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Políticas afirmativas

6
Cotas avançam nas universidades públicas de norte a sul do país
Ana Cláudia Mielki, Antonio Biondi, Daniel Hammes e Amanda Rossi

16
USP, Unicamp, UFPE e UFRPE adotam ações afirmativas com bônus
Amanda Rossi e Antonio Biondi

21
Ações recentes movimentam STF e Congresso Nacional
Antonio Biondi

24
Por enquanto, “antes de mais nada”, nada!
Ana Cláudia Mielki, Antonio Biondi e Daniel Hammes

Polêmica : I nclusp
28
Impacto do Inclusp no ingresso de alunos da escola pública
(análises iniciais)
Selma Garrido Pimenta, Maria Amélia Campos Oliveira,
Maria Isabel de Almeida e Maurício dos Santos Matos

34
Vamos dar mais cor e diversidade à USP?
José Marcelino de Rezende Pinto e Rubens Barbosa de Camargo

40
Medida inócua, ante a imensa desigualdade no sistema escolar
Eunice Durham

Pós -graduação
44
Doutores, mas para que?
José Chrispiniano

51
No Sul, mais vagas nas federais (e cortes no setor privado)
Daniel Cassol

54
Pós-graduação: estamos no caminho certo?
Fabio Bessa Lima e José Cipolla Neto

56
Produção de doutores na área de humanidades: excesso ou má distribuição?
Ana Paula Hey e Afrânio Mendes Catani
DIRETORIA
Otaviano Helene, César Augusto Minto, Marco Brinati, Carla Roberta de Oliveira Carvalho,
Marcos Nascimento Magalhães, Marcelo Luiz Martins Pompêo, Suzana Salem Vasconcelos,
Demóstenes Ferreira da Silva Filho, Sérgio Souto, José Marcelino de Rezende Pinto, Ozíride Manzoli Neto

Comissão Editorial
Benedito Honório Machado, Décio Crisol Donha, Dilma de Melo Silva,
Flávio César Almeida Tavares, João Zanetic, José Carlos Bruni,
Luiz Menna-Barreto, Marco Brinati, Maurilane de Souza Biccas, Osvaldo Coggiola

Editor: Pedro Estevam da Rocha Pomar


Assistente de redação: Tatiane Maíra Klein
Editor de Arte: Luís Ricardo Câmara
Assistente de produção: Rogério Yamamoto
Capa e ilustrações desta edição: Ohi
Secretaria: Alexandra M. Carillo e Aparecida de Fátima dos R. Paiva
Distribuição: Marcelo Chaves e Walter dos Anjos
Refeitório: Ivanilda Comotti Ramos

Tiragem: 5.500 exemplares


Gráfica: Copypress

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A Revista Adusp é uma publicação quadrimestral da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo,
destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem, necessariamente, o pensamento da Diretoria da entidade.
Contribuições inéditas poderão ser aceitas, após avaliação pela Comissão Editorial.
Avanço das cotas e das políticas afirmativas
Por mais que se tenha ressalvas com relação às cotas, em especial as étnicas ou raciais, é impossível ao ob-
servador isento deixar de ver que elas estão operando notável transformação no corpo discente das universida-
des públicas que as adotaram. Graças a elas, agora já se pode encontrar, por exemplo, estudantes negros em
cursos de Medicina, nos quais o ingresso de não-brancos era simplesmente inimaginável até poucos anos antes.
A quantidade de alunos indígenas da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) também impressiona: no vesti-
bular de 2008 foram aprovados nada menos do que 163 candidatos oriundos dos povos originários. Sem falar
nos 1.818 candidatos negros que ingressaram na instituição neste ano, igualmente beneficiados pelas cotas.
As cotas avançam no sistema público de ensino superior, embora não sejam majoritárias. Estão presentes
em 39 universidades públicas, inclusive 20 das 53 federais. Outras oito públicas adotam políticas afirmativas
por meio de bonificação, entre elas Unicamp e USP. Das federais, 29 deixam de adotar qualquer tipo de políti-
ca de inclusão, situação em que também se encontra a Unesp.
Nossos repórteres mapearam os sistemas de cotas e demais políticas afirmativas existentes em parcela ex-
pressiva das instituições públicas de ensino superior do país, apontaram as diferenças de recorte e de critérios,
levantaram dados. Verificaram que importantes universidades escamoteam o debate. Evitam democratizar o
acesso, refugiando-se no surrado discurso da defesa do “mérito”.
A propósito, uma das constatações da reportagem merece destaque: o ingresso de cotistas e demais bene-
ficiários de políticas afirmativas, longe de fazer baixar a qualidade dos cursos que os acolhem (como se alegou
às vezes), tem contribuído para elevá-la, segundo os indicadores usuais das universidades. O desempenho aca-
dêmico destes universitários — sejam os autodeclarados negros ou indígenas, sejam os demais egressos da rede
pública de ensino médio — tem sido tão bom quanto o de seus colegas admitidos pelo sistema universal. Dian-
te dessa evidência, como sustentar a tese da supremacia do “mérito”?
Ainda nesta edição, como complemento que enriquece a reportagem sobre as cotas, trazemos um debate
sobre o Inclusp, publicando artigos em que procuramos contemplar, além do entendimento da Reitoria, outras
visões existentes no corpo docente da USP.

Os sem-emprego
A política nacional de pós-graduação implantada pelo governo FHC e mantida, nos seus aspectos essen-
ciais, pelo governo Lula, continua sendo apresentada como um êxito. O Brasil forma cerca de 10 mil doutores
por ano, e o rigor com que a Capes avalia programas e pesquisadores, bem como o brutal encurtamento dos
prazos, são dados como indispensáveis a esta estratégia supostamente vitoriosa.
Resolvemos mostrar o que ocorre ao final desta “linha de produção de doutores”: o beco sem saída em que
logo se vêem os recém doutores, que ou disputam e conquistam as poucas vagas disponíveis nas universidades
públicas, ou são obrigados a submeter-se a péssimas condições de trabalho nas instituições privadas (que a Ca-
pes e o MEC insistem em não enxergar). Para tanto, saímos a campo em São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, importantes pólos universitários.
Também discutem a questão dois artigos. Um terceiro, representando o ponto de vista da Capes, deixa de
ser publicado: dois meses depois de aceitar convite para redigí-lo, o professor Jorge Guimarães, presidente da
agência, avisou que não mais o faria.

Conselho Editorial: correção importante


Por erro do Editor, ao tratar das mudanças na composição da Comissão Editorial da Revista Adusp, a edição
42 omitiu os nomes de dois dos seus novos integrantes: os professores Benedito Honório Machado (FMRP) e
Décio Crisol Donha (EP). Fica assim corrigido o esquecimento.
O Editor
Julho 2008 Revista Adusp

Cotasavançam nas
universidades públicas
de norte a sul do país
Ana Cláudia Mielki, Antonio Biondi e Daniel Hammes
Jornalistas
Amanda Rossi
Estudante de Jornalismo (ECA-USP)

São 39 as instituições públicas de ensino superior, entre elas 20


universidades federais, que adotam o sistema de cotas nos seus
processos de admissão de alunos. As cotas estão presentes em
diferentes formatos e recortes nas principais universidades das regiões
sul (UFRGS, UFSM, UFSC, UFPR, UEL), centro-oeste (UnB,
UFTO), nordeste (UFBA, Uneb, UFES e outras) e norte (UFPA).
No sudeste, são encontradas na Uerj, UFJF, Unifesp e UFSCar


Revista Adusp Julho 2008
Uerj - Assessoria de Comunicação

S
Aspecto do campus da UERJ, primeira universidade do país a adotar as cotas

istemas de cotas, que re- te. No Sudeste, verifica-se que as nas e filhos de policiais e de bom-
servam vagas em vesti- principais universidades públicas beiros mortos em serviço. As cotas
bulares (ou demais pro- resistem às cotas. Mesmo assim, atendem o disposto na lei estadual
cessos de admissão de importantes instituições as adota- 4.151, de 2003, pioneira no país.
alunos) para estudantes ram (vide Quadro 1). O sistema adotado na Uerj pos-
egressos da rede pública A Universidade do Estado do sui dois outros recortes, que incidem
de ensino médio e ou para grupos Rio de Janeiro (Uerj) orgulha-se sobre os demais: o sócio-econômico
étnicos da população, já são reali- de adotar em seu vestibular, desde e o de desempenho. A professora
dade em 20 universidades federais, 2003, cotas para afro-descenden- Lená Medeiros de Menezes, sub-
ou seja, em mais de um terço das tes e para alunos oriundos de es- reitora de Graduação, explica que os
53 instituições do gênero existentes colas públicas. A Uerj, que tem 19 candidatos às vagas reservadas para
no país. As universidades estaduais mil alunos de graduação, reserva cada grupo devem se enquadrar na
que aderiram à política de cotas 20% de vagas para afro-descenden- categoria de “estudantes carentes”,
são 19. Em formatos variados, tais tes, 20% para alunos oriundos das situação hoje entendida como a dos
sistemas estão presentes nas maio- escolas públicas e 5% para outros matriculados com renda de até R$
res universidades das regiões Sul, grupos: portadores de necessida- 650. Além disso, é necessário que os
Centro-Oeste, Nordeste e Nor- des especiais, populações indíge- candidatos obtenham nota mínima


Julho 2008 Revista Adusp
de 2 pontos nas duas fases do ves-
tibular. Quando sobram vagas de Quadro 1
cotas, são revertidas para não-cotis-
tas (Quadro 2). “É importante acres- IES públicas (federais e estaduais) que adotam sistemas de reserva
centar que os alunos recebem bolsas de vagas
de permanência ao longo dos dois
Recorte Recorte
primeiros anos e depois são inseri-
racial social
dos em projetos acadêmicos”, nos 1 Universidade Federal de Santa Catarina SIM SIM
quais também podem obter bolsas, 2 Universidade Federal de Santa Maria SIM SIM
3 Universidade Federal do Paraná SIM SIM
acrescenta Lená.
4 Universidade Federal do Rio Grande do Sul SIM SIM
Segunda instituição de ensino 5 Universidade Federal do Pampa SIM SIM
superior do país a implantar o sis- 6 Universidade Federal de Juiz de Fora NÃO SIM
tema de cotas, a Universidade 7 Universidade Federal de São Carlos SIM SIM
8 Universidade Federal de São Paulo SIM SIM
Estadual da Bahia (Uneb) reserva
9 Universidade Federal do ABC SIM SIM
45% das vagas, tanto na gradu- 10 Universidade Federal do Espírito Santo NÃO SIM
ação quanto na pós-graduação. A 11 Universidade Federal da Bahia SIM SIM
Uneb, que já graduou sua primeira 12 Universidade Federal de Alagoas SIM NÃO
13 Universidade Federal do Maranhão SIM SIM
turma de cotistas, quer regulamen- 14 Universidade Federal do Piauí NÃO SIM
tar melhor as cotas na pós-gradua- 15 Universidade Federal do Recôncavo Baiano SIM SIM
ção, ainda à mercê de interpretações 16 Universidade de Brasília SIM SIM
17 Universidade Federal do Tocantins SIM NÃO
diversas. “Cada departamento acaba
18 Universidade Federal Rural da Amazônia (AM) NÃO SIM
tendo uma interpretação diferen- 19 Universidade Federal do Pará SIM SIM
ciada sobre como reservar os 45%. 20 Universidade Federal da Paraíba SIM SIM
Alguns coordenadores aplicam a 21 Universidade Vale do Acaraú – UVA (CE) NÃO SIM
22 Universidade Estadual do RS - UERGS NÃO SIM
reserva apenas na primeira etapa,
23 Universidade do Estado da Bahia - UNEB SIM SIM
mas o importante é que esses 45% 24 Universidade Estadual de Londrina - UEL SIM SIM
estejam configurados na lista final 25 Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul SIM NÃO
26 Universidade Estadual de Minas Gerais – UEMG SIM SIM
de aprovados”, explica Wilson Mat-
27 Universidade de Montes Claros – Unimontes (MG) SIM SIM
tos, pró-reitor de Pós-Graduação. 28 Universidade Estadual do Amazonas - UEA SIM SIM
O vestibular é único, porém os 29 Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ SIM SIM
candidatos são separados por gru- 30 Universidade Estadual do Norte Fluminense- UENF SIM SIM
31 Universidade de Pernambuco - UPE NÃO SIM
pos que não concorrem entre si:
32 Universidade Estadual de Goiás - UEG SIM SIM
55% não-cotistas, 40% pretos e 33 Universidade Estadual do Mato Grosso - Unemat SIM SIM
pardos e 5% indiodescendentes. A 34 Universidade Estadual de Ponta Grossa - PR SIM SIM
nota de corte (média aritmética das 35 Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS SIM SIM
36 Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC SIM SIM
notas) é calculada no interior de 37 Universidade Estadual do Rio Grande do Norte - UERN NÃO SIM
cada grupo. Além da autodeclara- 38 Universidade Estadual da Paraíba - UEPB NÃO SIM
ção, os cotistas devem ser egressos 39 Universidade Estadual do Maranhão - UEMA NÃO SIM

do ensino público e possuir renda


familiar mensal inferior a 10 salá- que a representação numérica de depor contra a qualidade do ensino
rios mínimos. No vestibular de estudantes negros na Uneb corres- das universidades, “os sistemas têm
2008, 2.214 vagas foram reservadas ponda à sua proporção na popula- sido positivamente avaliados”, diz
aos candidatos negros ou indígenas. ção baiana, em torno de 70%. Mattos. Segundo a pró-reitora de
Até 2011, quando será feita a ava- Contrariando a expectativa dos Graduação da Uneb, Mônica de
liação do sistema, a meta é garantir pessimistas de que as cotas iriam Oliveira Torres, apesar dos ajus-


Revista Adusp Julho 2008

Quadro 2 – UERJ: números do


Vestibular 2008
Sistema universal 25.565
IES que adotam sistema de pontuação diferenciada (bônus)
Inscritos Sistema de Cotas 2.022
Recorte Recorte Total 27.587
racial social
Universidade Estadual de Campinas - Unicamp SIM SIM Sistema universal 2.823
Universidade de São Paulo - USP NÃO SIM Vagas Sistema de Cotas 2.318
Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto- Famerp SIM SIM
Total 5.141*
Faculdade de Tecnologia de São Paulo - Fatec SIM SIM
Universidade Federal Fluminense NÃO SIM Sistema Universal 3.840
Universidade Federal do Rio Grande do Norte NÃO SIM Aprovados Sistema de Cotas 1.259**
Universidade Federal de Pernambuco* NÃO SIM
Total 5.099
Universidade Federal Rural de Pernambuco NÃO SIM
Fonte: Universidade do Estado do Rio Janeiro
(UERJ)
Centros Federais de Educação Tecnológica** *Em 46 cursos
**Quando sobram vagas de cotas, são
revertidas para não-cotistas
Recorte Recorte
racial social
CEFET – BA SIM SIM
soria de Diversidade e Apoio aos
CEFET – PE NÃO SIM Cotistas, órgão ligado ao gabinete
CEFET – RN NÃO SIM da Reitoria, criado há dois anos.
CEFET – SE NÃO SIM
Em 2004, antes de o sistema
Quadro baseado em levantamento interno realizado pela Secretaria de Ensino Superior
(SESU-MEC). entrar em vigor, o índice de estu-
*A menção à UFPE não consta do levantamento original.
**Que possuem curso superior dantes pardos no curso de Medi-
cina era de 1,79% e o de pretos 0%.
Já em 2005, com a implantação das
cotas, a presença de pardos subiu
para 2,69% e a de pretos deixou de
Na UnB, 20% das vagas de cada curso são destinadas ser nula para alcançar 2,63%. Mais
exclusivamente aos que se autodeclaram pretos ou do que alterações nos percentuais,
houve também uma mudança na
pardos, independentemente do perfil socioeconômico. cor do campus. “Antes você entrava
Um desafio é garantir a permanência dos alunos numa sala de aula e só via alunos
brancos. Quando via estudantes
cotistas, na sua maioria de baixa renda negros, quase sempre eram afri-
canos em intercâmbio. Hoje você
vê três, quatro estudantes negros e
tes a serem feitos, “já rebatemos eficácia do programa. No Vestibu- todos são brasileiros”, entusiasma-
o primeiro preconceito de que os lar 2008, quatro das 18 vagas de se José Jorge de Carvalho, profes-
cotistas não estariam aptos a fazer Medicina foram ocupadas por estu- sor do departamento de antropolo-
o acompanhamento dos cursos”. dantes que se declararam pretos ou gia da UnB.
Entre as federais, a primeira ins- pardos e optaram pelo sistema de No entender de Carvalho, além
tituição a adotar cotas raciais foi a cotas. Resultado expressivo, “que de democratizar o acesso as políti-
Universidade de Brasília (UnB), em demonstra que se conseguiu marcar cas de cotas contribuem para mudar
2004. Quatro anos após ter implan- maior presença negra nesse curso, a cultura da universidade, sobre-
tado o Sistema de Cotas para Ne- de forma regular”, afirma Jaques tudo nos cursos de humanidades,
gros, a UnB começa a confirmar a de Jesus, coordenador da Asses- onde os estudantes começaram a


Julho 2008 Revista Adusp
questionar “o eurocentrismo como
paradigma fundante das universida-
des brasileiras”. Hoje, segundo ele, Tanto na UFPR como na UFBA o desempenho
os estudantes cobram pela utiliza-
acadêmico dos cotistas mostrou-se semelhante,
ção de autores negros e a história
da África e dos afro-brasileiros está quando não superior, ao dos demais alunos. Em 11
sendo mais pesquisada. dos 18 cursos de maior concorrência na Bahia os
Além das cotas, a universi-
dade criou o Centro de Convivên- cotistas obtiveram rendimento igual ou maior
cia Negra, com ações de apoio aos
cotistas, e o Programa de Combate
ao Racismo e à Xenofobia na UnB, da divisão entre as vagas da seleção ção com cotas, desde 2007 as vagas
criado pelo Decanato de Exten- universal e as da seleção com as remanescentes passaram a ser des-
são. O programa é uma resposta da cotas: foram criadas novas vagas”, tinadas a alunos oriundos da escola
universidade ao incidente ocorrido a fim de se evitar contestações na pública que atendam aos requisitos
em março de 2007, quando foram justiça por supostos privilégios con- de nota. Nos dois tipos de seleção,
incendiados quartos de estudan- cedidos a uma parcela dos candida- foi aberta a segunda opção de car-
tes africanos na Casa do Estudante tos. “Ao ampliar em 10% as vagas, reira no vestibular, “para que as
Universitário (CEU). todas as vagas do sistema universal vagas que não foram preenchidas,
Na UnB, 20% das vagas de cada puderam ser mantidas”, argumenta. pela falta de candidatos com os cri-
curso são destinadas exclusivamente De acordo com Mello, a cada térios necessários”, o sejam “por
aos que se autodeclaram pretos ou vestibular a Unifesp tem aprimo- candidatos que não obtiveram as
pardos, independentemente do per- rado os critérios. “É uma iniciativa notas necessárias em sua primeira
fil socioeconômico. Hoje um dos em permanente processo de ajuste”, opção”, segundo Mello.
principais desafios é garantir a per- avalia. Inclusive pelo fato de que a Outra instituição que implantou
manência dos estudantes cotistas, Unifesp se encontra em processo de o sistema de cotas no vestibular de
na sua maioria pertencentes a famí- expansão, tendo passado de cinco 2005 foi a Universidade Federal do
lias de baixa renda. Outro desa- cursos para 23 e de 300 vagas para Paraná (UFPR), que reservou 20%
fio, segundo Carvalho, “é criar um 1.200, em cinco cidades. “São novos das vagas para candidatos afro-
sistema de inclusão de professores cursos, novos alunos, muitas vezes descendentes e 20% para oriundos
negros e abrir a pós-graduação para em regiões carentes. Mudou tudo: de escolas públicas. O Núcleo de
os estudantes cotistas”. o tipo de aluno, as necessidades, o Acompanhamento da Pró-Reitoria
A Universidade Federal de São tipo de curso a se oferecer”, afirma de Graduação avalia que o desem-
Paulo (Unifesp) adota as políticas ele, para quem não existe diferença penho acadêmico dos estudantes
afirmativas em seu vestibular desde acadêmica relevante entre os gru- cotistas, no geral, tem sido seme-
2005. De acordo com Luiz Mello, pos que prestam o vestibular. lhante, e em alguns casos supe-
pró-reitor de Graduação, as cotas No vestibular de 2008, além rior, ao da concorrência geral. Até
são destinadas aos candidatos auto- da exigência de que o aluno não 2007, ingressaram como cotistas na
declarados negros (pretos e pardos) zerasse em nenhuma disciplina da universidade 3.158 estudantes. A
e auto-declarados indígenas, sendo prova (adotada em 2006), foi neces- UFPR desenvolve também o Pro-
necessário que o vestibulando tenha sário também que o candidato atin- cesso de Ocupação de Vagas Rema-
cursado o ensino médio em escola gisse a média global mínima de 3 nescentes (Provar), que consiste no
pública. O pró-reitor da Unifesp pontos. Como nem todas as vagas remanejamento de estudantes da
explica que “as cotas de cada curso reservadas são preenchidas pelos universidade, ou de fora, para pre-
não foram criadas como resultado candidatos que optam pela sele- enchimento de vagas disponíveis.

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Revista Adusp Julho 2008

Quadro 3 – Ponto de corte no Quadro 4 – UFBA: rendimento de alunos cotistas e não-cotistas (2005)*
vestibular da UFBA, 2003-2005 CURSO COTISTAS NÃO-COTISTAS
Administração 83,3 95,4
Ano 1ª fase 2ª fase
Arquitetura 85,6 81,3
2005 5.117,4 5.089,5
Ciências da Computação 66,6 53,7
2004 5.099,8 5.056,4 Comunicação – Jornalismo 100,0 87,5
2003 5.018,7 5.009,3 Comunicação - Prod. Cultural 100,0 88,9
Direito 95,2 88,9
Enfermagem 87,5 64,2
Na Universidade Federal da Engenharia Elétrica 55,5 75,0
Bahia (UFBA), onde as cotas Engenharia Mecânica 75,0 100,0
foram implantadas em 2005, não Engenharia Civil 94,1 80,0
houve declínio de desempenho, Farmácia 92,3 82,3
pelo contrário: o ponto de corte Fonaudiologia 100,0 88,9
do vestibular de 2005 superou o Medicina 93,3 84,6
Medicina Veterinária 77,0 81,0
dos vestibulares anteriores (Qua-
Nutrição 87,5 92,3
dro 3). Nos dois primeiros semes-
Oceanografia 27,2 40,0
tres cursados em 2005, em 11 dos Odontologia 100,0 100,0
18 cursos de maior concorrência Psicologia 77,8 100,0
(ou seja, 61%), os cotistas obtive- *Com coeficiente de rendimento entre 5,1 e 10 — matriculados nos cursos de maior concorrência
nos dois semestres de 2005
ram um coeficiente de rendimento

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Julho 2008 Revista Adusp
igual ou superior ao dos não-cotis- programa federal de apoio à inicia- cas. Serão 20% das vagas entre
tas (Quadro 4). Nenhuma sur- ção científica. O programa benefi- 2008 e 2010; 40% de 2011 a 2013;
presa, esclarece o professor Jocé- cia 50 alunos que ingressaram pelo finalmente, 50% de 2014 a 2016.
lio Teles dos Santos, diretor do sistema de cotas com bolsas de R$ Deste percentual, 35% das vagas
Centro de Estudos Afro-Orientais 300 para desenvolver projetos de serão ocupadas por estudantes
da UFBA: “Esse resultado era pesquisa, extensão e ensino que negros —pretos e pardos. Cada
esperado, já que tínhamos acu- abordem prioritariamente duas curso de graduação disponibiliza,
mulado dados desde o ano 1998 temáticas: a racial e a das doenças ainda, uma vaga para candidatos
sobre o bom desempenho de estu- sexualmente transmissíveis, espe- indígenas (que realizam provas
dantes negros oriundos da escola cialmente Aids. específicas), contada para além do
pública”. Evaristo Colmán, presidente número total de vagas do curso.
Na UFBA são reservadas 45% da Associação dos Docentes da Nem todas as universidades
das vagas totais, sendo 36,55% UEL, diz que um dos problemas optaram por reserva de vagas base-
para candidatos de escola pública no processo de implantação das ada em um corte étnico-racial. No
que se declararem pretos ou par- cotas foi o curto período de deba- vestibular de 2008 da Universidade
dos; 6,45% para candidatos de tes, cerca de 45 dias, e o volume de Federal do Espírito Santo (UFES),
escola pública de qualquer etnia propaganda institucional. “Parti- os candidatos à cota de 40% das
ou cor; 2% para candidatos de cipei com professores do curso de 3.295 vagas totais precisaram aten-
escola pública que se declara- Serviço Social e defendemos que der a dois critérios sociais: ter
rem indiodescendentes, mais a política de cotas é demagógica, cursado no mínimo sete anos em
duas vagas para índios aldeados não resolve a dívida histórica com escola pública, contando todo o
e duas vagas para quilombolas. os afro-descendentes; fere o prin- ensino médio; e ter renda familiar
Os 55% restantes são disputados cípio constitucional da igualdade de até sete salários mínimos. Ape-
pelos candidatos do sistema uni- de todos perante a lei; e coloca sar disso, entre os 15 cursos mais
versal. O vestibular é dividido em uma cortina de fumaça em pro- procurados nove receberam mais
duas fases, sendo a primeira igual jetos equivocados como o Reuni. estudantes pretos e pardos. Um
para todos. Cada candidato pre- Existem manifestações isoladas exemplo é curso de Direito, em
cisa atingir pontuação superior ao de preconceito e segregação em que foram inscritos 1.834 candi-
ponto de corte na primeira fase alguns cursos mais elitistas — na datos, sendo 356 cotistas, e foram
do vestibular dentro do grupo em medicina, por exemplo”, comenta. aprovados 44 candidatos pelo sis-
que está inscrito. A UEL possui 19.096 alunos em 42 tema de cotas.
A Universidade Estadual de cursos de graduação. De acordo com Gustavo Forde,
Londrina (UEL) é outra que ado- Na Universidade Federal de do Centro de Estudos da Cultura
tou o sistema de cotas no vestibular São Carlos (UFSCar) a adoção Negra, a reserva de vagas na UFES
de 2005. Uma adesão nada trivial: de cotas no vestibular segue a é uma conquista, na medida em
a reserva constitui 60% do total. lógica de reservar uma parte das que “aumenta a possibilidade de
São destinadas 40% das vagas para vagas para estudantes egressos afrodescendentes ingressarem”.
candidatos oriundos de instituições de escolas públicas, separando Por outro lado, ressalta, “foi um
públicas de ensino e outras 20% parcela delas segundo critérios passo tímido, que demonstrou que
para negros oriundos de institui- étnico-raciais. A peculiaridade do a academia é permeada por muitos
ções públicas de ensino. Em 2008, programa adotado na UFSCar é preconceitos e por isso não con-
ofereceu 3.050 vagas pelo sistema que ela optou por ampliar grada- seguiu fazer um recorte de que a
universal e 3.335 pelo sistema de tivamente as vagas destinadas aos exclusão é também pela raça e não
cotas. Por possuir política de cotas, estudantes que tenham cursado apenas pela classe social”. O secre-
a UEL participa do “Afroatitude”, o ensino médio em escolas públi- tário de Inclusão Social, professor

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Revista Adusp Julho 2008
Antonio Carlos Moraes, Quadro 5 – Cotas: comparando números no DF, BA e ES em 2008
pondera que a proposta de
cotas sociais foi a melhor
IES UnB Uneb UFBA UFES
alternativa em virtude Sistema universal 22.934 35.759 21.747 14.221
do momento político do 6.250
4.276
debate: “Se tivéssemos Nº de Inscritos 16.526 negros egressos
Sistema de Cotas (homologados 12.693
825 indígenas da rede
apresentado a proposta só 1.159)
pública
que incluía cotas raciais, o Total de inscritos 27. 210 53.110 34.440 20.471
projeto seria derrotado e
Sistema universal 874 2.706 2.336 1.977
só poderia ser votado no
Nº de
ano seguinte”. Sistema de Cotas 212 2.214 1.910 1.318
vagas
Na UFES todos os can- 1.086 4.920 4.246 3.295
Total de vagas
didatos inscritos concorrem (64 cursos) (156 cursos) (67 cursos) (66 cursos)
a 60% das vagas, depois é Aprovados/ Sistema universal 857 2.939 2.311 2.221*
realizada uma reclassifica- vagas
1.818 negros
ção, que seleciona os estu- preenchidas Sistema de Cotas 207 1.800 794
163 indígenas
dantes com perfil para pre- Totais 1.064 4.920 4.111 3.015
encherem os 40% de vagas *Dentre os quais 300 que se inscreveram como cotistas, mas foram aprovados no sistema universal pelo de-
reservadas. As provas são sempenho.
iguais para os dois grupos,
que precisam alcançar no
mínimo 30% da nota das
duas fases da seleção e não Em 2007 a UFSC adotou um sistema misto de cotas,
podem tirar menos de 2 na
prova de redação. (Vide no
o que fez aumentar o número de alunos negros. O
Quadro 5 informações deta- DCE apóia a medida, mas exige maior investimento
lhadas sobre os números de
inscritos nos vestibulares e
da universidade em permanência estudantil
os resultados das políticas
de cotas na UFES, UFBA,
Uneb e UnB.)
A Universidade Federal de Santa Os docentes Marcelo Tragtem- não aumentaria o número de alunos
Catarina (UFSC) só implantou em berg e Marco Aurélio Peres e os negros aprovados, e nem mesmo a
2007 uma política de cotas. Toda- estudantes João Dornelles Bastos alteração da nota mínima consegui-
via, o primeiro debate sobre ações e Lincon Nomura investigaram, a ria essa aprovação.
afirmativas na UFSC ocorreu em partir de simulações de aumento de A votação no Conselho Univer-
2001, entre professores que se reu- vagas e alteração da nota mínima sitário da UFSC aprovou por fim
niram durante uma longa greve por do vestibular, com base nos dados em 2007, com votação de 24 x 9,
reajuste salarial. Como fruto destes do vestibular de 2004, como seria a uma resolução que institui um sis-
encontros criou-se o Grupo de Tra- aplicação de uma política de ações tema misto de cotas, semelhante
balho de Etnia, Gênero e Classe da afirmativas na UFSC. No estudo, ao existente em várias outras uni-
Associação dos Professores (Apu- publicado em setembro de 2006, versidades federais. Reservou
fsc), que promoveu debates em uni- concluiu-se que a simples reserva 30% das vagas em cada curso:
versidades de Santa Catarina, do de 50% das vagas para estudantes 20% para candidatos que tenham
Rio de Janeiro e de Brasília. oriundos do ensino médio público cursado integralmente o ensino

13
Julho 2008 Revista Adusp
fundamental e médio em institui- e pardos. Paralelamente, limina- tes universitários, de moradia e
ções públicas; e 10% para candi- res concedidas em ações judiciais da estrutura dos laboratórios e
datos autodeclarados negros que contra as cotas resultaram em 46 bibliotecas. O sistema de cotas
tenham cursado integralmente o matriculados sub judice. não resolve o problema da demo-
ensino fundamental e médio em A Universidade Federal do Rio cratização do acesso”.
instituições públicas. Grande do Sul (UFRGS) passou Márcio Leopoldo Maciel, estu-
Após a implantação do sis- a adotar políticas de cotas em dante de Filosofia, membro eleito
tema, aumentou o número de 2008, destinando 30% das vagas do Conselho Universitário da
alunos negros na UFSC, que para alunos egressos do ensino UFRGS (Consun), coordenador do
tinha em média 1% de estudantes público (ensino médio e metade Movimento Contra as Cotas, sus-
pretos e 6,5% de pardos. Hoje do fundamental). Metade delas é tenta porém que não houve debate
os índices subiram para 6,3% e para egressos do ensino público público, com disputa de argumen-
9,6%, respectivamente. Rodrigo autodeclarados negros, além de tos, o que teria impedido a socie-
Fernandes Ribeiro, do Diretó- 10 outras vagas para descenden- dade de tomar posição: “Os con-
rio Central dos Estudantes da tes dos povos indígenas. Foram trários ao sistema de cotas foram
UFSC, lembra que o projeto foi ajuizadas contra a UFRGS, por identificados como racistas. O
muito bem recebido: “Prome- estudantes não aprovados no ves- resultado disso foi a ausência de
tia, além deste acesso de 30% de tibular que se consideraram preju- uma evolução teórica sobre o tema.
cotas, investimentos em perma- dicados pela existência das cotas, Diversas pessoas de classe média
nência, desafio para esta gestão 88 ações judiciais, e concedidas alta entraram na universidade via
do DCE”. Previa-se para junho 70 liminares, garantindo a seus cotas e outras, que haviam perdido
de 2008 a realização do II Fórum autores a matrícula. A universi- a vaga por conta das cotas, estão
dos Direitos Estudantis, “que dade sempre recorre das limina- matriculadas por decisões judiciais.
buscará cobrar da Reitoria medi- res: até o final de junho já havia As distorções não são exceções, são
das de implantação de todas as conseguido cassar 33 delas. Ape- a maioria dos casos”.
necessidades mais sentidas dos nas uma das liminares foi mantida A UFRGS possui 23 mil alunos
estudantes da UFSC, na busca de em segunda instância. Contudo, em cursos de graduação, 13 mil
mantê-los neste espaço”. em nenhum dos processos houve entre mestrado e doutorado, 2.150
A UFSC possui 36.752 alunos, o julgamento de mérito. professores. No vestibular 2008
sendo 8.543 da pós-graduação, A Pró-Reitoria de Graduação inscreveram-se 34.999 estudan-
25.737 na graduação e ensino à avalia positivamente o programa. tes, dos quais 23.470 pelo sistema
distância, 2.196 alunos do ensino Não foram constatados proble- universal e 11.529 pelo sistema de
básico e 276 na pré-escola. Estão mas de integração dos alunos e cotas. No entanto, somente 4.312
distribuídos por 61 cursos de gra- existe a expectativa de os cotistas vagas foram oferecidas: 2.997 pelo
duação e mais de 80 cursos de apresentarem desempenho tão primeiro e 1.315 pelo segundo.
mestrado e doutorado. No último bom quanto os demais. Beliza Foram efetivamente matriculados
vestibular, inscreveram-se 29.243 Stasinski L opes, do DCE da 4.310, e o número de cotistas bai-
candidatos no sistema universal, UFRGS, considera a aprovação xou para 1.313.
5.188 nas cotas para escola pública do sistema de cotas uma vitória, Na Universidade Federal de
e 562 pretos e pardos nas cotas mas adverte para suas limitações: Santa Maria (UFSM) o sistema
étnicas. Apenas 4.095 vagas foram “Além da constatação da segrega- de cotas passou a vigorar no vesti-
oferecidas, mas só 3.981 efetiva- ção racial que existe na Universi- bular de 2008, graças a resolução
mente preenchidas: 2.862 pelo sis- dade, consideramos fundamental do ano anterior, que contempla
tema universal, 818 por egressos a ampliação da política de assis- reserva de vagas nos cursos de
da escola pública e 301 por pretos tência estudantil, dos restauran- graduação por 10 anos. A UFSM

14
Revista Adusp Julho 2008
adota como critério de seleção alcançar os objetivos a que se ganharam visibilidade em 2008.
o Sistema Cidadão Presente, nas propõe. Além das cotas, a UFSM Isso porque o ingresso na UFPA
modalidades A, B, C e D. O sis- adota o Programa de Ingresso ao se dá somente por meio de avalia-
tema “A” destina 10% das vagas Ensino Superior (Peies). Criado ção seriada, com duração de três
em cada curso de graduação para em 1995, é uma modalidade anos, referentes ao período do
candidatos afro-brasileiros; o seriada de vestibular que busca ensino médio. Assim, a primeira
sistema “B”, 5% para candida- preencher 20% das vagas desti- turma a ingressar por intermédio
tos com necessidades especiais; o nadas aos cursos de graduação e das cotas foi a de 2008. Os resul-
sistema “C”, 20% das vagas para já beneficiou 5.523 candidatos. tados impressionam: nada menos
candidatos provenientes de esco- O Peies é realizado com alunos do que 2.784 (61,95%) dos 4.494
las públicas; e o sistema “D” des- de escolas cadastradas ou alunos ingressantes vieram da escola
tina até cinco vagas para alunos independentes que se cadastram pública, contra 1.848 (39,34%)
indígenas nos cursos de graduação na instituição. Neste sistema, são dos 4.697 ingressantes de 2007.
em que houver procura. realizadas provas com questões Mais: em 2008 ingressaram 3.382
“Na votação no Conselho Uni- de múltipla escola ao final de estudantes negros ou pardos, que
versitário a aprovação ocorreu por cada ano do ensino médio. representam 75,26% do total de
apenas um voto ingressantes,
de diferença”, enquanto no
comenta Marta Na UFPA, onde o ingresso se dá por intermédio de ano anterior
Íris Camargo foram 3.231 ou
Messias da Sil- avaliação seriada, as cotas fizeram saltar as matrículas 68,79% do total.
veira, vice-presi- de egressos da rede pública, de 39% dos ingressantes A profes-
dente da Asso- sora Bernadete
ciação dos Ami-
em 2007 para quase 62% em 2008. Os negros ou Souto, asses-
gos do Museu pardos passaram de 68,79% para 75,26% do total sora técnica da
Treze de Maio Pró-Reitoria de
e integrante da Ensino e Gra-
Comissão de duação, conta:
Implementação e Acompanha- A UFSM possui 66 cursos de “Não foi fácil, sofremos muita crí-
mento das Políticas de Ações Afir- graduação e 74 de pós-gradua- tica”. Segundo ela, a universidade
mativas da UFSM. “Esperávamos ção, os quais reúnem um total de não divulgou quais eram os alunos
mais representantes da intelectu- 15.834 estudantes e 1.471 profes- cotistas, “porque houve uma rea-
alidade da sociedade brasileira. sores. No vestibular de 2008 ins- ção muito expressiva e contun-
Muitos desafios nos aguardam para creveram-se no sistema universal dente contra as cotas”. Bernardete
a consolidação de ações efetivas 10.392 candidatos (a 1.284 vagas) ainda explica que está em estudo
de promoção da igualdade racial. e 6.510 no sistema de cotas (a 976 um programa de acompanha-
A política de cotas significa um vagas). Todas as vagas foram pre- mento e financiamento dos estu-
instrumento de inclusão da comu- enchidas em ambos. dantes cotistas e que a primeira
nidade negra em espaços historica- Na Universidade Federal do turma do programa será acompa-
mente a ela negados”, acrescenta. Pará (UFPA) as cotas foram nhada para adequação das pro-
A Pró-Reitoria de Graduação implantadas em 2005 — garan- postas. A UFPA tem 31 mil alunos
avalia de forma positiva a imple- tindo-se 50% das vagas para estu- de graduação (em 338 cursos) e
mentação do sistema. Admite, no dantes da rede pública, sendo 40% mais de 2.400 alunos de pós-gra-
entanto, a necessidade de ava- dessas reservadas para negros duação, distribuídos por 38 cursos
liação e aperfeiçoamento para ou afrodescendentes — mas só de mestrado e 17 de doutorado.

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Julho 2008 Revista Adusp

USP, Unicamp, UFPE e


UFRPE adotam ações
afirmativas com bônus
Amanda Rossi e Antonio Biondi

16
Revista Adusp Julho 2008

Na USP, maior das oito instituições de ensino superior que


adotam sistemas de bonificação no vestibular e contemplam assim
estudantes egressos do ensino público com pontuação extra, os
resultados obtidos com o programa Inclusp deixam a desejar. Na
Unicamp,o Paais foi instituído já em 2004 e, ao contrário da USP,
tem um recorte racial, beneficiando estudantes negros e indígenas
com pontuação adicional. Nas federais de Pernambuco, UFPE
e UFPR, o bônus leva em conta a localização geográfica dos
candidatos. Na UFU não há bônus, só avaliação seriada, que
agora contempla exclusivamente alunos da rede pública

N
a Universidade de ção inexpressiva — e às vezes para negro foi aprovado em primeira
São Paulo, a Rei- baixo: em 2005, ingressaram 2.559 chamada (0,2% dos 375 convoca-
toria deu início em estudantes provenientes do ensino dos); em Direito, quatro são ne-
2007 a seu programa médio público; em 2006, este nú- gros (0,86% dos 460 convocados);
de inclusão, deno- mero caiu para 2.448 (24,7%); em Jornalismo, com 60 convocados,
minado Inclusp, que 2007, subiu para 2.719 (26,7%), e Audiovisual, com 35, simples-
consiste na concessão de um bô- dos quais 333 com auxílio do bô- mente não contam com estudan-
nus de 3% nas notas do vestibular nus; em 2008, caiu para 2.713 tes negros em primeira chamada.
aos alunos oriundos da rede públi- (26,3%), dos quais 375 com auxí- Os índices de estudantes pardos
ca de ensino médio. Os resultados lio do bônus. aprovados também não indicam
obtidos têm sido medíocres, na Continuam decepcionantes os mudança substancial: 10,5% em
medida em que não ocorreu inclu- índices de aprovação de estudan- 2006, 10,7% em 2007 e 10,9% em
são de alunos pobres e negros na tes negros em primeira chama- 2008. Os de estudantes brancos
USP em quantidade significativa. da, que foram de 1,5% em 2006, apresentam variação semelhante:
Os percentuais de ingresso desses 1,9% em 2007, 1,8% em 2008. No 77,1%, 77,5% e 77,9% respecti-
segmentos têm apresentado varia- curso de Medicina, apenas um vamente.

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Julho 2008 Revista Adusp
Daniel Garcia
Os fracos resultados levaram ponder às fortes críticas ao In-
a Pró-Reitoria de Graduação a clusp (leia artigos sobre o Inclusp
anunciar mudanças no programa, no bloco seguinte).
a serem introduzidas já no vesti-
bular de 2009. Duas bonificações
extras serão concedidas: 1) bônus
Letícia Venâncio inscreveu-
de até 6% nas notas da primeira e
segunda fases do vestibular, a ser se no Inclusp, mas tirou
definido de acordo com a nota ob-
nota alta e não precisou
tida pelo estudante no Exame Na-
cional do Ensino Médio (Enem). dele para entrar no curso
Se o estudante obtiver pontuação de Artes Cênicas. Ela
de 100% no Enem, ele terá direito
a um bônus de 6%; se obtiver pon- critica o Inclusp por ser
tuação menor, obterá bonificação “muito superficial”, mas
menor; 2) bônus de até 3% nas
notas das duas fases do vestibu- aprova a bolsa vinculada
Camilla dos Reis
lar, a ser definido de acordo com ao programa: “Meu curso
a nota obtida pelo estudante na
prova de avaliação seriada a ser foi de 73,3% (ou 46,18 pontos de é integral, então não tenho
criada pela USP para estudantes um total de 63), e deles apenas como trabalhar”
da rede pública estadual (para o 143 (0,11%) conseguiram 100%
vestibular 2009, a USP somente de aproveitamento. Pode-se infe-
aplicará provas para estudantes do rir, portanto, que será reduzido o Que pensam sobre o Inclusp os
3º ano do ensino médio; para 2010 número de candidatos inscritos no jovens que são, ou deveriam ser, os
as provas também serão aplicadas Inclusp capazes de fazer jus a 6% potenciais beneficiários do progra-
para estudantes do 2º ano, e para de bônus no quesito “Enem”, e ma? Colhemos opiniões bastante
2011 serão aplicadas para todas as consequentemente alcançar o má- diversificadas, mas em todos os de-
séries do ensino médio.) ximo de 12% de bônus. poimentos é visível, e marcante, a
Assim, teoricamente a bonifica- “A bonificação não recupera o expectativa de acesso a um ensino
ção total concedida aos candidatos aluno que foi muito mal, não são superior de qualidade e a políticas
inscritos por intermédio do Inclusp pontos adicionais. É outra filoso- de permanência estudantil.
poderá chegar a 12%. O problema fia. A porcentagem age sobre o Após cursar toda a educação bá-
é que tal índice dificilmente se- montante, a realidade, como ele sica em escola pública e concluir o
rá alcançado, como demonstram realmente foi”, afirma o profes- ensino médio em 2004, Camilla dos
dados referentes ao Enem. Dos sor Maurício dos Santos Matos, Reis voltou a estudar: inscreveu-se
cerca de 141 mil candidatos ins- assessor da Pró-Reitoria de Gra- num cursinho popular, o Cursinho
critos no vestibular de 2008, 123 duação. “Se o bônus de 3% não do Crusp (conjunto residencial da
mil haviam se submetido ao Enem, tivesse sido praticado, o número USP), para tentar ingressar em Nu-
segundo a Fundação Universitá- de estudantes oriundos do ensi- trição. “A avaliação seriada do In-
ria para o Vestibular (Fuvest), a no público estaria decrescendo. clusp fala muito dos alunos que ain-
entidade privada que organiza e O bônus foi determinante para da estão na escola pública. Mas não
aplica os vestibulares da USP. No reverter essa tendência de que- há programa para quem já acabou
Enem, a média de acertos desse da”, sustenta a pró-reitora Selma a escola pública há algum tempo e
contingente de 123 mil estudantes Pimenta Garrido, procurando res- não pode prestar vestibular porque

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Revista Adusp Julho 2008
Daniel Garcia
teve que trabalhar, porque não ti- aluno de escola pública não é efeti-
nha como se manter, o que é o meu va, mas é sim medida de inclusão”.
caso”, protesta. “Realmente a gente percebe
Letícia Venâncio, aluna do pri- que existe mesmo essa história de
meiro ano de Artes Cênicas na passarem os mais brancos no cur-
USP, inscreveu-se para receber o so de Medicina da USP”, lamenta
bônus do Inclusp, mas seria aprova- Ewelyn Regina de Souza, calou-
da mesmo sem ele. “O Inclusp, pelo ra de Enfermagem. A estudante
que vejo, dá um estímulo. Quando é negra e prestou vestibular para
ele surgiu muita gente se animou Medicina por mais de dois anos, em
a prestar a USP. Mas acho muito diferentes universidades, mas não
superficial. Se você fez escola pú- conseguiu vaga no curso. Em 2008
blica e não fez cursinho, não vai ela resolveu prestar Enfermagem,
ajudar”, opina. Neste primeiro ano mas continuará tentando Medicina:
de faculdade, Letícia recebe uma “Não vou desistir do meu sonho”.
bolsa de R$ 250, vinculada ao In-
clusp. “Essa bolsa me ajudou. Meu
curso é integral, então não tenho O Paais da Unicamp,
como trabalhar”. Ela é contra cotas
“primeiro programa de
raciais: “Sou negra e acho que essas Letícia Venâncio
medidas específicas para negro são ação afirmativa sem cotas
mais racistas do que ajudam. Eu so de estudantes da rede pública,
implantado em universidade
não preciso de uma ajuda a mais do assim como a diversidade étnica e
que uma pessoa que é branca. Eu, brasileira”, concede 30 cultural. Os estudantes que optam
que tive educação ruim, preciso de pontos de bônus a quem pelo Paais na inscrição para o ves-
bonificação a mais por isso”. tibular recebem 30 pontos de bônus
Bruno Maciel Athanasio sempre cursou todo o ensino médio na nota final. Candidatos auto-de-
estudou em escola pública. Depois na rede pública. Pretos, clarados pretos, pardos e indígenas
de disputar sem sucesso em 2005 que tenham cursado o ensino mé-
uma vaga no curso de Gestão de pardos e indígenas podem dio em escolas públicas podem ter
Políticas Públicas, desistiu da USP. ganhar mais 10 pontos mais 10 pontos acrescidos à nota fi-
Em 2008, concorreu a uma vaga na nal — a 1ª fase vale 96 pontos, a 2ª
Universidade Federal do ABC e foi vale 384 pontos e as provas especí-
aprovado. “3% não são suficientes”, Na Universidade Estadual de ficas de aptidão 48 pontos (confira
diz sobre o Inclusp. “Se o bônus fos- Campinas (Unicamp), existe o Pro- números do Paais no Quadro 6).
se maior”, ele teria se motivado para grama de Ação Afirmativa e In- Por que a Unicamp optou por es-
prestar vestibular na USP novamen- clusão Social (Paais), instituído em ses mecanismos? Tessler afirma que
te. Crítico do programa, acredita 2004, e que, segundo o professor “desde o início a idéia de cotas, ou
que ele “pode ser melhorado com Leandro Tessler, coordenador exe- seja, reserva de vagas para qualquer
acréscimo de pontos não só para cutivo da Comissão Permanente grupo social ou étnico, não contou
quem é oriundo de escola pública, para os Vestibulares (Comvest), com muita simpatia na Unicamp.”
mas para quem é de baixa renda, se- foi o “primeiro programa de ação Sérgio Henrique de Teixeira, do
guindo uma análise sócio-econômica afirmativa sem cotas implantado Diretório Central dos Estudantes
feita de forma séria pela universida- em uma universidade brasileira”. O (DCE-Unicamp), considera o pro-
de”. Pondera: “Bonificação só para programa visa estimular o ingres- grama muito limitado: “dez pontos

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Julho 2008 Revista Adusp
Daniel Garcia

Quadro 6- Os números do vestibular 2008 da Unicamp


Não optantes pelo Paais 35.559 72%
Inscritos
Paais 13.918 28%
Total 49.477 100%
Vagas Sistema universal 2.954* 100%
Não optantes pelo Paais 2.057 68%
Aprovados (vagas
Paais 975 32%
preenchidas)
Total 3.032 100%
Fonte: Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest)
*Em 60 cursos

recebe o bônus o candidato que cur- Diferenciando-se do grupo de


sou todo o ensino médio em esco- universidades estaduais e fede-
las públicas ou privadas do interior rais integrado por USP, Unicamp,
pernambucano, ou seja, de qualquer Universidade Federal Fluminense
Bruno Athanasio localidade que não pertença à região (UFF), Universidade Federal do
metropolitana do Recife. Rio Grande do Norte (UFRN),
na segunda fase apenas, além de ser Em um primeiro momento, a UFPE e UFRPE, que recusam as
quase inexpressivo, atinge, em certa UFPE também concedeu bônus cotas mas adotam, como ação afir-
medida, somente aqueles negros que para estudantes de escolas federais mativa, sistemas de pontuação di-
já teriam chances reais de entrar”. e supletivos, mas deixou de fazê-lo ferenciada, a Universidade Federal
Para ele, a universidade não discute porque houve denúncias de que de Uberlândia (UFU) optou por
os problemas reais: “a estrutura eli- estudantes de escolas particulares uma medida mais discreta e con-
tista da universidade” e a “opressão estavam se matriculando nos su- servadora.
do negro”. Teixeira defende que a pletivos apenas para receber o bô- Em 30/11/2007 o Conselho Uni-
Unicamp adote a reserva de vagas nus e, no caso das escolas federais, versitário da UFU resolveu desti-
nas universidades em proporção ao por recomendação do Ministério nar as vagas do Programa Alterna-
número de negros no Estado de São Público Federal, que argumentou tivo de Ingresso ao Ensino Superior
Paulo — cerca de 31%, segundo o que a qualidade do ensino dessas (Paies), de avaliação seriada, exclu-
Instituto Brasileiro de Geografia e instituições tendia a ser superior à sivamente aos alunos da rede públi-
Estatística (IBGE). do restante da rede pública. ca de ensino. Até então as vagas do
A Universidade Federal de Per- Na Universidade Federal Rural Paies, que somam 25% do total de
nambuco (UFPE) concede um bônus de Pernambuco (UFRPE) adotam- vagas oferecidas pela UFU, eram
de 10%, por meio de um sistema que se critérios semelhantes. No cam- indistintamente destinadas a estu-
combina critério sócio-econômico in- pus de Garanhuns recebe o bônus dantes de escolas públicas e parti-
direto (ter estudado na rede pública o candidato que cursou todo o en- culares. Ao votar pela reserva de
de ensino) com critérios geográficos. sino médio em escolas privadas ou vagas do Paies para estudantes da
Desse modo, no campus do Recife públicas localizadas no agreste per- rede pública, o Conselho Universi-
recebe o bônus o candidato que cur- nambucano, e no campus de Serra tário recusou o sistema de bonifica-
sou todo o ensino médio em escolas Talhada recebe o bônus o candida- ção, bem como as cotas com recor-
públicas estaduais ou municipais em to que cursou todo o ensino médio tes para grupos a serem definidos.
Pernambuco. Mas nos campi de Vi- em escolas privadas ou públicas do Não haverá, por exemplo, política
tória de Santo Antão e de Caruaru sertão pernambucano. afirmativa específica para negros.

20
Revista Adusp Julho 2008

Ações
recentes
movimentam
STF e Congresso
Nacional
Antonio Biondi
Jornalista

O
s meses de abril e de da adoção de cotas por univer- universidades, bem como a suspen-
maio de 2008 foram sidades públicas, dois manifestos, são do Programa Universidade para
marcados por impor- que reafirmam justamente as duas Todos (Prouni).
tantes mobilizações posições antagônicas quanto ao as- Entre os 113 signatários figuram
e debates a respeito sunto. Eunice Durham, Ferreira Gullar,
de cotas e políticas No dia 30 de abril, um grupo Gerald Thomas, João Ubaldo Ri-
afirmativas no Brasil. A movimen- de intelectuais, sindicalistas, em- beiro, José Arbex Jr., José Goldem-
tação foi ampliada pela comemo- presários e ativistas de movimentos berg, José de Souza Martins, Maria
ração dos centésimo-vigésimo ani- negros entregou ao presidente do Herminia Tavares de Almeida, Rei-
versário da Abolição. Chegaram ao STF, Gilmar Mendes, o manifesto naldo Azevedo, Roberto Romano
Supremo Tribunal Federal (STF), “113 Cidadãos Anti-Racistas Con- da Silva, Ruth Cardoso e Wander-
a quem cabe julgar ações judiciais tra as Leis Raciais”, que pede a sus- ley Guilherme dos Santos.
que contestam a constitucionalida- pensão das cotas para negros nas No dia 13 de maio, foi entregue

21
Julho 2008 Revista Adusp
Arquivo pessoal
ao presidente do STF o manifesto
“120 Anos da Luta pela Igualda-
de Racial no Brasil”, que se colo- “O silêncio diante das
ca como “em defesa da justiça e
da constitucionalidade das cotas”. desigualdades é um
Traz mais de 700 assinaturas, entre absurdo”, diz Renato
as quais as de Augusto Boal, Emir
Sader, Fabio Konder Comparato, Ferreira, pesquisador do
Frei David, Heloisa Fernandes, Laboratório de Políticas
João Pedro Stédile, Jorge Furta-
do, Margareth Menezes, Miguel
Públicas da Uerj
Arroyo, MV Bill, Nelson Pereira
dos Santos, Oscar Niemeyer, Paulo
Betti, Sérgio Haddad, Taís Araújo Renato Ferreira é pesquisador
e Zezé Motta, e o apoio de entida- do Laboratório de Políticas Públi-
des como Educafro e Movimento cas da Universidade do Estado do
dos Sem Universidade. Rio de Janeiro (LPP-UERJ), onde
A pressão sobre o Judiciário ge- coordena o Programa Políticas da
Renato Ferreira, do LPP-Uerj
rou efeitos na Câmara dos Deputa- Cor, dedicado a estudar a adoção
dos, onde a Comissão de Direitos de políticas afirmativas nas univer-
Humanos e Minorias elaborou no- sidades brasileiras. Ele considera raciais”. Ferreira destaca como
ta oficial de apoio às cotas. Além absurdo que muitas universidades ponto negativo o debate ainda não
disso, os deputados colocaram na não estejam debatendo a questão. ter chegado à pós-graduação, as-
pauta de votação o projeto de lei “Contra ou a favor, pouco importa sim como sua preocupação com o
que prevê a criação de cotas para num primeiro momento, o que é sucateamento de políticas de assis-
negros, índios e alunos de escolas inadmissível é o silêncio diante de tência estudantil.
públicas em todas as universidades tanta desigualdade”. Uma das referências na área, e
federais (PL 73/99), cuja tramita- Para ele, “o Brasil vive um sig- signatário do manifesto pró-cotas,
ção se encontrava paralisada há nificativo processo de inclusão dos ele entende que o MEC deveria
quatro anos. grupos historicamente excluídos no se posicionar de modo mais ativo
Procurado pela reportagem, o ensino superior”. Ferreira explica diante das políticas de inclusão, de
Ministério da Educação (MEC) que “as cotas são uma das formas forma coerente com a posição do
optou por não indicar represen- de políticas afirmativas ou de in- governo Lula e sem ferir a auto-
tantes para conceder uma entre- clusão” e que as universidades es- nomia das instituições. O governo
vista sobre o tema. Ao ser inda- taduais do Rio foram pioneiras na poderia “divulgar mais dados so-
gada por e-mail sobre se “o MEC adoção de tais políticas, em 2003. bre as desigualdades no Ensino su-
possui algum programa ou política Hoje, segundo o pesquisador, 79 perior”, ou buscar o diálogo “para
de incentivo” à adoção das cotas universidades públicas adotam al- fomentar que mais universidades
nas universidades, sua assessoria gum tipo de política de inclusão adiram às políticas de inclusão”.
de imprensa limitou-se a sugerir (vide Quadro 7). Quanto ao Programa Universida-
a leitura do sítio do ministério na Trata-se de “um processo len- de para Todos (Prouni), que possui
Internet, indicando o link onde po- to e gradual, mas profundamen- medidas afirmativas para negros e
deriam ser encontradas “as demais te transformador”, que “promove indígenas, e que deve oferecer cerca
políticas da Secretaria de Educa- a diversidade” e coloca “um fim de 400 mil bolsas nos próximos anos,
ção Superior”. à invisibilidade das desigualdades ele avalia como uma “grande políti-

22
Revista Adusp Julho 2008
Daniel Garcia

QUADRO 7-
Os números da inclusão nas universidades segundo o LPP/UERJ

79 universidades públicas adotam algum tipo de política de


inclusão em seu vestibular

39% das instituições federais adotam algum tipo de política


de inclusão

36% das instituições de ensino superior públicas adotam


algum tipo de política de inclusão

54 universidades implementaram cotas étnico-raciais em seu


vestibular

35 instituições possuem medidas afirmativas para negros

32 instituições, das 35 citadas, adotam as cotas e 3 o sistema de


bonificação por pontos

7 instituições em São Paulo adotam medidas afirmativas para


negros – é o Estado que possui mais universidades adotando esse
tipo de mecanismo
Douglas Belchior

ca de inclusão, uma vez que a maio-


37 instituições adotam ações afirmativas para indígenas

ria das vagas do ensino superior está


nas instituições privadas”.
18 instituições paranaenses adotam políticas específicas para os
indígenas

17 universidades, sobretudo no Nordeste, estabelecem medidas


somente para estudantes de escola pública

“São Paulo é a ilha do 1 instituição adota o sistema de cotas somente para alunos pobres,
independentemente de serem oriundos da rede pública ou privada
de ensino
elitismo no ensino superior,
Fonte: Laboratório de Políticas Públicas da UERJ – “O mapa das ações afirmativas no
a grande ilha da exclusão”, Ensino Superior” (2007)

protesta Douglas Belchior,


da Educafro com novos campi e instituições cria- negros nas universidades têm que
dos já com políticas afirmativas. ser proporcionais à população do
O coordenador da Educafro des- Estado e do país”. Assim, “se em
Douglas Belchior, professor de taca, contudo, que as universidades São Paulo há 31% de negros, tem
história, integrante da coordenação estaduais não acompanham o proces- que ser 31% de vagas”. Paralela-
nacional da entidade Educafro, en- so. “Em São Paulo, especialmente. É mente às cotas para negros, a enti-
tende que houve “avanços enormes” a ilha do elitismo no ensino superior, dade defende cotas sócio-econômi-
nas políticas afirmativas no Brasil a grande ilha da exclusão, do precon- cas e para as escolas públicas. Ele
nos últimos anos, lembrando que há ceito, do racismo”, e onde se eviden- diz que a Educafro quer um mode-
alguns anos começaram as vitórias cia a “briga com a nata da burguesia lo em que as cotas não sejam neces-
na Justiça garantindo isenção de ta- nacional, apoiada pela imprensa con- sárias, com universidades públicas
xas nos vestibulares para estudantes servadora e contrária às cotas”. para todos no país. “Sabemos que
carentes. Os avanços se percebem, De acordo com Belchior, a Edu- as cotas são compensatórias, mas
diz ele, nas universidades federais, cafro defende que as “cotas para hoje elas são fundamentais”.

23
Julho 2008 Revista Adusp

Por enquanto, “antes


de mais nada”, nada!
Ana Cláudia Mielki, Antonio Biondi e Daniel Hammes
Jornalistas

Entre as 29 universidades
federais que não adotam
qualquer tipo de política
de inclusão encontram-
se a UFRJ e a UFMG.
Nesta última estuda-se a
possibilidade de adotar
um bônus de 10% para os
egressos da rede pública
de ensino, como já fazem
algumas instituições. Em
São Paulo, outra grande
universidade pública,
a estadual Unesp, faz
questão de avisar que
“antes de mais nada,
o termo ‘cotas’ não é
utilizado” por ela, que se
limita a conceder isenções
na taxa cobrada dos
vestibulandos

24
A
Revista Adusp Julho 2008
maioria das universi- o professor Fernando Prado, dire- Unesp, enquanto que dos 28.556
dades públicas do país tor acadêmico da Fundação para candidatos inscritos com isenção só
— entre elas, algumas o Vestibular da Universidade Es- 627 foram matriculados (2,2%).
das maiores— conti- tadual Paulista (Vunesp), a Unesp A Unesp enviou à Revista Adusp
nua ignorando a temá- não adota cotas em seu vestibular tabela com dados dos estudantes
tica da inclusão. Não “por entender que a elevação des- matriculados na instituição nos últi-
é que, por desgostarem das cotas, ses percentuais não deve ser obtida mos anos. Os dados, alusivos à cor
tenham preferido adotar alguma artificialmente”. da pele e renda familiar, entre outras
outra política afirmativa. Simples- Como uma de suas “políticas variáveis, não vieram acompanhados
mente não tinham, até o momen- afirmativas” centrais, a Unesp ofe- de qualquer avaliação da Vunesp a
to em que fechamos esta edição, receu, no vestibular de 2007, isen- seu respeito (vide Quadro 8).
qualquer política de inclusão digna ção de taxa de inscrição para 32.611 Uma das mais tradicionais e im-
do nome. candidatos. Deste total, que inclui portantes instituições universitá-
É o caso da Universidade Esta- candidatos “socioeconomicamen- rias brasileiras, a UFRJ não adota
d u a l Pa u l i s t a qualquer tipo de
(Unesp), a mais cota, segundo
enraizada no sua assessoria de
A professora Nilma Gomes acredita que o sistema de
interior de São imprensa. O peso
Paulo, com 23 bônus que a UFMG quer implantar é “uma resposta de determinados
campi, 3.500 do- fraca diante do potencial político e pedagógico da setores da insti-
centes, 33 mil tuição impede
alunos de gradu- universidade” e das demandas em curso: “a UFMG que o debate se-
ação (5 mil pro- precisa de uma proposta mais arrojada” quer avance para
fissionais forma- uma definição.
dos a cada ano) Roberto Leher,
e 10 mil alunos docente da Fa-
de pós-graduação. Também enqua- te carentes” e alunos de cursinhos culdade de Educação e diretor da
dram-se nesta categoria a Univer- comunitários da Unesp, foram efe- Associação dos Docentes (Adufrj),
sidade Federal do Rio de Janeiro tivamente realizadas 28.556 inscri- critica a falta de debate sobre a
(UFRJ), com seus 3 mil docentes, ções com isenção. Ou seja, 87,6% questão na UFRJ.
33 mil alunos de graduação (4 mil do total. Para a Vunesp, “o baixo Segundo Leher, os conselhos da
profissionais por ano), 9.600 de pós- aproveitamento das isenções de ta- instituição chegaram a acenar que
graduação; a Universidade Fede- xa de inscrição indica a complexida- “iriam incorporar uma agenda inte-
ral de Minas Gerais (UFMG), com de do problema”. ressante, passando pela relação da
2.446 docentes, 24 mil alunos de gra- Dados apresentados pela Unesp universidade com a educação básica
duação (4 mil profissionais por ano) indicam que os candidatos benefi- pública e incorporando a variável
e 10.500 de pós-graduação; e outras ciados pelas isenções possuem apro- estrutural da classe social. Mas isso
27 universidades federais. veitamento no vestibular muito infe- não prosperou”. Existem dificulda-
Na Unesp, a assessoria de im- rior ao dos candidatos que pagaram des na relação entre a UFRJ e as
prensa tratou de esclarecer, logo a inscrição, o que atesta a insufici- escolas estaduais, situação agravada
na primeira mensagem em respos- ência dessa política em termos de pelo fato de que “as questões fun-
ta ao pedido de informações da inclusão. Dos 64.284 candidatos que damentais passaram a ocupar um
reportagem, que “antes de mais pagaram a inscrição, 5.554 (8,6%) não-lugar nos debates universitários
nada, o termo ‘cotas’ não é utili- foram aprovados no vestibular e se hegemonizados pela pauta imposta
zado pela Unesp”. De acordo com matricularam em um dos cursos da pelo governo federal”.

25
Julho 2008 Revista Adusp
Adufrj

Quadro 8 – Potenciais cotistas aprovados no vestibular (sem cotas)


da Unesp
  Ano de Ingresso
Indicadores 2005 2006 2007
(matriculados) (%) (%) (%)
Ensino médio em escola pública 38,8 36,0 35,4
Cor de pele declarada (parda, preta,
17,1 17,1 15,6
indígena)
Renda familiar mensal menor que cinco
34,2 36,5 38,7
salários mínimos
Sem cursinho 28,1 30,4 31,5
Fonte: Fundação para o Vestibular da Universidade Estadual Paulista (Vunesp)

Roberto Leher
A Adufrj, diz o professor, pos-
sui grande afinidade com a propos-
ta construída pelo Sindicato Nacio- Ledeci Coutinho, do Coletivo de Educadores Negros
nal dos Docentes das Instituições
de Ensino Superior (Andes-SN) de Pelotas, considera tímidas as ações de inclusão na
de que se deve “estabelecer arti- UFPel: “Estamos em um município em que 46% da
culações com escolas públicas lo-
calizadas em territórios de pobre-
população é afro-descendente, no entanto não vemos
za, promovendo apoio pedagógico políticas concretas para essa parcela da população”
a essas escolas e assegurando às
mesmas acesso diferenciado aos
cursos da UFRJ”. Ele sustenta que De acordo com a professora Nil- a realidade sócio-econômica e racial
“não adianta pensar em cotas ét- ma Lino Gomes, do Departamen- de alunos, funcionários e docentes
nicas sem consideração à classe” to de Administração Escolar da Fa- da universidade, e que possibilite, a
e que “é preciso articular a ação culdade de Educação da UFMG, o partir disso, construir “uma propos-
afirmativa a uma política consis- sistema de bônus não deve ter um ta com a cara da UFMG”. Por ou-
tente de ampliação das vagas nas efeito significativo: “Trata-se de uma tro lado, o pró-reitor de Graduação,
universidades públicas”. resposta fraca diante do potencial professor Mauro Braga, acredita que
Na UFMG, nem mesmo a re- político e pedagógico da nossa uni- a proposta de bônus para 2009 será
serva com base em critérios socio- versidade e das demandas de demo- mais fácil de ser aprovada no Con-
econômicos foi implantada. Atual- cratização do acesso em curso, que selho, já que a temática das cotas é
mente está em discussão no Con- articulam a questão socioeconômica ainda encontra bastante resistência,
selho Universitário a proposta de com a étnico-racial. A UFMG pre- em especial a das cotas raciais.
atribuição de um adicional de 10% cisa de uma proposta mais arrojada, A Universidade Federal de Pelo-
da pontuação obtida no vestibular mais radicalizada de democratiza- tas (UFPel) é outra que não adota
por candidatos que estudaram em ção”, afirma. política de cotas. Segundo a Pró-Rei-
escola pública. A proposta já foi Para ela, antes de aprovar qual- toria de Graduação, existe a intenção,
aprovada pelo Conselho de Ensino, quer proposta é preciso realizar um com a adesão ao Programa Reuni,
Pesquisa e Extensão (Cepe). censo étnico-racial que possa revelar em 2008, de propor espaços de dis-

26
Revista Adusp Julho 2008

PUCvê “ambigüidades”
nas cotas, enquanto FGV
e FEI preferem calar
A Pontifícia Universidade Ca- com 1.034 alunos bolsistas ligados
tólica de São Paulo (PUC-SP) é a ele. Para Marta, os critérios do
uma instituição de renome que Prouni garantem uma boa sele-
opta por não adotar política de ção segundo aspectos sócio-eco-
cotas em seu vestibular. Marta nômicos, diferentemente do que
Silva Campos, assessora da Vice- se verifica com as cotas, que, no
Reitoria Comunitária, explica que entender dela, possuem “fragilida-
tal procedimento “nunca foi co- des técnicas e conceituais”, assim
gitado pela PUC-SP” e “não há como “ambigüidades”.
no momento nenhuma intenção” Duas outras instituições par-
de adotá-lo. Marta explica que a ticulares procuradas pela repor-
instituição estabeleceu, em 2001, tagem, Fundação Getúlio Vargas
uma cota fixa de 12 bolsas anuais Marta Campos (FGV) e Centro Universitário da
para alunos indígenas aprovados Faculdade de Engenharia Indus-
no vestibular — atualmente há 56 de pagar”, assim como um pro- trial (FEI), chegaram a sinalizar
na PUC-SP. grama para a permanência desses que dirigentes poderiam conceder
Professora de Política Social, alunos na universidade. Além de entrevistas à Revista Adusp. Am-
ela acrescenta que, “como univer- contar com recursos da instituição bas, contudo, deixaram de cum-
sidade filantrópica e comunitária”, para as bolsas, desde 2005 a PUC- prir a promessa — pior, sequer
a PUC-SP possui uma “política SP passou a integrar o Programa forneceram os dados sobre o nú-
de concessão de bolsas de estudo Universidade para Todos (Prou- mero de candidatos e ingressan-
para estudantes impossibilitados ni), do governo federal, contando tes nos respectivos vestibulares.

cussão para estabelecer uma política Ledeci Lessa Coutinho, do Cole- Uma iniciativa inédita no Rio
de cotas que não se limite a questões tivo de Educadores Negros de Pelo- Grande do Sul ocorreu em 2007,
étnicas. A curto prazo, a novidade na tas, considera tímidas as ações de in- quando estudantes do curso de Fi-
UFPel será a implantação de 12 no- clusão na UFPel. “Existe o Leparq, losofia, integrantes do Grupo San-
vos cursos (700 novas vagas), e a con- grupo de estudos sobre história e goma de Estudos da Cultura Negra,
tratação, através de concurso público, antropologia que discute o assunto fundaram a Biblioteca Negra de
de 23 professores e 12 funcionários e irá elaborar uma proposta de po- Pelotas, espaço dedicado à valori-
até o final de 2008. Atualmente a lítica de cotas na UFPel. Estamos zação da história e da cultura afro.
UFPel tem 9.679 alunos, dos quais em um município em que, conforme Lisandro Dias, do grupo Sangoma,
7.652 em cursos de graduação, 1.266 dados do movimento negro, 46% da ressalta o papel do espaço: “Dançar
em pós-graduação e 761 em cursos população é afro-descendente, no é importante. Cantar é importan-
de nível médio. Dispõe de 948 docen- entanto não vemos políticas concre- te. Estimular o pensamento crítico
tes e 1.167 funcionários. tas para essa parcela da população”. também”.

27
Julho 2008 Revista Adusp

imPacto
do inclusP
no ingresso de alunos
da escola Pública
(análises iniciais)
Selma Garrido Pimenta
Pró-Reitora de Graduação da USP

Maria Amélia Campos Oliveira, Maria Isabel de Almeida


e Maurício dos Santos Matos
Assessores da Pró-Reitoria de Graduação da USP

28
Revista Adusp Julho 2008

O egresso da escola pública tende a se sentir desestimulado a


prestar o vestibular em razão de suas poucas chances de aprovação.
Denota-se que as condições socioeconômicas têm influência
preponderante nas possibilidades de acesso à universidade. Por essas
razões, o Programa de Inclusão Social da USP-Inclusp tem por
foco o estudante do Ensino Médio público. Seu objetivo é ampliar
progressivamente o percentual de ingressantes que cursaram o Ensino
Médio na rede pública de ensino, sem comprometer o critério de
mérito acadêmico como legitimador do processo

O
Programa de Inclu- 85%) cursa escolas públicas mas, tem por foco o estudante do Ensino
são Social da USP no momento do ingresso nas uni- Médio público. Seu objetivo prin-
(Inclusp)1 foi conce- versidades públicas, essa proporção cipal é ampliar progressivamente
bido a partir da pre- inverte-se. Em 2006, por exemplo, o percentual de ingressantes que
ocupação da Univer- estudantes oriundos do Ensino Mé- cursaram o Ensino Médio na rede
sidade com as bar- dio público representavam 24,7% pública de ensino, sem comprome-
reiras socioculturais que dificultam dos ingressantes na USP. ter o critério de mérito acadêmico
o acesso e a permanência de jovens O egresso da escola pública tende como legitimador desse processo.
de segmentos menos favorecidos da a se sentir desestimulado a prestar o Com o Inclusp, a Universidade
sociedade aos cursos de graduação. vestibular em razão de suas poucas de São Paulo busca contribuir pa-
O jovem que tem acesso a uma chances de aprovação. Denota-se, ra alterar esse quadro de exclusão
educação de melhor qualidade tende portanto, que as condições socioeco- social, atuando positivamente na
a chegar ao vestibular melhor pre- nômicas dos candidatos têm influên- superação das barreiras que difi-
parado do que aquele que não teve cia preponderante nas possibilidades cultam o ingresso na Universida-
a mesma oportunidade, vencendo de acesso à universidade. de, ampliando as possibilidades de
assim a disputa por uma vaga na uni- Por essas razões, o Programa acesso ao ensino superior e incen-
versidade. Já as famílias de menores de Inclusão Social da USP-Inclusp tivando a continuidade dos estudos
faixas de renda têm na escola pública dos egressos da escola pública.
uma das poucas alternativas O Inclusp é um projeto de lon-
para a escolarização de go prazo e abrange o plane-
seus filhos e é notória “Em 2008, o impacto jamento e a implemen-
a deterioração da do bônus foi maior do que no ano anterior tação de medidas que
qualidade da edu- alcancem o candidato
cação pública no
e conteve uma significativa tendência de queda ainda antes do vestibu-
Brasil. no número de ingressantes oriundos da escola lar, durante o Ensino
A grande maio- Médio, além de altera-
pública, mantendo o patamar de 2007”
ria de estudantes do ções no processo seletivo
Ensino Médio (cerca de e de medidas de incentivo aos

29
Julho 2008 Revista Adusp
ingressantes para que permaneçam
e concluam o curso. Figura 1. Número de alunos ingressantes na USP que cursaram integralmente
o Ensino Médio público e o percentual (em parênteses) relativo ao total de
Dentre as principais ações im- ingressantes no ano. Dados relativos ao período de 2005 a 2008.
plementadas em 2007, foi praticado
o bônus de 3% em ambas as fases
do vestibular para candidatos que
cursaram integralmente o Ensino
Médio público. A aplicação do bô-
nus já na primeira fase2 mostra o
esforço da USP em ampliar o con-
tingente de estudantes do Ensino
Médio público que irão concorrer
à segunda fase, quando novamen-
te receberão o bônus. Esse siste- Fonte: Fuvest/Pró-Reitoria de Graduação (questionário socioeconômico/ficha de inscrição).
ma, além de ampliar a possibilidade
efetiva de ingresso, ainda motiva Figura 2. Número de inscritos no vestibular da Fuvest no período de 2006 a 2008.
aqueles que não o conseguiram a
se preparar para o próximo vestibu-
lar. O bônus de 3% foi mantido em
2008 de forma a possibilitar análises
comparativas que possam ensejar
modificações ou novas ações.
Em ambos os anos, o bônus teve
papel determinante para a apro-
vação de 333 candidatos em 2007
e 375 em 2008 (Figura 1). Esses
números mostram que, em 2008,
o impacto do bônus foi maior do
que no ano anterior. Devido à con-
firmação da tendência de queda
iniciada em 2006 e o seu efeito em Fonte: Fuvest/Pró-reitoria de Graduação (questionário socioeconômico/ficha de inscrição)
Obs.: Os dados de inscritos oriundos da escola pública foram obtidos a partir das informa-
2008, o maior impacto do bônus ções fornecidas na ficha de inscrição.
conteve uma significativa tendên-
cia de queda no número de ingres-
santes oriundos da escola pública, “Dentre
mantendo o patamar de 2007.
Os valores apresentados na Fi-
as possíveis hipóteses para
gura 1 foram obtidos da compara- explicar a diminuição do número de candidatos
ção entre a situação real, com o bô-
no vestibular das universidades públicas paulistas estão
nus de 3%, e a situação simulada,
sem a aplicação do bônus. Calcu- a criação da UFABC, os novos campi da Unifesp e a
lou-se a diferença entre essas duas
corrida dos alunos de Ensino Médio público
situações em relação ao conjunto
de candidatos que responderam po- para o Prouni”
sitivamente à questão da ficha de

30
Revista Adusp Julho 2008
inscrição sobre a integralidade dos consolidação. A fonte dos dados foi Dentre as possíveis hipóteses pa-
estudos no Ensino Médio público. o Sistema Júpiter, destinado exclu- ra explicar a diminuição do número
Com efeito, os dados de 2007 (Fi- sivamente à organização das infor- de candidatos no vestibular das uni-
gura 1) revelam que o bônus elevou mações sobre a graduação da USP, versidades públicas paulistas, em es-
em números absolutos e percentuais sendo, portanto, da responsabilida- pecial os oriundos do ensino público,
o total de alunos ingressantes na USP de da Pró-Reitoria de Graduação. estão a criação de campi da Univer-
provenientes do Ensino Médio públi- As informações veiculadas pela sidade Federal de São Paulo (Uni-
co de 2.448 (24,7%) em 2006, para imprensa no início de 2008 refe- fesp) em Guarulhos e Diadema, a
2.719 (26,7%) em 2007. Em 2008, riam-se somente aos convocados criação da Universidade Federal do
os dados referentes aos ingressan- para a 1a matrícula, apoiadas em ABC (UFABC) e, principalmente, a
tes, consolidados até o início do mês dados sobre o vestibular de respon- corrida dos alunos de Ensino Médio
de abril de 2008, após as matrículas, sabilidade da Fuvest, que os divulga público ao programa de bolsas para
revelam em números absolutos um em seu site após o término do pro- o ensino superior privado concedi-
total de 2.709 (26,3%) ingressantes cesso de correção das provas, que das pelo governo federal (Prouni). A
de escola pública. Ou seja, números ocorre, normalmente, no início de essas explicações soma-se a cultura
muito próximos aos do ano anterior, fevereiro. Análises sobre o impacto de auto-exclusão dos estudantes do
o que estava dentro das expectati- do Inclusp no perfil dos ingressan- Ensino Médio público em relação
vas, já que o bônus foi mantido em tes USP só podem ser realizadas a aos vestibulares das mais concorri-
3%. Assim, tanto em 2007 como em partir dos dados dos estudantes efe- das universidades públicas.
2008, o bônus conteve a tendência tivamente matriculados, enquanto
de queda que vinha sendo observada que o impacto no sistema do ves-
no número de ingressantes do ensino tibular deve ser analisado a partir
público na USP, que havia baixado de dos dados fornecidos pela Fuvest. “Graças à contribuição do
2.559 em 2005 para 2.448 em 2006. Os dados do vestibular Fuvest
Inclusp, houve aumento
Caso o bônus não tivesse sido aplica- permitem compreender os condi-
do, esses números seriam ainda me- cionantes mais amplos e do contex- de 13,9% no número de
nores nos anos seguintes, chegando a to social que interferem na dimi-
negros que ingressaram na
2.386 em 2007 e 2.334 em 2008. nuição geral dos inscritos nos vesti-
Considerando ainda o decrésci- bulares e, dentre eles, dos inscritos USP. Assim, ao centrar o
mo acentuado de inscritos em geral oriundos do ensino público. Como foco das ações em alunos
e de oriundos do ensino público (Fi- se percebe, com base nos dados
gura 2), sem o Inclusp a tendência da Fuvest mostrados na Figura 2, provenientes da rede
de queda observada nas inscrições o número de inscritos no vestibu- pública, o Inclusp também
em 2007 e 2008 teria se refletido em lar para os cursos da USP caiu de
decréscimo ainda mais acentuado 152.927 em 2006, para 125.998 em contribuiu para a inclusão
no número de ingressantes da escola 2007 e 123.476 em 2008. O núme- de alunos negros na USP”
pública, o que, de fato, não ocorreu. ro de inscritos oriundos do ensino
É importante destacar que os público caiu de 68.998 em 2006,
dados ora apresentados referem-se para 49.170 em 2007 e 43.249 em
aos ingressantes, ou seja, ao con- 2008. A diferença mais acentuada Evidentemente, o aumento de
junto de alunos que tiveram suas ocorreu de 2006 para 2007, quando ingressantes provenientes do ensino
matrículas efetuadas após a fi- houve uma queda de 28,74% nos público, negros ou não, depende
nalização de todo o processo de inscritos oriundos do ensino públi- diretamente do número destes que
matrícula, que conta com quatro co, enquanto que de 2007 a 2008 a se inscrevem no vestibular. Ainda
chamadas até a sua efetivação e queda foi de 12,04%. assim, no contexto de queda no to-

31
Julho 2008 Revista Adusp
tal de inscrições, houve na USP um de 1,1% da proporção de negros em inscreveram no vestibular é pobre
aumento do número de ingressan- relação ao total de ingressantes: de (renda familiar mensal situada nos
tes negros pobres, provenientes do 1.227 (12,5%) negros ingressantes três primeiros estratos de renda do
ensino público, o que confirma a em 2006, passou-se a 1.344 (13,4%) questionário socioeconômico — até
hipótese inicial de que, ao focar em 2007 e 1.397 (13,7%) em 2008, o R$ 500; de R$ 500 a R$ 1.500; e de
nos estudantes do Ensino Público, que corresponde a um aumento de R$ 1.500 a R$ 3.000): 86,38% em
o Inclusp também possibilitou o in- 117 (9,5%) ingressantes negros em 2005, 88,23% em 2006, 83,41% em
gresso de estudantes de baixa renda 2007 e de 53 em 2008 (3,9%). 2007 e 86,16% (renda abaixo de 10
e negros (pretos ou pardos). O número absoluto de alunos ne- salários mínimos) em 2008.
O perfil de renda familiar dos gros que cursaram integralmente o Dos 1.397 estudantes negros que
alunos Inclusp ingressantes em 2007 Ensino Médio na rede pública de ingressaram na USP em 2008, 635
e 2008 mostra que 76,4% e 71% de- ensino e que ingressaram na USP provêm do Ensino Médio público.
les, respectivamente, possuem ren- em 2007 foi de 660, um aumento Desses, 503 (79,2%) têm renda fa-
da familiar mensal nas faixas mais de 18,5% em comparação aos 557 miliar inferior a sete salários mí-
baixas de renda (de R$ 500 a R$ do ano de 2006, que representavam nimos, 413 (65,0%) concluíram o
3.000 em 2007 ou até sete salários 22,9% do total de ingressantes oriun- ensino médio regular em escolas es-
mínimos em 2008), tal como ocor- taduais e municipais e 144 (25,9%)
reu em 2006. Tal fato revela em escolas técnicas estaduais
que o Inclusp, ao cen-
“Em 64 ou federais. Esses dados
trar o foco de suas dos 118 cursos da USP os confirmam que, ao fo-
ações em alunos car a escola pública,
ingressantes Inclusp tiveram média superior
provenientes da o Inclusp também
rede pública de ou igual à média USP. O desempenho dos ingressantes promoveu a inclu-
ensino, também são de negros de
de 2007 confirma que essa ampliação ocorreu sem
contribuiu para baixa renda.
a inclusão na USP qualquer comprometimento do critério de mérito Dados sobre o
de alunos com con- desempenho dos in-
acadêmico da Universidade”
dições socioeconômicas gressantes em 2007 de-
menos favorecidas. monstram que as médias dos
Os negros eram 23,97% dos ins- ingressantes Inclusp (6,3) ficaram
critos em 2006, 20,79% em 2007 e dos do ensino público, percentual ligeiramente acima da média da
19,50% em 2008. Verifica-se, por- inferior aos 24,6% e 23,4% de 2007 e Universidade (6,2). Dos 118 cursos
tanto, que a porcentagem de negros 2008, respectivamente. É importan- oferecidos na USP, a média dos in-
inscritos no vestibular diminuiu nos te informar que, do total de alunos gressantes Inclusp foi igual à média
três últimos anos, representando negros ingressantes na USP em 2007 geral em oito cursos3 ou superior
20% em média, enquanto que a por- e 2008, quase a metade (49,1% em em 54 cursos.4 Ou seja, em 64 dos
centagem de negros no Estado de 2007 e 45,5% em 2008) provém do 118 cursos da USP os ingressantes
São Paulo é de 30,9% (IBGE - Pes- Ensino Médio público. Assim, o In- Inclusp tiveram média superior ou
quisa Nacional por Amostra de Do- clusp, ao centrar o foco de suas ações igual à média USP.
micílios - PNAD 2005). durante o vestibular em alunos pro- Esses resultados permitem afir-
Mesmo com essa redução, gra- venientes da rede pública de ensino, mar que o objetivo do Inclusp de
ças à contribuição do Inclusp, houve também contribuiu para a inclusão ampliar progressivamente os per-
nesse período um aumento de 13,9% de alunos negros na USP. centuais de estudantes egressos do
no número de negros que ingressa- No que se refere à renda, a Ensino Médio público na USP vem
ram na USP, resultando na elevação grande maioria dos negros que se sendo atingido. O desempenho dos

32
Revista Adusp Julho 2008
ingressantes de 2007, por sua vez, A Avaliação Seriada, tal como será aplicada aos estudantes do 3º
confirma que essa ampliação ocor- definida no Inclusp, tem como ob- ano do Ensino Médio regular e im-
reu sem qualquer comprometimento jetivo principal aproximar a Univer- plementada progressivamente para
do critério de mérito acadêmico da sidade das escolas públicas da rede as demais séries em 2010 e 2011.
Universidade. estadual de ensino e estimular a par- O desempenho do estudante no
Os resultados alcançados pelo In- ticipação dos estudantes dessas es- Enem também traduzir-se-á em bô-
clusp nos anos de 2007 e 2008 mos- colas no Vestibular da USP. Consiste nus adicional de até 6%, proporcio-
tram que foi atingido o objetivo de de uma prova elaborada pela USP, a nal ao resultado obtido pelo estu-
aumentar o ingresso na USP de estu- ser aplicada nas escolas que optarem dante nessa prova. Essas proporções
dantes provenientes do Ensino Médio por participar do Programa. serão aplicadas ao Vestibular 2009,
público, interrompendo a tendência O desempenho dos estudantes podendo sofrer modificações após a
de queda que já se evidenciava desde que optarem por participar do PAS- plena implementação do PAS-USP.
2006. Também se manteve o méri- A aplicação do bônus universal
to acadêmico como legitimador de 3% e do bônus qualificado
desse acesso, como de- “O objetivo pelo desempenho do estu-
monstra o desempe- principal da Avaliação Seriada dante no PAS-USP e
nho acadêmico dos no Enem resultará
ingressantes de é aproximar a USP das escolas da rede pública em um acréscimo
2007. e estimular os alunos desta a participarem do Vestibular. de até 12% pa-
A análise ra candidatos ao
desses resulta- Consiste de prova elaborada pela USP, a ser aplicada Vestibular da USP
dos evidenciou a nas escolas que optarem por participar da provenientes de es-
necessidade de apro- colas públicas que de-
fundamento das medidas
Avaliação” monstrem seu mérito aca-
previstas pelo Programa, o que dêmico por meio da pontuação
foi aprovado pelo Conselho de Gra- máxima nessas provas.
duação em sessão de 27 de março de USP traduzir-se-á em bônus adicio- Essa diretriz geral de ampliação do
2008. Assim, a partir de 2009, além nal de até 3%, proporcional ao re- bônus com qualificação que valoriza a
do bônus universal de 3%, o Siste- sultado obtido na prova. Essa ação Avaliação Seriada e o Enem, aprova-
ma de Pontuação Acrescida passará será desenvolvida em parceria com da pelo Conselho de Graduação, será
a contar com um bônus qualificado a Secretaria de Estado da Educação, objeto de detalhamentos técnicos e
pelo desempenho do estudante no com a qual a USP está finalizando operacionais pelo GT Vestibular, gru-
Programa de Avaliação Seriada da tratativas. Nesse primeiro ano, com po de trabalho ligado à Pró-Reitoria
USP (PAS-USP) e no Enem. vistas ao vestibular de 2009, a prova de Graduação.

Notas
1 Aprovado no CO de maio de 2006 e elaborado por professores e alunos, de Unidades e grupos de pesquisa da USP e colaboradores externos: Selma Garrido Pi-
menta (FE); Maria Amélia de C. Oliveira (EE); Maria Isabel de Almeida (FE); Antônio Joaquim Severino (FE); Antonio Luis de Campos Mariani (EP); Antonio
Sérgio Alfredo Guimarães (FFLCH); Bernadete A. Gatti (Fundação Carlos Chagas); Bruno José S. de Melo, discente (EEFE); Elba Siqueira de Sá Barretto (FE);
Flávia Schilling (FE); Franco Maria Lajolo (FCF); Glaucius Oliva (IFSC); João Baptista B. Pereira (FFLCH); José Cippola Neto (ICB); Lucimar Rosa Dias, dou-
toranda (FE); Maria Thereza Fraga Rocco (Fuvest); Mauro Bertotti (IQ); Milton de Arruda Martins (FM); Moacyr Domingos Novelli (FO); Oswaldo Baffa Filho
(FFCLRP); Patrícia Junqueira Grandino (EACH); Quirino Augusto de C. Carmello (Esalq); Renato P. Morgado, discente (Esalq); Rosa Maria Fischer (FEA).
2 Diferentemente da Unicamp, que aplica bônus apenas nas provas da segunda fase.
3 Medicina, Odontologia, Direito, Ciências Econômicas, Filosofia, Ciências Econômicas, Arquitetura e Urbanismo, na capital, e Administração em Ribeirão Preto.
4 Alguns exemplos: na capital: Medicina Veterinária, Química, Matemática Aplicada e Computacional, Oceanografia, Geofísica, História. No interior: Medicina,
Odontologia, Química, Farmácia (Ribeirão Preto); Engenharia (oito cursos), Ciências da Computação, Física (São Carlos); Esalq (quatro cursos); Engenharia de
Alimentos (Pirassununga); Odontologia (Bauru).

33
Julho 2008 Revista Adusp

vamos dar mais cor

José Marcelino de Rezende Pinto


Professor do Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP-USP
jmrpinto@ffclrp.usp.br

Rubens Barbosa de Camargo


Professor do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da FE-USP
rubensbc@usp.br

“A função da educação é ensinar a pensar


intensamente e criticamente.
Inteligência mais caráter — este
é o objetivo da verdadeira educação”

Martin Luther King (1929-1968)

O que os dados do país, de São Paulo e da USP indicam é que já


vivemos quase que em um sistema de cotas: só que para brancos e
para os segmentos mais ricos da população. Grande parte dos alunos
oriundos dos extratos mais ricos ingressa nos cursos onde a concorrência
é maior. Pode-se argüir que se trata apenas de uma exclusão econômica,
mas o que os dados indicam é que há um claro viés étnico neste
processo, que faz com que para um dado extrato socioeconômico os
negros recebam menores salários e avancem menos na escolarização

34
Revista Adusp Julho 2008

e diversidade à USP?

A
ntes de discutirmos as ceito de raça ou de renda, é sem- lo). Contudo, a “distribuição” de
repercussões do In- pre bom refrescar a memória com fatores educacionais e sociais revela
clusp, e sugestões de indicadores concretos. Segundo os ampla desigualdade, pois dos cerca
políticas (mais) afir- dados da Pesquisa Nacional por de 14,4 milhões de analfabetos com
mativas para a USP, é Amostra de Domicílios (PNAD) do 15 anos ou mais existentes no Brasil
necessária uma breve IBGE de 2006, os negros (pretos e em 2006 os negros representavam
reflexão sobre aspectos do contexto pardos) representavam 49,5% da 69,4% do total. Com relação à taxa
social, educacional, étnico e racial população brasileira (e 28,3% da de analfabetismo (população de 15
do país e de São Paulo. população de São Paulo), enquanto anos ou mais), seja no país como
Embora já tenhamos saído do os brancos representavam 49,7% um todo, seja em São Paulo, entre
período ingênuo em que se dizia (70,5% em São Paulo) e índios e os negros ela é o dobro do índice
ser o Brasil um país sem precon- amarelos 0,8% (1,2% em São Pau- apresentado pelos brancos.

35
Julho 2008 Revista Adusp
Entre as pessoas com 15 anos ou e os brancos R$ 3,20; entre os que Médicas 16% fizeram todo o ensi-
mais, os dados da PNAD de 2005 re- tinham de 9 a 11 anos de estudo no médio na rede pública estadual
velam que os brancos têm uma mé- (equivalendo ao ensino médio in- (que concentrava, em 2006, 84%
dia de 7,9 anos de estudo no Brasil; completo) os brancos recebiam R$ das matrículas no Estado de São
os negros, de 6,2. Na região Sudeste 5,40 e os negros R$ 4,10; já entre Paulo); contudo, entre os aprova-
os números sobem para 8,3 e 6,6 res- aqueles com 12 anos de estudos ou dos este índice foi de apenas 3,7%.
pectivamente. Quando analisamos mais (o que inclui a passagem pelo Portanto, o que os dados do país,
os anos de estudo sob o recorte de ensino superior), o valor era de R$ de São Paulo e da USP indicam é que,
renda constatamos que o segmento 14,90 por hora para os brancos e de por trás de uma imagem que “valo-
dos 20% mais ricos da população R$ 10,70 para os negros. riza somente o mérito”, já vivemos
de 15 anos ou mais apresentam em E quando olhamos para nossa quase que em um sistema de cotas: só
média 10,2 anos de estudo, enquan- casa, a USP, que vemos? No exame que para brancos e para os segmen-
to os 20% mais pobres apresentam da Fuvest de 2008, considerando tos mais ricos da população. Pode-se
apenas uma média de 3,9 anos de o total das carreiras os negros re- argüir que se trata apenas de uma ex-
estudo, valor que corresponde a me- presentaram 19,7% dos inscritos e clusão econômica, mas o que os dados
nos da metade da escolaridade obri- 12% dos aprovados. Se olharmos indicam é que há um claro viés étnico
gatória instituída aqui em 1967 (e no neste processo que faz com que para
Brasil a partir de 1971). um dado extrato socioeconô-
Quando se analisam
“No mico os negros recebam
indicadores de tra- vestibular 2008 da Fuvest 16% menores salários e
balho na região avancem menos na
metropolitana
dos candidatos à carreira de Medicina e Ciências escolarização.
de São Paulo en- Médicas fizeram todo o ensino médio na rede pública A questão que
contra-se uma podemos colocar
estadual, contudo entre os aprovados eles eram apenas
grande desvanta- é: quais seriam
gem da população 3,7%; 13,3% dos candidatos eram negros, mas os impactos de
negra (ainda maior uma política de ação
entre aprovados eram só 7,7%”
entre as mulheres ne- afirmativa na USP para
gras), que ocupa posições com a reversão deste profundo défi-
menor percentual de trabalho com cit social, educacional e econômico,
carteira assinada; apenas 1,9% deles a carreira de Medicina e Ciências que contemplasse a escola pública e
encontram-se na condição de em- Médicas esta proporção inscritos x as questões étnico-raciais?
pregadores (enquanto os brancos aprovados é de 13,3% x 7,7%, en-
atingem 5,3%); 12,7% encontram-se quanto na Pedagogia tem-se 37,6% Vestibular mede capacidade?
na condição de empregado domésti- dos inscritos para 15% dos chama- O leitor pode argumentar que
co (entre os brancos este percentual dos em primeira matrícula. Mais o caminho não seria adotar ações
é de 5,9%). Quanto aos rendimen- dramáticos são os dados da Fuvest afirmativas, mas preparar melhor es-
tos da população ocupada agrupada quando vistos sob a ótica da esco- tas pessoas para o ingresso no en-
por anos de estudo as disparidades la freqüentada. Embora 43% dos sino superior. O problema se man-
são gritantes. Em 2005, enquanto alunos do ensino médio regular no tém porque o estudante rico quase
na média geral do Brasil os negros Brasil estudem no período noturno sempre terá uma preparação mais
recebiam R$ 3,50 por hora, os bran- (41% em São Paulo), eles respon- “adequada” que o seu colega pobre,
cos recebiam R$ 6,50. Entre os que dem por 24,5% dos inscritos e por mesmo quando este último tenha um
tinham até quatro anos de estudo os 7,2% dos aprovados. Dos inscritos maior potencial. Outro problema é
negros recebiam R$ 2,30 por hora na carreira de Medicina e Ciências que o vestibular é um péssimo meio

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Revista Adusp Julho 2008
de aferir a capacidade de uma amos- e prática (artigo 35). Um exame tude deste fato, segundo dados do
tra de estudantes. No mundo inteiro, como o vestibular passa ao largo Inep de 2002, a razão candidatos/
um dos poucos consensos existentes destas capacidades, cuja presença vaga na rede pública era de 8,9,
sobre os testes padronizados é que seria fundamental nos alunos que enquanto na rede privada havia
geralmente eles dão uma correlação ingressam em nossa universidade. 1,6 candidatos/vaga. Entendidas,
extremamente positiva com o nível Grande parte das escolas de elite contudo, como medidas de cará-
sócio-econômico. Não se apagam 500 pouco se preocupa em seguir as de- ter transitório, as ações afirmativas
anos de exclusão etno-racial e eco- terminações da LDB porque sabe cumprem sim um papel que não se
nômica de repente. Não é por outro que estes elementos não são consi- pode desprezar no que se refere à
motivo que a prestigiosa Universida- derados no vestibular, que é o que democratização do acesso no curto
de de Berkeley, na Califórnia, depois interessa para elas e seus usuários. prazo. Reportagens recentes indi-
de retirar o sistema de cotas para Pior: quando se alcança um banco cam que na UnB o número de ne-
negros em função de mudanças na universitário dizem que “tudo” o gros foi multiplicado por 5 a partir
legislação, reintroduziu em seu pro- que se aprendeu antes ou está “er- da introdução do regime de cotas2.
cesso de seleção elementos que le- rado” ou “não serve para nada”. Segundo estudo apresentado em
vam em conta a trajetória e o esforço Nunca é demais ressaltar o cará- 2008 pelo Observatório Latino-Ame-
educacional dos alunos e não apenas ricano de Políticas Educativas (OL-
seu desempenho nos testes pa- PEd), ligado ao Fórum Latino-
dronizados.
“A Taxa Americano de Políticas
“Ora”, pode ar- de Escolarização Bruta da Educativas (Flape),
güir um inter- das 224 institui-
locutor, “se o
Educação Superior no Brasil era de 15%, ções universitárias
problema é o contra 48% na Argentina, 38% no Chile, 78% públicas no Bra-
vestibular, basta sil (87 federais,
na Coréia do Sul e 73% nos EUA. Além da baixa
mudá-lo; intro- 75 estaduais e 62
duzir cotas sim- oferta, 70% das matrículas são oferecidas municipais) consi-
plesmente fará com deradas no estudo ha-
no setor privado”
que alunos menos pre- via 72 (32% do total) que
parados em, por exemplo, por- promoviam algum tipo de ação
tuguês, matemática etc., entrem na afirmativa, seja por meio de cotas,
universidade e isto não é bom”. De ter paliativo das ações afirmativas. seja por sistema de bonificação por
fato, nosso vestibular é muito ruim, O ingresso nas universidades públi- pontos, ou ainda pela reserva de va-
não em função das pessoas que o cas brasileiras apresenta tamanho gas. Havia 53 instituições públicas
elaboram, mas porque sua função filtro econômico e etno-racial em que implantaram alguma forma de
é tão somente a de selecionar: uma virtude basicamente da pequena ação afirmativa em termos etno-ra-
prova de múltipla escolha ou escri- oferta de vagas. A Taxa de Escolari- ciais: 31 com sistemas de cotas pa-
ta, feita em condições psicológicas zação Bruta da Educação Superior ra negros, 3 com bonificação por
pouco propícias, deixa de avaliar no Brasil1, em 2.000, era de 15%, pontos e uma com reserva de vagas
uma série de pontos que, pela pró- contra 48% na Argentina, 38% no para mulheres negras. Havia ainda
pria Lei de Diretrizes e Bases da Chile, 78% na Coréia do Sul e 73% 17 instituições com ações afirmati-
Educação Nacional (LDB), são fi- nos EUA. Além da baixa oferta, vas somente para alunos oriundos
nalidades do Ensino Médio, por 70% das matrículas são oferecidas da escola pública e uma que adotava
exemplo: capacidade de aprender, no setor privado, ao contrário dos sistema de cotas para alunos pobres
autonomia intelectual, pensamen- países listados nos quais a oferta é (independentemente de terem cur-
to crítico, articulação entre teoria majoritariamente pública. Em vir- sado ou não a escola pública).

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Julho 2008 Revista Adusp
Como é de conhecimento de to- dicina, o impacto foi maior: de 10% faculdades de Direito e a abolição da
dos, o Inclusp adotou em 2007 e 2008 passou-se para 25%. A admissão de escravidão. Em segundo lugar, até re-
um sistema de bonificação por pontos jovens de raça negra ou indígena centemente estava em vigor a “lei do
(3% na primeira Fase da Fuvest), para passou de 11% para quase 16%. boi”, que garantia a metade das vagas
alunos oriundos do Ensino Médio de De outro lado, ao analisar-se o de-
das escolas agrícolas para os filhos de
escola pública e que realizam o Enem. sempenho dos alunos no período de proprietários (e não de trabalhadores)
1994 a 1997 cuja origem era a escolarurais. Um aspecto já citado, mas que
Efeitos das ações afirmativas pública, comparando o seu desempe- cabe ser retomado: atualmente já vi-
Começam a aparecer diferentes nho no vestibular com as médias de vemos em um sistema mascarado de
estudos sobre os impactos das políti- finais de curso, percebeu-se que o alu-
cotas, no qual grande parte dos alu-
cas de ações afirmativas implantadas no de escola pública melhorava de po-
nos oriundos dos extratos econômicos
nas universidades públicas. Em diver- sição no final do curso, em relação aos
mais ricos ingressa nos cursos onde a
sas universidades tem-se percebido que vinham do ensino pago. Tal estu-concorrência é maior. Este sistema é
uma avaliação positiva destas me- do inclusive justificou a quantidade de
mais perverso porque exclui de forma
didas, inclusive no que se refere ao pontos para a medida do programa sutil, já que, sob a aparência de um
desempenho dos alunos ingressantes Paais. Os pesquisadores concluíram sistema de regras iguais para todos,
por meio de ações afirmativas. Os ele filtra os mais pobres e negros.
dados iniciais destes estudos Como a ciência já demons-
colocam em xeque a tese
“Quem trou de forma irrefutá-
de que os alunos con- tem medo das cotas na vel que fatores como
templados pelas inteligência, capa-
políticas afirmati-
universidade? Por que não pensarmos cidade de apren-
vas fariam “cair a em medidas de ingresso na USP que componham der, capacidade
qualidade” do en- reflexiva, criativi-
proporções de egressos de escolas públicas (que tal
sino superior. No dade e outros não
caso da USP, que 50%?) com a proporção negra (28%) do estão relacionados
adotou uma política com o nível de ren-
Estado de São Paulo?”
muito tímida de bonifica- da, podemos concluir que
ção, os alunos ingressantes pelo muitas pessoas que possuem es-
Inclusp apresentaram nota média de tas habilidades estão deixando de
6,3 em 2007, enquanto a média USP que os alunos do setor público e de entrar na universidade simplesmente
foi de 6,2; em 64 cursos da USP os in- camada socioeconômica menos favo- por serem pobres ou negros e estão
gressantes Inclusp tiveram nota mé- recida tinham potencial acadêmico sendo substituídas por outras com
dia superior, ou igual à média USP. não desenvolvido, e quando colocados potencial aquém do seu, mas que
Segundo estudo empreendido em condições de igualdade mostra- ingressam na universidade por advi-
por Pedrosa, Dachs e Maia sobre o vam sua plena capacidade. rem de famílias que puderam prepa-
Programa Ação Afirmativa e Inclu- A questão de cotas não é assim rá-las melhor para o vestibular.
são Social da Unicamp (Paais, que tão ausente da realidade do ensino Pois bem, mas qual então a vanta-
atribui 30 pontos a mais ao aluno superior brasileiro quanto se busca gem da adoção na USP de um siste-
oriundo da escola pública e mais 10 apresentar. Em primeiro lugar, nunca ma de cotas4 para alunos originários
àqueles que se autodeclararem ne- é demais lembrar que os brancos ti- da rede pública e para negros?
gros ou indígenas), logo no primeiro veram acesso praticamente exclusivo Em primeiro lugar, elas possuem
ano a participação dos ingressantes por 70 anos (pelo menos) da história uma função importantíssima de me-
oriundos da escola pública passou do ensino superior brasileiro, no pe- lhorar a escola pública (e estamos fa-
de 29% para 34% do total3. Em Me- ríodo entre a criação das primeiras lando em cotas para alunos oriundos

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Revista Adusp Julho 2008
destas escolas), pois muitos dos alunos de ingresso na USP que componham definidas em lei para o ensino médio.
mais motivados destas escolas acabam proporções de ingressantes de esco- Precisamos abrir a universidade
abandonando-as quando passam nos las públicas (que tal 50%?) com a para uma “elite” de pobres e ne-
concursos de bolsas de estudo promo- proporção negra (28%) do Estado gros, elite porque também passarão
vidos pelas escolas particulares — e de São Paulo? Por que não aplicar tal por uma seleção altamente restritiva
vão ajudar a melhorar as estatísticas sistema por 10 anos e acompanhá-lo e com todos os problemas já aqui
de desempenho destas últimas. Com de modo sistemático, a cada ano, evi- apontados, mas que com certeza vai
as cotas estes alunos e seus pais fica- dentemente acompanhado por políti- trazer um tipo de qualidade da qual
riam na escola pública, ajudando a ca de apoio estudantil para evitar que andamos carentes, que podemos de-
melhorá-la, pois, como mostram vá- fatores exclusivamente econômicos finir, em resumo, como a qualidade
rios estudos sobre o “efeito dos pa- interfiram no processo de aprendi- de ser um brasileiro representativo
res” (peer effect), a presença de alunos zagem desses alunos? Tais medidas do país; que vive, circula e estuda em
mais motivados numa turma provoca poderiam criar efeitos educacionais lugares onde vive e estuda a maio-
uma melhoria geral no seu desempe- e sociais, interna e externamente à ria da população. Quantas vezes em
nho, em especial nos alunos de menor USP, tão significativos que certamen- visitas a escolas públicas de ensi-
desempenho e com a vantagem de te a maior parte da população paulis- no médio ouvimos diretores e pro-
pouco afetar os primeiros. Ademais, ta “sairia ganhando”, salvo escolas e fessores comentando sobre alunos
haverá uma melhoria da universida- cursinhos que orientam suas práticas extremamente talentosos, mas que
de com o ingresso de alunos que não educativas exclusivamente para ob- terminarão ali sua trajetória escolar.
passaram a vida trancados em con- tenção de lucro. Temos certeza de que a inteligência,
domínios, ou que não freqüentaram Quanto às mudanças mais recen- o brilho intelectual e a criatividade
escolas onde a regra básica é a lei do tes propostas pela USP para 2009, destes alunos darão uma nova cara e
mercado, da competição e não a da que incluem uma avaliação seriada uma qualidade, sem dúvida, superior
cidadania; escolas onde o professor (PAS-USP) a ser feita pela USP nas à universidade pública brasileira e à
muitas vezes é visto e tratado por pais escolas públicas estaduais, com bô- USP, além de uma cor mais bonita...
e alunos como um empregado seu e nus adicional de 3%, e um bônus de “Sucede a princípio que um
não como um educador. Embora a até 6% pelo desempenho do Enem, operário muito inteligente se vê
USP defenda a importância da diver- entendemos que atuam no sentido obrigado a emudecer ante um
sidade no mundo natural e social, ela oposto ao desejado. Estudos sobre o erudito tonto, que lhe faz calar
não por maior finura de espírito, da
não pratica esta mesma diversidade Enem e sobre o sistema de avaliação qual carece, mas por instrução, da
em sua composição. seriada da UnB indicam que seu im- qual o operário é privado e que o
Em segundo lugar, sendo verda- pacto é praticamente inócuo quanto outro pôde receber, pois enquanto
deiros os efeitos detectados nos estu- à mudança do perfil do aluno que lá sua estupidez se desenvolvia cien-
tificamente nas escolas, o trabalho
dos citados — melhor desempenho ingressa (o que é diferente do siste- do operário lhe vestia, lhe dava
acadêmico dos ingressantes oriundos ma de cotas). Ao invés de se envolver casa, o alimentava e lhe propor-
das escolas públicas ou sistemas de com mais exames que pouco avaliam, cionava tudo, os professores e os
cotas etno-raciais — por que não es- a USP poderia introduzir no seu ves- livros necessários a sua instrução.”
timularmos ainda mais tais medidas? tibular mudanças que o tornassem Mikhail Bakunin,
Por que não pensarmos em medidas mais condizente com as finalidades A Instrução Integral, ~ 1870

1 Que é razão entre a matrícula nos cursos superiores e a população na faixa etária correspondente (em geral, entre 18 e 24 anos).
2 Folha de S. Paulo, 18/05/08, p. C15
3 Conforme matéria publicada no Diário Oficial do Estado de 29/3/2008 (p.1).
4 Os autores não entendem as cotas como a única ação afirmativa possível, mas ressalta sua superioridade sobre o sistema de bonificação cujo efeito tende a ser reduzido nos cursos mais
concorridos, nos quais a universidade mais ganharia com o ingresso com um perfil mais diversificado de alunos.

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Julho 2008 Revista Adusp

medida inócua, ante a


imensa desigualdade
no sistema escolar
Eunice Durham
Professora da FFLCH-USP

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Revista Adusp Julho 2008

Aumentar a pontuação dos egressos da escola pública não


contribui para diminuir a imensa desigualdade educacional
do país, porque não estamos ainda sequer conseguindo que as
camadas mais pobres terminem o ensino fundamental plenamente
alfabetizadas. É ilusório pensar que democratizaremos a educação
incluindo alguns alunos a mais da classe média, que estudou no
ensino médio das escolas públicas com notas regulares. Vale a pena
sacrificar o critério do mérito para obter este resultado?

O
vestibular tal como uma boa escolarização anterior. tes e criativos que conheci foram
era tradicionalmen- Em segundo lugar, e isto é pou- maus alunos no ensino médio. O
te realizado nas uni- co reconhecido, ele tinha a vanta- ensino médio tal como é oferecido
versidades públicas gem de zerar o desempenho ante- nas nossas escolas, especialmente,
apresentava muitas rior dos candidatos. As notas ob- mas não só nas públicas, é desin-
vantagens. Em pri- tidas no ensino médio não eram teressante e desestimulante. E não
meiro lugar, tinha um cunho marca- levadas em consideração — apenas só nas nossas: Einstein é um exem-
damente universalista, não levando a conclusão do curso era exigida. plo clássico de desempenho medío-
em consideração, como critério pa- Pode se considerar estranho que is- cre na escola secundária. Além do
ra ingresso, nem gênero, nem raça, to seja considerado vantagem, mas mais, a adolescência é um período
nem renda familiar, tão somente o este processo permitia que os can- muito tumultuado durante o qual
mérito acadêmico. Isto impedia o didatos superassem deficiências de a iniciação sexual, o sucesso espor-
protecionismo tão comum na nossa formação e fracassos durante seu tivo e a popularidade no grupo de
sociedade. Filhos de senadores, de processo de escolarização anterior, idade são muito mais importantes
deputados, de grandes industriais, fazendo cursinhos ou estudando do que o sucesso escolar. Além dis-
e mesmo de cientistas e professo- por conta própria. Talvez eu me so, a cultura brasileira, ao contrário
res da universidade podiam e eram engane, mas, na minha experiência, da oriental, não valoriza o sucesso
reprovados, se não demonstrassem boa parte dos alunos mais inteligen- nos estudos.

41
Julho 2008 Revista Adusp
De fato, há um único momento,
no Brasil, no qual o sucesso escolar
e a dedicação ao estudo são estimu-
lados e aplaudidos por familiares e
amigos: é exatamente aquele que an-
tecede e é ritualizado pela aprovação
no vestibular. É em função do desejo
de ingressar na universidade que mui-
tos jovens, pela primeira vez na vida,
se dedicam aos estudos e o sucesso
no vestibular, pelo menos em parte,
reflete este empenho, o qual constitui
um elemento muito importante de
preparação para o bom aproveita-
mento nos cursos universitários.
Em terceiro lugar, o vestibular,
com a publicação de notas e do ga-
barito das provas, é uma instituição
extremamente transparente. Por ou-
tro lado, é verdade que o vestibular “O tipo de inclusão
favorece os estudantes que provêm proposto pela USP não é mais do que uma
de famílias mais escolarizadas. Este
fator é mais favorável do que nível gota d’água no oceano do ensino superior.
de renda, embora ambos estejam as- As 3 universidades paulistas incluem só 9,5%
sociados. Quando se analisa a distri-
buição de renda entre os ingressan- dos matriculados no ensino superior em SP,
tes na universidade, verifica-se que a metade deles na USP”
mediana se localiza nas faixas entre
três e cinco salários mínimos per ca-
pita, e o percentual dos aprovados balhar enquanto estudam e já no en- 1,4 na escala de 1 a 10. Este resul-
na faixa dos mais ricos é inferior dos sino médio estão matriculados nos tado é alarmante porque significa
pertencentes às classes médias. cursos noturnos, têm pouco tempo que a imensa maioria dos jovens não
A associação entre sucesso esco- para estudar; além do mais, já tra- tem condições de fazer um curso su-
lar, renda e nível de instrução dos zem do ensino fundamental sérias perior. É preciso não esquecer que
pais é universal. No Brasil, entretan- dificuldades no domínio da leitura, não há bom ensino universitário se
to, a excessiva desigualdade econô- da escrita, o que dificulta seu apren- não houver bons estudantes e que o
mica e educacional que caracteriza dizado. De fato, o enorme aumento sucesso escolar nos níveis mais avan-
nossa sociedade faz com que apenas do número de estudantes no ensino çados depende de uma boa base an-
uma minoria de jovens conte com as médio, em São Paulo, foi acompa- terior. É isto que justifica o ingresso
vantagens de uma tradição familiar nhado de uma grande queda na qua- por exames de desempenho.
de contato com uma cultura letrada, lidade de ensino. Os resultados da O ensino superior privado, apesar
isto é, com o que Bourdieu denomi- avaliação do ensino médio público, da enorme desvantagem de ser pago,
na capital cultural. recentemente divulgados pela Se- oferece muitas vantagens para esta
Os jovens que não contam com cretaria da Educação do Estado de população. Em primeiro lugar, não
essas vantagens, que precisam tra- São Paulo, indicam uma média de exige um bom nível de escolaridade

42
Revista Adusp Julho 2008
anterior. Com exceção de umas pou- Na questão custo-benefício, gos- las públicas com notas regulares.
cas instituições de elite, as institui- taria de lembrar que o tipo de inclu- Esta medida parece-me um tanto
ções privadas aceitam praticamente são proposto pela USP não é mais inócua, ante a imensa desigualdade
todos os egressos do ensino médio do que uma gota d’água no ocea- no sistema escolar brasileiro. Vale a
que podem pagar. Em segundo lugar, no do ensino superior. Afinal, as pena sacrificar o critério do mérito
concentram-se na oferta de cursos três universidades paulistas incluem para obter este resultado? É como
noturnos. Em terceiro lugar, os cur- apenas 9,5% dos alunos matricula- se estivéssemos tentando aplacar a
sos são menos exigentes academica- dos no ensino superior em São Pau- nossa má consciência face à nossa
mente e não é necessária uma grande lo, metade dos quais na USP. omissão, face à desigualdade social e
dedicação aos estudos. Finalmente, Se estabelecermos vantagens na educacional.
a amplitude da rede de estabeleci- pontuação do vestibular para candi- Prefiro e acho mais produtiva a
mentos privados permite que os alu- datos provenientes de escolas públicas iniciativa da Unesp de criar cursos
nos freqüentem cursos mais perto para dobrar o percentual de estudan- pré-vestibulares gratuitos para alu-
de suas residências ou de seu empre- tes desta proveniência, não conse- nos provenientes de escolas públicas.
go, não sobrecarregando seu tempo guiríamos maior adicional do que o No ano passado, foram 3.714 jovens,
com longos translados. A estratégia equivalente a 1,5% do conjunto dos do quais 1.050 foram aprovados em
de boa parte dos alunos consiste em concursos vestibulares, sendo 707
arrumar um emprego que pa- em universidades públicas. Os
gue mais do que custa a
“Prefiro que não ingressaram,
matrícula no ensino e acho mais produtiva a certamente saíram
superior ou, inver- com alguma coisa
samente, escolher
iniciativa da Unesp de criar cursos pré- — uma forma-
uma instituição vestibulares gratuitos para alunos provenientes de ção melhor que a
que cobre menos obtida no ensino
escolas públicas. No ano passado, atenderam 3.714
do que ele ganha. médio público.
Assim mesmo, são jovens, do quais 707 foram aprovados em Isto constitui hoje
poucos os que percor- uma grande vantagem
universidades públicas”
rem este caminho, porque na disputa por posições no
a associação entre trabalho em mercado de trabalho.
tempo integral e estudo exige muito É verdade que uma iniciativa co-
esforço e dedicação. alunos que hoje freqüentam o ensino mo esta daria muito mais trabalho e
O ProUni atendeu bastante bem superior. E os demais, como ficam? envolveria professores e alunos da
as características e necessidades Medidas como esta, de aumentar universidade numa atuação direta
desta população. Vale lembrar, en- a pontuação dos egressos da escola com alunos das escolas públicas, em
tretanto, que tendo estabelecido pública, não contribuem significa- lugar de olhar o problema de longe.
critérios mínimos de desempenho tivamente para diminuir a imensa Envolveria também alguns recursos,
escolar no Enem e limites máximos desigualdade educacional do país, mas poucos — cursos como estes
de renda per capita, teve grandes porque não estamos ainda sequer poderiam ser montados com bons
dificuldades em preencher a oferta conseguindo que as camadas mais alunos da própria universidade, que
de bolsas disponíveis porque não há pobres terminem o ensino funda- receberiam bolsas para atuar sob a
número suficiente de pobres com mental plenamente alfabetizadas. orientação dos excelentes profes-
bom desempenho escolar. É ilusório pensar que democratiza- sores que temos, como faz hoje a
Considerando as vantagens do remos a educação incluindo alguns Escola Politécnica. Mas é, de fato,
vestibular, pergunto-me se vale a alunos a mais da classe média, que muito mais fácil introduzir pontua-
pena alterá-lo. estudou no ensino médio das esco- ções adicionais.

43
Julho 2008 Revista Adusp

Doutores, mas para que?


José Chrispiniano
Jornalista

O crescimento acelerado do número do doutores, mais rápido do


que a abertura de vagas para docentes em universidades, tem levado
a uma competição intensa pelas vagas abertas em novos concursos e
dificuldade de doutores em encontrar emprego. Mas ainda é pequeno
diante da demanda de graduação e pós-graduação em instituições
públicas. Doutores demais? Ou falta de planejamento e investimento
para aproveitar pesquisadores qualificados?

N
úmeros da Coorde- ria capaz de dobrar o número de duados. “Na verdade, o número de
nação de Aperfeiçoa- doutores que lecionam e pesquisam doutores não é grande para as ne-
mento de Pessoal de nas universidades do país — mais cessidades do país. Pode parecer
Nível Superior (Ca- desejado destino de emprego dos grande para o que o mercado ab-
pes): em 2005, 43.800 pós-graduados nacionais e a princi- sorve, mas não é para o que o país
alunos estavam ma- pal razão da criação da Coordena- precisa. Nós ainda somos um país
triculados em cursos de doutora- ção de Aperfeiçoamento de Pessoal com baixa formação universitária.
do no Brasil. Números do Instituto de Nível Superior (Capes), fundada Quem financia a pós-graduação é
Nacional de Estudos e Pesquisas em 1951 não como coordenação, o Estado. Ele depois proclama que
Educacionais (Inep): no mesmo mas como “Campanha” justamente formou ‘x’ doutores, mas o doutor é
ano, havia 62.510 doutores em ati- para ampliar e qualificar o sistema usado para que? É um desperdício
vidade como professores no sistema universitário brasileiro. Seria uma se ele é dispensado e não trabalha
de ensino superior do país — que boa notícia a formação de tantos usando os conhecimentos dele”.
compreende instituições públicas e doutores no Brasil, se os investi- Após observar que faltam da-
privadas. Deste total, 40.597 esta- mentos finais na expansão da pes- dos sobre a demanda de doutores,
vam no setor público. quisa e ensino, ou mesmo no setor Marco Antonio Raupp, presidente
Constata-se, portanto, que o nú- privado, estivessem sendo capazes da Sociedade Brasileira para o Pro-
mero de pessoas cursando doutora- de absorver esta força produtiva gresso da Ciência (SBPC), destaca a
do já correspondia a cerca de dois altamente qualificada. inexistência de empregos estáveis na
terços do total de doutores empre- O professor Paulo Rizzo, que foi área de pesquisa. “A maioria das va-
gados no ensino superior do país, e presidente do Sindicato Nacional gas possíveis está em instituições pú-
já superava o total dos doutores que dos Docentes do Ensino Superior blicas, que têm tido muita dificulda-
lecionavam nas instituições públi- (Andes-SN) na gestão 2005-2008, de de abrir concurso. Então tem se
cas. Em 2006 foram titulados 9.365 entende que o problema não pode utilizado a bolsa de pós-doutorado e
doutores. Em seis anos o Brasil se- ser visto como excesso de pós-gra- programas de pesquisa, como os da

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Revista Adusp Julho 2008
Vanderley Jr.
Financiadora de Estudos e Projetos internacionais, para fingir que cres-
(Finep), com a contratação tempo- ceu a produção intelectual. O que
rária, por projeto, dos doutores”, posso dizer que, ao menos nas áreas
afirma. “O setor privado emprega onde atuo, ciências sociais e história,
muito pouco, então os doutores aca- não aconteceu. Porque as obras até
bam continuando como bolsistas. As os anos 1980 eram mais marcantes
empresas têm que ser estimuladas a e tinham maior interlocução social.
ter programas de pesquisa e contra- Mudou o foco com trabalhos mais
tar doutores”, propõe. “E tem que rápidos, em maior quantidade e de
haver um aumento dos programas uma qualidade menor. Como o cres-
governamentais em pesquisa, prin- cimento das universidades públicas
cipalmente em novas áreas como na é vegetativo e acontece em cima da
Amazônia, no Centro-Oeste e no exploração maior do corpo docente
Nordeste. Há um amplo potencial já existente, a disputa por vagas nos
de desenvolvimento de atividades grandes centros aumentou.” Ele cita
de pesquisa que poderiam empregar como exemplo a inscrição de 95 dou-
doutores de forma permanente.” tores em sociologia para um concurso Paulo Rizzo
Professor no campus de Marília
da Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita (Unesp), o cien- “Como o crescimento das universidades públicas é
tista político e historiador Marcos
vegetativo e acontece em cima da exploração maior
Del Roio compara sua própria ex-
periência de entrada na Unesp com do corpo docente já existente, a disputa por vagas nos
a situação atual, para demonstrar a
grandes centros aumentou. Os doutores não querem
recente transformação na condição
de emprego e natureza do douto- sair dos grandes centros”, conclui Del Roio, da Unesp
rado. “Quando passei no concurso,
era doutorando e havia só quatro
inscritos. Eu concluí o doutorado na Universidade Federal de São Pau- concursos tem sido apontada como
em 1995, devo ter sido um dos 100 lo, no novo campi de Guarulhos. válvula de escape para a saturação
primeiros doutores em ciência po- O problema de “engarrafamen- do mercado de trabalho de novos
lítica no país. Quantos existem ago- to” de doutores ocorre principal- doutores, ainda que disputada e in-
ra? Há uma enxurrada, produzidos mente nas grandes universidades, suficiente (leia texto à p. 51).
na USP, Iuperj, Unicamp etc.” que têm os mais tradicionais progra- “O grau de competição por vagas
Para Del Roio, as mudanças ocor- mas de pós-graduação e a melhor es- nas públicas dá uma idéia de como
ridas na pós-graduação nos anos 1990 trutura para pesquisa. Principalmen- uma porcentagem grande dos inscri-
agravaram o problema. “O perfil do te em São Paulo, onde está quase tos tem uma boa qualificação. Mas
doutor mudou. Há uma tendência de metade dos doutorandos; onde além eles não querem sair dos grandes
se formar um número muito grande dos recursos federais há as verbas da centros”, relata Del Roio, relatan-
em pouco tempo, em três, quatro Fundação de Amparo a Pesquisa do do que cinco vagas de história re-
anos. Isso significa que a qualida- Estado de São Paulo (Fapesp); e on- cém-abertas em Goiânia dificilmen-
de das teses é inferior e as pessoas de a expansão do corpo docente das te atrairão doutores localizados em
se formam mais novas. Isso foi feito universidades estaduais não ocorre São Paulo. “Hoje eu diria para um
para aumentar a quantidade de dou- no mesmo ritmo que o das univer- jovem doutor se dirigir a áreas ‘de
tores para mostrar para as agências sidades federais, cuja abertura de fronteira’ como o oeste do Paraná,

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Julho 2008 Revista Adusp
Daniel Garcia
em estaduais como as de Londrina Sem um planejamento da pós-gra-
e Maringá, e a enxurrada de concur- duação e ampliação do número de
sos das federais, já que as estaduais vagas e condições de pesquisa, ela
de São Paulo não abrem vagas”. vai se manter restrita e a ao mesmo
O professor Ronaldo Eustáquio tempo não se conseguirá que os
de Souza, coordenador da pós-gra- formados trabalhem nas suas áre-
duação do Instituto de Astronomia, as. O pior problema é a falta de
Geofísica e Ciências Atmosféricas planejamento”, critica Allan Aroni,
(IAG-USP), explica os possíveis presidente da Associação Nacional
destinos dos pesquisadores douto- de Pós-Graduandos (ANPG).
rados pelo programa: “Alguns con- Aroni acredita que muitas vezes
seguem no exterior, outros vão para a seleção de alunos e os motivos de
instituições federais, por exemplo, desistência têm mais componentes
para o Mato Grosso. O mercado sociais do que de competência aca-
em São Paulo é mais restrito, e fora dêmica, pela dificuldade de realizar
há mais federais que se dispõem a a pesquisa e docência como projeto
absorver doutores da nossa área. Allan Aroni de vida. “O filtro da pós-graduação
Mas nem todos aparenta que há
querem ir. Tam- uma seleção dos
bém há absor- melhores estu-
“A expansão nas federais prioriza a graduação e
ção em algumas dantes. Mas a
privadas, como pouca pesquisa. Então os doutores que estão em verdade é que a
a Universida- lugares distantes passam o tempo todo tentando ir maioria das pes-
de Cruzeiro do soas tem compe-
Sul (Unicsul) e para os grandes centros, porque não têm estímulo tência. A ques-
a Universidade para a pesquisa”, diz Paulo Rizzo, do Andes-SN tão não é essa,
do Vale do Pa- mas quem con-
raíba (Univap)”. segue se manter
A exigência dos na condição de
concursos tornou-se mais alta. Mui- crescido após os reajustes conce- estudante sem ter remuneração dig-
tos só conseguem vaga hoje após didos por CNPq, Capes e Fapesp. na, ou se manter com uma mesada
o pós-doutorado. “Tem uma parte Não é tarefa simples completar um do pai. Às vezes, estudantes muito
dos nossos doutores que passam percurso de 10 anos ou mais sem bons acabam abandonando porque
pelo pós-doc, e normalmente a co- vínculo empregatício, sem benefícios não têm condições ou perspectivas.
locação deles no mercado se dá de- trabalhistas, em ambiente altamente Acabam desistindo da carreira pe-
pois disso”. competitivo e sem garantia de exer- las dificuldades”. O medo de chegar
O futuro incerto diante do cená- cer depois disso a carreira acadêmi- a uma idade avançada sem víncu-
rio de crescentes dificuldades exerce ca de ensino e pesquisa. lo empregatício afasta pessoas que
pressão imensa na vida do pós-gra- “Nós somos 120 mil pós-gradu- gostariam de fazer o doutorado.
duando. O número de bolsas dispo- andos. Na graduação são 4,5 mi- Nas áreas cuja pesquisa depende
níveis continua pequeno, havendo lhões. Então a pós-graduação é um de mais equipamentos, a situação
enorme número de mestrandos e funil muito grande. Ainda é muito dos doutores que orbitam em torno
doutorandos sem-bolsa. Os valores restrita. Só pode fazer quem conse- dos principais laboratórios mas não
das bolsas ainda estão defasados, gue postergar a entrada no merca- estão empregados em universida-
embora seu poder aquisitivo tenha do de trabalho ou quem tem bolsa. des é bastante comum, como relata

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Revista Adusp Julho 2008
Soraya Smailli, professora de far- da Amazônia. Um potencial enor- são das federais não são vinculadas:
macologia na Unifesp. “Eles traba- me de conhecimento brasileiro é podem desaparecer de um ano pa-
lham em volta do laboratório, com prejudicado pelas desigualdades re- ra o outro. A Unifesp partiu em
bolsa de pós-doc, mas sem víncu- gionais.” Apesar de CNPq e Finep poucos anos da estrutura da antiga
lo, esperando uma vaga. Preferem terem adotado fatores de compen- Escola Paulista de Medicina para
do que ocupar cargos abertos em sação em muitos dos seus editais, quatro novos campi: em Guarulhos,
outros Estados, como o Piauí, por a concorrência com os centros do- São Bernardo, Diadema e São José
exemplo. Quem sai, acaba dando tados de maior estrutura e tradição dos Campos. E recebeu um terreno
um jeito de fazer pesquisa. Hoje, ainda é um obstáculo a uma des- do MEC para construir um outro
em comparação com a década de centralização da pesquisa. em Osasco. Nenhum deles, ao que
1990, quando eu fazia doutorado, Aroni adverte que o modelo de tudo indica, vocacionado para o tri-
existem outros centros se desen- expansão das universidades federais pé ensino (com qualidade), pesqui-
volvendo no país, no Nordeste e traz novas preocupações: “Têm si- sa e extensão.
no Norte, com o direcionamento do abertas vagas nas federais, mas o Tanto Rizzo quanto Aroni acre-
de verbas federais para a pesquisa Reuni [Programa de Apoio a Planos ditam que a questão da falta de ver-
onde a situação era mais precária. de Reestruturação e Expansão das bas e das dificuldades em absorver
Mas o aumento de verbas não é su- Universidades Federais], do governo os doutores indica a inexistência de
ficiente”. um projeto na-
Apesar de as cional por parte
novas vagas es- “A perspectiva privada é cruel. Os docentes ficam nas do poder públi-
tarem na maior mãos dos proprietários, e em geral falta o mínimo co, que não sabe
parte no inte- lidar com a rápi-
rior, ou em ca-
de democracia”, sintetiza Soraya Smaili, da Unifesp. da expansão de
pitais distantes “Os patrões estão diminuindo o número de mestres doutores, que ele
dos principais mesmo estimula.
e doutores e aumentando o número de horas-aula”,
centros urbanos, “Precisaria haver
Rizzo considera diz Luiz Barbagli, do Sinpro-SP uma política pú-
que o caminho blica que de fato
inverso, das uni- investisse na pro-
versidades mais distantes para os federal, pretende aumentar o núme- dução de conhecimento”, diz o pre-
grandes centros, continua sendo o ro de alunos por professor. Isso não sidente do Andes. “Falta um projeto
objetivo de muitos daqueles que é um problema hoje, mas pode vir a de país que tenha necessidade de
passam nos concursos: “A expan- ser no futuro. A maneira como está um plano de ciência e tecnologia.
são nas federais tem como priori- acontecendo a expansão de vagas, Não existe um projeto mais amplo
dade o curso de graduação e pouca sem melhorar as estruturas, está au- que faz com que as pessoas possam
pesquisa. Então os doutores que mentando a pressão sobre as fede- trabalhar na especialidade em que
estão em lugares distantes passam rais”. Para o presidente da ANPG, elas se formaram na universidade”,
o tempo todo tentando ir para os o governo está tentando lidar com a completa Aroni.
grandes centros. Acontece isso em ampliação do ensino médio, e a con- Atualmente, para ser considera-
Tocantins, no Amapá... Porque eles seqüente demanda para a ampliação da uma universidade segundo a Lei
não têm estímulo para a pesquisa. da universidade pública, sem aumen- de Diretrizes e Bases da Educação
CNPq, Capes e Finep ainda estimu- tar os recursos como deveria. (LDB), uma instituição precisa ter
lam o centro. A Unifesp tem mais Soraya, da Unifesp, acrescenta apenas 30% de mestres ou douto-
condições de pesquisa das doenças uma outra complicação. Muitas das res no seu corpo docente. Assim,
tropicais do que as universidades verbas que estão bancando a expan- é possível que uma instituição seja

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Julho 2008 Revista Adusp
Daniel Garcia
Número de cursos e alunos de doutorado no Brasil
2003 2005
Cursos 986 1.097
Novos cursos 63 94
Alunos matriculados 40.213 43.800
Alunos titulados 8.094 10.261
Bolsas concedidas * 9.615 10.261
Investimento em bolsa R$ 116.689.032,97 R$ 141.608.389,00
Fonte: Capes

Número de cursos e alunos de doutorado em São Paulo


2003 2005
Cursos 413 440
Novos cursos 14 11
Alunos matriculados 20.140 20.348
Alunos titulados 4.489 4.800
Bolsas concedidas * 3.542 3.980
Investimento em bolsa R$ 40.925.422,79 R$ 52.923.525,00
Marina Nóbrega
Fonte: Capes

legalmente considerada uma univer- Distribuição dos docentes do ensino superior por tipo de IES (2005)
sidade, para todos os fins, mesmo
sem contar com um único doutor,
Doutorado Mestrado Especialização Graduação Notório saber
Privada 20.733 63.201 57.196 20.092 25
enquanto os concursos de admissão
Pública 40.597 27.461 15.016 7.704 15
nas instituições públicas, devido à Total 61.330 90.662 72.212 27.796 40
concorrência, já exigem às vezes o Fonte: Inep
título de pós-doutor. O tratamento
generoso concedido pela LDB aos Distribuição dos titulados por região
empresários do ensino, bem como
Notório
fatores correlatos — a inexistência Doutorado Mestrado Especialização Graduação saber
de estabilidade no emprego, inexis- Centro-Oeste 3.761 7.448 7.887 2.270 9
tência de autonomia para pesquisar, Nordeste 8.414 14.267 13.294 4.354 5
foco exclusivo na docência (mas em Norte 1.750 4.104 4.904 1.262 2
regime de contratação por hora-aula Sudeste 32.919 39.907 30.570 15.253 20
e não integral) e pouco investimento Sul 11.774 20.568 13.899 4.150 4
em equipamento — fazem da maio- Total 58.618 86.294 70.554 27.289 40
Fonte: Inep
ria das instituições privadas uma op-
ção de trabalho inóspita e precária,
inclusive para os doutores. Pior: es-
Distribuição dos titulados por tipo de IES
pecialmente para os doutores.
Não há muita viabilidade pa- Doutorado Mestrado Especialização Graduação Notório
ra pesquisa nesse ambiente, opina saber
Centros
Soraya. “A perspectiva privada é universitários
4.347 14.607 10.820 3.567 3
muito cruel, com sérios problemas, Universidades 50.544 51.360 30.829 15.437 20
longe até de serem civilizados. Os Faculdades 7.619 30.694 33.113 9.525 17
docentes ficam nas mãos dos pro- Total 62.510 96.661 74.762 28.529 40

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Revista Adusp Julho 2008
prietários, não há autonomia de um Paulo, segundo os dados do Sinpro, adequada) e criar cursos. Como
corpo que defina a linha de pes- os valores da hora-aula variam de diversas empresas do setor estão
quisa, e em geral falta o mínimo R$ 87,98 na Fundação Getúlio Var- abrindo seu capital na Bolsa de Va-
de democracia”, sintetiza. “No fim gas até R$ 13,38 na Universidade lores e buscam ganhos de escala,
dos anos 1990 algumas universida- Paulista (Unip). A LDB exige que ser universidade é um diferencial
des privadas até fixaram doutores e ao menos um terço dos docentes de “de mercado”. Até hoje, o MEC
laboratórios, porque isso começou uma universidade trabalhe em tem- nunca retirou de instituição alguma
a contar pontos para ter cursos de po integral. Só 37 das 86 universida- o status de universidade.
pós-graduação e obter verbas da des privadas do país cumprem esta Tal situação de absoluto des-
Capes e de pesquisa, principalmen- exigência, de acordo com avaliação controle das práticas dessas ins-
te da Fapesp. Mas agora elas estão do próprio MEC. “Houve um erro tituições privadas criou um para-
demitindo em massa”. de credenciamento dessas institui- doxo bem brasileiro: docentes que
Luiz Antonio Barbagli, presidente ções como universidades. No gover- nelas trabalham cursam doutorado
do Sindicato dos Professores de São no Fernando Henrique Cardoso, foi em outras instituições às escondi-
Paulo (Sinpro-SP), relata a desva- criado o centro universitário, para das dos empregadores, e correm
lorização, nos últimos dez anos, do educação sem pesquisa. Para creditar o risco de serem demitidos assim
título de doutor que obtiverem
nas universida- a titulação. É a
des privadas, re- instituição pri-
“Muitos pós-graduandos reclamam que quando as
ferindo-se à dis- vada atacando
tinção legal entre particulares descobrem que eles têm doutorado, ou a qualificação,
universidades, estão fazendo, os demitem. E as particulares têm força desmoralizando
centros universi- os esforços da
tários e faculda- muito grande no Conselho Nacional de Educação e no Capes. “Muitos
des: “O número MEC”, denuncia Allan Aroni, da ANPG pós-graduandos
de profissionais reclamam que
subiu e as univer- quando as par-
sidades consegui- ticulares des-
ram reduzir o salário. As pessoas que como universidade, tinha que ter exi- cobrem que eles têm doutorado,
conseguem a titulação às vezes não gido pesquisa. Creditadas ‘no escuro’, ou estão fazendo, os demitem. E
conseguem o aumento equivalente mesmo sem ter pesquisa, elas se aco- as particulares têm força muito
e até podem perder o emprego. Isso modaram. E se você não tem doutor grande no Conselho Nacional de
acontece há uns quatro anos. A idéia e regime integral, não tem pesquisa Educação e no MEC”, denuncia
da lei era uma convergência das pri- nem qualificação permanente. Tem Aroni. “Alguns professores che-
vadas para o conceito de universida- em poucas, como nas PUC, no Ma- gam a esconder o doutoramento”,
de. Mas os patrões foram mudando o ckenzie, na Fundação Getúlio Var- confirma o professor Diorge Kon-
conceito e adotando cada vez mais o gas, mas são instituições antigas.” rad, presidente da Seção Sindical
professor horista, a hora-aula. Estão Mas se muitas privadas não têm dos Docentes da Universidade Fe-
diminuindo o número de mestres e intenção de fazer pesquisa, ou de deral de Santa Maria.
doutores, criando novos planos de assumir os custos das exigências da Um projeto de lei do senador Ar-
carreiras e aumentando o número de LDB, porque querem tanto ser ou thur Virgílio (PSDB-AM) propõe
horas-aula.” se manter universidades? Porque as uma alteração na LDB para consi-
Como o nome indica, o professor universidades têm autonomia para derar uma instituição universida-
horista recebe apenas pelo número emitir diplomas, criar campus (no de apenas se tiver um mínimo de
de horas-aula concedidas. Em São caso, “filiais” seria a denominação 25% do seu corpo docente formado

49
Julho 2008 Revista Adusp
por doutores (e 50% de doutores
ou mestres). Nas universidades (pú-
blicas e privadas), que deveriam fa-
Silêncio da Capes
zer ensino, pesquisa e extensão, os
doutores constituem, pelos dados de A assessoria de imprensa da Capes foi contatada repetidas
2005, apenas 34% do corpo docente, vezes entre 25 de abril e 25 de junho, para que providenciasse uma
sendo que o setor público respon- troca de pontos de vista entre o repórter e diretores da coordena-
de por 27,2 pontos percentuais e o ção, ou ao menos respondesse a perguntas enviadas por e-mail em
privado por 6,8 pontos percentuais. junho, sobre a escassez de empregos qualificados para os doutores
Na justificativa do projeto, Virgí- formados no Brasil, e possíveis soluções e medidas para resolver o
lio aponta que, em 1996, “mesmo problema. Contudo, até o fechamento desta edição a Capes não se
algumas universidades públicas, fe- manifestou.
derais inclusive, poderiam ter difi-
culdades em recrutar um terço de
seus docentes com titulação ade- Univap, em São José dos Campos. recuperar suas anotações no labo-
quada ao magistério superior”, mas Transferiram para lá seu laboratório, ratório. Financiado pela Fapesp,
que atualmente “existem mestres e montaram um programa de ciências o equipamento de pesquisa está
doutores em profusão, a tal ponto biológicas e trabalharam com pes- agora de posse da Univap. “Eles
que algumas universidades se dão a quisas na Univap entre 1998 e 2007. usam o academicismo para pegar
prerrogativa de abrir concursos de “Teve equipes enormes para pesqui- recursos da Fapesp, da Finep, mas
ingresso somente para portadores de sar o genoma de câncer. Um sistema o professor é contratado pela CLT,
diplomas de doutorado”. Ademais, de pesquisa competitivo e bastante esquema de ‘peão’, e eles usam o
acrescenta, “a forma como foi redi- estimulante, dentro da rede coor- mesmo procedimento de qualquer
gido o artigo 52 dá a oportunidade denada pela Fapesp. A gente veio empresa para tirar o máximo de
para que se credenciem universida- tentar implantar a pesquisa em uma lucro. Não respeitam a formação
des sem um único doutor, o que pa- universidade privada, que em teoria dos doutores, que dão cursos que
rece um absurdo, na perspectiva da é uma fundação filatrópica”, recorda não têm nada a ver com suas áre-
obrigatoriedade de tais instituições Marina. “Nós servimos de grife den- as”. Desse modo, uma professora
construírem novos conhecimentos e tro da Univap por muitos anos. Ha- com pós-doutorado em filogenia foi
fazerem avançar a ciência.” via um diferencial de tratamento en- colocada para dar aulas de método
Mesmo que seja alterada a LDB tre o resto do corpo docente e nós. científico para alunos de Direito.
para que se estabeleça um mínimo Estávamos tão envolvidos que nem “Hoje esta menina está trabalhando
de doutores nas instituições priva- percebíamos essa diferença. A gente nos Estados Unidos”.
das, os contratos horistas, regidos tentou deslocar nosso laboratório Ao recordar sua própria experi-
pela Consolidação das Leis do Tra- ao perceber como eles lidam com os ência de pós-doutorado no exterior,
balho (CLT) e a falta de autonomia doutores. Nós queríamos sair des- Soraya lembra que, no final da sua
e apoio de longo prazo dificultam se domínio privado para o público, pesquisa, foi convidada para ficar na
a existência de um ambiente aca- para não deixar esse patrimônio de Europa. “Eu fui com vínculo, voltei
dêmico propício para aproveitar os equipamentos e pesquisa nas mãos e apliquei em pesquisa e ensino. Es-
doutores formados no país. do dono/reitor da Univap.” se é o cenário ideal. Mas se eu fosse
No fim dos anos 1990, o casal de Não houve tempo para isso. Em para o exterior sem vínculo, e rece-
pesquisadores Marina e Francisco 2007, Marina e a maior parte da besse um convite para ficar, sem ter
Nóbrega deixou o Instituto de Bioci- sua equipe foram demitidas duran- uma garantia de emprego no Brasil,
ências da USP para instalar um nú- te a hora do almoço. Desde então, talvez não tivesse voltado. E isso de-
cleo de pós-graduação de ponta na ela está impedida até mesmo de ve acontecer ainda mais hoje”.

50
Revista Adusp Julho 2008

No Sul,
mais vagas
nas federais (e cortes
no setor privado)
Daniel Cassol
Jornalista

As universidades federais do diz o professor William Schoe- número é de 2.834 docentes com
Rio Grande do Sul e Santa Cata- nau, presidente da Comissão Per- titulação de doutor no mesmo ano.
rina têm comemorado o aumento manente de Pessoal Docente da Atualmente, a UFRGS conta com
no número de vagas para profes- Universidade Federal de Santa 1.696 doutores, sendo 1.659 em
sores doutores, contratados em Maria (CPPD-UFSM). “O siste- Regime Jurídico Único e 37 subs-
grande parte sob regime de dedi- ma federal sofre uma expansão. titutos. No ano passado, 85 novos
cação exclusiva. Na outra face da A contratação é real”, concorda professores doutores ingressaram
moeda, porém, verificam-se maior o presidente da Associação dos na instituição.
carga de trabalho e pressões pela Docentes da UFRGS (Adufrgs), Já a UFSM, em 2007, chegou à
produtividade. Enquanto isso, as Eduardo Rolim. marca de 758 professores douto-
instituições particulares de ensino Dados de 2006 do MEC reve- res. Em 2005, havia 600 doutores
superior operam no mínimo exigi- lam a presença de 2.928 professo- na instituição, número que passou
do por lei. res com doutorado nas instituições a 690 em 2006. Schoenau acrescen-
“A maioria dos editais de con- federais de ensino superior no Rio ta que em 2007 foram nomeados
cursos exige titulação de doutor”, Grande do Sul. Nas particulares, o 22 professores adjuntos, com dou-

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Julho 2008 Revista Adusp
torado, e 13 professores assisten- ção, Fundae e Fatec, estão envol- volve, mas da observação do que
tes, com mestrado. “A diferença de vidas num esquema que desviou acontece com colegas: “Há muitas
números de doutores não se deve mais de R$ 40 milhões do De- evidências de pessoas ficando do-
apenas à contratação de novos do- partamento Estadual de Trânsi- entes. O organismo, como mensa-
centes, mas também à capacita- to, segundo a Polícia Federal e o geiro, está dizendo que algo não
ção dos docentes já existentes na Ministério Público Federal, e um está bem”.
UFSM”, explica. O professor tam- ex-reitor chegou a ser preso. Para Bianchetti, trata-se de
bém destaca a abertura de editais O presidente da Associação um processo que tem origem na
para a contratação de professores dos Docentes da UFRGS, Edu- década de 1960, nos Estados Uni-
nas duas novas instituições gaúchas ardo Rolim, lembra que é preciso dos, totalmente assimilado no
que contam com a participação da ampliar os recursos para pesquisa: Brasil nos dias de hoje, e gera
UFSM na administração: o Centro “Ainda que haja uma expansão, um clima de concorrência entre
de Educação Superior Norte do o recurso é muito concentrado”. instituições e profissionais. Outro
Rio Grande do Sul (Cesnors) e a Em relação à carga horária de problema, na sua opinião, é que
Universidade Federal do Pampa professores doutores em sala de a ampliação de vagas nos pro-
(Unipampa). aula, ele avalia como positiva a gramas de pós-gradução não vem
Porém, para o presidente da distribuição feita pela instituição, sendo acompanhada de oferta de
Seção Sindical dos Docentes da que garante oito horas de sala de trabalho para os novos doutores
UFSM (Sedu- que a cada ano
fsm), Diorge se formam. A
Konrad, o cres- “Há um excesso de exigências e uma carência de entrada nos
cimento no qua- programas de
opções. Há muitas evidências de pessoas ficando
dro da universi- mestrado e dou-
dade vem sendo doentes. O organismo está dizendo que algo não está torado acaba
acompanhado adquirindo sta-
bem”, declara o professor Lucídio Bianchetti, da UFSC
de aumento da tus de emprego
carga horária de para boa parte
trabalho. “O au- dos estudantes
mento do trabalho é sensível. Há aula para os professores, na gra- que não conseguem colocação no
mais carga horária em sala de aula duação e na pós-graduação. “A mercado. De qualquer modo, em
e projetos de extensão”, aponta. UFRGS cumpre bem o seu papel 2007 a UFSC contava com 1.313
Konrad critica uma situação que de pesquisa, graduação e exten- professores doutores, enquanto
atinge as universidades federais são”, conclui. em 2006 o número era de 1.248.
em geral e a UFSM em particular: Para além da discussão sobre O período de ampliação do
a busca por maior remuneração vagas no mercado de trabalho pa- mercado de trabalho para douto-
leva professores e departamentos ra doutores, o professor Lucídio res nas universidades privadas do
a captarem recursos na iniciativa Bianchetti, do programa de pós- Rio Grande do Sul terminou quan-
privada. graduação em Educação da Uni- do perceberam que não se concre-
“O arrocho salarial gerou esta versidade Federal de Santa Cata- tizou a expectativa de aumento do
saída individual”, diz o professor rina (UFSC), tem um outro ponto número de estudantes de gradua-
da UFSM. “O grave é a lógica de vista: “Há um excesso de exi- ção. “Houve um período de bons
privada para encontrar canais de gências e uma carência de opções. investimentos, mas vivemos uma
trazer o setor privado. Isso pode Isto está levando os pesquisadores reversão desse processo”, afirma
até abrir para ilícitos”. Duas fun- à exaustão”. A conclusão não vem Amarildo Cenci, diretor do Sindi-
dações ditas “de apoio” à institui- apenas dos estudos que desen- cato dos Professores do ensino pri-

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Revista Adusp Julho 2008
vado (Sinpro-RS). Sem alcançar os sores, sendo que 653 são mestres estudantes das classes C e D em
resultados esperados, as particula- e 672 doutores. A Unisinos tem busca de qualificação. “A tendên-
res passaram a demitir professores 329 doutores em seu quadro (321 cia é que a população entre num
com doutorado e aumentar a carga professores e oito funcionários). curso superior. Vai haver um au-
horária dos demais. De acordo com o Sinpro-RS, um mento da demanda”, pondera a
“A Unisinos demitiu um con- doutor adjunto em regime de 40 economista da Fetee-Sul, admi-
tingente significativo de douto- horas semanais recebe em torno tindo no entanto que não haverá
res, para enxugar a folha de paga- de R$ 6 mil mensais, enquanto o retorno a uma situação de ple-
mento. Ocorreu o mesmo com a vencimento de professores titu- na procura. Para ela, o futuro do
Ulbra”, diz Cenci, referindo-se a lares, há mais tempo nas institui- ensino superior privado no Rio
duas grandes instituições privadas ções, pode chegar a R$ 10 mil. Grande do Sul é “incerto”, pois
gaúchas: a Universidade do Vale Uma característica do Rio estaria vivendo processo seme-
do Rio dos Sinos e a Universidade Grande do Sul é a presença de lhante ao ocorrido em São Paulo,
Luterana do Brasil. A maior parte universidades comunitárias, loca- em relação à proliferação de insti-
das demissões ocorreu em 2007. lizadas em cidades importantes do tuições empresariais, voltadas ex-
“O objetivo tem sido cortar interior como Caxias do Sul, Passo clusivamente para a obtenção de
custos”, resume Ecléia Conforto, Fundo, Santa Cruz do Sul. Mesmo lucro. “Aos poucos, percebemos
economista da Federação dos Tra- neste setor o mercado de traba- a entrada do conceito de efici-
balhadores em ência na educa-
Estabelecimen- ção”, constata.
tos de Ensino
No RS, em apenas 10 anos (1996-2006) o número Em apenas dez
do Estado do de instituições privadas pulou de 27 para 92. Mas anos, entre 1996
Rio Grande do e 2006, o núme-
Sul (Fetee-Sul).
houve uma redução do número de professores horistas ro de institui-
O ajuste maior em sala de aula e um aumento na carga horária do ções privadas no
vem ocorrendo Estado pulou de
professor doutor. Há relatos de turmas com 200 alunos
na carga horária 27 para 92.
dos doutores. Na Universi-
“Aconteceu uma redução do núme- lho tem se tornado cada vez mais dade Estadual do Rio Grande do
ro de professores horistas em sala restrito. Com problemas políticos Sul (UERGS) a situação é ainda
de aula e um aumento na carga e administrativos, algumas destas pior. Criada em 2001, a instituição
horária do professor doutor”, diz. instituições vivem profunda crise. passa pelo seu terceiro governo e
Além do aumento na carga horária É o que vem ocorrendo na Uni- vive um momento de crise. Com
em sala de aula, as instituições têm versidade Regional da Campanha estrutura precária, salários conge-
aumentando o número de alunos (Urcamp), que atende a chamada lados e sem novos concursos para
por professor. “Há relatos de tur- Metade Sul do Estado, e na Uni- professores, a “saída” para os pro-
mas com até 200 alunos”, conta versidade de Cruz Alta (Unicruz), fessores têm sido mesmo... sair da
Ecléia. que chegou a sofrer intervenção instituição. “Muitos doutores estão
Ela afirma que as universida- do Ministério Público e afastamen- fazendo concurso fora do Estado,
des particulares gaúchas têm pro- to do reitor, em 2005. nas federais ou mesmo na iniciati-
curado operar no limite da exigên- Ecléia prevê um período de re- va privada”, diz Amarildo Cenci.
cia do Ministério da Educação, de cuperação do setor privado, em A maioria dos 90 docentes da ins-
um terço de professores mestres vista do crescimento econômico tituição tem doutorado. O salário
e doutores no corpo docente. A do país, que está levando às uni- médio, de R$ 4 mil, é o mesmo
PUC-RS conta com 1.565 profes- versidades um número maior de desde a fundação da UERGS.

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Julho 2008 Revista Adusp

Pós-graduação:
estamos no
caminho certo?
Fabio Bessa Lima e José Cipolla Neto
Professores do Instituto de Ciências Biomédicas da USP

O vertiginoso crescimento da pós-graduação no Brasil teve como resultado


um crescimento animador na produção acadêmica nacional, que atinge
hoje cerca de 1,5% da publicação científica mundial, sendo motivo
de grande orgulho. Mas esses indicadores escondem uma realidade
preocupante no que diz respeito ao destino dos nossos pós-graduandos.
Que mercado de trabalho os aguarda? Se, por um lado, a pós-graduação
tem sido cada vez mais rigorosamente avaliada pela Capes, por outro lado
os profissionais gerados por essa política não encontram trabalho

A
pós-graduação alcançou de trabalho que os aguarda? Estaria a preencher esse quadro crescente de
nos últimos anos enor- essa animadora efervescência acadê- demanda por professores de maior
mes proporções, com mica adequadamente dimensionada qualificação para a tarefa de oferecer
números que impressio- às realidades do país? ensino e pesquisa de maior e melhor
nam dada sua dimen- Um aspecto importante a se con- qualidade.
são, e que podem ser siderar é que o crescimento da pro- No entanto, a oferta de mão-de-
facilmente constatados em consultas dução acadêmica, acompanhado da obra crescente e de qualidade criou
no site da Capes. Paralelamente, um formação de um quadro crescente de um problema sério e perturbador pa-
crescimento vertiginoso e animador mestres e doutores, foi seguido pela ra o mercado docente nas universi-
na produção acadêmica, atingindo frenética criação de escolas particu- dades particulares: o seu alto custo.
cerca de 1,5% da publicação cientí- lares de nível superior com a inten- Juntamente a isto, outro problema se
fica mundial, é motivo de grande or- ção de ampliar o número de vagas somou: as universidades particulares,
gulho para nós. Toda essa impressiva nas universidades brasileiras. Deve- em sua imensa maioria e por diversas
atividade é atribuída ao vertiginoso se entender que este movimento, a razões (justificáveis ou não), não têm
crescimento da pós-graduação no pa- princípio, procurou cumprir a meta interesse em realizar outra atividade
ís. Os números exibidos, contudo, de facilitar o acesso de camadas cada além do ensino. Não incentivam os
não revelam uma realidade subjacen- vez maiores da população a uma edu- seus acadêmicos a buscar auxílio fi-
te com respeito ao destino dos nos- cação superior. Assim, o aumento da nanceiro para o desenvolvimento de
sos pós-graduandos. Qual o mercado formação de mestres e doutores viria projetos acadêmicos de pesquisa e

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Revista Adusp Julho 2008
nem buscam assegurar condições de pamentos) para a execução das suas zem são empresas multinacionais com
infra-estrutura mínima para que o pesquisas é um aspecto fundamental sede fora do nosso território.
trabalho acadêmico de pesquisa pos- do problema. Agências de fomento Estes são aspectos que requerem
sa se realizar. Desta forma, seguiu-se governamentais nem sempre estão uma atuação mais atenta de políticas
rapidamente um sucateamento da capacitadas ou têm condições orça- públicas voltadas para a pós-gradua-
mão-de-obra acadêmica. Já que não mentárias para enfrentar os custos da ção. Não cremos que seja acertado
havia interesse na pesquisa e era ne- crescente demanda para a pesquisa. descaracterizar ou reduzir o grau de
cessária a contratação de professores Ao mesmo tempo, não surgem agên- rigor na avaliação dos cursos de pós-
quase que exclusivamente para o en- cias de fundo privado para disputar a graduação, uma vez que essa políti-
sino, a opção mais econômica (e mais demanda por pesquisa científica. Seja ca de avaliação, independentemente
lucrativa) foi a de contratar pessoal a pesquisa dita básica, seja a aplicada. dos ajustes que precisam ser feitos,
apenas para dar aulas e para cumprir Nos países desenvolvidos, o apro- tem sido indutora da melhoria da
meramente um programa de ensino veitamento da mão-de-obra especiali- qualidade dos cursos. É necessária
mínimo de acordo com as diretrizes zada gerada pelos cursos de pós-gra- uma política pública que preserve a
do MEC. duação se dá na esfera privada, com- valorização dos mestres e doutores,
É fácil se deduzir daí que o merca- preendida pela indústria, empresas incentivando o seu aproveitamento
do de trabalho, em princípio, promis- de prestação de serviços e outras. Em em instituições superiores de ensino
sor, foi completa- e pesquisa e ga-
mente desvirtu- rantindo o apri-
ado. Se, por um Grande esforço precisa ser implementado no sentido moramento da
lado, a Pós-Gra- de cobrar maior envolvimento e participação das infra-estrutura;
duação, seja em e exigindo, por
nível nacional ou
universidades particulares e melhoria das públicas. sua vez, o maior
regional, tem sido Isto irá exigir uma postura governamental mais engajamento dos
cada vez mais ri- recém-doutores
gorosamente ava-
vigilante e mais intensamente fiscalizadora da na tarefa de ge-
liada, ampliando- qualidade e das finalidades dos cursos superiores ração do conhe-
se os critérios pa- cimento.
ra que um dado Um grande
curso ganhe a chancela de qualidade nações que há pouco estavam em um esforço precisa ser implementado no
emitida pela Capes, por outro lado patamar de desenvolvimento similar sentido de cobrar maior envolvimen-
os profissionais gerados pela políti- ao nosso, como a Coréia do Sul, ocor- to e participação das universidades
ca da pós-graduação não encontram reu um grande salto de crescimento particulares, ao lado de igual esforço
um mercado voltado para o seu real com a criação e o aproveitamento de para a melhoria das públicas. Isto irá
aproveitamento, gerando desânimo e tecnólogos na indústria. Essa fatia de exigir uma postura governamental
incerteza nos pós-graduandos quanto mercado tem sido capaz de absorver mais vigilante e mais intensamen-
ao seu destino profissional. 80% da mão-de-obra gerada pelos te fiscalizadora da qualidade e das
As instituições de nível superior cursos de pós-graduação nestes países. finalidades dos cursos superiores.
públicas têm uma grande limitação Seria este um caminho para os nossos Esse tipo de movimento começa a
quanto à tarefa de criar condições de pós-graduandos? Neste aspecto parti- se esboçar em um ou outro curso
aproveitamento dos profissionais ge- cular, estamos ainda em uma fase em- (como o que ocorreu recentemente
rados pelos cursos de pós-graduação. brionária. Poucas são em nosso meio com alguns cursos de direito e esco-
Novamente, o alto custo desses pro- as indústrias interessadas em absorver las médicas) e, uma vez intensifica-
fissionais, bem como da infra-estru- pessoal com formação e capacitação da esta atuação, as expectativas são
tura (laboratórios, bibliotecas, equi- tecnológica. Ainda assim, as que o fa- promissoras.

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Julho 2008 Revista Adusp

de Produção
doutores na área de
humanidades: excesso
ou má distribuição?
Ana Paula Hey
Professora da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp)
Afrânio Mendes Catani
Professor da Faculdade de Educação da USP

Para entender o grande aumento na formação de doutores no país,


deve-se considerar que inexiste correlação entre a titulação adquirida
e o correspondente posto no mercado de trabalho, pois formação e
mercado são esferas sociais autônomas, reguladas de forma distinta e
com lógicas de funcionamento próprias. O aumento dos concluintes
no ensino médio e o acesso às IES de grandes contingentes de
alunos vão elevar o patamar dos atuais 3.000 doutores/ano em
humanidades. Não cremos em excesso de doutores; há que se
pensar na distribuição (regional) destes titulados para fortalecer as
instituições e elevar a cultura científica em todo o território nacional

A
Capes classifica o co- dades que, em nossa classificação, um aparato institucional garantido
nhecimento em nove englobaria as áreas de Ciências Hu- pelo Estado brasileiro, ao lado de
grandes áreas (Ciên- manas, Ciências Sociais Aplicadas e uma política nacional de formação de
cias Agrárias; Ciências Lingüística, Letras e Artes. cientistas no país e no exterior e da
Biológicas; Ciências da Nos anos 1970, quando a pós-gra- constituição de centros de pesquisa
Saúde; Ciências Exatas duação no Brasil começa a se institu- nacionais. Nesse sentido destacam-
e da Terra; Ciências Humanas; Ci- cionalizar, o cerne da formação esta- se a Capes, o Conselho Nacional de
ências Sociais Aplicadas; Engenha- va na titulação de mestres e doutores Desenvolvimento Científico e Tec-
rias; Lingüística, Letras e Artes; e para o fortalecimento do sistema uni- nológico (CNPq) e a Financiadora
Multidisciplinar), cada uma com vá- versitário e das funções de Estado. de Estudos e Projetos (Finep). As
rios campos disciplinares correspon- Para a consolidação de um sistema duas primeiras ficam responsáveis
dentes. Neste artigo abordaremos a de formação de acadêmicos e de pes- pela formação e aperfeiçoamento de
produção de doutores em humani- quisadores observa-se a criação de docentes do ensino superior e pela

56
Revista Adusp Julho 2008
política na área, sendo a última mais
Número de doutorandos no Brasil – 1998-2006
voltada ao financiamento das áreas
tecnológicas. Em São Paulo, finan- %
Ciências Total de Humanidades
ciada pelo governo do Estado, há a Ciências Total de
Área Humanas Sociais Lingüística Humanidades todas as em relação
Fapesp, instituída em 1962. Aplicadas áreas ao total
No Brasil há cerca de 316 mil pro-
1998 653 281 167 1101 3949 27,88
fessores universitários, dos quais 70
mil são doutores e 115 mil mestres. 1999 755 336 226 1317 4853 27,13
Destes doutores, 56 mil vinculam-se 2000 892 441 257 1590 5335 29,80
ao modelo institucional de univer-
2001 1025 478 322 1825 6040 30,21
sidade, estando 42 mil nas públicas.
2002 1139 613 393 2145 6894 31,11
Tais dados indicam que existe gran-
de contingente de professores que 2003 1286 736 415 2437 8094 30,10
ainda não são doutores vinculados 2004 1329 755 452 2536 8112 31,27
às instituições de educação superior
2005 1495 813 496 2804 8989 31,19
(IES) em seus diferentes formatos
institucionais (universidades, centros 2006 1503 890 617 3010 9365 32,14
universitários, faculdades etc.). Deve-
Total no período 18.765 61.631
se considerar que na área de Ciências
Humanas, que abarca Antropologia, Fonte: CAPES

Arqueologia, Ciência Política, Edu-


cação, Filosofia, Geografia, História, houve aumento de 237% (de 3.949 assistente-doutor. Para ocupá-lo, era
Psicologia, Relações Internacionais, para 9.365) de novos titulados, en- necessário ter concluído e defendido
Sociologia, Teologia, a realização do quanto em humanidades o incre- tese de doutorado. Em Humanida-
curso de doutorado direcionava seu mento foi de 273% (de 1.101 para des, por exemplo, eram raros os ca-
portador à carreira docente e à reali- 3.010). Em números relativos, tem- sos inferiores a oito ou dez anos para
zação de pesquisa acadêmica, em ins- se o aumento gradativo (pouco mais possuir o título de doutor — hoje,
tituições públicas (principalmente) e de 4%) dessa última área em relação com a carreira docente modificada,
privadas, através do ingresso por con- ao total de titulados, o que indicaria é o degrau inicial; todos os concursos
curso. Ou seja, a formação esteve vol- a paridade de quase 1/3 de titulados exigem dos candidatos a posse desse
tada à reprodução de quadros. Isso em nível de doutorado nesse domí- título. O Anuário Estatístico da USP
ocorria também em vários segmentos nio em relação aos demais. 2007 é significativo a respeito: dos
da área de Ciências Sociais Aplicadas Nas décadas de 1970 e 1980, e em 5.358 professores da instituição em
(carreiras de Administração, Ciên- boa parte dos anos 1990, a carreira 2006, 4.368 enquadravam-se no regi-
cias Contábeis, Direito, Economia, docente nas universidades públicas me de dedicação integral à docência
Serviço Social, Turismo, Arquitetura do Estado de São Paulo estrutura- e à pesquisa, e 96,66% eram doutores
e Urbanismo, Biblioteconomia, Ci- va-se em seis níveis, dos auxiliares (apenas 179 não possuíam o título).
ência da Informação, Comunicação, de ensino (matriculados em progra- Nas universidades federais, o dou-
Demografia e Planejamento Urbano ma de pós-graduação em nível de torado transforma seu detentor em
e Regional) e na de Lingüística, Le- mestrado) ao cargo de professor ti- professor adjunto, penúltimo degrau
tras, Artes e Música. tular, obtido em concurso público da carreira. Parcelas significativas do
A partir dos anos 1990 é visível de provas e títulos, representando corpo docente encontram dificulda-
grande mudança nas taxas de forma- o ápice de trajetória exitosa em um des para conquistá-lo, em especial
ção de doutores em todas as áreas campo de conhecimento. No meio da em instituições (ou campi) distantes
do conhecimento: de 1998 a 2006 carreira estava o cargo de professor dos centros hegemônicos. Há “fila

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Julho 2008 Revista Adusp
de espera” e prioridades, pois as saí- cia legal de “1/3 do corpo docente, quisa ou em instituições produtoras
das para a qualificação dos docentes pelo menos, com titulação acadêmica e reguladoras de políticas públicas
levam em conta as necessidades de de mestrado e doutorado” (LDB, para o setor. Com a autonomização
serviço, sob a pena de desfalcar por 1996, art. 52, II). Na diversidade dos do campo universitário e a configu-
completo o quadro efetivo das IES. formatos das IES não ocorre a corre- ração assumida nos últimos 20 anos,
Situação semelhante ocorre em deze- lativa absorção desses titulados, pois em que o setor privado representa
nas de universidades estaduais e, em maior titulação significa maior custo o grosso de sua estrutura e existe
alguns casos, a situação é ainda mais com o docente ou a desvalorização uma regulamentação do mercado
grave naquelas criadas há pouco. do título. Isso assim se materializa: a) independente da esfera da formação
Em entrevista à Pesquisa Fapesp a não correspondência entre o título em nível de pós-graduação, há tam-
(n. 143, p. 10-15, janeiro de 2008), Léa e o valor da hora-aula docente, já bém o descolamento da titulação
Velho declara que os países que inte- que a instituição pode estipular um da possibilidade de um posto cor-
gram a Organização para a Coopera- plano de cargos e salários em que a respondente, pois o jogo passa a ser
ção e Desenvolvimento Econômico titulação não é fator determinante; dominado por outros interesses.
(OCDE) produzem quase metade das b) o papel secundário do título na Desta forma, para entender o
riquezas do mundo, e a maioria da- carreira, pois a “utilidade” do profes- grande aumento na formação de
queles que se tornam doutores vão sor para a instituição dependerá em doutores no país (e o possível ex-
trabalhar na in- cesso), deve-se
dústria. “Não considerar, sobre-
se pode obrigar “Parcelas significativas do corpo docente das tudo, que inexiste
uma empresa universidades federais encontram dificuldades correlação entre
a contratar um a titulação adqui-
doutor (...) Faz
para conquistar o doutorado, em especial naquelas rida e o corres-
parte da raciona- distantes dos centros hegemônicos. Há ‘fila de espera’ pondente posto
lidade da empre- no mercado de
e prioridades, pois as saídas para qualificação dos
sa inovar quando trabalho, pois for-
ela percebe que docentes levam em conta as necessidades de serviço” mação e mercado
se tornará mais são esferas sociais
competitiva e ga- autônomas, regu-
nhará ou manterá uma posição no maior grau de seu envolvimento com ladas de forma distinta e com lógi-
mercado.” No Brasil, quase como uma a tarefa docente (recrutar alunos, cas de funcionamento próprias. O
norma para a empresa manter-se no produtividade etc.) e com a política aumento dos concluintes no ensino
mercado, “é mais vantajoso comprar universitária local (cargos de chefia, médio e o acesso às IES de grandes
equipamentos ou licenciar tecnologias reitorias, comissões etc.), que vai lhe contingentes de alunos, aliados à
estrangeiras. Não é por excesso de conferir possibilidades de carreira implantação gradativa dos acordos
doutores disponíveis que elas vão pas- e aumento de salário. Nestes casos de Bolonha, que já começam a ser
sar a contratar.” a pesquisa deixa de assumir função adaptados ao Brasil, vão elevar o pa-
As universidades públicas absor- protagonista, motivação inicial da re- tamar dos atuais 3.000 doutores/ano
vem cada vez menos os doutores: no alização do curso de doutorado. em humanidades. Não cremos em
sistema de educação superior brasi- A institucionalização da pós-gra- excesso de doutores; há que se pen-
leiro há 1,2 milhão (26%) de univer- duação correspondeu, durante anos, sar, sim, na distribuição (regional)
sitários no setor público e 3,5 milhões ao direcionamento de seus titulados destes titulados para o fortalecimen-
(74%) no privado. As universidades a um posto determinado no campo to das instituições já existentes em
privadas não contratam titulados com universitário brasileiro — em IES, todo o território nacional e na eleva-
esse grau, havendo apenas a exigên- em agências fomentadoras de pes- ção da cultura científica no país.

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