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CRIME,

VIOLÊNCIA E
SELETIVIDADE
PENAL.
Prof.Dr.Marco Aurélio B.Costa
Doutor em Ciências Humanas/Sociologia – Programa de Pós
Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
O QUE JÁ SABEMOS
ALÉM DA ESCRAVIDÃO
“(...) o distintivo no racismo moderno seja justamente a idéia de que as desigualdades entre os seres humanos estão
fundadas na diferença bio- lógica, na natureza e na constituição mesmas do ser humano. A igualdade política e legal
seria, portanto, a negação artificial e superficial da natureza das coisas e dos seres. Ora essa compreensão do racismo
significa circunscrevê-lo à modernidade, pois nos remete logicamente ao aparecimento da ciência da biologia e da
filosofia política liberal.” (GUIMARÃES, 2004, p.10)

“O racismo duro da Escola de Medicina da Bahia e da Escola de Direito do Recife, entrincheirado nos estudos de
medicina legal, da criminalidade e das deficiências físicas e mentais, evoluiu, principalmente no Rio de Janeiro e em São
Paulo, em direção a doutrinas menos pessimistas que desaguaram em diferentes versões do “embranquecimento”,
subsidiando desde as políticas de imigração, que pretendiam a substituição pura e simples da mão-de-obra negra por
imigrantes europeus, até as teorias de miscigenação que pregavam a lenta mais contínua fixação pela população
brasileira de caracteres mentais, somáticos, psicológicos e culturais da raça branca, tais como podem ser encontrados
em escritos de Batista Lacerda (1911) e Roquette Pinto (1933). Foi também no Sul, centro da vida econômica e política,
que as campanhas de sanitarização e higienização públicas ganharam vigência, forçando a amenização das teorias
eugenistas em versões que privilegiavam as ações de saúde pública e de educação, em detrimento de políticas médicas
de controle da reprodução humana e dos casamentos” (GUIMARÃES, 2004, p.11)
ALÉM DA ESCRAVIDÃO
• O resultado do encontro de teorias racistas
pessimistas com teorias racistas otimistas (Gilberto
Freyre) foi um tipo de “Apartheid” não legalizado
que permeia as relações mas não se manifesta
claramente; que subjaz às leis, mas não nos permite
caracterizá-las claramente como segregacionistas;
leis que produzem efeitos segregacionistas não
somente pelo seu conteúdo ambíguo, mas, ainda,
pela sua aplicação prática por parte dos atores
imbuídos de autoridade, ambientados nessa
contradição de não assumirem uma postura
claramente racista, mas agirem com uma alta
tolerância ao racismo, atribuindo esse
comportamento à fatores externos à si próprio.
ALÉM DA ESCRAVIDÃO
Para as classes dominantes, a questão dos libertos era então complexa, pois estava diretamente ligada à nova
condição em que os negros se encontravam, ou seja, não mais subjugados pelo fardo da escravidão e do cativeiro.
Como garantir então que os negros livres e donos de sua força de trabalho continuassem ocupando as frentes de
trabalho, sem prejuízos para a produção e o comércio, já que o antigo método de disciplina social havia se
tornado frágil? A solução para esse problema parecia estar a cargo do empenho dos legisladores que se
encarregaram de tomar medidas capazes de obrigar os indivíduos a trabalhar, combatendo, assim, as más
predileções ao ócio, à vagabundagem, à delinqüência e à mendicância.
(...)
Para nossos legisladores, o liberto carregava consigo os vícios da escravidão. Esses vícios eram responsáveis por
torná-lo incapaz de viver em sociedade e de constituir família. De acordo com Robert Slenes (1999), nos primeiros
anos após a abolição da escravidão, havia a tendência, principalmente da imprensa, de associar a recusa do liberto
pelo trabalho à ausência de instituições familiares presentes em seu cotidiano, dado o tratamento dispensado aos
negros ao longo de séculos de cativeiro.

(VASCONCELOS, OLIVEIRA, 2011, p.150)


ALÉM DA ESCRAVIDÃO

No código penal de 1890, mais especificamente no capitulo XII – Dos Vadios e Capoeiras – estavam
previstas punições para aqueles que fossem acusados de ociosidade e prática de capoeira. Os artigos
399, 400 e 401 eram específicos à vadiagem e previam penas de 15 a 30 dias de reclusão para os
condenados. Além da Lei nacional, existiam também leis estaduais como é o caso da Lei Mineira 141 de
20 de junho de 1895, que previa penas mais severas – seis meses a dois anos de reclusão - aos
condenados em Minas Gerais. (GUIMARÃES, 2006, p. 152). (VASCONCELOS, OLIVEIRA, 2011, p.151)
MECANISMOS DE SELETIVIDADE
DECISÕES DOS OPERADORES DE SEGURANÇA E DO SISTEMA DE
JUSTIÇA AFETADAS PELO SEU PRÓPRIO PANO DE FUNDO MORAL E
PELO PÂNICO MORAL QUE EMERGE DOS GRUPOS SOCIAIS MELHOR
SITUADOS ECONOMICAMENTE, E AMPLIFICADOS PELA MÍDIA.
SOBREVIVÊNCIA DE CONCEPÇÕES
CIENTÍFICAS RACISTAS EM CURSOS
SUPERIORES, EM ESPECIAL DE
DIREITO, DISSEMINADAS NA FORMA
DE SENSO COMUM ENTRE FAMÍLIAS
DE CLASSES MÉDIAS E ELITES,
FORMANDO UM PANO DE FUNDO
MORAL QUE ORIENTA A AÇÃO DO
ATOR SOCIAL (CONSCIENTE OU
NÃO?).
AMPLIFICAÇÃO DO PÂNICO MORAL
OPERADORES DA SUBJETIVIDADE TERRENO
PELA MÍDIA, QUE COMPARTILHA O
REFORÇAM ESSAS CONCEPÇÕES FÉRTIL
MESMO PANO DE FUNDO MORAL
JUNTO A POPULAÇÃO EM GERAL AO PARA O
COM OS OPERADORES DE
NÃO ANALISÁ-LAS CRITICAMENTE, PÂNICO
SEGURANÇA, JUDICIAIS E
NÃO IMPEDINDO SUA REPRODUÇÃO. MORAL
POPULAÇÃO EM GERAL.
MECANISMOS DE SELETIVIDADE
• Seguindo a lógica que vem desde a abolição da escravatura, os descendentes de escravos são
preteridos dos empregos formais, empurrados para atividades informais diversas, dentre elas o tráfico
de entorpecentes;

• Legislação sobre drogas deixa espaços que permitem uma discricionariedade, espaço no qual operam
o pano de fundo moral e o pânico moral (ex. lei 11.343, Lei de Crimes Hediondos);

• A estrutura de mediação de conflitos tida como legítima (sistema judicial) não alcança mercados
ilegais e nem boa parte dos espaços onde esses mercados se organizam. Assim surgem outras formas
de mediação baseadas na violência, com maior grau de organização como o PCC em São Paulo, ou
menor como no caso das diversas facções no Rio de Janeiro;

• O encarceramento em massa contribui para a ampliação da mão de obra para as organizações


criminosas e a construção de uma narrativa do crime como resistência política. Também reduz o custo
geral da mão de obra.
MECANISMOS DE SELETIVIDADE
• Sujeição Criminal – “(...) refere-se à um processo social pelo qual se dissemina uma expectativa
negativa sobre indivíduos e grupos, fazendo-os crer que essa expectativa não só é verdadeira como
constitui parte integrante de sua subjetividade”(MISSE, 2014, p.204)

“Esse processo de sujeição criminal ganhou uma nova dimensão quando os mercados de trabalho ilegais
convencionais, tradicionais, principalmente o mercado de trabalho do jogo do bicho, que era local e
depois se torna nacional, vão sendo tragados, aos poucos, por um novo mercado de trabalho, uma
empresa altamente lucrativa, relativamente desorganizada e amplamente disseminada, como é o varejo
de drogas ilícitas, especialmente da cocaína. Em comparação com os mercados de trabalho ilegais
convencionais, como a prostituição popular, o jogo, o pequeno contrabando, as vigarices, a compra e
venda de objetos roubados e mesmo o jogo do bicho, o varejo da cocaína mostrou-se extremamente
atraente para os padrões de renda das populações que atingiu. Despertava também, curiosamente,
menor reação moral local, por oposição aos crimes convencionais.” (MISSE, 2010, p.19)
“O problema não é que o sistema de justiça criminal
não funciona. O problema é que ele funciona bem
demais.”

Até que ponto esse funcionamento é algo planejado


ou é resultado de um conjunto de convicções morais
tidas como justas pelos atores envoltos por elas?
REFERÊNCIAS
VASCONCELOS, Marcos Estevam; OLIVEIRA, Mateus Fernandes de. O combate à ociosidade e à
marginalização dos libertos no pós-emancipação. CES Revista | v. 25 | Juiz de Fora | 20

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito de cor e racismo no Brasil. REVISTA DE


ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2004, V. 47 Nº 1.

SEMER, Marcelo. Sentenciando o tráfico. O papel dos juízes no grande encarceramento. Tirant Lo Blanch.
São Paulo, 2019

MISSE, Michel. Crime, Sujeito e Sujeição Criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria
“bandido”. Lua Nova. São Paulo, 79: 15‐ 38; 2010.

MISSE, Michel. Sujeição Criminal. In LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo
Ghiringhelli de (Orgs.). Crime, Polícia e Justiça no Brasil. Rio de Janeiro: Contexto, 2014, 640p.

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