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Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Instituto de Letras

Departamento de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura

Disciplina: Teoria da Literatura I


Conceito e concepções de literatura / 2024.1

TURMAS 1 e 3 Professor: Maurício C. Gutierrez

Material para as aulas de 09-11/04

1.
INFÂNCIA

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.


Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu


a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo


olhando para mim:
— Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava


no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história


era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova Reunião: 19 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 1987. p. 4.)

2. Robinson Crusoé e seus amigos


Minha avó Depois de anos
trabalha na casa me mudando
de uma das irmãs de casas e cidades
de Clarice Lispector perdi o carimbo
e os livros que marquei
Minha mãe com seu nome
ainda jovem à exceção do velho exemplar
frequenta o lugar de Robinson Crusoé
e como adora livros que ainda guardo comigo
é convidada
por Clarice a cuidar #
da sua biblioteca
uma vez por semana Entre as coisas
que minha mãe deixou
Depois que minha mãe está uma série de folhas secas
limpa os livros com flanela que ela recolhia
e coloca tudo em ordem na estante de jardins e parques
Clarice entrega a ela quando viajava
com o punho cerrado
algumas notas e diz Em cada uma das folhas
estão anotados
isto aqui Rita é para os seus supérfluos com tinta azul de caneta
lugar e dia
# em que foram recolhidas

Ao completar Sem saber muito bem


cinquenta anos o que fazer
minha mãe com essa coleção
descobriu na cabeça fiz o mesmo que minha mãe
o aneurisma e guardei uma a uma
que a tiraria de cena as folhas secas
entre as páginas
Na época dos livros na estante
mexendo em suas coisas
descobri o carimbo Sobraram poucas
que ela usava no trabalho mesmo assim
para assinar acabo não lembrando
relatórios e memorandos onde cada uma está

Prestes a perdê-la Por isso às vezes


usei o carimbo sou pego de surpresa
para colocar o seu nome quando ao abrir um livro
na folha de rosto encontro folhas secas
dos livros que eu lia para ela com a letra dela
durante o coma
# a próxima vez
em que você vai chorar
Com o que sobra a próxima vez
do naufrágio em que você vai sorrir
Robinson Crusoé
monta uma coleção Enquanto nem uma coisa
de itens indispensáveis nem outra acontece
como pólvora presto atenção
rum e cachimbo nos menores detalhes
que ele acende a minha mão
enquanto espera junto da sua
seu fiel escudeiro
Sexta-Feira #

Da minha parte Ao limpar


anotar todas as vezes e ordenar os livros da estante
em que a palavra supérfluo minha mãe
aparece nos livros acende um ou outro cigarro
de Clarice já Clarice
e fazer um inventário nunca apaga os dela

# Sabe Rita
não tem nada
Estou há um tempo que me faça dispensar
tentando escrever estas memórias meus cigarros

Até que Sabe Rita


madrugada passada gosto de fumar
ao ninar Rosa até durante as refeições
minha filha
as peças soltas Sabe Rita
ameaçaram se juntar agora estou treinando
fumar e dormir
Não lembro quem ao mesmo tempo
mas alguém disse – dizia isso rindo –
que à noite não é fumar enquanto se espera
todos os poemas são cinza
o sono chegar
Nem todos mas sim fumar e dormir
tanto que chegou a hora de uma só vez
de dedicar este nem que para isso
a Rosa eu entre em combustão
Se estou aqui
é só para esperar

GANDOLFI, Leonardo. Robinson Crusoé e seus amigos. São Paulo; Editora 34, 2021. p. 11-16.

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