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Um Legado de Espioes - John le Carre
Um Legado de Espioes - John le Carre
Romance
Tradução de
J. Teixeira de Aguilar
1
Não nos conhecemos, mas permita que me apresente. Sou gestor de negócios na sua
antiga empresa, tendo sob a minha alçada tanto os casos atuais como os históricos. Um
assunto no qual o senhor parece ter desempenhado um papel significativo há alguns
anos voltou inesperadamente à tona, e não tenho outra alternativa senão pedir-lhe que
compareça em Londres com a brevidade possível para nos ajudar a elaborar uma
resposta.
Estou autorizado a oferecer-lhe o reembolso das despesas de deslocação (em classe
económica) e ajudas de custo diárias, calculadas de acordo com o custo de vida em
Londres, de 130 libras durante o tempo que a sua presença seja necessária.
Uma vez que aparentemente não temos o seu número de telefone, pedimos-lhe o
favor de contactar Tania para o número acima, sendo a chamada a pagar no destino,
ou, caso tenha e-mail, para o endereço de e-mail abaixo. Sem querer causar-lhe
incómodos, devo salientar que o assunto se reveste de uma certa urgência. Permita-me,
a finalizar, que chame a sua atenção para o parágrafo 14 do seu acordo de rescisão.
2 Expressão pejorativa utilizada para designar um pretenso novo tipo de votante conservador comum
em Londres e no Sueste de Inglaterra no final da década de 1980, caracterizado como um jovem
empresário agressivo que subiu a pulso durante o Thatcherismo e faz alarde do seu novo estatuto
social. (N. do T.)
3
– Peter?
– Bunny.
Laura adotou um silêncio reprovador.
– Podemos voltar por momentos a 1959, quando, segundo creio, a
Operação Navalha foi posta na prateleira?
– Lamento, mas não sou brilhante em datas, Bunny.
– Posta na prateleira pela Sede com o fundamento de que a operação se
tinha mostrado improdutiva e dispendiosa em termos financeiros e de
vidas. Você e o Alec Leamas, em contrapartida, desconfiaram que havia
trabalho sujo na frente doméstica.
– A Conjunta de Coordenação apregoava que era uma cagada. O Alec
apregoava que era uma conspiração. Fosse qual fosse a parte da costa em
que desembarcássemos, a oposição antecipava-se-nos sempre. Ligações
rádio comprometidas. Tinha de ser alguém de dentro. Era essa a opinião
do Alec e eu, vendo as coisas de baixo, tendia a partilhá-la.
– Portanto resolveram ambos fazer uma démarche3 junto do Smiley.
Provavelmente consideravam o próprio Smiley fora de questão como
potencial traidor.
– A Navalha era uma operação da Conjunta. Sob o comando do Bill
Haydon. Era o Haydon e a seguir o Alleline, o Bland e o Esterhase. Os
rapazes do Bill, como nós lhes chamávamos. O George não estava nem
pouco mais ou menos perto.
– E a Conjunta e as Encobertas passaram a vias de facto?
– A Conjunta estava continuamente a conspirar para ficar com as
Encobertas sob a sua alçada. O George via isso como um açambarcamento
de poder e resistia. Tenazmente.
– Onde estava o nosso galhardo Chefe do Serviço em tudo isto? O
Controlo, como temos de lhe chamar.
– A pôr as Encobertas e a Conjunta uma contra a outra. Dividir para
reinar, como de costume.
– Não me engano ao pensar que havia questões pessoais entre o Smiley
e o Haydon?
– Pode ser que sim. Dizia-se à boca pequena que o Bill tinha tido uma
aventura com a Ann, a mulher do George. É o género de jogada que se
esperaria do Bill. Era um sacana dum espertalhão.
– O Smiley falava-lhe da sua vida privada?
– Nem lhe passava pela cabeça. Não se fala assim com um subalterno.
Bunny fica a pensar naquilo, não acredita, parece querer levar o assunto
por diante e muda de ideias.
– Portanto, com a extinção da Operação Navalha, você e o Leamas
transmitem as vossas preocupações ao Smiley. Cara a cara. Os três. Apesar
da vossa posição subalterna.
– O Alec pediu-me que fosse com ele. Não confiava em si próprio.
– Porquê?
– O Alec excitava-se com demasiada facilidade.
– Onde é que se realizou esse encontro à trois4?
– Por que raio é que isso há de ter importância?
– Porque eu estou a imaginar um refúgio seguro. Um sítio de que você
não me falou, mas a seu tempo há de falar. Achei que esta podia ser a
altura para perguntar.
Eu tinha-me deixado embalar pela ideia de que, com toda esta
tagarelice, talvez estivéssemos a derivar para águas menos perigosas.
– Podíamos ter usado uma casa segura do Circus, mas as casas seguras
eram rotineiramente mantidas sob escuta pela Conjunta. Podíamos ter
usado a casa do George na Bywater Street, mas a Ann estava a morar lá.
Havia uma espécie de entendimento entre todos de que não lhe deviam ser
dadas oportunidades de coisas que não pudesse controlar.
– Ela iria a correr para o Haydon?
– Não foi isso que eu disse. Havia uma sensação geral. Nada mais. Quer
que eu continue, ou não?
– Muito, se não se importa.
– Fomos buscar o George a Bywater Street e levámo-lo a passear pelo
South Bank fora para lhe fazer bem à saúde. Era uma tarde de verão. Ele
estava sempre a queixar-se de que não fazia suficiente exercício.
– E foi desse passeio vespertino à beira-rio que a Operação Bambúrrio
nasceu?
– Oh, por amor de Deus! Veja se cresce!
– Ah, eu já cresci, não se preocupe. E você está a ficar mais novo a cada
minuto que passa. Como correu a conversa? Sou todo ouvidos.
– Falámos de traições. Em termos gerais, não em pormenor, não era
caso disso. Quem quer que fosse membro atual ou recente da Conjunta era
por definição suspeito. Portanto havia cinquenta, sessenta pessoas, todas
elas potenciais traidores internos. Falámos sobre quem tinha o grau de
credenciação indicado para denunciar a Navalha, mas sabíamos que, com
Bill a chefiar a Conjunta, o Percy Alleline a comer-lhe à mão, e o Bland e
o Esterhase a participarem na coisa de qualquer maneira que pudessem,
tudo o que qualquer traidor tinha a fazer era aparecer nas caóticas sessões
de planeamento da Conjunta, ou ficar no bar dos funcionários superiores a
ouvir o Percy Alleline perorar. O Bill dizia sempre que a
compartimentação era uma maçada, o melhor era dar a saber tudo a toda a
gente. Isso dava-lhe toda a cobertura de que precisava.
– Como é que o Smiley reagiu à vossa démarche?
– Pensou maduramente e depois voltou a falar connosco. O que foi o
máximo que alguém conseguiu alguma vez do George. Olhem, acho que
vou tomar o café que vocês me ofereceram, se não se importam. Simples.
Sem açúcar.
Espreguicei-me, abanei a cabeça e bocejei. Já sou uma pessoa de idade,
por amor de Deus. Mas Bunny não ia na conversa e Laura já tinha
desistido há muito de mim. Estavam a olhar-me como um par de pessoas
que estivessem fartas de mim, e o café não constava da ementa.
*
5 Departamento da polícia britânica que trata de questões de segurança nacional. (N. do T.)
6 Trata-se do primeiro verso de uma quadra feita por Sir Percy Blackeney, no livro O Pimpinela
Escarlate, da Baronesa Orkzy. (N. do T.)
4
Caía o anoitecer. Era uma tarde de outono, mas, pelos critérios ingleses,
fazia calor como de verão. De uma maneira ou de outra o meu primeiro
dia nos Estábulos tinha chegado ao fim. Caminhei durante um pedaço,
bebi um uísque num bar cheio de jovens ensurdecedores, apanhei um
autocarro para Pimlico, apeei-me umas quantas paragens antes e voltei a
seguir a pé. Não tardou que o vulto iluminado de Dolphin Square se
erguesse diante de mim por entre a neblina. Desde que passara a servir sob
a bandeira dos serviços secretos que o local me causava arrepios. No meu
tempo Dolphin Square tinha mais apartamentos seguros por pé cúbico que
qualquer edifício do planeta, e não havia nenhum deles onde eu não
tivesse feito o briefing e o debriefing a algum tipo desafortunado. Era
também o sítio onde Alec Leamas passara a última noite em Inglaterra
como convidado dos recrutadores de Moscovo antes de partir para a
viagem que o levaria à morte.
O apartamento 110B de Hood House não contribuiu em nada para
afugentar o seu fantasma. Os apartamentos seguros do Circus tinham sido
sempre modelos de premeditado desconforto. Este era um clássico da
fornada: um extintor de incêndios de tamanho industrial, vermelho, duas
poltronas cheias de altos, cujas molas já se tinham sumido, uma
reprodução em aguarela do lago Windermere, um minibar, fechado à
chave, um aviso impresso para não se fumar MESMO COM A JANELA
ABERTA, um televisor muito grande que eu depreendi automaticamente
que funcionava nos dois sentidos e um musgoso telefone preto sem
número inscrito, para ser usado, a meu ver, apenas para fins de
desinformação. E no pequeno quarto uma cama de dormitório dura como
uma pedra, de solteiro, a fim de desencorajar atividades venerárias.
Fechando a porta do quarto ao televisor, desfiz o meu saco de pernoita e
relanceei os olhos em redor à procura de um esconderijo para o meu
passaporte francês. Havia umas INSTRUÇÕES EM CASO DE
INCÊNDIO emolduradas deficientemente aparafusadas na porta da casa
de banho. Aliviando os parafusos, enfiei o passaporte no vão, voltei a
apertá-los, desci as escadas e devorei um hambúrguer. De regresso ao
apartamento, obsequiei-me com uma generosa porção de uísque e tentei
reclinar-me numa poltrona de austeridade. Mal me tinha deixado
adormecer, porém, dei por mim novamente desperto e completamente
sóbrio, desta vez em Berlim Oeste no ano de Nosso Senhor de mil
novecentos e cinquenta e sete.
*
A certa altura da noite devo ter adormecido, mas não me recordo disso.
Em Dolphin Square são seis da manhã e na Bretanha sete. Catherine já
devia estar a pé e a bulir. Se eu estivesse em casa, estaria também a pé e a
bulir, porque Isabelle desata na sua cantoria mal Chevalier, o nosso
galispo-mor, começa a sua. A voz dela chega-nos desde o casinhoto de
Catherine, do outro lado do pátio, porque Isabelle precisa da janela do
quarto aberta a toda a hora, independentemente do tempo que faça. Já
terão dado o pequeno-almoço às cabras e Catherine deve estar a dá-lo a
Isabelle, provavelmente num jogo da apanhada à volta do pátio, com
Isabelle a fugir e Catherine atrás dela com uma colher de iogurte. E as
galinhas, sob o inútil comando de Chevalier, a comportarem-se
generalizadamente como se o mundo estivesse a acabar.
Ao imaginar esta cena perpassou-me pelo espírito que, se telefonasse
para a casa-mãe e Catherine por acaso fosse a passar, e tivesse as chaves
com ela, talvez ouvisse o toque e atendesse. Por isso, pelo sim pelo não
tentei a minha sorte, servindo-me de um dos telemóveis descartáveis,
porque diabos me levassem se ia deixar que Bunny me escutasse. Não há
gravador de chamadas no telefone da herdade, de maneira que o deixei
tocar uns minutos e estava já a perder as esperanças quando ouvi a voz de
Catherine, que é bretã e por vezes um pouco mais severa do que ela
porventura pretende.
– Está tudo bem contigo, Pierre?
– Ótimo. E contigo também, Catherine?
– Despediste-te do teu amigo que morreu?
– Ainda faltam uns dias.
– Vais fazer um grande discurso?
– Enorme.
– Estás nervoso?
– Aterrado. Como está a Isabelle?
– A Isabelle está boa. Não mudou na tua ausência. – Por esta altura já
me tinha apercebido de um laivo de contrariedade, ou algo mais forte, na
voz dela. – Um amigo teu veio para te visitar ontem. Estavas à espera dum
amigo, Pierre?
– Não. Que espécie de amigo?
Mas, como todos os interrogadores difíceis, Catherine consegue levar a
água ao seu moinho nas respostas.
– Eu disse-lhe: não o Pierre não está, o Pierre está em Londres, está a
ser um bom samaritano, houve alguém que morreu e ele foi consolar as
pessoas enlutadas.
– Mas afinal quem era ele, Catherine?
– Não sorriu. Não foi bem-educado. Foi persistente.
– Quer dizer que tentou engatar-te?
– Perguntou quem tinha morrido. Eu disse que não sei. Ele perguntou
porque é que eu não sei. E eu respondi: Porque o Pierre não me conta
tudo. Ele riu-se. Disse que talvez, com a idade que o Pierre tem, todos os
amigos estejam a morrer. Perguntou se tinha sido de repente. Era uma
mulher ou um homem? Perguntou se estás num hotel em Londres. Qual?
Qual é a morada? Qual é o nome? Não sei, digo eu. Estou ocupada, tenho
uma filha e uma herdade.
– Era francês?
– Talvez alemão. Talvez americano.
– Vinha de carro?
– De táxi. Da estação. Com o Gascon. Primeiro paga-me, disse-lhe o
Gascon. Caso contrário, não o levo.
– Que aspeto tinha ele?
– Não era afável, Pierre. Áspero. Corpulento como um pugilista. Com
muitos anéis nos dedos.
– Idade?
– Talvez cinquenta. Sessenta. Não lhe contei os dentes. Talvez mais.
– Disse-te como se chamava?
– Disse que não era preciso. Disse que vocês eram velhos amigos. Disse
que tinham ido ao futebol juntos.
Deixo-me ficar na cama imóvel, quase sem respirar. Acho que devia
levantar-me, mas tenho uma fuite du courage8. Como diabo, Christoph,
filho de Alec, litigante, gatuno de ficheiros restritos da Stasi, criminoso
com uma ficha de todo o tamanho, foste tu parar à Bretanha?
A propriedade de Les Deux Églises coubera-me pelo lado da minha
mãe. Ainda tinha o seu nome de solteira. Não havia nenhum Peter Guillam
na lista telefónica local. Teria Bunny, por obscuras razões muito suas,
revelado a minha morada a Christoph? Com que imaginável propósito?
Recordo-me então da minha peregrinação de motocicleta em 1989 a um
cemitério de Berlim fustigado pela chuva num dia de inverno escuro como
breu, e tudo faz sentido.
*
Caro Peter,
Pensei que gostaria de saber que as cinzas do nosso amigo Alec foram recentemente
sepultadas em Berlim, perto do local onde ele morreu. Parece que os corpos das
pessoas assassinadas no Muro eram habitualmente incinerados em segredo, sendo as
cinzas espalhadas. Graças a meticulosos registos da Stasi, porém, afigura-se que foram
tomadas providências excecionais no caso do Alec. Os seus restos mortais viram a luz
do dia e foram objeto de um funeral decente, embora tardio.
Seu, sempre,
George
George: o estúpido do cabrãozinho mandou cópia disto para a Conjunta antes que
alguém tivesse hipótese de o impedir. Para a próxima, já sabe. Sugiro que enrole o P.
Alleline, o B. Haydon, o T. Esterhase e o sacana do Roy Bland e companhia
convencendo-os de que foi uma argolada, ou seja: desnecessária qualquer ação ulterior,
material de informações forjadas de segunda ordem, etc.
Alec
Mas Alec nunca foi pessoa para ficar quietinha, muito menos quando
estava em jogo a sua carreira futura. O seu contrato com o Circus estava
na altura de ser renovado e ele já tinha passado há muito o limite de idade
para operacionais, com pouquíssimas perspetivas de um cómodo lugar
burocrático na Sede, o que explica o relato algo desconfiado de Smiley do
que Alec fez a seguir:
C: Ficará tão surpreendido como eu fiquei com o facto de AL ter aparecido sem
aviso prévio à porta da minha casa de Chelsea às dez da noite de ontem. Como Ann
estava fora em tratamento, encontrava-me sozinho em casa. Ele cheirava a álcool, o
que não é invulgar, mas não estava embriagado. Fez questão de que eu desligasse o
telefone da tomada da sala de estar antes de falarmos, e de que, apesar do tempo muito
frio que fazia, nos sentássemos ao fundo da estufa que dá para o jardim, com o
argumento de que «não se pode instalar escutas no vidro». Depois disse-me que tinha
vindo de Berlim num avião civil nessa tarde a fim de não figurar na lista de voo da
RAF, que desconfia ser rotineiramente controlada pela Conjunta de Coordenação. Pela
mesma razão já não confia nos correios do Circus.
Primeiramente precisava de saber se eu tinha dado a volta à Conjunta, conforme ele
pedira, em relação ao material de Köpenick. Respondi que estava convencido de que o
tinha conseguido, porque era sabido que o Posto de Berlim estava atafulhado de
ofertas de informações forjadas sem qualquer valia.
Nessa altura mostrou-me a folha de papel anexa que tirou do bolso, explicando que
era um resumo, elaborado exclusivamente por ele, do material contido nas cassetes de
Köpenick, mas sem a garantia adicional de confirmação por parte de qualquer outra
fonte manifesta ou encoberta.
Controlo para GS: Seriamente preocupado com o facto de o Leamas estar a remar por
sua conta e risco. Onde estão os outros indicadores? Podemos com certeza testar as
informações em áreas que na visão que o Leamas tem das coisas não estão
contaminadas, não?
GS para Controlo: Consultei separadamente os NE e a Defesa, servindo-me de um
pretexto. Ambos dizem bem do material, não acham que se trate de falsificações.
Coisas de somenos como prelúdio para um embuste em grande escala é sempre uma
possibilidade.
Controlo para GS: Fico perplexo por o Leamas não consultar o seu Chefe do Posto de
Berlim. Manobras de bastidores deste género não são boas para o Serviço.
GS para Controlo: Infelizmente, o Alec considera o seu C/P como anti-Encobertas e
pró-Conjunta.
Controlo para GS: Não posso privar-me de uma galère12 de funcionários de primeira
água baseado na suposição indemonstrada de que um deles é uma maçã podre.
GS para Controlo: Receio bem que o Alec veja a Conjunta como um pomar podre.
Controlo para GS: Então talvez seja ele que tem de ser podado.
Motivação:
A pretensa motivação de Primavera é o desapontamento com o regime da RDA, o
entendimento de que o sonho comunista do pai foi traído.
Oferta de serviços:
Primavera alega que a subfonte TULIPA, uma doente e empregada da Stasi,
constituiu não só o catalisador para o seu autorrecrutamento, como é a fonte das
cassetes subminiatura originais que depositou em nome dela no Volvo de de Jong.
Descreve Tulipa como neurótica mas extremamente controlada e altamente vulnerável.
Insiste que ela é sua doente, e nada mais. Reitera que nem ele nem Tulipa precisam de
qualquer recompensa financeira.
O realojamento no Ocidente em caso de comprometimento ainda não foi abordado.
Ver adiante.
Tendo-lhe sido pedido para identificar o processo pelo qual entrou naquilo a que
chama a fase de «crisálida» da sua oposição ao regime da RDA, Primavera indica o
momento em que os interrogadores da Stasi lhe ordenaram que preparasse uma mulher
para «reclusão investigatória». A mulher era uma cidadã da RDA na casa dos
cinquenta que alegadamente trabalhava para a CIA. Sofria de claustrofobia aguda. A
prisão em solitária já a tinha deixado meio louca. «Ainda hoje ouço os seus gritos, ao
prenderem-na numa caixa», diz Primavera.
Na sequência desta experiência, Primavera, que declara não ser propenso a decisões
precipitadas, diz que «reavaliou a sua situação sob todos os ângulos». Tinha ouvido as
mentiras do Partido em primeira mão e observado a sua corrupção, hipocrisia e abuso
de poder. Tinha «diagnosticado os sintomas de um estado totalitário a fazer-se passar
pelo seu contrário». Longe da democracia com que o pai tinha sonhado, a Alemanha
de Leste era um «vassalo soviético governado como um estado policial». Uma vez
adquirida esta perceção, diz ele, só restava um caminho ao filho de Manfred: a
resistência.
A sua primeira ideia foi criar uma célula clandestina. Escolheria um ou outro
paciente da elite que ocasionalmente tivesse dado indícios de insatisfação com o
regime e far-lhe-ia a proposta. Mas para fazer o quê? E durante quanto tempo? O pai
de Primavera, Manfred, fora traído pelos camaradas. Pelo menos nesse aspeto, o filho
não se propunha seguir as pisadas do pai. Então em quem confiava suficientemente
ele, em todas as circunstâncias e fizesse chuva ou fizesse sol? Resposta: nem sequer na
mãe, Helga, uma comunista confessa, acontecesse o que acontecesse.
Muito bem, refletira ele, manter-se-ia o que era já: «uma célula terrorista de um só».
Tomaria como émulo, não o pai, mas sim um herói da infância, Georg Elser, o homem
que em 1939, sem beneficiar de um cúmplice ou confidente, fizera, colocara e
detonara uma bomba numa cervejaria de Munique onde minutos antes o Führer
estivera a discursar aos seus fiéis. «Só uma sorte infernal o salvou», diz Primavera.
Mas a RDA, pensava ele, não era um regime que pudesse ser derrubado com uma
única explosão, tal como Hitler o não era. Primavera era antes de mais nada um
médico. Um sistema podre tinha de ser tratado a partir de dentro. A maneira de o fazer
havia de revelar-se a seu tempo. Entretanto, ele não se abriria com ninguém nem
confiaria em ninguém. Seria ele sozinho, bastando-se a si próprio e prestando contas si
próprio. Seria «um exército secreto de uma pessoa só».
A «crisálida» saiu, sustenta ele, quando às 2200 de 18 de outubro de 1958 uma
jovem de espírito perturbado que era sua desconhecida se dirigiu de bicicleta a
Köpenick, nos arredores leste de Berlim, e se apresentou no consultório de Primavera,
pedindo para fazer um aborto.
De novo Riemeck:
Caro George:
Uma tiragem perfeita!
Tenho o prazer de comunicar que a impressão do Petschaft e da chave de Emmanuel
Rapp, secretamente obtidos pela subfonte Tulipa, produziram um fac-símile claro, com
letras e números bem distintos. Os cowboys das Tecs aconselharam que, por motivos
de segurança, ela aplicasse uma pequena torção ao retirar o Petschaft da cera. Portanto
uma rodada de duplos para todos!
Seu na fé,
Alec
George Smiley para Alec Leamas em Berlim, pessoal, nota manuscrita, cópia para
arquivo:
George Smiley para Peter Guillam, nota manuscrita, cópia para arquivo:
Mas talvez não propriamente tão bem como Smiley pensa, ou com tanta
tranquilidade como o meu relatório manuscrito tão entusiasticamente
sugeria.
*
Tulipa foi cabalmente informada de que está a passar informações a este Serviço e
que Primavera é o nosso auxiliar extraoficial e também o seu intermediário. Ela
chegou à conclusão de que ama incondicionalmente a Inglaterra. Impressiona-a de
modo especial a elevada qualidade da nossa maneira de atuar e individualizou o seu
mais recente treff em Varsóvia como exemplo da excelência britânica.
As condições de realojamento de Tulipa uma vez terminado o trabalho, aconteça
isso quando acontecer, serão 1000 libras por mês de serviço completo, acrescido de um
pagamento único ex gratia de 10 000 libras, conforme aprovado pelo C/Encobertas
[GS]. Mas o seu maior desejo é que, na devida altura, ela e o filho Gustav passem a ter
a cidadania britânica.
Os seus dotes de encobrimento são talvez ainda mais notáveis. O seu êxito na
instalação de uma câmara subminiatura na base do estrado de um chuveiro na casa de
banho das senhoras do seu corredor liberta-a da tensão de a levar e trazer da Casa 3 na
carteira. O seu Petschaft e chave feitos pelo Serviço permitem-lhe entrar e sair do
cofre de Rapp sempre que não há ninguém por perto e se acha disposta a isso. No
passado sábado confiou a Primavera que o seu sonho mais recorrente é casar-se um dia
com um belo inglês!
– Então? Passa-se alguma coisa? – pergunta Nelson, desta vez com
intenção.
– Cheguei a uma roseta – respondo eu, o que por acaso é verdade.
*
10 Abreviatura de Navy, Army and Air Force Institute, organismo criado em 1921 pelo governo
britânico para gerir as instalações recreativas necessárias às Forças Armadas e vender artigos aos
militares e respetivas famílias. (N. do T.)
Não sei que tipo específico de fuga me assolou quando, libertado cedo
dos meus labores, saí da obscuridade dos Estábulos para o bulício
vespertino de Bloomsbury e, sem obedecer a nenhum impulso de que me
apercebesse, me encaminhei para sudoeste, na direção de Chelsea.
Humilhação, por certo. Frustração e desorientação, indubitavelmente.
Afronta por me escarafuncharem o passado e atirarem-mo à cara. Culpa,
vergonha, apreensão, em boa dose. E tudo isso dirigido numa única
explosão de dor e incompreensão contra George Smiley por estar
incontactável.
Mas estaria mesmo? Será que Bunny me mentia, tal como eu lhe mentia
a ele, e George não estava tão incontactável como ele asseverava? Tê-lo-
iam já encontrado e espremido, se tal coisa alguma vez era possível? Se
Millie McCraig sabia a resposta – e eu desconfiava que sim –, estava
também obrigada ao silêncio pela sua própria versão da Lei de Proteção
dos Segredos Oficiais que estabelecia que, vivo ou morto, George Smiley
era indiscutível.
Ao aproximar-me de Bywater Street, outrora uma rua sem saída para
gente que não tinha uma vida propriamente desafogada e hoje mais um
dos guetos de milionários de Londres, recuso-me a reconhecer a onda de
nostalgia que me invade, ou a tomar a obrigatória nota mental de carros
estacionados, esquadrinhá-los para ver se têm ocupantes ou dar uma
cautelosa vista de olhos às portas e janelas das casas fronteiras. Quando
foi a última vez que aqui vim? A minha memória detém-se na noite em
que torneei os pequenos estratagemas de George com cunhas da madeira
na porta da rua e me pus à espera para o levar rapidamente ao
esparramado castelo vermelho de Oliver Lacon em Ascot, na primeira
etapa da sua angustiante jornada até ao seu velho amigo querido Bill
Haydon, refinado traidor e amante da mulher.
Neste ocioso final de tarde outonal, porém, o n.o 9 de Bywater Street
nada sabe e nada viu destas coisas. As persianas estão corridas, o jardim
da frente invadido pelas ervas daninhas e os ocupantes partiram ou
morreram. Subo os quatro degraus até à porta de entrada, toco à
campainha, não ouço o retinir familiar nem passos, ligeiros ou pesados.
Nada de George, a pestanejar de prazer ao mesmo tempo que limpa os
óculos com o forro da gravata – «olá, Peter, está com cara de quem precisa
duma bebida, entre». Nada de Ann alvoroçada, só com meia maquilhagem
feita – «estava mesmo de saída, Peter, meu querido, beijinho, mas entre,
entre e venha lá endireitar o mundo com o pobre do George».
Regresso a passo militar a King’s Road, chamo um táxi para
Marylebone High Street e apeio-me em frente à livraria Daunt’s, mas no
tempo de Smiley Messrs. Francis Edwards, fundada em 1910, onde ele
passou muitas ditosas horas de almoço. Mergulho num labirinto de vielas
empedradas e casas que eram antigos estábulos que em tempos incluiu o
posto avançado do Circus para as Operações Encobertas – ou, na gíria,
simplesmente Marylebone.
Ao contrário dos Estábulos, que sempre foram apenas uma casa segura
dedicada a uma única operação, Marylebone, com as suas três portas da
rua, era um Serviço por si só: tinha os seus próprios funcionários
administrativos, cifras, operadores de cifra, correios e o seu próprio
exército cinzento de Eventuais, que nunca se conheciam uns aos outros e
eram oriundos de todas as classes sociais, aos quais bastava ouvirem a
chamada para largarem as ferramentas e congregarem-se em torno da
causa.
Era então remotamente concebível que as Encobertas ainda tivessem ali
a sua existência? Na minha fuga, quero crer que sim. E George Smiley
esconde-se ainda por detrás das suas janelas com as persianas corridas?
Na minha fuga devo ter-me convencido de que sim. Das nove campainhas
de porta, só uma funcionava. Era preciso ser-se um dos fiéis para saber
qual. Primo-a. Não há resposta. Primo os outros dois botões da mesma
entrada. Passo à entrada seguinte e primo os três. Uma voz de mulher
atira-me um guincho.
– Ela não está aqui, porra, Sammy! Pôs-se na alheta com o Wally e o
miúdo. Se tornas a tocar, chamo a bófia, palavra que chamo.
A sua advertência devolve-me a sobriedade. Quando dou por mim, estou
sentado na tranquilidade de Devonshire Street, a beber um cordial de flor
de sabugueiro num café cheio de médicos de fato, a murmurarem,
conferenciando entre si. Espero que a minha respiração afrouxe. À medida
que a cabeça se desanuvia, o mesmo acontece ao meu empenhamento.
Durante os últimos dias e noites, a despeito de todas as distrações, a
imagem de Christoph, o delinquente, criminoso e esperto filho de Alec, a
interrogar brutalmente a minha Catherine na soleira da porta da minha
casa da Bretanha não me abandonou. Até essa manhã, nunca tinha ouvido
o tom de receio na voz de Catherine. Não de receio por si própria: de
receio por mim. Não era afável, Pierre… áspero… como um pugilista…
perguntou se estás num hotel em Londres… qual é a morada?
Digo a minha Catherine porque a considerei desde a morte do pai a
minha guardiã, e que se lixem as insinuações de Bunny em sentido oposto.
Assisti ao seu crescimento desde a infância. Ela viu as minhas mulheres
surgirem e desaparecerem até não ficar nenhuma. Quando se designou a si
própria como a menina malcomportada da aldeia, desafiando a irmã, mais
bonita, e dormiu com todo o bicho-careta a que conseguisse deitar a mão,
eu não dei ouvidos aos bombásticos protestos do padre da aldeia, que
provavelmente tinha um fraquinho por ela. Eu não tenho à-vontade com as
crianças, mas quando Isabelle nasceu senti-me tão feliz por Catherine
como ela ficou. Nunca lhe disse o que fazia na vida. E ela nunca me disse
quem era o pai da criança. Em toda a aldeia, eu era a única pessoa que não
sabia nem queria saber. Se ela quiser, um dia a propriedade será sua, e
Isabelle correrá ao seu lado, e talvez haja um homem mais novo para
Catherine, e talvez a pequena Isabelle esteja disposta a olhá-lo nos olhos.
Seremos também amantes, com todos aqueles anos a separar-nos?
Gradualmente, parece que somos. O entendimento foi firmado por
Isabelle, que numa noite de verão palmilhou o pátio com a roupa de cama
e, sem nunca me dirigir um olhar, se instalou no chão por baixo da janela
do patamar, à porta do meu quarto. A minha cama é grande; o quarto dos
hóspedes é escuro e frio; mãe e filha não se podiam separar. Na minha
lembrança, Catherine e eu dormimos inocentemente ao lado um do outro
semanas a fio antes de nos voltarmos um para o outro. Mas talvez não
tenhamos esperado tanto como eu gostaria de pensar.
*
O tempo benigno de ontem tinha sido afastado por uma chuva lateral
que varria as ruas de Pimlico como um tiroteio. Chegado tardiamente para
a minha entrevista nos Estábulos, dei com Bunny sozinho, postado à
entrada da porta com um guarda-chuva.
– Já estávamos a pensar se você não se teria esgueirado – disse ele,
exibindo o seu sorriso de rapaz tímido.
– E se tivesse?
– Digamos que não iria muito longe. – Ainda a sorrir, passou-me um
envelope castanho que tinha escrito a vermelho Serviço de Sua Majestade.
– Parabéns. Pede-se-lhe cortesmente que compareça perante os nossos
patrões. A comissão parlamentar de inquérito quer ter uma conversinha
consigo. Data a ser anunciada.
– E uma conversinha consigo também, imagino.
– Marginalmente. Mas não somos nós as estrelas, pois não?
Um Peugeot negro encosta. Ele entra para o assento de trás. O Peugeot
arranca.
– Preparado para a leitura, Pete? – pergunta Pepsi. Está já instalada no
seu trono da biblioteca. – Parece que temos um dia cansativo pela frente.
Refere-se à gorda pasta parda que está à minha espera na mesa de
cavalete: a minha obra-prima inédita, quarenta páginas dela.
*
Ao meio-dia desse mesmo dia, por uma questão de rotina, Leamas mandou de Jong
rever os planos de contingência existentes para a exfiltração da subfonte Tulipa. De
Jong confirmou que os documentos e recursos de fuga visando uma exfiltração para
leste via Praga estavam em vigor. Depois de esperar pela mudança de turno da noite
dos operários, Primavera voltou de bicicleta para Berlim Leste.
Textualmente:
Primavera (telefonando da Charité, em Berlim Leste): Dr. Fleischmann?
Leamas: O próprio.
Primavera: Fala o Dr. Riemeck. O colega tem uma paciente. Frau Lisa Sommer*. 15
Leamas: O que se passa com ela?
Primavera: Ontem à noite Frau Sommer compareceu na minha unidade de Urgências
sofrendo de alucinações. Sedámo-la mas durante a noite ela ausentou-se.
Leamas: Alucinações de quê?
Primavera: Fantasia que o marido desconfia que ela anda a divulgar segredos a
elementos fascistas antipartido.
Leamas: Obrigado. Tomo nota. Infelizmente sou preciso no bloco.
Primavera: Compreendido.
Regresso à gravação:
Leamas a Primavera: Então em que pé estão as coisas?
Primavera a Leamas: Ela está convencida de que o reduziu ao silêncio. Esta manhã ele
foi trabalhar como de costume. Estava calmo, afetuoso, até.
Leamas: Onde está ela agora?
Primavera: Em casa, à espera do Emmanuel Rapp. Ao meio-dia em ponto ele passa de
carro para a recolher e vão a Dresden para uma sessão plenária do Soviete de
Segurança Doméstica. Ele prometeu-lhe que desta vez ela participará na reunião
como sua assistente. Será uma honra para ela.
[Pausa de quinze segundos.]
Leamas: Muito bem. Eis o que ela fez. Telefona já para o gabinete do Rapp. Passou
toda a noite tremendamente maldisposta, tem um febrão e está demasiado doente
para viajar, lamenta imenso. Depois aborta. Ela sabe o procedimento. Comparece ao
encontro. Espera.
Os seus protestos de inocência eram meus, e não deles. Uma vez que eu
não tinha dúvidas de que Smiley tinha encorajado Leamas a proceder
pessoalmente à exfiltração de Tulipa, tive o cuidado de munir Porter e de
Jong de depoimentos livre-da-prisão para o caso de serem obrigados a dar
conta dos seus atos por Percy Alleline ou um dos seus capangas.
*
Passaram-se três dias. A história é retomada pelo próprio Alec. São dez
da noite e ele está a ser objeto de debriefing do outro lado de uma mesa de
contraplacado na sala segura da Embaixada britânica em Praga, onde se
encafuou uma hora antes. Está a falar para um gravador e em frente dele
está o Chefe do Posto de Praga, um tal Jerry Ormond, marido da temível
Sally, que é também a número dois do Posto numa parceria tipo dele-e-
dela do Circus. Também à mesa, ainda que apenas na minha imaginação
bem fundamentada, uma garrafa de uísque e um único copo – de Alec –,
que Jerry vai enchendo intermitentemente. Pelo tom mortiço da voz de
Alec torna-se evidente que está exausto, o que, pela parte que toca a
Ormond, vem a calhar, uma vez que a sua tarefa como encarregado do
debriefing é tomar nota da história do sujeito antes que a sua memória
tenha tido ocasião de a corrigir. Na minha imaginação, de novo, Alec tem
a barba por fazer e veste um roupão emprestado depois do apressado
duche que foi autorizado a tomar. O irlandês transparece na sua voz em
surtos irregulares.
E eu, Peter Guillam: onde estou eu? Não em Praga com Alec, embora
pudesse muito bem estar. Estou sentado numa sala do andar de cima das
instalações das Encobertas em Marylebone, a ouvir a gravação que foi
trazida à pressa para Londres por um avião militar da RAF, e penso com
os meus botões: a seguir é a minha vez.
AL: Estão oito graus abaixo de zero nos degraus do Estádio Olímpico, com um vento
leste dos tomates, que arrasta uma neve fina, e gelo nas estradas. Acho que o mau
tempo é um mal que vem por bem. O mau tempo é tempo para fugas. O Land Rover
está à espera, com Ben ao volante. Stas de Jong aparece a descer os degraus, de
uniforme de combate completo, e enfia o seu metro e oitenta e oito dentro do buraco
no pavimento, com botas militares e tudo. Eu e Ben baixamos a tampa sobre ele. Eu
instalo-me no banco da frente ao lado de Ben. Estou de boné de oficial e sobretudo,
três estrelas, com roupa de trabalho de alemão de Leste por baixo. Um sebento saco
de tiracolo debaixo do banco para os documentos. Regra minha. Manter os
documentos separados para o salto. Às nove e vinte da manhã atravessamos o ponto
de passagem oficial para pessoal militar da Friedrichstrasse, mostrando os passes ao
VoPos pelas janelas fechadas, sem deixar que os sacanas lhes ponham a mão em
cima, que os diplomatas nos dizem ser a maneira atual de o fazer. Mal passamos,
detetamos o seguimento habitual: dois VoPos num Citroën. É, portanto, um dia
normal. Precisam de saber que somos apenas mais um veículo militar britânico a
fazer valer os nossos direitos ao abrigo do acordo quadripartido, e é isso que
estamos desejosos de lhes dizer. Passamos por Friedrichshain e eu faço ardentes
votos por que Tulipa já esteja na estrada, porque, se não estiver, está morta ou coisa
pior, e a rede igualmente. Dirigimo-nos para norte, rumo a Pankow, até chegarmos
ao perímetro militar soviético, após o que seguimos para leste. Temos o mesmo
Citroën na peugada, o que, por nós, é perfeito. Passamos bem sem um render da
guarda e novos olhos sobre nós. Obrigo-os a uma certa dança, que é o que eles
esperam que façamos: uma ou outra guinada súbita, inversões de marcha, afrouxar
até chegar a passo de caracol, carregar no acelerador a fundo. Estamos a virar para
sul, na direção de Marzahn. Ainda nos encontramos dentro dos limites da cidade de
Berlim, mas agora são floresta, estradas planas e neve a esvoaçar. Passamos pela
velha estação de rádio nazi que é a nossa primeira referência. O Citroën vem cem
metros atrás de nós, pouco amigo das estradas cobertas de gelo. Entramos na
descida, ganhando velocidade. Adiante há uma curva fechada à esquerda e uma
chaminé de fábrica branca a espreitar pelo meio das árvores que é a nossa segunda
referência: uma serração. Descrevemos rapidamente a curva à esquerda, aguentamos
o jipe e deslizamos até quase parar junto da serração. Eu saio a correr, com o saco a
tiracolo mas sem o sobretudo, que é o sinal para Stas sair da sua caixa, passar ao
assento do passageiro e fazer-se passar por mim. Estou espalmado num fosso com
neve a cobrir-me todo, de maneira que devo ter rebolado um ou dois metros.
Quando deito uma olhadela, o Land Rover está a subir o outro lado da descida e o
Citroën corre atrás dele, tentando apanhá-lo.
[Uma pausa, intercalada pelo tinir de vidro e sons de líquido a correr.]
AL [continuação]: Atrás da antiga serração há um parque de camiões em desuso e um
barraco de lata cheio de serradura. E por baixo da serradura está um Trabant
castanho e azul com um carregamento de tubos de aço amarrado ao tejadilho. Marca
noventa mil quilómetros no totalizador e cheira a caganitas de rato, mas o depósito
está cheio e há um par de latas de reserva na parte de trás e os pneus ainda têm um
bocado de rasto. Mantido por um doente de confiança de Primavera que nem sequer
revela o nome. O único problema é que os Trabis odeiam o frio. Levo uma hora a
descongelá-lo e penso durante todo esse tempo: Onde estás tu, Tulipa, apanharam-te
e estás a falar? Porque, se estás a falar, estamos todos fodidos.
JO [Jerry Ormond]: E a sua identidade?
AL: Günther Schmaus. Soldador da Saxónia. Dou bom saxão. Minha mãe era
Chemnitz. Meu pai era condado de Cork.
JO: E Tulipa? Quando se encontrar com ela, quem será ela?
AL: A minha querida mulher. Augustina.
JO: E onde é que ela está nesta altura? Se tudo correr bem?
AL: O rv é a norte de Dresden. Bem no interior do campo. Há de ter tentado fazer a
viagem de bicicleta, apesar do tempo, deve ter percorrido uma certa distância e
depois ter-se-á desfeito da bicicleta porque eles sabem que ela se desloca assim.
Depois há de ter apanhado o comboio local e a seguir feito auto-stop ou cravado
uma boleia até ao rv com ordens para se manter acaçapada o tempo que seja preciso.
JO: E a passagem de Berlim Leste para a RDA? O que é que espera?
AL: É aleatória. Não há postos de controlo, há patrulhas errantes. Ou se tem sorte, ou
não.
JO: E você teve sorte?
AL: Não foi nada do outro mundo. Dois carros da polícia. Ultrapassam-nos e param à
nossa frente, pregam-nos um cagaço de morte, mandam-nos sair do carro e
revistam-nos. Mas, se os documentos pegam, seguimos viagem.
JO: E pegaram. Sim?
AL: Ora porra, eu não estaria aqui se não tivessem pegado, não é?
[Mudança de fita, trecho corrompido durante quarenta e cinco segundos. Recomeço.
Leamas está a descrever o trajeto entre Berlim Leste e Cottbus.]
AL: A melhor coisa que tem o trânsito na RDA é que basicamente não existe. Uns
quantos cavalos e carroças. Ciclistas, motorizadas, sidecars, um ou outro camião a
cair aos bocados. Um pedaço de autoestrada e a seguir pequenas estradas. Eu
alterno. Se uma estrada pequena está coberta de neve, meto novamente para a
autoestrada. Façamos o que façamos, há que mantermo-nos longe de Wünsdorf. Há
lá o raio de um campo nazi enorme e os Sovs tomaram conta de todo ele: três
divisões de tanques, mísseis a valer e um posto de escuta de tamanho gigante.
Andamos a espiar aquela porcaria há meses. Faço um desvio para norte por uma
questão de segurança, não por uma autoestrada, mas apenas uma estrada rural plana
e a direito. Apanho com neve abundante e há filas de árvores despidas a abarrotar de
ramalhetes de visco, e eu a pensar: um dia volto cá, apanho aquilo tudo e vou vendê-
lo no mercado de Covent Garden. A seguir – estarei a sonhar isto? – estou no meio
de um comboio militar soviético grande como o caraças e vou no sentido errado.
Camiões cheios de soldados, tanques T-34 em camiões-plataforma, seis ou oito
peças de artilharia, e eu no meu Trabi de duas cores a esquivar-me por entre eles,
tentando sair da sacana da estrada, e eles sem olharem sequer, os sacanas,
continuando como se nada fosse. Nem sequer tive tempo de lhes tirar a porra das
matrículas!
[Risada, acompanhada pela de Ormond. Pausa. Recomeço a um ritmo mais vagaroso.]
AL: Quatro da tarde, e estou cinco quilómetros a oeste de Cottbus. Ando à procura de
uma Karrosserie abandonada na berma da estrada. É esse o rv. E de uma mitene de
bebé enfiada num trecho de vedação, que é o sinal de segurança a dizer-me que
Tulipa está no interior. E estava lá. A mitene. Cor-de-rosa. Ali espetada como o raio
duma bandeira no meio do nada. E assusta-me, não sei porquê. A mitene. É
demasiado conspícua, raios a partam. Talvez não seja Tulipa que está no barracão, e
seja a Stasi. Ou talvez seja Tulipa e a Stasi. Por isso encosto e penso no assunto. E
enquanto estou a pensar, a porta do celeiro abre-se e lá está ela, parada à porta, com
um sorridente miúdo de seis anos pela mão.
[Pausa de vinte segundos.]
AL: Eu nunca tinha chegado sequer a conhecer o raio da mulher, valha-me Deus!
Tulipa trabalhava para Primavera. Era essa a combinação. Conhecia-a de
fotografias, mais nada. Por isso digo-lhe: Como está, Doris, o meu nome é Günther
e sou o seu marido para esta viagem, e quem diabo vem a ser este? Só que eu estou
farto de saber quem é aquele. E ela diz: é o Gustav, o meu filho, e vem comigo. E eu
digo: Vem consigo mas é o caraças, nós somos um casal sem filhos e não vamos
escondê-lo debaixo do sacana dum cobertor quando chegarmos à fronteira checa.
Portanto o que é que vamos fazer em relação a isso? Ela diz que nesse caso não
vem, e o miúdo desata a palrar e diz que ele também não. Por isso eu digo ao Gustav
que volte lá para dentro e agarro-a por um braço e levo-a até às traseiras e digo-lhe o
que ela já sabe mas não quer ouvir: não há cartão de identidade para ele, eles vão
deter-nos e submeter-nos a uma verificação e, se não nos livrarmos dele, você está
fodida e eu também, e também o bom Dr. Riemeck, porque uma vez que eles a
tenham a si e ao Gustav nas mãos, em cinco minutos fazem-na vomitar o nome dele.
Não há resposta e está a ficar escuro e a neve começa a cair novamente. Por isso
voltamos para dentro do barracão, que é do tamanho do raio dum hangar de aviões e
está cheio de maquinaria espatifada, e o Gustav, o sacaninha, desata a pôr a mesa
para o jantar, dá para acreditar? Foi buscar tudo o que ela tinha de mantimentos e
dispô-los no chão: salsichas, pão, um termos de cacau quente, caixas para nos
sentarmos, vamos todos fazer uma festa. Portanto sentamo-nos em roda e fazemos o
nosso piquenique de família e o Gustav canta-nos uma canção patriótica, e eles
deitam-se os dois debaixo dos casacos e do que têm e eu sento-me a fumar a um
canto, e mal começa a clarear enfio-os no Trabi e voltamos à aldeia pela qual passei
na noite anterior, porque tinha lá visto uma paragem de autocarro. E pela graça de
Deus estavam lá postadas duas velhotas de capuz preto e saia branca, com cestos de
pepinos às costas e, Deus as abençoe, eram sorábias.
JO: Sorábias? Que diabo…
AL [explosão]: Sorábias, por amor de Deus! Já deve ter ouvido falar de sorábios,
porra! Há sessenta mil desses sacanas. São uma espécie protegida, mesmo na RDA.
É uma minoria eslava, espalhada a montante e jusante do Spree, há séculos que ali
está, a cultivar a porra dos pepinos. Experimente recrutar um. Meu Deus!
[Pausa de dez segundos. Acalma-se.]
AL: Encosto e digo a Tulipa e a Gustav que se deixem ficar no carro. Não se mexam.
Saio, a primeira velhota olha para mim e a outra não quer saber. Eu puxo da
simpatia. Se ela fala alemão: é respeito. Ela fala alemão mas prefere falar sorábio,
diz ela. Piada. Pergunto para onde vai. De autocarro para Lübbenau, e a seguir de
comboio até à Ostbahnhof de Berlim para vender os pepinos. Conseguem melhor
preço em Berlim. Impinjo-lhe uma história da carochinha sobre o Gustav: família
desestruturada, mãe perturbada, o rapaz tem de voltar para o pai, em Berlim; podem
levá-lo? Ela apresenta a proposta à amiga e têm as duas uma discussão sobre ela em
sorábio. E eu penso que de um instante para o outro chega o sacana do autocarro e
elas ainda não tomaram uma decisão. Nessa altura a primeira diz: levamos o seu
rapaz se nos comprar os pepinos, e eu pergunto: o quê? Todos? E ela diz: sim, todos.
E eu digo: se eu comprar os pepinos todos, vocês ficam sem a porra de pepino
nenhum para vender em Berlim, portanto porque é que querem lá ir? Elas riem-se
muito disto em sorábio. Eu enfio-lhe um maço de notas na mão, tanto pelos pepinos,
mas fiquem com eles. E tanto para o bilhete de comboio do rapaz, e têm aqui mais
alguma coisa para a continuação da viagem dele até Hohenschönhausen. E lá vem o
autocarro, e eu vou buscar o rapaz. Volto ao carro e digo ao Gustav para sair, mas a
mãe fica simplesmente imobilizada no carro com as mãos a tapar os olhos, de
maneira que ele também não se mexe. Por conseguinte eu ordeno-lhe que saia do
carro, dou-lhe uns berros e ele obedece. E digo-lhe: tu vens comigo até ao autocarro,
e estas duas simpáticas camaradas vão escoltar-te até à Ostbahnhof. E da
Ostbahnhof vais para casa, em Hohenschönhausen, e esperas até o teu pai aparecer.
E isto é uma ordem, camarada. Depois ele pergunta-me onde é que a mãe vai e
porque é que ele não vai com ela, de maneira que eu lhe respondo: a tua mãe tem
um importante trabalho secreto a fazer em Dresden, e é teu dever como bom
combatente pelo comunismo regressar para junto do teu pai e continuar a luta. E ele
vai. [Silêncio de quinze segundos.] Bem, que merda havia ele de fazer senão isso? É
um miúdo do Partido com um pai do Partido e tem seis anos, porra!
JO: E Tulipa, entretanto?
AL: Sentada na porra do Trabi a olhar pelo para-brisas, em transe. Eu entro, ando um
quilómetro, paro de novo e puxo-a para fora do carro. Há um helicóptero a zunir por
cima. Vá lá saber-se qual é a ideia do sacana. Vá lá saber-se onde porra foi ele
arranjar um helicóptero. Pediu-o emprestado aos russos? Escute, digo-lhe eu.
Escute, porra, porque precisamos um do outro. Mandar o seu miúdo de volta para
Berlim não é o fim dum problema. É o princípio dum novo. Daqui a duas horas,
toda a Stasi saberá que Doris Quinz, de solteira Gamp, foi vista pela última vez nas
proximidades de Cottbus, dirigindo-se para leste na companhia do seu amigo. Hão
de ter uma descrição do carro e tudo o mais. Portanto, podemos dizer adeus a
quaisquer ideias que tivéssemos de ir nesta caranguejola até à Checoslováquia com
documentos falsos, porque a partir de agora todas as unidades da Stasi e do KGB e
todos os postos fronteiriços de Kalininegrado até Odessa hão de estar alerta a um
Trabi de plástico malhado com um par de espiões fascistas dentro. E ela aguenta
firme, isso há que reconhecer-lhe. Deixa-se de dramas e limita-se a perguntar-me
qual é a alternativa e eu digo: um mapa desatualizado de contrabandistas que à
última hora me lembrei de trazer, que com sorte e uma oração talvez nos permita
atravessar a fronteira a pé. Então ela pensa maduramente nisto e a seguir pergunta-
me (é como o argumento decisivo para ela): «Se eu for consigo, quando é que volto
a ver o meu filho?» O que me sugere que ela está a pensar seriamente em entregar-
se por causa do rapaz. Por isso agarro-a pelos ombros e garanto-lhe por tudo,
olhando-a bem de frente, que arranjarei maneira de o rapaz ser trocado numa
permuta de agentes, nem que seja a última coisa que faça na terra. E sei tão bem
como você que há tantas hipóteses de isso alguma vez acontecer como… [pausa de
três segundos]… que se foda.
As ordens que o Posto tinha das Encobertas eram receber, apoiar e alojar em
segurança um funcionário disfarçado, Alec Leamas, e uma agente em fuga que
viajavam com documentos da Alemanha de Leste num Trabant com matrícula da
Alemanha de Leste, a qual foi fornecida, cuja chegada era esperada para as primeiras
horas de escuridão.
No entanto o Posto NÃO foi informado de que a operação estava a ser levada a cabo
contrariando as instruções da Conjunta de Coordenação. Só podíamos pressupor que,
uma vez sabido que Leamas tinha tomado o assunto em mãos, a Sede decidiu prestar
apoio operacional.
O Posto de Berlim (de Jong) tinha-nos informado de que, ao entrar em território
checo, Leamas comunicaria a chegada são e salvo por meio de uma chamada anónima
para a Secção de Vistos da Embaixada a perguntar se os vistos do RU eram válidos na
Irlanda do Norte. O Posto de Praga responderia ativando um aviso gravado
aconselhando-o a entrar novamente em contacto nas horas de expediente. Este seria a
confirmação da receção da mensagem.
Leamas e Tulipa seguiriam então por quaisquer meios possíveis para um ponto da
estrada entre a cidade e o aeroporto de Praga e estacionariam numa berma, referência
no mapa fornecida.
Segundo o plano apresentado por este Posto e aprovado pelo C/Encobertas, o par
abandonaria o carro e um condutor identificado pertencente à rede GODIVA de Praga
requisitaria a carrinha da Embaixada (matrículas CD e janelas laterais fumadas) que
regularmente faz o transporte de pessoal da Embaixada de e para o aeroporto de Praga.
Depois recolheria Leamas e Tulipa no rv combinado. A parte de trás da carrinha
conteria vestuário ocidental de cerimónia, fornecido por este Posto. Leamas e Tulipa
vestir-se-iam como convidados oficiais para jantar com a Embaixadora de SM, e com
esse pretexto conseguiriam entrar na Embaixada, que está sob permanente vigilância
por parte da segurança checa.
Às 1040 teve lugar uma reunião de emergência no compartimento seguro da
Embaixada, na qual S. Ex.a a Embaixadora [SEXA] deu amavelmente a sua anuência a
este plano. No entanto, pelas 1600, hora do RU, depois de ter consultado de novo os
Negócios Estrangeiros, alterou a sua decisão sem se desculpar, com o fundamento de
que, uma vez que a fugitiva tinha entretanto sido apresentada nos meios de
comunicação da RDA como uma criminosa de Estado, o potencial de repercussões
diplomáticas prevalecia sobre as considerações anteriores.
Face à posição expressa por SEXA, não era possível empregar um veículo nem
pessoal da Embaixada no plano de fuga. Por conseguinte desliguei imediatamente a
resposta automática da Secção de Vistos, na esperança de que isso indicasse a Leamas
que não havia apoio disponível.
Bem, claro que quando levámos a pobre Tulipa e Alec para dentro do complexo da
Embaixada é que começou a verdadeira festa. Penso honestamente que a Embaixas e
os Estrangeiros ficariam muito mais felizes se ela tivesse sido pura e simplesmente
devolvida às autoridades da RDA e não se fala mais nisso. Para começar, a Embaixas
não queria Tulipa na «sua dela» nem por um decreto, mesmo que legalmente isso não
fizesse a mínima diferença. Fez até questão de que fossem deslocados dois seguranças
para dentro do edifício principal, de maneira que a pobre Tulipa pudesse ser enfiada na
zona da criadagem, que do estrito ponto de vista da segurança funciona bastante
melhor que a casa-mãe. Mas essa não era nem pouco mais ou menos a razão, como ela
deixou absolutamente claro, uma vez encafuados os quatro no compartimento seguro
da Embaixada: S. Ex.a, acolitada por Arthur Lansdowne, o seu secretário muito
particular, mais o meu querido marido e eu própria. E Alec absolutamente nada bien
vu18 por S. Ex.a, sobre o que se falará mais adiante, e de qualquer modo a enxugar a
testa a Tulipa na zona da criadagem.
E P.S. George: uma palavra ao seu ouvido, se nos é permitido.
O compartimento seguro da Embaixada é extremamente abafado e sempre um risco
potencial para a saúde, como repetidamente informado em vão por mim mesma aos
Admin. da Sede. A porcaria do sistema de ar condicionado Mickey Mouse está
completamente avariada. Aspira o ar para dentro em lugar de o deitar para fora, mas,
segundo Barker (a peste-mor dos Admin.), há dois anos que não há peças
sobresselentes. E uma vez que ninguém dos Estrangeiros achou por bem mandar-nos
um sistema novo, toda a gente que usa o local assa e sufoca. Na semana passada o
pobre Jerry por pouco não sufocou mesmo, mas claro que ele é demasiado nobre para
o dizer. Eu sugeri para aí um milhão de vezes que o compartimento seguro passasse
para a responsabilidade do Circus, mas aparentemente isso seria uma infração aos
direitos territoriais dos Estrangeiros!!!
Se porventura puder dar um abanão aos Admin., sem me referir (NÃO ao Barker,
sugiro!), fico-lhe imensamente grata. O Jerry manda também muitos cumprimentos e
expressa a sua enorme fidelidade como sempre, especialmente a Ann.
S
Caro Alwyn,
Depois da nossa conversa telefónica segura desta manhã, foi acordado o seguinte
procedimento entre nós relativamente ao prosseguimento da viagem da nossa hóspede
não convidada (NHNC):
1. A NHNC viajará para o seu próximo destino com aquilo que os nossos Amigos nos
asseguram que será um passaporte não britânico válido. Isto prevenirá ulteriores
acusações de que esta Embaixada está a conceder passaportes do RU a todo o bicho-
careta, independentemente da nacionalidade, que tente fugir à justiça da
RDA/Checoslováquia.
2. A NHNC não será auxiliada, acompanhada ou transportada seja de que maneira for
por membros diplomáticos ou não diplomáticos do quadro da Embaixada durante a
sua partida. Nenhum veículo com chapas de matrícula diplomáticas britânicas será
usado para a exfiltração. Não lhe serão emitidos documentos britânicos falsos.
3. Se a NHNC alegar em qualquer ocasião que tem a proteção da Embaixada britânica,
fica entendido que tal será imediata e categoricamente desmentido, localmente e em
Londres.
4. A partida da NHNC do complexo da Embaixada ocorrerá dentro de três dias úteis,
ou serão consideradas outras diligências apara a sua remoção, incluindo a entrega da
NHNC às autoridades checas.
Jabroche: Bill. Meu caro amigo. Os meus chefes de Paris precisam de ter garantias de
que o vosso Monsieur Jacques é capaz de se aguentar em matéria de pequena
agricultura em França.
Haydon: Diga-lhes, Jacques.
Guillam: Eu não estou preocupado com isso, senhor coronel.
Jabroche: Nem sequer junto de especialistas?
Guillam: Eu cresci numa pequena propriedade francesa da Bretanha.
Haydon: A Bretanha é francesa? Você espanta-me, Jacques. [Risos.]
Jabroche: Bill. Com sua licença.
Jabroche: Estou convencido, Bill. Ele passa. Até fala um pouco de bretão, pobre
homem.
[Mais risos.]
Haydon: Mas resultará, Etienne? Consegue mesmo metê-lo lá dentro?
Jabroche: Lá dentro, sim. Quanto a tirá-lo, dependerá de Monsieur Jacques e da sua
boa senhora. Estão na hora H. A lista de delegados franceses está prestes a fechar. Já
estamos a mantê-la em aberto. Sugiro que mantenhamos a presença de Monsieur
Jacques na conferência tão breve quanto possível. Inscrevemo-lo, ele vai integrado
no visto coletivo, atrasa-se devido a doença, mas faz questão de estar presente na
sessão de encerramento. Como um de trezentos delegados internacionais, não
chamará indevidamente a atenção. Fala finlandês, Monsieur Jacques?
Guillam: Nem por isso, senhor coronel.
Jabroche: Julgava que todos os bretões o falavam. [Risos.] E a senhora em questão não
fala francês?
Guillam: Que saibamos, alemão e russo de escola, mas francês não.
Jabroche: Mas tem topete, diz você? É bem-apessoada. Tem elã. Sabe vestir.
Smiley: Você viu-a, Jacques.
Guillam: Só passámos de raspão um pelo outro. Mas ela impressiona. Boa técnica
operacional, raciocínio rápido. Criativa. Fogosa.
Haydon: Meu Deus. Criatividade. Quem diabo precisa de criatividade? A mulher tem é
de fazer o que lhe mandam e calar o bico, não é? É de avançar com ela ou não?
Jacques?
Guillam: Eu vou nisso se o George for.
Haydon: E vai?
Smiley: Desde que a Conjunta e o coronel forneçam o necessário apoio no terreno, nós
nas Encobertas estamos dispostos a aceitar o risco.
Haydon: Bem, isso parece um bocadinho eufemístico, se quer que lhe diga. Nesse caso
avançamos, Etienne. Presumo que você fornecerá a Monsieur Jacques o seu
passaporte e documentos de viagem franceses. Ou quer que sejamos nós a fazê-lo?
Jabroche: Os nossos são melhores. [Risos.] É favor lembrar-se também, Bill, de que,
se as coisas falharem, o meu governo ficará muito chocado se descobrir que os seus
pérfidos serviços secretos andam a encorajar os agentes a fazerem-se passar por
cidadãos franceses.
Haydon: E nós desmentiremos vigorosamente a acusação e apresentaremos desculpas.
[Para Prideaux:] Jim, meu rapaz. Comentários? Tem estado misteriosamente calado.
A Checoslováquia é o seu terreno. Agrada-lhe que nós lho usurpemos?
Prideaux: Não ponho objeções, se é aí que quer chegar.
Haydon: Há alguma coisa que queira acrescentar ou subtrair?
Prideaux: Assim de repente, não.
Haydon: Muito bem, meus senhores. Obrigado a todos. É de avançar, de maneira que
vamos a isso. Jacques, estamos consigo. Etienne, talvez uma palavrinha em
particular.
PG para C/Encobertas.
George,
Na sequência da nossa conversa. Você pediu-me para registar a minha experiência
relativamente ao Serviço de Expedição de Campanha de Heathrow, no Terminal 3,
atualmente sob o comando da Conjunta de Coordenação. Aparentemente o SEC é
apenas mais um desmazelado serviço do aeroporto ao fundo de um corredor por varrer.
Há uma porta de vidro com a inscrição «Interligação de Cargas» e o acesso é por
porteiro automático. Quando se entra, a atmosfera é deprimente: um par de estafetas
cansados a jogar as cartas, uma mulher a gritar em espanhol ao telefone, uma única
costureira a fazer dois turnos porque a colega está de baixa por doença, fumo de
cigarro, cinzeiros cheios e um único cubículo porque estão à espera de cortinas novas
para o outro.
A grande surpresa foi a comissão de receção que aguardava o meu aparecimento: o
Alleline, o Bland e o Esterhase. Se o Bill H lá estivesse, faria o pleno. Pretensamente
tinham vindo despedir-se de mim e desejar-me felicidades. O Alleline à frente como
sempre, entregou-me o passaporte francês e o cartão de identificação da conferência,
obséquio de Jabroche, com um grande gesto teatral. O Esterhase fez a mesma coisa
com a minha mala de viagem e os adereços: vestuário comprado em Rennes, manuais
de agricultura e uma história da maneira como França construiu o canal de Suez para
leitura leve, etc. O Roy Bland armou em irmão mais velho e perguntou-me
maliciosamente se havia alguém que eu pretendesse informar se estivesse ausente mais
uns anos do que se esperava.
Porém o verdadeiro propósito das suas atenções não podia ser mais claro. Queriam
saber mais sobre Tulipa: de onde ela vinha, há quanto tempo trabalhava para nós,
quem tinha o controlo dela? E depois o momento mais estranho quando, depois de me
ter esquivado às suas perguntas, estava de pé no cubículo a ser vestido e o Toby E
enfiou a cabeça pela borda da cortina dizendo que tinha a seguinte mensagem pessoal
do Bill para mim: «Quando se cansar do seu Tio George, pense na chefia do Posto de
Paris.» A minha resposta foi evasiva.
Peter
A. Passaporte finlandês para a subfonte Tulipa chegará amanhã por mala em nome
de Venia Lessif, natural de Helsínquia, especialista em nutrição, nome de casada do
cônjuge: Adrien Lessif. Passaporte conterá visto de entrada checo carimbado, data de
entrada coincidente com a conferência comunista patrocinada pelos franceses Campos
de Paz.
B. Peter Guillam chegará ao aeroporto de Praga no voo 412 da Air France amanhã
de manhã às 1040, hora local, viajando com passaporte de cidadão francês em nome de
Adrien Lessif, professor convidado de Economia Agrária na Universidade de Rennes.
Visto de entrada checo também válido para coincidir com a conferência. Participação
de Lessif na conferência pretensamente atrasada por doença. Ambos os Lessifs
figuram presentemente na Lista de Participantes na Conferência, um participante
(atrasado), um cônjuge.
C. Também pela mala de amanhã, dois bilhetes da Air France Praga-Paris Le
Bourget, em nome de Adrien e Venia Lessif, com partida às 0600 de 28 de janeiro. Os
registos da Air France confirmarão que o casal viajou para Praga em datas diferentes
(ver carimbos de entrada) mas regressará a Paris com colegas académicos do grupo.
D. O alojamento para o Professor e Mme. Lessif foi marcado no Hotel Balkan, onde
a delegação francesa ficará instalada para pernoita antes da partida de manhã cedo para
Paris Le Bourget.
Extrato da segunda carta pessoal de Sally Ormond para George Smiley, assinalada
Estritamente Pessoal & Particular para si, não para arquivo.
Na sequência da receção da sua muito lúcida mensagem, de que por esta via acuso,
agradecida, a receção, o Jerry e eu decidimos que eu deveria ir preparar Tulipa para a
sua partida da Embaixada e a sua iminente provação. Atravessei devidamente o pátio
até à suíte do anexo onde tínhamos instalado Tulipa: cortinas duplas para o lado da rua,
cama de campanha para mim na passagem à porta do quarto, guarda extra da
chancelaria postado no átrio do andar de baixo para o caso de visitas inoportunas.
Dei com ela sentada na cama, e o Alec a rodear-lhe o ombro com o braço, mas ela
parecia não saber que ele estava ali, limitando-se a gemer de vez em quando, com
soluços semissilenciosos.
Fosse como fosse, tomei firmemente conta da situação e, como estava planeado,
mandei o Alec tomar ar e dar um passeio de rapazes à beira-rio com o Jerry. Como o
meu alemão ficou bastante preso no Nível 2, a princípio não lhe consegui arrancar
grande coisa, embora duvide que isso tivesse feito grande diferença porque ela quase
não falava, quanto mais ouvir. Segredou-me várias vezes «Gustav» e eu depreendi,
depois de um pouco de linguagem gestual, que Gustav não era o seu Mann, mas sim o
seu Sohn.
Consegui, porém, fazer-lhe entender que tinha de deixar a Embaixada amanhã,
seguindo de avião para Inglaterra, mas não diretamente, e que devia integrar-se num
grupo de viagem misto francês de académicos e agricultores. A sua primeira reação,
muito naturalmente, foi como era isso possível, se não falava uma palavra de francês?
Quando eu lhe disse que isso não teria importância, porque ela seria finlandesa – e
ninguém fala finlandês, pois não? –, a sua reação seguinte foi: com esta roupa? – que
foi a minha deixa para desembrulhar todos os brilhantes mimos que o Posto de Paris
tinha reunido para nós absolutamente do pé para a mão: um deslumbrante conjunto de
camisola e casaco cor de cevada do Printemps, uns sapatos encantadores mesmo da
sua medida, uma apetitosa camisa de noite e roupa interior, maquilhagem literalmente
de morrer – o Posto de Paris deve ter gasto uma fortuna –, precisamente aquilo que ela
devia ter sonhado nos últimos vinte anos, mesmo que não o soubesse, e belas etiquetas
de Tours para completar a ilusão. E um anel de noivado muito bonito que eu própria
não desdenharia, mais uma decente aliança em lugar do pedaço de lata de imitação que
ela usava, tudo a ser devolvido ao aterrar, claro, mas não me pareceu que fosse preciso
dizer-lho já, já.
E por esta altura ela já estava integrada no papel. A profissional que nela havia tinha
acordado. Observou atentamente o novo passaporte (que na realidade não era novo) e
declarou-o bastante bom. E quando eu lhe disse que um galante francês a
acompanharia e fingiria ser seu marido durante a viagem, ela disse que lhe parecia um
plano sensato; e como é que ele era?
Assim, conforme tinha sido incumbida, mostrei-lhe uma fotografia do Peter G e ela
inspecionou-a bastante inexpressivamente, devo dizer, uma vez que, em termos de
maridos substitutos, podia calhar-lhe coisa bem pior do que o PG. Finalmente
perguntou: «Ele é francês ou inglês?» E eu disse: «As duas coisas, e você é finlandesa
e francesa», e, meu caro, ela desmanchou-se positivamente a rir!
E pouco depois disto o Alec e o Jerry voltaram do seu passeio e, com o gelo
quebrado, demos início ao briefing a sério. Ela ouviu atenta e calmamente.
No final da nossa sessão, tive a sensação de que ela se tinha realmente entusiasmado
com a ideia no seu todo, e de uma maneira bastante horrível a achava divertida. Um
bocado viciada no perigo, pensei, e apenas nesse aspeto, muito parecida com o Alec!
Passe bem, e dê os meus afetuosos cumprimentos à nossa deslumbrante Ann.
S
Caro George,
Bem, a ave voou, com certeza, para enormes suspiros de alívios por aqui, como
pode imaginar, e provavelmente está a estas horas instalada a salvo, senão feliz, no
Chateau Tulip, Algures em Inglaterra. O seu voo, em ambos os sentidos, parece ter
corrido razoavelmente bem, apesar do facto de o JONAH à última hora querer $500
além do salário antes de consentir em levar Tulipa ao rv na sua ambulância, o
sacaninha. Mas não é de Tulipa que lhe quero falar, e muito menos do Jonah. É do
Alec.
Como você disse muitas vezes no passado, como profissionais obrigados ao segredo
temos um dever de cuidar, e é uns dos outros. E isso significa sermos mutuamente
vigilantes, e se um de nós aparenta ceder sob pressão e não se apercebe disso, é nossa
obrigação protegê-lo de si próprio, e na mesma linha proteger também o Serviço.
O Alec é incontestavelmente o melhor agente operacional que você e eu
conhecemos. Tem miolos que se farta, é dedicado, safa-se bem na rua e tem todas as
competências. E acabou de levar a cabo uma das mais eficientes e mais arriscadas
operações a que tive o prazer de assistir, embora passando por cima da Conjunta de
Coordenação, da nossa venerada Embaixadora e dos mandarins de Whitehall. Portanto
quando ele emborca três quartos duma garrafa de uísque numa sessão e depois arma
uma discussão com um guarda da chancelaria com o qual calha antipatizar, nós damos-
lhe todo o desconto e mais algum.
Mas fomos dar um passeio a pé, o Alec e eu. Pela beira-rio durante uma hora, até a
uma casa segura dos subúrbios e depois até ao castelo, voltando à Embaixada. Portanto
uma caminhada de duas horas enquanto ele ainda estava, segundo o seu próprio
critério, perfeitamente sóbrio. E o único assunto durante todo esse tempo foi: o Circus
foi infiltrado. Não apenas por algum funcionário da correspondência com uma
hipoteca para pagar, mas no topo da pirâmide, onde realmente conta. E não são
simples macaquinhos no sótão, é a aldeia dos macacos inteira. É desproporcionado,
não é baseado em factos, e francamente é paranoico. A somar ao ódio visceral que ele
tem a tudo o que seja americano, torna as conversas difíceis, para não ir mais longe, e
acaba por ser ainda mais alarmante. E em conformidade com as leis da nossa profissão
tal como uma pessoa com o seu estatuto as define, e com todo o devido afeto e
respeito, estou a transmitir-lhe as minhas preocupações como é devido.
Seu, sempre,
Jerry
– Gostou da leitura?
– Tolerável, obrigado, Bunny.
– Bem, meu Deus, foi você que o escreveu, não foi? Causou-lhe com
certeza uma certa sensação, passado todo esse tempo.
Neste final de tarde trouxe um amigo com ele: um jovem loiro e
sorridente, muito requintado, sem um indício de vida no corpo.
– Peter, apresento-lhe o Leonard – diz Bunny cerimoniosamente, como
se eu tivesse obrigação de saber quem é o Leonard. – O Leonard vai ser o
advogado do Serviço se o nosso assuntozinho chegar alguma vez a
tribunal, o que, como é evidente, desejamos ardentemente que não
aconteça. Vai também estar presente por nós no encontro preliminar da
comissão de inquérito parlamentar da próxima semana. Perante a qual,
como sabe, você já foi indicado para comparecer. – Um sorriso que é mais
um ricto. – Leonard, apresento-lhe o Peter.
Apertamos a mão. A de Leonard é macia como a de uma criança.
– Se o Leonard vai representar o Serviço, o que é que faz aqui ao pé de
mim?
– É uma maneira de se familiarizarem com o rosto um do outro – diz
Bunny em tom apaziguador. – O Leonard é um advogado de
jurisprudência pacífica – e, ao ver que eu arqueio as sobrancelhas –, o que
significa apenas que é versado em todos os expedientes jurídicos que vêm
nos livros, e alguns que nem sequer vêm nos livros. Mete num chinelo os
advogados vulgares de Lineu como eu.
– Ora vamos – diz Leonard.
– E a razão pela qual a Laura não está aqui hoje, Peter, já que você não
pergunta, é que o Leonard e eu, conjuntamente, achámos que seria
bastante melhor para todas as partes, incluindo você, que isto fosse uma
discussão exclusivamente entre homens.
– O que é que isso quer dizer?
– O bom e antiquado tato, para começar. Respeito pela sua privacidade.
E além disso a possibilidade adicional de por uma vez lhe arrancarmos a
verdade. – Sorriso travesso. – O que possibilitaria ao Leonard ter uma
ideia de como avançar de uma maneira geral. Comentário justo, Leonard?
Ou exagerado?
– Ah, bastante justo – diz Leonard.
– E, claro, abordar com bastante mais pormenor a questão de saber se os
seus interesses pessoais são mais bem representados tendo o seu próprio
representante legal – continua Bunny. – No funesto caso, por exemplo, de
todos os parlamentares saírem de cena em bicos de pés, o que nos consta
não ser nem pouco mais ou menos inédito, deixando a Cega Justiça levar a
sua avante em relação a si. A nós.
– E que tal um cinturão negro? – sugiro eu.
A minha graça é ignorada. Ou talvez seja registada, quanto mais não
seja como prova de que eu estou hoje particularmente crispado.
– E para esse caso o Circus tem uma lista restrita de candidatos
elegíveis, candidatos aceitáveis, digamos, e Leonard, creio que você disse
que estava na disposição de ajudar o Peter a decidir, se as coisas chegarem
a esse ponto, o que esperamos fervorosamente que não seja o caso –
submetendo-se com um sorriso colegial à opinião de Leonard.
– Absolutamente, Bunny. O problema é que não há assim tantos de nós
que estejam credenciados a um nível tão elevado. Na minha opinião o
Harry está a sair-se tremendamente bem, como sabe – diz Leonard. –
Concorreu a conselheiro da rainha e os juízes adoram-no. Portanto,
pessoalmente, sem querer de maneira nenhuma influenciar… escolha o
Harry. É homem, e eles gostam que seja um homem a defender outro
homem. Podem não o saber, mas gostam.
– Quem é que lhe paga? – pergunto eu. – A ele ou a ela?
Leonard sorri, olhando para as mãos. Bunny encarrega-se de responder
à pergunta.
– Bem, eu penso que em termos gerais, Peter, muito pode depender da
maneira como o julgamento correr… e, digamos, do seu próprio
comportamento pessoal, do seu sentido do dever e da sua lealdade ao seu
antigo Serviço.
Mas Leonard não ouviu uma palavra disto, como depreendo pela
maneira como continua a sorrir olhando para as mãos.
– Ora bem, Peter – volve Bunny, como se estivesse a chegar à parte
fácil. – Sim ou não? – Semicerra os olhos. – Entre homens. Comeu ou não
comeu a Tulipa?
– Não.
– Não de maneira nenhuma?
– De maneira nenhuma.
– Não irrevogavelmente, aqui e agora nesta sala, na presença de uma
testemunha de cinco estrelas?
– Desculpe, Bunny – é Leonard, de mão no ar numa amistosa censura. –
Acho que se esqueceu momentaneamente do Direito. Face às minhas
funções no tribunal, e às minhas obrigações de agir como advogado do
meu cliente, não posso de maneira nenhuma comparecer como
testemunha.
– Muito bem. Mais uma vez, se faz favor, Peter. Eu, Peter Guillam, não
comi Tulipa no Hotel Balkan, em Praga, na noite da véspera da sua
exfiltração para o Reino Unido. Verdade ou mentira?
– Verdade.
– O que é um alívio para todos nós, como decerto pode imaginar.
Especialmente porque ao que parece você comeu todas as que lhe
apareciam à frente.
– Imensas – concorda Leonard.
– E ainda mais especialmente uma vez que a Regra Número Um dum
Serviço que não tem assim tantas regras estipula que os funcionários no
ativo nunca, por nunca ser, comem as suas tipas, como vocês lhes
chamam, nem sequer por uma questão de delicadeza. As tipas de outros
quando operacionalmente desejáveis, tudo bem, é fartar vilanagem. As
suas é que nunca. Está ciente dessa regra?
– Estou.
– E também o estava na altura em questão?
– Estava.
– E concorda que, se a tivesse mesmo comido, coisa que sabemos que
não fez, isso constituiria não só uma monumental quebra da disciplina do
Serviço, como uma clara prova da sua natureza grosseira e incontrolável e
da sua falta de consideração pela sensibilidade de uma mãe fugitiva em
perigo mortal que acabava de se ver privada do seu único filho? Concorda
com esta afirmação?
– Concordo com a sua afirmação.
– Tem alguma pergunta a fazer, Leonard?
Leonard puxa pelo bonito lábio inferior com as pontas dos dedos e
franze a testa lisa.
– Sabe, Bunny, isto parece tremendamente incorreto, mas na verdade
acho que não tenho nenhuma pergunta a fazer – confessa, com um sorriso
escandalizado consigo próprio. – Depois disso, não tenho. Acho que pro
tempore fomos todos tão longe quanto é possível. E mais ainda. – E para
mim, em tom de confidência: – Vou mandar-lhe essa lista restrita, Peter. E
nunca me ouviu mencionar o Harry. Ou talvez melhor, faço-a chegar ao
Bunny. Conivência – explica, contemplando-me com outro sorriso
adorador e estendendo a mão para a pasta preta, indicando que a demorada
reunião que eu tinha previsto está terminada. – Mas acho que um homem
seria bom, ainda assim – diz para Bunny, não para mim, num aparte. –
Quando se trata de perguntas difíceis, os homens estão bastante em
vantagem nestes casos. São menos puritanos. Até à festarola parlamentar,
Peter. Tschüss20.
*
14* Na sequência do recrutamento de Primavera por este Serviço, decidiu-se reduzir ao mínimo as
suas deslocações visíveis a Berlim Oeste. O Posto de Berlim forneceu-lhe por conseguinte a
identidade de Friedrich Leibach, operário de construção civil residente em Lichtenberg, Berlim
Leste, onde por meios próprios Primavera obteve a utilização de um barracão de jardim para a sua
bicicleta e indumentária de operário.
Que eu visse, não havia nada no ficheiro – e graças a Deus não havia
mesmo – sobre os dias e noites de eternidade que eu tinha passado na
Bretanha depois de entregar Doris a Joe Hawkesbury, o nosso Chefe do
Posto de Paris, no aeroporto de Le Bourget às sete de uma enevoada
manhã de inverno. Quando o nosso avião aterrou e uma voz chamou pelo
Professor e Madame Lessif, fiquei num estado de delirante alívio. Ao
descermos a escada lado a lado, a visão de Hawkesbury sentado lá em
baixo num Rover preto com matrícula CD e uma jovem assistente do
Posto no assento traseiro pôs-me o coração aos saltos.
– E o meu Gustav? – perguntou Doris, agarrando-me no braço.
– Vai correr tudo bem. Há de acontecer – disse eu, ouvindo a minha
própria voz a papaguear as ocas garantias de Alec.
– Quando?
– Assim que puderem. São boa gente. Vais ver. Amo-te.
A rapariga de Hawkesbury estava a segurar a porta traseira. Ter-me-ia
ouvido? A minha descabelada explosão, pronunciada por outro dentro de
mim? Não importava se ela sabia alemão ou não. Qualquer palerma sabe o
significado de Ich liebe Dich21. Impeli Doris para diante. Com um
movimento brusco, ela sentou-se relutantemente no banco de trás. A
rapariga entrou a seguir a ela e fechou a porta com força. Eu instalei-me
no assento do passageiro, ao lado de Hawkesbury.
– Fizeram boa viagem? – perguntou ele, enquanto atravessávamos o
asfalto atrás de um jipe com as luzes a piscar.
Entrámos num hangar de aviões. Diante de nós, na escuridão, um
bimotor da RAF, com os hélices a rodar lentamente. A rapariga apeou-se
de um salto. Doris deixou-se ficar, sussurrando de si para si palavras em
alemão que não consegui perceber. As minhas loucas palavras não
pareciam ter causado qualquer impressão nela. Talvez não as tivesse
ouvido. Talvez eu não as tivesse dito. A rapariga tentou convencê-la, mas
ela não arredava pé. Eu entrei para o lado dela e peguei-lhe na mão. Ela
encostou a cabeça ao meu ombro enquanto Hawkesbury nos observava
pelo retrovisor.
– Ich kann nicht22 – murmurou ela.
– Du musst23, vai correr tudo bem. Ganz ehrlich. Palavra.
– Du kommst nicht mit? – Tu não vens?
– Mais tarde. Depois de falares com eles.
Saí do carro e estendi-lhe a mão. Ela ignorou-a e apeou-se sozinha. Não,
não me ouviu. Não pode ter ouvido. Uma tripulante fardada com um bloco
de mola na mão marchou direita a nós. Com a rapariga de Hawkesbury de
um lado e a tripulante do outro, Doris deixou-se conduzir até ao avião. Ao
chegar à escada, parou, olhou para cima e, depois de se armar de coragem,
começou a subir, servindo-se de ambas as mãos. Eu esperei que ela se
virasse para trás. A porta da cabina fechou-se.
– Pronto, está feito – disse Hawkesbury secamente, ainda sem voltar a
cabeça para mim. – Portanto o recado lá de cima é: bravo, fez um ótimo
trabalho, agora volte para a Bretanha, recomponha-se e espere pela grande
chamada. A gare de Montparnasse dá-lhe jeito?
– A gare de Montparnasse serve perfeitamente, obrigado.
E você pode ser o menino bonito da Conjunta de Coordenação, irmão
Hawkesbury, mas isso não impediu Bill Haydon de me oferecer o seu
lugar.
*
E uma vez que nunca ninguém sabe bem o que disse numa ocasião
destas, e eu não sou diferente, não me atribuirei o obrigatório grito de dor,
horror ou incredulidade. Sei que deixei de ver o que quer que fosse com
nitidez, nem as bétulas prateadas nem o pombal. Sei que o dia estava
soalheiro e quente para aquela época do ano. Sei que me apeteceu vomitar
mas, fiel à minha natureza inibida, consegui reter-me. Sei que segui
Mendel até à arruinada casa de verão que fica no ponto mais a sul da
propriedade, separada da casa-mãe por uma densa mata de ciprestes-da-
califórnia. E que quando nos sentámos na periclitante varanda estávamos a
olhar para um campo de croquet invadido pela vegetação, porque me
recordo dos enferrujados arcos a despontar da relva.
– Pendurada pelo pescoço até morrer, lamento muito, filho – estava a
dizer Mendel, pronunciando as palavras da sentença de morte. – Um
trabalho feito pela própria. Do ramo baixo de uma árvore mesmo do lado
de lá daquela encosta além. Junto da ponte pedonal. Ponto 217 do mapa.
Óbito certificado às 0800 pelo Dr. Ashley Meadows.
Ash Meadows, psiquiatra em voga de Harley Street, improvável amigo
de George. Eventual do Circus com o monopólio dos desertores
neuróticos.
– O Ash está cá?
– Está agora com ela.
Digiro lentamente a informação. Doris morreu. Ash está com ela. Um
médico monta guarda aos mortos.
– Deixou alguma mensagem, ou coisa assim? A dizer a alguém o que ia
fazer?
– Enforcou-se e pronto, filho. Com um pedaço de corda de alpinismo de
nylon entrançado que parece ter encontrado por aqui. Dois metros e
setenta de comprimento. Provavelmente deixada por um curso de
formação. Uma certa negligência, na minha opinião pessoal.
– Alguém informou o Alec? – pergunto eu, pensando agora na cabeça
dela a descansar no seu ombro.
De novo a voz do polícia.
– O George contará ao seu amigo Alec Leamas o que o Alec precisa de
saber quando o Alec precisar de saber, e não antes, filho. E há de ser o
George a escolher a altura de o fazer. Entendido?
Entendido que Alec ainda pensa que deixou Tulipa em segurança.
– Onde está ele agora? Não é o Alec. O George – pergunto
estupidamente.
– Neste preciso momento, o George está ocupado a conversar com um
cavalheiro suíço fortuito, por acaso. Ficou preso numa armadilha do
terreno, pobre sujeito. Não era uma armadilha para animais, era mais uma
armadilha para intrusos, colocada por um caçador furtivo depois de ter
apanhado algum veado, imaginamos nós. Ferrugenta, posta no meio da
erva alta, ao que nos disseram. Podia lá estar desde há sabe-se lá quanto
tempo. E aqueles dentes podiam ter-lhe decepado o pé, ao que me dizem.
Portanto teve sorte. – E, perante o meu continuado silêncio, no mesmo
tom coloquial: – O indivíduo suíço em questão é ornitólogo amador, o que
eu respeito, visto que também o sou mais ou menos, e estava a observar
pássaros. Não pretendia invadir as instalações, mas fê-lo, o que lamenta.
Eu também o lamentaria. O que me choca, aqui para nós, é o Harper e o
Lowe não terem dado por ela nas suas rondas pela propriedade. Foi uma
sorte não a terem pisado, é tudo o que posso dizer.
– Porque é que o George está a falar com ele agora? – e suponho que
queria dizer numa altura destas.
– Com o cavalheiro suíço? Bem, ele é uma testemunha importante, não
é, filho? O cavalheiro suíço. Quer queira, quer não. Estava no terreno (é
certo que indevidamente, um colega ornitólogo amador como eu, estas
coisas acontecem), mas na altura relevante, para seu azar. Naturalmente, o
George quer saber se o cavalheiro viu ou ouviu alguma coisa de interesse
que possa lançar luz sobre o assunto. Talvez a pobre Tulipa se tenha
dirigido de alguma maneira a ele. Pensando bem, é uma situação delicada.
Estamos numa infraestrutura altamente secreta e Tulipa não aterrou
oficialmente no RU, de modo que o cavalheiro suíço tropeçou naquilo a
que poderíamos chamar um vespeiro secreto. Isso tem de ser tido em
conta, como quer que seja.
Eu estava a ouvi-lo, mas na realidade não o escutava:
– Preciso de a ver, Oliver – disse.
Ao que, surpreendido, ele respondeu:
– Então deixe-se estar aqui mesmo, filho, enquanto eu comunico isso lá
para cima, e não se mexa em circunstância nenhuma.
Dito isto, avançou a passos largos pela erva comprida do relvado de
croquet abandonado, murmurando mais uma vez para o walkie-talkie. A
um gesto seu, desci atrás dele até à espessa porta do Cepo. Ele bateu e a
seguir recuou. Depois de uma espera, a porta abriu-se com um rangido e
apareceu Ash Meadows em pessoa, um ex-jogador de râguebi de
cinquenta anos, de suspensórios vermelhos e camisa de xadrez de flanela,
a fumar o seu habitual cachimbo.
– Lamento isto, meu velho – disse, afastando-se de mim; de maneira
que eu disse que também o lamentava.
Numa mesa de pingue-pongue a meio do grande celeiro via-se a efígie
de uma mulher esbelta envolvida num saco para cadáveres com fecho de
correr. Estava deitada de costas, com os dedos dos pés para cima.
– A pobre rapariga nunca soube que lhe chamavam Tulipa a não ser ao
chegar cá. – Ash estava a entregar-se a reminiscências, com a voz jovial
que tinha evidentemente desenvolvido para falar na presença de mortos. –
Mal soube que era Tulipa, ai de quem a tratasse por outra coisa. Tem a
certeza de que quer fazer isto?
Queria dizer na sua: estava eu preparado para ele abrir o fecho de
correr? Estava.
O rosto dela, pela primeira vez desde que eu o conhecia, estava
inexpressivo. O cabelo acobreado estava penteado em trança e atado com
uma fita verde, com a trança caída ao lado da cabeça. Tinha os olhos
fechados. Nunca até então a vira a dormir. O pescoço era uma escara de
azuis e cinzentos.
– Terminado, Peter, meu velho?
De qualquer maneira, correu o fecho.
*
1. Desaparecimento de TULIPA.
Informada por Jeanette Avon às 0610 de que Tulipa saíra para a sua corrida matinal
sozinha, pedi imediatamente à segurança (Harper e Lowe) que fizesse uma busca pela
propriedade, concentrando-se no carreiro da periferia, que sabia por Avon ser a rota
preferida de Tulipa. Como medida de precaução procedi então a uma inspeção da suíte
dos hóspedes e verifiquei que o fato de treino e os ténis ainda estavam no guarda-
vestidos. Por outro lado, o vestuário de sair e a roupa interior franceses que lhe tinham
sido fornecidos em Praga não estavam. Embora não tivesse documentos de identidade
nem dinheiro consigo, a carteira, que eu verificara anteriormente nada conter além de
artigos pessoais, tinha também desaparecido.
Uma vez que a situação estava fora da competência das Encobertas, e o
C/Encobertas se encontrava ausente por tarefas urgentes em Berlim, tomei a decisão
executiva de ligar para o oficial de serviço da Conjunta de Coordenação e pedir-lhe
para informar a ligação policial de que uma doente mental correspondente à descrição
de Tulipa estava a monte nas proximidades, que não era violenta, não falava inglês e
estava em tratamento psiquiátrico. Se fosse encontrada, devia ser devolvida ao
Instituto.
Telefonei então para o consultório do Dr. Meadows, em Harley Street, e deixei
recado à secretária para ele regressar o mais rapidamente possível ao Campo 4, sendo
informada de que, tendo sido avisado pela Sede, ele estava já a caminho.
O C/Encobertas confidenciou ainda à assembleia que o intruso, que de facto não era
nenhum estrangeiro, mas um genuíno e inglesíssimo natural de Clapham, estava já a
caminho das Urgências de Salisbury, onde lhe seria administrada uma injeção
antitetânica e lhe tratariam dos ferimentos. O Inspetor Mendel iria em breve visitar o
seu velho amigo e levar-lhe-ia uma garrafa de uísque com os cumprimentos do Campo
4. Aplausos.
Às 0100 desta manhã, registou-se o episódio que segue no clube noturno Altes
Fasse, em Berlim Oeste, entre o SC/Posto de Berlim Alec Leamas e Cy Aflon,
SC/Posto da CIA em Berlim. Os factos não são contestados por nenhuma das partes.
Os dois homens nutrem uma inimizade antiga, pela qual, como anteriormente referido,
considero Leamas o exclusivo responsável.
Leamas entrou no clube noturno sozinho e dirigiu-se para a Damengalerie, um bar
separado para mulheres solteiras em busca de clientela. Tinha estado a beber, mas, na
sua própria opinião, não estava embriagado.
Aflon estava sentado com duas colegas do Posto, a assistir ao espetáculo de cabaré e
a tomar sossegadamente uma bebida.
Ao ver Aflon e o seu grupo, Leamas mudou de direção, encaminhou-se para a mesa
deles e, debruçando-se, dirigiu-se a Aflon em voz baixa nestes termos:
Leamas: Se alguma vez voltar a tentar comprar uma das minhas fontes, torço-lhe o
sacana do pescoço.
Aflon: Eh lá, Alec. Em frente das senhoras, não, se faz favor.
Leamas: Dois mil dólares por mês pelo primeiro cheirinho de qualquer coisa que
obtenha antes de no-la vender em segunda mão. E chama a isso combater na porra da
guerra? Talvez leve um linguado destas simpáticas senhoras por acréscimo.
Quando Aflon se pôs de pé, protestando contra este flagrante insulto, Leamas
atingiu-o no rosto com o cotovelo direito, fazendo-o cair ao chão, após o que lhe
pregou um pontapé nas virilhas. Chamou-se a polícia de Berlim Oeste, que mandou vir
a polícia militar americana. Aflon foi levado para o hospital militar, onde está
atualmente a recuperar. Felizmente, até ao momento não há registo de fraturas nem
ferimentos que impliquem perigo de vida.
Apresentei as minhas servis desculpas pessoalmente a Aflon e ao seu C/Posto,
Milton Berger. Este é o mais recente de uma série de lamentáveis incidentes
envolvendo Leamas.
Embora reconheça que as recentes perdas da rede Primavera colocaram o Posto e
Leamas pessoalmente numa situação de considerável tensão, isso não justifica de
maneira nenhuma os prejuízos que ele causou às nossas relações com o nosso mais
importante aliado. O antiamericanismo de Leamas é desde há muito visível. Agora
tornou-se totalmente inaceitável. Ou sai ele, ou saio eu.
Estou a tomar uma bebida à hora do almoço com Alec num bar que fica
a uns minutos a pé do Circus. O Controlo deu-lhe uma última
oportunidade de se portar bem e colocou-o na Secção Bancária, no rés do
chão, com instruções para surripiar tudo aquilo a que consiga deitar a mão,
embora Alec não mo diga, e eu não tenho a certeza de que ele saiba quanto
eu sei. São duas e meia e encontrámo-nos à uma, e quando a pessoa está
no rés do chão tem uma hora de almoço e não há desculpas.
Depois de um par de imperiais, ele está no uísque, e a única coisa que
comeu ao almoço foi um pacote de batatas fritas salpicadas de Tabasco.
Resmungou em voz alta acerca de o Circus ser hoje em dia uma carrada de
gente esquisita, sobre o que é feito da malta fixe do tempo da guerra, e que
a única coisa com que o andar de cima se preocupa é em lamber as botas
aos americanos.
E eu ouvi e não disse grande coisa porque não sei ao certo até que ponto
é o verdadeiro Alec e até que ponto é ele a viver o papel, e não tenho a
certeza de que ele saiba, que é exatamente como as coisas devem ser. Só
quando já estamos no passeio com o trânsito a passar é que ele me agarra
pelo braço. Por momentos penso que me vai esmurrar. Em lugar disso,
abre os braços e estreita-me contra ele como o emotivo bêbedo irlandês
que finge ser, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe correm pelas faces
hirsutas.
– Gosto imenso de si, está a ouvir, Pierrot?
– E eu também gosto imenso de si, Alec – obedientemente.
E antes de me afastar de repelão:
– Diga cá. Só para informação. Que diabo vem a ser Bambúrrio?
– Apenas uma fonte das Encobertas que nós controlamos. Porquê?
– Uma coisa que o maricas do Haydon me disse noutro dia quando
estava com os copos. As Encobertas têm por aí uma nova fonte bestial, e
porque é que ninguém mete a Conjunta ao barulho? Sabe o que eu lhe
disse?
– O que foi que lhe disse?
– Se fosse eu que estivesse a chefiar as Encobertas, disse-lhe eu, e
alguém da Conjunta viesse ter comigo e me perguntasse quem era a
grande fonte, pregava-lhe um pontapé nos tomates.
– E o que foi que o Bill lhe disse?
– Disse que me fosse foder. Sabe que mais eu lhe disse?
– Ainda não.
– Tire as mãos apaneleiradas de cima da mulher do George.
*
É noite cerrada nos Estábulos. É sempre. Os Estábulos são uma casa que
vive de noite, em vagas imprevisíveis. Tão depressa estamos todos
mortalmente aborrecidos por causa da espera, como de repente há tumulto
à porta de entrada e um grito de Trabalho! e Jim Prideaux entra por ali
adentro com a última fornada de joias da coroa de Bambúrrio. Chegaram
por micropontos ou papel químico; Jim tirou-as à mão de uma caixa de
recolha de correio em território interdito; foram-lhe transmitidas
pessoalmente por Bambúrrio num treff de um minuto numa viela esconsa
de Praga. De repente eis-me a correr escada acima, escada abaixo com
telegramas, eis-me curvado sobre a minha secretária a alertar os fregueses
de Whitehall por telefone verde, as máquinas de escrever manuais das
irmãs põem-se a matraquear e a máquina de cifra de Ben desata a arrotar
através das tábuas do soalho. Durante as próximas doze horas vamos estar
a decifrar o material em bruto de Mundt e a disseminá-lo por uma porção
de fontes fictícias – um pouco de escuta de comunicações aqui, uma
interceção de telefone ou de microfone além – e só raramente, para manter
a mistura viva, um ou outro informador altamente colocado e fiável, mas
tudo isso sob o único nome mágico de Bambúrrio, exclusivamente para
recetores doutrinados. Esta noite é uma acalmia entre tempestades. Por
uma vez George tem a Sala do Meio por sua conta.
– Há um par de dias cruzei-me por acaso com o Alec – começo eu.
– Julgava que tínhamos combinado que você iria deixar arrefecer a sua
relação com o seu amigo Alec, Peter.
– Há qualquer coisa acerca da operação Bambúrrio que eu não percebo
e acho que devia perceber – digo eu, passando ao meu discurso preparado.
– Devia? Com que autoridade? Valha-me Deus, Peter!
– É apenas uma simples pergunta, George.
– Não sabia que nós lidávamos com simples perguntas.
– Quais são as competências do Alec, é só isso?
– Fazer o que está a fazer, como você muito bem sabe. Tornar-se um dos
aborrecidos fracassos da vida. Uma rejeição do Serviço. Parecer
rancoroso, vingativo, seduzível, comprável.
– Mas com que intenção, George? Com que objetivo?
A impaciência estava a levar a melhor sobre ele. Começou a responder,
respirou fundo e principiou de novo.
– O seu amigo Alec Leamas tem ordens para ostentar os seus bem
atestados defeitos de caráter em toda a sua glória. Assegurar-se de que eles
chamam a atenção dos caçadores de talentos da oposição (com uma
pequena ajuda do traidor ou traidores nas nossa fileiras) e colocar o seu
considerável acervo de informações secretas no mercado, para nós depois
acrescentarmos uns quantos elementos para despistar da nossa própria
autoria.
– Portanto uma normal operação de desinformação de agente duplo.
– Com enfeites, sim. Uma operação normal.
– Só que ele parece pensar que a sua missão é matar o Mundt.
– Bom, tem toda a razão, não tem? – retruca ele, sem demora e sem
alteração do tom de voz.
Estava a perscrutar-me furiosamente através dos óculos redondos. Eu
esperava que por essa altura já estivéssemos sentados, mas continuamos
de pé, e eu sou substancialmente mais alto que George. Mas o que me
impressionou foi a aridez da voz dele, que me recordou o nosso encontro
na esquadra apenas horas antes de ele ter firmado o seu pacto do diabo
com Mundt.
– O Alec Leamas é um profissional, como você é, Peter, e como eu sou.
Se o Controlo não o convidou para ler as letras pequenas da sua missão,
tanto melhor para o Alec e para nós. Ele não pode dar passos em falso e
não pode trair. Se a missão dele for bem-sucedida de maneiras que ele não
previa, não se sentirá enganado. Sentirá que cumpriu o que dele se exigia.
– Mas o Mundt é nosso, George! É um tipo nosso… É Bambúrrio!
– Obrigado. O Hans-Dieter Mundt é um agente deste Serviço. E como
tal tem de ser protegido a todo o custo dos que acertadamente pensam que
ele é aquilo que é, e só sonham em encostá-lo à parede e ocupar o seu
lugar.
– E quanto à Liz?
– Elizabeth Gold? – Como se se tivesse esquecido do nome dela, ou eu
o tivesse pronunciado mal. – A Elizabeth Gold vai ser convidada a fazer o
que naturalmente lhe sai: dizer a verdade e nada mais que a verdade. Já
tem todas as informações de que precisa?
– Não.
– Invejo-o.
12
É outra manhã, cinzenta, para variar, e cai uma chuva miúda sobre
Dolphin Square quando entro no meu autocarro. Acontece que chego cedo
aos Estábulos, mas Tabitha já está sentada à minha espera, muito satisfeita
consigo própria por ter adquirido um maço de relatórios de vigilância do
Special Branch que alega terem-lhe aparecido à porta. Ela não sabe se são
autênticos, claro, nem se alguma vez poderá vir a fazer uso deles, mas eu
não devo em circunstância alguma murmurar a quem quer que seja que ela
os tem. Tudo isto me diz que ela tem um amigo no Special Branch, e os
relatórios são exatamente o que eles dizem que são.
– Então vamos começar pelo primeiro dia da ação direta, este. Não há
uma pista de quem realmente pediu ao Special Branch para pôr os cães
atrás do Alec. Apenas a pedido da Caixa… Presumo que nesse tempo
Caixa fosse a gíria policial para designar o Circus. Sim?
– Sim.
– Tem alguma ideia de quem, na Caixa, poderá ter feito o pedido ao
Special Branch?
– A Conjunta, provavelmente.
– Quem da Conjunta, em particular?
– Podia ser qualquer um deles. O Bland, o Alleline, o Esterhase. Até o
próprio Haydon. O mais provável é que ele tenha delegado num dos seus
subalternos, para não se comprometer.
– E deve ser o Special Branch a levar a cabo a vigilância, e não os seus
amigos do Serviço de Segurança? É esse o procedimento normal?
– Absolutamente.
– Porque…?
– Porque os dois serviços não gostam um do outro.
– E a nossa esplêndida polícia?
– Não gostava do Serviço de Segurança por se imiscuir e do Circus
porque éramos uma cambada de maricas emproados cuja missão na vida
era infringir a lei.
Ela ficou a pensar nisto e depois em mim, examinando-me francamente
com os seus tristes olhos azuis.
– Às vezes você é muito convencido. Qualquer um pensaria que você
tinha conhecimentos privilegiados. Teremos de vigiá-lo a esse respeito.
Um funcionário subalterno apanhado na corrente de ar de acontecimentos
históricos, é o que procuramos. Não alguém com um grande segredo a
esconder.
*
Vigilância.
Para o seu primeiro dia de observação os meus oficiais escolheram a segunda sexta-
feira do mês, por se tratar do dia em que a Secção de Goldhawk Road do Partido
Comunista patrocina o seu dia de visitas a todo o tipo de correntes de esquerda no
Oddfellows’ Hall, em Goldhawk Road, pois Vénus foi recentemente transferida da
secção de Cable Street para a de Goldhawk Road, ao mudar de residência para
Bayswater. A assistência habitual inclui membros do Partido dos Trabalhadores
Socialistas, «Militantes», a Campanha para o Desarmamento Nuclear, mais dois
oficiais disfarçados da minha própria Força – um do sexo masculino e outro do sexo
feminino –, garantindo-se assim camuflagem para as casas de banho.
Ao sair da biblioteca, às 1730, o par alvo fez uma paragem no Queen’s Arms, em
Bayswater Street, onde Marte bebeu um grande uísque e Vénus um Babycham,
chegando conforme previsto ao Oddfellows’ Hall às 1912, sendo o tema da tarde «Paz
a que Preço?» e estando presentes nesta ocasião no auditório, que tem capacidade para
508 pessoas, um número estimado de 130, de variadas cores de pele e camadas sociais.
Marte e Vénus sentaram-se devidamente ao lado um do outro na retaguarda, perto da
saída, tendo Vénus, uma figura popular entre os camaradas, recebido sorrisos e acenos
de cabeça.
Após umas breves palavras de abertura de R. Palme Dutt, ativista e jornalista
comunista, que a seguir saiu imediatamente da sala, houve outros palestrantes menos
cotados que subiram ao estrado, sendo o último Bert Arthur Lownes, proprietário da
Lownes, a Mercearia do Povo, em Bayswater Road, um autointitulado trotskista e bem
conhecido da polícia por incitamento à violência, rixas e outros atos visando a
perturbação da ordem em local público.
Até Lownes ter pegado no microfone, Marte tinha-se mostrado taciturno e enfadado,
bocejando, cabeceando e matando periodicamente a sede com uma garrafa de bolso, de
conteúdo desconhecido. A atitude prepotente de Lownes, porém, acordou-o da
sonolência, para citar o meu oficial, levando-o inesperadamente a pôr o braço no ar a
fim de chamar a atenção do indivíduo que presidia à reunião, também tesoureiro da
Secção de Goldhawk Road, Bill Flint, que pediu como era devido a Marte que se
identificasse e depois formulasse a pergunta ao orador, de acordo com as regras do Dia
de Abertura ao Público. Os registos dos meus oficiais, elaborados durante e a seguir à
reunião, são uniformes e rezam o seguinte:
Marte [Sotaque irlandês. Identifica-se]: Bibliotecário. Tenho uma pergunta para si,
camarada. Está a dizer-nos que devemos deixar de nos armarmos até aos dentes
contra a ameaça soviética porque os soviéticos não estão a ameaçar ninguém. É
isto? Desistir da corrida aos armamentos já e gastar o dinheiro em cerveja?
[Risos.]
Lownes: Bem, se há alguma simplificação exagerada, é essa, camarada. Mas pronto. Se
quer exprimi-lo dessa maneira, sim.
Marte: Ao passo que, segundo o camarada, o verdadeiro inimigo com o qual nos
devíamos preocupar é a América. O imperialismo americano. O capitalismo
americano. A agressão americana. Ou isso é outra simplificação exagerada que estou
a fazer?
Lownes: Qual é a sua pergunta, camarada?
Marte: Bem, é isto, camarada, está a ver? Não devíamos estar a armar-nos até aos
dentes contra a ameaça americana, se são eles os tipos de que devemos ter medo?
Aditamento.
Ao comparar os blocos de notas, dois dos meus oficiais registaram
independentemente a presença do mesmo homem bem vestido, dos seus trinta anos e
estatura mediana, cabelo loiro ondulado e ar efeminado que, tendo saído da reunião
imediatamente a seguir ao par, o seguiu até à paragem e apanhou o mesmo autocarro,
tendo-se sentado no andar de baixo, ao passo que o par preferiu o andar de cima, que
permitia a Marte fumar. Quando o par se apeou, o mesmo indivíduo apeou-se
igualmente e, depois de os ter acompanhado até ao bloco de apartamentos e esperado
até se acender uma luz no terceiro andar, dirigiu-se a uma cabina telefónica. Uma vez
que os meus oficiais não tinham instruções para seguirem alvos secundários, não foi
feita qualquer tentativa de identificar ou localizar este indivíduo.
Quando a porta se fechou atrás dela, fui acometido por uma raiva
irracional. Para onde fora ela, diabos a levassem? Por que razão me
deixara ali plantado daquela maneira? Para fazer um relato esbaforido aos
seus amigalhaços do bastião? Será esse o jogo que ela está a fazer? Eles
passam-lhe um maço de relatórios do Special Branch e dizem: veja lá
como ele reage a isto? É assim que as coisas funcionam? Mas não era
assim que funcionavam. Eu sabia-o. Tabitha era o anjo bom de todos os
acusados. E os seus meigos olhos tristes viam um bocado mais longe que
os de Bunny ou de Laura. Também isso eu sabia.
*
Foi por isto que Alec passou, estou eu a pensar: defender um caso
desesperado e vê-lo esboroar-se-lhe nas mãos, com a diferença de que
ninguém está a morrer a não ser de velhice. Eu estou a agarrar-me com
todas as forças a uma grande mentira insustentável que prometi nunca
denunciar, e ela está a afundar-se sob o meu peso. Mas Tabitha não tem
piedade.
– Então os nossos sentimentos. Podemos falar deles, para variar? Eu
acho sempre que são muito mais esclarecedores do que os factos. O que é
que você sentiu, você mesmo, quando soube que a Liz se tinha levantado
de repente e dado cabo de todo o maravilhoso trabalho aturado do Alec? E
dado cabo do pobre Fiedler também, já que estava com as mãos na massa?
– Eu não soube.
– Desculpe?
– Ninguém pegou no telefone e disse: já sabe a última do tribunal? A
primeira coisa que recebemos foi uma notícia de última hora da Alemanha
de Leste. Traidor desmascarado. Lá se ia o Fiedler por água abaixo.
Funcionário superior de segurança totalmente ilibado. Era o Mundt na
maior. Depois tivemos a espetacular fuga dos prisioneiros e da sua
perseguição a nível nacional. E depois tivemos…
– Os abates a tiro no Muro, possivelmente?
– O George estava lá. O George viu. Eu não.
– E os seus sentimentos, mais uma vez? Quando estava aqui sentado,
nesta mesma sala, ou de pé, a andar para cá e para lá, ou o que quer que
seja que tenha feito, e a terrível notícia lhe foi chegando aos bochechos?
Agora ouça isto, agora ouça aquilo. Sem parar?
– O que acha você que eu fiz, porra? Que fui buscar champanhe? – Uma
pausa, enquanto me recomponho. – Pensei: valha-me Deus, pobre
rapariga! Apanhada no meio disto tudo. Família refugiada. Perdidamente
apaixonada pelo Alec. Não fazia mal a uma mosca. Que coisa horrível
para ter de fazer.
– Ter de? Quer dizer que ela tencionava comparecer em tribunal? Ela
tencionava salvar o nazi e matar o judeu? Isso não parece mesmo nada da
Liz. Quem lhe teria dito para fazer semelhante coisa?
– Ninguém lho disse, porra!
– A pobre rapariga nem sequer sabia por que razão tinha ido ao
julgamento. Tinha sido convidada para uma reunião de escoteiros dos
camaradas na soalheira RDA, e de repente está a testemunhar contra o
amante num tribunal improvisado. O que é que você sentiu quando soube
disso? Você pessoalmente. E a seguir, ao saber que tinham sido os dois
despachados no Muro. Alvejados quando tentavam fugir, alegadamente.
Angústia, deve ter sido. Extrema, com certeza?
– Claro que foi.
– Para todos vocês?
– Todos.
– O Controlo também?
– Lamento, mas não sou nenhum especialista em sentimentos do
Controlo.
O sorriso triste dela. Voltou.
– E o seu Tio George?
– Que tem ele?
– Como é que ele encarou as coisas?
– Não sei.
– Porquê? – Bruscamente.
– Desapareceu. Foi para a Cornualha sozinho.
– Porquê?
– Para passear, imagino eu. É para onde ele vai.
– Durante quanto tempo?
– Uns dias. Talvez uma semana.
– E depois regressou. Era um homem alterado?
– O George não se altera. Recupera a compostura, e pronto.
– E recuperou-a?
– Não falou disso.
Ela ficou a pensar naquilo e pareceu relutante em deixar o assunto ficar
por ali.
– E não houve um nico de vitória em lado nenhum? – prosseguiu ela,
depois de pensar mais um bocado. – Na outra frente? Na frente
operacional… Nenhuma sensação onde quer que fosse de: bem, foi um
dano colateral, é trágico e é terrível, mas, seja como for, missão cumprida.
Nada desse género, tanto quanto saibamos?
Nada mudou. Nem a sua voz meiga, nem o seu sorriso macio. A sua
atitude passou a ser, quando muito, ainda mais simpática do que antes.
– O que eu estou a perguntar-lhe é isto: quando foi que você soube, na
sua cabeça, que a triunfante defesa do Mundt não era a burrada que se
inventou que era, mas sim um golpe de informações em grande escala
disfarçado? E que a Liz Gold era o necessário catalisador que fez tudo
acontecer? É acerca da sua defesa, percebe? A sua intenção, o seu
conhecimento prévio, a sua cumplicidade. Você podia manter-se de pé ou
cair por qualquer deles.
Um silêncio pelos mortos. Quebrado por Tabitha, numa voz de pergunta
informal.
– Sabe o que eu sonhei a noite passada?
– Como diabo hei de eu saber?
– Estava a levar a cabo as devidas diligências, a patinhar naquele
interminável esboço de relatório que o Smiley o obrigou a redigir e
decidiu não divulgar. E pus-me a pensar naquele singular ornitólogo
amador suíço que se revelou ser um membro disfarçado da secção de
segurança doméstica do Circus. E depois perguntei a mim mesma por que
razão não queria o Smiley que o seu relatório fosse divulgado. Por isso fiz
mais algumas diligências devidas e meti o nariz onde quer que me fosse
permitido metê-lo e palavra de honra que não consegui descobrir uma
única coisa relativamente a alguém ter testado as defesas do Campo 4
naquele período. E absolutamente nada quanto a um operacional
disfarçado excessivamente zeloso que tenha esmurrado os guardas de
segurança do Campo 4. Por conseguinte não foi propriamente necessária
uma epifania para colar o resto. Não havia certidão de óbito da Tulipa.
Bem, sabemos que a rapariga não tinha aterrado oficialmente, mas não há
muitos médicos que assinem uma certidão de óbito falsa, nem mesmo
médicos do Circus.
Olhei carrancudamente para longe e tentei fingir que achava que ela
estava doida.
– Portanto a minha leitura é esta: o Mundt recebeu ordens para ir
assassinar a Tulipa. Assassinou-a, mas o bom Deus não estava do seu lado
e foi apanhado. O George pressionou-o. Espie para nós, senão… E ele
assim faz. Uma cornucópia de esplêndidas informações, repentinamente
em risco. O Fiedler parece adivinhar-lhe as intenções. Entra o Controlo
com o seu revoltante plano. O George pode não ter gostado dele, mas,
como sempre acontece com o George, o dever impôs-se. Ninguém
calculou que o Alec e a Liz fossem abatidos. Isso seria a grande ideia do
Mundt: matar os mensageiros e dormir melhor de noite. Nem sequer o
Controlo conseguiria descortinar isso no horizonte. O seu George passou
diretamente à reforma, jurando nunca mais voltar a espiar. Coisa pela qual
gostamos imenso dele, embora tenha sido sol de pouca dura. Ele ainda
tinha de voltar e apanhar o Bill Haydon, o que fez maravilhosamente,
abençoado seja. E você esteve a favor dele até ao fim, coisa que só
podemos aplaudir.
Não me vinha nada à mente, de forma que não disse coisa nenhuma.
– E para revolver a faca numa ferida que já de si era bem grande, assim
que a Câmara Estrelada terminou o seu trabalho o Hans-Dieter foi
convocado para uma reunião de alto nível em Moscovo, desaparecendo
sem deixar rasto. Portanto adeus derradeiras esperanças de alguma vez ir
enfiar o nariz no Centro à última hora e dizer-nos quem era o traidor do
Circus. Provavelmente o Bill Haydon tinha lá chegado antes dele.
Podemos falar mais um pouco de si?
Eu não podia fazê-la parar; sendo assim, porquê tentar?
– Se me fosse permitido argumentar que Bambúrrio não era a maior
argolada de todos os tempos, mas sim uma operação diabolicamente
inteligente que foi altamente produtiva em termos de informações de
elevadíssimo grau e só descarrilou no último minuto, tenho muito poucas
dúvidas de que os membros da comissão parlamentar se rebolariam no
chão e poriam as patinhas no ar: a Liz e o Alec? Uma tragédia, sim, mas,
dadas as circunstâncias, baixas aceitáveis na causa do bem geral. Estou a
ganhar? Não. Valha-me Deus! Era só uma sugestão. Porque não me parece
que seja capaz de o defender de qualquer outra maneira. Aliás, tenho a
certeza de que não posso.
Tinha começado a arrumar as suas coisas: óculos, casaco de lã, lenços
de papel, relatórios do Special Branch, relatórios da Stasi.
– Falou, querido?
Falei? Nenhum de nós tem a certeza. Ela fez uma pausa na arrumação.
Tem a mala aberta no colo, à espera de que eu fale. Um anel de amor
eterno no dedo anular. É estranho eu não ter reparado nele até agora.
Pergunto a mim mesmo quem será o marido. Provavelmente já morreu.
– Escute lá.
– Continuo a escutar, coração.
– Aceitando por um momento a sua absurda hipótese…
– Que a operação diabolicamente inteligente funcionou…?
– Aceitando-a, teoricamente, o que não é de maneira nenhuma o meu
caso… está a dizer-me seriamente que… no caso impossível de alguma
vez virem a lume provas documentais nesse sentido…
– O que sabemos que não acontecerá, mas se alguma vez acontecesse,
teriam de ser de ferro fundido…
– Está a dizer-me que nessa improvável eventualidade, as imputações,
as acusações, o processo, tudo e mais alguma coisa contra quem quer que
seja, eu, o George, se o encontrarem, até contra o Serviço,
desapareceriam?
– Arranje-me as provas, que eu arranjo-lhe o juiz. Enquanto estamos
aqui a falar os abutres juntam-se. Se você não aparecer no julgamento, a
comissão vai recear o pior e agir em conformidade. Eu pedi o seu
passaporte ao Bunny. O estupor não abre mão dele. Mas vai prolongar a
sua estada em Dolphin Square nos mesmos termos mesquinhos. Tudo a
ser discutido. Amanhã à mesma hora dá-lhe jeito?
– Pode ser às dez?
– Estarei cá às dez em ponto – respondeu ela, e eu disse que também
estaria.
13
Nessa noite fui até Reading e fiquei num hotel próximo da estação
ferroviária onde ninguém se preocupava com nomes. Se ainda não tinha
sido dado como desaparecido de Dolphin Street, a primeira pessoa a dar
pela minha ausência seria Tabitha às dez horas da manhã seguinte, não às
nove. Se houvesse alvoroço, não estava a ver que ele se armasse antes do
meio-dia. Tomei o pequeno-almoço com vagar, comprei um bilhete para
Exeter e segui de pé no corredor de um comboio superlotado até Taunton.
Passando pelo parque de estacionamento, dirigi-me aos arredores da
cidade e deambulei por lá à espera do anoitecer.
Não punha a vista em cima de Jim Prideaux desde que o Controlo o
tinha enviado para a missão abortada na Checoslováquia que lhe valera
uma bala nas costas e a atenção insone de uma equipa de torturadores
checos. De nascimento, éramos ambos arraçados: Jim meio checo e meio
normando, ao passo que eu sou bretão. Mas as comparações ficavam-se
por aí. A marca de eslavo era profunda em Jim. Em rapaz, tinha passado
mensagens e cortado gargantas alemãs na Resistência Checa. Cambridge
pode tê-lo educado, mas nunca o domesticou. Quando entrou para o
Circus, até os instrutores de luta corpo a corpo de Sarratt aprenderam a
temê-lo.
Um táxi deixou-me junto ao portão principal. Uma tabuleta verde
enlameada tinha escrito: AGORA ABERTO A RAPARIGAS. Uma
esburacada estrada de acesso conduzia sinuosamente a uma imponente
casa dilapidada rodeada de atarracados edifícios prefabricados.
Escolhendo o caminho pelo meio dos buracos, passei por um campo de
jogos, um pavilhão de críquete a cair aos pedaços, um par de casas de
trabalhadores e um grupo de póneis desgrenhados a pastar num relvado.
Passaram dois rapazes de bicicleta, o mais corpulento com um violino às
costas e o mais pequeno com um violoncelo. Mandei-os parar com um
gesto.
– Estou à procura de Mr. Prideaux – disse. Eles olharam
inexpressivamente um para o outro. – Faz parte do pessoal docente daqui,
segundo me disseram. Ensina línguas. Ou ensinava, dantes.
O rapaz mais corpulento abanou a cabeça e começou a arrancar.
– Não estará porventura a referir-se ao Jim? – perguntou o mais novo. –
Um velhote coxo. Vive numa caravana na Cova. Dá Francês Extra e
Râguebi Infantil.
– Onde é a Cova?
– Siga pela esquerda a seguir à Casa da Escola e desça pelo carreiro até
ver um Alvis antigo. A verdade é que estamos atrasados.
Sigo pela esquerda. Por detrás das altas janelas, rapazes e raparigas
estão debruçados nas carteiras sob luzes de néon brancas. Ao chegar ao
outro lado do edifício, passei por uma avenida de salas de aula
temporárias. Um carreiro que desce até a uma pequena mata de pinheiros.
Diante deles, por baixo de um encerado, a silhueta de um carro de coleção,
e ao lado desta uma caravana com uma luz acesa por detrás da janela
tapada por uma cortina. Ouviam-se através dela acordes de Mahler. Bati à
porta e uma voz roufenha respondeu furiosa.
– Vai-te embora, rapaz! Fous-moi la paix!25 Vai à procura.
Contornei a janela tapada pela cortina e, com uma caneta que tirei do
bolso, levantei o braço e fiz soar o meu sinal identificador, após o que lhe
dei tempo para poisar a pistola, se era isso que estava a fazer, porque com
Jim nunca se sabe.
*
Com uma garrafa de slivovitz na mesa, meio bêbedo, Jim foi buscar um
segundo copo e desligou o gira-discos. À luz de petróleo o seu rosto
anfractuoso está deformado pela dor e pela idade e as costas assimétricas
estão apoiadas no estofo ordinário. Os torturados são uma classe à parte.
Pode imaginar-se (dificilmente) onde eles estiveram, mas nunca o que
trouxeram consigo.
– A porra da escola veio por aí abaixo – regouga ele, com um acesso de
riso febril. – Thursgood, era o nome do sujeito. Diretor. Uma mulher
absolutamente satisfatória. Um par de filhos. Acontece que era o raio dum
maricas – declarou, com exagerado escárnio. – Pirou-se com o cozinheiro
da escola. Levou as propinas com ele. Para a Nova Zelândia ou lá para
onde foi. Não havia o suficiente no fundo para pagar ao pessoal até ao fim
da semana. Nunca pensei que ele tivesse essa inclinação. Bem – dando
uma risadinha enquanto volta a encher-nos os copos –, o que havemos de
fazer, hein? Não podemos deixar os miúdos em apuros, no meio dum ano
escolar. Os exames à porta. Os encontros dos onze melhores. Os prémios
escolares. Eu tinha a minha pensão, mais um pequeno adicional por ter
levado uma porrada. Alguns pais deram uma contribuição. O George
conhecia um banqueiro. Bem, depois disso, a escola não me vai pôr no
olho da rua, não é? – Bebeu, olhando para mim por cima do copo. – Não
me vão despachar para a Checoslováquia outra vez à procura duma agulha
num palheiro, pois não? Agora que estão novamente a fazer-se
amiguinhos de Moscovo.
– Preciso de falar com o George – disse eu.
Durante um pedaço não aconteceu nada. Do mundo que ia escurecendo
lá fora, apenas o sussurrar das árvores e o gemido do gado. E, diante de
mim, o corpo cambado de Jim içado, imóvel, de encontro à parede da
pequena caravana, e o seu olhar fixo de eslavo a olhar carrancudamente
para mim por baixo de umas irregulares sobrancelhas negras.
– Foi porreiro para mim ao longo dos anos, o velho George. Ajudando
um tipo estafado, que não agradava a toda a gente. Não sei bem se ele
precisa de si, com franqueza. Tem de lhe perguntar.
– Como é que faria isso?
– Não é um jogador inato no jogo da espionagem, o George. Não sei
como se meteu nele. Arcava com tudo em cima dos ombros. No nosso
ofício não se pode fazer isso. Não podemos sentir toda a dor do outro
parceiro como a nossa. Isto, se quisermos continuar. A sacana da mulher
dele tinha uma data de coisas pelas quais responder, na minha opinião.
Que diabo andava ela a tramar? – perguntou ele, e calou-se mais uma vez,
fazendo uma careta e desafiando-me a responder à sua pergunta.
Mas Jim nunca tinha gostado muito de mulheres, e não havia resposta
que eu lhe pudesse dar que não incluísse o nome da sua Némesis e seu
antigo amante Bill Haydon, que o recrutara para o Circus, o denunciara
aos seus patrões e de caminho dormira com a mulher de Smiley como
camuflagem.
– Ficou todo transtornado com o Karla, logo com ele – estava a queixar-
se, ainda sobre o tema de Smiley. – O espertalhão do filho da mãe do
Centro de Moscovo que recrutou todos aqueles tipos a longo prazo contra
nós.
Dos quais Bill Haydon era o mais espetacular, poderia ter acrescentado,
caso fosse capaz de pronunciar o nome do homem cujo pescoço tinha
supostamente quebrado com as próprias mãos quando Haydon estava a
definhar em Sarratt, à espera de ser expedido para Moscovo no âmbito de
um acordo de troca de agentes.
– Primeiro, o velho George convence o Karla a vir ao Ocidente.
Descobre o seu ponto fraco e trabalha nele, tudo por seu mérito. Faz o
debriefing ao sujeito. Arranja-lhe um nome e um emprego na América do
Sul. A ensinar Estudos Russos a latino-americanos. Realoja-o. Nada que
dê demasiado trabalho. Anos mais tarde o sacana mata-se e despedaça o
coração do George. Como raio aconteceu aquilo? Eu disse-lhe: o que é
que lhe deu, George? O Karla matou-se. Que passe muito bem! Foi
sempre o problema do George, ver ambos os lados de tudo. Isso esgotou-
o.
Com um grunhido de dor ou censura, serviu outra dose de slivovitz a
ambos.
– Anda fugido, porventura? – inquiriu.
– Ando.
– Para França?
– Sim.
– Que tipo de passaporte?
– Britânico.
– A Repartição já pôs o seu nome a circular?
– Não sei. Estou a jogar em que não.
– Southampton é a sua melhor aposta. Não dê nas vistas e apanhe um
ferry do meio-dia cheio de gente.
– Obrigado. É o que tenciono fazer.
– Não é por causa de Tulipa, pois não? Não vai desenterrar isso, pois
não? – cerrando um punho e atravessando-o diante da boca como que para
afastar com um soco uma recordação intolerável.
– É toda a operação Bambúrrio – disse eu. – Há uma comissão
parlamentar gigante que tem a faca apontada ao Circus. Na ausência do
George, puseram-me a mim como o vilão da peça.
Mal eu tinha pronunciado as palavras, ele pregou um murro na mesa
entre nós, fazendo tilintar os copos.
– O George não é para aqui chamado! Foi o filho da mãe do Mundt que
a matou! Foi ele que matou todos! Matou o Alec e a rapariga dele!
– Bem, isso é uma coisa que temos de ser capazes de dizer em tribunal,
Jim. Eles acusam-me de tudo e mais alguma coisa. E talvez a si também,
se conseguirem desencantar o seu nome nos ficheiros. Por isso preciso
imenso do George. – E, como ele continuasse a não reagir: – Então como
é que eu contacto com ele?
– Não pode.
– E como é que você faz?
Outro silêncio irado.
– Cabinas telefónicas, se quer saber. Locais não, nessas nem lhes toco.
Nunca duas vezes a mesma. Combinamos sempre o próximo treff
antecipadamente.
– Você para ele? Ele para si?
– Um bocado de ambas as coisas.
– O telefone dele é todas as vezes o mesmo?
– Pode ser.
– É um telefone fixo?
– Pode ser.
– Então sabe onde pode encontrá-lo, não sabe?
Tirando um caderno de exercícios escolares de uma pilha ao seu lado,
arrancou uma folha em branco. Eu passei-lhe um lápis.
– Kollegiengebäude drei – entoou ele enquanto escrevia. – Biblioteca.
Uma mulher chamada Friede. Chega-lhe? – e, entregando-me a folha,
recostou-se, de olhos fechados, aguardando que eu o deixasse em paz.
*
Não sei se Jim tinha avisado George de algum modo de que eu ia ter
com ele, ou se ele pressentiu simplesmente a minha presença. Estava
sentado a uma secretária juncada de papéis, no vão de uma janela, de
costas para mim, um ângulo que lhe proporcionava luz para ler e, quando
dela precisava, a paisagem das colinas e florestas circundantes. Tanto
quanto me foi dado ver, não havia mais ninguém na sala: apenas uma
fiada de nichos revestidos de madeira com secretárias e confortáveis
cadeiras vazias. Dei a volta até podermos ver-nos um ao outro. E, visto
que George sempre parecera mais velho do que era, fiquei aliviado ao ver
que não me aguardava uma surpresa desagradável. Era o mesmo George,
tendo apenas atingido a idade que sempre parecera ter; mas George de
pulôver vermelho e calças de bombazina amarelo-clara, o que me
espantou porque sempre o tinha visto somente com um fato de má
qualidade. E se as suas feições em repouso conservavam a tristeza de
mocho, não havia tristeza na sua saudação quando, com um surto de
energia, se pôs em pé de um salto e me estreitou a mão entre ambas as
suas.
– Então o que é que está para aí a ler? – protesto eu erraticamente,
mantendo a voz baixa porque o silêncio era a regra.
– Oh, meu caro, nem sequer pergunte. Um antigo espião na caquexia
procura a verdade dos tempos. Você está com um ar vergonhosamente
jovem, Peter. Tem andado nas suas habituais travessuras?
Está a juntar os seus livros e papéis e a guardá-los num cacifo. Levado
pelo antigo hábito, dou-lhe uma ajuda.
E uma vez que isto não é o género de local para a minha projetada
confrontação, pergunto-lhe como está Ann.
– Está bem, obrigado, Peter. Sim. Muito bem, atendendo às
circunstâncias – fechando o armário e enfiando a chave no bolso. – Vem
ver-me de vez em quando. Passeamos. Na Floresta Negra. Não
propriamente as maratonas de antigamente, confesso. Mas passeamos.
A nossa conversa abafada chega ao fim quando uma senhora idosa entra
e, depois de se desfazer com dificuldade do saco a tiracolo, espalha os
seus papéis, põe os óculos de ler, ajustando-os a uma orelha de cada vez,
e, com um sonoro suspiro, instala-se num dos nichos. E eu penso que foi o
seu suspiro que minou o que me restava de determinação.
*