dado número de casa no
Kurfürstendamm às sete e vinte da tarde seguinte, levando na mão esquerda a edição
da semana anterior do Der Spiegel.
O treff (ou seja, encontro secreto, termo tomado de empréstimo do vernáculo da
espionagem alemão pelos agentes de Berlim) teve lugar numa carrinha Volkswagen
conduzida pelo de Jong e durou dezoito minutos. PRIMAVERA, como o Alec
arbitrariamente o batizou, recusou-se ao princípio a revelar o seu nome, fazendo finca-
pé em que as cassetes não provinham dele, mas sim de «um amigo do interior da
Stasi», que ele tinha de proteger. O seu próprio papel era meramente o de
intermediário voluntário, insistia, e as suas motivações não eram mercenárias, mas sim
ideológicas.
O Alec, porém, não engoliu isto. O mercado estava inundado de material sem
indicação da fonte passado por um intermediário anónimo, dizia ele. Portanto, nada
feito. Finalmente – e apenas em resposta aos rogos do Alec, pede-se-nos que
acreditemos –, Primavera tirou do bolso um cartão com o nome Karl Riemeck,
médico, e o endereço do Hospital Charité, em Berlim Leste, de um lado e, no verso,
uma morada de Köpenick, escrita à mão.
O Alec está convencido de que o Riemeck só estava à espera de avaliar o seu
homem antes de se revelar, e que passados dez minutos abandonou as suas reservas.
Mas não devemos esquecer nunca o irlandês que há no Alec.
Passemos, então, às perguntas óbvias:
Mesmo que o Dr. Riemeck seja quem diz ser, quem é a sua mágica subfonte?
Estaremos perante mais uma sofisticada armadilha da Stasi?
Ou – ainda que me custe imenso sugeri-lo – estaremos perante uma coisa um
bocadinho mais caseira da autoria do próprio Alec?
Em conclusão:
O Alec pede com alguma veemência, devo dizê-lo, para ser autorizado a explorar
Primavera até à fase seguinte sem o sujeitar a qualquer das habituais investigações e
verificações de antecedentes que, no pé em que as coisas estão, não podiam ser levadas
a cabo sem conhecimento e ajuda da Conjunta de Coordenação. As suas reservas são
do pleno conhecimento de nós ambos e eu arrisco-me a sugerir que as partilhemos
cautelosamente.
O Alec, porém, não mostra idêntica contenção relativamente às suas suspeitas.
Ontem à noite, após o terceiro uísque, era a Connie Sachs que tinha tachado de agente
dupla do Centro de Moscovo dentro do Circus, com o Toby Esterhase a ocupar um
segundo lugar muito próximo. A sua teoria, que não tem outra base que não seja a sua
própria intuição alimentada pelo uísque, era que haviam sido os dois apanhados numa
folie à deux11 provocada por impulsos sexuais, os russos tinham descoberto e estavam
a chantageá-los. Consegui finalmente que fosse para a cama por volta das 2.00, para
deparar com ele na cozinha às 6.00, a preparar ovos com bacon.
A questão é o que fazer. Em geral, estou inclinado a deixá-lo executar mais uma
missão com o seu Primavera (o que quer dizer, efetivamente, a sua alegada subfonte
misteriosa na Stasi) nas suas próprias condições. Como ambos sabemos, os seus dias
como operacional estão a chegar ao fim e ele tem todas as razões para os prolongar.
Mas também sabemos que a parte mais difícil do nosso trabalho é depositar confiança.
Baseado em pouco mais que o instinto, o Alec declara-se firmemente convencido do
caráter genuíno de Primavera. Isto pode ser o palpite inspirado de um veterano ou a
argumentação especial de um operacional entrado em anos confrontado com o fim
natural da sua carreira.
Com o devido respeito recomendo que, sabendo isso, o autorizemos a seguir em
frente.
GS

Mas o Controlo não se deixa levar tão facilmente: veja-se a troca de


correspondência:

Controlo para GS: Seriamente preocupado com o facto de o Leamas estar a remar por
sua conta e risco. Onde estão os outros indicadores? Podemos com certeza testar as
informações em áreas que na visão que o Leamas tem das coisas não estão
contaminadas, não?
GS para Controlo: Consultei separadamente os NE e a Defesa, servindo-me de um
pretexto. Ambos dizem bem do material, não acham que se trate de falsificações.
Coisas de somenos como prelúdio para um embuste em grande escala é sempre uma
possibilidade.
Controlo para GS: Fico perplexo por o Leamas não consultar o seu Chefe do Posto de
Berlim. Manobras de bastidores deste género não são boas para o Serviço.
GS para Controlo: Infelizmente, o Alec considera o seu C/P como anti-Encobertas e
pró-Conjunta.
Controlo para GS: Não posso privar-me de uma galère12 de funcionários de primeira
água baseado na suposição indemonstrada de que um deles é uma maçã podre.
GS para Controlo: Receio bem que o Alec veja a Conjunta como um pomar podre.
Controlo para GS: Então talvez seja ele que tem de ser podado.

A seguinte contribuição escrita de Alec é de uma ordem completamente


diferente: imaculadamente datilografada e num estilo de prosa bem
superior ao seu. A minha imediata desconfiança é que o amanuense de
Alec seja Stas de Jong, diplomado com distinção em línguas modernas.
Por conseguinte, desta feita é Stas, com o seu metro e oitenta e oito, que
vejo debruçado sobre a Olivetti na cave cheia de fumo do Posto de Berlim
enquanto Alec vagueia pela divisão, tirando fumaças dos seus ordinários
cigarros russos e ditando roufenhas obscenidades que de Jong
discretamente omite.

Relatório de Encontro, 2 de fevereiro de 1959. Local: Casa Segura de Berlim K2.


Presentes: SC/Posto Berlim Alec Leamas (PAUL) e Karl Riemeck (PRIMAVERA).
Fonte PRIMAVERA. Segundo Treff. Ultrassecreto, Pessoal e Particular de AL para
C/Encobertas Marylebone.

A fonte Primavera, conhecida pela elite da RDA como «O Médico de Köpenick»,


inspirado pela peça de Carl Zuckmayer de título semelhante, é o médico de eleição de
um círculo restrito de altas prominenz do SED [Partido de Unidade Socialista, ou seja,
Comunista] e da Stasi e respetivas famílias, várias delas residentes nas moradias e
apartamentos à beira do lago de Köpenick. As suas credenciais de esquerda são
impecáveis. O pai, Manfred, comunista desde os trinta e poucos anos, combateu com
Thälmann na Guerra Civil espanhola e mais tarde integrou a rede Orquestra Vermelha
contra Hitler. Durante a guerra de 1939-1945 Primavera passou clandestinamente
mensagens pelo pai, que foi enforcado pela Gestapo no campo de concentração de
Buchenwald em 1944. Manfred não viveu, por conseguinte, para ver a chegada da
revolução à Alemanha de Leste, mas o filho, Karl, por amor ao pai, estava determinado
a ser seu dedicado camarada. Depois de completar o secundário com distinção, cursou
Medicina em Jena e Praga, tendo feito a licenciatura com a classificação magna cum
laude. Não se contentando em trabalhar horas a fio no único centro hospitalar
universitário de Berlim Leste, abriu a sua casa de família de Köpenick, que partilha
com a sua idosa mãe, Helga, como consultório informal para pacientes selecionados.
Como membro de nascença da elite da RDA, Primavera é também encarregado de
missões médicas de natureza delicada. Um alto funcionário do SED contrai uma
doença venérea quando de visita a terras distantes e não quer que os superiores saibam.
Primavera faz-lhe o obséquio de um diagnóstico falso. Um prisioneiro da Stasi morreu
de falência cardíaca sob interrogatório, mas a certidão de óbito tem de contar uma
história diferente. Um prisioneiro da Stasi de grande valia está em vias de ser
submetido a um tratamento duro. Primavera é convocado para verificar a situação
psicológica e física do prisioneiro e avaliar a sua tolerância.
Face às suas responsabilidades, foi outorgado a Primavera o estatuto de Geheime
Mitarbeiter (colaborador secreto), ou GM, abreviadamente, o que exige que se
apresente mensalmente ao seu controlador da Stasi, um tal Urs ALBRECHT, um
«funcionário sem grande imaginação». Primavera diz que os seus relatórios para
Albrecht são «seletivos, grandemente inventados, desprovidos de qualquer
importância». Albrecht, por seu turno, disse-lhe que ele é «um bom médico mas um
fraco espião».
Excepcionalmente, Primavera foi também contemplado com um passe para a
«Pequena Cidade», ou seja, o Majakowskiring de Berlim Leste, onde muita da elite da
RDA está instalada, ao mesmo tempo que é rigorosamente protegido do público em
geral pela Brigada Djerzinsky, uma unidade especialmente adestrada. Embora a
«Pequena Cidade» disponha do seu próprio centro médico – para não falar de loja
exclusiva, jardim de infância, etc. –, Primavera tem autorização para entrar na
venerada área para efeitos de atender os seus ilustres pacientes «privados». Uma vez
no interior do cordão, diz ele, as regras de discrição são relaxadas, os mexericos e as
intrigas grassam e as línguas soltam-se.

Motivação:
A pretensa motivação de Primavera é o desapontamento com o regime da RDA, o
entendimento de que o sonho comunista do pai foi traído.

Oferta de serviços:
Primavera alega que a subfonte TULIPA, uma doente e empregada da Stasi,
constituiu não só o catalisador para o seu autorrecrutamento, como é a fonte das
cassetes subminiatura originais que depositou em nome dela no Volvo de de Jong.
Descreve Tulipa como neurótica mas extremamente controlada e altamente vulnerável.
Insiste que ela é sua doente, e nada mais. Reitera que nem ele nem Tulipa precisam de
qualquer recompensa financeira.
O realojamento no Ocidente em caso de comprometimento ainda não foi abordado.
Ver adiante.

Porém, não vemos adiante nenhum. No dia seguinte Smiley em pessoa


apanha um avião para Berlim a fim de dar pessoalmente uma vista de
olhos a este Riemeck e ordena-me que o acompanhe. Contudo, a fonte
Primavera não é a razão primordial da nossa deslocação. É de muito maior
interesse para ele a identidade, o grau de credenciação e a motivação da
subfonte do sexo feminino neurótica mas extremamente controlada com o
nome de código Tulipa.
*

No silêncio da noite, numa Berlim Oeste insone fustigada por ventos


gélidos de fiapos e flocos de neve. Alec Leamas e George Smiley estão
sentados com a sua nova esperança Karl Riemeck, aliás Primavera, a
beber uma garrafa de Talisker, o favorito de Alec, e para Riemeck uma
estreia. Eu estou logo à direita de Smiley. A casa segura de Berlim K2 fica
no n.o 28 da Fasanenstrasse e é uma imponente e improvável sobrevivente
dos bombardeamentos aliados. A sua traça é de estilo Biedermeier, tendo
um portal com colunas, uma janela de sacada e uma boa saída das traseiras
que vai dar à Uhlandstrasse. Quem quer que a tenha escolhido gostava da
nostalgia imperial e tinha olho operacional.
Há caras que, por mais que tentem, não conseguem esconder o bom
coração dos seus possuidores, e a de Riemeck é assim. Tem careca, usa
óculos e é meigo. Não há maneira de negar a palavra. Pouco importa o
consciencioso franzir do cenho próprio de médico: o homem transpira
humanidade.
Ao relembrar agora esse primeiro encontro, tenho de me recordar de que
em 1959 não havia grande drama na passagem de um médico de Berlim
Leste para Berlim Oeste. Muitos o fizeram e uma boa porção deles nunca
voltou, razão pela qual foi construído o Muro.
O fascículo inicial do ficheiro está datilografado e não assinado. Não se
trata de um relatório formal e só posso pressupor que o seu autor seja
Smiley; e que, como não é indicado qualquer destinatário, ele está a
escrever para efeitos de arquivo; por outras palavras, para si mesmo.

Tendo-lhe sido pedido para identificar o processo pelo qual entrou naquilo a que
chama a fase de «crisálida» da sua oposição ao regime da RDA, Primavera indica o
momento em que os interrogadores da Stasi lhe ordenaram que preparasse uma mulher
para «reclusão investigatória». A mulher era uma cidadã da RDA na casa dos
cinquenta que alegadamente trabalhava para a CIA. Sofria de claustrofobia aguda. A
prisão em solitária já a tinha deixado meio louca. «Ainda hoje ouço os seus gritos, ao
prenderem-na numa caixa», diz Primavera.
Na sequência desta experiência, Primavera, que declara não ser propenso a decisões
precipitadas, diz que «reavaliou a sua situação sob todos os ângulos». Tinha ouvido as
mentiras do Partido em primeira mão e observado a sua corrupção, hipocrisia e abuso
de poder. Tinha «diagnosticado os sintomas de um estado totalitário a fazer-se passar
pelo seu contrário». Longe da democracia com que o pai tinha sonhado, a Alemanha
de Leste era um «vassalo soviético governado como um estado policial». Uma vez
adquirida esta perceção, diz ele, só restava um caminho ao filho de Manfred: a
resistência.
A sua primeira ideia foi criar uma célula clandestina. Escolheria um ou outro
paciente da elite que ocasionalmente tivesse dado indícios de insatisfação com o
regime e far-lhe-ia a proposta. Mas para fazer o quê? E durante quanto tempo? O pai
de Primavera, Manfred, fora traído pelos camaradas. Pelo menos nesse aspeto, o filho
não se propunha seguir as pisadas do pai. Então em quem confiava suficientemente
ele, em todas as circunstâncias e fizesse chuva ou fizesse sol? Resposta: nem sequer na
mãe, Helga, uma comunista confessa, acontecesse o que acontecesse.
Muito bem, refletira ele, manter-se-ia o que era já: «uma célula terrorista de um só».
Tomaria como émulo, não o pai, mas sim um herói da infância, Georg Elser, o homem
que em 1939, sem beneficiar de um cúmplice ou confidente, fizera, colocara e
detonara uma bomba numa cervejaria de Munique onde minutos antes o Führer
estivera a discursar aos seus fiéis. «Só uma sorte infernal o salvou», diz Primavera.
Mas a RDA, pensava ele, não era um regime que pudesse ser derrubado com uma
única explosão, tal como Hitler o não era. Primavera era antes de mais nada um
médico. Um sistema podre tinha de ser tratado a partir de dentro. A maneira de o fazer
havia de revelar-se a seu tempo. Entretanto, ele não se abriria com ninguém nem
confiaria em ninguém. Seria ele sozinho, bastando-se a si próprio e prestando contas si
próprio. Seria «um exército secreto de uma pessoa só».
A «crisálida» saiu, sustenta ele, quando às 2200 de 18 de outubro de 1958 uma
jovem de espírito perturbado que era sua desconhecida se dirigiu de bicicleta a
Köpenick, nos arredores leste de Berlim, e se apresentou no consultório de Primavera,
pedindo para fazer um aborto.

Nesta altura o relato de Smiley interrompe-se e é o Dr. Riemeck que


está a falar diretamente connosco. George deve ter achado que a sua
narrativa, apesar da extensão, era preciosa de mais para ser condensada:

A camarada [apagado] é uma mulher inteligentíssima e indubitavelmente atraente,


exteriormente abrupta, à maneira aprovada pelo Partido, altamente engenhosa, mas na
intimidade de uma consulta médica intermitentemente infantil e indefesa. Embora eu
não seja propenso a diagnósticos apressados do estado mental dos pacientes, sugeriria
provisoriamente uma forma de esquizofrenia seletiva, rigidamente controlada. O facto
de ela ser também uma mulher de coragem e elevados princípios não deve ser tomado
como um paradoxo.
Informo a camarada [apagado] de que não está grávida e por conseguinte não
precisa de um aborto. Ela diz-me que fica admirada por saber isso, tendo em conta que
dormiu com dois homens igualmente repugnantes no mesmo ciclo. Pergunta se eu
tenho alguma bebida alcoólica. Diz que não é alcoólica mas que ambos os seus
homens bebem muito e adquiriu o hábito. Ofereço-lhe um copo do conhaque francês
que me foi dado por um ministro da Agricultura congolês como forma de gratidão
pelos meus serviços clínicos. Depois de tê-lo esvaziado de um trago, ela interroga-me:
«Dizem-me os amigos que o senhor é um homem decente e discreto. Têm razão?»
«Que amigos?», pergunto eu.
«Amigos secretos.»
«Porque é que os seus amigos têm de ser secretos?»
«Porque são dos Organismos.»
«Que organismos?»
Aborreci-a. Replica:
«A Stasi, camarada doutor. O que é que acha?»
Advirto-a. Posso ser médico mas tenho as minhas responsabilidades para com o
Estado. Ela prefere não me dar ouvidos. Tem o direito de escolher, diz. Numa
democracia onde todos os camaradas são iguais, pode escolher entre o estupor do
marido sádico que lhe bate e se recusa a admitir que é homossexual e o sacana gordo
de cinquenta anos do chefe que acha estar no seu pleno direito de foder com ela no
banco de trás do seu Volga de serviço quando muito bem lhe apetece.
Durante esta conversa deixou escapar por duas vezes o nome do Dr. Emmanuel
Rapp. Chama-lhe o Rappschwein. Pergunto-lhe se esse Rapp tem algum parentesco
com a camarada Brigitte Rapp, que insiste em vir à minha consulta por uma porção de
doenças ilusórias. Sim, confirma ela, Brigitte é o nome da mulher do sacana. A ligação
está feita. Frau Brigitte Rapp já me confiou que é casada com um funcionário superior
da Stasi que faz o que lhe apetece. Estou, portanto, na presença da iradíssima assistente
pessoal e – segundo ela – amante secreta do Dr. Emmanuel Rapp. Ela diz que já
pensou em pôr arsénico no café de Rapp. Diz que tem uma faca debaixo da cama para
a próxima vez que o marido homossexual a atacar. Eu advirto-a de que isso são
fantasias perigosas e que deve abandoná-las.
Pergunto-lhe se fala nestes termos sediciosos ao marido ou no trabalho. Ela ri-se a
assegura-me que não. Tem três caras, diz. Nisso tem sorte, porque na RDA a maioria
das pessoas tem cinco ou seis. «No trabalho, sou uma camarada dedicada e diligente,
visto bem e tenho o cabelo sempre bem penteado, especialmente nas reuniões, e sou
também a escrava sexual de um ilustre sacana. Em casa, sou o objeto de ódio de um
irmão quente (homossexual) sádico para cima de dez anos mais velho do que eu, que
tem como único objetivo na vida tornar-se membro da elite do Majakowskiring e
dormir com jovens bonitos.» A sua terceira identidade é aquela que vejo neste
momento diante de mim: uma mulher que detesta todos os aspetos da vida na RDA
exceto o filho e encontrou refrigério em Deus Pai e nos Seus santos. Pergunto-lhe a
quem mais confidenciou esta terceira identidade além de mim. A ninguém. Pergunto-
lhe se ouve vozes. Ela não tem consciência disso, mas se ouvisse alguma voz seria a de
Deus. Pergunto-lhe se está realmente tentada a fazer mal a si própria, como antes me
referiu. Ela responde que recentemente lhe passou pela cabeça atirar-se de uma ponte,
mas se reteve pelo amor que tem ao filho, Gustav.
Pergunto-lhe se se sentiu tentada a cometer outras ações demonstrativas ou
vingativas, e ela responde que numa ocasião recente, quando uma noite o Dr.
Emmanuel Rapp deixou o pulôver na cadeira, pegou numa tesoura e fê-lo em tiras,
após o que enfiou os pedaços num saco para queima de lixo secreto. Quando Rapp
regressou na manhã seguinte e se queixou de ter perdido o pulôver, ela ajudou-o a
procurá-lo. Quando ele chegou à conclusão de que alguém o tinha roubado, ela sugeriu
culpados.
Pergunto-lhe se os seus sentimentos vingativos em relação ao camarada Dr. Rapp se
atenuaram desde então. Ela replica que são mais fortes que nunca, e a única coisa que
odeia mais do que Rapp é o sistema que alcandora sacanas como ele a posições de
poder. Os seus ódios secretos são alarmantes e é quase um milagre que ela consiga
ocultá-los ao olhar sempre vigilante dos seus camaradas de trabalho.
Pergunto-lhe onde mora. Responde que ela e o marido moraram até há pouco tempo
num apartamento de estilo soviético na Stalinallee, onde não havia proteção especial e
ficava apenas a dez minutos de bicicleta da sede da Stasi, na Magdalenenstrasse.
Recentemente – não sabe se por influência homossexual ou por dinheiro, uma vez que
o marido é reservado em relação ao dinheiro que o pai lhe deixou – mudaram-se para
uma zona protegida na Hohenschönhausen de Berlim, reservada a funcionários
governamentais e escalões superiores da administração pública. Há lagos e floresta,
que ela adora, um jardim infantil para o filho Gustav e até um pequeno jardim
privativo com grelhador. Noutras circunstâncias a casa seria um idílio, mas partilhá-la
com o odioso marido faz dela uma farsa. Ela é uma apaixonada pelo ciclismo e ainda
vai de bicicleta para o trabalho, calculando que leve meia hora de porta a porta.
É uma da manhã. Pergunto-lhe o que vai contar ao marido, Lothar, quando regressar
a casa. Ela responde que não lhe vai contar nada e acrescenta as seguintes palavras:
«Quando o meu querido Lothar não me está a violar ou a embebedar-se, senta-se na
borda da cama com os documentos do Ministério dos Negócios Estrangeiros da RDA
no regaço, a resmungar e a escrever como alguém que odeia o mundo inteiro, e não
apenas a mulher.»
Pergunto-lhe se o que o marido leva para casa são documentos secretos. Ela
responde que são extremamente secretos e que ele os leva ilegalmente para casa,
porque além de ser tarado sexual é obsessivamente ambicioso. Pergunta-me se, da
próxima ocasião que vier procurar-me, eu vou fazer amor com ela, com o fundamento
de que ainda está para fazer amor com um homem que não seja um sacana ou um
violador. Eu julgo que esteja a brincar, mas não tenho a certeza. Em qualquer caso,
declino, explicando que tenho o princípio de não dormir com pacientes minhas. Deixo-
a com a possível consolação de saber que se eu não fosse seu médico dormiria com
ela. Quando monta na sua bicicleta para partir informa-me de que entregou a vida nas
minhas mãos. Eu respondo que, como médico, respeitarei as suas confidências. Ela
pede-me uma segunda consulta e eu proponho-lhe a próxima quinta-feira às seis da
tarde.
Dominado por uma onda de repulsa interior, ponho-me
involuntariamente de pé.
– Sabe onde é? – pergunta Nelson, sem levantar os olhos do livro.
Fecho-me na casa de banho e fico durante todo o tempo que ouso.
Quando regresso ao meu lugar na mesa, Doris Gamp, aliás Tulipa, chegou
pontualmente para a sua segunda consulta, tendo feito todo o caminho de
bicicleta até Köpenick, com o filho Gustav instalado na cesta.

De novo Riemeck:

O estado de espírito de mãe e filho é jovial e descontraído. O tempo está ótimo, o


marido, Lothar, foi convocado de urgência para uma reunião em Varsóvia e só regressa
daqui a dois dias; estão muito bem-dispostos. Amanhã, ela e Gustav irão de bicicleta
até casa da sua irmã Lotte, «a única outra pessoa que amo no mundo», informa-me
alegremente. Confiando o miúdo à minha querida mãe, que só desejaria que ele fosse
meu, conduzo a camarada [apagado] até ao consultório do sótão e ponho Bach a tocar
alto no gramofone. Cerimoniosamente – eu diria que travessamente – ela presenteia-
me com uma caixa de bombons que diz ter-lhe sido dada por Emmanuel Rapp e
adverte-me de que não os coma todos de uma vez. Ao abrir a caixa vejo que ela
contém, em lugar de bombons belgas, duas cassetes de película subminiatura. Sento-
me num banco ao lado dela, com a sua boca próxima do meu ouvido. Pergunto-lhe o
que está na película subminiatura. Ela responde que são documentos secretos da Stasi.
Pergunto-lhe como os obteve e ela responde que os fotografou esta mesma tarde com a
ajuda da câmara Minox do próprio Emmanuel Rapp, na sequência de um encontro
sexual particularmente degradante. Ainda mal o ato tinha sido consumado, o
Rappschwein esgueirara-se para uma reunião na Casa 2 para a qual já estava atrasado.
Ela sentia-se vingativa e ousada. Os documentos encontravam-se espalhados na
secretária dele. A câmara Minox estava na gaveta onde ele a guarda durante o dia.
«Presume-se que os funcionários da Stasi sejam permanentemente seguros nos seus
hábitos», diz-me ela, adotando o tom de um apparatchik da Stasi. «O Rappschwein é
tão arrogante que se acha acima dos regulamentos do Serviço.»
«E as cassetes?», pergunto-lhe eu. Como é que ela as justifica?
O Rappschwein é infantil, e por conseguinte os seus caprichos têm de ser
imediatamente satisfeitos. É expressamente proibido, mesmo aos funcionários
superiores, guardar equipamentos especiais tais como câmaras secretas ou aparelhos de
gravação nos seus cofres pessoais, mas Rapp ignora esta determinação, como outras.
Além disso, ao sair da sala tão à pressa deixou até a porta do cofre aberta, outra
flagrante quebra de segurança, permitindo que ela evitasse a fechadura de cera.
Eu pergunto-lhe: o que é uma fechadura de cera? Ela explica que nos cofres da Stasi
há uma sofisticada fechadura que é revestida por uma camada de cera mole. Ao fechar
o cofre, o legítimo possuidor deixa a sua própria marca na cera, utilizando a chave
fornecida pela Stasi e o sinete a ela preso [Petschaft], que traz permanentemente
consigo. Cada Petschaft é numerado, individualmente manufaturado e constitui um
exemplar único. Quanto a cassetes, tem caixas de cartão cheias delas e usa a sua
Minox como um brinquedo para muitos fins extraoficiais e dissolutos. Por exemplo,
tentou muitas vezes persuadi-la a posar nua para ele, mas ela recusou-o sempre.
Guarda também garrafas de vodca e slivovitz no cofre, uma vez que, como muitos
manda-chuvas da Stasi, bebe muito e, quando está embriagado, fala indiscretamente.
Perguntando-lhe eu como conseguiu escamotear o filme subminiatura da sede da Stasi,
ela soltou uma risadinha e respondeu que um médico como eu tinha obrigação de
saber.
Assevera, porém, que, apesar da obsessão da Stasi com a segurança interna, as
pessoas que têm os passes certos não são submetidas a revista física. Por exemplo, a
camarada [apagado] tem um passe que a autoriza a movimentar-se à sua vontade entre
as Casas 1 e 3 do complexo da Stasi. Pergunto-lhe o que espera ela que eu faça com as
cassetes, agora que me comprometeu com elas, e ela responde que devo fazer o favor
de as passar às Informações britânicas. Pergunto-lhe porque não às americanas e ela
fica escandalizada. É comunista, diz. A América imperialista é sua inimiga.
Regressamos ao andar de baixo. Gustav está a jogar dominó com a minha querida mãe.
Ela comenta que é um miúdo encantador e muito bom no dominó e que gostaria de o
roubar.

O ramo técnico das Encobertas, sempre à procura de uma desculpa para


entrar na festa, intervém:

TecEncobertas para C/Encobertas Berlim [Leamas].


Ref. Seu Agente Principal PRIMAVERA:

1. Você refere que o consultório do sótão em Köpenick contém um rádio antigo. Op


Tecs podem adaptar um aparelho de gravação?
2. Você refere que Primavera tem uma câmara reflex de uma objetiva fixa que é
aprovada pela Stasi para uso lúdico. Tem também uma lâmpada solar para uso
terapêutico e, dos seus tempos de estudante, um microscópio. Uma vez que ele já
tem os componentes essenciais, deverá receber instrução de manufatura de
micropontos?
3. Köpenick é uma zona rural, densamente arborizada, ideal para escamoteamento de
TSF e outro equipamento operacional. Equipa remanescente para proceder a
reconhecimento e informar?
4. Fechaduras de cera. No decurso dos folguedos de Tulipa com Emmanuel Rapp,
poderá ela ter oportunidade de tirar uma impressão da sua chave pessoal do cofre e
sinete [Petschaft] a ela preso? Os depósitos das Técnicas tem um amplo sortido de
DE [dispositivos de escamoteamento] para conter substâncias tipo plasticina
adequadas.

A repulsa interior regressa. No decurso dos seus folguedos? Não eram


folguedos de Tulipa porra nenhuma, eram do Rappschwein, diabos o
levem! Tulipa sujeitava-se a eles porque sabia que, se não o fizesse, seria
posta na rua sob acusações disciplinares forjadas e Gustav nunca entraria
na escola de elite que ela sonhava. E pronto, ela era uma mulher
apaixonada e facilmente excitável. Isso não quer dizer que tivesse prazer,
fosse com o Rappschwein, fosse com o marido!
Em Berlim, porém, Alec Leamas não tem preocupações dessas:

C/Encobertas Berlim [Leamas] para C/Encobertas Marylebone [Smiley].


Carta semioficial, cópia para arquivo.

Caro George:
Uma tiragem perfeita!
Tenho o prazer de comunicar que a impressão do Petschaft e da chave de Emmanuel
Rapp, secretamente obtidos pela subfonte Tulipa, produziram um fac-símile claro, com
letras e números bem distintos. Os cowboys das Tecs aconselharam que, por motivos
de segurança, ela aplicasse uma pequena torção ao retirar o Petschaft da cera. Portanto
uma rodada de duplos para todos!
Seu na fé,
Alec

P.S. Junto PP de Tulipa, conforme normas da Sede, EXCLUSIVO PARA


ENCOBERTAS!! AL

PP de Pormenores Pessoais. PP de estenografia de qualquer vida


humana pela qual o Serviço tenha um interesse passageiro. PP de
penitência. PP de padecimento.

Nome completo da subagente: Doris Carlotta Gamp


Data e local de nascimento: Leipzig 21.x.29
Habilitações literárias: Licenciatura pelas universidades de Jena e Dresden em
Ciências Políticas e Sociais.
Uma irmã: Lotte, professora primária em Potsdam, solteira.
CV e outros dados pessoais: Idade 23, recrutada como arquivista de 2.a classe, Sede
da Stasi, Berlim Leste. Credenciação restrita a Confidencial e inferior. Após um
período experimental de seis meses, credenciação elevada para Secreto. Colocada na
secção J3, responsável pelo tratamento e avaliação de relatórios de postos do
estrangeiro.
Após um ano no emprego, estabelece relações com Lothar Quinz, de quarenta e um
anos, considerado uma estrela em ascensão no Ministério do Negócios Estrangeiros da
RDA. Seguem-se a gravidez e o casamento civil.
Seis meses após o casamento, Quinz, de solteira Gamp, dá à luz um filho e põe-lhe
o nome de Gustav, como o pai. Sem o conhecimento do marido, trata do batismo do
filho por um padre e starets [santo peregrino] ortodoxo russo reformado de oitenta e
sete anos, um pretenso Rasputine adstrito a um quartel do Exército Vermelho em
Karlshorst. Afora isso, não se sabe como aconteceu a suposta conversão à ortodoxia
russa. Para que Quinz não desse por nada, Gamp disse-lhe que ia a Potsdam ver a irmã
e foi ter com o Rasputine de bicicleta, com Gustav na cesta.
A 10 de junho de 1957, no final do seu quinto ano no emprego, é novamente
promovida, desta vez a secretária pessoal de Emmanuel Rapp, diretor das operações
estrangeiras, formado no KGB.
Para manter a proteção de Rapp, consentiu também em proporcionar-lhe favores
sexuais. Quando se queixa disto ao marido, este diz-lhe que os desejos de um
camarada da importância de Rapp não devem ser negados. Ela julga que esta seja uma
atitude compartilhada pelos seus colegas da Stasi. Segundo Tulipa, eles estão a par do
caso e sabem que ele constitui uma grosseira infração à disciplina da Stasi. Mas
receiam também que, dada a dimensão do poder de Rapp, denunciando-o venham a
sofrer as consequências.

Experiência operacional até à data:


Ao ingressar na Stasi, frequentou um curso de doutrinação para todo o pessoal
menor. Ao contrário de muitos dos seus colegas, fala e escreve bem russo. Escolhida
para formação adicional em métodos conspirativos, reuniões encobertas, recrutamento
e embuste. Recebeu também formação em escrita secreta (químico e fluidos),
fotografia clandestina (subminiatura, micropontos), vigilância, contravigilância, TSF
básica. Aptidão classificada como «boa a excelente».
Como SP e «menina bonita» (descrição do próprio) de Rapp, acompanha-o
regularmente a Praga, Budapeste e Gdansk, onde participa em reuniões de informações
de serviços de ligação do Bloco Leste organizadas pelo KGB. Duas vezes utilizada
como estenógrafa de atas nessas reuniões. Apesar da sua antipatia por ele, sonha
acompanhar Rapp a Moscovo para ver a Praça Vermelha à noite.

Comentários Finais do Funcionário Encarregado:


C/Encobertas Berlim para C/Encobertas Marylebone [sem dúvida com a ajuda de
Stas de Jong]
O relacionamento da subfonte Tulipa com este Serviço processa-se exclusivamente
por intermédio de Primavera. Ele é seu médico, controlador, confidente, confessor
pessoal e melhor amigo, por esta ordem. Por conseguinte o que temos aqui é uma
rapariga de um parceiro só dominada pelo nosso agente principal e cá para mim é
assim que as coisas se devem manter. Como sabe, equipámo-la recentemente com a
nossa própria Minox, montada no fecho da carteira dela, e cassetes na base de uma lata
de pó de talco. É também, a partir de agora, a orgulhosa possuidora de um duplicado
da chave e do Petschaft da fechadura de cera do cofre de Rapp.
É por conseguinte gratificante que Primavera comunique que Tulipa não mostra
sinais perturbantes de tensão. Pelo contrário, diz que o seu moral nunca foi tão
elevado, que parece deleitar-se com o perigo e a sua única preocupação é que se torne
demasiado confiante e corra riscos desnecessários. Enquanto os dois puderem
encontrar-se naturalmente em Berlim sob camuflagem médica, não está grandemente
preocupado.
No entanto, levanta-se um problema operacional totalmente diferente quando ela
acompanha Rapp a reuniões fora da RDA. Uma vez que as caixas de recolha de
correio não são resposta para requisitos ad hoc, poderão as Encobertas encarar a
hipótese de colocar um correio cego em prontidão para dar assistência em cima da
hora a Tulipa em cidades não pertencentes ao bloco alemão?

Viro uma página. Tenho a mão firme. Em situações de tensão está


sempre assim. Trata-se de uma conversa operacional normal entre o QG
das Encobertas e Berlim.

George Smiley para Alec Leamas em Berlim, pessoal, nota manuscrita, cópia para
arquivo:

Alec. Prevendo a ida próxima de Emmanuel Rapp a Budapeste, é favor providenciar


que a fotografia anexa de Peter Guillam, que servirá de seu correio cego, seja mostrada
asap13 à subfonte Tulipa.
Cumprimentos, G

George Smiley para Peter Guillam, nota manuscrita, cópia para arquivo:

Peter. Será esta a sua dama em Budapeste. Examine-a bem!


Bon voyage, G

– Disse alguma coisa? – perguntou abruptamente Nelson, levantando os


olhos do livro.
– Nada. Porquê?
– Deve ter sido lá fora na rua.
*

Quando estamos a examinar as feições de uma mulher desconhecida


para fins operacionais, os pensamentos carnais ficam em suspenso. Não
estamos à procura de fascínio. Perguntamos a nós próprios se ela terá o
cabelo curto ou comprido, pintado, debaixo de um chapéu ou a
descoberto, e aquilo que o seu rosto terá a oferecer em termos de sinais
particulares: testa ampla, malares altos, olhos pequenos ou grandes, se são
redondos ou naturalmente amendoados. Depois do rosto, procuraremos a
forma e tamanho do corpo e tentaremos imaginar que aspeto teria se ela
vestisse qualquer coisa mais reconhecível que os estandardizados casaco-
e-calça e pesadões sapatos de atacadores do Partido. Não estamos à
procura do seu sex-appeal, a não ser na medida em que possa atrair o
olhar de algum observador impressionável. A minha única preocupação
nesta fase era como a possuidora daquele rosto e daquele corpo se ia
comportar perante um correio cego num quente dia de verão nas ruas
rigorosamente vigiadas de Budapeste.
E a resposta breve veio a ser: imaculadamente. Engenhosa, hábil,
anónima, determinada. E eu, como seu correio cego, não lhe ficava atrás.
Num dia soalheiro, numa rua movimentada, dois estranhos, avançamos
um para o outro, estamos a ponto de chocar, eu guino para a esquerda e ela
para a direita, há um embaraço momentâneo. Eu resmungo uma desculpa,
ela ignora-a e passa rapidamente adiante. Eu fico mais rico com duas
cassetes de microfilme.
Uma segunda passagem de raspão na Cidade Velha de Varsóvia quatro
semanas mais tarde, embora mais exigente, decorre também sem
novidade, como atesta o meu relatório manuscrito para George, com cópia
para Alec:

PG para C/Encobertas Marylebone, cópia para AL, Berlim.


Assunto: Treff cego da subfonte Tulipa.

Tal como em anteriores ocasiões, conseguimos reconhecimento mútuo antecipado.


O contacto entre corpos foi indetetável e rápido. Não creio que mesmo uma vigilância
próxima fosse capaz de captar o momento da transferência.
Era evidente que Tulipa tinha sido excelentemente industriada por Primavera. A
minha passagem subsequente ao C/Posto Varsóvia decorreu sem dificuldades.
PG

E a resposta manuscrita de Smiley:

Uma vez mais, muito bem, Peter! Bravo! GS

Mas talvez não propriamente tão bem como Smiley pensa, ou com tanta
tranquilidade como o meu relatório manuscrito tão entusiasticamente
sugeria.
*

Sou um turista francês da Bretanha integrado numa viagem de grupo


suíça. O meu passaporte descreve-me como diretor de uma empresa mas,
interrogado pelos meus companheiros de viagem, revelo-me como um
humilde caixeiro-viajante de adubos para a agricultura. Com o meu grupo,
gozo as vistas da Cidade Velha de Varsóvia, magnificamente restaurada.
Uma mulher jovem bem desenvolvida, de calças largueironas e colete
axadrezado, dirige-se a passadas largas para nós. O cabelo, que da última
vez tinha visto escondido por uma boina, está hoje solto e é acobreado. A
cada passo que ela dá, oscila ao sol. Traz um lenço de pescoço verde. Se
não trouxesse lenço queria dizer que não havia entrega. Eu levo um boné
de pano do Partido com uma estrela vermelha, comprado numa banca de
rua. Enfio o boné no bolso, não há entrega. A Cidade Velha está
enxameada de outros grupos de turistas. O nosso é menos dócil do que a
nossa guia polaca gostaria. Três ou quatro de nós já se perderam dela,
tagarelando uns com os outros em lugar de ouvirmos a arenga sobre o
milagroso renascimento da cidade a seguir aos bombardeamentos nazis.
Uma estátua de bronze despertou-me a atenção. Despertou igualmente a
de Tulipa, porque era assim que o nosso encontro tinha sido coreografado.
Não haverá afrouxamento do passo quando nos encontrarmos. A
despreocupação é tudo, bastando não a exagerar. Nada de contacto visual,
mas nada de demasiado estudado na maneira como nos ignoramos um ao
outro. Varsóvia é uma cidade onde há muitas escutas. As atrações
turísticas estão à cabeça da lista de locais a vigiar.
Então o que vem a ser aquele desenvolto menear das ancas que ela está
a fazer repentinamente, o que vem a ser o clarão de explícitas boas-vindas
nos grandes olhos cor de avelã? Por um segundo fugaz – mas menos fugaz
do que aquilo para que estou preparado – as nossas mãos direitas
enroscam-se uma na outra. Porém, em vez de se separarem
imediatamente, os dedos dela, após terem depositado o seu minúsculo
conteúdo, ficam aninhados na palma da minha mão, e ali continuariam
aninhados durante mais tempo se eu não os tivesse libertado à força.
Estará louca? Estarei eu? E que vem a ser aquele vislumbre de sorriso de
boas-vindas que captei?... Ou estarei a iludir-me?
Seguimos os nossos caminhos separados: ela para a sua reunião de
espiocratas do Pacto de Varsóvia, eu com o meu grupo para um bar numa
cave, onde por acaso o adido cultural da Embaixada britânica e a mulher
estão a banquetear-se numa mesa de canto. Mando vir uma cerveja e
dirijo-me à casa de banho dos homens. O adido cultural, que eu conheço
de outra vida como colega formado em Sarratt, segue-me. A passagem é
rápida e muda. Volto a juntar-me ao meu grupo. Porém, o tremular dos
dedos de Tulipa não desapareceu.
E não desapareceu até agora, quando leio o hino de louvor de Stas de
Jong à subfonte Tulipa, a estrela mais brilhante da rede Primavera:

Tulipa foi cabalmente informada de que está a passar informações a este Serviço e
que Primavera é o nosso auxiliar extraoficial e também o seu intermediário. Ela
chegou à conclusão de que ama incondicionalmente a Inglaterra. Impressiona-a de
modo especial a elevada qualidade da nossa maneira de atuar e individualizou o seu
mais recente treff em Varsóvia como exemplo da excelência britânica.
As condições de realojamento de Tulipa uma vez terminado o trabalho, aconteça
isso quando acontecer, serão 1000 libras por mês de serviço completo, acrescido de um
pagamento único ex gratia de 10 000 libras, conforme aprovado pelo C/Encobertas
[GS]. Mas o seu maior desejo é que, na devida altura, ela e o filho Gustav passem a ter
a cidadania britânica.
Os seus dotes de encobrimento são talvez ainda mais notáveis. O seu êxito na
instalação de uma câmara subminiatura na base do estrado de um chuveiro na casa de
banho das senhoras do seu corredor liberta-a da tensão de a levar e trazer da Casa 3 na
carteira. O seu Petschaft e chave feitos pelo Serviço permitem-lhe entrar e sair do
cofre de Rapp sempre que não há ninguém por perto e se acha disposta a isso. No
passado sábado confiou a Primavera que o seu sonho mais recorrente é casar-se um dia
com um belo inglês!
– Então? Passa-se alguma coisa? – pergunta Nelson, desta vez com
intenção.
– Cheguei a uma roseta – respondo eu, o que por acaso é verdade.
*

Bunny trouxe uma pasta e veste um fato escuro. Veio diretamente de


uma reunião nas Finanças, não revelando com quem ou porquê. Laura está
reclinada na cadeira de Smiley, de pernas cruzadas. Bunny tira uma
garrafa de Sancerre quente da pasta e serve um copo a cada um de nós. A
seguir abre um pacote de caju salgado, dizendo que nos podemos servir.
– Tarefa pesada, Peter? – pergunta jovialmente.
– O que é que espera? – retruco eu, no tom ofendido que resolvi adotar.
– Não é propriamente um alegre passeio pelas ruas da memória, pois não?
– Mas útil, espero eu. Não é demasiado stressante, revisitar os tempos e
os rostos de outrora?
Deixo passar aquilo. O interrogatório principia, primeiro languidamente:
– Posso interrogá-lo primeiro sobre Riemeck, um caráter invulgarmente
cativante para um agente, na minha opinião?
Aceno afirmativo.
– E médico. Bastante bom.
Novo aceno.
– Então porque é que os relatórios do dia de Primavera, tal como foram
distribuídos aos felizes fregueses de Whitehall, descrevem a fonte como (e
cito) um funcionário bem colocado pertencente aos escalões intermédios
do Partido de Unidade Socialista da Alemanha de Leste com acesso
regular a material da Stasi altamente classificado?
– Desinformação – respondo.
– Plantada por quem?
– Pelo George, pelo Controlo, pelo Lacon, das Finanças. Todos eles
sabiam que o material de Primavera ia provocar rebuliço no momento em
que viesse a lume. A primeira coisa que os fregueses perguntariam era
quem é a fonte. Por isso cozinharam uma fonte fictícia de igual peso.
– E a sua Tulipa?
– Que é que tem a Tulipa?
Depressa de mais. Devia ter esperado. Estará ele a acicatar-me? Por que
outro motivo estará a dirigir-me aquele sorrisinho sabido, destituído de
alegria, que me dá vontade de lhe bater? E por que motivo está Laura
também com um sorrisinho nos lábios? Estará a desforrar-se na sequência
do nosso frustrado jantar grego?
Bunny está a ler qualquer coisa que tem no regaço, e o seu tema
continua a ser Tulipa:
– A subfonte é uma secretária principal do Ministério do Interior com
acesso aos mais altos círculos. Não será ir um bocadinho longe de mais?
– Ir longe de mais em quê?
– Não lhe dá um bocadinho mais de… bem, de respeitabilidade, do que
ela merece? Quero eu dizer, que tal secretária principal promíscua, para
começar? Funcionária ninfomaníaca talvez se lhe aplicasse melhor, se
estamos a procurar alguma espécie de equivalência no mundo real. Ou
porventura prostituta piedosa, atendendo às suas preferências religiosas?
Está a olhar para mim, à espera da minha explosão de fúria, indignação,
negação. Não sei como, nego-lhe essa satisfação.
– Seja como for, suponho que você devia conhecer a sua Tulipa –
continua. – Já que lhe prestou tão diligentemente assistência.
– Eu não lhe prestei assistência coisa nenhuma, e ela não é a minha
Tulipa – replico eu com comedida intencionalidade. – Durante todo o
tempo em que ela esteve no terreno, Tulipa e eu não trocámos uma única
palavra.
– Nem uma?
– Nem uma em todos os nossos treffs. Só tivemos passagens de raspão,
nunca falámos.
– Então como é que ela sabia o seu nome? – inquire ele, com o seu
sorriso mais cativante e juvenil.
– Ela não sabia o raio do meu nome! Como diabo havia de o saber, se
nem sequer alguma vez dissemos olá um ao outro?
– Um dos seus nomes, digamos assim – insiste ele, imperturbável.
A deixa de Laura:
– Veja lá se Jean-François Gamay serve, Pete – sugere ela, no mesmo
tom chocarreiro. – Sócio duma empresa do ramo eletrónico com sede em
Metz, a gozar um pacote de férias à beira do mar Negro da empresa estatal
de viagens da Bulgária. Isso é um bocadinho mais do que olá.
A minha explosão de riso alegre é incontrolada, e é lógico que o seja,
visto ser produto de espontâneo e genuíno alívio.
– Oh, por amor de Deus! – exclamo, associando-me à diversão. – Isso
não foi o que eu disse a Tulipa. Foi o que eu disse ao Gustav!
*

Eis-vos, pois, aqui, Bunny e Laura, e espero que estejam comodamente


sentados para esta narrativa exemplar sobre a maneira como os melhores e
mais secretos planos podem desmoronar-se devido à inocência de uma
criança.
O meu nome de trabalho é efetivamente Jean-François Gamay, e é
verdade que estou inserido num grupo de viajantes numeroso e
rigorosamente vigiado a gozar o mar e o sol a baixo preço numa estância
balnear búlgara do mar Negro cuja salubridade não é a melhor.
Do lado da baía oposto ao nosso reles hotel fica a Pousada dos
Trabalhadores do Partido, um monstro brutalista de cimento de estilo
soviético coberto de bandeiras comunistas, e ouve-se a sua música marcial
que nos chega estrondeante pela água fora, intercalada de edificantes
mensagens de paz e boa vontade através de uma bateria de altifalantes.
Algures no interior das suas paredes, Tulipa e o seu filho Gustav, de cinco
anos, estão a gozar umas férias coletivas de trabalhadores, graças às
influentes ligações do odioso camarada Lothar, o marido de Tulipa, que
venceu misteriosamente a relutância da Stasi de permitir folguedos em
plagas estrangeiras aos seus membros. Está acompanhada pela irmã, Lotte,
a professora de Potsdam.
Na praia, entre as quatro e as quatro e um quarto, Tulipa e eu fazemos
uma passagem de raspão, e desta feita ela incluirá o filho, Gustav. Lotte
estará a bom recato na hospedaria, a participar numa reunião de
trabalhadores. A iniciativa pertence ao agente no terreno, neste caso
Tulipa. A minha missão será responder à sua criatividade. E cá está ela
agora, a caminhar na minha direção pela rebentação, envergando um
roupão de praia largo e trazendo uma bolsa de corda a tiracolo. Ao avançar
dirige o olhar de Gustav para uma concha ou pedra preciosa para o seu
balde. Tem o mesmo menear de ancas que eu me recusei a reconhecer na
Cidade Velha de Varsóvia – só que tenho o cuidado de não referir as ancas
dela a Bunny e Laura, que seguem todas as minhas descontraídas palavras
com indisfarçado ceticismo.
Ao aproximar-se mais, ela rebusca no saco de corda que traz a tiracolo.
Outros amantes do sol, outras crianças, chapinham na água, tomam
banhos de sol, comem sanduíches de salsicha e jogam xadrez, e Tulipa, a
representar, não regateia um sorriso ou uma palavra a este ou àquele
camarada. Não sei com que estratagema, persuade Gustav a aproximar-se
de mim, ou aquilo que ela lhe diz fá-lo rir alto e correr para mim num
desafio e enfiar-me na mão um pedaço de caramelo de coco azul, branco e
cor-de-rosa.
Eu sei, porém, que tenho de ser cativante, que tenho de exprimir deleite,
tenho de fingir que como um bocado do caramelo, tenho de meter o resto
no bolso, agachar-me, descobrir magicamente na rebentação uma concha
que já me tinha sido sub-repticiamente enfiada na mão e oferecê-la a
Gustav à guisa de retribuição.
Ao ver tudo isto, Tulipa ri-se alegremente – um tanto alegremente de
mais, mas tão-pouco conto essa parte a Laura e Bunny – e faz-lhe sinal:
agora volta para aqui, querido, e deixa o simpático camarada em paz.
Mas Gustav não quer deixar o simpático camarada em paz, o que
constitui todo o fulcro da espirituosa história que conto a Bunny e Laura.
Gustav, que é um miúdo impertinente, pelos critérios de quem quer que
seja, afastou-se do guião. Pensa que fez um negócio com o simpático
camarada, caramelo por concha, e precisa de conhecer melhor social e
comercialmente este novo parceiro de negócio.
– Como é que se chama? – pergunta.
– Jean-François. E tu?
– Gustav. Jean-François quê?
– Gamay.
– E que idade tem?
– Cento e vinte e oito anos. E tu?
– Cinco. Donde é que o camarada vem?
– De Metz, em França. E tu?
– De Berlim, na Alemanha Democrática. Quer ouvir uma cantiga?
– Claro que sim.
Assim, Gustav põe-se em sentido na rebentação, espeta o peito para fora
e presenteia-me com uma cantiga da escola a agradecer aos nossos
queridos soldados soviéticos verterem o seu sangue por uma Alemanha
socialista. Entretanto a mãe, que está de pé atrás dele, desaperta
calmamente o cinto do roupão de praia e, com o olhar fixo no meu, exibe
o corpo nu em toda a sua incontestável glória antes de voltar a apertar
languidamente o cinto e se juntar a mim no meu pródigo aplauso pela
atuação do filho; depois fica a olhar como mãe orgulhosa que é enquanto
eu aperto a mão a Gustav, dou um rápido passo à retaguarda e, com o
punho direito erguido, devolvo a sua saudação comunista.
Mas a glória do corpo nu de Tulipa é também algo que guardo para
mim, ao mesmo tempo que pondero uma pergunta que me consome
mesmo antes de ter começado a contar a minha divertida história: como
diabo sabiam vocês que Tulipa sabia o meu nome?

10 Abreviatura de Navy, Army and Air Force Institute, organismo criado em 1921 pelo governo
britânico para gerir as instalações recreativas necessárias às Forças Armadas e vender artigos aos
militares e respetivas famílias. (N. do T.)

11 Em francês no original: loucura a dois. (N. do T.)

12 Em francês no original: galera. (N. do T.)

13 Abreviatura de as soon as possible: assim que possível. (N. do T.)


7

Não sei que tipo específico de fuga me assolou quando, libertado cedo
dos meus labores, saí da obscuridade dos Estábulos para o bulício
vespertino de Bloomsbury e, sem obedecer a nenhum impulso de que me
apercebesse, me encaminhei para sudoeste, na direção de Chelsea.
Humilhação, por certo. Frustração e desorientação, indubitavelmente.
Afronta por me escarafuncharem o passado e atirarem-mo à cara. Culpa,
vergonha, apreensão, em boa dose. E tudo isso dirigido numa única
explosão de dor e incompreensão contra George Smiley por estar
incontactável.
Mas estaria mesmo? Será que Bunny me mentia, tal como eu lhe mentia
a ele, e George não estava tão incontactável como ele asseverava? Tê-lo-
iam já encontrado e espremido, se tal coisa alguma vez era possível? Se
Millie McCraig sabia a resposta – e eu desconfiava que sim –, estava
também obrigada ao silêncio pela sua própria versão da Lei de Proteção
dos Segredos Oficiais que estabelecia que, vivo ou morto, George Smiley
era indiscutível.
Ao aproximar-me de Bywater Street, outrora uma rua sem saída para
gente que não tinha uma vida propriamente desafogada e hoje mais um
dos guetos de milionários de Londres, recuso-me a reconhecer a onda de
nostalgia que me invade, ou a tomar a obrigatória nota mental de carros
estacionados, esquadrinhá-los para ver se têm ocupantes ou dar uma
cautelosa vista de olhos às portas e janelas das casas fronteiras. Quando
foi a última vez que aqui vim? A minha memória detém-se na noite em
que torneei os pequenos estratagemas de George com cunhas da madeira
na porta da rua e me pus à espera para o levar rapidamente ao
esparramado castelo vermelho de Oliver Lacon em Ascot, na primeira
etapa da sua angustiante jornada até ao seu velho amigo querido Bill
Haydon, refinado traidor e amante da mulher.
Neste ocioso final de tarde outonal, porém, o n.o 9 de Bywater Street
nada sabe e nada viu destas coisas. As persianas estão corridas, o jardim
da frente invadido pelas ervas daninhas e os ocupantes partiram ou
morreram. Subo os quatro degraus até à porta de entrada, toco à
campainha, não ouço o retinir familiar nem passos, ligeiros ou pesados.
Nada de George, a pestanejar de prazer ao mesmo tempo que limpa os
óculos com o forro da gravata – «olá, Peter, está com cara de quem precisa
duma bebida, entre». Nada de Ann alvoroçada, só com meia maquilhagem
feita – «estava mesmo de saída, Peter, meu querido, beijinho, mas entre,
entre e venha lá endireitar o mundo com o pobre do George».
Regresso a passo militar a King’s Road, chamo um táxi para
Marylebone High Street e apeio-me em frente à livraria Daunt’s, mas no
tempo de Smiley Messrs. Francis Edwards, fundada em 1910, onde ele
passou muitas ditosas horas de almoço. Mergulho num labirinto de vielas
empedradas e casas que eram antigos estábulos que em tempos incluiu o
posto avançado do Circus para as Operações Encobertas – ou, na gíria,
simplesmente Marylebone.
Ao contrário dos Estábulos, que sempre foram apenas uma casa segura
dedicada a uma única operação, Marylebone, com as suas três portas da
rua, era um Serviço por si só: tinha os seus próprios funcionários
administrativos, cifras, operadores de cifra, correios e o seu próprio
exército cinzento de Eventuais, que nunca se conheciam uns aos outros e
eram oriundos de todas as classes sociais, aos quais bastava ouvirem a
chamada para largarem as ferramentas e congregarem-se em torno da
causa.
Era então remotamente concebível que as Encobertas ainda tivessem ali
a sua existência? Na minha fuga, quero crer que sim. E George Smiley
esconde-se ainda por detrás das suas janelas com as persianas corridas?
Na minha fuga devo ter-me convencido de que sim. Das nove campainhas
de porta, só uma funcionava. Era preciso ser-se um dos fiéis para saber
qual. Primo-a. Não há resposta. Primo os outros dois botões da mesma
entrada. Passo à entrada seguinte e primo os três. Uma voz de mulher
atira-me um guincho.
– Ela não está aqui, porra, Sammy! Pôs-se na alheta com o Wally e o
miúdo. Se tornas a tocar, chamo a bófia, palavra que chamo.
A sua advertência devolve-me a sobriedade. Quando dou por mim, estou
sentado na tranquilidade de Devonshire Street, a beber um cordial de flor
de sabugueiro num café cheio de médicos de fato, a murmurarem,
conferenciando entre si. Espero que a minha respiração afrouxe. À medida
que a cabeça se desanuvia, o mesmo acontece ao meu empenhamento.
Durante os últimos dias e noites, a despeito de todas as distrações, a
imagem de Christoph, o delinquente, criminoso e esperto filho de Alec, a
interrogar brutalmente a minha Catherine na soleira da porta da minha
casa da Bretanha não me abandonou. Até essa manhã, nunca tinha ouvido
o tom de receio na voz de Catherine. Não de receio por si própria: de
receio por mim. Não era afável, Pierre… áspero… como um pugilista…
perguntou se estás num hotel em Londres… qual é a morada?
Digo a minha Catherine porque a considerei desde a morte do pai a
minha guardiã, e que se lixem as insinuações de Bunny em sentido oposto.
Assisti ao seu crescimento desde a infância. Ela viu as minhas mulheres
surgirem e desaparecerem até não ficar nenhuma. Quando se designou a si
própria como a menina malcomportada da aldeia, desafiando a irmã, mais
bonita, e dormiu com todo o bicho-careta a que conseguisse deitar a mão,
eu não dei ouvidos aos bombásticos protestos do padre da aldeia, que
provavelmente tinha um fraquinho por ela. Eu não tenho à-vontade com as
crianças, mas quando Isabelle nasceu senti-me tão feliz por Catherine
como ela ficou. Nunca lhe disse o que fazia na vida. E ela nunca me disse
quem era o pai da criança. Em toda a aldeia, eu era a única pessoa que não
sabia nem queria saber. Se ela quiser, um dia a propriedade será sua, e
Isabelle correrá ao seu lado, e talvez haja um homem mais novo para
Catherine, e talvez a pequena Isabelle esteja disposta a olhá-lo nos olhos.
Seremos também amantes, com todos aqueles anos a separar-nos?
Gradualmente, parece que somos. O entendimento foi firmado por
Isabelle, que numa noite de verão palmilhou o pátio com a roupa de cama
e, sem nunca me dirigir um olhar, se instalou no chão por baixo da janela
do patamar, à porta do meu quarto. A minha cama é grande; o quarto dos
hóspedes é escuro e frio; mãe e filha não se podiam separar. Na minha
lembrança, Catherine e eu dormimos inocentemente ao lado um do outro
semanas a fio antes de nos voltarmos um para o outro. Mas talvez não
tenhamos esperado tanto como eu gostaria de pensar.
*

Pelo menos de uma coisa estava certo: não teria problemas em


reconhecer o meu perseguidor. Ao esvaziar o apartamento de solteiro de
Alec em Holloway após a sua morte, tinha dado com um álbum de
fotografias de bolso com um edelvaisse espalmado enfiado por baixo da
capa de celofane. Estava prestes a deitá-lo fora quando me apercebi de que
tinha nas mãos um registo fotográfico da vida de Christoph desde o berço
até à matrícula na universidade. As legendas em alemão a tinta branca por
baixo de cada instantâneo tinham sido acrescentadas, imaginava eu, pela
mãe. O que me tinha impressionado era como a mesma expressão fechada
de que eu me recordava da partida de futebol em Düsseldorf se tinha
sempre mantido até ao atarracado e carrancudo sósia de Alec, de fato
domingueiro, a segurar um rolo de pergaminho como se estivesse prestes a
espetá-lo na nossa cara.
E o que sabe Christoph sobre mim, entretanto? Que estou em Londres,
no funeral de um amigo. Que estou a ser bom samaritano. Não tenho
morada conhecida e não sou homem de clubes. Nem sequer um
investigador da alardeada qualidade de Christoph me encontrará na lista
do Travellers ou do National Liberal Club. Nem nos registos da Stasi, nem
onde quer que seja. A minha última residência conhecida no Reino Unido
era um apartamento de dois quartos em Acton onde morara sob o nome de
Peterson. Quando dei o aviso prévio ao senhorio, não deixei morada para
onde reencaminharem a correspondência. Onde, então, depois da
Bretanha, podia o severo, persistente, descortês e criminoso Christoph,
filho de Alec, forte como um pugilista, vir procurar-me? Qual seria o
lugar, o único lugar, onde, se for realmente uma pessoa de sorte, teria
alguma possibilidade, apanhando ventos de feição, de dar comigo?
A resposta – a única resposta que para mim fazia algum sentido – era a
Lubyanka à beira-Tamisa do meu antigo Serviço: não o velho Circus do
pai, difícil de encontrar, mas o seu horrendo sucessor, o bastião cujo
reconhecimento eu estava em vias de fazer.
*

A Ponte de Vauxhall fervilha de pessoas que regressam do trabalho a


casa. O rio por baixo dela corre veloz e está a abarrotar de tráfego. Eu não
faço parte do grupo de turistas búlgaros; sou, isso sim, um turista dos
antípodas, que anda a ver as paisagens de Londres: chapéu de cowboy e
colete de caqui com múltiplos bolsos. Para a minha primeira passagem
trago um boné e um lenço de pescoço axadrezado, e para a segunda um
gorro com pompom de apoiante do Arsenal. O custo bruto de todo o
guarda-roupa na feira da estação de Waterloo foi catorze libras. Em Sarratt
chamávamos-lhes mudanças de silhueta.
Há para todos os vigias distrações contra as quais se devem precaver,
costumava eu advertir os meus jovens formandos: coisas que os nossos
olhos não largam, como a rapariga bonita que está intrepidamente a tomar
banho de sol na varanda, ou o pregador ambulante vestido como Jesus
Cristo. Para mim, esta tarde, é um minúsculo retângulo de relva luxuriante
completamente cercado de espigões que os meus olhos se recusam a
largar. O que é? Uma célula de castigo ao ar livre para heréticos do
Circus? Um secreto jardim de prazer exclusivo para oficiais superiores?
Mas como é que lá entram? Pior ainda, como é que saem?
Numa pequena praia de seixos na base dos baluartes exteriores do
bastião, uma família asiática vestida de sedas coloridas faz um piquenique
no meio de gansos-do-canadá. Um veículo anfíbio amarelo trepa
penosamente a rampa atrás deles e para, aos sacões. Ninguém sai. São
quase cinco e meia. Estou a lembrar-me das horas de expediente do
Circus: das dez até quando for preciso para os ungidos, das nove e meia às
cinco e meia para a plebe. Está prestes a iniciar-se um discreto êxodo de
funcionários menores. Estou a contar prováveis pontos de saída, que serão
dispersos a fim de se tornarem pouco conspícuos. Quando o bastião
começou a ser ocupado pelos atuais inquilinos, corriam histórias de túneis
secretos por baixo do rio até Whitehall. Bem, em tempos que já lá vão o
Circus escavou um ou dois túneis, a maior parte deles por baixo de
território de outrem, e sendo assim, porque não um par deles debaixo do
seu?
Quando me fora apresentar a Bunny, tinham-me feito entrar por uma
porta de passagem para peões enfezada por um par de portões de aço à
prova de arrombamento com um motivo art déco, mas cá para mim a
porta de passagem era só para visitantes. Das outras três saídas que tinha
observado, a que melhor se coaduna com a minha intuição é um par de
portas pintadas de cinzento situadas ao cimo de um discreto lanço de
escadas de pedra do lado do rio, dando acesso ao fluxo de peões do
passeio. Quando dobro a esquina, as portas cinzentas abrem-se e sai meia
dúzia de homens e mulheres, cuja média de idades andará entre os vinte e
cinco e os trinta anos. Irmana-os uma expressão de determinado
anonimato. As portas fecham-se, suspeito que eletronicamente. Voltam a
abrir-se. Desce um segundo grupo.
Eu sou a presa de Christoph e o seu perseguidor. Presumo que ele tenha
estado a fazer o mesmo que eu no decurso da última meia hora: a
familiarizar-se com o edifício alvo, a selecionar saídas prováveis, a
aguardar o seu momento. Estou a agir no pressuposto de que Christoph é
impulsionado pelos mesmos sólidos instintos operacionais que o pai, que
já pensou bem no caminho que vai seguir de acordo com as prováveis
ações da sua presa e traçou os seus planos em conformidade. Se, como diz
Catherine, eu fui a Londres para o funeral de um amigo – e por que razão
havia ele de duvidar disso? –, é uma certeza absoluta que terei também ido
fazer uma visita aos meus antigos patrões para matutar sobre a penosa
ação judicial histórica que Christoph e a sua recém-descoberta amiga
Karen Gold estão a intentar contra o Serviço e os seus oficiais
identificados, dos quais eu faço parte.
Há outra fornada de homens e mulheres a descer os degraus. Ao
chegarem ao passeio, ponho-me na sua peugada. Uma mulher de cabelo
grisalho concede-me um sorriso cortês. Pensa que devia reconhecer-me.
Os transeuntes do passeio público misturam-se connosco. Há um letreiro a
dizer: Para Battersea Park. Aproximamo-nos de uma arcada. Levanto a
vista e vejo a figura de chapéu de um homem corpulento com um
sobretudo escuro a três quartos, postado na ponte, a examinar os
transeuntes em baixo. O local que escolheu, por acaso ou desígnio,
proporciona-lhe uma boa visão das saídas do bastião. Tendo eu próprio
tirado partido do mesmo ponto estratégico, posso confirmar o seu valor
tático. Devido ao facto de ter a cabeça inclinada para baixo, e devido ao
chapéu, que é um feltro preto de copa alta e aba estreita, o seu rosto está
na escuridão. A sua corpulência de pugilista, porém, não levanta dúvidas:
ombros largos, costas amplas e uns bons oito centímetros mais alto do que
eu esperaria do filho de Alec; mas a verdade é que não cheguei a conhecer
a mãe.
Já passámos a arcada. O sobretudo escuro e feltro preto abandonou a
ponte e juntou-se ao cortejo. Apesar da sua corpulência, move-se depressa.
Alec também era assim. Está vinte metros atrás de mim. O feltro oscila de
um lado para outro. Está a tentar não perder de vista alguém ou alguma
coisa adiante dele, e eu tendo a pensar que seja eu. Quererá que eu o
descubra? Ou estarei eu a ligar demasiado à vigilância, outro pecado
contra o qual costumava insurgir-me?
Corredores, ciclistas e barcos passam velozmente por nós. À minha
esquerda, blocos de apartamentos. Na base destes, luxuosos restaurantes
com esplanada, cafés e bancas de comida rápida. Estou a servir-me de
reflexos. Estou a afrouxá-lo. Estou a lembrar-me das minhas próprias
preleções as novos concorrentes: são vocês que marcam o ritmo, não é a
pessoa que vos segue. Remanchem. Sejam indecisos. Nunca corram
quando puderem andar devagar. O rio fervilha de barcos de recreio,
ferryboats, esquifes, barcos a remos e barcaças. Na margem, artistas de
rua fazem estátuas humanas, miúdos agitam bolas de sabão, operam
drones de brinquedo. Se não és o Christoph, és um vigia do Circus. Mas
os vigias do Circus, mesmo nas nossas piores épocas, nunca eram tão
maus.
No St. George’s Warf guino à direita e faço de conta que estou a
consultar o horário. Identificarão o perseguidor dando-lhe opções. Saltará
ele para o autocarro a seguir a vocês, ou dirá «que se lixe o autocarro» e
continuará a pé? Se continuar a pé, talvez vos esteja a deixar para outra
pessoa. Porém, o feltro e o sobretudo preto não estão a deixar-me para
outra pessoa. Ele quer-me para si mesmo e está a rondar uma banca de
salsichas, a escrutinar-me no complicado espelho por trás dos frascos de
mostarda e ketchup.
Na máquina de bilhetes para os ferries que vão para leste está a formar-
se uma fila. Meto-me nela, espero a minha vez e compro um bilhete para a
Tower Bridge, só de ida. O meu perseguidor resolveu não comprar uma
salsicha. Os ferries atracam, o cais balança e deixamos os passageiros
saírem primeiro. O meu perseguidor atravessou o passeio e está debruçado
sobre a máquina dos bilhetes. Gesticula irritadamente. Ajudem-me,
alguém. Um rasta de boné mole mostra-lhe como se faz. É em dinheiro,
não é com cartão de crédito, e o rosto continua na penumbra por baixo do
feltro. Estamos a embarcar. O convés superior está atafulhado de turistas.
A multidão é vossa amiga. Usem-na bem. Eu uso a multidão do convés
superior e arranjo um espaço da balaustrada enquanto espero que o meu
perseguidor faça o mesmo. Aperceber-se-á de que eu tenho consciência da
sua presença? Estaremos ambos numa onda de consciência mútua? Ter-
me-á ele, como diriam os meus alunos de Sarratt, topado a topá-lo? Se
topou, abortem.
Só que eu não estou disposto a abortar. O barco guina. Um raio de luz
incide sobre ele, mas o rosto permanece na sombra, embora na margem
esquerda da minha linha de visão eu o veja a deitar-me uma olhadela após
outra, como se receasse que eu me pusesse em fuga ou me atirasse à água.
Poderás ser mesmo Christoph, o filho de Alec? Ou és o funcionário de
algum advogado, incumbido de me espetar com uma citação? Mas, se é
isso que és, porque é que me espreitas? Porque é que não me abordas aqui
e agora e me confrontas? O barco torna a oscilar e a luz do Sol volta a
incidir sobre ele. A cabeça levanta-se. Vejo-lhe pela primeira vez o rosto
de perfil. Tenho a sensação de que devia ficar espantado e deliciado, mas
não estou uma coisa nem outra. Não sinto nenhum ímpeto de afinidade.
Apercebo-me apenas de uma sensação de ajuste de contas iminente:
Christoph, filho de Alec, com o mesmo olhar fixo, sem pestanejar, que
recordo do estádio de futebol em Düsseldorf, e o mesmo queixo saliente
de irlandês.
*

Se Christoph estava a adivinhar-me as intenções, também eu estava a


adivinhar as suas. Não se me tinha identificado porque estava à espera de
me situar, como dizem os vigias: descobrir onde eu estou e, depois de o
fazer, escolher o seu tempo e lugar. A minha resposta tinha de ser negar-
lhe a informação operacional que procurava e ditar as minhas próprias
condições, que haviam de ser um local movimentado com bastantes
espectadores inocentes. Mas as prevenções de Catherine aumentavam as
minhas apreensões, forçando-me a ter em conta a possibilidade de um
homem violento em busca de reparação pelos percecionados pecados por
mim cometidos contra o seu falecido pai.
Foi com esta contingência em mente que me recordei de em miúdo ter
sido obrigado a fazer a visita da Torre de Londres pela minha mãe
francesa, acompanhado pelas suas sonoras e embaraçosas exclamações de
horror perante tudo o que via. E lembro-me em especial da grande
escadaria da Tower Bridge. Era esta escadaria que agora falava comigo,
não pelas suas icónicas atrações, mas pela minha autopreservação. No
criadouro de Sarratt não se ensinava autodefesa. Ensinava-se uma porção
de maneiras de matar, algumas silenciosamente, outras menos, mas a
autodefesa não figurava grandemente no programa. O que eu sabia de
ciência certa era que, se as coisas viessem realmente a redundar em luta,
precisava do peso do meu opositor em cima de mim e de toda a ajuda que
a gravidade podia proporcionar. Ele era um brigão adestrado na prisão,
com dezoito quilos de ossos e músculos a mais do que eu. Eu precisava de
usar o seu peso contra ele e não conseguia imaginar sítio melhor do que
uma escadaria íngreme, com a minha envelhecida pessoa de pé uns
degraus abaixo dele para o acelerar no trajeto. Tomara umas quantas
precauções inúteis: transferira todos os trocos que tinha para o bolso
direito do casaco para usar como metralha de curto alcance e enfiara o
dedo médio da mão esquerda na argola do porta-chaves como soqueira
improvisada. Nunca ninguém perdeu uma luta por se preparar para ela,
não é verdade, filho? Não, monitor, nunca.
Estávamos a fazer fila para desembarcar. Christoph encontrava-se três
metros e meio atrás de mim e o seu reflexo no espelho da porta era
inexpressivo. Cabelo grisalho, dissera Catherine. Agora percebia porquê:
um montão dele, a transbordar em todas as direções por baixo do feltro,
grisalho, crespo e rebelde como de Alec, com a porção central entrançada
num rabo-de-cavalo que caía sobre as costas do sobretudo preto. Porque
não falara Catherine do rabo-de-cavalo? Talvez ele o metesse para dentro
do casaco. Talvez os rabos-de-cavalo não fossem uma prioridade para ela.
Numa laboriosa fila de dois a dois, subimos uma rampa. A Tower Bridge
estava descida. Uma luz verde sinalizava aos peões que atravessassem. Ao
alcançar a abertura para a grande escadaria, virei-me e olhei diretamente
para ele. Estava a dizer-lhe: Se queres falar, falamos aqui, com gente a
passar. Ele tinha também parado, mas a única coisa que lhe vi no rosto e
nos olhos foi o olhar inflexível do espectador de futebol. Desci
rapidamente uma dúzia de degraus da escadaria, que estava deserta, à
exceção de um par de sem-abrigo. Precisava de um ponto a meio caminho.
Precisava que ele tivesse uma grande extensão para a queda depois de ter
passado por mim, porque não queria que ele voltasse.
A escadaria encheu-se. Passaram duas raparigas risonhas a correr, de
mãos dadas. Um par de monges de hábitos cor de açafrão estava
envolvido numa séria discussão filosófica com um mendigo. Christoph,
uma silhueta de chapéu e sobretudo, estava ao cimo das escadas. Degrau a
degrau, com deliberada cautela, começou a descer a escadaria, com os
braços meio erguidos do flanco e os pés afastados, na atitude de
aproximação furtiva do lutador. Estás muito lento, incitei-o eu, atira-te a
mim, preciso do teu impulso. Mas ele tinha-se detido um par de degraus
acima de mim e ouvi pela primeira vez a sua voz de adulto, que era
germano-americana e aguda, coisa que de alguma maneira me chocou.
– Olá, Peter. Olá, Pierre. Sou eu, o Christoph. O garoto do Alec, lembra-
se? Não está satisfeito por me ver? Não quer apertar-me a mão?
Largando os trocos que tinha na mão, levantei a mão direita na sua
direção. Ele agarrou-a e reteve-a o tempo bastante para eu sentir a força
que ele tinha, apesar da escorregadia humidade da palma.
– Que posso eu fazer por si, Christoph? – perguntei, obtendo por
resposta uma das cáusticas gargalhadas de Alec e aquele pedaço extra de
irlandês que ele punha na voz quando estava a exagerar:
– Bem, rapaz, para começar pode oferecer-me o raio duma bebida!
*

O restaurante ficava no primeiro andar de uma intitulada Old Towne


House com falsas vigas carunchosas e uma vista enviesada da Torre
através de janelas em esquadria. As empregadas andavam de touca e bibe
e podíamos ocupar uma mesa se concordássemos em tomar uma refeição
completa. Christoph sentou-se com o volumoso corpo afundado na cadeira
e o feltro puxado para os olhos. A empregada trouxe cerveja, que era o que
tínhamos pedido. Ele bebeu um gole, fez uma careta e pô-la de lado.
Unhas pretas e lascadas. Anéis em todos os dedos da mão esquerda. Na
mão direita, apenas os dois do dedo médio que contam. O rosto é o de
Alec, mas com uma papuda insatisfação onde deviam estar as rugas de
dor. O mesmo maxilar belicoso. Nos olhos castanhos, quando queriam
saber de nós para alguma coisa, os mesmos vislumbres de pirática
sedução.
– Então o que é que faz nos tempos que correm, Christoph? – perguntei-
lhe eu. Ele pensou durante um pedaço.
– Nos tempos que correm?
– Sim.
– Bem, acho que a resposta abreviada é: isto – respondeu, endereçando-
me um grande sorriso.
– E o que vem a ser exatamente isto? Acho que não sei a história toda.
Ele, porém, abanou a cabeça como quem diz que não interessava e só se
pôs direito quando a empregada trouxe o nosso bife com batatas fritas.
– É uma bela propriedade, a que o senhor tem lá na Bretanha – observou
ele, a comer. – Quantos hectares tem?
– Cinquenta e tal. Porquê?
– É sua?
– De que é que estamos a falar, Christoph? Porque é que veio à minha
procura?
Ele meteu mais uma garfada à boca, inclinou a cabeça e sorriu para
dizer que eu tinha levantado uma questão pertinente.
– Porque é que eu vim à sua procura? Faz agora trinta anos fui caçador
de fortunas. Viajei pelo mundo inteiro. Trabalhei com diamantes.
Trabalhei com oiro. Trabalhei com droga. Trabalhei um pouco com armas.
Estive na prisão. Demasiado tempo. Encontrei a minha fortuna? Encontrei
mas é uma porra. Depois volto à minha velha Europazinha e encontro-o a
si. A minha mina de ouro. O melhor amigo do meu pai. O seu melhor
camarada. E o que fez você ao seu melhor camarada? Fez com que o
matassem. Isso quer dizer dinheiro, homem. Quer dizer dinheiro a valer.
– Eu não fiz com que matassem o seu pai.
– Leia os ficheiros, homem. Leia os ficheiros da Stasi. São dinamite.
Você e o George Smiley mataram o meu pai. O Smiley era o cabecilha.
Você era uma espécie de moço de recados número um dele. Você armou
uma cilada ao meu pai e matou-o. Direta ou indiretamente, foi o que fez. E
atraiu Miss Elizabeth Gold para o jogo. Está tudo na porra dos ficheiros,
homem! Esta grande trama perversa que vocês imaginaram e que se virou
contra o feiticeiro e matou toda a gente. Você mentiu ao meu pai! Você e o
seu grande George. Mentiram ao meu pai e mandaram-no para a morte.
Deliberadamente. Pergunte aos advogados. Sabe que mais? O patriotismo
morreu, homem. O patriotismo é para bebés. Se este caso ganhar
proporções internacionais, o patriotismo como justificação não pega. O
patriotismo como atenuante está oficialmente fodido. Tal como as elites.
Tal como vocês – acrescentou e, prestes a dar uma refrescante golada na
cerveja, mudou de ideias e rebuscou no bolso do sobretudo preto, que
conservara vestido apesar do calor. De uma maltratada caixa de folha
verteu um pouco de pó branco no pulso e, tapando uma narina com a mão
livre, aspirou-o bem à vista de todos os fregueses que quisessem olhar, e
muitos fizeram-no.
– Então o que é que está aqui a fazer? – perguntei.
– A salvar-lhe a porra da vida, homem – respondeu ele e, estendendo
ambas as mãos, agarrou-me o pulso num gesto de verdadeira fidelidade. –
Portanto o acordo é este. A sua oportunidade perfeita. Está bem? A minha
oferta pessoal para si. A melhor oferta que alguma vez terá na vida. Você é
meu amigo, está bem?
– Se você o diz.
Libertei-me dele, mas ele continuava a fitar-me melosamente.
– Não tem mais nenhum amigo. Não há mais nenhum acordo em cima
da mesa. É uma oferta irrepetível. Sem renúncia ao direito de ação. Não
negociável. – Ergue a caneca, esvazia-a e faz sinal à empregada para
trazer outra. – Um milhão de euros. A mim pessoalmente. Nada de
terceiros envolvidos. Um milhão de euros no dia em que os advogados
deixarem cair o processo judicial, e nunca mais ouvirá falar de mim. Nem
advogados, nem direitos humanos, nem merda nenhuma. Você comprou o
pacote inteiro, e pronto. Porque é que está a olhar para mim? Tem algum
problema?
– Não tenho problema nenhum. É só que o preço me parece barato. Eu
estava mais ou menos convencido de que os seus advogados já tinham
recusado essa quantia e mais ainda.
– Não está a ouvir. Eu estou a propor-lhe um preço reduzido. É isso que
estou a dizer. Estou a propor-lhe um preço reduzido, um pagamento único,
a mim, um milhão de euros.
– E a filha da Liz Gold, a Karen… fica satisfeita, depreendo eu?
– A Karen? Escute. Eu conheço essa rapariga. Tudo o que tenho de fazer
é ir ter com ela, dar-lhe música como eu sei, falar da minha alma, chorar
porventura um bocadinho e dizer-lhe que afinal não posso levar esta coisa
por diante, que é tudo demasiado doloroso para mim, a lembrança do meu
pai, há que deixar os mortos dormir. Tenho as palavras todas. A Karen é
sensível. Confie em mim.
E, quando eu não exibo os necessários sinais de confiança:
– Escute. Fui eu que inventei a sacana da rapariga. Ela está em dívida
para comigo. Fui eu que fiz o trabalho, fui eu que paguei às pessoas, fui eu
que fiquei com os ficheiros. Fui ter com ela, dei-lhe a boa notícia e disse-
lhe onde podia encontrar a sepultura da mãe. Fomos falar com os
advogados. Os advogados dela. Pro bono, os piores. Onde é que ela os foi
desencantar? A uma espécie de Amnistia. Uma organização de direitos
humanos qualquer. Os advogados pro bono vão ter com o seu governo e
pregam-lhes um sermão. O seu governo nega qualquer responsabilidade,
faz uma oferta secreta, isto-fica-aqui-entre-nós, nunca-dissemos-isto, sem
renúncia ao direito de ação, de um milhão de libras esterlinas. Um
milhão! E isto é um preço-base, é negociável. Pessoalmente, nos tempos
que correm eu não quereria nada com as libras esterlinas, mas isso é uma
questão lateral. O que é que os advogados da Karen fazem? Pregam outro
sermão. Nós não queremos um milhão de libras, dizem eles. Somos
pessoas de princípios, queremos que vocês sejam humilhados. E, se não
forem humilhados, levamos-vos a tribunal e se necessário for até
Estrasburgo e ao Tribunal Europeu da Porra dos Direitos do Homem. O
seu governo diz pronto, dois milhões, mas os pro bono dela continuam a
não alinhar. São como a Karen. São santos. São puros.
Um estrondo metálico faz voltar todas as cabeças do restaurante. A suja
mão esquerda de Christoph, com todos os anéis, aterrou de palma para
baixo na mesa à minha frente. Está a esticar o pescoço para diante.
Escorre-lhe suor pelo rosto. Abre-se uma porta que diz Reservado ao
Pessoal, aparece uma cabeça sobressaltada e, ao ver Christoph, some-se.
– Há de querer os meus dados bancários… está bem, homem? Aqui os
tem. E diga lá ao seu governo, homem: um milhão de euros no dia em que
desistirmos, senão caímos-lhe em cima com toda a força da porra da lei.
Levantou a mão para revelar um pedaço dobrado de papel pautado e fica
a ver-me enfiá-lo na carteira.
– Quem é a Tulipa? – pergunta, no mesmo tom ameaçador.
– Perdão?
– O nome de código de Doris Gamp. Uma mulher da Stasi, que tinha
um miúdo.
Não tinha anunciado a sua partida. Eu estava ainda a insistir que o nome
Gamp-Tulipa não me dizia nada. Uma corajosa empregada vinha a correr
com a conta, mas ele já ia a meio das escadas. Quando cheguei à rua tudo
o que dele vi foi a sua volumosa sombra no banco de trás de um táxi que
partia e a sua mão branca a dizer preguiçosamente adeus pela janela.
Sei que regressei a pé a Dolphin Square. A certa altura do caminho devo
ter-me lembrado do pedaço de papel pautado com o número da conta dele
e atirei-o para uma lata de lixo, mas ser-me-ia bastante difícil dizer-vos
qual.
8

O tempo benigno de ontem tinha sido afastado por uma chuva lateral
que varria as ruas de Pimlico como um tiroteio. Chegado tardiamente para
a minha entrevista nos Estábulos, dei com Bunny sozinho, postado à
entrada da porta com um guarda-chuva.
– Já estávamos a pensar se você não se teria esgueirado – disse ele,
exibindo o seu sorriso de rapaz tímido.
– E se tivesse?
– Digamos que não iria muito longe. – Ainda a sorrir, passou-me um
envelope castanho que tinha escrito a vermelho Serviço de Sua Majestade.
– Parabéns. Pede-se-lhe cortesmente que compareça perante os nossos
patrões. A comissão parlamentar de inquérito quer ter uma conversinha
consigo. Data a ser anunciada.
– E uma conversinha consigo também, imagino.
– Marginalmente. Mas não somos nós as estrelas, pois não?
Um Peugeot negro encosta. Ele entra para o assento de trás. O Peugeot
arranca.
– Preparado para a leitura, Pete? – pergunta Pepsi. Está já instalada no
seu trono da biblioteca. – Parece que temos um dia cansativo pela frente.
Refere-se à gorda pasta parda que está à minha espera na mesa de
cavalete: a minha obra-prima inédita, quarenta páginas dela.
*

– Estou a propor que você elabore um relatório oficial sobre o caso,


Peter – está Smiley a dizer-me.
São três da manhã. Estamos sentados diante um do outro no salão da
frente de uma habitação social numa propriedade de New Forest.
– Vejo-o como a pessoa ideal para a tarefa – continua ele, no mesmo
tom deliberadamente impessoal. – Um relatório conclusivo, por favor,
demasiado extenso, cheio de pormenores irrelevantes e poupando-nos a
única informação que só você e eu e quatro outras pessoas no mundo, se
Deus quiser, alguma vez podem saber. Algo que satisfaça os mórbidos
apetites da Conjunta de Coordenação, e sirva de obscurecimento para a
autópsia da Sede… emprego a palavra figurativamente… que certamente
será pedida. A ser elaborada para minha aprovação exclusiva em primeira
instância, por favor. Só para meu conhecimento. Fá-lo-á? É capaz? Com a
Ilse sentada ao seu lado, naturalmente.
Ilse, a estrela linguista das Encobertas: a formal e meticulosa Ilse que
conhece o alemão, o checo, o servo-croata e o polaco como os belos dedos
da mão; que vive com a mãe em Hampstead e toca flauta aos sábados à
noite. Ilse sentar-se-á ao meu lado e corrigirá as minhas transcrições de
gravações alemãs. Sorriremos conjuntamente dos meus pequenos erros,
discutiremos conjuntamente a escolha de uma palavra ou frase,
mandaremos conjuntamente vir as nossas sanduíches. Debruçar-nos-emos
conjuntamente sobre o gravador, bateremos acidentalmente com a cabeça
um no outro, pediremos conjuntamente desculpa. E às cinco e meia,
pontualmente, Ilse voltará para a sua casa de Hampstead, para junto da
mãe e para a sua flauta.
*

DESERÇÃO E EXFILTRAÇÃO DA SUBFONTE TULIPA


Esboço de relatório elaborado por P. Guillam, Adj. do C/Encobertas Marylebone,
para Bill Haydon, C/Conjunta de Coordenação e Oliver Lacon, Min. Finanças. Para
aprovação do C/Encobertas.

AS PRIMEIRAS INDICAÇÕES de que a subfonte Tulipa podia estar em risco de


exposição ocorreu no decurso de um treff de rotina entre Primavera e o seu controlador
Leamas (PAUL) na casa segura K2 de Berlim Oeste (Fasanenstrasse) a 16 de janeiro,
cerca das 0730. 14
Utilizando a sua identidade de Friedrich Leibach, Primavera tinha atravessado de
bicicleta* a fronteira do setor para Berlim Oeste de bicicleta juntamente com a
«cavalaria matutina» de operários de Berlim Leste. Um opíparo «pequeno-almoço
inglês», composto de ovos estrelados, bacon e feijão cozido, confecionado por
Leamas, tornou-se a refeição tradicional para estes treffs, que têm lugar a intervalos
irregulares consoante as necessidades operacionais e os compromissos profissionais de
Primavera. Como de costume, o procedimento iniciava-se com um debriefing de rotina
e notícias aleatórias da rede.
A subfonte NARCISO tem tido recaídas da doença, mas insiste em continuar a
desempenhar o seu papel, recebendo e expedindo «livros raros, brochuras e correio
pessoal».
O relatório da subfonte VIOLETA sobre o reforço militar soviético na fronteira checa
foi bem recebido pelos fregueses de Whitehall. Deve ser concedido a Violeta o bónus
que pede.
A subfonte PÉTALA tem novo namorado. Tem 22 anos e é cabo de transmissões do
Exército Vermelho, especialista em cifra natural de Minsk, recentemente colocado na
sua unidade. É um filatelista obsessivo e disse-lhe que a sua velha tia (fictícia) tem
uma coleção de selos russos anteriores à Revolução de que está farta, e é capaz de estar
disposta a desfazer-se dela por uma determinada quantia. Ela pretende que o preço,
negociado na cama, seja um livro de códigos. A conselho de Leamas, Primavera
assegurou-lhe que Londres fornecerá uma adequada coleção de selos.
Só nesta altura a conversa passa a incidir sobre a subfonte Tulipa. Textualmente:
Leamas: E no que respeita à Doris? Está em cima ou em baixo?
Primavera: Paul, meu amigo, não sei e não sou capaz de fazer um diagnóstico. Com
a Doris, todos os dias são diferentes.
Leamas: Você é a sua tábua de salvação, Karl.
Primavera: Ela chegou à conclusão de que o marido, Mr. Quinz, anda a interessar-se
demasiado por ela.
Leamas: Já não era sem tempo. Em que sentido?
Primavera: Desconfia dela. Ela não sabe de quê. Está sempre a perguntar-lhe onde
vai, com quem se encontra. Onde esteve. Vigia-a a fazer a comida, a vestir-se, a tratar
da vida dela.
Leamas: Talvez a Doris tenha por fim arranjado um marido ciumento.
Primavera: Ela refuta isso. Diz que o Quinz só tem ciúmes de si próprio, da sua
brilhante carreira e do seu ego. Mas, com a Doris, sabe-se lá!
Leamas: E quanto à vida no serviço?
Primavera: Ela diz que o Rapp não desconfia dela porque as suas transgressões
disciplinares não lho permitem. Diz que se a S.I. a considerasse suspeita, ela já estaria
sentada numa jaula na casa de detenção ao fundo da rua.
Leamas: S. I.?
Primavera: É a secção de segurança interna da Stasi. No caminho para a suíte do
Rapp, ela passa todos os dias à porta dela.

Ao meio-dia desse mesmo dia, por uma questão de rotina, Leamas mandou de Jong
rever os planos de contingência existentes para a exfiltração da subfonte Tulipa. De
Jong confirmou que os documentos e recursos de fuga visando uma exfiltração para
leste via Praga estavam em vigor. Depois de esperar pela mudança de turno da noite
dos operários, Primavera voltou de bicicleta para Berlim Leste.

Pepsi está num desassossego, descendo repetidamente do seu trono para


deambular pela sala sem qualquer razão, ou pondo-se de pé atrás de mim a
espreitar por cima do meu ombro. Estou a imaginar Tulipa no mesmo
estado de inquietação, ora em casa em Hohenschönhausen, ora no seu
gabinete contíguo ao de Emmanuel Rapp na Casa Número 3 da Stasi em
Magdalenenstrasse.

A SEGUNDA INSINUAÇÃO surgiu sob a forma de um telefonema de médico para


médico. Com a ajuda da polícia de Berlim Oeste, tinha sido instituído um sistema de
contacto de emergência. Se Primavera telefonasse da Charité (Berlim Leste) para a
Klinikum (Berlim Oeste) e pedisse para falar com o seu hipotético colega Dr.
Fleischmann, a chamada seria imediatamente reencaminhada para o Posto de Berlim.
Às 0920 de 21 jan. teve lugar a seguinte conversa reencaminhada entre Primavera e
Leamas, sob fachada médica.

Textualmente:
Primavera (telefonando da Charité, em Berlim Leste): Dr. Fleischmann?
Leamas: O próprio.
Primavera: Fala o Dr. Riemeck. O colega tem uma paciente. Frau Lisa Sommer*. 15
Leamas: O que se passa com ela?
Primavera: Ontem à noite Frau Sommer compareceu na minha unidade de Urgências
sofrendo de alucinações. Sedámo-la mas durante a noite ela ausentou-se.
Leamas: Alucinações de quê?
Primavera: Fantasia que o marido desconfia que ela anda a divulgar segredos a
elementos fascistas antipartido.
Leamas: Obrigado. Tomo nota. Infelizmente sou preciso no bloco.
Primavera: Compreendido.

Passam duas horas durante as quais Primavera tirou do esconderijo o seu


equipamento Theatre**, sintonizou-o em conformidade com as especificações
recomendadas e obteve finalmente um débil sinal. A qualidade do som foi irregular
durante toda a conversa subsequente. No essencial: 16
Nessa mesma manhã Tulipa tinha feito uma inédita chamada de crise para o
consultório de Primavera, consistindo numa série combinada de pancadinhas precisas
no bocal de um telefone de terceiro (nesta caso uma cabina telefónica). Em resposta
Primavera transmitira o seu assentimento: duas pancadinhas, pausa, três pancadinhas.
O encontro de emergência [rv] era um bosquezinho nos arredores de Köpenick: por
acaso o mesmo bosquezinho que fora previamente escolhido para ocultar o seu
equipamento Theatre. Ambas as partes chegaram de bicicleta com minutos de
diferença entre si. O estado de espírito inicial de Tulipa, segundo Primavera, era
«triunfalista». Quinz estava «neutralizado», era «como se estivesse morto». Primavera
devia rejubilar com ela. Deus estivera do seu lado. Depois, o relato que segue:
Ao regressar do trabalho a casa a altas horas da noite passada, Quinz tinha pegado
na câmara Zenit pendurada pela correia atrás da porta da rua, abrira a parte de trás,
murmurara qualquer coisa, fechara-a bruscamente e voltara a pô-la no respetivo
cabide. Depois pedira para inspecionar o conteúdo da carteira de Tulipa. Como ela
resistisse, arremessou-a para o fundo da sala e revistou-a na mesma. Quando Gustav se
precipitou em defesa da mãe, Quinz agrediu-o na cara, pondo-o a deitar sangue pela
boca e pelo nariz. Não encontrando, manifestamente, o que procurava, Quinz
esquadrinhou armários e gavetas da cozinha, apalpou freneticamente os cortinados e
assaltou as roupas de Tulipa e finalmente o armário dos brinquedos de Gustav, tudo
isto sem êxito.
Com Gustav a ouvir, desafiou então Tulipa em voz muito alta a explicar, em
perguntas contadas pelos dedos esticados: primeiro, por que razão a câmara de família
Zenit não tinha película; segundo, porque é que havia só uma película por usar na
bolsa do estojo da câmara, quando há uma semana havia dois; e terceiro, porque é que
um rolo que ainda no domingo passado estava metido na Zenit com dois fotogramas
expostos tinha também desaparecido.
E, à guisa de perguntas subsidiárias, o que tinha ela fotografado com as restantes
oito exposições? Onde tinha ela posto o filme a revelar? Onde estavam os resultados?
E o que acontecera à película virgem desaparecida? Ou tinha ela (era a sua convicção
pessoal) andado a fotografar os documentos classificados que ele levava para casa e a
vendê-los a espiões ocidentais?
Os verdadeiros factos da situação, como Tulipa sabia muito bem, era os que seguem.
Desde que escondera uma Minox debaixo do estrado do chuveiro da casa de banho das
senhoras do seu corredor da Casa 3, Tulipa não tinha em princípio guardado nenhuma
Minox nem no fecho da sua carteira nem em casa. Se Quinz levasse para casa
documentos do Ministério dos Negócios Estrangeiros com interesse, Tulipa esperava
que ele estivesse a dormir ou entretido com os seus amigos e fotografava os
documentos com a Zenit da família. No domingo anterior fizera dois instantâneos de
Gustav num baloiço no parque infantil. Nessa mesma noite, enquanto Quinz estava a
beber com os amigos, ela utilizara os fotogramas restantes do mesmo rolo para
fotografar documentos da pasta dele. Depois tirara a película da Zenit, enterrara-a num
vaso de flores até ao próximo treff com Primavera, mas não se preocupara em colocar
um rolo novo na câmara, e muito menos em pôr o dedo diante da lente e fazer um par
de disparos para simular duas fotografias falhadas de Gustav. Apesar de tudo isto,
Tulipa conseguiu montar aquilo que considerava um contra-ataque demolidor sobre o
marido. Informou Quinz, para o caso de ele não saber, que havia muita gente da Stasi
que continuava a desconfiar dele por causa do seu odioso pai e da sua suposta
homossexualidade; que ninguém da Stasi se deixava levar pelos seus exagerados
protestos de fidelidade ao Partido; e sim, ela tinha efetivamente fotografado aquilo a
que conseguira deitar a mão da pasta dele, não para vender ao Ocidente ou a quem
quer que fosse, mas sim para fazer chantagem com ele em caso de uma guerra pela
custódia de Gustav, que ela considerava iminente. Porque uma coisa era certa, disse-
lhe ela: se alguma vez viesse a saber-se que Lothar Quinz levava documentos
classificados para casa a fim de se embrenhar neles, bem podia dizer adeus aos seus
sonhos de vir a ser embaixador da RDA no estrangeiro.

Regresso à gravação:
Leamas a Primavera: Então em que pé estão as coisas?
Primavera a Leamas: Ela está convencida de que o reduziu ao silêncio. Esta manhã ele
foi trabalhar como de costume. Estava calmo, afetuoso, até.
Leamas: Onde está ela agora?
Primavera: Em casa, à espera do Emmanuel Rapp. Ao meio-dia em ponto ele passa de
carro para a recolher e vão a Dresden para uma sessão plenária do Soviete de
Segurança Doméstica. Ele prometeu-lhe que desta vez ela participará na reunião
como sua assistente. Será uma honra para ela.
[Pausa de quinze segundos.]
Leamas: Muito bem. Eis o que ela fez. Telefona já para o gabinete do Rapp. Passou
toda a noite tremendamente maldisposta, tem um febrão e está demasiado doente
para viajar, lamenta imenso. Depois aborta. Ela sabe o procedimento. Comparece ao
encontro. Espera.

Leamas informou então a Sede por telegrama relâmpago de que a necessidade de


uma exfiltração de emergência da subfonte Tulipa tinha subido de âmbar para
vermelho, e que, estando inteiramente consciente da fonte Primavera, toda a rede
Primavera devia ser considerada em risco. Dado que o plano de fuga exigia a
colaboração dos Postos de Praga e de Paris, os recursos da Conjunta de Coordenação
eram essenciais. Pedi também autorização imediata para executar a exfiltração «em
pessoa», tendo perfeita consciência de que, ao abrigo das ordens permanentes do
Circus, um oficial no ativo na posse de informações de grande sensibilidade que se
propõe entrar em território interdito sem proteção diplomática tem de obter prévio
consentimento por escrito da Sede – neste caso a Conjunta de Coordenação. Dez
minutos depois tinha a sua resposta: «Seu pedido recusado. Confirme. C.C.» Afora
isto, o telegrama não vinha assinado, de acordo com a política do C/CC [Haydon] de
tomada de decisões coletiva. Simultaneamente, a Interceção de Sinais reportou um
súbito aumento de tráfego em todos os comprimentos de onda da Stasi, enquanto a
Missão Militar Britânica em Potsdam registava um reforço da segurança em todos os
pontos de passagem para Berlim Oeste ao longo de toda a fronteira entre a RDA e a
Alemanha Ocidental. Às 1505 GMT a rádio anunciou uma busca a nível nacional por
uma mulher não identificada, lacaia do imperialismo fascista, correspondendo à
descrição seguinte. A descrição era de Tulipa.
Entretanto Leamas tinha já tomado as suas próprias iniciativas, desafiando as
instruções da Conjunta de Coordenação. Não se desculpa por isso, alegando apenas
que não ia «ficar de braços cruzados a ver Tulipa e toda a rede Primavera a ir para o
galheiro». Quando a Conjunta de Coordenação insistiu que pelo menos o próprio
Primavera devia ser imediatamente exfiltrado, a réplica de Leamas foi inflexível: «Ele
pode sair quando muito bem quiser, mas não sai. Prefere ir a julgamento como o pai.»
É menos claro o papel desempenhado por Stavros de Jong, recém-promovido a Oficial
Adjunto do Posto, e Ben Porter, guarda de segurança e motorista do Posto.

Testemunho de Ben Porter (guarda de segurança, Posto de Berlim) a PG, textual:


Alec está na sua secretária, ao telefone seguro com a Conjunta de Coordenação. Eu
estou de pé à porta. Ele poisa o aparelho, vira-se para mim e diz: «Ben», diz ele, «toca
a andar. É uma recolha em movimento. Vá buscar o Land Rover e diga ao Stas que o
quero completamente equipado no pátio dentro de cinco minutos», diz ele. Mr. Leamas
nunca me disse: «Ben, tenho de o informar de que está a fazer isto em direta
contravenção às instruções da Sede.»

Testemunho de Stavros de Jong (estagiário adstrito ao C/Encobertas Berlim) a PG,


textual:
Perguntei ao Chefe das Encobertas: «Tem a certeza de que a Sede nos apoia nesta,
Alec?» Ao que ele respondeu: «Dou-lhe a minha palavra que sim, Stas.» E portanto eu
aceitei-a.

Os seus protestos de inocência eram meus, e não deles. Uma vez que eu
não tinha dúvidas de que Smiley tinha encorajado Leamas a proceder
pessoalmente à exfiltração de Tulipa, tive o cuidado de munir Porter e de
Jong de depoimentos livre-da-prisão para o caso de serem obrigados a dar
conta dos seus atos por Percy Alleline ou um dos seus capangas.
*

Passaram-se três dias. A história é retomada pelo próprio Alec. São dez
da noite e ele está a ser objeto de debriefing do outro lado de uma mesa de
contraplacado na sala segura da Embaixada britânica em Praga, onde se
encafuou uma hora antes. Está a falar para um gravador e em frente dele
está o Chefe do Posto de Praga, um tal Jerry Ormond, marido da temível
Sally, que é também a número dois do Posto numa parceria tipo dele-e-
dela do Circus. Também à mesa, ainda que apenas na minha imaginação
bem fundamentada, uma garrafa de uísque e um único copo – de Alec –,
que Jerry vai enchendo intermitentemente. Pelo tom mortiço da voz de
Alec torna-se evidente que está exausto, o que, pela parte que toca a
Ormond, vem a calhar, uma vez que a sua tarefa como encarregado do
debriefing é tomar nota da história do sujeito antes que a sua memória
tenha tido ocasião de a corrigir. Na minha imaginação, de novo, Alec tem
a barba por fazer e veste um roupão emprestado depois do apressado
duche que foi autorizado a tomar. O irlandês transparece na sua voz em
surtos irregulares.
E eu, Peter Guillam: onde estou eu? Não em Praga com Alec, embora
pudesse muito bem estar. Estou sentado numa sala do andar de cima das
instalações das Encobertas em Marylebone, a ouvir a gravação que foi
trazida à pressa para Londres por um avião militar da RAF, e penso com
os meus botões: a seguir é a minha vez.

AL: Estão oito graus abaixo de zero nos degraus do Estádio Olímpico, com um vento
leste dos tomates, que arrasta uma neve fina, e gelo nas estradas. Acho que o mau
tempo é um mal que vem por bem. O mau tempo é tempo para fugas. O Land Rover
está à espera, com Ben ao volante. Stas de Jong aparece a descer os degraus, de
uniforme de combate completo, e enfia o seu metro e oitenta e oito dentro do buraco
no pavimento, com botas militares e tudo. Eu e Ben baixamos a tampa sobre ele. Eu
instalo-me no banco da frente ao lado de Ben. Estou de boné de oficial e sobretudo,
três estrelas, com roupa de trabalho de alemão de Leste por baixo. Um sebento saco
de tiracolo debaixo do banco para os documentos. Regra minha. Manter os
documentos separados para o salto. Às nove e vinte da manhã atravessamos o ponto
de passagem oficial para pessoal militar da Friedrichstrasse, mostrando os passes ao
VoPos pelas janelas fechadas, sem deixar que os sacanas lhes ponham a mão em
cima, que os diplomatas nos dizem ser a maneira atual de o fazer. Mal passamos,
detetamos o seguimento habitual: dois VoPos num Citroën. É, portanto, um dia
normal. Precisam de saber que somos apenas mais um veículo militar britânico a
fazer valer os nossos direitos ao abrigo do acordo quadripartido, e é isso que
estamos desejosos de lhes dizer. Passamos por Friedrichshain e eu faço ardentes
votos por que Tulipa já esteja na estrada, porque, se não estiver, está morta ou coisa
pior, e a rede igualmente. Dirigimo-nos para norte, rumo a Pankow, até chegarmos
ao perímetro militar soviético, após o que seguimos para leste. Temos o mesmo
Citroën na peugada, o que, por nós, é perfeito. Passamos bem sem um render da
guarda e novos olhos sobre nós. Obrigo-os a uma certa dança, que é o que eles
esperam que façamos: uma ou outra guinada súbita, inversões de marcha, afrouxar
até chegar a passo de caracol, carregar no acelerador a fundo. Estamos a virar para
sul, na direção de Marzahn. Ainda nos encontramos dentro dos limites da cidade de
Berlim, mas agora são floresta, estradas planas e neve a esvoaçar. Passamos pela
velha estação de rádio nazi que é a nossa primeira referência. O Citroën vem cem
metros atrás de nós, pouco amigo das estradas cobertas de gelo. Entramos na
descida, ganhando velocidade. Adiante há uma curva fechada à esquerda e uma
chaminé de fábrica branca a espreitar pelo meio das árvores que é a nossa segunda
referência: uma serração. Descrevemos rapidamente a curva à esquerda, aguentamos
o jipe e deslizamos até quase parar junto da serração. Eu saio a correr, com o saco a
tiracolo mas sem o sobretudo, que é o sinal para Stas sair da sua caixa, passar ao
assento do passageiro e fazer-se passar por mim. Estou espalmado num fosso com
neve a cobrir-me todo, de maneira que devo ter rebolado um ou dois metros.
Quando deito uma olhadela, o Land Rover está a subir o outro lado da descida e o
Citroën corre atrás dele, tentando apanhá-lo.
[Uma pausa, intercalada pelo tinir de vidro e sons de líquido a correr.]
AL [continuação]: Atrás da antiga serração há um parque de camiões em desuso e um
barraco de lata cheio de serradura. E por baixo da serradura está um Trabant
castanho e azul com um carregamento de tubos de aço amarrado ao tejadilho. Marca
noventa mil quilómetros no totalizador e cheira a caganitas de rato, mas o depósito
está cheio e há um par de latas de reserva na parte de trás e os pneus ainda têm um
bocado de rasto. Mantido por um doente de confiança de Primavera que nem sequer
revela o nome. O único problema é que os Trabis odeiam o frio. Levo uma hora a
descongelá-lo e penso durante todo esse tempo: Onde estás tu, Tulipa, apanharam-te
e estás a falar? Porque, se estás a falar, estamos todos fodidos.
JO [Jerry Ormond]: E a sua identidade?
AL: Günther Schmaus. Soldador da Saxónia. Dou bom saxão. Minha mãe era
Chemnitz. Meu pai era condado de Cork.
JO: E Tulipa? Quando se encontrar com ela, quem será ela?
AL: A minha querida mulher. Augustina.
JO: E onde é que ela está nesta altura? Se tudo correr bem?
AL: O rv é a norte de Dresden. Bem no interior do campo. Há de ter tentado fazer a
viagem de bicicleta, apesar do tempo, deve ter percorrido uma certa distância e
depois ter-se-á desfeito da bicicleta porque eles sabem que ela se desloca assim.
Depois há de ter apanhado o comboio local e a seguir feito auto-stop ou cravado
uma boleia até ao rv com ordens para se manter acaçapada o tempo que seja preciso.
JO: E a passagem de Berlim Leste para a RDA? O que é que espera?
AL: É aleatória. Não há postos de controlo, há patrulhas errantes. Ou se tem sorte, ou
não.
JO: E você teve sorte?
AL: Não foi nada do outro mundo. Dois carros da polícia. Ultrapassam-nos e param à
nossa frente, pregam-nos um cagaço de morte, mandam-nos sair do carro e
revistam-nos. Mas, se os documentos pegam, seguimos viagem.
JO: E pegaram. Sim?
AL: Ora porra, eu não estaria aqui se não tivessem pegado, não é?
[Mudança de fita, trecho corrompido durante quarenta e cinco segundos. Recomeço.
Leamas está a descrever o trajeto entre Berlim Leste e Cottbus.]
AL: A melhor coisa que tem o trânsito na RDA é que basicamente não existe. Uns
quantos cavalos e carroças. Ciclistas, motorizadas, sidecars, um ou outro camião a
cair aos bocados. Um pedaço de autoestrada e a seguir pequenas estradas. Eu
alterno. Se uma estrada pequena está coberta de neve, meto novamente para a
autoestrada. Façamos o que façamos, há que mantermo-nos longe de Wünsdorf. Há
lá o raio de um campo nazi enorme e os Sovs tomaram conta de todo ele: três
divisões de tanques, mísseis a valer e um posto de escuta de tamanho gigante.
Andamos a espiar aquela porcaria há meses. Faço um desvio para norte por uma
questão de segurança, não por uma autoestrada, mas apenas uma estrada rural plana
e a direito. Apanho com neve abundante e há filas de árvores despidas a abarrotar de
ramalhetes de visco, e eu a pensar: um dia volto cá, apanho aquilo tudo e vou vendê-
lo no mercado de Covent Garden. A seguir – estarei a sonhar isto? – estou no meio
de um comboio militar soviético grande como o caraças e vou no sentido errado.
Camiões cheios de soldados, tanques T-34 em camiões-plataforma, seis ou oito
peças de artilharia, e eu no meu Trabi de duas cores a esquivar-me por entre eles,
tentando sair da sacana da estrada, e eles sem olharem sequer, os sacanas,
continuando como se nada fosse. Nem sequer tive tempo de lhes tirar a porra das
matrículas!
[Risada, acompanhada pela de Ormond. Pausa. Recomeço a um ritmo mais vagaroso.]
AL: Quatro da tarde, e estou cinco quilómetros a oeste de Cottbus. Ando à procura de
uma Karrosserie abandonada na berma da estrada. É esse o rv. E de uma mitene de
bebé enfiada num trecho de vedação, que é o sinal de segurança a dizer-me que
Tulipa está no interior. E estava lá. A mitene. Cor-de-rosa. Ali espetada como o raio
duma bandeira no meio do nada. E assusta-me, não sei porquê. A mitene. É
demasiado conspícua, raios a partam. Talvez não seja Tulipa que está no barracão, e
seja a Stasi. Ou talvez seja Tulipa e a Stasi. Por isso encosto e penso no assunto. E
enquanto estou a pensar, a porta do celeiro abre-se e lá está ela, parada à porta, com
um sorridente miúdo de seis anos pela mão.
[Pausa de vinte segundos.]
AL: Eu nunca tinha chegado sequer a conhecer o raio da mulher, valha-me Deus!
Tulipa trabalhava para Primavera. Era essa a combinação. Conhecia-a de
fotografias, mais nada. Por isso digo-lhe: Como está, Doris, o meu nome é Günther
e sou o seu marido para esta viagem, e quem diabo vem a ser este? Só que eu estou
farto de saber quem é aquele. E ela diz: é o Gustav, o meu filho, e vem comigo. E eu
digo: Vem consigo mas é o caraças, nós somos um casal sem filhos e não vamos
escondê-lo debaixo do sacana dum cobertor quando chegarmos à fronteira checa.
Portanto o que é que vamos fazer em relação a isso? Ela diz que nesse caso não
vem, e o miúdo desata a palrar e diz que ele também não. Por isso eu digo ao Gustav
que volte lá para dentro e agarro-a por um braço e levo-a até às traseiras e digo-lhe o
que ela já sabe mas não quer ouvir: não há cartão de identidade para ele, eles vão
deter-nos e submeter-nos a uma verificação e, se não nos livrarmos dele, você está
fodida e eu também, e também o bom Dr. Riemeck, porque uma vez que eles a
tenham a si e ao Gustav nas mãos, em cinco minutos fazem-na vomitar o nome dele.
Não há resposta e está a ficar escuro e a neve começa a cair novamente. Por isso
voltamos para dentro do barracão, que é do tamanho do raio dum hangar de aviões e
está cheio de maquinaria espatifada, e o Gustav, o sacaninha, desata a pôr a mesa
para o jantar, dá para acreditar? Foi buscar tudo o que ela tinha de mantimentos e
dispô-los no chão: salsichas, pão, um termos de cacau quente, caixas para nos
sentarmos, vamos todos fazer uma festa. Portanto sentamo-nos em roda e fazemos o
nosso piquenique de família e o Gustav canta-nos uma canção patriótica, e eles
deitam-se os dois debaixo dos casacos e do que têm e eu sento-me a fumar a um
canto, e mal começa a clarear enfio-os no Trabi e voltamos à aldeia pela qual passei
na noite anterior, porque tinha lá visto uma paragem de autocarro. E pela graça de
Deus estavam lá postadas duas velhotas de capuz preto e saia branca, com cestos de
pepinos às costas e, Deus as abençoe, eram sorábias.
JO: Sorábias? Que diabo…
AL [explosão]: Sorábias, por amor de Deus! Já deve ter ouvido falar de sorábios,
porra! Há sessenta mil desses sacanas. São uma espécie protegida, mesmo na RDA.
É uma minoria eslava, espalhada a montante e jusante do Spree, há séculos que ali
está, a cultivar a porra dos pepinos. Experimente recrutar um. Meu Deus!
[Pausa de dez segundos. Acalma-se.]
AL: Encosto e digo a Tulipa e a Gustav que se deixem ficar no carro. Não se mexam.
Saio, a primeira velhota olha para mim e a outra não quer saber. Eu puxo da
simpatia. Se ela fala alemão: é respeito. Ela fala alemão mas prefere falar sorábio,
diz ela. Piada. Pergunto para onde vai. De autocarro para Lübbenau, e a seguir de
comboio até à Ostbahnhof de Berlim para vender os pepinos. Conseguem melhor
preço em Berlim. Impinjo-lhe uma história da carochinha sobre o Gustav: família
desestruturada, mãe perturbada, o rapaz tem de voltar para o pai, em Berlim; podem
levá-lo? Ela apresenta a proposta à amiga e têm as duas uma discussão sobre ela em
sorábio. E eu penso que de um instante para o outro chega o sacana do autocarro e
elas ainda não tomaram uma decisão. Nessa altura a primeira diz: levamos o seu
rapaz se nos comprar os pepinos, e eu pergunto: o quê? Todos? E ela diz: sim, todos.
E eu digo: se eu comprar os pepinos todos, vocês ficam sem a porra de pepino
nenhum para vender em Berlim, portanto porque é que querem lá ir? Elas riem-se
muito disto em sorábio. Eu enfio-lhe um maço de notas na mão, tanto pelos pepinos,
mas fiquem com eles. E tanto para o bilhete de comboio do rapaz, e têm aqui mais
alguma coisa para a continuação da viagem dele até Hohenschönhausen. E lá vem o
autocarro, e eu vou buscar o rapaz. Volto ao carro e digo ao Gustav para sair, mas a
mãe fica simplesmente imobilizada no carro com as mãos a tapar os olhos, de
maneira que ele também não se mexe. Por conseguinte eu ordeno-lhe que saia do
carro, dou-lhe uns berros e ele obedece. E digo-lhe: tu vens comigo até ao autocarro,
e estas duas simpáticas camaradas vão escoltar-te até à Ostbahnhof. E da
Ostbahnhof vais para casa, em Hohenschönhausen, e esperas até o teu pai aparecer.
E isto é uma ordem, camarada. Depois ele pergunta-me onde é que a mãe vai e
porque é que ele não vai com ela, de maneira que eu lhe respondo: a tua mãe tem
um importante trabalho secreto a fazer em Dresden, e é teu dever como bom
combatente pelo comunismo regressar para junto do teu pai e continuar a luta. E ele
vai. [Silêncio de quinze segundos.] Bem, que merda havia ele de fazer senão isso? É
um miúdo do Partido com um pai do Partido e tem seis anos, porra!
JO: E Tulipa, entretanto?
AL: Sentada na porra do Trabi a olhar pelo para-brisas, em transe. Eu entro, ando um
quilómetro, paro de novo e puxo-a para fora do carro. Há um helicóptero a zunir por
cima. Vá lá saber-se qual é a ideia do sacana. Vá lá saber-se onde porra foi ele
arranjar um helicóptero. Pediu-o emprestado aos russos? Escute, digo-lhe eu.
Escute, porra, porque precisamos um do outro. Mandar o seu miúdo de volta para
Berlim não é o fim dum problema. É o princípio dum novo. Daqui a duas horas,
toda a Stasi saberá que Doris Quinz, de solteira Gamp, foi vista pela última vez nas
proximidades de Cottbus, dirigindo-se para leste na companhia do seu amigo. Hão
de ter uma descrição do carro e tudo o mais. Portanto, podemos dizer adeus a
quaisquer ideias que tivéssemos de ir nesta caranguejola até à Checoslováquia com
documentos falsos, porque a partir de agora todas as unidades da Stasi e do KGB e
todos os postos fronteiriços de Kalininegrado até Odessa hão de estar alerta a um
Trabi de plástico malhado com um par de espiões fascistas dentro. E ela aguenta
firme, isso há que reconhecer-lhe. Deixa-se de dramas e limita-se a perguntar-me
qual é a alternativa e eu digo: um mapa desatualizado de contrabandistas que à
última hora me lembrei de trazer, que com sorte e uma oração talvez nos permita
atravessar a fronteira a pé. Então ela pensa maduramente nisto e a seguir pergunta-
me (é como o argumento decisivo para ela): «Se eu for consigo, quando é que volto
a ver o meu filho?» O que me sugere que ela está a pensar seriamente em entregar-
se por causa do rapaz. Por isso agarro-a pelos ombros e garanto-lhe por tudo,
olhando-a bem de frente, que arranjarei maneira de o rapaz ser trocado numa
permuta de agentes, nem que seja a última coisa que faça na terra. E sei tão bem
como você que há tantas hipóteses de isso alguma vez acontecer como… [pausa de
três segundos]… que se foda.

Seria meramente por razões de economia que, na minha ulterior


transcrição, que estou neste momento a ler, me tenha afastado das palavras
proferidas por Alec nesta altura, preferindo parafraseá-las para maior…
digamos, objetividade? A partir do momento em que deixou Gustav ao
cuidado das duas sorábias, Alec remeteu-se a estradas secundárias onde a
neve o permitia. O seu problema, explicou, era «saber bem de mais,
porra» os perigos do terreno que atravessavam. Toda a região estava
pejada de postos de escuta das Informações Militares e do KGB, e ele
conhecia-os todos de cor. Falou de atravessarem estradas secundárias
vazias e retilíneas cobertas de quinze centímetros de neve virgem, sem
outra coisa para se orientar além dos renques de árvores; do seu alívio ao
entrarem na floresta, até Tulipa soltar um grito de horror. Tinha avistado o
antigo pavilhão de caça nazi para onde a elite da RDA levava dignitários
de visita a fim de caçarem veados e javalis e embebedarem-se. Fizeram
um apressado desvio, perderam-se e viram uma luz acesa numa casa
rústica isolada. Leamas bateu à porta, que foi aberta por uma camponesa
aterrada com uma faca na mão. Depois de ter obtido indicações por parte
dela, ele convenceu-a a vender-lhe pão, salsichas e uma garrafa de
slivovitz e, ao voltar para o Trabant, tropeçou num cabo telefónico bambo,
presumindo ele que acionasse um sinal de alarme. De qualquer maneira,
cortou-o.
O dia escurecia, a neve tornava-se mais cerrada e o Trabant malhado
estava a dar as últimas: «embraiagem estuporada, aquecimento
estuporado, caixa de velocidades estuporada e fumo a sair do capô».
Calculou que estivessem a uns dez quilómetros de Bad Schandau e a
quinze do local de passagem do mapa dos contrabandistas. Depois de ter
confirmado a posição o melhor que pôde com a bússola, optou por um
caminho de transporte de madeiras que se dirigia para leste e conduziu por
ele até depararem com um monte de neve. Abraçados um ao outro no
Trabi com um frio glacial, comeram o pão com Wurst17, beberam o
slivovitz, ficaram gelados e observaram os veados a passar enquanto
Tulipa, meio adormecida, com a cabeça apoiada no ombro de Alec,
descrevia languidamente as suas esperanças e sonhos de uma nova vida
com Gustav em Inglaterra.
Ela não queria que Gustav fosse para Eton. Tinha ouvido dizer que os
internatos ingleses eram geridos por pederastas como o pai. Preferia uma
escola proletária estatal com raparigas e muito desporto, que não fosse
muito rigorosa. Gustav começaria a aprender inglês desde o dia da
chegada. Ela trataria disso. No aniversário comprar-lhe-ia uma bicicleta
inglesa. Andariam de bicicleta juntos na Escócia.
Ainda estava a falar neste registo, sonolenta, quando Alec se apercebeu
da presença de quatro figuras masculinas silenciosas armadas de
Kalashnikovs postadas como sentinelas à volta do carro. Mandando Tulipa
manter-se onde estava, abriu a porta e saiu devagar enquanto eles o
observavam. Nenhum deles tinha mais de dezassete anos, calculou, e
pareciam tão assustados como ele. Tomando a iniciativa, ele quis saber o
que tinham eles na ideia, a espreitar um casal a namorar. A princípio
ninguém respondeu. Depois o mais destemido explicou que eram
caçadores furtivos, em busca de carne. A isto respondeu Alec que, se eles
não dissessem nada a ninguém, ele faria o mesmo. Selaram o acordo
apertando a mão entre todos, após o que os quatro homens desapareceram
silenciosamente.
O dia clareia e não neva. Brilha um sol pálido. Juntos, empurram o
Trabant malhado por uma ladeira abaixo e cobrem-no de neve e ramos.
Dali em diante é a pé. Tulipa calça apenas umas leves botas de calfe, até
ao joelho, sem sulcos na sola. As botas de operário de Alec são um pouco
melhores. Iniciam a caminhada, agarrando a mão um ao outro quando
patinam e escorregam. Estão na «Suíça Saxónica», uma terra maravilhosa
de íngremes e ondulados campos de neve e floresta. Nas encostas, velhas
casas em ruínas ou transformadas em orfanatos de verão. A acreditar no
mapa, caminham paralelamente à fronteira. De mãos dadas, galgam
penosamente uma subida e contornam um lago gelado. Estão numa aldeia
de montanha de pequenas casas de madeira.

AL: Se o mapa estava certo, ou estávamos mortos ou na Checoslováquia.


[Tinido de vidro. Sons de líquido a correr.]

Mas a história ainda mal começou: vejam-se os telegramas do Circus


juntos. Veja-se também a razão pela qual, depois de ter ouvido a gravação
de Alec, eu ainda estou tensamente sentado no andar superior do QG das
Encobertas em Marylebone a altas horas da noite, esperando a todo o
momento ser chamado à Sede.
*

Sally Ormond, Subchefe do Posto de Praga, mulher do Chefe de Posto


Jerry, é o tipo de mulher fura-vidas de classe alta que o Circus adora
cegamente: Colégio Feminino de Cheltenham, pai dos SOE na guerra, um
par de tias em Bletchey. Arroga-se também um misterioso parentesco por
afinidade com George, que na minha ideia ele suporta com uma nobreza
um pouco exagerada.

Relatório de Sally Ormond, SC/Posto Praga, para C/Encobertas [Smiley], Pessoal e


Particular. Prioridade: RELÂMPAGO.

As ordens que o Posto tinha das Encobertas eram receber, apoiar e alojar em
segurança um funcionário disfarçado, Alec Leamas, e uma agente em fuga que
viajavam com documentos da Alemanha de Leste num Trabant com matrícula da
Alemanha de Leste, a qual foi fornecida, cuja chegada era esperada para as primeiras
horas de escuridão.
No entanto o Posto NÃO foi informado de que a operação estava a ser levada a cabo
contrariando as instruções da Conjunta de Coordenação. Só podíamos pressupor que,
uma vez sabido que Leamas tinha tomado o assunto em mãos, a Sede decidiu prestar
apoio operacional.
O Posto de Berlim (de Jong) tinha-nos informado de que, ao entrar em território
checo, Leamas comunicaria a chegada são e salvo por meio de uma chamada anónima
para a Secção de Vistos da Embaixada a perguntar se os vistos do RU eram válidos na
Irlanda do Norte. O Posto de Praga responderia ativando um aviso gravado
aconselhando-o a entrar novamente em contacto nas horas de expediente. Este seria a
confirmação da receção da mensagem.
Leamas e Tulipa seguiriam então por quaisquer meios possíveis para um ponto da
estrada entre a cidade e o aeroporto de Praga e estacionariam numa berma, referência
no mapa fornecida.
Segundo o plano apresentado por este Posto e aprovado pelo C/Encobertas, o par
abandonaria o carro e um condutor identificado pertencente à rede GODIVA de Praga
requisitaria a carrinha da Embaixada (matrículas CD e janelas laterais fumadas) que
regularmente faz o transporte de pessoal da Embaixada de e para o aeroporto de Praga.
Depois recolheria Leamas e Tulipa no rv combinado. A parte de trás da carrinha
conteria vestuário ocidental de cerimónia, fornecido por este Posto. Leamas e Tulipa
vestir-se-iam como convidados oficiais para jantar com a Embaixadora de SM, e com
esse pretexto conseguiriam entrar na Embaixada, que está sob permanente vigilância
por parte da segurança checa.
Às 1040 teve lugar uma reunião de emergência no compartimento seguro da
Embaixada, na qual S. Ex.a a Embaixadora [SEXA] deu amavelmente a sua anuência a
este plano. No entanto, pelas 1600, hora do RU, depois de ter consultado de novo os
Negócios Estrangeiros, alterou a sua decisão sem se desculpar, com o fundamento de
que, uma vez que a fugitiva tinha entretanto sido apresentada nos meios de
comunicação da RDA como uma criminosa de Estado, o potencial de repercussões
diplomáticas prevalecia sobre as considerações anteriores.
Face à posição expressa por SEXA, não era possível empregar um veículo nem
pessoal da Embaixada no plano de fuga. Por conseguinte desliguei imediatamente a
resposta automática da Secção de Vistos, na esperança de que isso indicasse a Leamas
que não havia apoio disponível.

Devolvi os auscultadores. Volto a estar com Alec, não no conforto


imperial da nossa Embaixada britânica em Praga, mas encravado na berma
gelada com Tulipa, sem apoio, sem carro de recolha e, como diria Alec,
sem porra nenhuma. Estou a recordar-me do que ele pregou sempre desde
que o conheço: quando estamos a planear uma operação, temos de pensar
em todas as maneiras como o Serviço nos pode lixar a vida e depois
esperar pela única maneira que nunca nos passou pela cabeça, mas pela
deles sim. E calculo que seja exatamente o que ele está a pensar agora:

AL [textual, resumido]: Quando nenhum transporte apareceu, e não houve resposta da


Secção de Vistos, pensei só: porra, é assim que se pode contar com Londres, de
maneira que a única coisa a fazer é improvisar à medida que vamos andando. Somos
um casal da Alemanha de Leste aflito na berma da estrada, a minha mulher está
doentíssima, por isso ajudem-nos, alguém. Digo a Doris que se sente no passeio e
faça um ar patético que lhe assenta na perfeição, e a seu tempo um camião cheio de
tijolos encosta e o condutor deita a cabeça de fora. Graças aos deuses é um alemão
de Leipzig e quer saber se eu sou chulo da bela senhora que está sentada no passeio.
Por isso eu digo não, lamento, companheiro, é minha mulher, e está doente, e ele diz
está bem, entrem, e leva-nos até ao hospital, no centro da cidade. Eu tenho um
passaporte do RU para uma necessidade cosido no forro do meu saco a tiracolo, em
nome de Miller. Descoso-o e enfio-o no bolso. Depois digo: você está mesmo
gravemente doente, Doris. Está grávida e piora a cada minuto. Portanto faça-me um
favor, espete a barriga para fora e faça um ar tão lastimoso como se sente. Portanto
eles abrem as portas e nós entramos. Desculpe lá.
JO: Não é propriamente a história toda, pois não? [Líquido a correr.]
AL: Meu Deus. Pronto, está bem. Chegamos à rua empedrada a subir que ali há.
Aproximamo-nos dos seus nobres portões com o escudo real de Sua Majestade
elegantemente pintado de dourado. Há três gorilas checos de fato cinzento a rondar
o exterior, a não fazer deliberadamente coisa nenhuma. Talvez não tenha reparado
neles. A Doris está a fazer uma cena pela qual a Sarah Bernhardt teria dado tudo e
mais alguma coisa. Eu aceno-lhes com o passaporte: deixem-nos entrar depressa. Os
sacanas querem ver também o passaporte dela. Escutem, digo-lhes eu no meu
melhor inglês. Carreguem mas é na porra do botão que têm ali no muro, e digam lá
para dentro que a minha mulher está a abortar, portanto chamem a porra dum
médico. E se ela o tiver aqui na rua, a porra da responsabilidade é vossa. E vocês
não têm mães, provavelmente não… ou qualquer coisa nesse sentido, está bem? E
abracadabra, os portões abriram-se. E estamos no pátio da Embaixada. E Tulipa está
agarrada à barriga e a agradecer ao seu santo padroeiro por nos livrar do mal. E você
e a sua querida mulher pedem profusas desculpas por mais uma argolada de
tamanho gigante da Sede. Portanto obrigado a ambos pelo amável pedido de
desculpas, aceite. E, se não se importa, vou ver se durmo um bocado, porra.

Sally Ormond recupera a história.

Extrato da carta semioficial manuscrita pessoal e informal de Sally Ormond, SC/Posto


Praga para C/Encobertas [Smiley] por mala do Circus. Prioridade: RELÂMPAGO.

Bem, claro que quando levámos a pobre Tulipa e Alec para dentro do complexo da
Embaixada é que começou a verdadeira festa. Penso honestamente que a Embaixas e
os Estrangeiros ficariam muito mais felizes se ela tivesse sido pura e simplesmente
devolvida às autoridades da RDA e não se fala mais nisso. Para começar, a Embaixas
não queria Tulipa na «sua dela» nem por um decreto, mesmo que legalmente isso não
fizesse a mínima diferença. Fez até questão de que fossem deslocados dois seguranças
para dentro do edifício principal, de maneira que a pobre Tulipa pudesse ser enfiada na
zona da criadagem, que do estrito ponto de vista da segurança funciona bastante
melhor que a casa-mãe. Mas essa não era nem pouco mais ou menos a razão, como ela
deixou absolutamente claro, uma vez encafuados os quatro no compartimento seguro
da Embaixada: S. Ex.a, acolitada por Arthur Lansdowne, o seu secretário muito
particular, mais o meu querido marido e eu própria. E Alec absolutamente nada bien
vu18 por S. Ex.a, sobre o que se falará mais adiante, e de qualquer modo a enxugar a
testa a Tulipa na zona da criadagem.
E P.S. George: uma palavra ao seu ouvido, se nos é permitido.
O compartimento seguro da Embaixada é extremamente abafado e sempre um risco
potencial para a saúde, como repetidamente informado em vão por mim mesma aos
Admin. da Sede. A porcaria do sistema de ar condicionado Mickey Mouse está
completamente avariada. Aspira o ar para dentro em lugar de o deitar para fora, mas,
segundo Barker (a peste-mor dos Admin.), há dois anos que não há peças
sobresselentes. E uma vez que ninguém dos Estrangeiros achou por bem mandar-nos
um sistema novo, toda a gente que usa o local assa e sufoca. Na semana passada o
pobre Jerry por pouco não sufocou mesmo, mas claro que ele é demasiado nobre para
o dizer. Eu sugeri para aí um milhão de vezes que o compartimento seguro passasse
para a responsabilidade do Circus, mas aparentemente isso seria uma infração aos
direitos territoriais dos Estrangeiros!!!
Se porventura puder dar um abanão aos Admin., sem me referir (NÃO ao Barker,
sugiro!), fico-lhe imensamente grata. O Jerry manda também muitos cumprimentos e
expressa a sua enorme fidelidade como sempre, especialmente a Ann.
S

Texto do Telegrama Ultrassecreto Imediato da Embaixadora Britânica em Praga,


pessoal para Sir Alwyn Withers, C/Departamento Europa de Leste, Ministério dos
Negócios Estrangeiros, cópia para o Circus (Conjunta de Coordenação). Ata da
reunião de crise no compartimento seguro da Embaixada, realizada às 2100.
Presentes: S.Ex.a Embaixadora (Margaret Renford), Arthur Lansdowne, Secretário
Particular de S. Ex.a, Jerry Ormond (C/Posto) e Sally Ormond (SC/Posto).

Finalidade da Reunião: Tratamento e alienação de residente temporária da


Embaixada. Prioridade: RELÂMPAGO.

Caro Alwyn,
Depois da nossa conversa telefónica segura desta manhã, foi acordado o seguinte
procedimento entre nós relativamente ao prosseguimento da viagem da nossa hóspede
não convidada (NHNC):

1. A NHNC viajará para o seu próximo destino com aquilo que os nossos Amigos nos
asseguram que será um passaporte não britânico válido. Isto prevenirá ulteriores
acusações de que esta Embaixada está a conceder passaportes do RU a todo o bicho-
careta, independentemente da nacionalidade, que tente fugir à justiça da
RDA/Checoslováquia.
2. A NHNC não será auxiliada, acompanhada ou transportada seja de que maneira for
por membros diplomáticos ou não diplomáticos do quadro da Embaixada durante a
sua partida. Nenhum veículo com chapas de matrícula diplomáticas britânicas será
usado para a exfiltração. Não lhe serão emitidos documentos britânicos falsos.
3. Se a NHNC alegar em qualquer ocasião que tem a proteção da Embaixada britânica,
fica entendido que tal será imediata e categoricamente desmentido, localmente e em
Londres.
4. A partida da NHNC do complexo da Embaixada ocorrerá dentro de três dias úteis,
ou serão consideradas outras diligências apara a sua remoção, incluindo a entrega da
NHNC às autoridades checas.

O meu telefone está a tocar e a luz vermelha a piscar. É o sacana do


Toby Esterhase, moço de recados de Percy Alleline e de Bill Haydon, a
berrar comigo no seu cerrado sotaque húngaro para mexer rapidamente o
cu molengão e comparecer depressinha na Sede. Aconselhando-o a ter
tento na língua, monto na minha motocicleta, que tem estado pronta para
mim à entrada da porta da rua.

Ata de reunião de emergência realizada no compartimento seguro da Conjunta de


Coordenação em Cambridge Circus. Presidência: Bill Haydon (C/CC). Presentes:
Coronel Etienne Jabroche (Adido Militar, Embaixada de França, Londres, Chefe
Ligação Informações Francesas), Jules Purdy (CC, Secção Francesa), Jim Prideaux
(CC, Secção Balcãs), George Smiley (C/Encobertas), Peter Guillam (JACQUES).

Redator designado para a reunião: T. Esterhase. Gravada, parte transcrita


textualmente. Cópia imediata para C/Posto Praga.
São cinco da manhã. A chamada veio. Cheguei a Marylebone de
motocicleta. George veio diretamente das Finanças. Tem a barba por fazer
e parece mais preocupado que o habitual.
«Tem inteira liberdade de dizer não em qualquer altura, Peter»,
garantiu-me duas vezes. Já descreveu a operação como
«desnecessariamente complicada», mas a sua maior preocupação, por
mais que tente ocultá-lo, é que o plano operacional seja obra coletiva da
Conjunta de Coordenação. Somos seis à comprida mesa de contraplacado
do compartimento seguro do Circus.

Jabroche: Bill. Meu caro amigo. Os meus chefes de Paris precisam de ter garantias de
que o vosso Monsieur Jacques é capaz de se aguentar em matéria de pequena
agricultura em França.
Haydon: Diga-lhes, Jacques.
Guillam: Eu não estou preocupado com isso, senhor coronel.
Jabroche: Nem sequer junto de especialistas?
Guillam: Eu cresci numa pequena propriedade francesa da Bretanha.
Haydon: A Bretanha é francesa? Você espanta-me, Jacques. [Risos.]
Jabroche: Bill. Com sua licença.

Passando ao francês, o coronel Jabroche embrenha-se com Guillam numa animada


discussão sobre a indústria agrícola francesa, com especial incidência no Noroeste da
França.

Jabroche: Estou convencido, Bill. Ele passa. Até fala um pouco de bretão, pobre
homem.
[Mais risos.]
Haydon: Mas resultará, Etienne? Consegue mesmo metê-lo lá dentro?
Jabroche: Lá dentro, sim. Quanto a tirá-lo, dependerá de Monsieur Jacques e da sua
boa senhora. Estão na hora H. A lista de delegados franceses está prestes a fechar. Já
estamos a mantê-la em aberto. Sugiro que mantenhamos a presença de Monsieur
Jacques na conferência tão breve quanto possível. Inscrevemo-lo, ele vai integrado
no visto coletivo, atrasa-se devido a doença, mas faz questão de estar presente na
sessão de encerramento. Como um de trezentos delegados internacionais, não
chamará indevidamente a atenção. Fala finlandês, Monsieur Jacques?
Guillam: Nem por isso, senhor coronel.
Jabroche: Julgava que todos os bretões o falavam. [Risos.] E a senhora em questão não
fala francês?
Guillam: Que saibamos, alemão e russo de escola, mas francês não.
Jabroche: Mas tem topete, diz você? É bem-apessoada. Tem elã. Sabe vestir.
Smiley: Você viu-a, Jacques.

Tinha-a visto vestida e tinha-a visto despida. Opto pela primeira:

Guillam: Só passámos de raspão um pelo outro. Mas ela impressiona. Boa técnica
operacional, raciocínio rápido. Criativa. Fogosa.
Haydon: Meu Deus. Criatividade. Quem diabo precisa de criatividade? A mulher tem é
de fazer o que lhe mandam e calar o bico, não é? É de avançar com ela ou não?
Jacques?
Guillam: Eu vou nisso se o George for.
Haydon: E vai?
Smiley: Desde que a Conjunta e o coronel forneçam o necessário apoio no terreno, nós
nas Encobertas estamos dispostos a aceitar o risco.
Haydon: Bem, isso parece um bocadinho eufemístico, se quer que lhe diga. Nesse caso
avançamos, Etienne. Presumo que você fornecerá a Monsieur Jacques o seu
passaporte e documentos de viagem franceses. Ou quer que sejamos nós a fazê-lo?
Jabroche: Os nossos são melhores. [Risos.] É favor lembrar-se também, Bill, de que,
se as coisas falharem, o meu governo ficará muito chocado se descobrir que os seus
pérfidos serviços secretos andam a encorajar os agentes a fazerem-se passar por
cidadãos franceses.
Haydon: E nós desmentiremos vigorosamente a acusação e apresentaremos desculpas.
[Para Prideaux:] Jim, meu rapaz. Comentários? Tem estado misteriosamente calado.
A Checoslováquia é o seu terreno. Agrada-lhe que nós lho usurpemos?
Prideaux: Não ponho objeções, se é aí que quer chegar.
Haydon: Há alguma coisa que queira acrescentar ou subtrair?
Prideaux: Assim de repente, não.
Haydon: Muito bem, meus senhores. Obrigado a todos. É de avançar, de maneira que
vamos a isso. Jacques, estamos consigo. Etienne, talvez uma palavrinha em
particular.

Mas George não abandona facilmente as suas desconfianças, como


testemunha o fascículo seguinte. O relógio está a trabalhar; daqui a seis
horas devo partir para Praga.

PG para C/Encobertas.

George,
Na sequência da nossa conversa. Você pediu-me para registar a minha experiência
relativamente ao Serviço de Expedição de Campanha de Heathrow, no Terminal 3,
atualmente sob o comando da Conjunta de Coordenação. Aparentemente o SEC é
apenas mais um desmazelado serviço do aeroporto ao fundo de um corredor por varrer.
Há uma porta de vidro com a inscrição «Interligação de Cargas» e o acesso é por
porteiro automático. Quando se entra, a atmosfera é deprimente: um par de estafetas
cansados a jogar as cartas, uma mulher a gritar em espanhol ao telefone, uma única
costureira a fazer dois turnos porque a colega está de baixa por doença, fumo de
cigarro, cinzeiros cheios e um único cubículo porque estão à espera de cortinas novas
para o outro.
A grande surpresa foi a comissão de receção que aguardava o meu aparecimento: o
Alleline, o Bland e o Esterhase. Se o Bill H lá estivesse, faria o pleno. Pretensamente
tinham vindo despedir-se de mim e desejar-me felicidades. O Alleline à frente como
sempre, entregou-me o passaporte francês e o cartão de identificação da conferência,
obséquio de Jabroche, com um grande gesto teatral. O Esterhase fez a mesma coisa
com a minha mala de viagem e os adereços: vestuário comprado em Rennes, manuais
de agricultura e uma história da maneira como França construiu o canal de Suez para
leitura leve, etc. O Roy Bland armou em irmão mais velho e perguntou-me
maliciosamente se havia alguém que eu pretendesse informar se estivesse ausente mais
uns anos do que se esperava.
Porém o verdadeiro propósito das suas atenções não podia ser mais claro. Queriam
saber mais sobre Tulipa: de onde ela vinha, há quanto tempo trabalhava para nós,
quem tinha o controlo dela? E depois o momento mais estranho quando, depois de me
ter esquivado às suas perguntas, estava de pé no cubículo a ser vestido e o Toby E
enfiou a cabeça pela borda da cortina dizendo que tinha a seguinte mensagem pessoal
do Bill para mim: «Quando se cansar do seu Tio George, pense na chefia do Posto de
Paris.» A minha resposta foi evasiva.
Peter

Agora travem conhecimento com George no seu papel de supremo


pedante operacional, apostado em colmatar todas as lacunas do
planeamento notoriamente desleixado da Conjunta de Coordenação:

Mensagem de C/Encobertas [Smiley] para C/Posto Praga [Ormond]


ULTRASSECRETO PRIMAVERA. Prioridade: RELÂMPAGO.

A. Passaporte finlandês para a subfonte Tulipa chegará amanhã por mala em nome
de Venia Lessif, natural de Helsínquia, especialista em nutrição, nome de casada do
cônjuge: Adrien Lessif. Passaporte conterá visto de entrada checo carimbado, data de
entrada coincidente com a conferência comunista patrocinada pelos franceses Campos
de Paz.
B. Peter Guillam chegará ao aeroporto de Praga no voo 412 da Air France amanhã
de manhã às 1040, hora local, viajando com passaporte de cidadão francês em nome de
Adrien Lessif, professor convidado de Economia Agrária na Universidade de Rennes.
Visto de entrada checo também válido para coincidir com a conferência. Participação
de Lessif na conferência pretensamente atrasada por doença. Ambos os Lessifs
figuram presentemente na Lista de Participantes na Conferência, um participante
(atrasado), um cônjuge.
C. Também pela mala de amanhã, dois bilhetes da Air France Praga-Paris Le
Bourget, em nome de Adrien e Venia Lessif, com partida às 0600 de 28 de janeiro. Os
registos da Air France confirmarão que o casal viajou para Praga em datas diferentes
(ver carimbos de entrada) mas regressará a Paris com colegas académicos do grupo.
D. O alojamento para o Professor e Mme. Lessif foi marcado no Hotel Balkan, onde
a delegação francesa ficará instalada para pernoita antes da partida de manhã cedo para
Paris Le Bourget.

E Sally Ormond em resposta, não perdendo a oportunidade de se


autoelogiar:

Extrato da segunda carta pessoal de Sally Ormond para George Smiley, assinalada
Estritamente Pessoal & Particular para si, não para arquivo.

Na sequência da receção da sua muito lúcida mensagem, de que por esta via acuso,
agradecida, a receção, o Jerry e eu decidimos que eu deveria ir preparar Tulipa para a
sua partida da Embaixada e a sua iminente provação. Atravessei devidamente o pátio
até à suíte do anexo onde tínhamos instalado Tulipa: cortinas duplas para o lado da rua,
cama de campanha para mim na passagem à porta do quarto, guarda extra da
chancelaria postado no átrio do andar de baixo para o caso de visitas inoportunas.
Dei com ela sentada na cama, e o Alec a rodear-lhe o ombro com o braço, mas ela
parecia não saber que ele estava ali, limitando-se a gemer de vez em quando, com
soluços semissilenciosos.
Fosse como fosse, tomei firmemente conta da situação e, como estava planeado,
mandei o Alec tomar ar e dar um passeio de rapazes à beira-rio com o Jerry. Como o
meu alemão ficou bastante preso no Nível 2, a princípio não lhe consegui arrancar
grande coisa, embora duvide que isso tivesse feito grande diferença porque ela quase
não falava, quanto mais ouvir. Segredou-me várias vezes «Gustav» e eu depreendi,
depois de um pouco de linguagem gestual, que Gustav não era o seu Mann, mas sim o
seu Sohn.
Consegui, porém, fazer-lhe entender que tinha de deixar a Embaixada amanhã,
seguindo de avião para Inglaterra, mas não diretamente, e que devia integrar-se num
grupo de viagem misto francês de académicos e agricultores. A sua primeira reação,
muito naturalmente, foi como era isso possível, se não falava uma palavra de francês?
Quando eu lhe disse que isso não teria importância, porque ela seria finlandesa – e
ninguém fala finlandês, pois não? –, a sua reação seguinte foi: com esta roupa? – que
foi a minha deixa para desembrulhar todos os brilhantes mimos que o Posto de Paris
tinha reunido para nós absolutamente do pé para a mão: um deslumbrante conjunto de
camisola e casaco cor de cevada do Printemps, uns sapatos encantadores mesmo da
sua medida, uma apetitosa camisa de noite e roupa interior, maquilhagem literalmente
de morrer – o Posto de Paris deve ter gasto uma fortuna –, precisamente aquilo que ela
devia ter sonhado nos últimos vinte anos, mesmo que não o soubesse, e belas etiquetas
de Tours para completar a ilusão. E um anel de noivado muito bonito que eu própria
não desdenharia, mais uma decente aliança em lugar do pedaço de lata de imitação que
ela usava, tudo a ser devolvido ao aterrar, claro, mas não me pareceu que fosse preciso
dizer-lho já, já.
E por esta altura ela já estava integrada no papel. A profissional que nela havia tinha
acordado. Observou atentamente o novo passaporte (que na realidade não era novo) e
declarou-o bastante bom. E quando eu lhe disse que um galante francês a
acompanharia e fingiria ser seu marido durante a viagem, ela disse que lhe parecia um
plano sensato; e como é que ele era?
Assim, conforme tinha sido incumbida, mostrei-lhe uma fotografia do Peter G e ela
inspecionou-a bastante inexpressivamente, devo dizer, uma vez que, em termos de
maridos substitutos, podia calhar-lhe coisa bem pior do que o PG. Finalmente
perguntou: «Ele é francês ou inglês?» E eu disse: «As duas coisas, e você é finlandesa
e francesa», e, meu caro, ela desmanchou-se positivamente a rir!
E pouco depois disto o Alec e o Jerry voltaram do seu passeio e, com o gelo
quebrado, demos início ao briefing a sério. Ela ouviu atenta e calmamente.
No final da nossa sessão, tive a sensação de que ela se tinha realmente entusiasmado
com a ideia no seu todo, e de uma maneira bastante horrível a achava divertida. Um
bocado viciada no perigo, pensei, e apenas nesse aspeto, muito parecida com o Alec!
Passe bem, e dê os meus afetuosos cumprimentos à nossa deslumbrante Ann.
S

Não faças movimentos bruscos ou inadvertidos com o corpo. Mantém as


mãos e os ombros exatamente onde agora estão, e respira. Pepsi está de
regresso ao seu trono, mas não desprega os olhos de ti, e não se trata de
amor.
*

Relatório de Peter Guillam, temporariamente adstrito às Ops Encobertas, ref.


exfiltração da subfonte Tulipa de Praga para Paris Le Bourget, para posterior trânsito
via avião militar da RAF para Londres, aeroporto de Northolt, 27 de janeiro de 1960.
Cheguei ao aeroporto de Praga às 1125 locais (voo atrasado), na pessoa de professor
convidado de Economia Agrária na Universidade de Rennes.
Apercebi-me de que, graças à Ligação francesa, a minha chegada tardia devido a
doença tinha sido formalmente registada na conferência, e o meu nome incluído na
lista de participantes, a pensar nas autoridades checas.
Como ulterior verificação do meu caráter genuíno, estava à minha espera o adido
cultural da Embaixada francesa, que usou as suas credenciais diplomáticas para
acelerar os trâmites aeroportuários, que se desenrolaram com relativa facilidade com o
adido a servir de meu intérprete.
Depois levou-me no seu carro oficial à Embaixada francesa, onde assinei o livro de
visitas antes de ser levado, também num carro da Embaixada, à conferência, onde
tinha sido reservado para mim um lugar na última fila.
A sala de conferências era um espaço dourado, operático, originariamente
construído para o Conselho Central de Ferroviários e com capacidade para
quatrocentos delegados. A segurança era superficial. A meio da imponente escadaria,
duas mulheres sobrecarregadas de trabalho que só falavam checo estavam sentadas a
uma secretária a pôr o visto nos nomes de delegados de meia dúzia de países. A
conferência em si assumia a forma de um seminário, conduzido por um painel de
especialistas sentados no palco, que coreografavam as contribuições da plateia. Não
me era exigida nenhuma intervenção. Fiquei impressionado com a habilidade da
Ligação francesa, que num curto espaço de tempo tinha autenticado a minha presença
aos olhos da segurança checa, e dos delegados, dois dos quais estavam claramente
cientes do meu papel e encontraram oportunidade de me procurar e apertar-me a mão.
Às 1700, a conferência foi declarada encerrada e os delegados franceses foram
transportados de autocarro para o Hotel Balkan, uma unidade pequena e antiquada que
tinha sido reservada para nosso uso exclusivo. Ao registar-me, entregaram-me a chave
do quarto número oito, designado como um «quarto familiar», uma vez que eu era
pretensamente metade de um casal. O Balkan tem uma sala de jantar para hóspedes e,
com acesso por ela, um bar com uma mesa central onde me instalei, na expectativa da
chegada da minha imaginária esposa.
A minha noção geral era que ela seria exfiltrada da Embaixada britânica por uma
ambulância cooperante, transportada para uma casa segura dos subúrbios e daí para o
Hotel Balkan por meios não esclarecidos.
Fiquei, portanto, impressionado ao vê-la chegar num carro diplomático francês, pelo
braço do adido cultural que me tinha ido esperar ao aeroporto de Praga. Quero aqui
reconhecer de novo a perspicácia e competência profissional da Ligação francesa.
Sob o nome de Venia Lessif, Tulipa tinha sido inscrita como cônjuge de um
delegado que participava na conferência in absentia. A sua beleza e indumentária
moderna causaram uma certa agitação entre outros delegados franceses hospedados no
hotel, e mais uma vez eu fui apoiado pelos dois membros do sexo masculino que,
depois de me terem cumprimentado com familiaridade na conferência, saudaram e
acolheram Tulipa como uma amiga. Tulipa, em contrapartida, recebeu os seus elogios
com estilo, fingindo falar apenas um alemão macarrónico, que se tornou a nossa língua
franca como casal, dado que o meu alemão é limitado.
A seguir ao jantar, na companhia dos dois delegados franceses, que desempenharam
o seu papel na perfeição, não nos demorámos no bar com o resto dos delegados,
recolhendo cedo ao quarto, onde por acordo tácito a nossa conversa se limitou a
banalidades coerentes com a nossa camuflagem, uma vez que era praticamente certa a
presença de microfones e até de câmaras num hotel para estrangeiros.
Felizmente, o nosso quarto era espaçoso, com várias camas de solteiro e dois
lavatórios. Durante a maior parte da noite fomos obrigados a ouvir a ruidosa conversa
dos delegados no andar de baixo e, até altas horas, cantorias.
A minha impressão é que nem Tulipa nem eu dormimos. Às 0400 voltámos a reunir-
nos e fomos levados de autocarro para o aeroporto, onde, miraculosamente, ao que
agora me parece, nos deixaram passar en bloc19 à sala de passageiros em trânsito e dali
embarcámos, via Air France, para Le Bourget. Quero uma vez mais expressar os meus
ilimitados agradecimentos pelo apoio da Ligação francesa.

A maneira como o registo seguinte veio parar ao meu relatório


confunde-me momentaneamente, até concluir que devo tê-la juntado à
guisa de manobra de diversão.

Carta semioficial manuscrita pessoal e confidencial para George Smiley de Jerry


Ormond, C/Posto Praga, NÃO para arquivo.

Caro George,
Bem, a ave voou, com certeza, para enormes suspiros de alívios por aqui, como
pode imaginar, e provavelmente está a estas horas instalada a salvo, senão feliz, no
Chateau Tulip, Algures em Inglaterra. O seu voo, em ambos os sentidos, parece ter
corrido razoavelmente bem, apesar do facto de o JONAH à última hora querer $500
além do salário antes de consentir em levar Tulipa ao rv na sua ambulância, o
sacaninha. Mas não é de Tulipa que lhe quero falar, e muito menos do Jonah. É do
Alec.
Como você disse muitas vezes no passado, como profissionais obrigados ao segredo
temos um dever de cuidar, e é uns dos outros. E isso significa sermos mutuamente
vigilantes, e se um de nós aparenta ceder sob pressão e não se apercebe disso, é nossa
obrigação protegê-lo de si próprio, e na mesma linha proteger também o Serviço.
O Alec é incontestavelmente o melhor agente operacional que você e eu
conhecemos. Tem miolos que se farta, é dedicado, safa-se bem na rua e tem todas as
competências. E acabou de levar a cabo uma das mais eficientes e mais arriscadas
operações a que tive o prazer de assistir, embora passando por cima da Conjunta de
Coordenação, da nossa venerada Embaixadora e dos mandarins de Whitehall. Portanto
quando ele emborca três quartos duma garrafa de uísque numa sessão e depois arma
uma discussão com um guarda da chancelaria com o qual calha antipatizar, nós damos-
lhe todo o desconto e mais algum.
Mas fomos dar um passeio a pé, o Alec e eu. Pela beira-rio durante uma hora, até a
uma casa segura dos subúrbios e depois até ao castelo, voltando à Embaixada. Portanto
uma caminhada de duas horas enquanto ele ainda estava, segundo o seu próprio
critério, perfeitamente sóbrio. E o único assunto durante todo esse tempo foi: o Circus
foi infiltrado. Não apenas por algum funcionário da correspondência com uma
hipoteca para pagar, mas no topo da pirâmide, onde realmente conta. E não são
simples macaquinhos no sótão, é a aldeia dos macacos inteira. É desproporcionado,
não é baseado em factos, e francamente é paranoico. A somar ao ódio visceral que ele
tem a tudo o que seja americano, torna as conversas difíceis, para não ir mais longe, e
acaba por ser ainda mais alarmante. E em conformidade com as leis da nossa profissão
tal como uma pessoa com o seu estatuto as define, e com todo o devido afeto e
respeito, estou a transmitir-lhe as minhas preocupações como é devido.
Seu, sempre,
Jerry

P.S. E para Ann, sempre, os meus respeitos e muitos cumprimentos do J.

E da parte de Laura uma roseta, a mandar-me parar.


*

– Gostou da leitura?
– Tolerável, obrigado, Bunny.
– Bem, meu Deus, foi você que o escreveu, não foi? Causou-lhe com
certeza uma certa sensação, passado todo esse tempo.
Neste final de tarde trouxe um amigo com ele: um jovem loiro e
sorridente, muito requintado, sem um indício de vida no corpo.
– Peter, apresento-lhe o Leonard – diz Bunny cerimoniosamente, como
se eu tivesse obrigação de saber quem é o Leonard. – O Leonard vai ser o
advogado do Serviço se o nosso assuntozinho chegar alguma vez a
tribunal, o que, como é evidente, desejamos ardentemente que não
aconteça. Vai também estar presente por nós no encontro preliminar da
comissão de inquérito parlamentar da próxima semana. Perante a qual,
como sabe, você já foi indicado para comparecer. – Um sorriso que é mais
um ricto. – Leonard, apresento-lhe o Peter.
Apertamos a mão. A de Leonard é macia como a de uma criança.
– Se o Leonard vai representar o Serviço, o que é que faz aqui ao pé de
mim?
– É uma maneira de se familiarizarem com o rosto um do outro – diz
Bunny em tom apaziguador. – O Leonard é um advogado de
jurisprudência pacífica – e, ao ver que eu arqueio as sobrancelhas –, o que
significa apenas que é versado em todos os expedientes jurídicos que vêm
nos livros, e alguns que nem sequer vêm nos livros. Mete num chinelo os
advogados vulgares de Lineu como eu.
– Ora vamos – diz Leonard.
– E a razão pela qual a Laura não está aqui hoje, Peter, já que você não
pergunta, é que o Leonard e eu, conjuntamente, achámos que seria
bastante melhor para todas as partes, incluindo você, que isto fosse uma
discussão exclusivamente entre homens.
– O que é que isso quer dizer?
– O bom e antiquado tato, para começar. Respeito pela sua privacidade.
E além disso a possibilidade adicional de por uma vez lhe arrancarmos a
verdade. – Sorriso travesso. – O que possibilitaria ao Leonard ter uma
ideia de como avançar de uma maneira geral. Comentário justo, Leonard?
Ou exagerado?
– Ah, bastante justo – diz Leonard.
– E, claro, abordar com bastante mais pormenor a questão de saber se os
seus interesses pessoais são mais bem representados tendo o seu próprio
representante legal – continua Bunny. – No funesto caso, por exemplo, de
todos os parlamentares saírem de cena em bicos de pés, o que nos consta
não ser nem pouco mais ou menos inédito, deixando a Cega Justiça levar a
sua avante em relação a si. A nós.
– E que tal um cinturão negro? – sugiro eu.
A minha graça é ignorada. Ou talvez seja registada, quanto mais não
seja como prova de que eu estou hoje particularmente crispado.
– E para esse caso o Circus tem uma lista restrita de candidatos
elegíveis, candidatos aceitáveis, digamos, e Leonard, creio que você disse
que estava na disposição de ajudar o Peter a decidir, se as coisas chegarem
a esse ponto, o que esperamos fervorosamente que não seja o caso –
submetendo-se com um sorriso colegial à opinião de Leonard.
– Absolutamente, Bunny. O problema é que não há assim tantos de nós
que estejam credenciados a um nível tão elevado. Na minha opinião o
Harry está a sair-se tremendamente bem, como sabe – diz Leonard. –
Concorreu a conselheiro da rainha e os juízes adoram-no. Portanto,
pessoalmente, sem querer de maneira nenhuma influenciar… escolha o
Harry. É homem, e eles gostam que seja um homem a defender outro
homem. Podem não o saber, mas gostam.
– Quem é que lhe paga? – pergunto eu. – A ele ou a ela?
Leonard sorri, olhando para as mãos. Bunny encarrega-se de responder
à pergunta.
– Bem, eu penso que em termos gerais, Peter, muito pode depender da
maneira como o julgamento correr… e, digamos, do seu próprio
comportamento pessoal, do seu sentido do dever e da sua lealdade ao seu
antigo Serviço.
Mas Leonard não ouviu uma palavra disto, como depreendo pela
maneira como continua a sorrir olhando para as mãos.
– Ora bem, Peter – volve Bunny, como se estivesse a chegar à parte
fácil. – Sim ou não? – Semicerra os olhos. – Entre homens. Comeu ou não
comeu a Tulipa?
– Não.
– Não de maneira nenhuma?
– De maneira nenhuma.
– Não irrevogavelmente, aqui e agora nesta sala, na presença de uma
testemunha de cinco estrelas?
– Desculpe, Bunny – é Leonard, de mão no ar numa amistosa censura. –
Acho que se esqueceu momentaneamente do Direito. Face às minhas
funções no tribunal, e às minhas obrigações de agir como advogado do
meu cliente, não posso de maneira nenhuma comparecer como
testemunha.
– Muito bem. Mais uma vez, se faz favor, Peter. Eu, Peter Guillam, não
comi Tulipa no Hotel Balkan, em Praga, na noite da véspera da sua
exfiltração para o Reino Unido. Verdade ou mentira?
– Verdade.
– O que é um alívio para todos nós, como decerto pode imaginar.
Especialmente porque ao que parece você comeu todas as que lhe
apareciam à frente.
– Imensas – concorda Leonard.
– E ainda mais especialmente uma vez que a Regra Número Um dum
Serviço que não tem assim tantas regras estipula que os funcionários no
ativo nunca, por nunca ser, comem as suas tipas, como vocês lhes
chamam, nem sequer por uma questão de delicadeza. As tipas de outros
quando operacionalmente desejáveis, tudo bem, é fartar vilanagem. As
suas é que nunca. Está ciente dessa regra?
– Estou.
– E também o estava na altura em questão?
– Estava.
– E concorda que, se a tivesse mesmo comido, coisa que sabemos que
não fez, isso constituiria não só uma monumental quebra da disciplina do
Serviço, como uma clara prova da sua natureza grosseira e incontrolável e
da sua falta de consideração pela sensibilidade de uma mãe fugitiva em
perigo mortal que acabava de se ver privada do seu único filho? Concorda
com esta afirmação?
– Concordo com a sua afirmação.
– Tem alguma pergunta a fazer, Leonard?
Leonard puxa pelo bonito lábio inferior com as pontas dos dedos e
franze a testa lisa.
– Sabe, Bunny, isto parece tremendamente incorreto, mas na verdade
acho que não tenho nenhuma pergunta a fazer – confessa, com um sorriso
escandalizado consigo próprio. – Depois disso, não tenho. Acho que pro
tempore fomos todos tão longe quanto é possível. E mais ainda. – E para
mim, em tom de confidência: – Vou mandar-lhe essa lista restrita, Peter. E
nunca me ouviu mencionar o Harry. Ou talvez melhor, faço-a chegar ao
Bunny. Conivência – explica, contemplando-me com outro sorriso
adorador e estendendo a mão para a pasta preta, indicando que a demorada
reunião que eu tinha previsto está terminada. – Mas acho que um homem
seria bom, ainda assim – diz para Bunny, não para mim, num aparte. –
Quando se trata de perguntas difíceis, os homens estão bastante em
vantagem nestes casos. São menos puritanos. Até à festarola parlamentar,
Peter. Tschüss20.
*

Se eu a comi? Não. Não comi coisíssima nenhuma. Fiz amor silenciosa


e freneticamente com ela na escuridão de breu durante seis horas que
alteraram a minha vida, numa explosão de tensão e luxúria entre dois
corpos que se desejavam desde a nascença e só tinham a noite para viver.
E esperava-se que eu lhes dissesse isto?, pergunto eu à escuridão
matizada de cor de laranja, deitado insone no meu catre prisional de
Dolphin Square.
Eu, que fui ensinado desde o berço a negar, negar e voltar a negar –
ensinado pelo mesmo Serviço que procura arrancar-me uma confissão?
*

– Dormiste bem, Pierre? Estás feliz? Fizeste um grande discurso? Voltas


para casa hoje?
Devo ter-lhe telefonado.
– Como está a Isabelle? – pergunto.
– Está bonita. Tem saudades tuas.
– Ele voltou? O tal meu amigo malcriado?
– Não, Pierre, o teu amigo terrorista não voltou. Foste ao futebol com
ele?
– Já não fazemos isso.

14* Na sequência do recrutamento de Primavera por este Serviço, decidiu-se reduzir ao mínimo as
suas deslocações visíveis a Berlim Oeste. O Posto de Berlim forneceu-lhe por conseguinte a
identidade de Friedrich Leibach, operário de construção civil residente em Lichtenberg, Berlim
Leste, onde por meios próprios Primavera obteve a utilização de um barracão de jardim para a sua
bicicleta e indumentária de operário.

15* Pseudónimo de Tulipa.

16** Theatre é o protótipo de um sistema de comunicações de alta frequência de curto alcance,


especificamente criado para comunicações dentro da área da cidade de Berlim. Numa carta
semioficial para C/Dep.Técnico, Leamas descreveu o sistema como «pesadão, delicado como o
diabo, produzido em quantidade exagerada e tipicamente ianque». Desde então foi abandonado.

17 Em alemão no original: salsicha. (N. do T.)

18 Em francês no original: bem-visto. (N. do T.)

19 Em francês no original: em bloco. (N. do T.)

20 Em alemão no original: Adeus. (N. do T.)


9

Que eu visse, não havia nada no ficheiro – e graças a Deus não havia
mesmo – sobre os dias e noites de eternidade que eu tinha passado na
Bretanha depois de entregar Doris a Joe Hawkesbury, o nosso Chefe do
Posto de Paris, no aeroporto de Le Bourget às sete de uma enevoada
manhã de inverno. Quando o nosso avião aterrou e uma voz chamou pelo
Professor e Madame Lessif, fiquei num estado de delirante alívio. Ao
descermos a escada lado a lado, a visão de Hawkesbury sentado lá em
baixo num Rover preto com matrícula CD e uma jovem assistente do
Posto no assento traseiro pôs-me o coração aos saltos.
– E o meu Gustav? – perguntou Doris, agarrando-me no braço.
– Vai correr tudo bem. Há de acontecer – disse eu, ouvindo a minha
própria voz a papaguear as ocas garantias de Alec.
– Quando?
– Assim que puderem. São boa gente. Vais ver. Amo-te.
A rapariga de Hawkesbury estava a segurar a porta traseira. Ter-me-ia
ouvido? A minha descabelada explosão, pronunciada por outro dentro de
mim? Não importava se ela sabia alemão ou não. Qualquer palerma sabe o
significado de Ich liebe Dich21. Impeli Doris para diante. Com um
movimento brusco, ela sentou-se relutantemente no banco de trás. A
rapariga entrou a seguir a ela e fechou a porta com força. Eu instalei-me
no assento do passageiro, ao lado de Hawkesbury.
– Fizeram boa viagem? – perguntou ele, enquanto atravessávamos o
asfalto atrás de um jipe com as luzes a piscar.
Entrámos num hangar de aviões. Diante de nós, na escuridão, um
bimotor da RAF, com os hélices a rodar lentamente. A rapariga apeou-se
de um salto. Doris deixou-se ficar, sussurrando de si para si palavras em
alemão que não consegui perceber. As minhas loucas palavras não
pareciam ter causado qualquer impressão nela. Talvez não as tivesse
ouvido. Talvez eu não as tivesse dito. A rapariga tentou convencê-la, mas
ela não arredava pé. Eu entrei para o lado dela e peguei-lhe na mão. Ela
encostou a cabeça ao meu ombro enquanto Hawkesbury nos observava
pelo retrovisor.
– Ich kann nicht22 – murmurou ela.
– Du musst23, vai correr tudo bem. Ganz ehrlich. Palavra.
– Du kommst nicht mit? – Tu não vens?
– Mais tarde. Depois de falares com eles.
Saí do carro e estendi-lhe a mão. Ela ignorou-a e apeou-se sozinha. Não,
não me ouviu. Não pode ter ouvido. Uma tripulante fardada com um bloco
de mola na mão marchou direita a nós. Com a rapariga de Hawkesbury de
um lado e a tripulante do outro, Doris deixou-se conduzir até ao avião. Ao
chegar à escada, parou, olhou para cima e, depois de se armar de coragem,
começou a subir, servindo-se de ambas as mãos. Eu esperei que ela se
virasse para trás. A porta da cabina fechou-se.
– Pronto, está feito – disse Hawkesbury secamente, ainda sem voltar a
cabeça para mim. – Portanto o recado lá de cima é: bravo, fez um ótimo
trabalho, agora volte para a Bretanha, recomponha-se e espere pela grande
chamada. A gare de Montparnasse dá-lhe jeito?
– A gare de Montparnasse serve perfeitamente, obrigado.
E você pode ser o menino bonito da Conjunta de Coordenação, irmão
Hawkesbury, mas isso não impediu Bill Haydon de me oferecer o seu
lugar.
*

Mesmo hoje, teria grande dificuldade em descrever a torrente de


emoções desencontradas que redemoinhavam dentro de mim no regresso à
propriedade, estivesse eu a conduzir um trator, a espalhar estrume nos
campos ou a esforçar-me de qualquer outro modo por fazer sentir a minha
presença como o jovem patrão. Tão depressa estava a deliciar-me com as
sensações de uma noite demasiado decisiva para definir, como me perdia
no temor perante a monstruosa irresponsabilidade do compulsivo e
descuidado ato que cometera e as palavras que tinha, ou não tinha,
proferido.
Invocando a silenciosa escuridão na qual os nossos abraços se tinham
combatido, tentei convencer-me de que a nossa união fora apenas em
espírito, uma ilusão suscitada pelo medo de que a qualquer momento a
segurança checa pudesse arrombar a porta do quarto. Mas um olhar à
marca dos dedos dela no meu corpo revelou que estava a iludir-me.
Além disso, não havia imaginação da minha parte capaz de produzir o
momento em que, com a chegada dos primeiros alvores, e ainda sem uma
palavra trocada entre nós, ela vestiu uma parte do corpo a seguir a outra,
primeiro postando-se diante de mim nua e de sentinela, como se postara
diante de mim na praia búlgara, e cobrindo-se a seguir peça a peça com os
atavios franceses até não haver mais nada para desejar a não ser uma
recatada saia de trabalho e um blusão preto abotoado até ao pescoço; só
que eu a desejava mais desesperadamente que nunca.
E como, enquanto se vestia, a luz de triunfo ou desejo lhe esmoreceu no
rosto e passámos, por sua própria opção, a estar distantes, primeiro no
autocarro até ao aeroporto de Praga, no qual ela recusou a minha mão, e
mais uma vez no avião para Paris, onde, por razões que me escapavam,
fomos colocados em filas diferentes – até que o avião se imobilizou e nos
levantámos e saímos em fila e as nossas mãos voltaram a encontrar-se,
apenas para se separarem.
Na penosa viagem de comboio para Lorient – nesse tempo não havia
comboios de alta velocidade – ocorrera um episódio que em retrospetiva
me enche até hoje de uma sensação de horror próximo. Mal passara uma
hora desde a partida de Paris, o nosso comboio parou de súbito, sem que
fosse fornecida qualquer explicação. Ouviram-se vozes abafadas lá fora,
às quais se seguiu um único grito de origem desconhecida, de homem ou
mulher, nunca vim a saber. Mesmo assim, aguardámos. Alguns de nós
trocaram olhares. Outros mantiveram-se decididamente embrenhados nos
seus livros e jornais. Apareceu um guarda uniformizado à porta da
carruagem, um rapaz que não passaria dos vinte anos. Recordo-me muito
bem do silêncio que antecedeu o seu discurso improvisado, que depois de
tomar fôlego proferiu com louvável calma:
– Senhoras e senhores, lamento informá-los de que o nosso avanço foi
inibido por intervenção humana. Seguiremos viagem dentro de minutos.
E não fui eu, mas sim o velho cavalheiro consciencioso de colarinho
branco engomado que se sentava ao meu lado a levantar a cabeça e
perguntar bruscamente:
– Intervenção de que natureza?
Ao que o rapaz só pôde responder, com voz de penitente:
– Um suicídio, monsieur.
– De quem?
– Dum homem, senhor. Pensa-se que era um homem.
Passadas umas horas da minha chegada a Les Deux Églises, fui até à
enseada: a minha enseada, o meu lugar de refrigério. Primeiro o estirão
pela emaranhada encosta abaixo até à orla do meu terreno, e a seguir outro
estirão pelo carreiro da falésia, e ao fundo deste a pequena porção de areia
e, de um lado e de outro desta, rochas acaçapadas como crocodilos a
dormitar. Era ali que em jovem eu ia pensar. Era ali que tinha levado as
minhas mulheres ao longo do tempo: os amores, os meios amores, os
quartos de amores. Mas a única mulher pela qual eu suspirava era Doris.
Torturava-me com a ideia de que nunca tínhamos tido uma única conversa
que não fosse de fachada. Mas não tinha eu partilhado todas as horas
indiretamente vividas por ela, a dormir e acordado, durante um ano
inteirinho? Não tinha respondido a todos os seus impulsos, a todos os
assomos de pureza, luxúria, revolta e vingança? Indiquem-me outra
mulher que eu tenha conhecido durante tanto tempo, e tão intimamente,
antes sequer de dormir com ela.
Ela fortalecera-me. Fizera-me o homem que até então nunca fora. Ao
longo dos anos várias mulheres me tinham dito – amavelmente, cruamente
ou com franco desencanto – que eu não tinha aptidão para o sexo; que não
era capaz de receber nem de dar com abandono; era inepto, reprimido; que
me faltava o verdadeiro fogo instintivo.
Doris, porém, sabia tudo isso, antes de nos termos alguma vez abraçado.
Soubera-o quando fizéramos uma passagem de raspão e sabia-o ao tomar-
me, nua, nos seus braços, acolher-me, absolver-me e mostrar-me; depois
moldara-se a si própria em torno de mim até sermos velhos amigos, a
seguir amantes cautelosos e finalmente triunfadores rebeldes, libertos de
tudo o que se atrevia a controlar as nossas duas vidas.
Ich liebe Dich. Dizia-o a sério. Di-lo-ia sempre a sério. E quando
voltasse para Inglaterra havia de dizer-lho outra vez, e contaria a George
que lho dissera e dir-lhe-ia que tinha cumprido o meu tempo de serviço e
mais ainda e, que se tivesse de abandonar o Serviço para me casar com
Doris e travar o bom combate por Gustav, fá-lo-ia também. Faria finca-pé
e nem sequer George, com todos os seus argumentos de veludo, me ia
fazer mudar de ideias.
Mal tinha tomado esta grande e irreversível decisão, contudo, veio
atormentar-me a bem documentada promiscuidade de Doris. Seria esse o
seu verdadeiro segredo? Que fazia amor com todos os homens com igual e
indiscriminada generosidade? Cheguei quase a convencer-me de que Alec
já lá tinha andado antes de mim: tinham passado duas noites inteiras
juntos, valha-me Deus! É certo que na primeira com Gustav a reboque.
Mas e a segunda noite, apertados no Trabant, sozinhos, muito chegados
para se aquecerem – a cabeça dela no ombro dele, nas suas próprias
palavras! – enquanto ela lhe desvendava a alma (e o mais que lhe tenha
desnudado), ao passo que eu, o correio cego, podia praticamente contar as
palavras que Doris e eu conseguíramos trocar em todas as nossas vidas.
Porém, precisamente quando invocava este espectro de imaginária
traição, sabia que estava a enganar-me, o que tornava mais dolorosa a
ignomínia. Alec não era desses. Se fosse Alec, em vez de mim, a passar a
noite com Doris no Hotel Balkan, ter-se-ia sentado placidamente a fumar a
um canto, tal como fizera naquela noite em Cottbus, enquanto Doris
apertava Gustav, e não Alec, nos braços.
Ainda estava a contemplar o mar, refletindo infrutiferamente para trás e
para a frente nestes termos, quando me apercebi de que não estava
sozinho. No meu ensimesmamento não tinha até reparado que estava a ser
seguido. Pior, que fora seguido pelo elemento menos apetecível da nossa
comunidade, Honoré, o anão venenoso, que negociava em estrume, carros
usados e coisas piores. Tinha uma figura de gnomo, sinistra: atarracado,
largo de ombros e com cara de mau, boné e corta-vento bretões,
escarranchado na borda da falésia, a espreitar lá para baixo.
Chamei por ele. Perguntei-lhe, com um certo desdém, em que podia ser-
lhe útil. O que estava na realidade a pedir-lhe era que se fosse embora e
me deixasse com os meus pensamentos. A sua resposta foi descer o
carreiro da falésia e, sem sequer me deitar uma olhadela, empoleirar-se
numa rocha perto do mar. Começava a escurecer. Do lado de lá da baía, as
luzes de Lorient principiavam a cintilar. Passado um pedaço, levantou a
cabeça e fitou-me, como quem perguntasse qualquer coisa. Não obtendo
resposta, tirou uma garrafa das profundezas do corta-vento e, depois de ter
enchido dois copos de papel que tirou do outro bolso, fez-me sinal para
me juntar a ele, o que, por uma questão de civilidade, adequadamente fiz.
– A pensar na morte? – perguntou frivolamente.
– Conscientemente, não.
– Uma mulher? Outra?
Ignorei-o. Impressionou-me, contra vontade, a sua misteriosa
delicadeza. Seria nova? Ou não tinha reparado nela antes? Ergueu o copo,
e eu ergui o meu a ele. Na Normandia, chamar-lhe-iam Calvados, mas
para nós é Lambig. Na versão de Honoré, era aquilo que se põe nos cascos
dos cavalos para os enrijecer.
– Ao seu virtuoso pai – disse ele, falando para o mar. – O grande herói
da Resistência. Matou uma data de boches.
– É o que se diz – respondi eu cautelosamente.
– Medalhas também.
– Umas quantas.
– Torturaram-no. Depois mataram-no. Herói duas vezes. Bravo – disse
ele, voltando a beber, sempre a olhar para o mar. – O meu pai também foi
um herói – continuou. – Um grande herói. Mega. Dois metros maior que o
seu.
– O que fez ele?
– Colaborou com os boches. Prometeram-lhe que dariam a
independência à Bretanha quando ganhassem a guerra. O palerma
acreditou neles. A guerra acabou e os heróis da Resistência enforcaram-no
na praça da vila, o que restava dela. Uma grande multidão. Muitos
aplausos. Ouviam-se na vila inteira.
Tê-la-ia porventura ele ouvido também? Com as mãos a tapar os
ouvidos, escondido na cave de alguma pessoa bondosa? Tinha a impressão
de que talvez tivesse.
– Portanto o melhor é comprar a sua merda de cavalo a outro –
prosseguiu. – Ou talvez o enforquem também a si.
Ficou à espera de que eu dissesse alguma coisa, mas não me ocorreu
nada, de maneira que voltou a encher os copos e continuámos os dois a
olhar para o mar.
*

Naquele tempo os camponeses ainda jogavam boules na praça da aldeia


e cantavam canções bretãs quando estavam embriagados. Determinado a
considerar-me um ser humano normal, eu partilhava a sua cidre e ouvia o
Grand Guignol que fazia as vezes da coscuvilhice da aldeia: o casal dos
Correios que se fechou no quarto do andar de cima e se recusa a sair
porque o filho se matou; o cobrador de impostos do distrito cuja mulher o
deixou porque o pai dele sofre de demência e desce para o pequeno-
almoço completamente vestido às duas da manhã; o leiteiro da aldeia
vizinha que foi para a prisão por dormir com as filhas. A tudo isto fazia
questão de dizer que sim com a cabeça nos momentos certos enquanto as
questões que não me largavam se iam multiplicando e agravando.
*

A simples, estranhíssima porra da facilidade daquilo, por amor de


Deus!
Por que razão tinha tudo corrido sobre esferas quando, em qualquer
outra operação em que eu alguma vez estivera envolvido, nada correra
sobre esferas, mesmo quando acabara a custo por ter um desfecho
positivo?
Uma oficial da Stasi em fuga num estado policial vizinho a fervilhar de
informadores? A segurança checa, famosa pela sua desumanidade e
eficiência? E contudo, longe de sermos escrutinados, seguidos, escutados
e até interrogados, somos mansamente acompanhados até aos portões de
saída?
E desde quando, digam-me cá, são as Informações francesas tão
imaculadas? Dilaceradas por rivalidades internas correspondia mais àquilo
que me constara. Incompetentes e infiltradas de cima a baixo, e porque é
que isso nos faz lembrar qualquer coisa? No entanto, assim do pé para a
mão são os grandes mestres da arte… Mas serão mesmo?
E se eram essas as minhas suspeitas, e eram mesmo, tornando-se mais
ensurdecedoras a cada momento, que me propunha eu fazer a respeito
delas? Confessar também isso a Smiley antes de lançar a toalha ao chão e
demitir-me?
Mesmo agora, tanto quanto sei, Doris estava encafuada com os
encarregados do seu debriefing numa fortaleza rural qualquer. Estaria a
revelar-lhes o amor ardente que tínhamos feito? Em assuntos do coração,
o comedimento não era propriamente o seu forte.
E se as pessoas que estavam a fazer-lhe o debriefing começassem a
suspeitar, como eu, de que a sua fuga pela Alemanha Oriental e pela
Checoslováquia tinha sido anormalmente facilitada, que conclusões
poderiam tirar?
Que era tudo uma encenação? Que ela era uma infiltrada, uma agente
dupla, parte de um jogo de embuste de alto risco? E que Peter Guillam, o
tonto dos tontos, tinha dormido com o inimigo? – que era o que eu próprio
começava a crer quando Oliver Mendel me telefonou às cinco da manhã e
me deu ordens, em nome de George, para me deslocar até à cidade de
Salisbury pela via mais rápida possível. Nem um: «Como está, Peter?»
Nem um: «Desculpe arrancá-lo da cama assim de madrugada.» Apenas
um: «O George diz para mexer o traseiro e vir até aqui ao Campo 4 na
bisga, filho.»
Campo 4: a casa segura da Conjunta de Coordenação em New Forest.
*

Apertando-me no último lugar disponível de um pequeno avião em Le


Tourquet, visualizo o tribunal sumário que me espera: Doris confessou ser
agente dupla. Está a utilizar a nossa noite de paixão como uma espécie de
manobra de diversão.
Mas nessa altura a outra metade de mim assume o controlo. Ela é a
mesma Doris, por amor de Deus! Tu ama-la. Disseste-lho, ou pensas ter-
lho dito, e em qualquer dos casos continua a ser verdade. Portanto não
faças julgamentos apressados pelo simples facto de estares tu prestes a ser
julgado!
Quando aterrei em Lydd, não havia lógica em nada daquilo. Quando o
meu comboio chegou à estação de Salisbury, continuava a não haver
nenhuma. Mas pelo menos tinha arranjado tempo para dar voltas ao miolo
em relação à escolha do Campo 4 como lugar para onde levar Doris para o
debriefing. Não se tratava, no critério do Circus, do mais secreto do seu
arquipélago de casas seguras, nem do mais garantido. No papel, tinha tudo
a seu favor: era uma pequena propriedade no coração de New Forest, não
se via da estrada, era um edifício baixo, de dois andares, tinha um jardim
murado, um regato, um pequeno lago, quatro hectares de terreno, em parte
arborizado, e tudo isto cercado por uma vedação de rede de arame de um
metro e oitenta de altura, coberta de vegetação e escondida por arbustos.
Mas para o debriefing de uma agente valiosa, arrancada apenas há dias
das garras da Stasi, para a qual trabalhava? Era decerto um tanto ou
quanto deslavado, um pouco mais visível do que George quereria se não
fosse a Conjunta a dona da operação.
Na estação de Salisbury estava à minha espera um motorista do Circus
chamado Herbert, meu conhecido dos tempos em que estivera na secção
dos Caçadores de Escalpes, com uma tabuleta na mão a dizer «Passageiro
para Barraclough», um dos nomes de trabalho de George. Quando ensaiei
um pouco de conversa, porém, Herbert disse que não estava autorizado a
falar comigo.
Entrámos na comprida e esburacada estrada de acesso. Os intrusos
seriam sujeitos a ação judicial. Ramos pendentes de tílias e bordos
roçavam o tejadilho da carrinha. De entre as sombras ergueu-se a
improvável figura de Fawn, primeiro nome desconhecido, um ex-instrutor
de combate desarmado em Sarratt e caceteiro ocasional das Encobertas:
mas que diabo estava Fawn ali a fazer, logo ele, quando o Campo 4 se
gabava de ter os seus próprios guardas de segurança, sob a forma do
célebre casal gay adorado por todos os formandos, os Srs. Harper e Lowe?
Lembrei-me então de que Smiley tinha um apreço profissional por Fawn e
o tinha utilizado para uma porção de missões desagradáveis.
O motorista encostou, Fawn espreitou-me, sem sorrir, e seguidamente,
com uma inclinação de cabeça, mandou-nos passar. A estrada de acesso
era a subir. Um par de sólidos portões de madeira abriu-se e fechou-se
atrás de nós. À nossa direita a casa-mãe, uma mansão falsamente Tudor
construída para um cervejeiro. À nossa esquerda, a cocheira, um par de
barracões Nissen e um imponente armazém para guarda das colheitas,
coberto de colmo, chamado o Cepo. Estavam três Ford Zephyr e uma
carrinha Ford preta estacionados no pátio; em frente deles, o único ser
humano à vista, Oliver Mendel, inspetor da polícia reformado e aliado de
longa data de Smiley, com um walkie-talkie encostado ao ouvido.
Saio a correr da carrinha e arrasto a minha mochila atrás. Grito: «Viva,
Oliver! Consegui!» Mas Oliver Mendel não mexe um músculo, limitando-
se a murmurar para o seu walkie-talkie enquanto me vê avançar para ele.
Começo novamente a saudá-lo, mas penso melhor. Oliver murmura:
«Assim farei, George», e desliga.
– De momento o nosso amigo está um tanto ocupado, Peter – diz
gravemente. – Tivemos um pequeno incidente. Se não se importa, vamos
os dois dar uma volta à roda das instalações.
Capto a mensagem. A Doris contou tudo, até e incluindo o Ich liebe
Dich. O nosso amigo George está ocupado, o que quer dizer que está
descontente, furioso, revoltado com o discípulo eleito que o deixou ficar
mal. Não consegue sequer falar comigo, de modo que delegou no sempre
fiável inspetor Oliver Mendel pregar ao jovem Peter o sermão da sua vida,
e provavelmente dar-lhe a sua ordem de marcha também. Mas porquê
Fawn? E porquê esta sensação de um campo abandonado à pressa?
Subimos um trecho relvado e estamos numa posição oblíqua em relação
um ao outro, o que eu não duvido que seja a intenção de Mendel. Os
nossos olhos estão pregados em qualquer objeto incerto a meia distância:
um par de bétulas prateadas, um velho pombal.
– Tenho uma mensagem desagradável para si, Peter.
Cá vamos nós.
– Lamento muito informá-lo de que a subfonte Tulipa, a senhora que
você exfiltrou com êxito da Checoslováquia, foi esta manhã declarada
morta.
*

E uma vez que nunca ninguém sabe bem o que disse numa ocasião
destas, e eu não sou diferente, não me atribuirei o obrigatório grito de dor,
horror ou incredulidade. Sei que deixei de ver o que quer que fosse com
nitidez, nem as bétulas prateadas nem o pombal. Sei que o dia estava
soalheiro e quente para aquela época do ano. Sei que me apeteceu vomitar
mas, fiel à minha natureza inibida, consegui reter-me. Sei que segui
Mendel até à arruinada casa de verão que fica no ponto mais a sul da
propriedade, separada da casa-mãe por uma densa mata de ciprestes-da-
califórnia. E que quando nos sentámos na periclitante varanda estávamos a
olhar para um campo de croquet invadido pela vegetação, porque me
recordo dos enferrujados arcos a despontar da relva.
– Pendurada pelo pescoço até morrer, lamento muito, filho – estava a
dizer Mendel, pronunciando as palavras da sentença de morte. – Um
trabalho feito pela própria. Do ramo baixo de uma árvore mesmo do lado
de lá daquela encosta além. Junto da ponte pedonal. Ponto 217 do mapa.
Óbito certificado às 0800 pelo Dr. Ashley Meadows.
Ash Meadows, psiquiatra em voga de Harley Street, improvável amigo
de George. Eventual do Circus com o monopólio dos desertores
neuróticos.
– O Ash está cá?
– Está agora com ela.
Digiro lentamente a informação. Doris morreu. Ash está com ela. Um
médico monta guarda aos mortos.
– Deixou alguma mensagem, ou coisa assim? A dizer a alguém o que ia
fazer?
– Enforcou-se e pronto, filho. Com um pedaço de corda de alpinismo de
nylon entrançado que parece ter encontrado por aqui. Dois metros e
setenta de comprimento. Provavelmente deixada por um curso de
formação. Uma certa negligência, na minha opinião pessoal.
– Alguém informou o Alec? – pergunto eu, pensando agora na cabeça
dela a descansar no seu ombro.
De novo a voz do polícia.
– O George contará ao seu amigo Alec Leamas o que o Alec precisa de
saber quando o Alec precisar de saber, e não antes, filho. E há de ser o
George a escolher a altura de o fazer. Entendido?
Entendido que Alec ainda pensa que deixou Tulipa em segurança.
– Onde está ele agora? Não é o Alec. O George – pergunto
estupidamente.
– Neste preciso momento, o George está ocupado a conversar com um
cavalheiro suíço fortuito, por acaso. Ficou preso numa armadilha do
terreno, pobre sujeito. Não era uma armadilha para animais, era mais uma
armadilha para intrusos, colocada por um caçador furtivo depois de ter
apanhado algum veado, imaginamos nós. Ferrugenta, posta no meio da
erva alta, ao que nos disseram. Podia lá estar desde há sabe-se lá quanto
tempo. E aqueles dentes podiam ter-lhe decepado o pé, ao que me dizem.
Portanto teve sorte. – E, perante o meu continuado silêncio, no mesmo
tom coloquial: – O indivíduo suíço em questão é ornitólogo amador, o que
eu respeito, visto que também o sou mais ou menos, e estava a observar
pássaros. Não pretendia invadir as instalações, mas fê-lo, o que lamenta.
Eu também o lamentaria. O que me choca, aqui para nós, é o Harper e o
Lowe não terem dado por ela nas suas rondas pela propriedade. Foi uma
sorte não a terem pisado, é tudo o que posso dizer.
– Porque é que o George está a falar com ele agora? – e suponho que
queria dizer numa altura destas.
– Com o cavalheiro suíço? Bem, ele é uma testemunha importante, não
é, filho? O cavalheiro suíço. Quer queira, quer não. Estava no terreno (é
certo que indevidamente, um colega ornitólogo amador como eu, estas
coisas acontecem), mas na altura relevante, para seu azar. Naturalmente, o
George quer saber se o cavalheiro viu ou ouviu alguma coisa de interesse
que possa lançar luz sobre o assunto. Talvez a pobre Tulipa se tenha
dirigido de alguma maneira a ele. Pensando bem, é uma situação delicada.
Estamos numa infraestrutura altamente secreta e Tulipa não aterrou
oficialmente no RU, de modo que o cavalheiro suíço tropeçou naquilo a
que poderíamos chamar um vespeiro secreto. Isso tem de ser tido em
conta, como quer que seja.
Eu estava a ouvi-lo, mas na realidade não o escutava:
– Preciso de a ver, Oliver – disse.
Ao que, surpreendido, ele respondeu:
– Então deixe-se estar aqui mesmo, filho, enquanto eu comunico isso lá
para cima, e não se mexa em circunstância nenhuma.
Dito isto, avançou a passos largos pela erva comprida do relvado de
croquet abandonado, murmurando mais uma vez para o walkie-talkie. A
um gesto seu, desci atrás dele até à espessa porta do Cepo. Ele bateu e a
seguir recuou. Depois de uma espera, a porta abriu-se com um rangido e
apareceu Ash Meadows em pessoa, um ex-jogador de râguebi de
cinquenta anos, de suspensórios vermelhos e camisa de xadrez de flanela,
a fumar o seu habitual cachimbo.
– Lamento isto, meu velho – disse, afastando-se de mim; de maneira
que eu disse que também o lamentava.
Numa mesa de pingue-pongue a meio do grande celeiro via-se a efígie
de uma mulher esbelta envolvida num saco para cadáveres com fecho de
correr. Estava deitada de costas, com os dedos dos pés para cima.
– A pobre rapariga nunca soube que lhe chamavam Tulipa a não ser ao
chegar cá. – Ash estava a entregar-se a reminiscências, com a voz jovial
que tinha evidentemente desenvolvido para falar na presença de mortos. –
Mal soube que era Tulipa, ai de quem a tratasse por outra coisa. Tem a
certeza de que quer fazer isto?
Queria dizer na sua: estava eu preparado para ele abrir o fecho de
correr? Estava.
O rosto dela, pela primeira vez desde que eu o conhecia, estava
inexpressivo. O cabelo acobreado estava penteado em trança e atado com
uma fita verde, com a trança caída ao lado da cabeça. Tinha os olhos
fechados. Nunca até então a vira a dormir. O pescoço era uma escara de
azuis e cinzentos.
– Terminado, Peter, meu velho?
De qualquer maneira, correu o fecho.
*

Sigo Mendel até ao ar livre. À minha frente, o montículo de erva vai


subindo até chegar a uma moita de castanheiros. Lá de cima tem-se uma
boa vista: a casa-mãe, um pinhal e os campos limítrofes. Mas mal comecei
a subida quando Mendel me barra o caminho com a mão.
– Ficamos aqui em baixo, se não se importa, filho. Não vale a pena
darmos nas vistas – diz.
E eu suponho que não é surpreendente não ter pensado em questionar as
suas razões para dizer aquilo.
Depois há um período – não sou capaz de contar os minutos – em que
aparentemente deambulámos sem objetivo. Mendel fala-me da sua
apicultura. Depois fala-me do cão resgatado Poppy, um Labrador dourado,
pelo qual a mulher é louca. Poppy, julgo eu recordar, era um cão, e não
uma cadela. Recordo-me também de ter ficado secretamente surpreendido,
porque acho que não sabia que Mendel era casado.
A pouco e pouco vou-lhe respondendo. Quando me pergunta como
correm as coisas na Bretanha, e que tal parece a safra, e quantas vacas
temos, traço-lhe um retrato rigoroso e lúcido, que provavelmente é aquilo
que ele esperava, porque, quando chegamos ao caminho de saibro que vai
do Cepo à cocheira, ele afasta-se de mim e diz qualquer coisa breve para o
seu walkie-talkie. Quando volta para junto de mim, já não é o conversador
descontraído; é de novo o chui chapado.
– Ora bem, filho. Dê-me lá atenção. Está prestes a encontrar a outra
metade da história. Vai ver o que vai ver, não vai reagir seja de que
maneira for e manter-se-á absolutamente calado independentemente do
que tenha visto subsequentemente. Não são ordens minhas. São do
George, pessoalmente para si. Além disso, filho, se por acaso ainda está a
culpar-se pelo suicídio da pobre senhora, pode parar com isso agora.
Percebeu? Não é o George a falar. Sou eu. Fala alguma coisa de suíço?
Estava a sorrir e, para minha surpresa, eu também. A direção do nosso
passeio fortuito assumiu um propósito arrepiante. Eu tinha-me esquecido
momentaneamente do cavalheiro suíço. Supusera que Mendel estivesse
simpaticamente a falar para fazer conversa. Nesta altura o misterioso
ornitólogo amador que invadira a propriedade por engano ressurgiu à
força toda. No extremo mais distante do desfiladeiro estava Fawn. Atrás
dele erguiam-se os degraus de pedra de uma entrada verde-azeitona com a
inscrição: PERIGO DE MORTE, ACESSO INTERDITO.
Subimos. Fawn abria a marcha. Chegámos a um palheiro. Havia arreios
bolorentos pendurados em velhos ganchos. Passámos pelo meio de fardos
de feno apodrecido até chegarmos ao Submarino, uma célula de
isolamento montada especificamente para instruir os formandos nas
desagradáveis artes de resistir e proceder a interrogatórios duros. Nenhum
curso de refrescamento que eu tivesse feito estava completo sem uma
amostra das suas paredes almofadadas e desprovidas de janelas, das
algemas de amarrar as mãos aos pés e dos efeitos sonoros de fazer estalar
a cabeça. A porta era de aço enegrecido, com um óculo deslizante que
permitia ver para o interior, mas nunca para o exterior.
Fawn mantém a distância. Mendel avança até ao Submarino, curva-se
para diante, desliza o óculo, volta a recuar e faz-me um aceno afirmativo.
E, muito baixinho, numa torrente:
– Só que ela não se enforcou coisa nenhuma, pois não, filho? Foi o
nosso ornitólogo amador que o fez por ela.
Nas minhas ações de formação, nunca tinha visto mobiliário no interior
do Submarino. Ou a pessoa se deitava no chão de pedra ou o percorria de
um lado para o outro no meio da escuridão de breu enquanto os
altifalantes lhe atroavam os ouvidos até não poder aguentar mais, ou o
monitor decidir que já chegava. Estes dois improváveis ocupantes do
Submarino, porém, tinham sido contemplados com o luxo de uma mesa de
jogo de baeta vermelha e duas cadeiras perfeitamente decentes.
Numa das cadeiras está sentado George Smiley, com o ar que só George
tem quando está a conduzir um interrogatório: um tudo-nada aborrecido,
um tudo-nada pesaroso, como se a vida fosse para ele um prolongado
incómodo e ninguém pudesse torná-la tolerável exceto, porventura, a
pessoa em causa.
Defronte de George, na outra cadeira, está sentado um loiro robusto da
minha idade, com nódoas negras recentes à volta dos olhos e uma perna à
mostra, com uma ligadura e espetada para a frente, e as mãos algemadas,
com as palmas viradas para cima sobre a mesa como as de um pedinte.
Quando vira a cabeça, vejo exatamente aquilo que por esta altura espero
ver: uma cicatriz antiga como um ferimento de sabre, a atravessar-lhe toda
a face direita.
E, embora mal consiga vê-los por causa das nódoas negras, sei que tem
olhos azuis, porque é o que dizia o registo criminal que há três anos eu
tinha roubado a George Smiley depois de ele ter sido espancado quase até
à morte pelo homem que nesta altura está sentado diante dele.
A interrogar… ou a negociar? O nome do prisioneiro – como posso
esquecê-lo? – é Hans-Dieter Mundt. É um ex-membro da Missão do Aço
da Alemanha Oriental em Highgate, que gozava de estatuto oficial mas
não diplomático.
Durante o seu périplo por Londres, Mundt matou um vendedor de
automóveis de Londres Leste que sabia de mais para o seu gosto. Quando
tentou matar George, foi pela mesma razão.
E agora eis o mesmo Mundt sentado no Submarino, um assassino da
Stasi formado pelo KGB a fingir que era um ornitólogo suíço apanhado
numa armadilha para veados, enquanto Doris, que pretendia ser conhecida
apenas como Tulipa, está morta a menos de metro e meio dele. Mendel
está a puxar-me pelo braço. É só uma curta viagem de carro até ao sítio
onde vamos, Peter. O George vem ter connosco mais tarde.
– Que foi que aconteceu ao Harper e ao Lowe? – pergunto-lhe eu,
quando estamos em segurança no carro, uma vez que é o único assunto
que me vem à mente.
– O Meadows mandou o Harper para o hospital para lhe consertarem a
cara. O Lowe está a segurar-lhe a mão. O nosso amigo ornitólogo não veio
sossegadamente quando foi libertado da armadilha que pisou, digamos
assim. Precisou de ajuda a valer, conforme há de ter observado.
*
– Tenho dois papéis para si, Peter – está a dizer Smiley, entregando-me
o primeiro.
São duas da manhã. Estamos sozinhos na mesma sala da frente da
mesma casa geminada da polícia algures na orla de New Forest. O nosso
anfitrião, um velho amigo de Mendel, acendeu-nos uma fogueira de
carvão e trouxe-nos um tabuleiro de chá e biscoitos de açúcar antes de se
recolher com a mulher ao andar de cima. Não bebemos o chá nem
tocámos nos biscoitos. O primeiro papel é um simples postal inglês, sem
selo. Há nele marcas de arranhões, como se tivesse sido enfiado por
qualquer coisa estreita, talvez por baixo de uma porta. O lado do endereço
está em branco. Do lado do remetente, há uma mensagem a tinta, azul-
escura, escrita à mão, em alemão, exclusivamente em maiúsculas.

SOU UM BOM AMIGO SUÍÇO QUE PODE LEVÁ-LA AO SEU


GUSTAV. VENHA TER COMIGO À PONTE PEDONAL ÀS 0100.
SERÁ TUDO COMBINADO. SOMOS GENTE CRISTÃ. [Sem
assinatura.]

– Porquê esperar que ela chegasse à Inglaterra? – consigo eu perguntar a


George depois de uma longa demora. – Porque não matá-la na Alemanha?
– Para proteger a fonte deles, obviamente – responde Smiley num tom
de censura pela minha lentidão de raciocínio. – O aviso veio do Centro de
Moscovo, que muito naturalmente fez finca-pé na discrição. Nem um
acidente rodoviário nem um acontecimento igualmente arquitetado. O
melhor é uma morte autoinfligida que cause a maior consternação possível
no campo inimigo. Vejo isso como inteiramente lógico, e você? Bem, e
você, Peter?
Há raiva no férreo controlo da sua voz habitualmente suave, na rigidez
das suas feições normalmente fluidas. Raiva como repugnância por si
próprio. Raiva perante a monstruosidade daquilo que tem de fazer, ao
arrepio de todos os instintos decentes.
– Conduzir é a expressão de eleição de Mundt – continua ele, sem
aguardar pela minha resposta nem esperar nenhuma. – Conduzimo-la a
Praga, conduzimo-la a Inglaterra, conduzimo-la ao Campo 4. Depois
estrangulámo-la e enforcámo-la. Nunca eu. Sempre o coletivo nós. Eu
disse-lhe que ele me era desprezível. Agrada-me pensar que ele entendeu.
– E, como se se tivesse esquecido: – Ah, e o outro papel é para si –
estendendo-me uma folha dobrada de papel Basildon Bond com «Adrien»
escrevinhado a toda a largura, desta vez a lápis macio. A caligrafia era
clara e meticulosa. Não havia floreados desnecessários. Uma sincera
colegial alemã a escrever ao seu correspondente inglês.

Meu querido Adrien, meu Jean-François.


Tu és todos os homens que eu amo. Praza a Deus amar-te também.
Tulipa.

– Perguntei-lhe se tenciona guardá-lo como recordação ou queimá-lo –


está Smiley a repetir ao meu ouvido aturdido com a mesma voz de raiva
gelada. – Sugiro a segunda hipótese. Foi a Millie McCraig que por acaso o
descobriu. Estava pregado no espelho de maquilhagem de Tulipa.
A seguir, sem emoção aparente, fica a observar-me enquanto eu ajoelho
diante do fogo e poiso a carta de Doris, ainda dobrada, como uma
oferenda nas brasas ardentes. E ocorre-me, entre todos os turbulentos
sentimentos que me destroçam, que George Smiley e eu somos mais
próximos do que queremos reconhecer em matéria de amor frustrado. Eu
danço mal. George, segundo a sua malcomportada mulher, recusa-se pura
e simplesmente a dançar. E mesmo assim eu não pronunciei uma palavra.
– Há certas condições úteis associadas ao acordo que acabei de fazer
com Herr Mundt– continua ele inexoravelmente. – A gravação da nossa
conversa, por exemplo. Os patrões dele em Moscovo e Berlim não
ficariam impressionados com ela, reconhecemos unanimemente.
Concordámos também que o seu trabalho para nós, competentemente
gerido por ambos os lados, há de promovê-lo na sua distinta carreira na
Stasi. Regressará para junto dos seus camaradas como um herói
conquistador. Os manda-chuvas da Direção hão de ficar satisfeitos com
ele. O lugar de Emmanuel Rapp vai vagar. Ele que se candidate. Garantiu-
me que o faria. À medida que a sua sorte aumenta em Berlim e Moscovo,
e o seu acesso aumenta em conformidade, talvez chegue o dia em que ele
nos poderá dizer quem traiu Tulipa e determinados outros agentes nossos
que tiveram um fim prematuro. Temos muita coisa a esperar, você e eu,
não temos?
E eu, tanto quanto me lembro, continuo a não dizer nada, ao passo que
Smiley, a terminar, tem algo muito importante a dizer.
– Só você, eu e apenas um reduzidíssimo grupo detemos esta
informação extremamente privilegiada, Peter. Na opinião da Conjunta de
Coordenação e do Serviço em geral, fomos gananciosos, trouxemos Tulipa
para aqui precipitadamente de mais, não prestámos atenção aos seus
sentimentos mais profundos. Em consequência disso ela enforcou-se. Que
é a versão que tem de ser propagandeada à Sede e a todos os postos
avançados. Não pode haver exceções onde quer que a Conjunta tenha
influência. E isso, receio bem, inclui inevitavelmente o nosso amigo Alec
Leamas.
*

Cremámo-la com o nome de Tulip Brown, uma mulher de fé de


nacionalidade russa que tinha escapado da perseguição comunista e
passara a viver uma vida solitária em Inglaterra. Brown, explicou-se ao
padre ortodoxo reformado desencantado pelas senhoras das Encobertas
que arranjaram também as tulipas no caixão, era o nome que ela tinha
dado a si própria por medo de represálias. O padre, um velho Eventual,
não fez perguntas inconvenientes. Éramos seis: Ash Meadows, Millie
McCraig, Jeanette Avon e Ingeborg Lugg, das Encobertas, Alec Leamas e
eu. George tinha coisas a tratar noutro sítio. Terminado o ofício, as
mulheres partiram e nós, os três homens, fomos à procura de um bar.
– Por que raio é que a estúpida da mulher fez aquilo, porra? – queixou-
se Alec, com a cabeça entre as mãos, quando estávamos sentados a beber
os nossos uísques. – Depois de toda a trabalheira que tivemos. – E no
mesmo tom de fingida indignação: – Se ela me tivesse dito o que ia fazer,
nunca me teria maçado, porra!
– Nem eu – disse eu lealmente, dirigindo-me ao balcão e pedindo mais
três do mesmo.
– O suicídio é uma decisão que certas pessoas já tomaram numa fase
anterior da vida – estava o Dr. Meadows a pontificar quando eu regressei.
– Podem não o saber, mas está dentro delas, Alec. Depois, um dia,
aparece qualquer coisa que o desencadeia. Pode ser absolutamente trivial,
como deixar a carteira no autocarro. Pode ser drástica, como a morte do
melhor amigo. Mas a intenção esteve sempre lá. E o resultado é o mesmo.
Bebemos. Outro silêncio, desta feita quebrado por Alec.
– Talvez todos os tipos sejam suicidas. Alguns não chegam é lá, pobres
filhos da mãe. – E a seguir: – Seja como for, quem é que vai dar a notícia
ao rapaz?
Rapaz? Claro. Referia-se a Gustav.
– O George diz que vamos deixar essa para a oposição – retorqui, ao
que Alec reagiu resmungando «Meu Deus, que planeta!», e regressou ao
seu uísque.

21 Em alemão no original: Amo-te. (N. do T.)

22 Em alemão no original: Não consigo. (N. do T.)

23 Em alemão no original: Tens de. (N. do T.)


10

Deixei de fitar a parede da biblioteca: Nelson, que rendeu Pepsi, fica


perturbado com a minha desatenção. Retomo adequadamente a leitura do
relatório que na minha dor e remorso compilei às ordens de Smiley, não
omitindo nenhum pormenor, por mais extrínseco que fosse, na minha
missão de observar o único segredo que ninguém a não ser os poucos
alguma vez partilharia.

DEBRIEFING E SUICÍDIO DA SUBFONTE TULIPA.


Debriefing conduzido por Ingeborg Lugg (Encobertas) e Jeanette Avon (Encobertas).
Presença periódica: Dr. Ashley Meadows, médico, Eventual das Encobertas.
Redigido e conferido por PG e aprovado por C/Encobertas Marylebone para
submissão à Comissão de Fiscalização das Finanças. Cópia antecipada para
C/Conjunta de Coordenação para comentários.

Avon e Lugg são debriefers exímias, ambas de meia-idade, da Europa


Central, com uma longa experiência operacional.

1. Receção de TULIPA e transferência para o Campo 4.


À chegada em avião militar da RAF a Northolt, Tulipa não passou pelas
formalidades de chegada, não tendo portanto chegado a entrar oficialmente no RU.
Descrevendo-se como «o representante designado de um Serviço que tem muito
orgulho em si», o Dr. Meadows fez um breve discurso de boas-vindas na sala de
receção VIP da zona de passageiros em trânsito e ofereceu-lhe um ramo de rosas
inglesas que pareceu afetá-la profundamente, porque durante todo o caminho as levou
silenciosamente junto ao rosto.
Foi transportada diretamente em carrinha fechada para o Campo 4. Avon (nome de
trabalho ANNA), enquanto enfermeira diplomada com aptidão para fazer amizades,
sentou-se com Tulipa no banco de trás, providenciando-lhe conforto e conversa. Lugg
(nome de trabalho LOUISA) instalou-se no banco da frente ao lado do condutor, na
convicção de que era mais provável conseguir que se estabelecessem laços afetivos
entre Avon e Tulipa se as duas ficassem sozinhas no assento traseiro. Todos nós
falamos fluentemente o alemão, Nível 6.
Durante o trajeto Tulipa alternou entre dormitar e assinalar excitadamente
características da paisagem que agradariam ao filho quando chegasse ao RU, coisa que
ela parecia achar próxima. Indicou também com entusiasmo caminhos e zonas onde
gostaria de andar de bicicleta, também com Gustav. Perguntou duas vezes por
«Adrien» e, ao ser-lhe respondido que não conhecíamos nenhum Adrien, mudou o
objeto das suas perguntas para Jean-François. O Dr. Meadows informou-a então de que
o correio Jean-François tinha sido chamado para uma tarefa urgente, mas sem dúvida a
seu tempo daria sinal de vida.
Os alojamentos da ala de hóspedes do Campo 4 compreendem um quarto principal,
uma sala de estar, uma kitchenette e um solário, sendo este uma extensão de vidro e
madeira do século XIX sobranceira a uma piscina exterior (não aquecida). Todos os
espaços, incluindo o solário e a zona da piscina, estão equipados com microfones
ocultos e instalações especiais.
Diretamente atrás da piscina fica uma mata de coníferas das quais uns ramos mais
baixos, não todos, foram cortados. Os gamos são vulgares e é frequente vê-los a
divertirem-se na piscina. Devido à vedação de arame, os gamos são efetivamente um
rebanho doméstico confinado à propriedade, contribuindo assim para a atmosfera de
refinado encanto e tranquilidade do Campo 4.
Primeiro, apresentámos Tulipa a Millie McCraig (ELLA), que, a pedido do C/Ops
Encobertas, já tinha sido empossada nesse dia como governanta da casa segura. A
pedido do C/Encobertas foram instalado microfones em posições relevantes e
desligados os que se encontravam ainda ativos de operações anteriores.
Os alojamentos pessoais da governanta da casa segura do Campo 4 estão situados
imediatamente por detrás da suíte de hóspedes, ao fundo de um curto corredor. Um
telefone interno liga os dois apartamentos, permitindo ao hóspede pedir auxílio a
qualquer hora da noite. Por sugestão de McCraig, Avon e Lugg ocuparam quartos na
casa-mãe, proporcionando assim a Tulipa um ambiente exclusivamente feminino.
Os guardas de segurança permanentes do Campo 4, Harper e Lowe, compartilham
instalações na cocheira. São ambos bons jardineiros. Harper, como guarda-caça
credenciado, controla a população selvagem da propriedade. A cocheira possui
também um quarto de hóspedes, que foi requisitado pelo Dr. Meadows.

2. Debriefing, dias 1-5.


O período inicial do debriefing foi marcado como extensível por 2-3 semanas,
acrescido de sessões de seguimento de duração não especificada, embora isto não fosse
revelado a Tulipa. A nossa missão imediata consistia em instalá-la, assegurá-la de que
se encontrava entre amigos e falar confiantemente do seu futuro (com Gustav), o que
no final da primeira noite considerámos ter conseguido a nosso cauteloso contento. Ela
foi informada de que o Dr. Meadows (Frank) era um de vários entrevistadores com
interesses especiais, e que haveria outros que, tal como Frank, chegariam e partiriam
durante as nossas sessões. Foi também informada de que o Herr Direktor
(C/Encobertas) estava ausente, a tratar de assuntos urgentes relacionados com o Dr.
Riemeck (PRIMAVERA) e outros elementos da rede, mas estava muito ansioso pela
honra de lhe apertar a mão quando regressasse.
Constituindo regra geral que os debriefings devem começar enquanto o sujeito ainda
está «quente», a nossa equipa reuniu-se pontualmente às 0900 da manhã seguinte na
sala de estar da casa-mãe. A sessão prosseguiu sem interrupções até às 2105. A
gravação foi controlada por Millie McCraig a partir do seu apartamento, tendo esta
utilizado também a oportunidade para uma minuciosa revista da suíte e dos pertences
de Tulipa. O interrogatório foi conduzido por Lugg (Louisa) conforme as instruções,
com participações subsidiárias de Avon (Anna) e intervenções do Dr. Meadows
(Frank) sempre que surgia uma oportunidade de explorar o estado de espírito e
motivação de Tulipa.
A despeito das tentativas de camuflar o propósito das perguntas aparentemente
inocentes de Frank, porém, Tulip não tardou a identificar a sua natureza psicológica e,
ao ser informada de que ele era médico, zombou dele por ser discípulo «do
grandessíssimo mentiroso e falsário que era Sigmund Freud». Apanhando uma fúria,
anunciou então que só tinha tido um médico na vida e o seu nome era Karl Riemeck;
que Frank era um pateta, e «se o senhor [Dr. Meadows] me quer ser útil, traga-me o
meu filho!» Não querendo constituir uma presença negativa, o Dr. Meadows achou por
bem regressar a Londres mas manter-se disponível para o caso de os seus serviços
serem necessários.
No decurso dos dois dias subsequentes, apesar de explosões periódicas que tais, as
sessões de debriefing decorreram eficientemente numa atmosfera de relativa calma,
sendo as gravações de cada sessão enviadas durante a noite para Marylebone.
De primordial interesse para C/Encobertas era o fluxo de informações soviéticas
sobre alvos britânicos, se bem que escasso, que chegava ao gabinete de Rapp vindo de
Moscovo. Aceitando embora que muito pouca dessa informação figurava nos
documentos que Tulipa conseguira fotografar, havia porventura assuntos que ela
acidentalmente lera ou ouvira relativos a fontes diretas de Moscovo no Reino Unido
que ela tivesse esquecido ou não achasse merecedores de menção? Havia alguma
insinuação, alguma gabarolice, por exemplo, de fontes diretas altamente colocadas no
interior do aparelho político ou das informações? De códigos e cifras britânicos
furados?
Apesar de estas perguntas serem feitas a Tulipa de muitas maneiras diferentes, e há
que dizer que para sua crescente irritação, não conseguimos assinalar nenhum
resultado positivo. O valor do produto de Tulipa deve, contudo, em nosso entender, ser
classificado elevado a muito elevado, tendo em conta que a sua informação foi
seriamente prejudicada pelas condições operacionais. Enquanto esteve em atividade,
ela transmitia as informações apenas a Primavera, e nunca diretamente ao Posto de
Berlim. Não lhe tinham sido formuladas perguntas sobre assuntos de potencial
sensibilidade com o fundamento de que, a serem divulgados quando submetida a
interrogatório, poderiam revelar debilidades na nossa própria blindagem de
informações. Podiam agora ser feitas sem constrangimentos: por exemplo, questões
referentes à fiabilidade de outras subfontes potenciais ou ativas; identidade de
diplomatas e políticos estrangeiros sob controlo da Stasi; a possível explicação de
fluxos de pagamentos encobertos revelados em documentos que ela fotografara na
secretária de Rapp, mas afora isso não tratados; a localização e aspeto de instalações
de comunicações secretas que ela visitara na companhia de Rapp, a sua disposição, os
seus procedimentos de entrada, a dimensão, forma e orientação das respetivas antenas,
e quaisquer testemunhos da presença soviética ou não alemã no local; e em termos
gerais quaisquer outras informações que até agora tivessem efetivamente sido
desaproveitadas devido à escassez de tempo disponível para treffs com Primavera, à
natureza não sistemática das suas conversas e às limitações impostas pelos métodos de
comunicação clandestinos.
Embora expressasse frequentemente frustração e lhe desse livre curso em linguagem
injuriosa, Tulipa parecia também deleitar-se em ser o centro das atenções, chegando
até a gracejar com coqueteria quando lhe era permitido estar com os dois guardas de
segurança do Campo 4. Harper, o mais novo, era particularmente obsequiado. Com a
chegada de cada noite, porém, o seu estado de espírito alterava-se rapidamente,
passando ao desespero culposo, sendo o seu principal objeto o filho, Gustav, mas
também a irmã, Lotte, cuja vida ela pretendia ter destruído com a sua deserção.
A governanta da casa segura, Millie McCraig, passava intermitentemente a noite a
pé com ela. Tendo descoberto uma mútua fé cristã, rezavam frequentemente juntas,
sendo S. Nicolau o santo preferido de Tulipa, que se fizera acompanhar de um seu
ícone em miniatura ao longo da sua exfiltração. O interesse mútuo pelo ciclismo
constituía outra afinidade. Instigada por Tulipa, McCraig (Ella) obteve um catálogo de
bicicletas de criança. Entusiasmada ao descobrir que McCraig era escocesa, Tulipa
exigiu imediatamente um mapa das terras altas escocesas para poderem conversar as
duas sobre as rotas para bicicleta. No dia seguinte chegou da Sede uma carta
topográfica. Não obstante, o seu estado de espírito manteve-se instável e era frequente
ter birras. Os sedativos e comprimidos para dormir que McCraig fornecia a seu pedido
pareciam não surtir grande efeito.
Em qualquer altura das nossas sessões de debriefing, Tulipa exigia saber em que
data Gustav seria trocado, e até se já tinha sido trocado. Em resposta, foi-lhe garantido,
de acordo com as instruções recebidas, que o assunto estava a ser negociado ao mais
alto nível pelo Herr Direktor e não podia ser resolvido da noite para o dia.

3. Necessidades lúdicas de Tulipa.


Desde a sua chegada ao RU, Tulipa manifestou a necessidade que tinha de exercício
físico. O avião militar da RAF era acanhado, o trajeto até ao Campo 4 tinha-a feito
sentir-se uma prisioneira, o confinamento, fosse de que tipo fosse, era-lhe insuportável,
etc. Uma vez que os caminhos do Campo 4 não são próprios para andar de bicicleta,
correria. Depois de saber o seu tamanho de sapatos, Harper foi a Salisbury comprar um
par de ténis e durante as três manhãs subsequentes Tulipa e Avon (Anna), entusiasta do
exercício físico, correram juntas pelos carreiros da periferia antes do pequeno-almoço.
Tulipa levava consigo um leve saco a tiracolo para recolher qualquer fóssil ou pedra
rara que pudesse interessar a Gustav. Tomando de empréstimo a gíria russa, chamava-
lhe o seu «saco do talvez». A propriedade dispõe também de um pequeno ginásio que,
quando outros meios falhavam, proporcionava a Tulipa um alívio temporário da sua
manifesta tensão. Independentemente da hora, Millie McCraig nunca deixava de a
acompanhar ao ginásio.
A prática normal de Tulipa era pôr-se à janela de sacada da sala às 0600, já vestida,
e esperar que Avon aparecesse. Naquela manhã específica, porém, Tulipa não estava à
janela. Assim sendo, Avon entrou na suíte de hóspedes pelo lado do jardim, chamando
por ela, batendo à porta da casa de banho e, como não obtivesse resposta, abrindo-a em
vão. A seguir Avon perguntou pelo intercomunicador a McCraig o que era feito de
Tulipa, mas McCraig não foi capaz de a esclarecer. Já seriamente preocupada, Avon
pôs-se a percorrer a passo rápido o carreiro da periferia. Como medida de precaução,
McCraig alertou entretanto Harper e Lowe de que a nossa hóspede se tinha «sumido»,
e os dois guardas de segurança começaram imediatamente a esquadrinhar a
propriedade.

4. Descoberta de TULIPA. Depoimento pessoal de J. Avon.


Entrando pelo lado leste, o carreiro que circunda a propriedade sobe muito
pronunciadamente ao longo de uns vinte metros e a seguir é plano durante cerca de um
quarto de milha, antes de curvar para norte e descer na direção de um pequeno vale
pantanoso atravessado por uma ponte pedonal de madeira que por sua vez conduz a
uma escada de madeira de nove degraus, sendo os degraus superiores parcialmente
ensombrados por um largo castanheiro.
Ao virar para norte e iniciar a minha descida para esse pequeno vale, avistei Tulipa
suspensa pelo pescoço de um ramo baixo do castanheiro, de olhos abertos e com as
mãos caídas ao longo do corpo. Na minha recordação, o degrau de madeira mais
próximo não estava a mais de trinta centímetros. O laço em torno do pescoço era tão
fino que à primeira vista ela parecia flutuar no espaço.
Sou uma mulher de 42 anos. Tenho de realçar que registei estas impressões tal como
elas permanecem hoje na minha lembrança. Possuo formação no âmbito do Serviço e
tenho experiência de emergências operacionais. É por conseguinte humilhante
confessar que o meu único impulso ao ver Tulipa suspensa de uma árvore foi correr de
volta à casa o mais depressa possível e pedir ajuda, em vez de tentar tirá-la dali e
reanimá-la. Lamento profundamente esta falha de compostura operacional, embora
atualmente me assegurem categoricamente que Tulipa já estava morta há pelo menos
seis horas quando a encontrei, o que para mim constitui um grande alívio. Acresce que
não levava nenhuma faca e a corda estava fora do meu alcance.

Relatório suplementar de Millie McCraig, governanta da casa segura, Campo 4,


oficial de carreira de Grau 2, sobre o tratamento, manutenção e suicídio da subfonte
TULIPA. Cópia para George Smiley C/Encobertas (exclusivamente).
Millie tal como a conhecia então: noiva do Serviço, devota filha de um
ministro da Igreja Presbiteriana Livre. Escala os Cairngorms, faz caça à
raposa e tem um passado de locais perigosos. Perdeu o irmão na guerra, o
pai com cancro e o seu coração, segundo os boatos, por um homem casado
mais velho que amava mais a honra. Havia quem dissesse que o homem
em questão era George, embora nada do que eu tenha visto entre eles me
levasse a crer que assim fosse. Mas ai de qualquer de nós, os jovens com
sangue na guelra, que tentasse pôr-lhe um dedo em cima, porque Millie
não queria nada com nenhum de nós.

1. Desaparecimento de TULIPA.
Informada por Jeanette Avon às 0610 de que Tulipa saíra para a sua corrida matinal
sozinha, pedi imediatamente à segurança (Harper e Lowe) que fizesse uma busca pela
propriedade, concentrando-se no carreiro da periferia, que sabia por Avon ser a rota
preferida de Tulipa. Como medida de precaução procedi então a uma inspeção da suíte
dos hóspedes e verifiquei que o fato de treino e os ténis ainda estavam no guarda-
vestidos. Por outro lado, o vestuário de sair e a roupa interior franceses que lhe tinham
sido fornecidos em Praga não estavam. Embora não tivesse documentos de identidade
nem dinheiro consigo, a carteira, que eu verificara anteriormente nada conter além de
artigos pessoais, tinha também desaparecido.
Uma vez que a situação estava fora da competência das Encobertas, e o
C/Encobertas se encontrava ausente por tarefas urgentes em Berlim, tomei a decisão
executiva de ligar para o oficial de serviço da Conjunta de Coordenação e pedir-lhe
para informar a ligação policial de que uma doente mental correspondente à descrição
de Tulipa estava a monte nas proximidades, que não era violenta, não falava inglês e
estava em tratamento psiquiátrico. Se fosse encontrada, devia ser devolvida ao
Instituto.
Telefonei então para o consultório do Dr. Meadows, em Harley Street, e deixei
recado à secretária para ele regressar o mais rapidamente possível ao Campo 4, sendo
informada de que, tendo sido avisado pela Sede, ele estava já a caminho.

2. Descoberta de um intruso não autorizado no Campo 4.


Mal acabara de fazer essas chamadas, foi informada por Harper, através do sistema
de intercomunicações interno, de que, no decurso da sua busca de Tulipa, tinha
descoberto, num local arborizado próximo da periferia leste, uma pessoa ferida, do
sexo masculino, aparentemente um intruso que, tendo entrado por um buraco recente
num ponto próximo do atalho, pisara, e ativara, uma antiga armadilha, parcialmente
coberta pela vegetação, presumivelmente ali deixada por algum caçador furtivo em
época anterior à aquisição da propriedade pelo Circus.
A referida armadilha, um dispositivo ilegal e antiquado, consistia em dentes
ferrugentos, ainda sob tensão. O intruso, segundo Harper, tinha ficado com a perna
presa no mecanismo e, ao espernear, ficara ainda mais enredado. Falava bem inglês,
mas com um sotaque estrangeiro, e alegava que, ao ver o buraco na vedação, tinha
entrado por ele a fim de fazer uma necessidade física. Explicou também que era um
apaixonado ornitólogo amador.
Com a chegada de Lowe, os dois homens tinham conseguido libertar o intruso, após
o que este tinha pregado um murro no estômago a Lowe e a seguir dera uma cabeçada
na cara a Harper. Na sequência de mais luta, os dois homens aplacaram o intruso e
meteram-no no Cepo, que ficava convenientemente perto. Foi então confinado à cela
de retenção (Submarino), com uma ligadura temporária na perna esquerda. Em
conformidade com o procedimento de segurança vigente, Harper tinha comunicado o
incidente, fornecendo uma descrição tão completa quanto possível do intruso
diretamente à Segurança Interna da Sede e ao C/Encobertas, que na altura estava de
regresso de Berlim. Ao perguntar a Harper se ele ou Lowe tinham entretanto visto a
desaparecida Tulipa, ele respondeu que o intruso os distraíra temporariamente da
busca, que retomariam de imediato.

3. Notícia da morte de TULIPA.


Foi aproximadamente nessa altura que Jeanette Avon apareceu no alpendre da casa-
mãe em estado de perturbação, anunciando que tinha visto Tulipa pendurada pelo
pescoço numa árvore, no ponto 217 do mapa da propriedade. Transmiti imediatamente
esta informação a Harper e Lowe e, depois de ter confirmado que o seu intruso estava
imobilizado, dei-lhes ordens para se deslocarem a toda a velocidade para o ponto 217 e
prestarem o necessário auxílio.
Lancei então um Alerta Vermelho mandando todo o pessoal de apoio residente
reunir-se imediatamente na casa-mãe. A ordem incluía as duas cozinheiras, um
motorista, um funcionário da manutenção, duas mulheres da limpeza e dois lavadeiros:
ver lista no Apêndice A. Informei-os de que fora encontrado um cadáver na
propriedade e eles deviam manter-se na casa-mãe até nova ordem. Não achei
necessário informá-los de que tinha também sido encontrado um intruso não
autorizado.
Felizmente, nesta conjuntura apareceu o Dr. Meadows, que tinha vindo a toda a
velocidade no seu Bentley. Ele e eu dirigimo-nos imediatamente pelo carreiro da
periferia leste ao ponto 217. Ao chegar deparámos com Tulipa despendurada e
claramente morta, deitada no solo, com uma fita à volta do pescoço, e Harper e Lowe a
montar guarda junto dela. Harper, com o rosto a sangrar por ter sido atingido com uma
cabeçada pelo intruso, fazia tenção de chamar a polícia, e Lowe uma ambulância.
Adverti-os de que nem uma nem outra deviam ser chamadas sem a aprovação do
C/Encobertas, que estava a caminho do Campo 4. Depois de um exame preliminar do
corpo, o Dr. Meadows foi da mesma opinião.
Nessa conformidade, ordenei a Harper e Lowe que regressassem ao Cepo, não
contactassem ninguém e aguardassem novas ordens, não devendo em caso algum
entabular conversação com o prisioneiro. Quando eles abandonaram a cena, o Dr.
Meadows confiou-me que Tulipa estava morta há várias horas quando da sua
descoberta.
Enquanto o Dr. Meadows continuava o exame da morta, eu tomei nota da sua
indumentária, que consistia no seu conjunto de casaco e blusa francês, saia plissada e
sapatos de cerimónia. Os bolsos do casaco do conjunto estavam vazios, à exceção de
dois lenços de papel usados. Tulipa queixara-se de uma ligeira constipação. O seu
«saco de talvez» estava atafulhado da sua restante roupa interior francesa.
As nossas instruções, que nesta altura estavam já a ser ininterruptamente
transmitidas pela Sede através do intercomunicador do Campo 4, eram no sentido de
transferir imediatamente o corpo para o Cepo. Por conseguinte, convoquei Harper e
Lowe para servirem de maqueiros. Assim fizeram rapidamente, a despeito do facto de
Harper estar então a sangrar profusamente da ferida.
Juntamente com o Dr. Meadows, regressei à casa-mãe. Honra lhe seja, Avon tinha-
se recomposto e distribuía chá e bolachas pelo pessoal, animando-o de uma forma
geral. A chegada da equipa de crise da Sede, chefiada pelo C/Encobertas, estava
prevista para o meio da tarde. Entretanto todos, exceto Harper e Lowe, deviam manter-
se na casa-mãe enquanto o Dr. Meadows fazia a limpeza das contusões faciais de
Harper e tratava o intruso ferido, agora encarcerado no Submarino.
Entretanto gerou-se uma discussão entre as pessoas confinadas à casa-mãe. Jeanette
Avon fazia questão de se considerar a principal responsável pelo suicídio de Tulipa,
mas eu encarreguei-me de contradizer essa sugestão. Tulipa estava clinicamente
deprimida, experimentava insuportáveis sentimentos de culpa e saudades de Gustav e
tinha destruído a vida da irmã, Lotte. Provavelmente já tinha o suicídio na ideia
quando chegara a Praga, e por certo na altura em que aportara ao Campo 4. Tinha feito
as suas escolhas e pagara o supremo preço.

E agora entra George, trazendo falsas mensagens:

4. Chegada do C/Encobertas [Smiley] e do Inspetor Mendel.


O C/Encobertas (Smiley) chegou às 1555, acompanhado do Inspetor (Ref.) Oliver
Mendel, um Eventual das Encobertas. O Dr. Meadows e eu acompanhámo-los
imediatamente ao Cepo.
Regressei então à casa-mãe, onde Ingeborg Lugg e Jeanette Avon conjuntamente
continuavam a acalmar a agitação do pessoal reunido. Passaram-se mais duas horas até
Mr. Smiley regressar do Cepo, acompanhado pelo Inspetor Mendel. Convocando todo
o pessoal, Mr. Smiley apresentou as suas condolências pessoais, juntamente com a
garantia de que a subfonte Tulipa era a única responsável pela sua morte e ninguém do
Campo 4 tinha razões para se censurar.
A noite estava já a cair. Com o autocarro de transporte à espera no pátio da frente e
muitas pessoas da equipa ansiosas por voltarem a casa, em Salisbury, o C/Encobertas
demorou uns momentos a sossegar-lhes o espírito relativamente à descoberta de um
«misterioso intruso» de que alguns talvez tivessem ouvido falar. Com o Inspetor
Mendel a exibir um sorriso de tranquilização ao seu lado, confessou que estava prestes
a «dar com a língua nos dentes» revelando à equipa um segredo que normalmente
nunca partilhariam, mas nas circunstâncias tinha chegado à conclusão de que eles não
mereciam menos do que a revelação integral.
O misterioso intruso não era mistério nenhum, explicou. Era um valioso membro de
uma secção de elite e pouco conhecida no nosso serviço irmão, o MI5, encarregado de
infiltrar por meios legais e ilegais as defesas das instalações mais sensíveis e secretas
do nosso país. Por acaso era também amigo pessoal e profissional aqui do Inspetor
Mendel. Risos. Era da natureza desses exercícios ao vivo que as instalações visadas
não fossem informadas, e o facto de o exercício ter sido marcado para o mesmo dia
que Tulipa tinha escolhido para pôr termo à vida não passava de «obra de uma
Providência maligna», para empregar as palavras de Smiley. A mesma Providência
tinha guiado os passos do intruso até à armadilha para veados. Risos. Harper e Lowe
tinham-se portado nobremente. A situação fora objeto de explicação a ambos, que a
tinham aceitado pesarosamente, apesar de acharem, compreensivelmente, que «o nosso
amigo tinha exagerado um tanto ou quanto a sua reação violenta» – C/Encobertas,
suscitando mais risos.

E para nossa ulterior desinformação:

O C/Encobertas confidenciou ainda à assembleia que o intruso, que de facto não era
nenhum estrangeiro, mas um genuíno e inglesíssimo natural de Clapham, estava já a
caminho das Urgências de Salisbury, onde lhe seria administrada uma injeção
antitetânica e lhe tratariam dos ferimentos. O Inspetor Mendel iria em breve visitar o
seu velho amigo e levar-lhe-ia uma garrafa de uísque com os cumprimentos do Campo
4. Aplausos.

É novamente o espetáculo de Bunny e Laura. É Bunny quem o dirige.


Laura escuta ceticamente.
– Portanto compilou o seu relatório. Com enfadonho pormenor, deixe
que lhe diga. Utilizou todas as provas existentes e mais alguma. Mandou
uma cópia antecipada para a Conjunta de Coordenação. Depois roubou
essa mesma cópia dos arquivos do Circus. Isto resume mais ou menos o
sucedido?
– Não resume, não.
– Então porque é que o seu relatório está arquivado aqui nos Estábulos,
no meio de uma porção de papéis que você efetivamente roubou?
– Porque nunca chegou a ser apresentado.
– A ninguém?
– A ninguém.
– Nenhuma parte dele? Nem sequer uma versão abreviada?
– A Comissão das Finanças decidiu não reunir.
– Depreendo que esteja a falar da chamada comissão dos Três Sábios, é
isso? Com a qual o Circus vivia supostamente aterrorizado?
– Era presidida pelo Oliver Lacon. Depois de muita introspeção o Lacon
concluiu que um relatório não tinha nenhuma utilidade prática. Mesmo
numa versão abreviada.
– Com que fundamento?
– Que um inquérito sobre o suicídio de uma mulher que não tinha
aterrado no Reino Unido não constituía uma utilização válida do dinheiro
dos contribuintes.
– É de crer que haja alguma possibilidade de o Lacon ter sido induzido a
tomar essa decisão pelo George Smiley?
– Como hei de eu saber?
– Facilmente, quer-me parecer. Era o seu coiro, entre outros, que o
Smiley estava a proteger, se (por exemplo, considerando um caso
puramente hipotético ao acaso) supusermos que Tulipa se tinha enforcado
por sua causa. Existia porventura algum elemento ou episódio específico
no relatório que o Smiley achasse demasiado perturbador para os
delicados ouvidos das Finanças?
– Para os delicados ouvidos da Conjunta, possivelmente. Das Finanças,
não. A Conjunta já estava demasiado metida na operação Primavera para o
gosto do Smiley. Talvez ele tenha pensado que um inquérito iria abrir
ainda mais a porta. E aconselhou o Lacon em conformidade. É apenas
uma suposição minha.
– Não acha por acaso que a verdadeira razão para o inquérito ser metido
na gaveta fosse o facto de Tulipa não ser a desertora cooperante que é
descrita (e o seu relatório sabujo é um bom exemplo) e ter pago o preço?
– Que preço? De que raio está você a falar?
– Ela era uma mulher muito determinada. Isso sabemos nós. Era
também, quando queria, uma bruxa. E queria o filho de volta. Estou a
sugerir que ela se negou a cooperar com a equipa de interrogatório
enquanto não lhe fosse devolvido o filho, e os interrogadores mostraram-
se céticos em relação a isso, e o relatório que fizeram (o seu relatório) foi
uma patranha, atamancada por ordem do Smiley. E o Campo 4, entretanto
deitado fora, possuía, como sabemos, uma cela de confinamento especial
para pessoas como ela. Chamavam-lhe o Submarino. Era utilizada para
aquilo a que hoje em dia nos apraz chamar interrogatórios otimizados, e
era a coutada de um par de guardas de segurança especialmente
pervertidos que não eram famosos pela meiguice. Estou a sugerir que ela
foi contemplada com os seus cuidados. Parece escandalizado. Toquei
algum ponto sensível?
Levei um pedaço a chegar lá:
– Tulipa não foi interrogada, valha-me Deus! Estava a ser objeto de um
debriefing, humana e decentemente conduzido por profissionais que
gostavam dela e lhe estavam gratos e compreendiam as birras de um
desertor!
– Então não leve isso a sério – sugere Bunny. – Temos outra notificação
por escrito, e outro litigante potencial se o caso chegar a tribunal. Um tal
Gustav Quinz, filho da Doris, aparentemente mas não com certeza por
instigação do Christoph Leamas, juntou o seu nome aos que estão
decididos a processar este Serviço à grande e à francesa. Nós, este
Serviço, em grande parte na sua pessoa, seduzimos a sua querida mãe,
submetemo-la a chantagem para espiar para nós, retirámo-la
clandestinamente do país contra a sua vontade e torturámo-la até mais não
poder ser, levando-a a enforcar-se na árvore mais próxima. Verdade?
Mentira?
Julguei que ele tinha acabado, mas não.
– E uma vez que estas alegações, enobrecidas pela passagem do tempo,
não podem ser suprimidas pela draconiana legislação que tem estado ao
nosso dispor em casos mais recentes da mesma natureza, há boas
probabilidades de que a comissão parlamentar e/ou qualquer litigação
subsequente, sejam usados para meter o nariz em questões de relevância
consideravelmente maior para nós nos dias de hoje. Você parece divertido.
Divertido. Talvez estivesse. Gustav, estava eu a pensar. Bom trabalho.
Decidiste afinal receber o que te era devido, ainda que tenhas vindo bater
à porta errada para isso.
*
Atravessei a França e a Alemanha a uma velocidade vertiginosa no meio
de chuva batida pelo vento. Estou junto da sepultura de Alec. A mesma
chuva fustiga o pequeno cemitério de Berlim. Visto a roupa de pele de
motociclista, mas por respeito a Alec tirei o capacete e a chuva corre-me
pelo rosto enquanto trocamos silenciosamente banalidades. O idoso
sacristão, ou lá o que ele é, conduz-me à sua guarita e mostra-me o livro
de condolências com o nome de Christoph entre as pessoas que estiveram
no funeral.
E talvez fosse esse o point d’appui24, o acicate: primeiro para Christoph,
depois para Gustav, do cabelo cor de cenoura e do sorriso de trigo-
mourisco que me tinha cantado as canções patrióticas, e depois para Alec:
o mesmo rapaz que desde o dia da morte da mãe eu secretamente, ainda
que apenas imaginariamente, tinha tomado a meu cargo, visualizando-o
num qualquer horrendo reformatório alemão-oriental para filhos dos
desonrados e a seguir lançado num mundo insensível.
Secretamente também, tinha uma vez por outra infringido
descaradamente as regras permanentes do Circus, seguindo-lhe a pista nos
arquivos sob qualquer pretexto e jurando a mim mesmo – ou, pode dizer-
se, fantasiando – que um dia, se alguma vez o mundo rodasse duas ou três
polegadas no seu eixo, o procuraria e, por amor a Tulipa, lhe daria uma
mãozinha de qualquer maneira indefinida que as circunstâncias haviam de
determinar.
A chuva caía ainda com violência quando montei na minha mota e me
encaminhei, não para oeste, para França, mas para sul, na direção de
Weimar. A última morada possível que tinha de Gustav era de há dez anos:
uma aldeola a oeste da cidade, uma casa registada em nome do pai,
Lothar. Depois de um trajeto de duas horas, encontrava-me à porta de uma
sombria casa de lajes de estilo soviético que se erguia a dez metros da
igreja da aldeia como um ato de agressão soviética. As lajes estavam a
separar-se. Algumas janelas estavam cobertas de papel pelo interior. O
alpendre em desagregação estava adornado de cruzes suásticas pintadas a
spray. O apartamento de Quinz era o 8 D. Premi a campainha, em vão.
Abriu-se uma porta e uma velhota desconfiada olhou-me de alto a baixo.
– Quinz? – repetiu, repugnada. – Der Lothar? Längst tot. – Morreu há
muito tempo.
E Gustav?, perguntei eu. O filho?
– Refere-se ao criado? – perguntou ela, desdenhosamente.
O hotel chamava-se o Elefante e dava para a histórica praça principal de
Weimar. Não era novo. Efetivamente tinha sido o hotel preferido de
Hitler: a velhota também me dissera isso. Fora, porém, drasticamente
remodelado e a sua fachada cintilava como um farol de prosperidade
ocidental atirado à cara dos seus belos vizinhos mais pobres. No balcão da
receção, uma rapariga de fato preto novo percebeu mal a minha pergunta:
não temos nenhum Herr Quinz hospedado no hotel. Depois corou e disse:
«Ah, refere-se ao Gustav», e disse-me que o pessoal estava proibido de
receber visitas e eu teria de esperar até Herr Quinz sair de serviço.
Quando seria isso? Às seis horas. E o melhor é esperar onde, se faz
favor? Na entrada dos fornecedores, onde é que havia de ser?
A chuva não abrandara e o dia estava a escurecer. Postei-me à porta dos
fornecedores como me fora indicado. Um sisudo homem magro que de
certo modo parecia mais velho do que a idade que tinha saiu de uma
escada da cave, trazendo uma velha gabardina do Exército com capuz.
Havia uma bicicleta presa com uma corrente à balaustrada. Ele curvou-se
sobre ela e entregou-se à tarefa de tirar o cadeado.
– Herr Quinz? – perguntei eu. – Gustav?
Ele ergueu a cabeça, até se pôr completamente de pé sob a luz vacilante
de um candeeiro de iluminação pública. Tinha os ombros prematuramente
curvados. O cabelo outrora ruivo era ralo e estava a ficar grisalho.
– Que quer?
– Eu era amigo da sua mãe – disse eu. – É capaz de se lembrar de mim.
Conhecemo-nos numa praia da Bulgária… há muito tempo. Você cantou-
me uma canção. – E disse-lhe o meu nome de trabalho, o mesmo que lhe
tinha dito na praia enquanto a mãe estava nua atrás dele.
– Era amigo da minha mãe? – repetiu ele, a habituar-se à ideia.
– Foi o que eu disse.
– Francês?
– Exato.
– Ela morreu.
– Eu soube. Lamento muito. Pensei se havia alguma coisa que pudesse
fazer por si. Por acaso tinha a sua morada. Estava em Weimar. Pareceu-me
uma oportunidade. Talvez pudéssemos tomar uma bebida juntos. Falar
disso.
Ele ficou a olhar para mim.
– Dormiu com a minha mãe?
– Éramos amigos.
– Então dormiu com ela – disse ele, como se fosse um facto de caráter
histórico, sem que a voz subisse ou baixasse de tom. – A minha mãe era
uma prostituta. Traiu a pátria. Traiu a revolução. Traiu o Partido. Traiu o
meu pai. Vendeu-se aos ingleses e enforcou-se. Era uma inimiga do povo
– explicou.
E, montando na bicicleta, afastou-se.

24 Em francês no original: ponto de apoio. (N. do T.)


11

– Acho que a primeiríssima coisa que temos a fazer, coração – está


Tabitha a dizer, com a sua voz eternamente hesitante –, não se importa que
lhe chame coração, pois não? Chamo queridos a todos os meus melhores
fregueses. Lembra-lhes que eu tenho um, tal como eles, ainda que o meu
esteja necessariamente em suspenso. Portanto a primeiríssima coisa que
fazemos é elaborar uma lista de todas as coisas infamantes que o outro
lado diz de nós, e a seguir eliminamo-las uma a uma. Isto desde que você
esteja comodamente sentado. Está? Bom. Está a ouvir-me, não está?
Nunca sei se essas coisas funcionam. São do Serviço Nacional de Saúde?
– Francês.
Tabitha, tanto quanto me lembro das minhas leituras juvenis de Beatrix
Potter, era a mãe hostilizada de três filhos desobedientes. Senti-me, pois,
estranhamente divertido por notar que, pelo menos exteriormente, a
mulher com o mesmo nome que estava sentada diante de mim partilhava
muitas das suas características: maternal, rosto amável, na casa dos
quarenta, roliça, um tanto ou quanto esbaforida e heroicamente fatigada.
Era também, consoante me fora dado a entender, a minha advogada de
defesa. Leonard fornecera a Bunny a prometida lista restrita de nomes,
nomes que Bunny admirava altamente – lutariam por si como autênticos
rottweilers, Peter – e em relação a dois ele tinha umas ligeiríssimas
dúvidas, não tinham, quanto a ele, suficientes provas dadas, mas que eu
não dissesse a ninguém que ele o tinha dito, e uma (a título absolutamente
confidencial, Peter, e você tem mesmo de me proteger nisto) em que ele
não confiava nem morto: não sabe parar, e não faz a mais pequena ideia da
maneira como os tribunais funcionam, e os juízes detestam-na, pura e
simplesmente. Era Tabitha.
Eu disse que ela parecia absolutamente perfeita para mim e pedi para
me encontrar com ela no seu escritório. Bunny disse-me que o escritório
dela não era considerado seguro e ofereceu-me o seu gabinete no bastião.
Eu contrapus-lhe que não achava o seu gabinete seguro. Por conseguinte
eis-nos de volta à biblioteca, com as figuras em tamanho natural de Hans-
Dieter Mundt e do seu grande rival Josef Fiedler a olharem-nos com ar
carrancudo.
*

No tempo presente, passou apenas uma noite insone desde a cremação


de Tulipa, mas o mundo que Tabitha está a tentar enfrentar deu um
histórico passo à retaguarda.
Foi erigido o Muro de Berlim.
Todos os agentes e subagentes da rede Primavera estão desaparecidos,
foram presos, executados ou as três coisas.
O próprio Karl Riemeck, o heroico médico de Köpenick, fundador
acidental da rede e seu inspirador, foi impiedosamente abatido quando
tentava fugir para Berlim Ocidental na sua bicicleta de operário.
Para Tabitha, estes factos pertencem à história. Para nós, os que por eles
passámos, são uma época de desespero, desnorteamento e frustração.
O nosso agente da Bambúrrio está por nós ou contra nós? Do nosso
reduto nos Estábulos, nós, os poucos doutrinados, tínhamos seguido com
respeitoso temor a sua vertiginosa ascensão nas fileiras da Stasi até à
posição atual de chefe da sua divisão de operações especiais.
Tínhamos recebido, tratado e difundido, sob o título genérico de
Bambúrrio, informações de elevada qualidade sobre uma porção de alvos
económicos, políticos e estratégicos, perante gritos abafados de deleite dos
fregueses de Whitehall.
Contudo, apesar do seu indubitável poder – ou talvez por causa dele –,
Mundt não conseguira abater a implacável eliminação dos agentes e
subagentes das Encobertas, levada a cabo pelo seu rival Josef Fiedler.
Neste sinistro duelo pelas boas graças do Centro de Moscovo e chefia
da Stasi, Hans-Dieter Mundt, aliás a fonte Bambúrrio, alegava não ter
outra opção a não ser apresentar-se como ainda mais fervoroso do que
Fiedler na missão de limpar a utópica República Democrática Alemã de
espiões, sabotadores e demais lacaios do imperialismo burguês.
À medida que um agente fiel após outro tombavam sob a fúria
concorrencial de Mundt ou do seu grande rival, o moral da equipa
Bambúrrio mergulhava ainda mais fundo.
E ninguém era mais afetado do que o próprio Smiley, encerrado noite
após noite na Sala do Meio, com a exclusiva visita ocasional do Controlo,
que ainda o deprimia mais.
*

– Porque é que eu não posso ler por mim os depoimentos dos


queixosos? – pergunto a Tabitha. – As notificações por escrito, ou lá o que
é?
– Porque o seu antigo Serviço, na sua sabedoria, solicitou que fosse
pespegada a classificação de Ultrassecreto em toda a correspondência,
com o argumento da segurança nacional, e você não está credenciado. Não
se safam com isso nem no dia de S. Nunca, mas vai bloquear os trabalhos
e abrir caminho a uma restrição temporária de comunicação, que é o que
eles procuram. Entretanto, surripiei os excertos que pude para si. Serve?
– Onde se meteram o Bunny e a Laura?
– Quer-me parecer que já têm tudo o que precisam. E o Leonard aceitou
o que lhe comunicaram. Eu dei uma primeira olhadela ao cacifo do outro
lado. Infelizmente, a pobre Doris Gamp parece ter ficado caída por si
assim que lhe pôs os olhos em cima, e não se conteve que não contasse
tudo a seu respeito à irmã, Lotte. E quando a Lotte abriu o coração aos
interrogadores da Stasi, já não restava grande coisa sobre si. É mesmo
verdade que andou nu às cabriolas com ela na praia ao luar da Bulgária?
– Não.
– Ótimo. E há uma noite de amor e risos que alegadamente passaram
juntos num hotel de Praga, onde a natureza mais uma vez seguiu o seu
curso.
– Não seguiu nada.
– Ótimo. Agora quanto às duas outras mortes: o Alec Leamas e a
Elizabeth Gold, os nossos berlinenses. Primeiro a Elizabeth, de acordo
com a formulação contra si da filha dela, a Karen. Alega ela que você a
contactou pessoalmente (quer por sua iniciativa, quer por instigação do
George Smiley e outros conspiradores não identificados) e que
seguidamente a aliciou, seduziu ou por outra via conseguiu que ela
servisse de forragem humana (são as desagradáveis expressões da outra
parte, não minhas) numa tentativa abortada, grandiosa e mal concebida…
(não consigo imaginar quem iria desencantar semelhante palavreado) para
minar a chefia da Stasi. Fê-lo?
– Não.
– Ótimo. Começa a ver o esquema? Você é um libertino profissional
contratado pelos Serviços Secretos britânicos e convenceu raparigas
suscetíveis a serem cúmplices em operações desmioladas que rebentaram
pelas costuras. Verdade?
– Falso.
– Claro que é. E também fez de alcoviteiro da Elizabeth Gold para o seu
colega Alec Leamas. Fê-lo?
– Não.
– Ótimo. E também, porque você faz muitas dessas, foi para a cama
com Elizabeth Gold. Ou, se não o fez, aqueceu-a para o Alec. Fez alguma
dessas coisas?
– Não.
– Nem por um momento pensei que sim. E o suposto efeito último das
suas maldosas maquinações: a Elizabeth Gold atingida mortalmente no
Muro de Berlim e o seu amante Alec Leamas tenta salvar-lhe a pele, ou
decide simplesmente morrer com ela. De uma maneira ou de outra o que
consegue com isso é ser abatido, e a culpa é toda sua. Está na altura de um
chá, ou continuamos o bombardeamento? Continuamos o
bombardeamento. Agora quanto às alegações do Christoph Leamas, que
são mais substanciais porque o pai, o Alec, é vítima de tudo o que
antecede. O Alec (na altura em que você o aliciou, engodou, subornou,
aldrabou, etc., para se tornar o infeliz joguete da sua natureza
compulsivamente manipuladora) era um homem alquebrado, que não
estava em estado de atravessar a rua sozinho, quanto mais de encabeçar
uma operação de embuste diabolicamente intrincada, a saber: fingir
desertar para a Stasi ao mesmo tempo que na realidade se mantinha sob a
sua maléfica influência. Verdade?
– Não.
– Claro que não. Então o que eu sugiro é que, com sua licença, beba um
bom gole dessa água e dê uma olhadela atenta ao que eu descobri às
primeiras horas desta manhã quando fui por fim autorizada a dar uma vista
de olhos a uma pequeníssima parte do arquivo histórico do seu querido
Serviço. Pergunta número um: este episódio assinala o começo do declínio
do seu amigo Alec? E pergunta número dois: se assim é, trata-se de um
declínio real ou de um declínio simulado? Por outras palavras, estamos a
presenciar a etapa inicial do Alec para se tornar insuportável ao seu
próprio Serviço e altamente atraente para o Centro de Moscovo ou para os
caçadores de talentos da Stasi?
*

Telegrama do Circus de C/Posto de Berlim [McFadyen] para C/Conjunta de


Coordenação, cópia para C/Encobertas, C/Pessoal Muito Urgente, 10 de julho de
1960.
Assunto: Transferência imediata de Alec Leamas do Posto de Berlim por motivos
disciplinares.

Às 0100 desta manhã, registou-se o episódio que segue no clube noturno Altes
Fasse, em Berlim Oeste, entre o SC/Posto de Berlim Alec Leamas e Cy Aflon,
SC/Posto da CIA em Berlim. Os factos não são contestados por nenhuma das partes.
Os dois homens nutrem uma inimizade antiga, pela qual, como anteriormente referido,
considero Leamas o exclusivo responsável.
Leamas entrou no clube noturno sozinho e dirigiu-se para a Damengalerie, um bar
separado para mulheres solteiras em busca de clientela. Tinha estado a beber, mas, na
sua própria opinião, não estava embriagado.
Aflon estava sentado com duas colegas do Posto, a assistir ao espetáculo de cabaré e
a tomar sossegadamente uma bebida.
Ao ver Aflon e o seu grupo, Leamas mudou de direção, encaminhou-se para a mesa
deles e, debruçando-se, dirigiu-se a Aflon em voz baixa nestes termos:
Leamas: Se alguma vez voltar a tentar comprar uma das minhas fontes, torço-lhe o
sacana do pescoço.
Aflon: Eh lá, Alec. Em frente das senhoras, não, se faz favor.
Leamas: Dois mil dólares por mês pelo primeiro cheirinho de qualquer coisa que
obtenha antes de no-la vender em segunda mão. E chama a isso combater na porra da
guerra? Talvez leve um linguado destas simpáticas senhoras por acréscimo.
Quando Aflon se pôs de pé, protestando contra este flagrante insulto, Leamas
atingiu-o no rosto com o cotovelo direito, fazendo-o cair ao chão, após o que lhe
pregou um pontapé nas virilhas. Chamou-se a polícia de Berlim Oeste, que mandou vir
a polícia militar americana. Aflon foi levado para o hospital militar, onde está
atualmente a recuperar. Felizmente, até ao momento não há registo de fraturas nem
ferimentos que impliquem perigo de vida.
Apresentei as minhas servis desculpas pessoalmente a Aflon e ao seu C/Posto,
Milton Berger. Este é o mais recente de uma série de lamentáveis incidentes
envolvendo Leamas.
Embora reconheça que as recentes perdas da rede Primavera colocaram o Posto e
Leamas pessoalmente numa situação de considerável tensão, isso não justifica de
maneira nenhuma os prejuízos que ele causou às nossas relações com o nosso mais
importante aliado. O antiamericanismo de Leamas é desde há muito visível. Agora
tornou-se totalmente inaceitável. Ou sai ele, ou saio eu.

E a seguir ao rabisco a verde do Controlo, a resposta lapidar de Smiley:


Já mandei Alec regressar a Londres.
*

– Portanto, Peter – está a dizer Tabitha. – Simulado? Não simulado?


Estamos a ver o começo oficial da sua queda em plano inclinado?
E quando, genuinamente na dúvida, eu tergiverso, ela fornece a sua
própria resposta:
– O Controlo pensou decerto que era o começo – assinalando o rabisco
garatujado a verde ao fundo da página. – Olhe para esta nota de rodapé do
seu Tio George. Um começo muito promissor, assinado C. Não se pode ser
mais claro do que isso, pois não, mesmo no seu mundo opaco?
Não, Tabitha, não pode. E lá opaco é ele, disso não há dúvida.
*

É um funeral. É um velório. É uma reunião de ladrões realizada em


desespero, noite cerrada, nesta mesma sala, com Josef Fiedler e Hans-
Dieter Mundt a fitarem-nos com a mesma lúgubre intensidade. Somos os
seis Bambúrrios, como Connie Sachs, a nossa última recruta, nos batizou:
o Controlo, Smiley, Jim Prideaux, Connie, eu e Millie, a nossa parceira
quase silenciosa. Jim Prideaux acaba de chegar de mais uma missão
encoberta, desta vez em Budapeste, onde levou a cabo um raro treff com o
nosso mais precioso agente Bambúrrio. Connie Sachs, com vinte e poucos
anos de idade, já a incontestada rapariga-maravilha da investigação sobre
organismos de informações soviéticos e dos satélites, saiu recentemente à
pressa, de forma teatral, da Conjunta de Coordenação, diretamente para os
braços expectantes de George. Tem um corpinho enérgico e roliço, é uma
sabichona, nascida em berço de ouro, e impaciente com mentes menos
dotadas como a minha.
A majestosa e distante Millie McCraig, de cabelo cor de asa de corvo,
desloca-se como uma enfermeira socorrista num hospital de campanha,
distribuindo café e uísque aos necessitados. O Controlo quer o seu nojento
chá verde habitual, beberrica um pouco e deixa o resto. Jim Prideaux fuma
os seus malcheirosos cigarros russos a seguir uns aos outros.
E George? Parece tão recolhido, tão inacessível, tem um ar de
introspeção tão ameaçador, que seria preciso ser homem de coragem para
lhe interromper o devaneio.
Quando o Controlo fala, passa os dedos amarelecidos do tabaco pelos
lábios como se estivesse a verificar se têm feridas. De cabelo prateado, é
elegante, não tem idade nem, segundo consta, amigos. Tem uma mulher
algures, mas, corre o boato, ela julga que o marido está na Junta do
Carvão. Quando está de pé, os seus ombros arqueados surgem como uma
surpresa. Espera-se que eles se endireitem, mas isso nunca acontece.
Ocupa o lugar desde tempos imemoriais, mas eu falei com ele
precisamente duas vezes e ouvi-o discursar uma, e foi no último dia do
meu curso em Sarratt. A voz é afiada como uma lâmina, tal como o
homem: nasal, monótona e irritada como a de uma criança mimada. E não
ganha naturalmente entusiasmo nas perguntas, nem sequer com as que ele
próprio formula.
– Então acreditamos ou não – inquire ele através das pontas dos dedos
tremulantes – que ainda estamos a obter o melhor material de Herr Mundt,
diabos o levem? Serão informações de segunda? Serão ninharias? Serão
fumaça? E está ele a levar-nos à certa? George?
Com o Controlo, nunca ninguém usa pseudónimos, regra da casa. Não
simpatiza com eles. Diz que glorificam demasiado. É melhor chamar as
coisas pelos nomes do que usar uma relíquia sagrada.
– O produto do Mundt parece ser tão bom como sempre, Controlo –
responde Smiley.
– Então é uma pena que ele não nos tenha dado uma dica sobre o raio do
Muro. Ou será que se esqueceu? Jim?
Jim Prideaux, depois de tirar relutantemente o cigarro dos lábios:
– O Mundt diz que Moscovo o deixou na ignorância. Informaram o
Fiedler. Não informaram o Mundt. E o Fiedler guardou-o para si.
– O sacana matou o Riemeck, não foi? Não foi nada amistoso. O que foi
que o levou a fazê-lo?
– Ele diz que aconteceu simplesmente chegar uma ou duas horas antes
do Fiedler – responde Prideaux, no seu habitual tom áspero e
monocórdico. E mais uma vez ficamos à espera do Controlo, que em
contrapartida nos deixa à sua espera.
– Portanto não acreditamos que a oposição tenha virado o Mundt contra
nós – diz o Controlo, arrastada e irritadamente. – Ainda é nosso. Bem, é
bom que seja. Podemos atirá-lo aos lobos quando muito bem nos apetecer.
É doido pelo poder. Quer ser o menino bonito do Centro de Moscovo.
Bem, nós queremos que ele seja o menino bonito do Centro de Moscovo.
E o nosso menino bonito também. Por conseguinte os nossos interesses
são mútuos. Mas Herr Joseph Fiedler, raios o partam, está a meter-se-lhe à
frente. E à nossa frente. O Fiedler desconfia que o Mundt é nosso, e é
mesmo. Portanto o Fiedler está em vias de o expor e colher os louros. Isto
resume mais ou menos a coisa, George?
– Parece que sim, Controlo.
– Parece que sim. Tudo parece. Nada é. Julgava que neste ofício
lidávamos com factos. Sim ou não: Herr Josef Fiedler (um homem
piedoso, ao que nos dizem, no critério da Stasi, um verdadeiro crente na
causa e judeu dos quatro costados) acha que o seu prezado colega Hans-
Dieter Mundt, nazi não reabilitado, é um lacaio das Informações
britânicas. E não se engana de todo, pois não?
George lança uma olhadela a Jim Prideaux. Jim esfrega o queixo e
fulmina a carpete coçada com o olhar. O Controlo de novo:
– Então acreditamos em Herr Mundt? Ou ele está a falar pelos
cotovelos, tal como uma porção doutros agentes que conhecemos? Estará
a dar-lhe a volta, Jim? Vocês, os controladores de agentes, são uns moles
quando estão em causa os vossos tipos. Até um merdas de primeira como
o Mundt obtém o benefício da dúvida.
Mas Jim Prideaux, como o Controlo bem sabe, é tão mole como sílex.
– O Mundt tem gente no interior do campo do Fiedler. Disse-me quem
são. Ouviu-os. Sabe que o Fiedler anda a ver se o apanha. O Fiedler disse-
lho praticamente na cara. O Fiedler também tem os seus amigos no Centro
de Moscovo. O Mundt acha que eles são capazes de tomar uma iniciativa
muito em breve.
Tornamos a ficar à espera do Controlo, que decide finalmente que
precisa de tomar um gole de chá verde frio; e precisa também de que nós o
vejamos fazê-lo.
– O que suscita a pergunta, não é, George? – lamenta-se, fatigadamente.
– Se o Josef Fiedler fosse retirado do caminho (por meios a debater), será
que Moscovo iria amar mais Mundt? E se eles realmente o amam mais,
será que vamos finalmente descobrir quem é o sacana que anda a
denunciar os nossos agentes ao Centro de Moscovo? – e, como não
recebesse resposta da assistência: – E você, Guillam? A juventude tem
alguma resposta para essa pergunta? Estou a ser relativo.
– Receio bem que não, senhor.
– É pena. É que o George e eu pensamos que talvez tenhamos
encontrado uma resposta. Mas o George não tem estômago para ela. Pois
bem, eu tenho. Combinei encontrar-me amanhã com o seu amigo Alec
Leamas. Ver em que param as modas com ele. Saber o que ele acha acerca
disso, agora que perdeu a rede para o clube de caça Mundt-Fiedler. Um
sujeito na posição dele é capaz de acolher bem uma possibilidade de
terminar a carreira em beleza. Não concorda?
*

Tabitha está a provocar-me, desconfio que deliberadamente.


– O vosso problema, dos espiões, e isto não tem nada de pessoal, é que
nenhum de vocês faz a mais pequena ideia do que seja a verdade. O que
torna tremendamente difícil a vossa defesa. Eu empenhar-me-ei ao
máximo nela, note. Faço-o sempre. – E quando eu lhe retribuo o sorriso
simpático, mas afora isso não reajo: – A Elizabeth Gold tinha um diário,
esse é que é o busílis. E a Doris Gamp contou tudo à pobre Lotte, a irmã.
As mulheres têm destas coisas: mexericam entre si, têm diários, escrevem
cartas parvas. O pessoal do Bunny está a tirar partido de tudo isso. Estão a
compará-lo com os nossos modernos informadores secretos da polícia que
andam por aí a conquistar os corações das suas vítimas do sexo feminino e
a fazer-lhes bebés. Dei uma olhadela às datas para ver se você podia ter
feito a Karen à Elizabeth, mas você está completamente ilibado, o que foi
um certo alívio, para falar com franqueza. E o Gustav, graças a Deus, é
demasiado velho para ter sido um entusiasmo seu.
*

Está uma serena tarde outonal em Hampstead Heath e decorreu uma


semana desde que o Controlo anunciou que iria ver em que paravam as
modas com Alec. Estou sentado com George Smiley numa mesa ao ar
livre nos jardins de Kenwood House. É um dia de semana e não há
praticamente vivalma por ali. Bem podíamos ter-nos encontrado nos
Estábulos, mas George conseguiu dar a entender que a nossa conversa é
tão privada que precisamos de estar ao ar livre. Ele tem um panamá que
lhe escurece os olhos, com o resultado de que, tal como eu estou a obter
apenas uma parte do segredo, estou também a obter apenas parte de
George.
Já fizemos conversa, ou sou eu que presumo que a fizemos. Estou feliz
com o meu trabalho? Estou, obrigado. Já ultrapassei aquilo de Tulipa? Já,
obrigado. Foi simpático da parte de Lacon meter o meu rascunho na
gaveta; havia sempre o perigo de a Conjunta levar demasiado a peito
aquele misterioso intruso suíço do Campo 4. Eu digo que por mim
também fico satisfeito, embora tenha suado sangue e lágrimas sobre isso.
– Quero que se torne amigo de uma rapariga por mim, Peter –
confidencia Smiley, franzindo o cenho para emprestar mais sinceridade
àquilo. A seguir, apercebendo-se de que eu podia estar a interpretar mal o
pedido: – Oh, meu Deus, não para satisfazer quaisquer necessidades da
minha parte. Estará na disposição de o fazer? Em princípio? A bem da
causa? Captar a sua confiança?
– Sendo a causa Bambúrrio – sugiro eu cautelosamente.
– Sim. Completamente. Exclusivamente. Para o continuado êxito da
Operação Bambúrrio. A sua preservação. Como necessário e urgente
acessório – responde ele, e beberricamos o nosso sumo de maçã e
observamos as pessoas que passam para cá e para lá ao sol. – E também a
pedido específico do Controlo, posso acrescentar – continua ele, seja
como incitamento adicional, seja para sacudir a água do capote. – Na
realidade foi ele que propôs o seu nome: aquele sujeito jovem, o Guillam.
Escolheu-o a si.
Pretender-se-á que eu aceite isto como um elogio, ou como uma ameaça
velada? Eu desconfiava que George nunca gostara grandemente do
Controlo, e o Controlo não gostava de ninguém.
– Tenho a certeza de que há montes de maneiras de se fazer encontrado
com ela – prossegue ele, encarando o lado positivo. – Ela é membro da
delegação local do Partido Comunista, para começar. Vende o Daily
Worker aos fins de semana. Mas não o estou a ver propriamente a
comprar-lhe um exemplar, pois não?
– Se quer dizer na sua se eu acho que dou a ideia de ser um leitor
autêntico do Daily Worker? Não, não me parece.
– Não, não, e não deve tentar. Por favor não tente em circunstância
nenhuma ser alguém que não cole. É muito melhor a sua habitual
personalidade jovial de classe média. Ela corre – acrescenta, como se se
tratasse de uma reflexão posterior.
– Corre?
– Corre todos os dias, de manhãzinha. Eu acho isso encantador. Você
não? Corrida para manter a forma. Corrida para o bem-estar. Voltas e mais
voltas à pista desportiva local. Sozinha. Depois vai para o trabalho numa
loja de livros em Fulham. Não é uma livraria, é uma loja. Mas de livros,
apesar disso. Expede-os para vendedores por atacado. Pode parecer-nos
enfadonho, mas ela encara-o como uma causa. Temos de ter livros,
especialmente as massas apinhadas. E claro que também desfila.
– Além de correr?
– Pela Paz, Peter. Pela paz com P maiúsculo. De Aldermaston a
Trafalgar Square, e dali até ao Hyde Park Corner para mais do mesmo.
Quem dera que a Paz fosse assim tão fácil.
Está à espera de que eu sorria? Tento.
– Mas também não estou a vê-lo a ajudá-la a levar uma faixa, claro que
não. Você é um sujeito burguês decente, que singra na vida por conta
própria, uma espécie para ela absolutamente desconhecida, e por isso tanto
mais interessante. Um bom par de ténis de corrida e o seu sorriso travesso,
e não tardarão a fazer-se amigos. E se assumir a sua personalidade
francesa, conseguirá fazer uma saída elegante quando for a altura. Então
terá feito o que tinha a fazer. Pode esquecer-se dela. E ela de si. Sim.
– Talvez ajudasse saber o nome dela – alvitro eu.
Ele põe-se também a pensar nisso, dolorosa e problematicamente.
– Sim. Bem, são emigrantes. A família. Os pais são de primeira geração
e ela de segunda. E decidiram-se, depois de alguma ponderação, pelo
nome Gold – admite ele, como se eu lhe tivesse arrancado o nome a saca-
rolhas. – O primeiro nome é Elizabeth. Liz, para os amigos.
Levo o meu tempo. Estou a beber sumo de maçã numa tarde soalheira
com um cavalheiro roliço de panamá na cabeça. Ninguém está com
pressa.
– E quando tiver conquistado a confiança dela, como o senhor diz, faço
o quê?
– Ora essa, vem-me dizer, claro – riposta ele, como se de súbito toda a
hesitação que há nele tivesse sido substituída por zanga.
*

Sou um jovem caixeiro-viajante francês chamado Marcel Lafontaine,


atualmente instalado numa pensão de indianos em Hackney, Londres
Leste, e tenho os documentos que o provam. É o quinto dia. Todas as
manhãs, ao romper do dia, apanho um autocarro até ao Memorial Park e
vou correr. Na maior parte das manhãs somos seis ou sete pessoas.
Corremos, paramos a ofegar nos degraus do pavilhão desportivo,
controlamos o tempo e comparamos. Trocamos umas quantas palavras,
separamo-nos para as cabinas dos chuveiros, dizemos adeus e se calhar até
amanhã. Os meus companheiros ficam vagamente divertidos com o meu
nome francês, mas desapontados pelo facto de eu não ter sotaque francês.
Eu explico que sou filho de mãe francesa, já falecida.
Numa história de fachada, cortam-se todos os fios soltos antes que as
coisas nos escapem ao controlo.
Das nossas habituais corredoras, Liz (não temos apelidos) é a mais alta,
mas de maneira nenhuma a mais rápida. Na verdade, não é nem pouco
mais ou menos uma corredora nata. Corre por um ato de vontade, de
autodisciplina, de libertação. É reservada e aparentemente não tem
consciência de que é bonita, um tanto ou quanto no género maria-rapaz.
Tem pernas compridas, cabelo preto cortado curto, testa ampla e olhos
castanhos grandes e vulneráveis. Ontem, trocámos os nossos primeiros
sorrisos.
– Um dia atarefado pela frente? – pergunto eu.
– Estamos em greve – explica ela, esbaforida. – Tenho de estar à entrada
às oito.
– Que entrada vem a ser essa?
– Onde eu trabalho. A direção anda a tentar despedir o nosso delegado
sindical. É capaz de continuar durante semanas.
Seguidamente é até depois, até depois, até à próxima.
E a próxima é amanhã, que é domingo, de forma que aparentemente não
há piquetes de greve, as pessoas precisam de fazer compras. Tomamos um
café juntos na cantina e ela pergunta-me o que faço na vida. Eu explico
que sou caixeiro-viajante de uma empresa farmacêutica francesa, que
vende produtos a hospitais e médicos de clínica geral. Ela diz que deve ser
verdadeiramente interessante. Eu respondo: bem, não propriamente,
porque o que eu gostava de fazer era estudar Medicina, mas o meu pai não
quer porque a empresa que eu represento é a firma da família e ele quer
que eu aprenda a partir de baixo e o substitua. Mostro-lhe o meu cartão de
visita profissional. A minha firma tem o meu fictício nome paterno. Ela
examina-o com o sobrolho franzido e um sorriso, mas o franzimento leva
a melhor:
– Acha isso bem, não acha? Socialmente, digamos? O filho da família
herdar a firma da família só porque é o filho?
E eu digo que não, que não acho bem, que me incomoda. E incomoda
também a minha noiva, e é por isso que eu quero ser médico como ela,
porque além de lhe ter amor admiro a minha noiva, acho que ela é uma
verdadeira bênção para a humanidade.
E a razão pela qual inventei uma noiva foi porque, embora ache Liz
perturbadoramente atraente, nunca mais vou arranjar outra Tulipa na vida.
É também graças à minha mítica noiva que Liz e eu conseguimos
caminhar à beira do canal e partilhar sinceramente as nossas aspirações,
agora que ela sabe que eu estou perdido de amores e admiração por uma
médica em França.
Quando compartilhámos as nossas esperanças e sonhos, falamos de pais
e de como é ser parcialmente estrangeiro, e ela pergunta-me se sou judeu e
eu digo que não.
Diante de uma garrafa de vinho tinto no Greek, ela pergunta-me se sou
comunista e, em lugar de tornar a dizer que não, eu opto pela via frívola e
digo que não consigo decidir se hei de ser um bolchevique ou um
menchevique, e pode ela por favor aconselhar-me?
A seguir a isto, passamos a um registo sério, ou passa ela, e começamos
a falar do Muro de Berlim, que está tão presente no meu espírito que
nunca me ocorreu que o pudesse estar igualmente no dela.
– O meu pai diz que é uma barreira para manter os fascistas de fora –
diz ela.
E eu digo:
– Bem, é um ponto de vista, acho eu – o que a aborrece.
– Então o que é que você pensa que é? – pergunta ela.
– Eu só não acho que o Muro esteja lá para manter as pessoas fora –
digo eu. – Acho que está lá mais para manter as pessoas dentro.
A isto recebo uma réplica incontestável, uma vez mais formulada após
aturada reflexão:
– O paizinho não pensa assim, sabe, Marcel? Os fascistas mataram-lhe a
família. Para o paizinho isso basta.
*

– O diário da pobre Liz é pura e simplesmente efusivo a seu respeito,


Peter – está a dizer Tabitha, com o seu sorriso compadecido e simpático. –
Você é um cavalheiro francês tão galante! O seu inglês é tão bom que ela
até se esquece de que você é francês. Quem dera que houvesse mais
homens como você no mundo. Você é um caso perdido no que diz respeito
ao Partido, mas é um humanista, sabe o verdadeiro significado do amor e,
com um bocadinho de trabalho, pode ser que um dia venha a ver a luz.
Não diz que gostaria de deitar arsénico no café da sua noiva, mas não
precisa. Também tirou uma fotografia sua, para o caso de você se ter
esquecido. Esta. Pediu a máquina Polaroid emprestada ao pai
especialmente para isso.
Estou equipado para correr, encostado à balaustrada, que é como ela me
mandou colocar. Depois disse-me para fazer um ar natural, não sorrir.
– E receio bem que isso também faça parte da hipótese deles. A Prova
A, por assim dizer. Você é o perverso Romeu que conquistou o coração de
uma pobre rapariga e a levou para o abate. Há praticamente uma canção a
seu respeito.
*

– Somos amigos – anuncio eu a Smiley, não diante de um sumo de maçã


no soalheiro Hampstead Heath desta feita, mas de volta aos Estábulos,
com o ronronar da máquina de cifra do andar de cima e das irmãs de
Bambúrrio nas suas máquinas de escrever manuais por fundo.
Comunico-lhe o resto das informações operacionais. Ela vive com os
pais. Não tem irmãos nem irmãs. Não sai. Os pais discutem. O pai vacila
entre o sionismo e comunismo. Nunca falta à sinagoga nem se esquiva a
uma reunião dos camaradas. A mãe é decididamente secular. O pai quer
que Liz se dedique ao negócio do vestuário. A mãe quer que Liz estude
para ser professora. Mas eu tenho a sensação de que George já sabe de
tudo isto, porque, a não ser assim, por que razão havia de a ter escolhido,
para começar?
– Mas perguntamos nós: o que é que a Elizabeth quer para si própria? –
reflete ele.
– Quer sair, George – respondo eu mais impacientemente do que é
minha intenção.
– Sair em qualquer direção específica? Ou sair só por sair?
O melhor para ela seria uma biblioteca, digo eu. Talvez uma biblioteca
marxista. Há uma em Highgate para a qual ela escreveu, mas eles não
responderam. Já é voluntária na biblioteca pública local, digo-lhe eu. E lê
histórias em inglês a crianças imigrantes que ainda estão a aprender a
língua. Mas provavelmente George também já sabe isso.
– Nesse caso temos de ver o que podemos fazer por ela, não temos?
Seria uma ajuda se você pudesse manter-se ao lado dela durante mais
algum tempo antes de desaparecer nas plagas francesas. Sente-se bem com
isso?
– Não muito.
Não me parece que tão-pouco George se sinta bem com isso.
*

Passaram-se cinco dias e dois passeios pelo canal. E é novamente de


noite nos Estábulos.
– Podia ver se isto lhe desperta interesse – sugere George, estendendo-
me uma página arrancada de uma revista trimestral chamada Gazeta
Paranormal. – Encontrou-a por acaso na sala de espera do consultório
dum médico durante as suas rondas de delegado de propaganda médica. O
salário é uma miséria, mas desconfio que ela não se ralará muito com isso.
A Biblioteca de Investigação Psíquica de Bayswater procura uma
bibliotecária-adjunta. Enviar fotografia e currículo manuscrito para Miss
Eleanora Crail.
*

– Entrei, Marcel, entrei! – está a dizer Liz, rindo e chorando ao agitar a


carta diante de mim na cantina do clube desportivo. – Entrei, entrei! O pai
diz que eu devia ter vergonha, que é uma superstição burguesa amalucada
e sem dúvida antissemita. A mamã diz avança, é o primeiro degrau da
escada. Por isso avancei. Começo na primeira segunda-feira do mês que
vem!
E quando ela poisa a carta, dá um salto e abraça-me e diz que eu sou o
melhor companheirão que alguma vez teve. E não é a primeira vez que eu
desejo não ter inventado a namorada estável que me espera em França. E
penso que ela o deseja também.
*

Não era preciso muito para me aborrecer, como Tabitha começava a


descobrir.
– Portanto, mal lhe deitou o pó mágico nos olhos, pôs-se a andar e disse
ao seu amigo Alec que lhe tinha desencantado uma querida e simpática
rapariga comunista, e tudo o que ele tinha a fazer era arranjar um trabalho
na mesma amalucada biblioteca e não tardava que fossem os dois para a
cama. Foi assim que funcionou?
– Não se punha a questão de dizer o que quer que fosse ao Alec. Eu
tinha estabelecido contacto com a Liz Gold no âmbito da Bambúrrio. O
Alec não tinha credenciação Bambúrrio. O que quer que acontecesse entre
o Alec e a Liz uma vez que ela conseguisse o emprego na biblioteca não
era nada comigo, e eu não era informado.
– Portanto quais foram exatamente as ordens que recebeu do Smiley em
relação ao Alec Leamas no seu simulado descambar na bebida, na
devassidão e na traição?
– Continuar seu amigo e fazer o que quer que surgisse naturalmente à
medida que as coisas evoluíam. Tendo em mente que, conforme a
operação avançasse, as minhas ações seriam suscetíveis de escrutínio pela
oposição tal como as do Alec eram.
– Portanto as instruções do Controlo ao Leamas, entretanto, seriam em
termos gerais estas, corrija-me se estiver errada: sabemos que você odeia
os americanos, Alec, de modo que dê-lhe forte e odeie-os mais um
bocado. Sabemos que você bebe como uma esponja, portanto duplique a
dose. E sabemos que você se pela por uma zaragata quando está com os
copos, portanto não sinta que tem de se reter e, já que está com as mãos na
massa, faça de uma maneira geral trinta por uma linha. Isto resume mais
ou menos as coisas?
– O Alec devia armar zaragatas da maneira que achasse melhor. Foi tudo
o que ele me disse.
– Tudo o que o Controlo lhe disse a si?
Onde quereria ela chegar? A quem pertence ela, que tão depressa se
aproxima tanto da verdade que quase lhe toca como se afasta dela como se
a queimasse?
– Tudo o que o Smiley me disse.
*

Estou a tomar uma bebida à hora do almoço com Alec num bar que fica
a uns minutos a pé do Circus. O Controlo deu-lhe uma última
oportunidade de se portar bem e colocou-o na Secção Bancária, no rés do
chão, com instruções para surripiar tudo aquilo a que consiga deitar a mão,
embora Alec não mo diga, e eu não tenho a certeza de que ele saiba quanto
eu sei. São duas e meia e encontrámo-nos à uma, e quando a pessoa está
no rés do chão tem uma hora de almoço e não há desculpas.
Depois de um par de imperiais, ele está no uísque, e a única coisa que
comeu ao almoço foi um pacote de batatas fritas salpicadas de Tabasco.
Resmungou em voz alta acerca de o Circus ser hoje em dia uma carrada de
gente esquisita, sobre o que é feito da malta fixe do tempo da guerra, e que
a única coisa com que o andar de cima se preocupa é em lamber as botas
aos americanos.
E eu ouvi e não disse grande coisa porque não sei ao certo até que ponto
é o verdadeiro Alec e até que ponto é ele a viver o papel, e não tenho a
certeza de que ele saiba, que é exatamente como as coisas devem ser. Só
quando já estamos no passeio com o trânsito a passar é que ele me agarra
pelo braço. Por momentos penso que me vai esmurrar. Em lugar disso,
abre os braços e estreita-me contra ele como o emotivo bêbedo irlandês
que finge ser, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe correm pelas faces
hirsutas.
– Gosto imenso de si, está a ouvir, Pierrot?
– E eu também gosto imenso de si, Alec – obedientemente.
E antes de me afastar de repelão:
– Diga cá. Só para informação. Que diabo vem a ser Bambúrrio?
– Apenas uma fonte das Encobertas que nós controlamos. Porquê?
– Uma coisa que o maricas do Haydon me disse noutro dia quando
estava com os copos. As Encobertas têm por aí uma nova fonte bestial, e
porque é que ninguém mete a Conjunta ao barulho? Sabe o que eu lhe
disse?
– O que foi que lhe disse?
– Se fosse eu que estivesse a chefiar as Encobertas, disse-lhe eu, e
alguém da Conjunta viesse ter comigo e me perguntasse quem era a
grande fonte, pregava-lhe um pontapé nos tomates.
– E o que foi que o Bill lhe disse?
– Disse que me fosse foder. Sabe que mais eu lhe disse?
– Ainda não.
– Tire as mãos apaneleiradas de cima da mulher do George.
*

É noite cerrada nos Estábulos. É sempre. Os Estábulos são uma casa que
vive de noite, em vagas imprevisíveis. Tão depressa estamos todos
mortalmente aborrecidos por causa da espera, como de repente há tumulto
à porta de entrada e um grito de Trabalho! e Jim Prideaux entra por ali
adentro com a última fornada de joias da coroa de Bambúrrio. Chegaram
por micropontos ou papel químico; Jim tirou-as à mão de uma caixa de
recolha de correio em território interdito; foram-lhe transmitidas
pessoalmente por Bambúrrio num treff de um minuto numa viela esconsa
de Praga. De repente eis-me a correr escada acima, escada abaixo com
telegramas, eis-me curvado sobre a minha secretária a alertar os fregueses
de Whitehall por telefone verde, as máquinas de escrever manuais das
irmãs põem-se a matraquear e a máquina de cifra de Ben desata a arrotar
através das tábuas do soalho. Durante as próximas doze horas vamos estar
a decifrar o material em bruto de Mundt e a disseminá-lo por uma porção
de fontes fictícias – um pouco de escuta de comunicações aqui, uma
interceção de telefone ou de microfone além – e só raramente, para manter
a mistura viva, um ou outro informador altamente colocado e fiável, mas
tudo isso sob o único nome mágico de Bambúrrio, exclusivamente para
recetores doutrinados. Esta noite é uma acalmia entre tempestades. Por
uma vez George tem a Sala do Meio por sua conta.
– Há um par de dias cruzei-me por acaso com o Alec – começo eu.
– Julgava que tínhamos combinado que você iria deixar arrefecer a sua
relação com o seu amigo Alec, Peter.
– Há qualquer coisa acerca da operação Bambúrrio que eu não percebo
e acho que devia perceber – digo eu, passando ao meu discurso preparado.
– Devia? Com que autoridade? Valha-me Deus, Peter!
– É apenas uma simples pergunta, George.
– Não sabia que nós lidávamos com simples perguntas.
– Quais são as competências do Alec, é só isso?
– Fazer o que está a fazer, como você muito bem sabe. Tornar-se um dos
aborrecidos fracassos da vida. Uma rejeição do Serviço. Parecer
rancoroso, vingativo, seduzível, comprável.
– Mas com que intenção, George? Com que objetivo?
A impaciência estava a levar a melhor sobre ele. Começou a responder,
respirou fundo e principiou de novo.
– O seu amigo Alec Leamas tem ordens para ostentar os seus bem
atestados defeitos de caráter em toda a sua glória. Assegurar-se de que eles
chamam a atenção dos caçadores de talentos da oposição (com uma
pequena ajuda do traidor ou traidores nas nossa fileiras) e colocar o seu
considerável acervo de informações secretas no mercado, para nós depois
acrescentarmos uns quantos elementos para despistar da nossa própria
autoria.
– Portanto uma normal operação de desinformação de agente duplo.
– Com enfeites, sim. Uma operação normal.
– Só que ele parece pensar que a sua missão é matar o Mundt.
– Bom, tem toda a razão, não tem? – retruca ele, sem demora e sem
alteração do tom de voz.
Estava a perscrutar-me furiosamente através dos óculos redondos. Eu
esperava que por essa altura já estivéssemos sentados, mas continuamos
de pé, e eu sou substancialmente mais alto que George. Mas o que me
impressionou foi a aridez da voz dele, que me recordou o nosso encontro
na esquadra apenas horas antes de ele ter firmado o seu pacto do diabo
com Mundt.
– O Alec Leamas é um profissional, como você é, Peter, e como eu sou.
Se o Controlo não o convidou para ler as letras pequenas da sua missão,
tanto melhor para o Alec e para nós. Ele não pode dar passos em falso e
não pode trair. Se a missão dele for bem-sucedida de maneiras que ele não
previa, não se sentirá enganado. Sentirá que cumpriu o que dele se exigia.
– Mas o Mundt é nosso, George! É um tipo nosso… É Bambúrrio!
– Obrigado. O Hans-Dieter Mundt é um agente deste Serviço. E como
tal tem de ser protegido a todo o custo dos que acertadamente pensam que
ele é aquilo que é, e só sonham em encostá-lo à parede e ocupar o seu
lugar.
– E quanto à Liz?
– Elizabeth Gold? – Como se se tivesse esquecido do nome dela, ou eu
o tivesse pronunciado mal. – A Elizabeth Gold vai ser convidada a fazer o
que naturalmente lhe sai: dizer a verdade e nada mais que a verdade. Já
tem todas as informações de que precisa?
– Não.
– Invejo-o.
12

É outra manhã, cinzenta, para variar, e cai uma chuva miúda sobre
Dolphin Square quando entro no meu autocarro. Acontece que chego cedo
aos Estábulos, mas Tabitha já está sentada à minha espera, muito satisfeita
consigo própria por ter adquirido um maço de relatórios de vigilância do
Special Branch que alega terem-lhe aparecido à porta. Ela não sabe se são
autênticos, claro, nem se alguma vez poderá vir a fazer uso deles, mas eu
não devo em circunstância alguma murmurar a quem quer que seja que ela
os tem. Tudo isto me diz que ela tem um amigo no Special Branch, e os
relatórios são exatamente o que eles dizem que são.
– Então vamos começar pelo primeiro dia da ação direta, este. Não há
uma pista de quem realmente pediu ao Special Branch para pôr os cães
atrás do Alec. Apenas a pedido da Caixa… Presumo que nesse tempo
Caixa fosse a gíria policial para designar o Circus. Sim?
– Sim.
– Tem alguma ideia de quem, na Caixa, poderá ter feito o pedido ao
Special Branch?
– A Conjunta, provavelmente.
– Quem da Conjunta, em particular?
– Podia ser qualquer um deles. O Bland, o Alleline, o Esterhase. Até o
próprio Haydon. O mais provável é que ele tenha delegado num dos seus
subalternos, para não se comprometer.
– E deve ser o Special Branch a levar a cabo a vigilância, e não os seus
amigos do Serviço de Segurança? É esse o procedimento normal?
– Absolutamente.
– Porque…?
– Porque os dois serviços não gostam um do outro.
– E a nossa esplêndida polícia?
– Não gostava do Serviço de Segurança por se imiscuir e do Circus
porque éramos uma cambada de maricas emproados cuja missão na vida
era infringir a lei.
Ela ficou a pensar nisto e depois em mim, examinando-me francamente
com os seus tristes olhos azuis.
– Às vezes você é muito convencido. Qualquer um pensaria que você
tinha conhecimentos privilegiados. Teremos de vigiá-lo a esse respeito.
Um funcionário subalterno apanhado na corrente de ar de acontecimentos
históricos, é o que procuramos. Não alguém com um grande segredo a
esconder.
*

Comandante Special Branch para Caixa. Ultrassecreto e Proteger.


Assunto: OPERAÇÃO GALÁXIA.

Antes de ocuparem as suas posições, os meus oficiais fizeram discretas pesquisas de


contexto relativamente às atividades conhecidas do casal em questão, quanto ao seu
emprego, estilo de vida e coabitação.
Ambas as partes estão atualmente empregadas a tempo inteiro na Biblioteca de
Investigação Psíquica de Bayswater, uma instituição de financiamento privado gerida
por Miss Eleanora Crail, uma mulher solteira de cinquenta e oito anos de
comportamento e aspeto excêntricos, anteriormente desconhecida da polícia. Sem se
aperceber de que estava a fazer confidências a um dos meus oficiais, Miss Crail deu
espontaneamente as seguintes informações de contexto relativamente ao par.
VÉNUS, que ela designa por «querida Lizzie», está há seis meses empregada a
tempo inteiro como bibliotecária adjunta e, na opinião de Miss Crail, sem falhas, sendo
pontual, respeitadora, inteligente, de hábitos asseados, rápida e conscienciosa a
aprender, com boa caligrafia e «bem-falante, atendendo à classe a que pertence». Miss
Crail não tem objeções quanto às suas opiniões comunistas, das quais ela não faz
segredo, «desde que não as traga para a minha biblioteca».
MARTE, a que ela chama o seu «sórdido Sr. L», está ao seu serviço a tempo inteiro
como segundo bibliotecário adjunto aguardando a reformulação da biblioteca, e não é,
na sua opinião, «nada satisfatório». Queixou-se duas vezes ao Centro de Emprego de
Bayswater a respeito do seu comportamento, sem resultado. Descreve-o como uma
pessoa desleixada, malcriada, que ultrapassa a hora de almoço e que frequentemente
«cheira a bebidas alcoólicas». Leva a mal o seu hábito de assumir um cerrado sotaque
irlandês quando admoestado, e tê-lo-ia despedido passada uma semana se não fosse a
sua querida Lizzie (Vénus) interceder a seu favor, pois existe uma «doentia» atração
mútua entre os dois, apesar das suas diferenças de idade e conceções, que na opinião
de Miss Crail podem já ter desabrochado em extrema intimidade. A não ser assim, por
que razão, depois de escassas duas semanas de conhecimento, haviam eles de chegar
em simultâneo de manhã, além do que em mais de uma ocasião ela os observou a
darem a mão, e não apenas por estarem a passar livros um ao outro.
Interrogada casualmente pelo meu oficial sobre o emprego anterior que Marte
alegou ter tido, ela respondeu que segundo o Centro de Emprego ele fora «um
funcionário insignificante qualquer numa casa bancária», ao que ela apenas podia dizer
que não era de admirar que os bancos estivessem atualmente como estavam.

Vigilância.
Para o seu primeiro dia de observação os meus oficiais escolheram a segunda sexta-
feira do mês, por se tratar do dia em que a Secção de Goldhawk Road do Partido
Comunista patrocina o seu dia de visitas a todo o tipo de correntes de esquerda no
Oddfellows’ Hall, em Goldhawk Road, pois Vénus foi recentemente transferida da
secção de Cable Street para a de Goldhawk Road, ao mudar de residência para
Bayswater. A assistência habitual inclui membros do Partido dos Trabalhadores
Socialistas, «Militantes», a Campanha para o Desarmamento Nuclear, mais dois
oficiais disfarçados da minha própria Força – um do sexo masculino e outro do sexo
feminino –, garantindo-se assim camuflagem para as casas de banho.
Ao sair da biblioteca, às 1730, o par alvo fez uma paragem no Queen’s Arms, em
Bayswater Street, onde Marte bebeu um grande uísque e Vénus um Babycham,
chegando conforme previsto ao Oddfellows’ Hall às 1912, sendo o tema da tarde «Paz
a que Preço?» e estando presentes nesta ocasião no auditório, que tem capacidade para
508 pessoas, um número estimado de 130, de variadas cores de pele e camadas sociais.
Marte e Vénus sentaram-se devidamente ao lado um do outro na retaguarda, perto da
saída, tendo Vénus, uma figura popular entre os camaradas, recebido sorrisos e acenos
de cabeça.
Após umas breves palavras de abertura de R. Palme Dutt, ativista e jornalista
comunista, que a seguir saiu imediatamente da sala, houve outros palestrantes menos
cotados que subiram ao estrado, sendo o último Bert Arthur Lownes, proprietário da
Lownes, a Mercearia do Povo, em Bayswater Road, um autointitulado trotskista e bem
conhecido da polícia por incitamento à violência, rixas e outros atos visando a
perturbação da ordem em local público.
Até Lownes ter pegado no microfone, Marte tinha-se mostrado taciturno e enfadado,
bocejando, cabeceando e matando periodicamente a sede com uma garrafa de bolso, de
conteúdo desconhecido. A atitude prepotente de Lownes, porém, acordou-o da
sonolência, para citar o meu oficial, levando-o inesperadamente a pôr o braço no ar a
fim de chamar a atenção do indivíduo que presidia à reunião, também tesoureiro da
Secção de Goldhawk Road, Bill Flint, que pediu como era devido a Marte que se
identificasse e depois formulasse a pergunta ao orador, de acordo com as regras do Dia
de Abertura ao Público. Os registos dos meus oficiais, elaborados durante e a seguir à
reunião, são uniformes e rezam o seguinte:

Marte [Sotaque irlandês. Identifica-se]: Bibliotecário. Tenho uma pergunta para si,
camarada. Está a dizer-nos que devemos deixar de nos armarmos até aos dentes
contra a ameaça soviética porque os soviéticos não estão a ameaçar ninguém. É
isto? Desistir da corrida aos armamentos já e gastar o dinheiro em cerveja?
[Risos.]
Lownes: Bem, se há alguma simplificação exagerada, é essa, camarada. Mas pronto. Se
quer exprimi-lo dessa maneira, sim.
Marte: Ao passo que, segundo o camarada, o verdadeiro inimigo com o qual nos
devíamos preocupar é a América. O imperialismo americano. O capitalismo
americano. A agressão americana. Ou isso é outra simplificação exagerada que estou
a fazer?
Lownes: Qual é a sua pergunta, camarada?
Marte: Bem, é isto, camarada, está a ver? Não devíamos estar a armar-nos até aos
dentes contra a ameaça americana, se são eles os tipos de que devemos ter medo?

A resposta de Lownes é abafada por risos, assuadas enraivecidas e aplausos


dispersos. Marte e Vénus saem pela porta das traseiras. Chegados à rua, parecem
primeiramente envolver-se em animada altercação. Contudo, as suas divergências são
de pouca dura e caminham de braço dado até à paragem do autocarro, parando apenas
para se abraçarem.

Aditamento.
Ao comparar os blocos de notas, dois dos meus oficiais registaram
independentemente a presença do mesmo homem bem vestido, dos seus trinta anos e
estatura mediana, cabelo loiro ondulado e ar efeminado que, tendo saído da reunião
imediatamente a seguir ao par, o seguiu até à paragem e apanhou o mesmo autocarro,
tendo-se sentado no andar de baixo, ao passo que o par preferiu o andar de cima, que
permitia a Marte fumar. Quando o par se apeou, o mesmo indivíduo apeou-se
igualmente e, depois de os ter acompanhado até ao bloco de apartamentos e esperado
até se acender uma luz no terceiro andar, dirigiu-se a uma cabina telefónica. Uma vez
que os meus oficiais não tinham instruções para seguirem alvos secundários, não foi
feita qualquer tentativa de identificar ou localizar este indivíduo.

– Portanto o grandioso plano estava a funcionar. Os animais ferozes da


floresta estavam a começar a farejar a vossa cabra presa. Representada
pelo nosso homem bem vestido dos seus trinta anos e ar efeminado. Sim?
– A cabra não era minha. Era do Controlo.
– Não era do Smiley?
– Quando se tratou de infiltrar o Alec na oposição, o Smiley assumiu
uma posição subalterna.
– Que era o que ele queria?
– Possivelmente.
Estou a detetar uma nova Tabitha. Ou a verdadeira, a mostrar as garras.
– Já tinha visto este relatório?
– Ouvi falar nele. O essencial.
– Aqui nesta casa? Juntamente com os seus colegas com credenciação
Bambúrrio?
– Sim.
– Portanto, grande júbilo da malta toda. Hurra, morderam o isco.
– Mais ou menos.
– Não parece muito certo. Não sentia nenhum escrúpulo relativamente à
operação, pessoalmente? Desejando sair dela, mas sem ver como?
– Estávamos no rumo. A operação estava a decorrer conforme fora
planeado. Porque é que eu havia de sentir escrúpulos?
Ela pareceu à beira de questionar esta asserção, mas depois mudou de
ideias.
– Adoro este – disse, empurrando outro relatório na minha direção.
*

Comandante Secção Especial para Caixa. Ultrassecreto e Proteger.


Assunto: OPERAÇÃO GALÁXIA. RELATÓRIO N.o 6.
Ataque gratuito a Bert Arthur LOWNES, proprietário da MERCEARIA DO POVO
LOWNES, uma loja de funcionamento cooperativo em Bayswater Road, às 1745 de 21
de abril de 1962.

A informação que segue foi obtida informalmente junto de testemunhas não


arroladas para julgamento dada a natureza incontestada do caso.
Ao longo da semana que antecedeu o incidente, parece que Marte ganhou o hábito
de aparecer no estabelecimento de Lownes a todas as horas desencontradas do dia em
estado de embriaguez, pretensamente para fazer uma compra a creditar numa conta de
poupança mensal titulada em nome de Vénus, à qual tinha acesso, mas na realidade
para uma troca de palavras com Lownes, levada a cabo numa voz irlandesa sonora e
provocante. No dia em questão, o meu oficial viu Marte encher um cesto com uma
grande quantidade de comestíveis, incluindo uísque, no valor aproximado de £45. Ao
ser-lhe perguntado se tencionava pagar as compras pretendidas em dinheiro, ou debitá-
las na conta de Vénus, Marte respondeu, passo a citar: «A crédito, seu palerma, o que é
que pensava?», acrescido de palavras no sentido de que, sendo um empenhado
membro das massas famintas, tinha direito à sua justa quota-parte das riquezas do
mundo. Ignorando o aviso de Lownes de que, encontrando-se a conta de Vénus sem
provisão, não lhe era concedido mais crédito, ele avançou para a saída principal
levando à frente o cesto carregadíssimo de mercadoria por pagar. Nesta altura o dito
Lownes avançou de trás do balcão e, em linguagem vigorosa, ordenou a Marte que
largasse imediatamente o cesto e abandonasse o local. Em lugar de o fazer, sem mais
discussão, Marte pregou uma rápida sucessão de socos no estômago e na zona do
baixo-ventre de Lownes, rematando com uma cotovelada na face direita.
Sem fazer qualquer tentativa de fuga enquanto os fregueses gritavam e Mrs. Lownes
ligava para o 999, Marte não mostrou quaisquer remorsos, continuando a cumular de
insultos a sua desditosa vítima.
Tal como um dos meus oficiais mais jovens posteriormente observou, sentiu-se
extremamente grato por não ter presenciado a cena, visto que se sentiria obrigado a
abandonar o disfarce e intervir. Além disso, duvidava fortemente da sua capacidade de
confrontar sozinho o atacante.
No caso, a polícia uniformizada compareceu rapidamente e o atacante não resistiu à
prisão.

– Por conseguinte a pergunta que lhe faço é: sabia pessoalmente de


antemão que o Alec ia agredir o pobre Mr. Lownes?
– Em princípio.
– O que quer isso dizer?
– Eles queriam um momento em que o Alec queimasse a sua última
ponte. Ele sairia da prisão, estaria nas lonas e não teria volta atrás.
– Eles quer dizer o Controlo e o Smiley.
– Sim.
– Mas não você. Não foi uma ideia brilhante sua, congeminada por si e
surripiada pelos seus superiores?
– Não.
– O que me incomoda é que você pessoalmente possa ter instigado o
Alec a isso, percebe? Ou a outra parte sugerir que o fez. Ter incitado o seu
pobre amigo alquebrado a mergulhar ainda mais fundo na depravação.
Mas você não o fez. O que é um alívio. E outro tanto em relação ao
dinheiro que o Alec pifou da Secção Bancária do Circus. Isso foram outras
seis pessoas que lhe disseram para o fazer, e não você?
– O Controlo, calculo eu.
– Ótimo. Portanto o Alec estava a armar zaragata para os seus
superiores, você era amigo dele, e não o seu génio maligno. E o Alec
estava ciente disso, provavelmente. Sim?
– Presumo que sim. Sim.
– Então o Alec também sabia que você tinha credenciação Bambúrrio?
– Claro que não sabia, porra! Como é que havia de saber? Ele não sabia
coisa nenhuma acerca da Bambúrrio!
– Sim, está bem, eu já sabia que você ia ficar indignado. Se não se
importa, vou fazer um bocado de trabalho de casa enquanto você folheia
este horror. A tradução inglesa é uma miséria. Mas, segundo me dizem, o
texto original também. Faz a pessoa ter saudades da magia que o Special
Branch tinha relativamente às palavras.

EXCERTOS DE FICHEIROS DA STASI ATÉ AGORA POR DIVULGAR


ASSINALADOS PARA NÃO SEREM DIVULGADOS ATÉ 2050 TAL COMO
EXTRAÍDOS E TRADUZIDOS POR ZARA N. POTTER ASSOCIADOS,
INTÉRPRETES E TRADUTORES AJURAMENTADOS CONTRATADOS POR
MESSRS. SEGROVE, LOVE & BARNABAS, ADVOGADOS, LONDRES W. C.

Quando a porta se fechou atrás dela, fui acometido por uma raiva
irracional. Para onde fora ela, diabos a levassem? Por que razão me
deixara ali plantado daquela maneira? Para fazer um relato esbaforido aos
seus amigalhaços do bastião? Será esse o jogo que ela está a fazer? Eles
passam-lhe um maço de relatórios do Special Branch e dizem: veja lá
como ele reage a isto? É assim que as coisas funcionam? Mas não era
assim que funcionavam. Eu sabia-o. Tabitha era o anjo bom de todos os
acusados. E os seus meigos olhos tristes viam um bocado mais longe que
os de Bunny ou de Laura. Também isso eu sabia.
*

Alec está apoiado contra a janela emporcalhada, a espreitar lá para fora.


Eu estou sentado na única poltrona. Estamos num quarto do andar de cima
de um hotel para agentes comerciais de Paddington que aluga quartos à
hora. Esta manhã ligou-me de um número de Marylebone que não vem na
lista reservado para tipos:
– Vá ter comigo ao Duchess, às seis. – O Duchess of Albany, na Praed
Street, um dos seus velhos antros. Está macilento, tem os olhos vermelhos
e mostra-se agitado. Treme-lhe o copo na mão. Frases curtas, relutantes,
pronunciadas entre pausas.
– Há uma certa rapariga – está ele a dizer. – Uma sacana duma
comunista. Não a censuro. Vindo ela donde vem. Aliás, quem é que hoje
em dia censura quem quer que seja?
Espera. Não faças perguntas. Ele há de dizer-te o que quer.
– Eu bem disse ao Controlo. Mantenha-a fora disto. Não confio no
velho filho da mãe. Nunca se sabe o que anda ele a tramar. Pergunto a
mim mesmo se ele próprio o sabe. – Demorada contemplação da rua lá em
baixo. Manutenção de um silêncio compreensivo da minha parte. – Seja lá
como for, onde raio está o George escondido? – girando sobre si e
virando-se acusadoramente para mim. – Uma destas noites tive um treff
com o Controlo em Bywater Street. O George não pôs lá os pés.
– O George anda a trabalhar muito sobre Berlim, neste preciso momento
– digo eu, inexatamente, e fico de novo à espera.
Alec decidiu imitar o zurrar pedante do Controlo:
– «Quero que você se livre do Mundt por mim, Alec. Que torne o mundo
um sítio melhor. Está disponível para isso, meu velho?» Claro que estou
disponível, ora porra! O filho da mãe matou o Riemeck, não foi? Matou
metade do raio da minha rede. E também tentou deitar a mão ao George,
há um ou dois anos. Não podemos permitir isso, pois não, Pierrot?
– Claro que não – concordo calorosamente.
Terá ele detetado um tom falso na minha voz? Bebe um gole de uísque e
continua a fitar-me.
– Por acaso não a conheceu, nem nada, Pierrot?
– Conheci quem?
– A minha rapariga. Está fartinho de saber de quem eu estou a falar.
– Como diabo podia eu tê-la conhecido, Alec? Que é que você está para
aí a carpir? Meu Deus, homem!
Ele vira-se por fim.
– Alguém que ela conheceu, um homem. Dava a ideia de ter algumas
parecenças consigo. É só isso.
Eu abano a cabeça, confundido, encolho os ombros e sorrio. Alec volta
às suas contemplações, perscrutando os transeuntes do passeio que passam
apressadamente sob a chuva.
*
ASSUNTO: FALSAS ACUSAÇÕES PROFERIDAS CONTRA O CAMARADA HANS-
DIETER MUNDT POR AGENTES FASCISTAS DOS SERVIÇOS DE INFORMAÇÃO
BRITÂNICOS. ABSOLVIÇÃO TOTAL E COMPLETA DE H-D MUNDT POR
TRIBUNAL POPULAR. LIQUIDAÇÃO DE ESPIÕES IMPERIALISTAS QUANDO
TENTAVAM A FUGA. APRESENTADO AO PRESIDIUM DO SED. 28 DE OUTUBRO
DE 1962.

Se a Câmara Estrelada que reuniu para o julgamento de Hans-Dieter


Mundt era um arremedo, a respetiva ata oficial era pior. O prólogo parecia
ter sido escrito pelo próprio Mundt. E talvez tivesse sido.
O odioso e corrupto agitador contrarrevolucionário Leamas era um
conhecido degenerado, um bêbedo burguês oportunista, mentiroso,
femeeiro e rufião, obcecado por dinheiro e pela aversão ao progresso.
Os devotados operacionais da Stasi que tinham obtido o falso
testemunho deste malvado Judas tinham-no feito de boa-fé e não podiam
ser censurados por terem introduzido uma víbora no seio das pessoas
dedicadas a combater as forças do imperialismo fascista.
O julgamento foi uma vitória da justiça socialista e um apelo a uma
vigilância cada vez maior contra as intrigas dos espiões e provocadores
capitalistas.
A mulher que se intitulava Elizabeth Gold era uma simplória política
com simpatias pró-israelitas, submetida a uma lavagem ao cérebro pelos
Serviços Secretos britânicos, fascinada pelo amante, um homem mais
velho, e ingenuamente capturada numa teia de intriga ocidental.
Mesmo depois de o impostor Leamas ter confessado integralmente os
seus crimes, Gold tinha-o ajudado traiçoeiramente na fuga e pagou bem
cara a sua duplicidade.
Uma última palavra de felicitações àquele destemido guardião do
socialismo democrático que não hesitou em abatê-la quando tentava a
fuga.
*

– Ora bem, Peter. Uma rápida retrospetiva daquele julgamento


improvisado verdadeiramente horrível em língua de gente. Está disponível
para isso?
– Para o que der e vier.
Mas a voz dela era enérgica e resoluta, e ela tinha-se afundado na
cadeira do outro lado da mesa mesmo diante de mim como uma
comissária do povo.
– O Alec chega à Câmara Estrelada como testemunha privilegiada do
Fiedler com os planos mais bem elaborados para pôr o Mundt pelas ruas
da amargura. Sim? O Fiedler conta ao tribunal tudo sobre a pista do
dinheiro falso que conduz à porta da frente do Mundt. Sim? Ele abre a
boca toda sobre o tempo do Mundt como pseudo-diplomata em Inglaterra
que, segundo o Fiedler, corresponde à época em que foi selecionado e
virado pelas forças do imperialismo reacionário, aliás o Circus. Depois
temos uma lista de todos os escandalosos segredos de Estado que o Mundt
alegadamente vendeu aos seus patrões ocidentais por trinta dinheiros, e
tudo corre sobre esferas para os juízes do tribunal. Até quê?
O sorriso simpático sumiu-se há muito.
– Até à Liz, imagino – respondo relutantemente.
– Até à Liz, efetivamente. De repente salta a pobre Liz e, porque não dá
para mais, põe em xeque tudo o que o seu bem-amado acaba de dizer ao
tribunal. Sabia que ela ia fazer isso?
– Claro que não! Como diabo podia eu saber?
– Como podia, realmente? E por acaso reparou no que foi que afundou a
Liz… e o seu Alec? Foi o momento em que ela trouxe à colação o nome
do George Smiley. A sua admissão absolutamente inocente perante a
Câmara Estrelada de que um tal George Smiley, acompanhado por um
homem mais novo, tinha passado para a ver pouco depois do misterioso
desaparecimento do Alec, e lhe tinha dito que o seu Alec estava a fazer um
trabalho estupendo (implicitamente pelo seu país) e tudo ia correr às mil
maravilhas. Depois o seu George deixou-lhe o cartão de visita para
garantir que ela não se esquecia. Sendo que, fosse como fosse, Smiley é
um nome que se fixa sem esforço, e nem pouco mais ou menos
desconhecido da Stasi. Que coisa tão desastrada, não acha, para uma
raposa velha como o George?
Eu disse qualquer coisa a propósito de George poder ter os seus deslizes
de vez em quando.
– E era você o homem mais novo que ia com ele, porventura?
– Não era nada! Como podia eu sê-lo? Eu era Marcel, não se lembra?
– Então quem era?
– O Jim, provavelmente. Prideaux. Ele tinha-se passado.
– Tinha-se passado?
– Da Conjunta para as Encobertas.
– E também tinha credenciação Bambúrrio?
– Creio que sim.
– Crê, apenas?
– Tinha.
– Então diga-me uma coisa, se está autorizado a fazê-lo. Quando o Alec
Leamas foi enviado na sua missão para aldrabar o Mundt a qualquer
preço, quem julgava ele que fosse a fonte anónima que estava a fornecer
ao Circus todo o seu encantador material Bambúrrio?
– Não faço ideia. Nunca falei do assunto com ele. Provavelmente o
Controlo sim. Não sei.
– Deixe-me exprimi-lo doutra maneira, se for mais simples. Seria justo
dizer, no cômputo geral, por inferência, por um processo de eliminatórias,
por certas sugestões meio deixadas escapar, que quando o Alec Leamas
inicia a sua viagem fatal tem metido na cabeça enevoada que o Josef
Fiedler é a fonte vital que está a proteger, razão pela qual o odioso Hans-
Dieter Mundt tem de ser eliminado?
Ouvi a minha voz subir de tom e não fui capaz de a refrear:
– Como diabo hei de eu saber o que o Alec pensava ou deixava de
pensar? O Alec era um operacional. Quando se é um operacional, não se
pensa de maneira criativa. Há uma Guerra Fria em curso. Tem-se um
trabalho a fazer. Faz-se e pronto!
Estaria eu a falar de Alec? Ou de mim próprio?
– Então ajude-me a resolver este intrincado enigmazinho, se faz favor.
Você, P. Guillam, tinha credenciação Bambúrrio. Sim? Um dos muito,
muito poucos. Posso continuar? Posso. O Alec não tinha essa
credenciação, categoricamente. Sabia que havia uma superfonte, ou um
punhado de fontes, da Alemanha de Leste, com o nome genérico
Bambúrrio. Sabia que as Encobertas tinham o controlo dele, dela ou deles.
Mas não sabia nada sobre este sítio onde estamos agora, ou o que na
realidade se tramava nele. Verdade?
– Suponho que sim.
– E era vital que ele não tivesse credenciação Bambúrrio, que foi o seu
estribilho desde o princípio.
– E? – com a minha voz mortalmente cansada.
– Bem, se você tinha credenciação Bambúrrio e o Alec Leamas não
tinha credenciação Bambúrrio, o que sabia você que o Alec não estava
autorizado a saber? Ou estaremos a exercer o nosso direito ao silêncio? Eu
não o aconselharia. Com a malta da comissão parlamentar morta por se
atirar a si. Ou quando estiver a depor perante um júri submisso.
*

Foi por isto que Alec passou, estou eu a pensar: defender um caso
desesperado e vê-lo esboroar-se-lhe nas mãos, com a diferença de que
ninguém está a morrer a não ser de velhice. Eu estou a agarrar-me com
todas as forças a uma grande mentira insustentável que prometi nunca
denunciar, e ela está a afundar-se sob o meu peso. Mas Tabitha não tem
piedade.
– Então os nossos sentimentos. Podemos falar deles, para variar? Eu
acho sempre que são muito mais esclarecedores do que os factos. O que é
que você sentiu, você mesmo, quando soube que a Liz se tinha levantado
de repente e dado cabo de todo o maravilhoso trabalho aturado do Alec? E
dado cabo do pobre Fiedler também, já que estava com as mãos na massa?
– Eu não soube.
– Desculpe?
– Ninguém pegou no telefone e disse: já sabe a última do tribunal? A
primeira coisa que recebemos foi uma notícia de última hora da Alemanha
de Leste. Traidor desmascarado. Lá se ia o Fiedler por água abaixo.
Funcionário superior de segurança totalmente ilibado. Era o Mundt na
maior. Depois tivemos a espetacular fuga dos prisioneiros e da sua
perseguição a nível nacional. E depois tivemos…
– Os abates a tiro no Muro, possivelmente?
– O George estava lá. O George viu. Eu não.
– E os seus sentimentos, mais uma vez? Quando estava aqui sentado,
nesta mesma sala, ou de pé, a andar para cá e para lá, ou o que quer que
seja que tenha feito, e a terrível notícia lhe foi chegando aos bochechos?
Agora ouça isto, agora ouça aquilo. Sem parar?
– O que acha você que eu fiz, porra? Que fui buscar champanhe? – Uma
pausa, enquanto me recomponho. – Pensei: valha-me Deus, pobre
rapariga! Apanhada no meio disto tudo. Família refugiada. Perdidamente
apaixonada pelo Alec. Não fazia mal a uma mosca. Que coisa horrível
para ter de fazer.
– Ter de? Quer dizer que ela tencionava comparecer em tribunal? Ela
tencionava salvar o nazi e matar o judeu? Isso não parece mesmo nada da
Liz. Quem lhe teria dito para fazer semelhante coisa?
– Ninguém lho disse, porra!
– A pobre rapariga nem sequer sabia por que razão tinha ido ao
julgamento. Tinha sido convidada para uma reunião de escoteiros dos
camaradas na soalheira RDA, e de repente está a testemunhar contra o
amante num tribunal improvisado. O que é que você sentiu quando soube
disso? Você pessoalmente. E a seguir, ao saber que tinham sido os dois
despachados no Muro. Alvejados quando tentavam fugir, alegadamente.
Angústia, deve ter sido. Extrema, com certeza?
– Claro que foi.
– Para todos vocês?
– Todos.
– O Controlo também?
– Lamento, mas não sou nenhum especialista em sentimentos do
Controlo.
O sorriso triste dela. Voltou.
– E o seu Tio George?
– Que tem ele?
– Como é que ele encarou as coisas?
– Não sei.
– Porquê? – Bruscamente.
– Desapareceu. Foi para a Cornualha sozinho.
– Porquê?
– Para passear, imagino eu. É para onde ele vai.
– Durante quanto tempo?
– Uns dias. Talvez uma semana.
– E depois regressou. Era um homem alterado?
– O George não se altera. Recupera a compostura, e pronto.
– E recuperou-a?
– Não falou disso.
Ela ficou a pensar naquilo e pareceu relutante em deixar o assunto ficar
por ali.
– E não houve um nico de vitória em lado nenhum? – prosseguiu ela,
depois de pensar mais um bocado. – Na outra frente? Na frente
operacional… Nenhuma sensação onde quer que fosse de: bem, foi um
dano colateral, é trágico e é terrível, mas, seja como for, missão cumprida.
Nada desse género, tanto quanto saibamos?
Nada mudou. Nem a sua voz meiga, nem o seu sorriso macio. A sua
atitude passou a ser, quando muito, ainda mais simpática do que antes.
– O que eu estou a perguntar-lhe é isto: quando foi que você soube, na
sua cabeça, que a triunfante defesa do Mundt não era a burrada que se
inventou que era, mas sim um golpe de informações em grande escala
disfarçado? E que a Liz Gold era o necessário catalisador que fez tudo
acontecer? É acerca da sua defesa, percebe? A sua intenção, o seu
conhecimento prévio, a sua cumplicidade. Você podia manter-se de pé ou
cair por qualquer deles.
Um silêncio pelos mortos. Quebrado por Tabitha, numa voz de pergunta
informal.
– Sabe o que eu sonhei a noite passada?
– Como diabo hei de eu saber?
– Estava a levar a cabo as devidas diligências, a patinhar naquele
interminável esboço de relatório que o Smiley o obrigou a redigir e
decidiu não divulgar. E pus-me a pensar naquele singular ornitólogo
amador suíço que se revelou ser um membro disfarçado da secção de
segurança doméstica do Circus. E depois perguntei a mim mesma por que
razão não queria o Smiley que o seu relatório fosse divulgado. Por isso fiz
mais algumas diligências devidas e meti o nariz onde quer que me fosse
permitido metê-lo e palavra de honra que não consegui descobrir uma
única coisa relativamente a alguém ter testado as defesas do Campo 4
naquele período. E absolutamente nada quanto a um operacional
disfarçado excessivamente zeloso que tenha esmurrado os guardas de
segurança do Campo 4. Por conseguinte não foi propriamente necessária
uma epifania para colar o resto. Não havia certidão de óbito da Tulipa.
Bem, sabemos que a rapariga não tinha aterrado oficialmente, mas não há
muitos médicos que assinem uma certidão de óbito falsa, nem mesmo
médicos do Circus.
Olhei carrancudamente para longe e tentei fingir que achava que ela
estava doida.
– Portanto a minha leitura é esta: o Mundt recebeu ordens para ir
assassinar a Tulipa. Assassinou-a, mas o bom Deus não estava do seu lado
e foi apanhado. O George pressionou-o. Espie para nós, senão… E ele
assim faz. Uma cornucópia de esplêndidas informações, repentinamente
em risco. O Fiedler parece adivinhar-lhe as intenções. Entra o Controlo
com o seu revoltante plano. O George pode não ter gostado dele, mas,
como sempre acontece com o George, o dever impôs-se. Ninguém
calculou que o Alec e a Liz fossem abatidos. Isso seria a grande ideia do
Mundt: matar os mensageiros e dormir melhor de noite. Nem sequer o
Controlo conseguiria descortinar isso no horizonte. O seu George passou
diretamente à reforma, jurando nunca mais voltar a espiar. Coisa pela qual
gostamos imenso dele, embora tenha sido sol de pouca dura. Ele ainda
tinha de voltar e apanhar o Bill Haydon, o que fez maravilhosamente,
abençoado seja. E você esteve a favor dele até ao fim, coisa que só
podemos aplaudir.
Não me vinha nada à mente, de forma que não disse coisa nenhuma.
– E para revolver a faca numa ferida que já de si era bem grande, assim
que a Câmara Estrelada terminou o seu trabalho o Hans-Dieter foi
convocado para uma reunião de alto nível em Moscovo, desaparecendo
sem deixar rasto. Portanto adeus derradeiras esperanças de alguma vez ir
enfiar o nariz no Centro à última hora e dizer-nos quem era o traidor do
Circus. Provavelmente o Bill Haydon tinha lá chegado antes dele.
Podemos falar mais um pouco de si?
Eu não podia fazê-la parar; sendo assim, porquê tentar?
– Se me fosse permitido argumentar que Bambúrrio não era a maior
argolada de todos os tempos, mas sim uma operação diabolicamente
inteligente que foi altamente produtiva em termos de informações de
elevadíssimo grau e só descarrilou no último minuto, tenho muito poucas
dúvidas de que os membros da comissão parlamentar se rebolariam no
chão e poriam as patinhas no ar: a Liz e o Alec? Uma tragédia, sim, mas,
dadas as circunstâncias, baixas aceitáveis na causa do bem geral. Estou a
ganhar? Não. Valha-me Deus! Era só uma sugestão. Porque não me parece
que seja capaz de o defender de qualquer outra maneira. Aliás, tenho a
certeza de que não posso.
Tinha começado a arrumar as suas coisas: óculos, casaco de lã, lenços
de papel, relatórios do Special Branch, relatórios da Stasi.
– Falou, querido?
Falei? Nenhum de nós tem a certeza. Ela fez uma pausa na arrumação.
Tem a mala aberta no colo, à espera de que eu fale. Um anel de amor
eterno no dedo anular. É estranho eu não ter reparado nele até agora.
Pergunto a mim mesmo quem será o marido. Provavelmente já morreu.
– Escute lá.
– Continuo a escutar, coração.
– Aceitando por um momento a sua absurda hipótese…
– Que a operação diabolicamente inteligente funcionou…?
– Aceitando-a, teoricamente, o que não é de maneira nenhuma o meu
caso… está a dizer-me seriamente que… no caso impossível de alguma
vez virem a lume provas documentais nesse sentido…
– O que sabemos que não acontecerá, mas se alguma vez acontecesse,
teriam de ser de ferro fundido…
– Está a dizer-me que nessa improvável eventualidade, as imputações,
as acusações, o processo, tudo e mais alguma coisa contra quem quer que
seja, eu, o George, se o encontrarem, até contra o Serviço,
desapareceriam?
– Arranje-me as provas, que eu arranjo-lhe o juiz. Enquanto estamos
aqui a falar os abutres juntam-se. Se você não aparecer no julgamento, a
comissão vai recear o pior e agir em conformidade. Eu pedi o seu
passaporte ao Bunny. O estupor não abre mão dele. Mas vai prolongar a
sua estada em Dolphin Square nos mesmos termos mesquinhos. Tudo a
ser discutido. Amanhã à mesma hora dá-lhe jeito?
– Pode ser às dez?
– Estarei cá às dez em ponto – respondeu ela, e eu disse que também
estaria.
13

Quando a verdade nos alcança, não sejamos heróis. Fujamos. Mas eu


tive o cuidado de ir a passo, lentamente, por Dolphin Street e subir até ao
apartamento seguro onde sabia que nunca mais iria dormir. Correr as
cortinas, suspirar resignadamente pelo televisor, fechar a porta do quarto.
Extrair o passaporte francês da caixa de recolha de correio por detrás da
tabuleta de precauções em caso de incêndio. Há um ritual calmante na
fuga. Vestir uma muda de roupa lavada. Enfiar a navalha de barba na
algibeira da gabardina e deixar o resto no lugar. Descer até à
churrasqueira, encomendar uma refeição ligeira, pôr-me a ler o meu
enfadonho livro como um homem reconciliado com uma noite solitária.
Meter conversa com a empregada húngara para o caso de ela ter
responsabilidades de transmitir informações. Na realidade vivo em França,
digo-lhe eu, mas estou aqui para tratar de negócios com uma mancheia de
advogados ingleses, consegue ela imaginar alguma coisa pior, ah, ah?
Pagar a conta. Deambular até ao pátio com senhoras reformadas de
chapéus brancos e camisas de croquet, sentadas aos pares ao longo dos
bancos de jardim, gozar o sol extemporâneo. Preparar-me para me juntar
ao êxodo em direção ao Embankment, para nunca mais voltar.
Só que eu não faço nenhuma destas duas últimas coisas, porque nesta
altura avistei Christoph, o filho de Alec, com o seu comprido sobretudo
preto e chapéu de feltro, recostado a vinte metros num banco por sua
conta, com um braço afetuosamente passado pelo espaldar e uma perna
comprida cruzada sobre a outra, numa atitude de lazer, e a mão direita
enfiada, ostensivamente para eu ver, no bolso do sobretudo. Está a olhar
diretamente para mim e sorri, que é uma coisa que nunca o tinha visto
fazer, seja em criança a assistir a uma partida de futebol ou em adulto a
comer um bife com batatas fritas. E talvez o sorriso seja novidade para ele
também, porque surge com uma palidez singular do rosto, intensificada
pelo negrume do chapéu, e há um tremular no seu sorriso como o de uma
lâmpada avariada que não sabe se está acesa ou apagada.
E eu estou tão perplexo como ele parece estar. Apossou-se de mim um
cansaço que eu suspeito que seja medo. Ignorá-lo? Dirigir-lhe um aceno
jovial e prosseguir a minha planeada fuga? Ele há de ir atrás de mim. Há
de fazer alarido. Ele também tem um plano, mas qual é?
O sorriso doentiamente pálido continua a estremecer. Há qualquer coisa
no seu maxilar inferior, uma irritação que ele parece incapaz de controlar.
E terá mesmo partido o braço direito? Será por isso que o tem tão
desajeitadamente enfiado no bolso do sobretudo? Não faz qualquer
esforço por se levantar. Eu começo a andar na sua direção, detidamente
observado pelas senhoras sentadas dos chapéus brancos. Em todo o pátio,
somos os únicos dois homens, e Christoph constitui uma figura excêntrica,
para não dizer gigantesca, ocupando sozinho um palco inteiro. Que tenho
eu que ver com ele?, estão a interrogar-se. Eu também. Paro diante dele.
Nada dele se move. Dir-se-ia uma daquelas estátuas de bronze de grandes
homens que se veem sentadas em locais públicos: um Churchill, um
Roosevelt. A mesma tez húmida, o mesmo sorriso pouco convincente.
A estátua volta lentamente à vida de uma maneira diferente da das
outras estátuas. Descruza as pernas e a seguir, com o ombro direito
levantado e a mão direita ainda enfiada no bolso do sobretudo, desloca o
corpo volumoso até haver espaço no banco para mim à sua esquerda. E é
verdade, está doentiamente pálido e agitado na zona do maxilar, ora
sorrindo, ora fazendo uma careta, e o seu olhar é febril.
– Quem lhe disse onde podia encontrar-me, Christoph? – pergunto-lhe
eu o mais jovialmente que posso, porque nesta altura estou a braços com a
peregrina ideia de que Bunny ou Laura, ou mesmo Tabitha, o puseram no
meu encalço, com o objetivo de negociar qualquer outro tipo de acordo
por baixo da mesa entre o Serviço e os seus litigantes.
– Lembrei-me – com o sorriso a alargar-se, de orgulho sonhador. – Eu
sou um génio em termos de memória, certo? O cérebro da porra da
Alemanha. Portanto temos a nossa simpática refeição e você diz-me que
me vá foder. Pronto, não disse. Eu vou-me embora. Sento-me ao pé dos
amigos. Fumo um bocado, resmungo um bocado, escuto. O que é que
ouço? Quer arriscar?
Eu abano a cabeça. Estou também a sorrir.
– O meu pai. Ouço o meu pai. A voz dele. Num dos nossos pequenos
passeios juntos à volta do pátio da prisão. Eu estou a cumprir pena, e ele
está a tentar desempenhar o papel de quem recupera o tempo perdido, ser
o pai sempre fiel que nunca foi. Portanto está a falar de si próprio, a
entreter-me, a falar dos anos que não passámos juntos, como quem finge
que passámos. Como era ser espião. Como todos vocês eram especiais,
como eram dedicados. Os traquinas que vocês eram. E sabe uma coisa?
Ele está a falar da Hood House. A casa dos secretas. Essa piada que todos
vocês faziam. Que o Circus tinha aqueles reles apartamentos seguros num
sítio chamado Hood House. Nós somos todos secretas, de maneira que é
onde nos põem. – O sorriso torna-se um franzimento de indignação. –
Sabe que a merda do seu Serviço até o tem registado aqui com o seu
verdadeiro nome, foda-se? P. Guillam. Que tal como segurança? Sabia
disso? – inquiriu.
Não, não sabia. Tão-pouco estava espantado, como devia estar, pelo
facto de em mais de meio século o Serviço não ter pensado em alterar os
seus hábitos.
– Então porque é que não me diz o que veio fazer? – perguntei-lhe eu,
transtornado pelo seu sorriso, de que ele parecia incapaz de se libertar.
– Matá-lo, Pierrot – explicou ele, sem elevação nem variação da voz. –
Para lhe fazer saltar a porra dos miolos. Bingo. Está morto.
– Aqui? – perguntei eu. – Diante de toda esta gente? Como?
Com uma pistola semiautomática Walther P38: a que ele tirou do bolso
direito do sobretudo e agora está a brandir à vista de todos; e só depois de
decorrida uma porção de tempo para eu a admirar volta a metê-la na
algibeira, mantendo a mão sobre ela e, na melhor tradição dos filmes de
gangsters, apontando-me o cano através das dobras do sobretudo. O que
pensam as senhoras dos chapéus brancos desta exibição, se é que pensam
alguma coisa, nunca saberei: talvez que somos uma equipa de filmagens.
Talvez que somos apenas uns rapazes crescidos patetas, a fazer um jogo
com uma pistola de brinquedo.
– Santo Deus! – exclamo eu (uma expressão que até hoje nunca utilizei
conscientemente na vida) –, onde foi você desencantar isso?
A pergunta aborreceu-o, extinguindo o sorriso.
– Julga que eu não conheço mafiosos na porra desta cidade? Pessoas
que me emprestem uma pistola assim sem mais nem menos? – inquiriu ele,
fazendo estalar o polegar e o indicador da mão livre diante do meu rosto.
Instigado pela palavra «emprestem», perscrutei instintivamente em
redor à procura do legítimo possuidor, uma vez que não estava a imaginar
um empréstimo de longo prazo: foi por isso que os meus olhos deram em
poisar numa carrinha Volvo reparada com várias cores e estacionada num
duplo traço amarelo mesmo defronte da arcada do lado do Embankment; e
o seu único condutor calvo com ambas as mãos no volante, a olhar
fixamente para diante através do para-brisas.
– Tem alguma razão especial para me matar, Christoph? – perguntei-lhe
eu, mantendo o melhor que podia o mesmo tom de pergunta
despreocupada. – Falei da sua oferta aos poderes constituídos, se é isso
que o preocupa – acrescentei mentirosamente. – Estão a pensar nela. Os
responsáveis pelas massas de Sua Majestade não arranjam um milhão de
euros da noite para o dia, naturalmente.
– Eu era a melhor coisa da desgraçada vida dele. Ele disse-me isso.
Dito num tom grave, pronunciado a custo através dos dentes rígidos.
– Eu nunca duvidei de que ele o amava – disse eu.
– Você matou-o. Mentiu ao meu pai e matou-o. O seu amigo, o meu pai.
– Isso não é verdade, Christoph. O seu pai e a Liz Gold não foram
mortos por mim nem por ninguém do Circus. Foram mortos por Hans-
Dieter Mundt, da Stasi.
– Vocês são todos doentes. Todos vocês, os espiões. Não são a cura, são
a porra da doença. Artistas de merda, a fazerem jogos de merda, julgando-
se a porra dos tipos mais espertos do universo. Vocês não são nada, está a
ouvir? Vivem na porra da escuridão porque não são capazes de lidar com a
porra da claridade. Ele também. Ele disse-me isso.
– Disse? Quando?
– Na prisão, onde raio julgava você que fosse? A minha primeira prisão.
Uma prisão de miúdos. Tarados sexuais, drogados e eu. Tens uma visita,
Christoph. Diz que é o teu melhor amigo. Algemam-me e levam-me até ao
pé dele. É o meu pai. Escuta isto, diz ele. És um caso perdido e já não há
porra nenhuma que eu ou quem quer que seja possa fazer por ti. Mas Alec
Leamas ama o filho, portanto nunca se esqueça disso, porra. Falou?
– Não.
– Ponha-se em pé, porra. Caminhe. Para aquele lado. Pela arcada. Como
o resto das pessoas. Se me lixar, mato-o.
Ponho-me em pé e caminho até à arcada. Ele segue-me, com a mão
direita ainda no bolso e a pistola apontada para mim através do tecido. Há
coisas que se supõe que façamos nestes casos, como girar nos calcanhares
e atingi-lo com o cotovelo antes que ele tenha tempo de disparar. Em
Sarratt praticávamos isso com pistolas de água e era frequente a água
esguichar sem nos atingir e acertar no colchão do ginásio. Mas aqui não é
uma pistola de água nem estamos em Sarratt. Christoph caminha um
metro atrás de mim, que é onde o atirador bem ensinado deve estar.
Passámos pela arcada. O careca sentado na carrinha Volvo multicor
continua com as mãos no volante e, embora estejamos a andar na sua
direção, não nos presta atenção, está demasiado ocupado a olhar para
diante. Tencionará Christoph levar-me a dar a proverbial volta antes de me
vibrar o golpe de misericórdia? Se assim for, a minha melhor hipótese de
me libertar ocorrerá quando ele tentar enfiar-me na carrinha Volvo. Já uma
vez o fiz, há muito tempo: parti a mão do homem com a porta do carro
quando ele tentava fazer-me entrar para o banco de trás.
Passam outros carros em ambas as direções e temos de esperar por uma
aberta no trânsito antes de atravessarmos a rua, e eu pergunto a mim
mesmo se terei alguma possibilidade de lutar com ele e na pior das
hipóteses atirá-lo de encontro a um carro que venha contra nós. Chegámos
ao passeio do outro lado e eu continuo a interrogar-me. Também passámos
pela carrinha Volvo sem que tenham sido trocados qualquer sinal ou
palavra entre Christoph e o condutor calvo, de maneira que talvez eu
esteja enganado e eles não tenham nada que ver um com o outro, e quem
quer que emprestou a Walther a Christoph esteja sentado em Hackney ou
algures a jogar uma partida de cartas com os seus colegas mafiosos.
Estamos postados no Embankment; há um parapeito de tijolos de um
metro e meio de altura e eu estou de frente para ele, com o rio diante de
mim e as luzes de Lambeth na outra margem porque já é ao entardecer,
ainda ameno para a hora, com uma brisa agradável a levantar-se e barcos
bem grandes a passar, e eu tenho as mãos no parapeito e estou de costas
para ele e espero que ele se aproxime o suficiente para tentar o
estratagema da pistola de água, mas sinto a sua presença e ele não está a
falar.
Mantendo as mãos onde ele as possa ver, viro-me lentamente e ele está
postado a dois metros de mim, ainda com a mão no bolso. Respira às
golfadas e o seu largo rosto pálido está húmido e luminoso à meia-luz. As
pessoas passam por nós, mas não pelo meio de nós. Há qualquer coisa em
nós que as faz contornarem-nos. Mais rigorosamente, é qualquer coisa no
corpanzil de Christoph, no sobretudo e no chapéu de feltro. Estará ele a
brandir a arma de novo, ou tê-la-á no bolso? Continuará a assumir a sua
postura de gangster? Ocorre-me, tardiamente, que o homem que veste
daquela maneira quer ser temido; e o homem que quer ser temido tem ele
próprio medo, e talvez seja isso que me dê a fanfarronice para o desafiar.
– Vamos, Christoph, força – digo eu, na altura em que um casal de meia-
idade passa apressadamente. – Dispare, se é para isso que veio. O que é
mais um ano para um homem da minha idade? Contento-me com uma
morte limpinha em qualquer momento. Dispare. Depois passe o resto da
vida a congratular-se enquanto apodrece na cadeia. Já viu velhos
morrerem na prisão. Seja mais um.
Nesta altura os músculos das minhas costas estão a contorcer-se e há um
pulsar a martelar-me nos ouvidos e não seria capaz de vos dizer se vinha
de uma barcaça a passar ou se era alguma coisa que se passava na minha
própria cabeça. Tinha a boca seca de tanto falar e a vista deve ter-se-me
toldado, porque levei um pedaço a perceber que Christoph estava ao meu
lado, debruçado sobre o parapeito, a vomitar e a soluçar em golfadas de
dor e raiva.
Passei-lhe um braço pelas costas e arranquei-lhe a mão direita do bolso.
Quando ela apareceu sem pistola nenhuma, tirei-a por ele e arremessei-a
ao rio para o mais longe que pude, mas não ouvi nada em resposta. Ele
poisara os braços sobre o parapeito e mergulhara a cabeça entre eles.
Vasculhei-lhe o outro bolso, para o caso improvável de ele se ter munido
de um carregador sobresselente para se encorajar, e claro que tinha.
Acabara de o lançar também ao rio quando o careca da carrinha Volvo
multicor, que ao contrário de Christoph era muito baixo e parecia meio
morto de fome, o agarrou por detrás pela cintura e puxou por ele, sem
êxito.
Entre os dois arrancámo-lo do parapeito e entre os dois levámo-lo à
força até à carrinha Volvo. Ao fazermo-lo, ele começou a gemer. Eu ia
para abrir a porta ao lado do condutor, mas o meu companheiro de armas
já tinha aberto a porta de trás. Entre os dois enfiámo-lo lá dentro e
fechámos a porta com força, amortecendo mas não silenciando os
gemidos. A carrinha Volvo arrancou. Eu fiquei sozinho no passeio. Aos
poucos, o trânsito e os sons voltaram. Estava vivo. Mandei parar um táxi e
pedi ao motorista para me levar ao Museu Britânico.
*

Primeiro o beco empedrado. Depois o estacionamento privado que


tresandava a lixo apodrecido. Depois as seis estreitas cancelas: a nossa era
a última do lado direito. Se os gemidos de Christoph ainda me ressoavam
nos ouvidos, eu recusava-me a ouvi-los. O fecho da cancela rangeu. Isso
ouvi eu, sem dúvida. Sempre rangera, por mais vezes que o
lubrificássemos. Se sabíamos que o Controlo lá ia, deixávamos a cancela
aberta, a fim de não termos de ouvir o azedo comentário do velho
demónio acerca de ser anunciado pelo toque de címbalos. Lajes de pedra
de York. Tínhamos sido Mendel e eu a assentá-las. E relva semeada entre
eles. A nossa casa de pássaros. Nenhum pássaro recusado. Três degraus
até à porta da cozinha, e a sombra imóvel de Millie McCraig a olhar para
mim cá em baixo pela janela, de mão no ar, a proibir-me a entrada.
Estamos num barracão de jardim improvisado, erguido contra o muro
para abrigar os baldes de lixo dela e os restos da sua bicicleta urbana de
senhora, posta fora de casa por Laura, embrulhada num oleado e com as
rodas tiradas por uma questão de segurança. Falamos em murmúrios.
Talvez sempre o tenhamos feito. O gato classificado observa pela janela
da cozinha.
– Não sei o que eles cá puseram, Peter – confidencia-me ela. – Não
confio no meu telefone. Bem, nunca confiei. Também não confio nas
minhas paredes. Não sei de que é que eles hoje em dia dispõem nem onde
o colocam.
– Ouviu o que a Tabitha me disse acerca de provas?
– Ouvi parte. O suficiente.
– Ainda tem tudo aquilo que eu lhe dei? Os depoimentos originais, a
correspondência, tudo o mais que o George lhe pediu para esconder?
– Posto em micropontos por mim. Escamoteado. Tenho, pois.
– Onde?
– No meu jardim. Na minha casa de pássaros. Nas respetivas cassetes.
Em oleados. Nisto – isto eram os restos da sua bicicleta. – Hoje em dia
eles não sabem onde procurar. Não têm formação como deve ser –
acrescenta, indignadamente.
– Incluindo a entrevista do George com Bambúrrio no Campo 4? A
entrevista de recrutamento? O acordo?
– Tenho. Como parte da minha coleção clássica de discos de gramofone.
Transferida para mim pelo Oliver Mendel. Ouço-os de vez em quando.
Por causa da voz do George. Ainda a adoro. Você é porventura casado,
Peter?
– Só com a herdade e os animais. Quem é que você tem, Millie?
– Tenho as minhas recordações. E o meu Criador. A nova malta deu-me
até segunda-feira para sair. Não vou fazê-los esperar.
– Para onde é que vai?
– Hei de morrer. Tal como você. Tenho uma irmã em Aberdeen. Não lhe
entrego as coisas, Peter, se foi para isso que veio.
– Nem pelo bem geral?
– Não há bem geral sem o beneplácito de George. Nunca houve.
– Onde está ele?
– Não sei. E se soubesse não lhe dizia. Vivo, decerto. Os postais que
recebo no meu aniversário e pelo Natal. Ele nunca se esquece. Sempre
para a minha irmã, nunca para aqui, segurança. O costume.
– Se eu tivesse de o descobrir, a quem deveria dirigir-me? Há alguém,
Millie. Você sabe quem é.
– Talvez o Jim. Se ele lho disser.
– Posso telefonar-lhe? Qual é o número dele?
– O Jim não é pessoa de telefones. Deixou-se disso.
– Mas está no mesmo sítio?
– Creio que sim.
Sem uma palavra mais, agarra-me pelos ombros com as suas mãos
fortes e magricelas e concede-me um único austero beijo dos seus lábios
selados.
*

Nessa noite fui até Reading e fiquei num hotel próximo da estação
ferroviária onde ninguém se preocupava com nomes. Se ainda não tinha
sido dado como desaparecido de Dolphin Street, a primeira pessoa a dar
pela minha ausência seria Tabitha às dez horas da manhã seguinte, não às
nove. Se houvesse alvoroço, não estava a ver que ele se armasse antes do
meio-dia. Tomei o pequeno-almoço com vagar, comprei um bilhete para
Exeter e segui de pé no corredor de um comboio superlotado até Taunton.
Passando pelo parque de estacionamento, dirigi-me aos arredores da
cidade e deambulei por lá à espera do anoitecer.
Não punha a vista em cima de Jim Prideaux desde que o Controlo o
tinha enviado para a missão abortada na Checoslováquia que lhe valera
uma bala nas costas e a atenção insone de uma equipa de torturadores
checos. De nascimento, éramos ambos arraçados: Jim meio checo e meio
normando, ao passo que eu sou bretão. Mas as comparações ficavam-se
por aí. A marca de eslavo era profunda em Jim. Em rapaz, tinha passado
mensagens e cortado gargantas alemãs na Resistência Checa. Cambridge
pode tê-lo educado, mas nunca o domesticou. Quando entrou para o
Circus, até os instrutores de luta corpo a corpo de Sarratt aprenderam a
temê-lo.
Um táxi deixou-me junto ao portão principal. Uma tabuleta verde
enlameada tinha escrito: AGORA ABERTO A RAPARIGAS. Uma
esburacada estrada de acesso conduzia sinuosamente a uma imponente
casa dilapidada rodeada de atarracados edifícios prefabricados.
Escolhendo o caminho pelo meio dos buracos, passei por um campo de
jogos, um pavilhão de críquete a cair aos pedaços, um par de casas de
trabalhadores e um grupo de póneis desgrenhados a pastar num relvado.
Passaram dois rapazes de bicicleta, o mais corpulento com um violino às
costas e o mais pequeno com um violoncelo. Mandei-os parar com um
gesto.
– Estou à procura de Mr. Prideaux – disse. Eles olharam
inexpressivamente um para o outro. – Faz parte do pessoal docente daqui,
segundo me disseram. Ensina línguas. Ou ensinava, dantes.
O rapaz mais corpulento abanou a cabeça e começou a arrancar.
– Não estará porventura a referir-se ao Jim? – perguntou o mais novo. –
Um velhote coxo. Vive numa caravana na Cova. Dá Francês Extra e
Râguebi Infantil.
– Onde é a Cova?
– Siga pela esquerda a seguir à Casa da Escola e desça pelo carreiro até
ver um Alvis antigo. A verdade é que estamos atrasados.
Sigo pela esquerda. Por detrás das altas janelas, rapazes e raparigas
estão debruçados nas carteiras sob luzes de néon brancas. Ao chegar ao
outro lado do edifício, passei por uma avenida de salas de aula
temporárias. Um carreiro que desce até a uma pequena mata de pinheiros.
Diante deles, por baixo de um encerado, a silhueta de um carro de coleção,
e ao lado desta uma caravana com uma luz acesa por detrás da janela
tapada por uma cortina. Ouviam-se através dela acordes de Mahler. Bati à
porta e uma voz roufenha respondeu furiosa.
– Vai-te embora, rapaz! Fous-moi la paix!25 Vai à procura.
Contornei a janela tapada pela cortina e, com uma caneta que tirei do
bolso, levantei o braço e fiz soar o meu sinal identificador, após o que lhe
dei tempo para poisar a pistola, se era isso que estava a fazer, porque com
Jim nunca se sabe.
*

Com uma garrafa de slivovitz na mesa, meio bêbedo, Jim foi buscar um
segundo copo e desligou o gira-discos. À luz de petróleo o seu rosto
anfractuoso está deformado pela dor e pela idade e as costas assimétricas
estão apoiadas no estofo ordinário. Os torturados são uma classe à parte.
Pode imaginar-se (dificilmente) onde eles estiveram, mas nunca o que
trouxeram consigo.
– A porra da escola veio por aí abaixo – regouga ele, com um acesso de
riso febril. – Thursgood, era o nome do sujeito. Diretor. Uma mulher
absolutamente satisfatória. Um par de filhos. Acontece que era o raio dum
maricas – declarou, com exagerado escárnio. – Pirou-se com o cozinheiro
da escola. Levou as propinas com ele. Para a Nova Zelândia ou lá para
onde foi. Não havia o suficiente no fundo para pagar ao pessoal até ao fim
da semana. Nunca pensei que ele tivesse essa inclinação. Bem – dando
uma risadinha enquanto volta a encher-nos os copos –, o que havemos de
fazer, hein? Não podemos deixar os miúdos em apuros, no meio dum ano
escolar. Os exames à porta. Os encontros dos onze melhores. Os prémios
escolares. Eu tinha a minha pensão, mais um pequeno adicional por ter
levado uma porrada. Alguns pais deram uma contribuição. O George
conhecia um banqueiro. Bem, depois disso, a escola não me vai pôr no
olho da rua, não é? – Bebeu, olhando para mim por cima do copo. – Não
me vão despachar para a Checoslováquia outra vez à procura duma agulha
num palheiro, pois não? Agora que estão novamente a fazer-se
amiguinhos de Moscovo.
– Preciso de falar com o George – disse eu.
Durante um pedaço não aconteceu nada. Do mundo que ia escurecendo
lá fora, apenas o sussurrar das árvores e o gemido do gado. E, diante de
mim, o corpo cambado de Jim içado, imóvel, de encontro à parede da
pequena caravana, e o seu olhar fixo de eslavo a olhar carrancudamente
para mim por baixo de umas irregulares sobrancelhas negras.
– Foi porreiro para mim ao longo dos anos, o velho George. Ajudando
um tipo estafado, que não agradava a toda a gente. Não sei bem se ele
precisa de si, com franqueza. Tem de lhe perguntar.
– Como é que faria isso?
– Não é um jogador inato no jogo da espionagem, o George. Não sei
como se meteu nele. Arcava com tudo em cima dos ombros. No nosso
ofício não se pode fazer isso. Não podemos sentir toda a dor do outro
parceiro como a nossa. Isto, se quisermos continuar. A sacana da mulher
dele tinha uma data de coisas pelas quais responder, na minha opinião.
Que diabo andava ela a tramar? – perguntou ele, e calou-se mais uma vez,
fazendo uma careta e desafiando-me a responder à sua pergunta.
Mas Jim nunca tinha gostado muito de mulheres, e não havia resposta
que eu lhe pudesse dar que não incluísse o nome da sua Némesis e seu
antigo amante Bill Haydon, que o recrutara para o Circus, o denunciara
aos seus patrões e de caminho dormira com a mulher de Smiley como
camuflagem.
– Ficou todo transtornado com o Karla, logo com ele – estava a queixar-
se, ainda sobre o tema de Smiley. – O espertalhão do filho da mãe do
Centro de Moscovo que recrutou todos aqueles tipos a longo prazo contra
nós.
Dos quais Bill Haydon era o mais espetacular, poderia ter acrescentado,
caso fosse capaz de pronunciar o nome do homem cujo pescoço tinha
supostamente quebrado com as próprias mãos quando Haydon estava a
definhar em Sarratt, à espera de ser expedido para Moscovo no âmbito de
um acordo de troca de agentes.
– Primeiro, o velho George convence o Karla a vir ao Ocidente.
Descobre o seu ponto fraco e trabalha nele, tudo por seu mérito. Faz o
debriefing ao sujeito. Arranja-lhe um nome e um emprego na América do
Sul. A ensinar Estudos Russos a latino-americanos. Realoja-o. Nada que
dê demasiado trabalho. Anos mais tarde o sacana mata-se e despedaça o
coração do George. Como raio aconteceu aquilo? Eu disse-lhe: o que é
que lhe deu, George? O Karla matou-se. Que passe muito bem! Foi
sempre o problema do George, ver ambos os lados de tudo. Isso esgotou-
o.
Com um grunhido de dor ou censura, serviu outra dose de slivovitz a
ambos.
– Anda fugido, porventura? – inquiriu.
– Ando.
– Para França?
– Sim.
– Que tipo de passaporte?
– Britânico.
– A Repartição já pôs o seu nome a circular?
– Não sei. Estou a jogar em que não.
– Southampton é a sua melhor aposta. Não dê nas vistas e apanhe um
ferry do meio-dia cheio de gente.
– Obrigado. É o que tenciono fazer.
– Não é por causa de Tulipa, pois não? Não vai desenterrar isso, pois
não? – cerrando um punho e atravessando-o diante da boca como que para
afastar com um soco uma recordação intolerável.
– É toda a operação Bambúrrio – disse eu. – Há uma comissão
parlamentar gigante que tem a faca apontada ao Circus. Na ausência do
George, puseram-me a mim como o vilão da peça.
Mal eu tinha pronunciado as palavras, ele pregou um murro na mesa
entre nós, fazendo tilintar os copos.
– O George não é para aqui chamado! Foi o filho da mãe do Mundt que
a matou! Foi ele que matou todos! Matou o Alec e a rapariga dele!
– Bem, isso é uma coisa que temos de ser capazes de dizer em tribunal,
Jim. Eles acusam-me de tudo e mais alguma coisa. E talvez a si também,
se conseguirem desencantar o seu nome nos ficheiros. Por isso preciso
imenso do George. – E, como ele continuasse a não reagir: – Então como
é que eu contacto com ele?
– Não pode.
– E como é que você faz?
Outro silêncio irado.
– Cabinas telefónicas, se quer saber. Locais não, nessas nem lhes toco.
Nunca duas vezes a mesma. Combinamos sempre o próximo treff
antecipadamente.
– Você para ele? Ele para si?
– Um bocado de ambas as coisas.
– O telefone dele é todas as vezes o mesmo?
– Pode ser.
– É um telefone fixo?
– Pode ser.
– Então sabe onde pode encontrá-lo, não sabe?
Tirando um caderno de exercícios escolares de uma pilha ao seu lado,
arrancou uma folha em branco. Eu passei-lhe um lápis.
– Kollegiengebäude drei – entoou ele enquanto escrevia. – Biblioteca.
Uma mulher chamada Friede. Chega-lhe? – e, entregando-me a folha,
recostou-se, de olhos fechados, aguardando que eu o deixasse em paz.
*

Não era verdade que eu tencionasse apanhar um ferry do meio-dia cheio


de gente em Southampton. Não era verdade que viajasse com um
passaporte britânico. Não me agradava enganá-lo, mas com Jim nunca se
sabia.
Um voo matutino de Bristol levou-me até Le Bourget. Ao descer a
escada, fui assaltado por recordações de Tulipa: esta foi a minha última
visão de ti viva; foi aqui que te prometi que não tardarias a reunir-te a
Gustav; foi aqui que rezei para que voltasses a cabeça, mas não chegaste
a fazê-lo.
De Paris, apanhei um comboio para Basileia. Quando me apeei em
Friburgo, toda a raiva e perplexidade que tinha reprimido durante dias
vieram à tona em catadupas. Quem era de responsabilizar pela minha vida
de obediente encobrimento, senão George Smiley? Era eu que tinha
sugerido que devia tornar-me amigo de Liz Gold? Tinha sido ideia minha
mentir a Alec, a nossa cabra presa, como lhe chamara Tabitha, e depois
vê-lo ir direito à armadilha que George tinha preparado para Mundt?
Bem, agora vamos ao ajuste de contas, por fim. Agora vamos a
respostas diretas a perguntas difíceis, como: você, George, propôs-se
conscientemente suprimir a humanidade que há em mim, ou também eu
fui um dano colateral? Como: e quanto à sua humanidade, e por que razão
é que ela teve sempre de estar em segundo plano em relação a uma causa
mais elevada e mais abstrata que eu já não consigo identificar, se é que
alguma vez o consegui?
Ou, dito de outra maneira: de quanto do nosso sentimento humano
podemos prescindir em nome da liberdade, diria você, antes de deixarmos
de nos sentir humanos ou livres? Ou estávamos simplesmente a padecer
da incurável doença inglesa de precisar de jogar o jogo do mundo quando
já não éramos jogadores no plano mundial?
A biblioteca do Kollegiengebäude Número Três, disse-me a prestável
senhora da receção chamada Friede com algum vigor, ficava no prédio em
frente, do outro lado do pátio, passando pelo grande portal e virando à
direita. Não estava assinalada BIBLIOTECA, e na realidade não era uma
biblioteca, mas sim uma comprida e sossegada sala de leitura reservada
para estudiosos de visita.
E poderia eu ter presente, por favor, que o silêncio era a regra?
*

Não sei se Jim tinha avisado George de algum modo de que eu ia ter
com ele, ou se ele pressentiu simplesmente a minha presença. Estava
sentado a uma secretária juncada de papéis, no vão de uma janela, de
costas para mim, um ângulo que lhe proporcionava luz para ler e, quando
dela precisava, a paisagem das colinas e florestas circundantes. Tanto
quanto me foi dado ver, não havia mais ninguém na sala: apenas uma
fiada de nichos revestidos de madeira com secretárias e confortáveis
cadeiras vazias. Dei a volta até podermos ver-nos um ao outro. E, visto
que George sempre parecera mais velho do que era, fiquei aliviado ao ver
que não me aguardava uma surpresa desagradável. Era o mesmo George,
tendo apenas atingido a idade que sempre parecera ter; mas George de
pulôver vermelho e calças de bombazina amarelo-clara, o que me
espantou porque sempre o tinha visto somente com um fato de má
qualidade. E se as suas feições em repouso conservavam a tristeza de
mocho, não havia tristeza na sua saudação quando, com um surto de
energia, se pôs em pé de um salto e me estreitou a mão entre ambas as
suas.
– Então o que é que está para aí a ler? – protesto eu erraticamente,
mantendo a voz baixa porque o silêncio era a regra.
– Oh, meu caro, nem sequer pergunte. Um antigo espião na caquexia
procura a verdade dos tempos. Você está com um ar vergonhosamente
jovem, Peter. Tem andado nas suas habituais travessuras?
Está a juntar os seus livros e papéis e a guardá-los num cacifo. Levado
pelo antigo hábito, dou-lhe uma ajuda.
E uma vez que isto não é o género de local para a minha projetada
confrontação, pergunto-lhe como está Ann.
– Está bem, obrigado, Peter. Sim. Muito bem, atendendo às
circunstâncias – fechando o armário e enfiando a chave no bolso. – Vem
ver-me de vez em quando. Passeamos. Na Floresta Negra. Não
propriamente as maratonas de antigamente, confesso. Mas passeamos.
A nossa conversa abafada chega ao fim quando uma senhora idosa entra
e, depois de se desfazer com dificuldade do saco a tiracolo, espalha os
seus papéis, põe os óculos de ler, ajustando-os a uma orelha de cada vez,
e, com um sonoro suspiro, instala-se num dos nichos. E eu penso que foi o
seu suspiro que minou o que me restava de determinação.
*

Sentamo-nos no espartano apartamento de solteiro de George, que fica


numa colina sobranceira à cidade. Ele escuta como ninguém que eu
alguma vez tenha conhecido. O seu pequeno corpo entra numa espécie de
hibernação. As longas pálpebras semicerram-se. Não há um franzir da
testa, não há um aceno de cabeça, nem sequer um arquear de sobrancelhas
até terminarmos. E quando terminamos – e ele se certificou de que
terminámos, chamando-nos à pedra relativamente a qualquer aspeto
obscuro que omitimos ou camuflámos – continua a não haver surpresa,
nem momento avaliativo de aprovação ou do contrário. Foi, por isso, tanto
mais surpreendente que, quando eu cheguei penosamente ao final da
minha longuíssima narrativa – com o dia a declinar e a cidade lá em baixo
a desaparecer sob sudários de névoa vespertina e as luzes a espreitarem
através deles –, ele corresse ruidosamente e com grande energia as
cortinas sobre o mundo e desse largas a uma fúria tão desenfreada como
eu nunca lhe ouvira.
– Os cobardes. Os grandessíssimos cobardes. Isso é odioso, Peter.
Karen, é como você diz que ela se chama? Vou procurar imediatamente a
Karen. Talvez ela me deixe entrar e conversar com ela. Ou melhor, pago-
lhe a passagem de avião até cá, se ela estiver de acordo. E se o Christoph
quiser falar comigo, o melhor é que o faça. – E após uma pausa algo
enervante: – E o Gustav também, claro. Já foi marcada a data para o
julgamento, diz você? Eu presto um depoimento. Fá-lo-ei sob juramento.
Oferecer-me-ei como testemunha da verdade. No tribunal que eles
escolherem.
«Eu não sabia nada disto – continuou, no mesmo tom furioso. – Nada.
Ninguém me procurou, ninguém me informou. Tenho estado
eminentemente contactável, mesmo em retiro – insistiu, sem explicar do
que se estava a retirar. – Os Estábulos? – continuou sem parar, indignado.
– Julgava que já estavam fechados há muito. Quando eu saí do Circus
devolvi a minha procuração aos advogados. O que aconteceu depois disso,
nem imagino. Nada, aparentemente. De inquéritos parlamentares?
Processos judiciais? Nem uma palavra, nem um sussurro. Porquê? Eu lhe
digo porquê. Porque eles não queriam que eu soubesse. Eu estava
demasiado acima na hierarquia para o gosto deles. Já estou a ver tudo. Um
antigo Chefe das Encobertas no banco dos réus? A admitir que sacrificou
um ótimo agente e uma mulher inocente numa causa de que o mundo
quase não se lembra? E tudo isso planeado e perdoado pessoalmente pelo
Chefe do Serviço? Isso não cairia nada bem aos nossos modernos patrões.
Nada deve manchar a respeitada imagem do Serviço. Valha-me Deus.
Escusado será dizer que vou dar instruções imediatas à Millie McCraig
para divulgar todos os papéis e tudo o mais que confiei à sua guarda –
continua, com voz mais calma. – Bambúrrio persegue-me até hoje. Há de
perseguir-me sempre. Responsabilizo-me inteiramente a mim próprio.
Contava com a desumanidade do Mundt, mas subestimei-a. A tentação de
matar as testemunhas era simplesmente grande de mais para ele.
– Mas, George – protesto eu –, Bambúrrio era uma operação do
Controlo. Você limitou-se a concordar com ela.
– O que é de longe o maior pecado, receio bem. Posso oferecer-lhe o
sofá, Peter?
– Por acaso reservei um quarto em Basileia. É um pulo. Apanho o
comboio para Paris de manhã.
Era mentira, e acho que ele adivinhou que o era.
– Então o seu último comboio é às onze e dez. Posso convidá-lo para
jantar antes de seguir viagem?
Por razões demasiado profundas em mim para discutir, não achara por
bem falar-lhe da abortada tentativa de Christoph para me matar, e muito
menos da tirada do pai, Alec, contra o Serviço ao qual apesar disso tinha
amor. Contudo, as palavras seguintes de George podiam muito bem ser
encaradas como uma resposta à peroração de Christoph:
– Nós não éramos desapiedados, Peter. Nunca fomos desapiedados.
Éramos os que tinham maior piedade. Possivelmente era mal aplicada. E
era sem dúvida inútil. Agora sabemo-lo. Na altura não sabíamos.
Pela primeira vez que eu me lembre, aventurou-se a poisar-me uma mão
no ombro, para logo a retirar como se eu o tivesse queimado.
– Mas você sabia, Peter! Claro que sabia. Você e o seu bom coração. Se
assim não fosse, por que razão havia de procurar o pobre Gustav? Eu
admirei-o por isso. Fiel ao Gustav, fiel à sua pobre mãe. Ela foi uma
grande perda para si, tenho a certeza.
Eu não fazia ideia de que ele tinha conhecimento do meu mal
alinhavado esforço no sentido de dar uma ajuda a Gustav, mas não fiquei
indevidamente surpreendido. Este era o George que eu recordava:
omnisciente em relação à fragilidade dos outros, ao mesmo tempo que se
recusava estoicamente a reconhecer a sua.
– E a sua Catherine, está bem?
– Está, sim, está muito bem, obrigado.
– E o filho? É um filho, não é?
– Filha, aliás. Está ótima.
Ter-se-ia ele esquecido de que Isabelle era uma rapariga? Ou estaria
ainda a pensar em Gustav?
*

Uma velha estalagem perto da catedral. Troféus de caça sobre lambrins


pretos. A casa está aqui desde sempre, ou foi arrasada pelos
bombardeamentos e reconstruída com a ajuda de estampas antigas. Hoje a
especialidade da casa é veado guisado. George recomenda-o, e um vinho
de Baden para acompanhar. Sim, ainda vivo em França, George. Ele está
satisfeito comigo. Passou a morar em Friburgo?, pergunto-lhe eu. Ele
hesita. Temporariamente, sim, Peter, passou. Até quando, logo se veria.
Depois, como se o pensamento só agora lhe viesse à mente, embora eu
suspeite que esteve durante todo o tempo a pairar entre nós:
– Creio que veio acusar-me de qualquer coisa, Peter. Acertei? – E,
quando é a minha vez de hesitar: – Foi pelas coisas que fizemos, diga lá?
Ou por que razão as fizemos sequer? – inquire, num tom extremamente
amável. – Por que razão eu as fiz, o que é mais pertinente. Você era um
leal soldado raso. Não lhe cabia a si perguntar por que razão o Sol nascia
todas as manhãs.
Eu podia ter questionado isto, mas receava cortar o fio à meada.
– Pela paz mundial, seja isso o que for? Sim, sim, claro. Não haverá
guerra, mas na luta pela paz não ficará pedra sobre pedra, como
costumavam dizer os nossos amigos russos. – Cala-se, apenas para voltar
mais vigorosamente à carga: – Ou foi tudo no grande nome de
capitalismo? Livre-nos Deus. Da cristandade? Livre-nos Deus também.
Um gole de vinho, um sorriso de perplexidade, dirigido, não a mim, mas
a si próprio.
– Então terá sido tudo pela Inglaterra? – prosseguiu. – Houve tempos,
claro que houve. Mas a Inglaterra de quem? Qual Inglaterra? A Inglaterra
sozinha, um cidadão de nenhures? Eu sou europeu, Peter. Se eu tinha uma
missão, se alguma vez tive consciência de alguma para além da nossa
questão com o inimigo, era para com a Europa. Se eu era desumano, era
desumano pela Europa. Se tinha um ideal inatingível, era o de conduzir a
Europa das suas trevas a uma nova era da razão. Ainda a tenho.
Um silêncio, mais profundo do que qualquer outro de que me lembrasse,
mesmo nos piores tempos. Os contornos fluidos do rosto imobilizados, a
testa inclinada para diante, as pálpebras sombrias descaídas. Um indicador
sobe distraidamente até à ponte dos óculos, para verificar se eles ainda
estão no sítio. Até que, com uma abanadela da cabeça como que para se
libertar de um sonho mau, sorriu.
– Desculpe, Peter. Estou a pontificar. Temos dez minutos de caminho até
à estação. Permite que lhe faça companhia?
25 Em francês no original: Deixa-me em paz. (N. do T.)
14

Escrevo isto sentado à minha secretária da casa da herdade de Les Deux


Églises. Os acontecimentos que descrevi passaram-se há muito, mas são
tão reais para mim hoje como o vaso de begónias ali poisado no peitoril da
janela, ou as medalhas do meu pai a cintilar no seu estojo de mogno.
Catherine adquiriu um computador. Diz-me que está a fazer progressos.
Ontem à noite fizemos amor, mas era Tulipa que eu tinha nos braços.
Ainda vou lá abaixo à enseada. Levo a bengala. O caminho é custoso,
mas consigo. Por vezes o meu amigo Honoré está lá antes de mim,
acaçapado no costumeiro pedaço de rocha com um frasco de cidre
encaixado entre as botas. Na primavera apanhámos ambos a camioneta
para Lorient e, por insistência dele, caminhámos pela marginal onde a
minha mãe costumava levar-me a ver os grandes barcos que partiam para
partes do Oriente. Hoje está desfigurada por monstruosos bastiões de
cimento construídos pelos alemães para os seus submarinos. Não houve
bombardeamentos dos Aliados capazes de lhes fazer mossa, mas a cidade
foi arrasada. Portanto ali estão, da altura de seis andares, tão eternos como
as pirâmides.
Estava a perguntar a mim mesmo por que razão Honoré me trouxera ali,
quando ele parou de súbito e gesticulou iradamente na direção deles.
– O filho da mãe vendeu-lhes o cimento – protestou, com a sua esquisita
voz bretã.
Filho da mãe? Levo um bocado a atingir. Claro: está a referir-se ao
falecido pai, que foi enforcado por colaborar com os alemães. Ele está a
pretender que eu me escandalize, e fica satisfeito por isso não acontecer.
No domingo tivemos o primeiro nevão do inverno. O gado está
desolado por ficar fechado. Isabelle já está uma rapariga crescida. Ontem,
quando falei com ela, sorriu olhando-me bem de frente. Acreditamos que
um dia falará, por fim. E lá vem Monsieur le Général, serpenteando pela
colina acima na sua carrinha amarela. Talvez traga uma carta de Inglaterra.
AGRADECIMENTOS

Os meus sinceros agradecimentos a Théo e Marie Paule Guillou pela


sua generosa e esclarecedora orientação através do Sul da Bretanha; a
Anke Ertner pelas suas incansáveis pesquisas sobre Berlim Leste e Berlim
Oeste nos anos sessenta e pelos preciosos nacos de recordação pessoal; a
Jürgen Schwämmle, batedor extraordinaire, por descobrir a rota de fuga
seguida por Alec Leamas e Tulipa de Berlim Leste até Praga e por me
acompanhar ao longo dela; e ao nosso impecável condutor Darin
Damjanov, que tornou a jornada debaixo de neve um duplo deleite. Devo
também agradecer a Jörg Drieselmann, John Steer e Steffen Leide, do
museu da Stasi, em Berlim, por uma visita guiada pessoal aos seus negros
domínios e pela oferta do meu próprio Petschaft. Finalmente, o meu
especial reconhecimento a Philippe Sands, que, com o seu olho de
advogado e a sua compreensão de escritor, me orientou pelos matagais das
comissões parlamentares e do processo judicial. A ciência é dele. Se erros
houver, são meus.
JOHN LE CARRÉ

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