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– ii –

O nome completo é Desidério Santos dos Santos e ele nunca se


interessou a fundo em descobrir por quais excessos de escrúpu-
los ou zelos religiosos os santos se repetiam. O medo de retirar
santos do nome talvez fizesse com que o pecado cometido pelo
exagero fosse inferior ao pecado da supressão. Feitas as contas, os
pais de Desidério decidiram deixar todos os santos do nome, não
vindo ao caso argumentações de que santos já estava no plural.
Não sabiam se os santos da mãe de Desidério eram os mesmos
santos do pai. E, entre possíveis e improváveis erros e acertos (res-
pectivamente), foi Desidério agraciado com todos os santos do
repertório pátrio e mátrio. Herdara o sobrenome da mãe, que, ao
casar, também justapôs o “dos Santos” do marido, fazendo com
que o pai, sem os santos da mãe, acabasse como o menos abenço-
ado da tríade familiar. Chamava-se apenas Justício dos Santos.
Mais sorte teve a mulher de Desidério. Quando solteira,
chamava-se Macária dos Santos. Macária dos Santos Santos dos
Santos foi, por fim, a mais santificada de toda a árvore do clã.
Em lugares mais profanos, como nas lojas em que costumava
gastar o salário do sal de seu suor, não hesitava em abreviar os
“ésses” intermediários no momento de assinar um novo crediá-
rio. Nas fichas de pagadora dos dízimos da igreja, porém, cada
Santos assinado na íntegra correspondia a alguns centímetros a
mais no largo sorriso que se abria. Eram cartas na manga.
Quando Desidério aposentou seu caderno, fazia vinte e
nove anos que trabalhava como porteiro de um prédio de classe

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média em Curitiba. Possuía um jeito matuto no falar e no tratar
com as pessoas, o que não significava que ele fosse, lá dentro dos
seus pensamentos, um ignorante. Até longe disso. Estava certo
de que poderia usar as palavras para além do sabor feijão e arroz
diário. No entanto, não conseguia – nem ao menos tentava –
fazer com que elas, as palavras, saíssem de sua boca. Da mão
– ao menos no início de sua aventura velada – elas saíam leves,
soltas, livres. Vivia duas realidades: de um lado, o trato direto
com as pessoas, vulgar, rotineiro, em que usava alguns monos-
sílabos e, quando muito, algumas frases de três ou quatro pala-
vras. Parecia não querer gastá-las. Fora criado por gentes desse
tipo, que não se comunicavam, apenas rebatiam escudadas as
palavras de seus interlocutores. Desidério, entretanto, chegou a
dar mostras de que poderia ser diferente, mas o sumiço da mãe e
o silêncio autoimposto do pai contribuíram para que o broto de
um Desidério falador – que furasse o silêncio de concreto fami-
liar – fosse cortado na adolescência. Até os quinze anos, falou
mais do que o resto de sua vida inteira. Com sobras. Por outro
lado, desde que começara a ler romances, com mais regularidade
desde 1989, criara uma outra realidade, imaterial. E era lá que as
palavras e as ideias brincavam à solta, riam e conversavam alto,
até algumas escorregarem pelas mãos, indo cair nas páginas em
branco, depois ocres, de seu caderno. Mas da boca, assim como
quase não entravam moscas, mal saíam palavras. Esse imate-
rialismo paralelo só encontrava perpendiculares quando trazia
algum dado do mundo concreto para as abstrações desse seu
outro mundo. Porque observador, sim, ele era.
Da guarita escura, seu esconderijo onde ficava à espreita
das ideias, fez, quando começou a querer escrever, um comu-
nicado ao síndico de seu prédio solicitando uma iluminação
maior no hall de entrada. Como trabalhava à noite na portaria,
uma maior iluminação do hall lhe proporcionaria melhor visi-
bilidade, não da rua, que deveria vigiar, mas dos seus romances,

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que lia sempre às escondidas. Ou seja, em vez de olhar para as
quatro câmaras de vídeo instaladas nos ditos pontos estratégi-
cos, olhava o monte de letras miúdas que se estampavam nos
livros puídos pelo tempo, pelo fogo, pelo uso. Enfim, tomou a
iniciativa de escrever sua petição, embora não a assinasse, visto
que poderia ser molestado pelo síndico e sua voz estertorosa.
Foi mais ou menos assim que escreveu, protegido pelo escudo
do anonimato: senhor síndico, pensando na segurança de todos
os condôminos, bem como na melhor apresentação estética de
nosso edifício, venho, por meio desta, solicitar-lhe a substituição
das atuais lâmpadas do ral de entrada por lâmpadas de maior
potência, que iluminem melhor não só o nosso corpo como tam-
bém, e por que não, a nossa mente. Grato. Releu o bilhete e sorriu
pela ousadia do final. Mediu outra vez as palavras e achou que
o anonimato fez bem a elas. Depois, enfiou o bilhete por entre
as diversas correspondências endereçadas ao síndico e esperou
resposta. Não uma resposta verbal, mas sim uma que viesse por
meio de atos concretos. Não foi assim. Pouco antes de sair, às
seis da manhã, Desidério recolhia todo o lixo depositado pelas
zeladoras, colocava-os em grandes tambores e os levava para a
rua, onde o caminhão deveria fazer a coleta. Dois dias depois
da carta, ao subir a rampa que ligava a garagem subterrânea à
rua, puxando o carrinho que comportava três tambores com
todo o tipo de resíduo, não pôde evitar o comentário repleto
de grunhidos do síndico, que, ainda com cara de sono, parecia
estar de vigia, esperando Desidério para comentar o assunto.
– Imagine, Desidério, ter a cara de pau de pedir lâmpada
mais forte. Ele depois vem encher o saco dizendo que o custo
do condomínio é muito alto. O idiota, ou a idiota, que isso pode
bem ser coisa de mulher, nem teve coragem de assinar. Mas deve
ser aquele bêbado do 402, que chega de madrugada cambale-
ando e não consegue andar sem bater em tudo. Vou ter que con-
versar com ele. Esse imbecil vem falar em iluminar sei lá o quê...

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a mente... tem é que iluminar a cabeça dele com paulada pra ver
se toma vergonha na cara, o patife! Tem gente que só na paulada,
Desidério, tem gente que só na paulada.
– É.
E sumiu-se o síndico porta adentro. Desidério sabia bem
que não haveria problema, que ninguém conversaria com nin-
guém e que o síndico era incapaz de criar qualquer tipo de
rusga com seus condôminos. Às vezes a covardia ganha cores
de cordialidade. A tristeza de Desidério projetava-se na impos-
sibilidade de ganhar mais luzes para suas leituras e escrituras;
para sua mente, como ele próprio escrevera. Mas é na penum-
bra mesmo que ele deve ficar, e é dela que as ideias deverão
saltar para dentro da cabeça e, tateando o melhor lugar da folha
em branco, repousar. Ou será ainda que, medrosas, não salta-
rão? Desidério, silencioso, tagarelava por dentro.
Quem se mantém inteiro de caráter e personalidade
durante todas as horas do dia, durante todos os dias da semana,
durante todas as semanas dos meses dos anos da vida? Foi pen-
sando assim que decidiu encerrar sua polêmica interna. Sabia
que ele podia ser um, mesmo sendo outro. Gostou da compo-
sição: fechado, calado por fora; pensativo, agitado por dentro.
Imaginava-se virado do avesso e não gostava do que via, um
obtuso falador cuja cabeça só pensava imediatices. Sabia que
existiam confissões que só se faziam à própria consciência,
assim como também sabia que este último pensamento, tal
qual pensara, não era dele. As revelações que fazia somente à
própria consciência jamais saíam de sua boca. Tentavam sair
de sua mão, mas aí já não eram mais coisas dele, e sim de seus
loucos personagens.
Existem revelações que só se fazem à própria consciência. A
lembrança foi fruto de um pequeno hábito que Desidério, de uns
tempos para cá, começou a desenvolver: o de escrever, embaixo
do próprio balcão da guarita, frases tocantes que lia nos livros.

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