Você está na página 1de 66
Organizagao Social Naturalmente © que antes de mais nada, e acima de tudo, caracteriza. a sociedade brasileira de_principios do. séc. XIX, ¢ a cscravidio. Em todo lugar onde encontramos tal instituicao, aqui como alhures, nenhuma outra levow-lhe a palma na influén- cia que exerce, no papel que representa em todos os setores da vida social. Organizagio econémica, padrées materiais e morais, nada hé que a presenca do trabalho servil, quando alcanca as proporees de que fomos testemunhas, dei de ating, de um modo profundo, seja diretamente, soja por suas repercussdes remotas, Nao insistirei aqui sobre a influéncia material ¢ moral da eseravidio no seu cardter geral, 0 que a Histéria ¢ a Sociologia {é_regisraram tantas vezcs,Sejt ao_ tempo, seja no espago. A literatura sobre o assunto é ampla, e nada The poderiamos acres- centar sem repisar matéria fartamente debatida e conhecida. Ficare aqui apenas no que é mais peculiar ao noso eas. Porque a escravidao brasileira tem caracteristicos prOprios; alis, os mais salientes, tem-nos em comum com todas as coldnias dos trépicos americanos, nossas semelhantes; ¢ sio tais caracteristicos, talvez, ‘mais ainda que outros comuns A escravidio em geral, que mode- laram a sociedade brasileira. A escravidio americana’ nfo se filia, no sentido histérico, a nenhuma das formas de trabalho servil que vém, na civilizagio beidental, do mundo antigo ou dos. séculos que’0- seguem; en deriva de uma ordem de acontecimentos que se inaugura no sée. XV com os grandes descobrimentos ultramarinos, ¢ pertence intei- ramente a cla, J notei acima, incidentemente, que o trabalho servil, tendo atingido no mundo antigo proporgées consideraveis, declinara em seguida, atenuando-se neste seu derivado que foi ‘9 servo da gleba, para afinal se extinguir por completo em quase toda a civilizacio ocidental Com o descobrimento da América, ele renasce das cinzas com um vigor extraordinirio. Esta circuns- tiincia precisa ser particularmente notada, O fato de se tratar, no caso da escravidio americana, do renascimento de uma insti- tuigio que parecia para sempre abolida do Ocidente, tem uma importincia capital. A ele se filia um conjunto de conseqiiéncias que fario do instituto servil, aqui na América, um processo ori- Formagdo do Brasil Contemporinco 209 ginal e proprio, com repercussbes que somente vistas de tal Angulo sf poderto avaliar 4 Ressalta isto da comparagio que podemos fazer daqueles dois mowenies hier dn escrvidio 0, do mundo amigo © do modem, No primeiro, com o papel imenso que representa, © tseravo nfo é genio a resutante Ge-um processo evolutivo natural cujas raizes se prendem a um pasado remoto; e ele se entrosa por isso perfeitamente na estrutura material e na fisionomia moral da sociedade antiga. Figura nela de modo tio espontneo, aparece mesino tao necessirio ¢ justificdvel como qualquer outro elemento constituinte daquela sociedade. E neste sentido que se compreende 4 tio citada e debatida posigao escravista de um fil6sofo como Arist6teles, que, pondo-se embora de parte a apreciacdo que dele se poset fazer como peasador, representa no entanto, nos seus mais elevados padrées, 0 modo de sentir e de pensar de uma época. A escravidao na Grécia ou em Roma seria como o salariado em nossos dias: embora discutida ¢ seriamente contestada na sua legitimidade por alguns, aparece contudo aos olhos do con- junto como qualquer coisa ‘de fatal, necessério e insubstituivel. Coisa muito diferente se passari com a escravidiio moderna, que é a nossa. Ela nasce de chofre, nfo se liga a passado ou fadigio alguma, Restaura apenas uma instituigao justamente quando ela j& perdera inteiramente sua razo de ser, e fora subs- tituida por outras formas de trabalho mais evoluidas. Surge assim ‘como um corpo estranho que se insinua na estrutura da clvitizagio ocidental, em que jé nfo cabia. E vem contrariar-lhe todos os padres morais © materiais estabelecidos. Traz uma revolucio, mas nada a prepara. Como se explica entio? Nada mais particular, mesquinho, unilateral. Em vez de brotar, como a escravidao do mundo antigo, de todo 0 conjunto da vida’ social, material e moral, ela nada mais sera que um recurso de oportunidade de que lan: gato mao os paises da Europa a fim de explorar comercialmente 05 vastos territérios e riquezas do Novo Mundo. & certo que a escravidao americana teve na peninsula seu precursor imediato no cativeiro dos mouros, e logo depois, dos negros africanos, que as primeiras expedigées ultramarinas dos portugueses trouxeram para a metrépole como presas de guerra ou fruto de resgates. Mas no foi isto mais que um primeiro passo, prekiidio e preparagio do grande drama que se passaria na outra margem do Atkintico. E ai que verdadeiramente renascerd, em proporgdes que nem 0 mundo antigo conhecera, o instituto jé condenado e priticamente abolido. Por este recurso de que gananciosamente langou mio, pagaré a Europa um pesado tributo. Podemos repetir 0 conceito que ex- prime a propésito John Kelis Ingram: “Not long after the disap- 270 Caio Prado Kinior pearance of serfdom in the most advanced communities, comes into sight the modern system of colonial slavery, which, instead of being the spontaneous outgrowth of social necessities, and subser- ving temporary needs of human development, was politically as ‘well as morally a monstruous aberration(1). N&o é num terreno de “moral absoluta” que precisamos ou devcmos nos colocar para fazer 0 juizo da escravidao modema. J4 sem falar na devastagao que provocard, tanto das populagses indigenas da América, como das do continente hegro, 0 que de mais grave determinaré, entre os povos colonizadores © sobretudo em suas colénias do’ Novo Mundo, € 0 fato de vir a nova escravidao desacompanhada, 20 contrario do que se passara no mundo antigo, de qualquer ele- mento construtiv, a nio ser num aspecto restrito, puramente material, da realizagio de uma empresa de comércig: um negécio apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores. E por isto, para objetivo tio unilateral, puseram os povos da Europa de lado todos os principios e normas essenciais em que se fundava a sua civilizagio e cultura. O que isto representou para eles, no correr do tempo, de degradagio e dissolucio, com repercussées aque se vio afinal manifesta no proprio tereno do progrsso da prosperidade material, nao foi ainda bem apreciado e avaliado, nem cabe aqui abordar o assunto, Mas tera sido este um dos fatores, e dos de primeiro plano, do naufrigio da civilizagio ibérica, tanto de uma como de outra de suas duas nagées. Foram elas que mais se engajaram naquele caminho; serio elas também suas prineipais vitimas(2). Muito mais grave, contudo, foi a escravidio para as nascentes coldnias americanas. Elas se formam neste ambiente deletério jue ela determina; o trabalho servil seri mesmo a trave mestra le sua estrutura, © cimento com que se juntario as pecas que as constituem. Oferecerio por isso um triste espetdculo humano; e 0 exemplo do Brasil, que vamos retragar aqui, se sepete mais ou menos idéntico em todas elas. Mas h4 outra circunstancia que vem caracterizar ainda mais desfavoravelmente a escravidio modema: & 0 elemento de que se teve de langar mao para alimenté-la, Foram eles os indigenas da América e 9 nogro africano, povos de nivel cultural fafimo, (1) John Kelis Ingram, Slavery (2) eitgitera tnbtan te ppel prominente no retbelecimento aa, set abs any sey se comets the 8 cquase monopélio do triflco negreito, pelo qual, a nasio. chegou a6. a tomar armas, Mar ndo sfreu fo fundamente os fetes danosos da exeravido, orgie 200 papel fol sobretudo eat de intermedi, O trabalho servi mance Bishtow pé'na Ingateers.proprianent. Formagdo do Brasil Contempordneo 271 comparado ao de seus dominadores(3). Aqui ainda, a comparag’o: ‘com que ocorreu no mundo antigo é ilustrativa. Neste ultimo, a eseravidao se forneceu de povos e ragas que muitas vezes 86 equiparam & seus conquistadores, se ndo os superam. Contribuirart assim para estes com valores culturais de clevado teor. Roma. no teria sido o que foi se no contasse com o que Ihe trouxerait seus escravos, recrutados em todas as partes do mundo conhecido, e que nela concentram 0 que entéo havia de melhor e cultutal- mente mais elevado. Muito Ihes deveu ¢ muito deles aprendett a civilizago romana, O escravo no foi nela a simples maquina de trabalho bruto ¢ inconsciente que ¢ 0 seu sucessor americang, Na América, pelo contrério, a que assistimos? Ao recrutie mento de_povos bésbaros.e somibarbaros, arrancados do. 36u habitat natural ¢ inclldos, sem transigio, nama clilizagio intel ramente estranha, E ai ee, ‘os esperava? A escravidio no sew ior cardter, 0 homem reduzido & mais simples cxpressio, pouco: Sendo nada iatis que 0 iracional: “Instrumento vivo de tabelboly (© chamaré Perdiggo Malheiro(4). Nada mais se queria dele, € nada mais se pediu ¢ obteve que a sua forca bruta, material. Esforgo muscular primério, sob a diregio © agoite do feitor, Da mulher, mais a passividade da fémea na copula. Num © noutro caso, 0 ato isico apenas, com exclusio de quaiquer outro ele mento ou concurso moral. A “animalidade” do Homem, nfo a sua “humanidade.” ‘A contribuigio do escravo preto ou indio para a formagéo brasileira, é além daquela energia motriz quase nula. Nao que deixasse de concorrer, e muito, para a nossa “cultura”, no sentido amplo em que a antropologia emprega a expressio; mas é antes tia contribuigao passiva, resultamte do simples fato da. presenga dele ¢ da considerivel difso do seu sang, que uma interven Gao ativa e construtora, O eabedal de cultura que trazconsigo da selva americana ou africana, € que nfo quero subestimar, & abafado, e se nio aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material ¢ moral a que se_vé reduzido seu. portador. Eaponta for isso apenas, muito tmidamente, aqui e acold. Age mais como Fermento corraptor da outra cultura, a do senhor branco que se Ihe sobrepoe(3). 3) Esta observagio no serin tho esata com relagio a certs indie genas smeticans, como do: Menico'e do alipno ain, sos congue ESdores nao tvessom, de flee com ferocidade. quase sem precedente, asa de todos seus valores cultura, (4) "A eseravidio no. Bras. 32 parte, 138, (5), Tao ene oon paiumeite @ cae do sretino rl oso. que terultou do ammélgama. de citolicimno © paganismo, em doses FeRis, que formar o Lunde. rligiow de boa parte do. Dra, Relgae 272 Caio Prado Jinior E a esta passividade alids das culturas negras e indigenas no Brasil que se" deve 0 vigor com que a do Branco. se impos predominou inconteste, embora fosse muito reduzido, relativa- mente & das outras ragas, a sua contribuicéo demogrifica. O negro © 0 indio teriam tido certamente outro papel na formagio brasi- leira, © papel amplo e fecundo, se diverso tivesse sido 0 rumo ado & colonizagio; se se tivesse procurado neles, ou aceitado ‘uma colaboragio menos unilateral € mais larga que’ a do simples, eslorgo fisico. Mas a colonizagio brasileira se processa nurn plano nhado; outro objetivo nio houve que utilizar os recursos natu- rais do seu territério para a producio extensiva © precipitada de tum pequeno nimero de géneros altamente remunerados no mer- cado internacional. Nunca se desviou de tal rumo, fixado desde © primeiro momento da conquista; e parece que no havia tempo 4 perder, nem sobravam atengGes para empresas mais assentes, cstaveis, ponderadas. $6. se enxergava uma perspectiva: a remu: neragio farta do eapital que a Europa aqui cmpatara, A terra era inexplorada, € seus recursos, acumulados durante séculos, jaziam & flor do solo. O trabalho para tiré-los de lé néo pedia grandes planos nem impunka problemas compleos: bastava o mais simples esforco material. & 0 que se exigiu de negro e de Indio que se incumbiriam da tarelas " = Correndo parelhas com esta contribuigio que se impés as ragas dominades, ocorre. outra, este. subproduto. da. escravidio Jargamente aproveitado: as faccis caricias da escrava para a satis- fagio das necessidades sexuais do colono privado de mulheres de’ sua raga ¢ categoria, Ambas as fungdes se valem do ponto de vista moral © huinano; ¢ ambas excluem, pela forma com que se praticaram, tudo que 0 negro ou o indio poderiam ter trazido como valor positive ¢ construtor de cultura. ‘Uma sikima cireunstincin diferencia caracteriza a escr- vidio americana: & a diferenga profunda de ragas que scpara os cseravos de seus scnhores. Em algumas partes da Aménea, tal Uiferenga constituiu, como se sabe, obstaculo intransponivel aprosinagio das classes © dos individuos, e reforgow por isso consideravelmente a rigidez de uma estrutura que o sistema social, cm si, jé tornava tao estanque intemamente. Mas nio me ocuparei estas coldnias, porque entre nés a aproximagio se realizou, ©, como ji notei em outro capitulo, em escala apreciavel. Isto con. tudo dentro de limites que apesar de tudo nio sio amplos, pelo menos até 0 momento histérico que nos interessa aqui. Existiu wcoafticana, mais que qualquer outra coisa, e que se perden @ frandeza ¢ “do rstianisno, também nfo conservou a espdntancidadeeiquess de culorid das crengas negras em seu estado mative.” a Formagao do Bresil Contempordnco 273 sempre um forte preconceito discriminador das racas, que. se era tolerante muitas vezes se deixava iludir, fechando os ofhos a sinais embora bem sensiveis da origem racial dos. individuos mestigos, nem por isso deixon de se manter, ¢ de forma bem marcade, criando obsticulos muito sérios 2 integragio da sociee dade colonial num conjunto se nio racial, 0 que seria mais dem= morado, pelo menos moralmente homogéneo. Nio discutinei aqui © preconceito de raga e de cor, nem sua origens: se ligado @ certs caracteres psicol6gicos inatos de ordem estética ou outray fu se fruto apenas de situagdes e condigdes sociais particulares O fato incontestivel, aceite-se qualquer daqueles pontos de vista, € que a diferenga de raya, sobretudo quando se manifesta em caracteres sométicas bem salientes, como @ cor, vem, se nio provocar — 0 que ¢ passivel de diividas bem fundamentadas, € 4 mea ver incontstivels pelo menos agravar uma discriminagia jf realizada no terreno social. E isto porque empresta uma marea Inludvel a eta diferenga social Rotula'o individu, e contrib assim para elevar e reforgar as barreiras que separam as classes. ‘A aprorimagao e fusio se tormam mais difleis, acentua-se © predominio de uma sobre a outra. Isto nao exclui, © sabemos que nfo exclsi entre nés, uma circulagio intra-social apreciével, que permitiu aqui a clevagéo a posicées de destaque, ¢ isto ainda na colénia, de individsos de indiscutivel origem negra. Indiz também, est claro; mas 6 caso é muito menos de se destacar, porque 0 preconceito nao £04 ai excessivamente rigoroso, como no caso do africano. Mas, aevie tando aquela elevagio, nfo se eliminava o preconceito, Contore nava-se com um sofisma que jé lembrei acima, um “branquea- mento” accito © reconhecido, Aceitava-se uma situagio criada pela excepcional capacidade de elevacio de um mestico particulars mente bem dotado; mas 0 preconceito era respeitado. Alias esta elevagao social de individuos de origem negra s6 se admitia nos de tez mais clara, os brancarroes, em que o sofisma do branques+ mento no fosse por demais grosseiro. O negro ou mulato escuro, este no podia abrigar quaisquer esperangas, por melhores qué fossem suas aptidoes: inscrevia-se nele, indelevelmente, 0 estigina de wma raga que 4 forga de se manter nos infimos degraus da escala social, acabou confundindo-se com eles. “Negro” ou “preto” sio na col6nia, e sé-lo-40 ainda por muito tempo, termos pejora- tivos; empregam-se até como sinénimos de “escravo". E 0 indi- viduo daquela cor, mesmo quando nao o é, trata-se como tal. A este respeito, Luccock refere um caso ilustrativo. Necessitando certa vez. do auxilio de dois pretos livres que se encontravam em companhia, forgou-0s, diante de sua relutincia e com auxilio de outras pessoas, & ajuda: pedida. Fé-lo, assim o afirma procurando 274 Caio Prado Jinior justificarse, levado por contingéncias extremas, porém os seus beeripulos nfo foram parthados polos Brasicios che ajudaram, © que agiram com a maior naturalidade, como se estivessem no uso de um direito indiscutivel(6). papel da simples cor na diseriminagio das classes ¢ no ‘tratamento reciproco que clas se dispensam, reflete-se até nos uusos e costumes legais. Observou Perdigio Malheiro que nos leil6es de eseravos, se os lances “a bem da liberdade” — que sfo os feitos sob promessa de alforria — excluiam em regra qualquer outro, isto era no caso de escravos claros, uma norma absoluta(7). Acrescenta 0 mesmo autor que era notoria a repugndncia contra a eseravidio de gente de cor clara; e chega até a0 exagero de concluir que se nao fora a cor escura dos escravos, os costumes brasileiros néo tolerariam mais 0 cativeiro, E verdade que cle eserevia isto em 1867, quando a escravidio j& perdera muito de sua forga moral; ¢ que 05 conceitos citados partem de um escritor notoriamente simpético a causa da liberdade — seu grande livro nfo € aliés seno um libelo a favor dela, O seu depoimento, entretanto, conserva assim mesmo muito do seu valor, ¢ comprova © quanto a simples cor atua no sentido de rebaixar os individuos da raga dominada; faz entrever também como seria mais dura e Aspera a eseravido quando, como se dava entre nés, a discrimi nago social se acrescenta este carter marcado e iniludivel. Em sums, verifica-se por tudo que acabamos de ver que na escravidao, tal como se estabelece na América, em particular no Brasil, de que trato aqui, concorrem circunstancias especiais que acentiam seus caracteres negativos, agravando os fatores moral- mente corruptores e deprimentes que ela, por si s6, ja encerra. Incorporou a colénia, ainda em seus primeiros instantes, e em Broporgies esmagidoras, um contingente estranho e heterogeneo le ragas que beiravam ainda o estado de barbérie, e que no con- tacto com a cultura superior de scus dominadores, se abastarda- ram por completo. Eo incorporaram de chofre, sem nenhum cestgio preparatério. No caso do indigena, ainda houve a educacio jesuitica e de outras Ordens, que com todos seus defeitos, trouxe todavia um eomeco de preparacio de certo aleance. Mesmo depois da expulsio dos jesuitas, 0 que desfalcou notavelmente a obra missionéria, pois as deanais Ordens nfo souberant ou nfo puderam suprir a falta, o estatuto dos indios, embora longe de corresponder a0 que deveria ter sido em face da legislagéo vigente, © cujas intengdes eram justamente de amparar e educar este selvagem que se queria integrar na colonizagio, ainda contribuiu para 6) Notes, 203, (7) A escraciddo no Brasil, 34 Parte, 116. Formagdo do Brasil Contemporinen 275 manter 0 indigena afastado nas formas tmais deprimentes da eserae dio. ¢ se nfo Ihe proporcionon emndes vantigens © proses zateriais, concedeuthe tim minimo de protegao ¢ de estimila, Mas para o nogro africano, nada disto ocorreu. As ordens reli sgosas, solfeitas em defender o indio, foram as primeiras a acvitan Sipromover mesmo a escravidto africana, a fim de que os colon necessitados: de escravos, hes deixassem jes os. movimento no setor indigena, O negro nao teve no Brasi) a protegao de ningué Verdadeire. “paris” soctal, nenhum gesto se ebogou ent seu fave Fe 8 cot que cy eoies pra Tegago fran om relagio a ele mais benignos na sua brutalidade escravista qe fm outras colnias americanas, tal nfo impediu contudo qué 0 negro fosse aqui tratado com 0 ultimo dos: descasos no que diz respeito & sua formacgo moral ¢ intelectual, ¢ preparacio. pare 2 sociedade em quo A forca o incluiram. Estas nio iam alénk do batismo e algumas rudimentares nogées de religiso catéliea, mais decoradas que aprendidas, e que deram apenas para formas, com suas erengae 0 saperstigoes nativas, este amilgama piloresedy ‘mas profundamente corrompido, incocrente ¢ infimo como valot cultural, que sob 0 nome de “eatolicismo", mes que dele sé tem @ home, constitui a verdadeira religiéo de milhées de brasileiros; © que nos seus caracteres extremos, Quirino, Nina Rodrigues, ¢ mais recentemente Artur Ramos, trouxeram & luz da sombra em que um hipécrita ¢ absurdo pudor a tinham mantido. As ragas escravizadas e assim incluidas na sociedade colonial, mal proparadas ¢ adaptadas, v0 formar nela um corpo estranho @ incdmodo, O processo de sua absorgao se prolongard até nosiog dias, ¢ esti longe de terminado. Nao se trata apenas da eliminagio- inca que preocupt. tanto. os “racstas” brasleires, © que, ad demorada, se fez ¢ ainda se faz normal e progressivamente sem maiores obsticulos. Nao é este aliis 0 aspecto mais grave do problema, aspecto mais de “fachads", estético, se quiserem: em Sia mistura de ragas néo tem para 0 pais importincia alguma, ede eerta forma ate poder ser consierada vantajosa. © que pesou multo mais na formagto brasileira € 0 baixo nivel desta Rastas escravizades que cotituirdo a imensa maioria da popar lagao do pais. No momento que nos ocupa, a situagig era natural- mente mito mals grave. O iflco africana se mantinha, ganhava. até em volume, despejando inintetratamonte na colénia”contine jentes Tacigos de populagbes semibérbaras. O que resultard din nio poderia deixar de ser este aglomerado incocrente © des- conexo, mal amalgamade e repousando om bases precirias que 6a sociedade colonial brasileira. Certas conseqiiéncias serio mais salietes: assim 0 baixo tegr moral nele reinate, que se veriica Gntre outros sintomas na felaxagao geral de costumes, assinalada 216 Caio Prado Jinior ¢ doplorada’ por todos os observadores rontemporineos, nacionais ¢ estrangeitos. Bem como o baixo nivel e ineficiéncia do trabalho € da produgio, entregues como estavam a pretos bogais ¢ indios piticos, O ritmo retardado da economia clonal tem ai uma de suas principais causas. Este © outros resultados da escravidio e dos elementos que para ela concorreram sera0 analisados, em conjunto com os demais fatores da vida colonial e de seus’ costumes, noutro capitulo, Ficarei aqui apenas na estrutura da sociedade brasileira. No que diz respeito a0 escravo e scu estatuto juridico e social, tio ereio que seja necessério insistir num assunto jt Iargamente desenvol- vido em outros trabalhos(S). 8 colénia acompanhou neste terreno © direito romano, para quem o escravo ¢ uma “coisa” do. seu senior, que dela spe como melhor Ihe aprouver. AS rstiges, a esta regra, ¢ que trazem alguma protecid ao escravo, nio’'sio rumerosas. Allis 9 “Tato” € aqut mais forte que 0 “diets, em geral fora do aleance do cativo; e se houve alguma atenuagza 0s rigores da oscravictio, tal como resultaria da propriedade absoluta e ilimitada, cla se deve muito mais aos costumes que foram entre nds, neste terreno, relativamente brandos. Nao tanto como é hoje vox corrente, opiniao que se reporta mais ao tiltimo perfodo da escravidao, posterior & aboligao do trifico africano, ¢ quando a escassez. e portanto o prego dos escravos tornavam antie- conémico um tratamento excessivamente brutal ¢ descuidado. Os depoimentos mais antigos que possuimos desmentem, para época anterior, aquela tradigio de um passado mais chegado a nds, ainda viva e por isso dominante, Nao encontramos neles nada que nos autorize a considerar os senhores brasileiros de escravos, hhumanos e complacentes; ¢ pelo contro, 0 que sabemas dels nos leva a conclusdes bem diversas(9). O que hé em tudo isto 6 que 0 eseravo brasileiro parece ter sido melhor tratado que em algumas outras colénias americanas, em particular nas inglesas ¢ Francesas. Teré influido ai a indole portuguesa, sobretudo quando amaciada pelo contacto dos trdpios e a geral moleza que earae- teriza a vida brasileira(10). Também o regime patriareal, de que falarei abaixo, abrandaré ¢ contacto de senhores'e escravos, dando aqueles um qué de patemal ¢ de protetor dos seus servos. Isto parece tanto mais exato que é mas regides de formacao mais (8) Para ‘st, seri sempre principal a obra fa ctada de Perdigio Malhciro, A eseraidao no’ Bras, que € clisica, © até hoje ao for lease lads por cute (5). “Vejase em particular 0 que diz Viena, Recopiloséo, passim. (20) “Kester diel do proprictiro. brasle:” "Sout. hibitoypaciicos «sua Indoléncin fardo dele ‘win senhor Brando, mas indifrente”, Voyages, 11,"Sia! Sainttldare repel mas ou menos vina. coisa Formagdo do Brasil Contemponines 277 recente, onde nao se tinham por isso constituido aquelas relagées patnuarcais, fruto de lenta sedimentagio, que vamos encontrar um rigor mais acentuado no tratamento que se dispensa aos eseravos. No momento que nos ocupa, observamo-lo nas duas regiées cuja piosperidade, e pois grande afluxo de escravos, datavam de pouco, segunda metade ou fins do sé. XVII: 0 Maranhio e 0 Rio Grande do Sul; em oposicdo as capitanias de colonizagio ou de progresso mais antigo: Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro. Quanto 2 fungio desempenhada pela escravidio, ela é, nid preciso acrescenti-lo, consideravel. Ao tratar da economia da ‘colbe nia, j& vimos que praticamente todo o trabalho é entre nés servil. Mas'é preciso distinguir nestas fungdes da escravidéo dois setores que ten caracteres e sobretudo conseqiiéncias distintas: o das atividades propriamente produtivas ¢ as do servicu doméstico, ‘Apesar da amplidio.e importincla econdmiea muito msiores a3 primeizo setor, 0 altimo nio pode ser esquecido ou subestimado, Nio s6 ele é numericamente volumoso — pois intervém, a das legitimas necessidades do servigo doméstico, a vaidade senhores que se alimenta com mimeros avultados de servos( 1); como ¢ grande a participagio que tem na vida social da colénia © na influéncia que sobre ela exerce. Neste sentido, ¢ excluido © elemento econémico, ele ultrapassa mesmo largamente o papel do outro setor. O contacto que 0 escravo doméstico mantém com seus senhores € com a sociedade branea em geral, é muito maior, muito mais intimo. E 6 certamente por ele que se canalizou para a vida brasileira a maior parte dos maleficios da escravidio. Do pouco que ela trouxe de favordvel, também: a terura ¢ afeti- vidade da mie preta, e os stborosos quitutes da culinérfa afro-brasileira( 12). ‘Assim no campo como na cidade, no negécio como em casa, © escravo & onipresente. Torna-se muito restrito o terreno reser vado a0 trabalho livre, tal o poder absorvente da escravidio. E 1 utilizagio universal do escravo nos varios misteres da vida cconémica e social acaba reagindo sobre 0 conceito do trabalho, que se toma ocupagio pejorativa e desabonadora. “Como todas as obras servis e artes mecdnicas sio manuseadas por escravos, (11) Refere Vilhena que na Bahia chegavam algumas casas a ter 60 2 70 escravos, portas dentro, servindo a maior parte, como logo se ve, ‘mais para ostentacio de riqueza e poder dos senhores. (12) Gitberto Freyre, ina sua Casa Grande e Senzala, embora nio {aga expressamente a dovida distingao entre estes dois setores diferentes do Irahalho eseravo, referose sobretudo e quase exclusivamente a este altume. subtitulo ‘da sua obra, “formago da familiz brasileira’, e 0 objetivo rine cipal que tem em mira’ indicaram laramente, 218 Caio Prodo Jinior dir. um observador perspicaz como Vilhena, poucos sio 0s mu- Tatos, e raros os brancos que melas se querem empregar, nem aqueles mesmos indigentes que em Portugal nunca passaram de criados de servir, de mogos de tébua(?) e cavadores de enxa- da... 0s criados (que vém de Poriugal) tém por melhor sorte © ser vadio, 0 andar morrendo de fome, o vir parar em soldado € as vezes em ladrio, do que servir um amo honrado que thes spaga bem, que os sustenta, os estima, e isto por nio fazerem o ‘que os negros fazem em outras casas; as filhas do pats tém um timbre tal, que a filha do homem mais pobre, do mais abjeto, a mais desamparada mulatinha forra com mais facilidade irio para © patibulo do que servir ainda a uma duquess, se a terra as houvesse"(13). No campo é a mesma coisa: nenhum homem livre pegaria da enxada sem desdouro, e por isso, dirt o mesmo Vilhena, "havendo embors terras abundantes carecem de propriedade até mesmo aqueles que poderiam ser proprietérios, pois no tendo 1508000 para comprar cada um negro que trabalhe 0 mesmo é ser propictirio que 0 nfo ser"(I4). Nestas condigées, no é de admirar que tio pequena margem de ocupagtes dignts se destine ao homein live. Se nso € ou n80 pode ser proprieirio ou fazendiro, enhor de engenho ou lavra- ior, nao The sobrardo senao algumas raras ocupagées rurais — feitor, mestre dos engenhos, ete. 15); algam offelo meeanico que a eseravidio no monopolizou e que nso se toma indigno dele pela brancura excessiva de sua pele; as fungSes publicas, se, pelo contrario, for suficientemente branco; as armas ou 0 comércio, negociante propriamente ou caixeiro. Nesta iiltima profissio, ainda tsbarra com outta restrgio: 0 comércio € privlégio dos “eindis™ os nascidos mo Reino. Os naturais da coltnia encontram at as portas fechadas, nio’ por determinagées legais ou preconceitos de qualquer natureza, mas por um uso estabelecido de longa data, € ciosamente guardado pelos primeiros instalados, justamente 03 reindis, que por convengdo técita, mas rigorosa, conservam. para si ¢ seus patricios um monopélio de fato. “Os vindos do Reino, escreverd 0 Marqués do Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, do cuidam em nenhuma outra cousa que em se fazerem senhores Go coméreio que aqui h4 e nio admitirem filho nenhum da terra a caixeiros por donde possam algum dia serem negociantes; © (18) Recopitagto, 140, (14) Recopilagao, 933 (05) Ne Sadist pastor, ex particular na dos sertdes do. Nordest, wana gi © ral ive se oma fae tse dm oo pouess ‘cupagies, em quo s mio-de-obra’ é escasn, Alden “dito, pelas Eondigdes peculiar em que se realiza, esté ols ou menos neservada exclu Sivamente 8 populagio mative local. Formesdo do Brasil Contemporinen 279 dai abrangerem em si tudo que 6 comércio”( 16). Situago muito séria e prenhe das mais graves conseqiiéncias, subre que voltarei abaixo, Sobram ainda, para os individuos livres da colénia, as pro- fissbes liberais —sivozados, irurgiGes, ote. Sio_naturalmente ocupagées por natureza de acesso restrito. Exigem aptidao especial, Preparos e estudos que nao se podem fazer na colénia, ¢ portanto recursos de certa monts. S20 por isso muito. poucos os profissio- nais: em 1792 nao havia no Rio de Janeiro sent 32 advogados ¢ 24 solicitadores(17). Os médicos entio eram excegio, Em toda a capitania de Sao Paulo, observava Martius em 1818, nfo havia estabelecido nenhum médico ou cirurgigo verdadeiro( 18), O mesmo se diré dos engenheiros, de que a‘colénia néo contava seniio com raros militares(19). Restard a Igreja. Esta sim oferece oportunidades mais amplas, Os estudos se podiam fazer em gi ride parte ‘no Brasil © mesmo completar, sobretudo com relagio aos seculares. Os semindrios fora crotolgieamente 05 princros institutes de esino superior da coldnia. Aliés os candidatos ao estado eclesiistico que de- rmonstrassem aptiddes encontravam sempre amparo, e no faltava quem lhes custeasse os estudos, aqui ot na Europa, f certo que 9 preconceto de cor tats tn af o Seu lgar,© quem fo fosse de pura origem branca, necessitava dispensa especial(20° Mais uma questio de forma; o estudante com reais Prada acabava sempre vencendo. Nao foi este 0 caso de Luis Antonio da Silva e Sousa, depois poetz ¢ historiador de algum nome, mestigo de origem humilissima, e que apesar de ver fechadas no Brasil as portas dz igreja, acahou obtendo dispensa necessiria em Roma, e com 0 auxilio do proprio ministro portugues junto (16) Relatério, 45 (17) Em 1794 os niémeros eram respectivamente de 33 ¢ 22. Vejam- seo Almanaques dagucles ano pblicados now Anais da Bilt Navo= “ (18) Travels, Book, 1, 83. No Rio de Janciro, os médicos eram em 1794, 9, © os cirutgives, 28, Almanaque cit, (S)" para tender a esta. penria de profssionais que 0 govemo snetropalitano ‘resolveu em 1799" ordenar que as Camatas concelewem pensoes para aqueles que, tendo demonstrago habiidade, fossom cursor a Enisersidade do Coimbra ou a Academia de Lisboa, Cada Cimara: dover gar os estudos de pelo. menos 2 topdgrafos, 2 engenhelros.hidraulices, n contador, um médioo e win cfrurgido. Vejase circular as Camaras da wpitania de’ Sto Paulo, escrta, pelo, governador. Reg. Vil, 381. (20) "A, profissio’ no Ordem dos Carmelita, por exemplo, se. fazia sob protesto d “langar fora 0 professor logo que xe" prover que tom east dle mouro, mato, fudcu, ou outta infecta hagio™ Feel Caneos, Obras, 389, 250 Caio Prades J 10 Vaticano(21). Alias os mestigos stio numerosos no clero bra- sileiro, A Igreja sempre honrou no Brasil sua tradigao democratica, ‘a maior forca com que contou para a conquista espiritual do Ocidente. O que ocorreu na Europa medieval se repetiria na colonizagio do Brasil: a batina se tornaria o refiigio da inteli- xgéncia ¢ cultura; e isto porque é sobretudo em tal base que se faria a selegio para o clero. Ele foi assim, durante 9 nossa fase colonial, a carreira intelectual por exceléncia, e 2 nica de pers- pectivas amplas e gerais; ¢ quando, realizada a Independéncia, se teve de recorrer aos nacionais para preeticher os cargos poli- ticos do pats, é sobretudo nele que Se recrutardo os candidatost22) A Igrcja tem assim na colénia um papel importante como vazio para colocagées. Reconhecia-o, e nid s6 0 proclamava, mas ainda © justificava nos limos anos do séc. XVII, uma’ autoridade eclesidstica autorizada como o superior da Provincia dos Capuchos do Rio de Janeiro, Frei Anténio da Vitéria: “Hoje nao hé verda- deiras vocagées para o estado religioso; quase todos 0 procuram por modo de vida, e principatmente no Brasil onde faltam em Pregos em que os pais arrumem seus filhos. Debaixo deste prin- Cipio parece que se faz uma injustiga aos brasileiros, privando-os deste beneficio, quando seus pais so os que sustentam vestem todos os religiosos daquele continente, e reparam os seus con- ventos" (23) Em suma, 0 que se verifica ¢ que os meios de vida, para os destituidos de recursos materiais, sio na colénia escassos. Abre-se assim um vacuo imenso entre os extremos da escala social: os senhores e os escravos; a pequena minoria dos primeiros ¢ a multidao dos iitimos. Aqueles dois- grupos sf0 0s dos bein clas- sificados da hierarquia ¢ na estrutura social da colonia: os pri- meiros sero os dirigentes da colonizagio nos seus virios setores; 5 outros, a massa trabalhadora, Entre estas duas categorias niti- damente definidas e entrosadas na obra da colonizagio compri me-se 0 niimero, que vai avultando com o tempo, dos desclass cados, dos intiteis e inadaptados; individuos de ‘ocupagées mais fou menos incertas e aleatérias ou sem ocupagio alguma. Aquele contingente vultoso em que Couty mais tarde veria 0 “povo brasileiro”, e que pela sua inutilidade daria como. inexistente, resumindo a situagio social, do pais com aquela sentenga que ficaria famosa: “Le Brésil n’a pas de peuple”(24). (21) J. M,P. de Alencastre, Biografia do Cénego Luis Anténio da Silva ¢ Sousa, 241 (22) Nos cargos do Parlamento os eclestistioos sb passario para um plano safer no seg impr, 3)Corespendéncia de odrias autoridades, 291, (21) Lesclavage au Brésil Formasdo do Brasil Contompordnco 281 © mimero deste clemento indefinido sociaments, & avane tajado: e cresce continu c ininterruptamente porque as causas 4jue provocam seu aparecimento sio permanentes. No tempo de Couty, este 0 calcula, numa populacio total de 12 milhdes, em nada menos que a metade, 6 milhoes. Seria menor talvez a’ proporgio hos trés milhdes de principios do séeulo, tnas ainda assint con. preenderia com certeza 2 grande, a imensa maioria da populaé live da colénia. Compée-se sobretudo de pretos e mulatos forros ou fugidos da escravidio; indios destacados de seu habitat nativo, ‘mas ainda mal ajustados na nova sociedade, em que os engloba- ram; mestigos de todos os matizes e categorias, que, no sendo escravos e no podendo ser senhores, se véem repelidos de qualquer situagio estivel, ou pelo preconceito ou pela falta de posig6es disponiveis; até brancos, brancos puros, e entre eles, como Ja referi anteriormente, até rebentos de troncos portugueses ilus- tres, como estes Meneses, Barreto, Castro, Lacerda e outros que Vithena assinala em Cairu, arrastando-se na indigéncia(25 noss0s: poor whites, detrito humano segregado pela colonizagao escravocrata ¢ rigida que os vitimou, ‘Uma parte desta subcategoria colonial € composta daqueles que vegetam miseravelmente nalgum canto mais ou menos remoto € apariado da civilizagio, mantendo-se ao deus-dar, embrutecidos € moralmente degradados. Assim uma grande parte da populacio amazdnica, estes tapuias que deixaram de ser silvicolas, ¢ ndo chegaram a ser colonos(28); os caboclo, indios puros ou quase pwros de outras partes da coldnia, em situagio mais ou menos {déntica, isolados do mundo civilizado que os cerca e rejeita, € reconcentrados numa miserével economia naturalista que ndo vai além da satisfagio de suas mais imperiosas necessidades vitais. A ses se equiparam negros ¢ pardos que, excludos da sociedad ativa, procuram imitar a vida daqueles filhos do continente. Quando fugidos da escravidio, sio 0s quilombolas, que as vezes $e agrapam e constituem concentragdes perigosas para a ordem soda ¢sio a preacupacio constants das autoridades: os temiveis “quilombos"(27), Numa tal situagdo arredada da civilizagio en- (25) Recopilagto, 519. (28) José 'Verisimo os descreve, embora mais tarde, mas em con digdes que teriam sido as mesmas, trés quartos de século antes, no seu ‘magnifico trabalho: As populagoes indigenas da Amazénia (21) Edo so notar que s por uma questio de analogia da situagéo dos quilombos relativamente 4 ordem oficial da colonizacio é que pode- mot, em muitos casos, inclutlos nesta categoria inutile vegetativa da populagio colonial. Os quilombos foram frequentemente mais que isto, @ otstituem organizagbes notiveis, cheias de vigor e capacidade construtiva. Gs Palmares, qué sio © principal ¢ mals notério exemplo de quilomby de 282 Caio Prado Jinior contramos também brancos mais ou menos puros, que expelidos ou figidos ‘dela “aproveitam 1 vastidao’ do tervierio me se abrigarem no deserto. ‘Uma segunda parte da populagio vegetativa da colénia é a daqueles que, nas'cidades, mus sObretudo no campo, se encos- tam a algum senhor poderoso, e em troca de pequenos servigos, as vezes até unicamente de’ sua simples presenga, propria @ aumentar a clientela do chefe e insuflar-The & vaidade, adquirem © direito de viver A sua sonbra ¢ receber dele protecio ¢ auxilio, Sao entio os chamados agregadas, os moradores dos en- genhos, cujo dever de vassales seré mais tarde proclamado e justificado, em Pernambuco, mm momento dificil e de aguda crise politica(25). Finalmente a iltima parte, a mais degradada, incémoda e nociva & a dos desocupados permanentes, vagando de Iéu em léu & cata do que se manter ¢ que, apresentando-se a ocasiio, enve redam francamente pelo crime. F. a casta numerosa dos “vadios”, que nas cidades e no campo é tao numerosa, e de tal forma caracterizada por sua ociosi turbuléncia, que se toma uma das preocupagdes constantes das autoridades e 0 leitmotio de seus relatérios; ¢ ndo se ocupar menos dela outros observadores con- temporineos da vida colonial. O Vice-Rei Luis de Vasconcelos se queixa deles amargamente, e urge providéncias ao deixar 0 governo em 1789(29). Vilhena Ihes consagra longas paginas de Suas cartas(30); 0 Brigadeiro Cunha Matos considera-os um dos maiores flagelos da capitania de Goids(31), e o presidente da Mesa de Inspegtio do Rio de Janeiro, 0 Des. Rocha Gameiro, dissertando sobre a agricultura da colénia, indica os vadios como tum dos obstacilos a0 seu desenvolvimento(32). Os vadios nio escapam também A observagio dos vinjantes estrangetro Hilaire ¢ Martius referem-se a eles amitide, e sentiram muito bem valle, estio Tonge de ser 0 dnico, Estas aglomeragdes nagras de eserves Tgidos 6 formaram e disolveram rpetida € continiamente em todo corer dlavnossa histrs, e-em todor os ator do terntéroy © muilas vers mos. ‘ear dy que etait cpus sles vee sto dada oportunidad so (28) Durante a agitacto pracra, que teve seu desenlace na revlta dle 1848, e quando se publicot cin optsculo. A cleo. para senodores, eitado por Jonquim Nabuco, Um etadsta do Import, I, 8, em que 6 sunt’ tat (29) Ofiio, 94 (30) Recoplagdo, 699. (31) Corografa histrico, 296, (32) Carta de 28 de abril de 1797, in Correspondincia de véras autordades, 279, Formagio ilo Brasil Contemorineo 28% que nao se trata de eases esporidicos, mas de uma verdadeira endemia social( 33). E entre estes desclassificados que se recrutam os bandos turbulentos que infestam 0s sertdes, ¢ 20 abrigo de uma autoridade publica distante ou fraca hostilizam e depredam as populayoes, sedentérias ¢ pactas; ou pondo-se a servigo de poderosos € man- does Tocais, servem os seus caprichos e ambigdes na lutas de campatiirio que eles entre si sustentam; como estes Feitosas do Cearé, que durante anos levam o interior da capitania « fecro « Sogo, © 36 foram dominados ¢ prsos gages a um exratagema to Gov. Ocynhausen(34). Mas apesar de casos extremos como este, 0 atrolamento dos individuos sem eira nem beira nas milicias, particulares dos grandes proprietarios ¢ chefes locais ainda cons- titai um penhor de seguranca e trangitilidede, porque canaliza sua natural turbuléneiae thes dé um minimo de organizagio diseiplina, Entregues a si mesmos, eles manteriam 0 sertao des- policiado ‘em constante polvoresa, © normalizariam o crime. E no se veria nestas vastidées desamparadas pela lei o que Saint- -Hilaire com surpresa constatava; uma relativa seguranga de que seu case pessoal era exemplo flagrante. Nenhuma vez, nos longos anos em que perambulou. pelo interior do Brasil, foi jamais, incomodado, Nas cidades, 05 vadios séo mais perigosos © nocives, pois niio encontra, como wo eampo, 2 larg hoapitalidade que If se pratica, nem chefes sertanejos prontos a engajarem sua belicosi- lade, No Rip de Janeiro era perigoso transitar s6 e desarmado em lugares ermos, até em pleno dia. O primeiro intendente de policia da cidade tomard medidas enérgicas contra tais elementos. Mas 0 anal se perpetuard, € s6 na Republica, ninguém o ignora, serio 08 famosos “capociras’, sucessores dos vadios da colénia, elimi- nnados da capital Como se vé, além da sua massa, a subcategaria de populagio colonial de que’ nos ocupamas fazia muito bem sentir sua pre- seniga, Ainda o faré mais nas agitagdes que precedem a Indepen- Aleuicia'e vo até meacos do século, mantendo a pais num estado (33) Entre outras pussagens, vejese Voyoge aur sources... I, 127, para o primal; Viagem, l S58, "part © outioe (3h)"0 ‘governador apresentouse cfidalinente em suas propricdads, « fazmndo convocar, sob pretexo de fevsta, as ordenanas Ge que © prin: tipal dos Feitoss ‘era cemandante, dspensouas depots de ‘un longo dia de cxercicio.fatiganes. Aprovetando-se. depois de up momento. de. ina tencie do Feitosa, para om sua east e quando vie menos 9 esperavi dare vor de prisfo © pattir apressadainento comm © sou priionctio, Kester (Vowne ws, 1, 323) relat © fato, ocorsida pouco antes de sua estada. nucle expitaita, 284 Caio Prado Kinior ré-anirqicn permanente. No torvelinho das pixies @ xefine Fleagies “ental dearncadcadse, pelo. ompineno. do putbete social e politico gue proveca a tusici de coldnia pura Lanpeeigs livre, sducla ‘massa Meslocads, indelinida, mal enquadsade ordem social, © a realidade pronto ¢ vitima dela, se langard na luta com toda a violéncia de instintos longamente refreados, @ com muitas tintts da barbirie ainda Wo proina que The cota mas wee om grands crrents, Nio eth a menor avid que a5 agitagbes anteriores c postcriores A Independéncia, as do toy. menioso periodo da minoridade « da pritciro desénie do Segundo Império, todas clas ainda tio mal estudadas, sio fruto om grande parte daquela situagio que acabamos de’ anafisar. f naquele elemento desenraizado da populacio brasileira que se reerutard a maior parte da forca armada para a luta das faegdes politicas que se formam; e ela servird de ariete das reivindicagoes populares contra a estrutura maciga do Império, que apesar de forga do empuxo, resistird. aos sews galpes. Tem assim um grande interesse Iistérico acentuar af @ nossa ‘anilise, porque ¢ no momento que precede imediatamente aqueles acontecimentos, que encontramos tuma situagio, embora madura, ainda nio perturbada pela luta. Tanto mais facil por isso ¢ a tarefa do servador. Vimos as condigdes gerais em que se constitui aquela massa Popular — a expresio nfo ¢ eragerada — que vive mais ou menos & margem da ordem social: a caréncia de ocupagbes nor- mais e estiveis capazes de absorver, fixar ¢ dar uma base segura Ge vide & grande maiora de populcto tere da con. sta Stuato cem eta promis de ge vinos cpa as saliente e imediata: a escravidao, que desloca os individuos livres da maior parte das atividades e 05 forga para situagdes em que a ociosidade eo crime se tornam imposigGes fatais Mas alta-se, para o mesmo efeito, outro fator que se associa alias intimamente a ela: o sistema econdmico da produgio colonial. No ambiente asfiriante da grande lavoura, vimo-lo noutro capitulo, nao sobra, lugar para outras atividades de vulto. O que nfo @ produsio em larga escala de alguns géneros de grande expressdo comercial ¢ destinados & exportagio, 6 fatalmente relegado a um segundo plano mesquinho © miserével. Nao oferece, ¢ nio pode oferocer ‘campo para atividades remuneradoras ¢ de nivel elevado, E. assint, todo aquele que se conserva fora daquele estreito circulo tragade pela grande lavoura, ¢ so quase todos além do senhor @ seu éseravo, no eneontra pela frente perspectiva alguma, ‘Um ultimo fator, finalmente, traz a sua contribuiglo, € gone tribuigio’ aprecifvel de residuos socials inaproveltavets, Bg instabilidade que caracteriza a economia e a produgia e nio Ihes permite nanica assentarem-se sélida © permanentemente Formacdo do Brasil Contempéndneo 285 em bases seguras. Em capitulo anterior jf assinalei esta evolugio Por arrancos, por ciclos em que se alternam, no tempo ¢ no espio, prosperidade e ruina, ¢ que resume a histéria econdmica do bishecoDinia. As reporcusbts socials Je una tal histonin foram nofastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedago da estrutura colonial, desagrega-se a parte da sociedade atingida pek crise. Um niimero mais ou menos avultade de individuos Inuiliza-se, perde suas raizes e base vital de subsisténcia, Passard cntio a vegetar & margem da ordem social. Em nenhuma época € lugar isto se torna mais catastréfico e atinge mais profunda e extasamente a col6nia, que no momento preciso em que aborda: mos a nossa histéria, © nos distritos da mineragio. Vamos encontrar ai um miimero considerdvel destes individuos desamparados, evi- dettemente deslocados, para quem nao existe o dia de amank: sem ocupago normal fixa ¢ decendente remuneradora; ou deso- cupidos inteiramente, alternando 0 recurso a caridade com 0 rine, O vadio na sua expressio mais pura. Os distritos aurfferos de Minas Gerais, Gots, Mato Grosso oferecem tal espeticulo em propordes alarmantes (ue assustario todos os contemporancos. Uma hoa parte da populagio destas capitanias estava nestas conligdes, ¢ 0 futuro nao pressagiava nada de menos sombrio( 35) Sio estas em suma as causas fundamentais daquclas formas inorginicas da sociedade colonial brasileira que passci em revista Nelinos a par dels, 0s seus aspectos organizados. Bem tal terrno, um logo ocorre que, com a escravidio que Ihe constitui a base essencial, domina 0 cendrio da vida na colonia: € 0 “c Pataca” — emprego uma expressio jé consagrada —, unidade fem que se agrupa @ popalagio de boa parte do pais, € que, na base do grande dominio rural, retime 0 conjunto de individuos que participam das atividades ‘dele ou se Ihe agregam; desde 0 toptictario que do alto domina e dirige soberanamente esta Pequena parcela de humanidade, até o iltimo escravo e agregado que entra para sua clientela. Unidade econémica, social, adminis Uativa, ¢ até de corta forma religiosa. Quando me ocupar’da orga~ nisagio administrativa da colénia, veremos como este poder ver- dulsiramente soberano dos grandes proprietérios, com aquelas tunidades sobre que se estende, se ajusta a estrutura da administra- (35) Hi outro fator que ters tombim contbido para. 0 empor Inocimento da popula clon embora. ein proporgdes rdatvamente ravens. Sto, Sr elneuos, or de mtomorta e“nbreado. ox morgado. FXG "tines fazom objeto de considers ineresenten de Vien na kia de as enrtasinchidss na. Recoplagdo. “Os mongades cxsiram no Aoul em regular niniero, o mais noldvel fol talvez dos Viscondes de: ea. nos Campon dor Gotaeacs.Hstinguraris os argados pela el n® 36 de 5 de outubro de 1835.; eum 256 Caio Prado Hinior ‘¢%0 colonial. Vejamos aqui_anies os seus caracteres sociais ¢ €condmicos que servem de base ao mais. Poderiamos retragar a origem remota desta unidade singular de nossa estrutura social a suas raizes portuguesas, e ir buseé-la tanto na organizacio € nas sdlidas relacdes de familia do Reino, como no paternalismo da constituigio da monarquia, Mas nao é preciso ir tio longe, porque sobrelevam, e de muito, causas mais proximas: as circumstincias do meio brasileiro. Se’o patriarca- lismo se encontra em germe nas instituigdes portuguesas, quest que prefiro deixar aberta, 0 que realmente determinou sua_es- pléndida floragio no Brasil é 0 meio local em que se constit © cla patriarcal, na forma em que se apresenta, € algo de esp cifico de nossa organizagio( 38). © do regime econdrmico que ele Drota, deste grande dominio que absorve a maior parcela da produgio e da riqueza coloniais. Em torno daqueles que @ pos- suem € senhoreiam, o proprietirio e sua familia, vem agrupar-se a populagio: uma parte por destino natural e inelutével, os escravos; a outra, pela atragio que exerce 0 tinico centro existente, real ¢ efetivo, de poder ¢ riqueza. © dominio é vasto, 0 que ele se passa dificilmente ultrapassaré seus limites. Fica por isso inteiramente na algada do proprietério; esta até vai além, e¢ se estende sobre a populagio vizinha que gira na érbita do dominio proximo. A autoridade pablica é fraca, distante; nfo s6 no pode contrabalancar o poder de fato que encontra jé estabe- lecido pela frente, mas precisa contar com ele se quer agir na maior parte do territério de sua jurisdigio, onde s6 com suas, forcas chega j4 muito apagada, se néo nula. Quem realmente possui af autoridade e prestigio & 0 senhor rural, o grande Poprctrio, A administagio ¢ obrigada a reconhecélo, e, de falo, como veremos, 0 reconhece, ‘A prépria Igreja e seu clero, que constituem a segunda esfera administrativa da colénia, também estio, em parte pelo menos, na dependénciz do grande dominio. Capela de engenho ou fazen- da Seu eapelio; ire da, feguesa présima e seu péroco, que encontram no grande dominio a maior parte de sua clientela: no so elas e eles acessérios € servidores do grande dominio (36), Como aliés também de cutras colnias shero-americanas, e met smo também dos Estador slings da Unilo norte-americana. Entre nos, 3 dou-e Oliveira Viana, que 0 batizou, nos seus aspoctos coonbaicas poll ticos (Populasaes medio do Bil Evaagdo do Poco Broo, Pe tienor extudor cle psicologiz social); Gilberto. Feeyee, que desenvolven onsideravlmente 0 santo, acentuow mals 0 lado sociale anlropologico (Casa Gronde¢ Sensala, Sobrados o- Mucambos) Formagao do Brasil Contempurineo 987 que congrega quase todos seus fiéis?(37). Nada resta portanto, comp forca autdnoma e desembaragada de peias, que este tiltimo. A sua sombra, larga e acolhedora, dispensadora xiniea dos meios de subsisténcia e de protect, virio todos se abrigar. Constituide assim numa sélida base econémica, e centrali- zando a vida social da coldnia, 0 grande dominio adquiriea 20s poucos os demais caracteres que 0 definirio. De simples unidade produtiva, tomna-se desde logo eélula orginica da sociedade colo- nial, mais um passo, e sero bergo do nosso “cla”, da grande familia patriarcal brasileira. Processo que néo vem de chofre, que se desenvolverd aos poucos, mereé das condigées peculiares fem que 0 numeroso grupo humano que habita o dominio passa a existéneia nesta comunhao forcada ¢ estritamente circunserita 2 seus limites, Uma anélise comparativa nos mostra estigios dife- rentes da evolugio, coexistindo mo momento que nos ocupa é refletindo a maior ou menor antiguidade das regiées observadas. Nos velhos ¢ trudicionais eentros do Norte, Bahia ¢ Pernambuco, jA com um largo passado de sedimentagio, a floragio patriarcal 6 espléndida © produz todos os scus frutos; menos no Rio de Janeiro; ¢ ainda muito pouco nestas regides novas da seginda metade do sée. XVIII, 0 Maranhio e os Campos dos Goitacases. E 0 contacto prolongado, que se repete ao longo de geragGes sucessivas, que vai modelando as relagdes internas do dominio e vestindo.as de roupagens que disfargam a crucza pri- mitiva do dominio escravocrata. O senhor deixara de ser o simples proprietirio que explora comercialmente suas terras e sou pessoal; Crescravo também hao seré mais apenas a mio-de-abra explorada Se trabalha para aquele, e até forcado pelo agoite do feitor ou © tronco da senzala, também conta com ele, e dele depende pare os demais atos’e necessidade de sua existéncia; toda ela se desenrola, do nascimento & morte, freqiientemente por geragSes, sucessivas, na érbita do senhor e do seu dominio, pequeno mundo feckado em fungio do qual se sofre e se goza. Multiplicam-se assim os lagos que apesar das distncias vio atando uma a out © mesmo se dé com os trabalhadores livres ou agregados; liber- dade ‘relativa que no vai alm da, de trocar um senhor por outro igual; e isto mesmo nem sempre. Um pouco mais afastados € auténomos, os rendeiros e lavradores mais modestos, os obri- gados: nas relagdes com estes haveré mais crises, uma friegio (37) “No Brasil, a catedrl, ov igreja mats poderosa que o proprio rei, sere subnttuida pela easagrande da engenbo. 1 2 iprels que agen Fornagio ‘base Secunda, nfo. a ctedal consol histo ‘oma igre toads e ou de mosteir om abadin.™, Ea capela de engenhor Gilberto Freyre, Casa Grande ¢ Senzala, 20, 288 Caio Prado Hinior maior; mas 0 contacto permanente, diuturno, de anos.a fig. s¢ nao de cxisténeias sucessivas, acabaré. aprosimando-0s ¢ nando as arestas mais. vivas. Constitui-se assim no grande dominio um confanto de relax .6es diferentes das de simples propriedade eseravista e exploragio econdmica. Relagdes mais amenas, mais humanas, que envolvent toda sorte de sentimentos afetivos. E se de um lado estas novas relagdes abrandam © atenuam 0 poder absoluto © © rigor da autoridade do proprictirio, doutro elas a reforgam, porque a tomam mais consentida ¢ aceta por todos, Ele jf sek como um protetor, quase um pai. Hii mesmo um rito catéliee que se aproveitari para sancionar a situagio ¢ as novas © testemunho mas ceriménias religiosas do batismo ¢ do_cisa- mento, que criario titulos ofieisis para clas: padrinko, afilhado, compadres, Colocado assim no centro da vida social da coldnia, o grande proprietirio sc aristocratiza, Reine para isto os elementos qué Constituem a base ¢ origem de todas as aristocracias: riquezas, poder, autoridade. A que se uniré a tradicio, que a familia patiarcal com 9 ‘autoridade absoluta do chete, dingindo e eseo- endo os casamentos, assegura. Esta aristocratizagio niio é apenas dle nome, fruto da vaidade'e do. presungao dos intitulados. Cons titui um fato real e efetivo; os grandes proprietirios rurais fore mario uma classe & parte ¢ privilegiada, Cercam-nos o respesto € prestigio, 0 reconhecimento universal da posi¢ao que ocupam. Um contemporinen, que no ¢ um bajulador qualquen, mas espt- rito esclarecido ¢ critico notével da vida baiana de fins do séc. XVIII, died deles: “Formio em aquella Comarca hum Corpo respeitavel de per si, e tio nobre por natureza, que em nenhuma foutra corporagio, e em xenhum ouitro Paiz se encontra outra igual a ella: em’ si comprehende as melhores familias deste, € es todo mais. Continente; $50 as pessoas que mais hontio_ a Patria, que a fazem mais rica, mais brilhante, mais poderosa pelo solido dos seus estabelecimentos e mais naturaes posses- s6es"(38). Quase um século antes, Antonil dissera coisa semelhante. Assim constituida, a aristocracia colonial tomaré 05 caracteres de todas as aristocracias: 0 orgulho, a tradigho, pelo menos de familia e do sangue que the corre nas veias(39). Mas isto no (38) Discurso preliminar, 290. O pats e 0 continente a que se refere 6 autor, nfo sto'o Brasil ou 2 América, como interpretasiamos com nossa terminologia geogeifica. aval; mas regies e posessses portuguesas na ‘América, como cra entio corrente dizer-se. (38) "A teadigho do Sangue io ¢ contudo muito antiga. Borges da Fonseca, meio séenlo apenas antes do momento, que nes ocipa, encontron fem Pernambuco, que @ 0 mais antigo centro de tradicio arstocritiea do Formagdo do Brasil Contempordineo 289 a tard arrogante: o tom geral da vida brasileira, a sua moloza c maciez nos contactos hnimanos no dariam_margem para isto. Terd contudo 0 fraco de todas as castas privilegiadas de curto passado: 0 de querer entroncar-se em outras mais sintigas, Vilhent Satixizar por isso os aristocratas da coldnia, e se referird aos eseudos de armas “que por vinte ¢ tantos mil réis mandao vir da Corte...”(40). Tudo isto é particularmente o caso da grande livoura nos rincipais centros da colénia: a do agitcar ou do tabaco na Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, ou a do algodio no Maranhio. Nas minas repete-se, niutatis mutandis, 0 caso. F. fato semelhante se passa também nos dominios pastoris, embora ai se altere algo a fisionomia da vide social, subordinando-se as condigées peculia- Tes em que 36 realiza est atividade, Em particular nos setGes do Nordeste. O pessoal reduzido, a pequena proporgio de esera- wos, a5 relagBes de trabalho em quctee destage & grande auton: mia ¢ independéneia do vaqueiro, hem como a maior geral liberdade de movimentos do pessoal empregado, a dispersio das fazendas ¢ currais que constituem 0 dominio, limitam a autoridade absoluta do proprictirio e cerceiam o seu poder, comparado a0 que exerce sobre seu humilde pessoal 0 senor de engenho do Iitoral, Acresce ainda o absentismo dele, mais acentuado ¢ pro- longado que na agricultura, o que alheia mais as classes e dificulta aquela comunh3o que encontramos noutros setores(41). Contudo, (os mesmos earacteres patriarcais ¢ aristocrdticos, embora com as- pectos prOprios, esto ai presentes. Na pecudria do sul de Minas, no entanto, © quidro se modifi mais. J6 ltl em outro, gar & observagio de Saint-Hilaire, que encontrou ai uma certa democra- tzagio dos hibitos © dos costumes nas classes superiores, © to apesar da presenga numerosa de escravos: 0 proprietério ¢ sua Billa sto’ mais Tuder © menos allaneles; astemelhamrse antes 20 camponés europeu abastado que ao nobre, como se dé nos dis- trtos mineradores,O fazendeio e seus filhos patiipam ativamen- te do manejo da propriedade, tratam do gado e ocupam-se com as culturas; conduzem até, eles proprios, as boiadas ou tropas de bestas que se destinam aos mercados consumidores. O trabalho Brasil, grandes dificuldades para escrever a sua Nobiliarquia porque, como cle proprio declara, encontrow "sjeltor dos mats nobres da terra que nem, Sabitm dar noticis da naturalidade de seus avés.” Nobilarquia Pernam- Ducanas Notieiapreliminar. (40) Rocopilagto, 44 (41) O retrata que José de, Alencar fae em O Sertanejo do grande dominio pastor do Nordeste, embora largamente fantasista, € em inhas fgerais ima reconstituigio que uos proporciona alguns indices aceitéveis. 290 Caio Prado Jinior 6 tido por isso em melhor conceito, e niio humitha ou desabona(42 ) Nos campos do Extremo-Sul o teor de vida também comporta este tom mais democritico; h& uma igualdade maior, menos absentismo, maior comunhao entre estancieiros e pedes. Notemos contudo que, como no Nordeste, os eseravos so af raros; e tudo isto sem contar o cariter e géneros de vida dos habitantes, tio especiais e peculiares. Mas com todas estas diferengas ¢ atenuagbes, as distingSes sociais ¢ predominio absoluto e patriarcal do proprietirio e senho io elementos que se associa’ de uma forma geral a todos 08 grandes dominios da colonia, E, mais ou menos caracterizadamente, © grupo social que neles se constitui exerce as mesmas fungdes € ocupa o mesmo lugar na vida econémica, social e administrativa da colénia, descritos acima no seu estado’ mais puro e completo. © mesmo jf mio se di, est visto, neste outro setor da economia colonial que é o das lavouras e propriedades de pe- qqueno valle. Para una parte delas, nio hi ngvidade: o modestos Tayradores ou plantadores de cana; as pequenas culturas de tabaco ou de algodo, que como vimos sio numerosas; as prépries culturas alimentares, ‘que se distribuem em tomo dos grandes centros de permeio com a grande lavoura; tudo isto vive como que nos poros desta iiltima e gira na sua érbita. Nao tem por st cada qual daquelas poquends unidades, vullo suficente para adotar 0s caracteres do grande dominio; mas mio o tem também para ser completamente auténoma, ¢ sofre da vizinhanga avas- saladora do grande proprietario; participa assim do regime que ele estabelece quase pelo mesmo titulo que os simples rendeiros © agregados. ‘A situago nao seré a mesma naquelas regides em que nfo se constituiy ou nio se manteve por um ou outro motivo a pro- priedade © dominio tipicos da grande lavoura. E 0 caso que Jé vimos do litoral sul da Bahia, do Espirito Santo e de outros es da colénia. Incluem-se também af, embora em circunstin- cias especiais, os distritos de colonizagao agoriana de- Santa Catarina, Os do Rio Grande do Sal nao precisam ser lembrados Porque se encontram jé em franca evolugao e deslocamento para & peoudria e outras atividades desta derivadas: a industria do charque, Em tais regides, ou boa parte delas, a maioria da populagio cabe antes naquela subcategoria vegetativa e inorganica da socie- dade colonial que acima snalisei. A agricultura que pratica é rudimentar, mais préxima do tipo caboclo. Se contribuiu para 0 comércio com algum, excesso, € em proporgées relativamente (42) Voyage oux sources..., 1, 17. Formagido do Brasil Contemporéneo 291 pequenas; is veres até esporadicamente apenas. As rclagdes socinis luc se estabelecem nestas regides de baixo nivel econdiico se ‘Gistinguem por isso profandamente das da grande lavoura, frato que sio estas tltimas de uma atividade realizada em condigies thuito diversas. Nada h4 que lembre af o grande senhor patriarcal, aristocrata e poderoso, dominando seu vasto efrculo de eseravos clientes. “Uma uniformidade e igualdade maiores, e portanto mais independéncia e menos hierarquia. Mas caracteres estes negativos e resultantes; antes reflexos da inorganizagio que de instituigées sociais distintas e préprias. Devemos fazer aqui um lugar & parte & colonizagio agoriana de Santa Catarina, Encontra-se aqui qualquer coisa de inteira- mente diverso ¢ singular na fisionomia do Brasil. Nao preciso repetr 0 que ji Jembre} cima: a pequena propriedade domina inteiramente, o escravo € muito raro, a populagao é etnicamente homogénea. Nenhum predominio de grupos ou castas, nenhuma Ihiera-quia marcada de classes. Trata-se em suma de uma comu- nidace cujo paralelo encontraremos apenas nas colénias tempe- radas da América, e foge inteiramente as normas da colonizacio tropical, formando uma ilha neste Brasil de grandes dominios escravocratas ou seus derivados( 43) ‘Tudo isto que acabamos de ver é em particular a situacio do campo; mas se nele se origina e estabelece, transporta-se tal qual para os centros urbanos. “A maior parte destes nio é senfo um apendice rural, um puro reflexo do campo. Em torno da igreja. paroguial e de um pequeno comércio, a venda ¢ a loja, eles se constituem(44). A quase totalidade ‘de seus moradores seri de lavradores que vivem normalmente dispersos na vizinhanga, As vezes até mesmo muito afastados, e que os procuram s6 0s domngos ¢ dias de festa. Quem os visita nestes ou nos demais dias of encontraré lternadzmente animados, ativos, ruidosos, ot fentio yazios de gente, em silencio, mortos. E que a populagio, neque nos lag comuns aos seus afters ruta, = eoncore nos oiltros, para cumprir seus deveres religiosos, fazer compras, (49) Saint-Hilaire escreve pormenorizadamente as condigdes de vida esta regio que vsitow. (Voyage aus procinces de Saint-Paul... IL.) £ interesante destacar, para fazct-lhe 0 patalelo com os grandes centros esera Voctstas da colbniay a abservagio do haturalista sobre a posicfo social rela {iva da mulher e do homem, com prceminénela marcada. daquela; enquanto Fo contri, como sabomos, que se passa no resto, do. pais, e consitul reno um dos tracos mais salientes e Garactersticos do patriarealismo. Ha com eetteza relagan diets entee tal fato e as citcunstancias particulares a formacio sockal dagucla regi. (1) Em muitas partes do interior do Brasil, os povoados hoje ainda se designam localmente por “coméreio”, Isto muitas vezes até quando se fata de eidades de inaigres valto, sedes de municipio © de comarca, 292 Caio Prado Kinior entabular negociagdes, avistar-se com amigos, assistir as festas. Viver a “vida social”, enfim, depois dos longos dias de segrega- mento na roga, De populagio fixa, 9s pequenos centros urbanos rnio contam seniio com raros comerciantes — e mesmo estes so freqiientemente fazendeiros da vizinanga que acrescentam assim © negécio as suas atividades rurais; excepeionalmente algum arti fice: quem precisari deles, quando as fazendas tém tudo e sat fazem. suas necessidades com 0 préprio pessoal? Mais numerosos os vadios ¢ as prostitutas. Tio disseminadas ambas as categorias, até nos menores povoados © arraiais, que os chefes de tropas, Doiadas e comboios procuravam o quanto possivel passar a0 largo deles, indo pousar no mato de preferéneia, 20 risco do deboche e dissipagio entre seus empregados. Nem mesmo o padre é sempre um morador fixo do povoado. Comumente acrescenta as suas fungdes sacerdotais outras mais terrenas de fazendeiro ou mine- rador, coisa que espantava e horrorizava o piedoso Saint-Hilaire, ue, a 0 abandono exprtual em que deixava 0 seu eebanbo Na medida da importincia da aglomeragao, a populagio fixa ceresee. AS fungées se tornam mais diferenciadas e exclusiva ‘© comerciante é sé comerciante, e nao apenas nas horas disponiveis aa lavoura; as artes ¢ oficios jf comegaram a se destacar das atividades rurais, e aparecem nos centtos urbanos os primeitos artifices auténomos. Vio surgindo algumas autoridades fixas © permanentes, como 0 juiz que nio é 0 mais simples fazendeiro a exercer 0 cargo nas horas vagas: nos julgadoy mais importantes, haverd um juiz letrado, que nio 6 do lugar, que vem de fora; donde sua designagio. Havers mais os serventudrios que se podem manter s6 com os proventos do cargo: escrivies, meirinhos, etc., © nao precisam completar 0 orgariento com outras ocupagées. Mesmo contudo nos grandes, nas maiores contros da colonia, a populagio de origem © raizes murais predomina, se nfo em imero, pelo menos cm categoria e riqueza. Sio os fazendeizos, senhores de engenho, grandes lavradores que formam a sua nata social, Dividirio 0 tempo, alternando a residéncia: na estagio da safra e de maiores trabalhos curais, permancecréo, quando muito diligentes, 0 que nem sempre é 0 eas0, nas suas fazendas engenhos. No mais preferirio os prazeres ¢ distragies da cidade. O absentisino € nos grandes propsctitios a vest. ¢ este babi é deplorado por todos aqueles que desefariam ver melhor parados os trabalhos da lavoura, abandonados como, ficamn aos chidados de prepostos pouco diligontes ou capazes. “Os grandes propric- tirbs bo Brasil, esereverd 0 Cons. Veloso de Olvera cin 1510, principalmente da parte maritima, vivem quase todos concentra’ dos nas cidades ¢ vilas, abandomando a cultura e diregio inteira Formesdo do Brusil Contemporineo 20% rnas suas fazendas a mais crassa ignorineia ¢ as sem-razées dos nisticos ilhéus dos Agéres e de pobres emigrados das, provincias do norte de portugal. .."(45). E 0 presidente da Mesa de Inspegio do Rio de Jancito, 0 Desembargador Rocha Gameito, descrevendo ‘em 1798 ad ministro D, Rodrigo de Sousa Coutinho 0 estado da agricultura da colénia, aponta o absentismo como um dos prin- cipais males de que ela sofria( 46) Siio assim os centros urbanos um reflexo das condigdes domi- nantes no campo. Os senhores rurais formam, af também, a classe superior. Mas jA nio esto sés: ombreiam com cles e gozam mesmo de preeminéncia social € protocolar, as altas autoridades da administragio militar, civil, ¢ eclesidstica: vice-reis, capities- gencrais, governadores, comandantes e altas patentes’ militares, desembargadores, bispos... H& também os profissionais, advo- gados sobretudo e solicitadores, que se integram como’ partes éfetivas na ordem judiciéria(47). © comércio forma nestes grandes centros uma classe bem Aifereneigda e definia, Jé'me refer a sua qualidade predominan- temente “reinol’, isto é, nativa do Reino. Mas, mesmo sem contar (08 pequenos comerciantes de retalho ¢ de géneros de primeira necessidade, que segundo Vilhena sio na Bahia “multidées" (45), fe que naturalmente nao tem relevo social algum, 0 que propria- ‘mente seria 0 grande comércio, nio parece ter sido de envergadura. Distinguiam-se entio dois ramos de atividades comerciais: 0 nego- ciante propriamente, “dispensado” ¢ “ttatriculado” regularmente, 0 simples comissdrio, com direitos e atividades limitadas. Seria 6 que éhoje um consignatirio ou agente eomercial, agindo sempre por conta e em nome alheios. Os primeiros sio em reduzido Bimero. B 0 que nos iniforma 0 Marqués do Lavradio, falando embora da principal praga da colénig, 9 Rio de Janeiro: “A maior parte das pessoas a que aqui se dé o nome de comerciantes, nada mais séo que uns simples comissirios...; a nica casa que ainda se conserva na regra de comerciantes € a de que se acha senhor dela Francisco de Araijo Pereira, com sociedade de seus pprimos e de alguns sécios em Europa, Aqueles negociantes que aqui passam por mais ricos, como Bris Cameiro Leio, Manuel (45) Meméria sobre a agricultura, 93, (48) Oficio de 28 de abr de 1798, in Correspondéncia de vérios ‘autoridades, 291 (47). '0 advogado colonial nfo 6 o simples profissional de nossos dias; tem, a categoria de um alto serventudrio da justice, © uma parte, um Verdadeiro oriio da justiga piblica. Vestigio deste passado_encontramos dinda nas fGrmulas de praxe que os advogades contemporaneos empregam hug seus discursos oficais, (48). Recopilagao, 50. 294 Coto Prado Jénior da Costa Cardoso, José Caetano Alves ¢ alguns outros, tém cons- tituido a sua riqueza eo seu funda no maior comércio de comissGes que tém tido, isto é, de fazendas © navios que Ihes tém.sido consignados... Estes homens, ainda que tém de fundo, © sio honrados e verdadeiros, no posso considerar as suas casas como casas de comércio porque é preciso saber que eles ignoram 0 0 que é esta profissio, que eles nem conhecern os livros que Thes 0 necessérios, hem sabem 0 modo regular da sua escrituracio” (40). Apesar disto, 0 comércio tem na vida social da colénia uma posicao importante. Nao que goze de grande consideracio; pelo Contrdrio, 0 trato de negécios nao se via com bons olhos, e tazia mesmo um certo desabono aos individuos nele metidos, Fruto de um velho preconeeito feudal que nos veio da Europa, © que se manterd no Brasil até época muito recente(50). Muitas pessoas abonadas da colénia escondiam por isso seus interesses € ativi Gades comerciais sob a capa de_testasde-ferro que aparecem por elas manejando seus capitais(51). Mas com tudo isto, 0 co- éreio 6 uma classe eredora, é quem financia a grande lavoura Senhores de engenho, lavradores, fazendeiros so seus devedores; e tanto mais presos as dividas que sua posigéo social, vaidade & educagio perduliria os levam & gastos excessivos e’ supérfluos, {que nos momentos de crise, os poem em dificuldades e apertos muito sérios(52). Oficialmente também, o negociante nfo sofre cfo alguma e est& em pé de igualdade com as demais classes possuidoras. A antiga legislacio portuguesa que lhe impunha Eigumas diminuigoes, como a de nao porler ocupar os cargos dos Senados das Camaras (Cémaras Municipais), caira em desuso no Brasil, e encontramos mercadores nas Camaras de todas as (49) Relaéxo, 455, “No Brasil, Ik comerciantes de cabedal quo nom ler sabem.” Core Bras. Jan, 1513. X, 89. (50) "As coloeactes comerciais mais alas, exereveré Oliveira Lima 48 para 0 fim do reinado detraram de ser corsideradas, mésallaces” (0 Inpério brasleto, 247.) “AS atibulagées de um Maus, incompreendido e ttipstizado, nfo” tiverim outra origem;_ para os bacharéis e proprietrios ‘martejavam 0 Impéro, ele ¢ apenas 9 “comerciante”, 0 homem de negslos. (31). Vibhena, Recopilagdo, 49. (52) Vejamse a rexpeito disto © das relagdes pouco amistosas de senhores ‘de engenlio e lavradores, devedores ‘crtnlcos sempre povco fol gados, e comereante, eredores erigentes, as inforesantisinas_dhoerracdes felativas 4 Babin da segunda metade do’ sée, XVIII do autor anémimo da Devcrgdo preliminar..cs 21. O autor & francamente simpético 208 agsic tores, e acisa amafcamiente 0 comérco, que “engrosa com 0 suo ite fe sangue, da agtcultura...” (como se véi a cantiga & velba); may reco 5 conficida irogularidade” dor gastos de senhores © lavradores, Formagdo do Brasil Contemporéneo 295 cidades ¢ vilas da colénia(53). Formavam mesmo uma categoria recoshecida e oficialmente prezada, ¢ nesta qualidade partici- pavam dos conselhos da administracio piblica. Assim nas Mesas de Inspegio, criadas em 1751 nas principais pragas da colénia para superintenderem o comércio do agiicar e do tabaco, entra- vam os negociantes com dois representantes, ao lado de dois dos senhores de engenho e outros dois dos lavradores dle tabaco. Nestas condigées 0 comércio, apesar da prevencio que contra cle havia, ocupa uma posigio ‘de relevo. Pode fazer frente & utra classe possuidora da colénia, os proprictérios, e disputar-lhes a prmazia, Eo que efetivamente se deu, e as hostilidades que dai cesultam sio de grande repercussio politica. Teremos aqui no Brasil uma réplica da tradicional rivalidade de nobres e burgueses que enche a histéria da Europa. E se tomardo entre nnés ‘anto mais vivas e acirradas que trazem um cunho nacional, pois como vimos, séo nativos do Reino aqueles tiltimos, enquanto 6 outros vém dos primeiros ocupantes ¢ desbravadores da terra. ‘Com mais direitos, portanto, entenderdo cles. ‘A administragio © a politica metropolitana tinham natural- mente que contemporizar com ambas as facgoes, igualmente fortes. AS suas simpatias intimas, no entanto, pelo menos a pessoal dos seus representantes ¢ funcionérios na colni, também reins or via de regra, tinham de ser, esta claro, por seus patricios. E Redo isto vai nim crescendo sensivel, na medida em que 0s caracteres “nacionais” das classes em luta se vio definindo. A distingao entre nativos do Reino e da colénia, a principio amorfa apenas sentida, 6 mais uma simples questo secundiria, de “fato” e nio de “direito”, se tornara com 0 tempo um assunto palpitante e essencial. J4 comeca mo momento que ora nos ocupa a se exprimir em ‘termos proprios: brasileiros, em oposicio a portu- gucses, quando “portugueses” tinham sido até entio todos, nas- Cidos aqui ou acolé, e “brasileiros” os residentes na colénia ou (53) Afiema Gayozo que em Sio Lufs do Maranhio se recomegou « exchuie os negociantes do Senado, em 1792. (Compéndio historico, 132.) J thes davida dst intormaséo (Obrs, tH, 53) "Realment, jt enléo tinham cafdo em desuso completo es determinagSes logais a respite, e que ste timo autor eitado sumaria (oe, eit. 1, 169), sendo altima de 1947. ‘Até na vila fronteira a Sao Luls, Alciniars, a menos de 3 Iéquas de dis- ‘incl, havia offclals da Clmara mercadores ‘de profissio. Mas J. F. Lisboa rio fondamenta a sua divida, e 6 de crer que’ Gayozo, contemporineo do gue cofere, falasse verdade. Em todo caso, 0 que se passarin em Sio Luis Eno momento que not ocupa wma excogio nica, — Confirmando a alir= tnagio. de Gayozo encontramos a Provisio da Mesa do Desemhargo de 17 de jako. de 1813, onde se determina que podian o-upar os cargos da Cintra de Sio Lis todos 0s damiclindos na éidacle, mesmo que nto fossem nature dela, 206 Caio Prado Finior que aqui tivessem feito fortuna, fossem embora de origem metros politana, A Iuta de proprietarios ¢ comerciantes, reforgada assim com. fundamento na naturalidade dos oponentes, se manifesta na cold nia, como se sabe, de longa data; ¢ sai mesmo para 0 terreno da violéncia em agitagdes que se tornaram notveis, a revolta de Beckmann, no Maranhao, ¢ a guerra dos Mascates em Pernam- buco. Com o tempo ela se aprofundari, e se alastra com a participagao de outros grupos. A monopolizagao das posicées Comerciais praticada em eneficio dos rein6is, vai_atingir outras classes da populagio nativa da coldnia, fechando-thes as portas para possiveis colocagées, j& de si to escassas, A luta acabard envolvendo todo. mundo, levantando contra os “mascates”, “pés- -de-chumbo” ou “marinheiros”, (¢ como pojorativamente se’ dsig- rnam os portugueses) a oposigao geral dos colonos nativos do Brasil Serd nas agitagdes da Indegendéncia e no periodo que a segue, prolongando-se aliés por ‘muito tempo, que tal situagio se definira claramente, degenerando nao raro em lutas armadas de grande intensidade( 54) (5A). Analiset a mati, no conjunto da istria brasileira, embora resumidamente, em men trabalho, Exolugao pokton do Bravd, S80" Pasio 1955. ~ Mar lant, no kino exptelo, volte sobre este aspect politica Gn opaiizio do comcctantes, propasrior demais classe da: popelagte entre a Fommacdo do Brasil Contempordneo 297 Para se compreender @ administracio colonial & preciso antes de mais nada desfazer-se de muitas nogdes que jase toraram em nossos dias verdadeiros prejuizos, mas que no momento que fora nos dcupa comegavam apenas a fazer caminho nas idéias contemporineas e nos sistemas juridicos em vigor; © em parti- eal, jgnorava-as por complete administragio portuguesa. Assim a de “fungdes” ou “poderes” do Estado, separados e substancial- mente distintos — legislativo, executivo, judiciério; assim também esferas paralelas e diferentes das atividades estatais: geral, pro- vincial, local. Ainda, finalmente, uma diferenciagio, no individuo, de dois planos distintos, de origem diferente e regulados diver- samente: 0 das suas relagdes externas e juridieas, que cabem no Direito, e 0 do sew foro intimo — a erenga religiosa com seu complexo de priticas ¢ normas a que ela obriga: o oédigo moral e sacramental —, regulado pela Religiio. A divisio do Homem, como dizia Lacerda de Almeida, em dois seres distintos, 0 cidadio na Republica 0 fiel na Igreja”(1). Todas estas nogdes se con- sideram hoje “principios cientificos’, 0 que quer dizer, dados absolutos, universais, Rejeité-los na pritica, na regulamentagio juridica de uma sociedade, naquilo que se chamou direito positivo, constitui perante a “ciéncia juridica” moderna, um “erro’; da mesma natureza ¢ tio grave como seria o do arquitcto que planejasse uma construgao sem atengio as leis da gravidade. Mas © fato é que néo era assim entendido entao, naquela monarquia portuguesa do séc, XVIII de que faziamos parte. Considere-se isto hoje um “erro”, fruto da ignordncie ou do atraso, como dird © progressismo; ou, como julgo pessoalmiente mais ‘verdadeiro, ‘um certo “momento histbrico”, nfo é meu objetivo discutir aqui (GQ) A Trea ¢ o Eade, 29. Lacerda de Almeida naturalmente com- hate te date, endo ernie que 6 miso terena teri, que nao 6 aajuele em que'me enloco aque que ali nfo interesa, Cito! apenas. fetage pte ta dar oncepose ferent, ams to sera ne Eomo'a ovlra, pore sfo fats histOrlcos e no‘dador absolutos, © que ine teressa tazer para aged porque, com as idélas hoje em vigor, @ adminis: tragao colonial em muitos de seus aspects, se torna incomnpreensivel sem ff devida eistingdo ene cls 298 Caio Prado Hinior este ponto, O que interessa € que no momento que nos ocupa, administragéo portuguesa, ¢ com ela a da colénia, orientava-se Por Prinlplos diversos, em que aquelas nopses citadas nto tém lugar, O Estado aparece como unidade inteiriga que funciona num todo tinico, e abrange o individuo, conjuntamente, em todos seus aspectos e manifestagdes. Hé, esté claro, uma divisio de trabalho, pois os mesmos’ érgéos e pessoas representantes do Estado néo poderiam desenvolver sua atividade, simultaneamente, fem todos 05 terrenos; ¢ nem convinha aumentar excessivamente © poder de cada qual. Expresso integral deste poder, e sintese completa do Estado, s6 o ref; das delegagdes que necessariamente faz do seu poder, nasce a diviio das fansbos. Mas uma tal visto 6 mais formal que funcional; corresponde antes a uma necessidade pritica que a uma distineao gue estivesse na esséncia das coisas, hha natureza especifica das fung6es estatais. A propria divisio marcada, nitida e absoluta, entre um direito publico, que diz respato is rolages coloivas @ privado, ds individunls, distin fundamental em que assenta toda estrutura do nosso direito mo- demo, deve ser entendida entao, entre nés, de uma forma bem diversa da dos nossos dias. Nao ¢ possivel aventurar-me aqui no desenvolvimento tebrico destas questées, pois seria isto entrar para o terreno de uma losofia histérica do direito que nos levaria longe, exigindo trata- mento a parte e alheio 20 nosso assunto. Se fiz a observacio acima, observagdo apenas e nao afirmagio de principios, foi unicamente para definir a posigio que devemos tomar ao abordar a andlise histérica, e puramente histérica, como 6 esta aqui, da administragio colonial; preparar o espirito do leitor, mais dado 1 nogées de que precisamos aqui fazer tdbua-rasa; e'para adotar ‘um ponto de partida que facilite a andlise que segue, e que € unicamente a nogao ampla e geral em que efetivamente assenta fe em que se entrosa a administraga0 colonial: a da monarquia portuguesa, organismo imenso que vai do rei e sua cabega, chefe, pai, representante de Deus na terra, supremo dispensador de todas as gragas e requlador nato de’ todas as atividades, mais que isto, de todas as “expressdes” pessoais e individuais de seus Siditos ¢ vasslos, até o tlio destes, mas ainda assim com seu papel e sua fungio, modestos embora, mas afetivos e reconhecidos no conjunto do organismo politico da monarquia. Despidos assim de todas as outras nogdes que sio para nds de data recente que a do perfodo ora em vista, no correm o risco de anacronismos Derrantes, tio freqiientes nesta matéria e que tanto a obscurceem. ‘Ainda hé uma coisa que devemos manter presente. £ que a administragdo colonial nada ou muito pouco apresenta daquela uniformidade e simetria que estamos hoje habituados a ver nas Formacdo da Brasil Contemporéneo £99 administragdes contemporineas. Isto 6,-fungdes bem diserimi- vadas, competéncias bem definidas, disposigo ordenada, segundo mm principio uniforme de hierarquia e simetria, dos diferentes Srgios administrativos. Nio exisem, ou existem muito poucas normas gerais que no diteito piblico da monarquia portuguesa regulassein de uma forma completa ¢ definitiva, 4 feigao moder- nna. atribuigdes competéncia, a estrutura da’ administragio € de seus varios departamentos. Percorra-se a legislagio adminis- trativa da colénia: encontrar-se-4 umn amontoado que nos parecers inteiramente desconexo, de determinagdes particulares e casuiticas, de regras que se acrescentam umas. as outras sem obedecerem a plano algum de conjunto. Um cipoal em que nosso entendimen- to jaridico’ moderno, habituado 2 clareza e nitidez de, principios erais, de que decorrem com uma légica “aristotélica” todas as ‘regras especiais e aplicagdes coneretas com um rigor absoluto, se confunde e se perde. Depois das Ordenagies, as tiltimas, as filipinas de 1643, € que formam a base da legislagio portuguesa, decorreram, até 0 momento que nos ocupa, século e meio de cartas de lei, alvards, cartas e provisoes régias, ordens, acbrdios, assentos ¢ que mais, formando tudo 9 conjunto embaralhado npioso da chamada legislado exiravegante, Mas nem mesmo, a Tegislagio anterior as Ordenagées foi por elas toda revogada; fem patticular naquilo que diz respelto 4 administragio colonial © direito das Ordenagdes € omisso, e continuaram em vigor depois delas e até a Independéncia (e quantas mesmo até mais tarde?), disposighes inclusive do primeiro século da colonizacio. Eas propria Ordenagdes, embora formem cédigo, estio muito loage Gaquela generalidade, légica, método e precis4o dos nossos cédigos rodeos: E todo este caos imenso de leis que constitul o ditto administrativo da coldnia. Orientar-nos nele & tarefa ardua. Orgios fe fungées que existem mum lugar, faltam noutros, ou neles 9 recem sob forma e designagio diferentes; os delegados do poder recebem muitas vezes instrugées especiais, incluidas em simples comespondéncia epistolar, que fazotn lei ¢ freqientement,esta- Ipelecem normas otiginais, distribuigdo de fungGes e competéncias diferentes da anterigrmeste em vigor- Quando se exit tet novo 6rgi0 ou fungi, a lei no cogita nunca de entrosé-los harmoni- camente no que jé se acha estabelecido: regula minuciosa casuisticamente a matéria presente, tendo em vista unicamente «as necessidades imediatas. Mesmo quando um destes érgios ou fungées, ou coisa semelhante, jé se encontra noutro lugar, @ nova regulamentagio ndo se preocupa com isto, e estabelece novas especiais determinagées. E tudo isto com a pritica de acres- centar 0 revigoramento, de, um modo geral, de todas as ordens anteriores, ou apelar para “0 que se pratica no Reino”, como é 200 Caio Prado Jénior freqiiente, gera uma confusio tio inextricdvel que os préprios contemporiieos mais versados ‘mn leis munca seblaqy d) terto em que pé se achavam. Como resultado, as leis nao sé eram uni farmemente aplicadas no tempo e no espago, como freqiienteacnie se desprezavam inteiramente, havendo sempre, caso Fosse ncecs. sitio, um ou outro motivo justificado para a desobedineis. F dai, a relagio que encantramos entre aquilo que femos nos textos logais e 0 que efetivamente se pratich € smuitas vezes remota ¢ Vaga, se nao redondamente contraditéria. Sendo assim, ¢ como 6 eats pritia que mals nos inferessa aqul, © nfo a Leora, temos gue rocorrer com a maior cautela aqueles textos legals ¢ proc je preferéncia outras fortes para fixarmos a vida admiistrativa da colénia, tal como realmente ela se resentava. Para isto, infelizmente, estamos ainda mal aparelhados, So é verdade que jh possuimos regular copia de ddcumentos ofteais publicades, tle! o foram apenas em" povcas cicunserigées do. pile: Rio. de Janeiro, $0 Paulo; muito menos em Minas Gerais, na Bahia, Pemambuco; quase nada nas outras, E dado o sistema assimtries da administragao colonial, ficamos, mesmo com 0 conhecimento daquclas fontes, numa grande incerteza do resto, e portanto do conjinto. Por todas estas razées, devemos abordar a anilise da admi- nistragao colonial com o espirito preparado para toda sorte de incongruéneias. E_sobretudo, nao procurar hela esta ordem ¢ harmonia arquiteténica das instituigdes que observamos na admi- ristragio moderna, e que em vo se tentard projctar num passado cabtico por natureza, De um modo geral, ‘pode-se.afirmar que 2 administragio portuguesa estendeu ao. Brasil sua organizano e seu sistema, ¢ ndo criou nada de original para a colonia. As “donatirias” o foram; mas os donatirios desapareceram cedo, substituidos pelos governadores e capitaes-gencrais. As fungées destes ainda guardario um cunho proprio ¢ caracteristico, ine- xistente em Portugal. Mas elas confirmam, menos que invafidam, a observagio da falta de originalidade da metropole no organizar administrativamente a colonia, a incapacidade ‘por ela demon trada em criar érgtios diferentes e adaptados a condigées peculiares Que nfo se encontravam no Heino, O “governador’ 6 uina figure hibrida, em que se reuniram as fungdes do “Covernador das armas” das. provincias metropolitanas; umn pouco das de outros érgios, como do “Governador da Justi¢a”, do préptio rei. Contudo, nunca se earacterzou nitidamente, ¢ sua’ competencia jursdigS0 ‘ariaram sempre com 0 tempo, de um goremador para. outro, de uma para outs capitania,, variaram sobretudo em funcio da personalidade, carter e tendéncias dos individuos revestidos do cargo. E como 0 nico modelo mais aproximado que se tinha Formagio do Brasi) Contemporsneo 301 dele no Reino er o do citado governador das armas, ele sempre foi, acima de tudo, militar, com prejuizo considerdvel para o bon funicionamento da’administragéo colonial. ‘Afora isto, as inovagdes sto insignificantes e nao alteram o sistema e carter da administracdo que seré na colénia um simile perfeito da do Reino. O que se encontraré de diferente se devers mais As condigées particulares, tio profundamente diversas das da metrépole, a que tal organizagio administrativa teve de se ajustar; ajustamento gue se processaré de “fato”, e nfo regulado jor normas legais; espontinco e forgado pelas_circunstancias: Bitado quase sempre ‘pelo arbitrio das autoridades colonials. Originalidade deliverada, compreensio das diferengas ¢ capaci dade para concretizé-la em normas adaptadas as’ necessidades eculiares da coiénia, isto a metropole raramente fez, e nunca Be uma forma sistematica e geral. 36 no regime fiscal, quando se tratava de tributos ¢ a melhor forma de arrecadé-los, que a administracéo portuguesa procurava sair um pouco da sua rotina. Mas ainda ei, que falta de imaginagao! A histéria acidentada da cobranga dos quintos est ai para comprové-lo, Mas parte isto, praticamente todas as instituigées que vamos encontrar no Brasil nio sio mais que repetigio pura e simples das similares Ietropeltanas, Nos melhores casos, nos de maior originalidude, no passam de pligios ou arremedos muito mal disfarcados. Poderiamos multiplicar os exemplos neste sentido: seria aliés mais fel sumdrioenumerar as eriages propriamente.origh nais(2). Mas para nio alongar demasiado 0 assunto, lembremos aqui apenas © caso mais flagrante, e de todos talvez’ 0 de efeitos mais nefastos daquela norma de copiar servilmente aqui sistemas do Reino. Foi o de contralizar 0 poder e concentrar as autoridades; reuni-las todas nas capitais ¢ sedes, deixando o resto do territdrio mente desgovernado © a centenas de léguas muitas vezes da autoridade mais préxima. Naturalmente a extensio do pais, a dispersio do povoamento, a deficiéncia de recursos tomavam diffe! a solugao do. problema de fazer chegar a adminstragto, numa forma eficiente, a todos os recantos de tio vasto territério, Mas em vez de obviar aqueles inconvenientes com uma dispersio méxima de agentes, a administragio metropoiitana, repetindo fiel- mente 0 que se praticava no minusculo Reino, deixava-as todas, ou a maior parte delas, nos centros principais onde sua agio se (2) Fol somente a administragio de Pomhal que procurou crlar na coldnia alguma coisa de novo, Sua tntencdo em todo cava’ era esta, ‘Se r= ‘eassou na maior parte dos casos, & que ndo contava com outa coisa que a fotina © incapacidade da burocracia portuguesa, contra a qual nada pode fazer, 802 Caio Prado Jinior fornava quase inétil pela distincia em que ficavam de sous admi- nisirados. Veja-se por exemplo 0 que se dé com as Reledes do Rio de Janeiro ¢ da Bahia, que contava cada qual para mais de 30 pessoas, entre desembargadores e funciondrios, todos larga- mente remunerados, enquanio na maior parte da colénia a admi- rristragio ¢ justica ‘néo tinham autoridade alguma presente ou acessivel, ou entdo se entregavam, nos melhores casos, & incom- peténcia’e ignordncia de leigos como eram os jaizes ordindrios, simples cidadios escolhidos por eleigio popular ¢ que serviam gratuitamente. Coisa semelhante se repete na divisio territorial adininistrativa. E nas vilas, sedes dos termos e das comarcas, que se concentram as autoridades: ouvidores, jaizes, cimaras e as demais. Era este 0 modelo do Reino, e ninguém pensou em modi- ficé-lo. Ou se tratava de uma vila, entio todas aquelas autoridades deviam estar presentes, ou ndo cra vila, ¢ nio tinha nada. Assistimos por isso aos dois extremos igualmente absurdos e altamente pre- judiciais: vilas com termos imensos, de territério inacessivel, ma sua maior parte, aos agentes da administragio concentrados na sede; e vilas apenas nominais, em que nem havia gente suficiente eapaz para preencher 0 nimero, elevado demais para elas, de ‘cargos pablicos(3). Entre estes extremos nao havia meio termo. Obviowse em parte ao mal de jurisdigées em territérios imensos com a pritica das correigdes ¢ vssitacdes, isto &, espécie de excur sées administrativas em que 2s autoridades percorriam as suas jurisdigées; mas isto que, dado aquele sistema de concentrag deveria ser qualquer coisa de permanente, constitu, aconte mento excepcional, e s6 as autoridades mais dirigentes o pratica- vam com alguma assiduidsde. Mas mesmo quando € este 0 caso, aquelas excursdesadminisativas no tinham @ maior parte dati idade que poderiam ter, dadas as circunstincias em que se reali- zavam; ¢ isto porque, sempre de acordo com as similares do Re no, seu objetivo era mais de fiscalizagio, supervisio geral ou aud éncia de recursos; ena verdade muito menos havia que fiscal superver ou tomar conhecimento de recursos, que agir e adminis trar efetiva © dirotamente. Mas deixemos estas criticas & administragio colonial, que re- servo para analisar em conjunto mais adiante, para nos ocuparmos propriamente com a organizagao da colénia. O Brasil néo constitui ara os efeites da administragio metropolitana, uma unidade. O que havia nesta banda do oceano, aos olhos ‘dela, eram varias (3) Isto se verificon particularmente com relagio as antigas aldeias de Sndios, elevadas a vilas, pela lel de 6 de junho de 1755. Em poucs deias'a Bima ¢ demas’ dgios adminisatves puleram so ongataar © jancionse mormalmente. Formario do Brasil Contemportneo 303 colinias ou provincias, até mesmo “paises”, se dizia as vezes, que, sob o nome ofclal de eapitanias, so integravam no coDjunto. di monarquia portuguesa, e a constituiam de parceria com, as dennais partes dela: as provincias do Reino de Portugal e as do de Algarve, 6s estabelecimentos da Africa e do Oriente. A monarquia forma tum complexo heterogéneo de reinos, estados, provincias europtias ce ultramarinas, capitanias ¢ outras cireunscrig6es sem titulo certo, qualquer coisa de semelhante ao Império Britinico de nossos dias. 6 qu hoje designamos por Brasil eunla um grupo dagucls cr cunscrig6es; ¢ 86 assim, para os efeitos da anilise da administra- G40 colonial, que o devemos entender. A nossa unidade, embora txistise na geografia e mesmo no consenso de todos, aparecia off cialmente apenas nos titulos honorificos do Vice-Rei do Brasil (que assim mesmo era correntemente mais conhecido por Vice-Rei do Rio de Janeiro, onde tinha sua sede), e no do Principe do Brasil, jue traziam os primogénitos da dinastia de Braganca ¢ herdeiros Ae coroa. Tambbm se encontra no chamado Estado do Brasil, que reunia, mas sé nominalmente, as capitanias meridionais, em opo- sigio ao Estado do Paré ¢ Maranhiio, que compreendia, também sé nemipalmente em nossa époce, estas captansse mals a subs temas do Piaui e Sio José do Rio Negro. Mas estas designagées j& tinham perdido, facia muito tempo, qualquer significagao pré- tica, A confusio entre estes dois pseudo-estados é mesmo tamanha, tue no texto de uma lei importante como o alvard de 17 de agosto Eds que aprovou o Dietério dos Indios, encontramos a desige nagio Estados do Brasil empregada nos dois sentidos: geral para 0 Brasil toda, e especial no sentido acima, De fato, restava ainda como sinal da antiga divisio, no momento que nos ocupa, unica mente a jurisdigio da Casa de Suplicagio de Lisboa, que funcio- hava como tribunal de segunda instincia para as capitanias do Estado do Pari e Maranhio, cabendo tal jurisdigao, nas demais capianias, as Relagées da Bahia do Rio de Janeiro. Também na divisio eclesidstica, pois as dioceses do Para ¢ do Maranhao cram sufragineas do Arcebispado de Lisboa, ¢ as outras, do Primaz da Baha, Para a administragao geral das capitanias (bem como de todas as demais possess6es portuguesas da Africa Oriente) havia 0 Conselho Ultramarino, que se subordinava a umn dos quatro Secre- trios de Estado do Governo (Secretério de Estado dos Negécios da Marinka e Dominios Ultramarinos). Polo Conselho transitavam todos os negécios da eoldnia, salvo unicamente os da competés de Mera de Consciénca ¢ Ordens, outro departamento da adm- nistragao portuguesa, e que se ocupava com os assuntos eclesids- ticos, bens de deluntos e ausentes, ¢ com os negécios das Ordens Miltares (as de Cristo, Avis e S. Tiago); estas ordens estavam 304 Caio Prado Jinior organizadas no Brasil, embora sex papel fosse aqui praticamente nulo(4) As fungées do Conselho nao se limitavam a uma simples di- rego geral. Entrava no conhecimento de todos os assuntos colo- niais, por menos importantes que fossem, e cabja-lhe resolve-los nfo s6 em segunda instincia, mas quase sempre diretamente. Os dele- gados régios, por mais élevada que fosse sua categoria, nao da- ‘Yam um asso sem sua ordem ou consentimento expresso. A e tensa © pormenorizada correspondéncia dos governadores, as mi- nuciosas ordens ¢ cartas régias que de lA se expediam, mostram a gue particulares e detalhes mininos desciam as providéncias dire tas da metrépole. “A ingeréncia da metrépole nos minimos negé- ios coloniais, escreverd J. F. Lisboa, tocava a extremos quase fa- bulosos. Empregados Semi-subalternos iam prestar suas contas corte; na corte deviam justificarse todas as dividas de ausentes excedentes a uma algada infima; comegadas na Bahia, na corte é que iam concluir-se as arrematagdes de certas rendas. Era da corte finalmente que se expediam licengas para advogar, passa- portes, baixas, isengées de recrutamento e diversas outras providén- cias sobre foguetes, marca e qualidade das madeiras das caixas de agticar, e custa a cré-lo, até sobre as saias, adornos, excursées no- tumas’e lascivia das escravas"(5). De tudo se queria saber em Lisboa, ¢ por tudo se interessava 0 Conselho. Pelo menos teorica- mente, pois na realidade, a impossibilidade material de atender a tamanho aciimulo de servigo nao s6 atrasava consideravelmente 0 expediente, de dezenas de anos 2s vezes, mas deixava grande ni- mero de casos a dormir 0 sono da etemnidade nas gavetas dos ar- quives. As capitanias que formavam 9 Brasil so de duas ordens: prin- cipais ¢ subalternas. Estas sio mais ou menos sujeitas aquelas; muito, como as do Rio Grande do Sul ¢ Santa Catarina ao Rio de Janeiro, ou a do Rio Negro a0 Pari; pouco, como a do Ceard € outras subalternas de Pernambuco. Mas em conjunto e de uma forma geral, os poderes dos governos so os mesmos em ambas as (4), Tinham.se tomado oom o tempo purameite honcifics, « seus “habitos, into &, 0 thule de partlpuedo, exam franca ¢ abertamente wens didos. Asin’ o ‘pai do Visconde. Nogueira da Gama, futuro mordomo do mperadon, adgulein 0” tsle para o seo filho, que contacaentan. apenas sate (F808), for 10000 ‘ound lg Risen do Cond on Sestio do Institto iste ex 1687. — Na'Gazeta do Rio de 25 de julho de 1810 encontrase 0. angneto Ga vinda do vin fbito do. Cristo. (5) “Obra, Il 15. vol. 1 das Publcagdes do. Arguico Narionl, se cencontrers'9 Caidlogo das carts regis, provides avari aviso, potas, tte. expodias ao. governador e rab tarde Vice do Tio de Joheito, de 6621521. Vale a pena pasar por ele or vthos par ver os assntos de que se ccopava a adninitagio om ‘Lisboa Formagdo do Brasil Contemporéneo 305 categorias provinciais. $6 0 titulo do governador diferia: capi general ¢ governador, nas principals, capitdo-mor de capitania (nic confundir com capitio-mor de ordenancas), ou simplesinente wwernador, nas demais. O capitdo-general do Rio de. Jancito, Jepois do 1763, (dantes cra o la Bahia) tinha o Ktulo altissonante Ina oco de Viee-et do Brasil Seus pores, em principio, io cram maiores que os de seus colegas de outras capitanias, e ni se estendiam, além da sua jurisdigdo territorial de simples capitio. -general(6). ‘A capitania forma pois a maior unidade administrativa da coldaia. Divide-se seu territério em comarcas, sempre em pequeno smero(7). A comarca comptes de terms, com sede nas, as fu cidades respectivas(8). Os termos, por sua vez dividem-se em freguesias, circunscricio eclesifstica que forma a pardquia, sede de uma igreja paroquial, e que servia também para a administra (qo civil. Einalmente as freguesias ainda se divider em bairros, Gircanserigio, mats imprecis, e exo principal papel aparece a organizagio das ordenancas, como veremos abaixo. Passemos sumariamente em fevista as autoridades ¢ hierar- juia administrativa destas varias cireunserigdes. Na capitania, 0 Gaele supremo. 6-0 goverador (viee-el,eapitio-gencral, capitio- “mor, governador simplesmente). A sua funcdo, jé 0 notel, & es- sencialmente militar. Nao que ele sefa necessariamente um militar de profissio, o que alids nfo é comnum. Mas ¢ 0 comandante supre- mo de todas as forgas armadas de sua capitania, bem como das Subaltemas. Endo apenas nominal ou para certas ocasiées, mas (6) Numa controvésia entre 0 Vigeet do Rio de Jancio e o Capi- viable So" Pao Berard es de Loren, brite, a tani respectivas, em gue alse 0 fegundo scabos)vencendo, ambos mpa- Fat ag Remo ‘plano’ Velute ‘como. ae refer. a0. asunlo 0. Vice-Rel IMtecsado no seu Oficto de 1780 0 entrar o.governo 29 sucessr pa Bei umn crn jroo cere doo de Jo om Miss Genial omborn fone esta eaptania principal Ciy"Minas Goran, 4 Bahia, 4 (oma delas Sersipe): Sio Poul, 2 (com Purantt que fonmavel a comarca de Poranagud e Curitiba; em 1811 Gfomse tals «"comaren de Its); Pemambuco, 3 (Alagoas era uma dels) Gat '2 dapois da divisio de 1619.) — AS demas capitanias 6 tinham (B76 title de cidade era purmente honoree, e nh tazia prvi 1égio'shgum, Hania as seguintes exdades nes primeion ‘anos do secu pas- wee. Sie rato, Mariana, Rio de aneir, Cabo Frio. Salvador, Oleda, Parte, Nate, Sio Luis do Maranioy © Belém do Park As cidaes sees fs Hepado se chamavam epucopats (Bahia, erqlepcopal). Marana, embors Studd cpocopas nao era nem sede de comares, © petencla 4 comarca de Vile Rist (Ore Peto). Calo Fro er eile porgue desde sun Fund Mou ete tol, nfo’ os saber bem por qué. ‘Ar demas so. de ct Sipe, se onignam do anges vise 306 Caio Prado Jinior efetivo e permanente: trata de todos os negécios militares pessoa! mente, c nfo existe na capitania outra patente que se ocupe deles pnt: os varies eomandants 6 todos sus subordinads, tém fungées restritas a seus corpos ou comissées respectivas(9) Nesta qualidade de militar, o govemador € grandemente absorvido pelas stas fungGes, a que deve dedicar o melhor das suas aten- Ges. Sobretudo quando é o caso de eapitanias onde os assuntos desta natureza sio prementes, como 6 0 caso do Rio de Jancizo, cujas subalternas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul se acha- vam nas fronteiras de vizinhos com que viviamos em dificuldades © atritos. O cariter essencialmente militar das fungSes do gover- nador aparece entio claramente; basta observar o lugar de desta- que © 0 espago que os assuntos desta natureza ocupam na cor pondencia e os relatérios dos vice-reis do Rio de Janeiro: sobra- “thes pouco para tratar de outmas matérias(10). Mas embora participe deste carster militar, 0 governador 6 a cabega de toda administragio em geral. Nao entratei no porme- nor da sua competéncia, enumerando suas atribuigées, porque & geral e ampla, em todos os scto:es, com relativamente poueas ex- Cogdes © restrigbes(11). Com ito, nfo é de admirar que seja levado aquele poder absoluto que tem sido a maior critica feita administragao colonial, sobretudo pelos historiadores do. século passado, to préximos ainda do tempo em que sua figura temida Se pijeava Sobre o pais. Critica muita veres exagerida, pore aqucla figura de regulete com cue se apresenta, e aparecia efeti- vamente aos contempordneos, ercobre na realidade fraquezas que s6 hoje, passadas as paixdes do momento e devassados os segredos dos arquivos, podemos avaliar com mais seguranga. Em primeiro lugar, acima do governador, vigilante, ativo ¢ estorvante, ld se encontrava o governo central da metrépole. Vimos até que ponto ele Tevava sua tngeréncia na vida da colnia; 0 governador heava Por isso, em regra, adstrito a normas muito precisas e rigorosas, (9) A pretensio de alguns comendantes em se sobregorem nos_neg6- cics militares autorlade do governidor, on agtem paralclamente, no ero regular: sore sem divida, mie, quando encottrava pela frente tin gover” Tell endrgico ¢ eonsciente de ae fungoen, restabeleci-so logon Serda- dia herargula. Vejuse a respeto o que fefere 0 Marques, do Laviadio to seu Molter, 418, As vores, & sua qualidade de-conandantechete, 0 ffovernader alla tinda’'a de comandante nato de alguma unital, comodo Ee regiment os ter susler a abla © culms capa, (§0}""O Cons. Velono de escrevendo em 1892 sobre a ne- cessidade da refora da adminieagan bras, cca sobrtudo carder mlltar da administrags0 colonial, Memdria sobre‘o melhoramento da’ cape tania de So Paulo, 109, (1) “Para uma ida mais conta, velace & enumeracio dos poderes ‘© das limitagdes em Percira da Silva, Fundagao do Império Brasileiro, 173. Formagdo do Brasil Contemporénco 307, tragadas com minicias até extravagantes, ¢ na feitura das quais era previamente pouco se wio nada ouvido. Se encontramos hoje ordens em abundincia, poucas sio as consultas vindas do Reino (12).Além disso, devia o governador prestar contas pormeno- tizadas da sua gestao, sobretudo a seu termo, quando até se sus. pendia 0 pagamento do soldo do siltimo ano até liquidacao final © aprovagao daquelas contas. Eo governo metropolitano abria largamente os ouvidos a toda sorte de queixas e criticas que Ihe chegassem, fosse qual fosse sua origem, Se isto beneficiava pouco 1 populacao, & que s6 0 interessavam realmente assuntos fiscais, Tehdbmentos, fratdes, contrabandos.. Hi ainda a considerar as demais autoridades da colénia, que embora de categoria inferior, funcionavam como contrapesos mui- to sensiveis & autoridade do governador. Isto se deve em grande parte a0 curioso sistema de hierarquia que ‘domina em muitos Setores. Aquelas autoridades, em muitos casos, ¢ dos mais impor- antes, nao formam propriamente degraus inferiores da escala administrativa, no sentido que hoje damos a esta nogio; nio se subordinam inteiramente & autoridade superior do governador ‘como simples cumpridores de ordens. Assim nas Relades, que sio Srgios judicidrios c administratives ag mesmo tempo, © gover- nador é um simples participante, embora na qualidade nata de presidente; e os demais membros nao’ sio seus subordinados. Inesmo se repete nos drgios fazendérios, as Juntas de Arrecadacio. ‘Também o fato de constituirem estes e outros drgios da admi- nistragao entidades coletivas, organizadas em forma colegial, mio £ fator menos ponderivel na limitagto do poder do governador. Nao é preciso insistir sobre a impessoalidade ¢ diminuigéo de res- ponsabilidade individual que resulta de um tal sistema, e que tuam como 9s outros tantos fatores de autonomia © independéncia de seus membros. E sendo 0 caso, nada se presta melhor & obstru- gfe da marcha dos negécios. Avaliese como atravessaris amore da a ago do governador, transitando por uma coletividade hostil fou pouco tolerante para com ele, 0 que muitas vezes se dev. Finalmente ha alguns 6rgios e negécios importantes da admi- nistragio colonial em que nfo existe interferéncia alguma do go- vernador; pelo menos legal. Assim nas Intendéncias do ouro e dos diamantes, e nas Mesas de Inspecdo, de que alids j& falei m ima Teas estas initagSes da autoridade do governador sto (ia) Poccehe-se multo bem o sistema na correspondéneia dos gover nado,” A”fegra é les exporem os objetor da adminitragio © pediem Intros Sess uo urns ¢ fetes, uo menos cose, ineontvamce apenas noe governadores de msi’ euvergadura eer lidade, ms es ee 308 Caio Prado Jinior conseqiiéneia do sistema geral da administragZo portuguesa: res- trigio de poderes, estreito controle, fiscalizagdo opressiva das ati- vidades funcionais. Sistema que néo é ditado por um espirito su- perior de ordem e método, mas reflexo da atividade de desconfian- ‘ga generalizada que o governo central assume com relacio a todos Seus agentes, com presumgo muito mal disfargaca de desleixo, incapacidade, desonestidade mesmo em todos eles. A confianca ‘com outorga de autonomia, contrabalangadas embora por uma res- ponsabilidade efetiva, & coisa que mio penetron nunca nos pro- ess0s da administracio portuguesa. Ainda hé uma circunstincia, de ordem mais geral, que apara muito as asas governamentais do Brasil-coléni eo eapirta de indisciplina que reina por toda parte e em todos os setores. Fruto de condigées geogrificas e da forma com que se constituin o pa imensidade do territério, dispersio da poptlagio, constituigio cad- tica e heterogénea dela, falta de sedimentagio social, de educacio © preparo para um regime policiado. Sio fatores profundos e ge- rals que me reservo para rever em conjunto néutro capitulo, Mas fa sua conseqiiéncia mais flagrante, ¢ que se reflete diretamente no terreno da administragio, € a do solapamento da autoridade piiblica, a dissolugo de seus poderes que se anulam muitas vezes diante de uma desobediéncia ¢ indisciplina sisteméticas. Mas com tudo isto, no quero subestimar 0 poder ¢ a autori- dade dos govemadores, nem'mesmo reducirhes a expressio ‘na vida administrativa da colénia. Nao somente suas atribuigdes so considerdveis — nenhuma outra autoridade da col6nia se Thes em- parelha,€ nenhuina dispde como ele do conjnto das forcs arma- las, — como ainda o simples fato de representarem ¢ enearnarem, a pessoa do rei, ¢ terem a faculdade de se manifestar como se fos- sem 0 préprio’ monarca, & circunstincia que basta, no sistema politico da monarquia absolta de Portugal para dar medida lo papel de relovo que ocupam( 13). Acresce sinda a grande dis- tincia em que se acha a metrépole e a morosidade com que se (19) Nas coriminias pablicas ¢ homenagens 20 trone, como por ocastio Je acontecinents notivels na dinastla teinante ~ nascmentos, cas ‘ientos, aniversiros, ete. ~-o- governador rece 0 beljemo ‘como. 32 fora o\ proprio rei (Ator da’ Cantar de Sto Paulo, XX, 240). Ea muitos casos, 0 governade editava ordens falando. diretamente em nome do sobe- fino, e encabecando-ss com formula de praze: Diy Rel ov Ralnha, ee. {ier de Cina ao Polo, R88). = Obvne qve mt oo em outs clagdes da Atos da Camara-de Sto Paulo (Act) © Regio’ Ja seam (Reg) trata salve Scclragios express can — contro, de casos Gqve tecortem constantemente na fonte citida; refiro um ou otro apenas, pra no slangar a cltagdo, procurando.selcionar os mals tipicos e ele: fenles 0 tamento-que nos interessa em particular Formagéo do Brasil Contemporineo 309 manifesta sua agio(14). Sobra assim boa margem para a auto- nomia e mesmo 0 arbitrio dos governadores, se niio do abuso. E do faltaram capitaes-generais deste naipe( 15). Mas também, pe- tos relatrios © correspondéncia que postuknos, sabemos das fic culdades com que Iutavam mesmo os mais enérgicos, ¢ os obsté- culos encontrados a cada passo para se fazerem obedecer e reali- zarem as providéncias do seu governo. Entre outros, 0 longo e admirivel Relatério que 0 Margués do Lavradio, um dos maiores administradores que 0 Brasil colonial teve, apresentou a0 seu su- cessor depois de dez anos do governo (1769-79), € um documento a este respeito dos mais convincentes. Passemos aos demais érgios da administracio. Podemos agru- pé-los em trés setores: militar, geral, fazendario. Além destes, alguns outros de natureza especial que enalisarei em iiltimo lugar, As forgas armadas das capitanias compunham-se da tropa de linha, das milicias e dos corpos de ordenangas. A primeira representa a tropa regular ¢ profissional, permanentemente sob as armas, Era juase sempre composta de regimentos portugueses que conserva- tam mesmo seu nome do lugar onde tian sido formados como 0s de Braganca ¢ Moura, estacionados em fins do séeulo no Rio de Janeiro, € ode Estremos, om Santa Catarina, Parat) ¢ Angra dos eis(16). Para completar os efetivos que vinham do Reino, pro- cedia-se ao engajamento para a tropa na propria colénia, Em prit cpio, s6 brancos deviam ser alistados, norma impossivel de seguir aqui, dado o caréter da populagio. Havia por isso grande tole- rincia com relagio A cor, os pretos contudo, © os mulatos muito escuros, eram excluidos(17). Para o alistamento concorriam, além dos voluntérios, que eram poucos, 0s forcados a sentar praca — criminosos, vadios ¢ outros elemeritos inedmodos de que as auto- ridades queriam livrar-se. Quando isto nio bastava, langeva-se mio do recrutamento, recrutamento para as tropas constitui, durante a fase colo- nial da histéria brasifees, como depois ainda no Tmpéro, 0 maior espantalho da populagio; e a tradigéo oral ainda conscrva em algans lugares bom viva a lembraage deste temor. Endo para 14) Catevlava-se numa eainimo de quase dois anos 0 tempo necessério para ‘a‘doiulo de Gutlquer neptco. “Cons do' Con, Uleamarina de 1792. "Em principio de sé, XIX a situagio continuava a mesma, porque rnem se Unham aperfelgoado sensivelmente os meios de cominicagio, nem 2 burovracia portuguesa se tomara mais expedita (C15). Como amostra, no momento que nos ocupa, veja-se 0 que Saint Hilaire observou pessoalmente em. suas viagens; ern particular, Voyege ae provinces de Rio do Janeiro, T, 358. (16) "Almenagues do Itio'de Jancito, (17) Nas instrugées para o recrutamento no Rio, de 16 de agosto de 1816, ineluem-se os “pardos cuja cor soja mul fusca’ 3810 Caio Prado Jinior menos, Nio havia critério quase nenhum para 0 recrutamento, nem organizagio regular dele. Tudo dependia das necessidades do momento ¢ do arbitrio das autoridades. Fazia-se geralmente assim: fixadas as necessidades dos quadros, os agentes recruta- dores saiam & cata das vitimas; mio havia hora ou lugar que thes fosse defeso ¢ entravam pelas casas a dentro, forcando portas janelas, até pelas escolas e aulas para arrancar delas os estudantes (18). Quem fosse encontrado e julgado em condigées de tomar as armas, era incontinenti, sem atengio a coisa alguma, arrebanhado ¢ levado aos postos. Refere Vilhena que muitas vezes se espalhi ram pela cidade (Bahia) os soldados de um regimento todo, «qu em hora de antemao fixada, tinham ordem de deter quantas pes: soas estivessem ao seu alcance, com as tinicas limitagées de serem Drancas © nio militares. Todos os detidos eram conduzidos & ca- deia ¢ aos compos da garda, e somente IA se fazia a selegio dos capazes para o servico militar. Havia casos em que de centenas de presos se apuravam apenas poucas dezenas de aptos. Até ecle- sidsticos sofriam destas violéncias, 0 que nio é pouco num meio em que a batina merecia um respeito geral e profundo( 19) Explica-se assim porque, ao menor sinal de recrutamento pré= ximo, @ populagio desertasse os lngares habitados indo refugia-se no mato. O mesmo Vilhena refefe que na Bahia, logo que se co- megavam a fazer recrutas, era infalivel a carestia dos géneros de yrimeira necessidade, porque os lavradores abandonavam as ro¢as. fim 1797, vemos em Sto Paulo despovoarem-se as ropibes de. Ath aia ¢ Nazaré porque nelas se assinalara a presenga de agentes reerutadores; ¢ a Camara paulistana alarmada, pois era naquelas rogices que se abasteca a capita, pea providencias 20 governador (eg. 31148). Exemplos entre mil outtos da verdadeite convulsao periddica que provocava 0 recrutamento em todos os setores da colénia As milicias so tropas auxiliares: como as de linha, organi- zam-se em regra, lé pelos fins do século, em regimentos (em subs- ituigio aos antigos fercos), e se recrutam por servigo obrigatério © niio remunerado, na populagéo da colénia, Eram comandadas por oficiais também escolhidos na populagio civil, © que igualmente ndo se podiam eximir ao servigo ndo remunerado que prestavam; € tambem por algumas patentes regulares destacadas para as or- faniear¢ instrir. O enquadramento das miliias se fazia numa ase territorial (freguesias), bem como e, sobretudo, pelas cat- gorias da populagio. Nao ha, a este respeito, muita uniformidade (18) Vilhena, Recopilagto, 287, Vithena era profesor réglo, ¢ assis tia a iit destad coma ® . (19) Viena, Recopilapto, 256, Formardo do Brasil Contempordnea 311 entre as varias capitanias. Na Bahia, por exemplo, eram as mill- Glas conhecidas por tropas urbands, compunhairse dos seguintes regimentos: dos Utels, formado pelos comerciantes ¢ sous caixeiros; de Infantaria, em que entravam os artifices, vendeiros, taberneiros € outros, mas todos brancos; 0 de Henrique Dias, composto de retes forros(20); finalmente 0 Quarto Regto. Ausiliar de Arti- Iharia, formado de pardos ¢ mulatos. Mavia ainda algumas com- anhias independentes com missdes especiais: uma de familiares, Bnas comparhias de copies de assaf, formadas de pretos e de- signadas para, em tempo de guerra, explorar a campanha, trans- mitir ordens e mensagens (so as companhias de comunicagoes de hoje}; e em tempo de paz, dar caca aos eseravos e eriminosos fora- gidos Estes atmos corpos, que também se encontram nas demais Eapitnias,sfo os do vulgarmente chamados eaptderslemato, de tio tenebrosa_meméria. No Rio de Janeiro, a organizacio ‘das rilicias difere bastante: sed quadro airida € 0 terco, antiga unidade portuguesa substituida na segunda metade do sée. XVIII pelos regimentos, de inspiragio francesa; ¢ sio divididas em trés tergos que tomam o nome das freguesias em que se formavam; Cande- liria, Sao José e Santa Rita, ¢ mais um dos homens pardos libertos (21). ‘A ultima categoria das forcas armadas, a 3 linha, para em- pregar uma designagio atual, cram as ordenancas, formadas por todo o resto da populagio masculina entre 18 e 60 anos, no alis- tada ainda na tropa de linha ou nas milicias, ¢ ndo dispensada do servigo militar por algum motivo especial; os eclesidsticos, por exemplo. Ao contririo das milicias, as ordenangas constituem uma forge local, isto é, que no podia ser afastada do lugar em que se formava ¢ em que residiam seus efetivos. Nao havia recrutamento ara as ordenangas, mas s6 um arrolamento, pots toda a populagao, Bento dos limites fixados, considerava-se como automaticamente engajada nelas. Limitava-se sua atividade militar a convocagées exercieios periddicos, ¢, eventualmente, acorrer quando cham das para servigos locais: comocio intestina, defesa, etc. A organizacgao das ordenangas conservava em toda coldnia, e conservara até sua extingio em pleno Império (1831), os antigos tercos divididos em companbias, Incluia-se em cada tergo, cujo comandante supremo é 0 capitio-mor, toda a populacio do térmo (20) Também chamado dos Henriques, designasio de muitos corpos rete: da coldnia e enja tradigio vinha dos corpos de eseravos Iibertos DSrganizados por Henrique Digs nas guereas holandesas, (21) Para pormenores da organizacso militar, velam-se, relativamente & Bshia, as Cartas Vive VII da Recopilagdo de Vilhena; para o Tio de Janelto, em particular os Almanaques Ge 1792 © 1794, e 0 Relatdrio do Margués do Lavradio, 312 Caio Prado Hinior respectivo. As companhias, comandadas por um capitao, um te- nente ¢ um sargento ou alferes, compunhem-se de 380 homens, ¢ se dividiam em esquadras de 25 homens cada uma, comandadas por um cabo. Naturalmente estes efetivos so os legais, havendo na realidade muitas variagdes que a propria let alias autorizava atenta as circunstincias(22). As patentes superiores das ordenan- gas conservavam também as antigas denominagoes: capitdo-mor, que corresponde ao coronel na organizagio em regimento, e sar” gento-mor 0 major da organizagio regimental, ou antes, o te- nente-coronel, pois nao havia nos tergos o “comandante de bata- Thao”, unidade inexistente. Além das suas fungSes militares, que slo, dada sua constituigao, necessariamente estritas, as ordenan- gas tém um papel consider4vel na administragao geral da colénia. E 0 que veremos adiante, pois quero antes passar em revista 0 resto da organizagio administrativa. ‘Vejamos, depois dos militares, os érgios da administragao ge- ral e chil Tacluense af tanto fungées propriamente adminsia. tivas (em nossa terminologia moderna), como de justica. Encon- tramos aqui um caso concreto da observacio jé felta no inicio deste capitulo: a confusio de poderes atribuigSes que hoje nos parecem substancialmente distintos. Nad s6 se ocupam dos ne- Ros de ambos os setores as mesmas autoridades, como nio hi iferenca substancial no seu modo de agir num e noutro terreno. Na aplicago da lei nfo se distinguia quando era caso de simples Alo administrativa dos agentes do poder, ou quando se trata- va do restabelecimento de direitos entre partes em litigio. Se qual- gues to de uma antoridade, fos el qua fost, envlvesse ofensa le direitos ou interesse (no funcionamento da administragao nao se distinguia um caso do outro), nao cabia a0 ofendido instaurar uma aco, mas unicamente recorrer do ato & autoridade superior competente. Quando ndo se tratava de atos de autoridades, mas de simples particulares, cabia entao ao ofendido provocar a acio da- quelas: estariamos entio no caso tipico da agao judiciria em nos- 50 processo atual. Mas percebe-se que entre as duas hipéteses nio hi distingao substancial-alguma, pelo menos no que’ diz respeito a0 funcionamento da administragao, que & 0 que mais nos inte- essa aqui Nio posso evidentemente entrar no pormenor de um assunto de excessiva especializagio, e que trouxe a baila unicamente pars aque se faga uma Idéia do sistema administrativo da colOnia, bem (22) As Ordenangas foram eriadas em Portugal por lei de dezembro de 1569, sendo regulamentulas pela de 10 de dearmbro do ano seguinte Gepois de’ algumas modilicacdes, fol a matérla codificada no. Repimento das Ordenancas de 90 de abril de 1758, que inclui varias disposigSes expo. Sais referentes a0 Brasil Formacdo do Brasil Contemporéneo 31% diverso do de nossos dias, ¢ sem a qual nfo se compreenteris 0 assunto que estamos analisando. Nao nos deixenses por isso ilas dir, entre outros casos, com a designago qac trazem os cargos administrativos da colénia, e que se empregam hoje numa acep- gio diferente © mais restrita. Particularmente a de “juiz’. O juiz Colonial — seja o de fora, o ordindrio, o almotacé au 0 vintendrio fou de vintena, ~ tem ndo’s6 as fungOes dos nossos juizes modernos, julgando, dando sentenga, resolvendo litigios entre partes desav das; mas também os dos nossos simples agerites administrativos: executam medidas de administrago, providenciam a realizagio de Aisposigses legois.... K isto sem distinguir absolutamente, na pré- tica, a duplicidade (duplicidade para nés), das fungdes que estio exercendo, Compete-lhe de um modo geral executar a lei ¢ as obri- ages do scu cargo: que esta execucao ou ago sefa espontinea, rovocada por seus juredicionados ou simples ato deles” desaviae fos entre st ow nio, a diferenga nfo importa: eles agido Sempre da mesma forma. Para se apanhar melhor o sistema geral da administragao co- lonial, comecemos pelos drgios inferiores, pois os superiores niio funcionam, por via de regra, senfio como instincias de recursos. O mais importante & 0 Senado da Camara(23) que tem sua sede nas vilas ou cidades, ¢ estende sua jurisdicao sobre 0 termo res- ectivo. Ha de se estranhar gue falando da administragao geral Eis capitanias,comece pelas Chmaras, quo sto orgs Upioss da administragao local. Mas aqui, mais uma vez, devemos por de lado nossas concepgbes atuais. No sistema administrativo da colénia, j4 0 assinalei, nao existem administracées distintas e paralelas, ca- da uma com esfera propria de atribuigies: uma geral, outra Jocal, A administragio € uma s6 ¢ ver-se-4, pelo desenvolvimento do assunto, que compete as Cmaras atribuigdes que segundo nossa Glassificagio modema so tanto. de ordem feral como local. Elas funcionam efetivamente como érgiios inferiores da administragio geral das capitanias Compoe-se o Senado da Camara de um juiz presidente, que pode ser letrado, diamos hoje “togado", de homengto regia, £& entao 0 chamado fuiz-de-fora; mais freqiientemente & um cidadio leigo, eleito como os demais membrps da Camara: seré o futz ordi- . drio. Os juizes ordinarios eram sempre dois, exercendo.alterna- damente suas fungdes em cada més do ano para o qual tinham sido eleitos. Ao contrérios dos juizes-de-fora, serviam sem remu- ‘neragio, como os demais membros da Camara. Estes oulras mem- (23) “Senado” 6 titulo honorifico e especial que as CAmara da co- Aon le arrogaram abusvaments, $6 em ares casos 0 titulo ser confi 814 Caio Prado Jinior bros sio 0s oficiais: trés vereadores ¢ um procurador. As eleigdes sio populares, isto é, vota 0 povo; ou antes, o povo qualificado, os omens bons, na expresso das leis. Sao as pessoas gradas do ter- ‘mo e da vila, que figuram em listas especialmente feitas para este fim: chamam-se também as vezes de republicanos(24). J vimos como esta questio do dircito de voto, que inclu o de participar da Camara, tomou em certos lugares uma forma politica, pomo de Aiscordia, ou antes arma de fata entre fucgoes saversas! proprie. tdrios e nativos da colénia, de um lado, comerciantes © reindis, do outro. As eleigées eram em principio indiretas( 25). Os votantes congregados na casa do Senado da Camara, indicavam por maio- ria seus eleitores, que apartados em trés pares, organizavam, cada qual a sua, trés listas triplices, isto é, contendo trés nomes. dos que escolhem para os cargos da Cimara. presidente, que seria © ouvider, ¢ na sua falta, o juiz mais velho em exercicio, “con- certava” (conferia) as listas, e formava com os nomes mais votados trés rbis definitivos que se encerravam em bolas de cere, os pe- louros. Pela “primeira oitava de Natal” (8 de dezembro) de cada ano, € com assisténcia do povo, em “vereanga” especial, comy recia un menino de sete anos, e metendo a mao por um cofre onde se guardavam os trés pelouros, tirava um, cuja lista servird no ano seguinte, Assim em trés anos consecutives, depois do que, esgotados 0s pelouros ¢ as listas, procedia-se a nova eleigio. Esta forma de eleigio se chamava de pelouro; mas quando um dos as- sim eleitos, impedido por qualquer motivo, tinha de ser substituido, Brocedi-se mit sumariamente escolhendo entio a préprin Ci. mara 0 substituto: chamava-se entao eleigao de harrete. Conforme ocorresse um ou outro caso, dizia-se do juiz, dos vereadores ou do procurador, que eram “de pelouro” ou “de barrete”. O juiz eo rocurador, eleitos de uma ou outra forma, deviam ser confirma. los pelo ouvidor com as chamadas carias de usanca, Os vereadores, pelo contrério, empossavam-se logo que se iniciava seu mandato, sem gutra formalidade que 0 juramento de bem servir 0 cargo. (24) Vejam-se as, star organizadas por ocasifo da ‘xiaglo des vias de, Sio Cun (Campigs)e Foto Fl, "om So Putt, no Does, ine fewontes, I, 3-e 38. Nas vila ext que’ havia jle-de-forg os oficais da Ciara indo cram cleitos, mas nomeades pelo poder central, Esta nio ora aun Tegra absolute, © no ext contida ely nenhuin texto Tegal'a mio ser ‘acepcionalmente ¢'sem carter geral como ao Reginento da Relagzo do ip de Jancio de 13 de out. de 1751). Representa una das mais impor. tantes ivasdes do Poder Real nas atibulgoes locals e munieipals carte: ving Pvt 0 3 NUL “(25)” Digo'em principio porque & isto que geralmente te pratice; mas ra reertoca acina fetta tos Prot tnt, fig o temo Ge cllgio de pe tocira Cana, © # cegio fol af des, Formagéo do Brasit Contempordneo 315 Jé vemos, em tudo isto, a intervengao direta na Camara de auto- Tidades estranhas a ela. ‘0 povo, sempre na acepcio restrita que indiquei acima, néo participa ds “liberagoes a ‘Camara unicamente por ocasifo 5 eleigdes. Quando se tratava de assunto de muita importincia e relevante interesse piblico, também era convocado para, em ‘comum com o Senado, assentar medidas ¢ tomar decisdes (Reg: XII, 99; e Act., XX, 179). Organizado assim 0 Senado da Camara, ¢ reunindo-se ordi- nariamente em “vereanga” ou “vereacdo” duas vezes por semana, nas quartas e sabados, vejamos do que se ocupava. Nos primeiros tempos da colénia, sabe-se que muito grande fora o seu raio de agio. Algumas camaras, sobretudo as de Sfo Luis do Maranhéo, do Rio de Janeiro, e também a de Sio Paulo, tornaram-se de fato, num certo. momento, @ principal autoridade das capitanias res- pectivns,sobrepondo-se abs proprio governadores, ¢ chegando até Pefeatiilos do seu posto(S6)+ Mas no momento que nos ocupe isto j passara fazia bem século e meio; vejamos pois o que faziam naguele momento, ¢ 0 que efetivamente representava sua Fangio, nos termos da legislagao em vigor, mas sobretudo na pritica da administrago publica. Elas tinham patriménio e finangas pré- rias, independentes do Real Erario, isto é, das capitanias res- pectivas a que pertenciam. O patriménio compunha-se das terras que Thes eram concedidas no ato da criagao da vila; constitulam @stas terras 0 rossio, destinado para edificagdes logradouros © para a formagao de pastos piblicos(27). A CAmara podia ceder arte destas terras a0s particulares ou aforé-las(28). Constituiam Ainda o patriménio municipal as ruas, pragas, caminhos, pontes, chafarizes, ete. ‘As finangas do Senado se formavam com os réditos que The competia arrecadar: foros (renda dos chaos aforados) ¢ tributos autorizados em lei geral ou especialmente concedidos pelo sobe- rano(29). Dois tergos da renda municipal pertenciam & Camara; 0 Giltimo revertia para o Real Erério da capitania, (@8)_J.F. Lsbos aaaliss em pormenor este grande poder passado das Camara, Obras, TI, 46. Per Brace poder Be (21) Vejimse os autos de eregto, jk cttados, das vilas de Séo Carlos «© Péto Feliz,'em Sto Paulo (Does, Int, TH, 2 €°32), e da vila de Mox- tamara no “Auon ear.) sta materia sempre foi largamente, controverida para se fixar até due ponto iam os diceton da Cimara de. doar as teas So sou pat tndnth Vojase sobre ese aswunto, entre outros, Lima Pereira, Da. propric- ede 10 Bras (3) Recsiam os teibutos municipal nas reses entradas nos agougues, carn abvtida, tana das balangos erm que se. prsavam todo os géneras Ge ‘primeira neceisidade, taxa. do cleo publio’ (mercado). "Havia ainda as 316 Caio Prado Jinior ‘Além da questo do seu patriménio ¢ das suas finangas, cabiam 4 Cimara varias nomeagées: do juiz almotacel a quem competia fiscalizar o comércio dos géneros de primeira necessidade ¢ zelar pela higiene e limpeza pablicas; dos jufzes vintendrios ou de vin- tena, com jurisdicdo nas freguesias (havia um vintendrio para cada tama), ¢ com iguais atribuigées que os juizes-de-fora ou ordindrios, mas de algada menor, aliés muito pequena; além destas autorida- des, nomeava a Ciimara seus funciondrios internos: escriodo, sin- dico, etc. ‘Competia ainda & Cimara editar posturas; processar e julgar os crimes de injirias verbais, pequenos furtos ¢ as infragbes de seus editos, chamadas causas de almotagaria (Ordenagées, liv. 1 tit, 06 5 ett 65 § 25); resolver questBes entre partes ligantes jue versassem sobre servidées piblicas — caminhos, dguas, etc. Giteg., XI1, 893); terras do seu patrimdnio, (Reg. XII 375). ‘Mas em tudo isto & sempre dificil precisar 0 que é da compe- téncia privativa da Camara, Em todos os seus negécios vemos a intervengio de outras autoridades, sobrepondo-se a ela ou corren- doslhe parelhas. O ouvidor e corregedor da comarca intervém & todo propésito em questées de pura administracéo municipal. & assim! que lhe cabe tomar as contas das CAmaras, resolver sobre a forma de arrematagio dos réditos (Reg., XII, 194); autorizar im- posigses (Reg, XII 477) o despesas (Reg, XI! 199); consentt Ein abatimentos nos seus erédites (Reg. XI, 206); prover subre a forma de alienagio das terras do patrimdnio municipal (Act, XX, 406). Até na constituigo das Camaras 0 ouvidor intervém: 7 ‘como vimos, passando as cartas de usanga aos juizes ordindrios rocurador, sem 0 que nfo podem exercer seus cargos, mas também Fesolvendo sobre impedimentos ¢ licenga dos seus membros, po- dendo ou nko, a pedido deles, dispensé-los (Reg. XII, 11). Part cipa ainda das “Vereangas” em que s¢ elegem as listas de candi- datos a0 posto de capitéo-mor das ordenangas, como veremos abai- xo; ¢ prove alguns cargos municipais: vintendrio (Reg., XII, 410). (© governador também se iiscut nos assuntos municipais. Ha ‘cargos que, embora de nomeagio da Cimara, & ele quem prove, como o de escrivao, mandando juramenté-lo e dar-lhe posse (Act., XX, 264), Casos até ooorrem em que 0 governador prorroga, 0 mandato do juiz ordindrio e de todos os demais membros da Ca- mara além do prazo para 0 qual foram eleitos, como se deu em Sao Paulo em 1799, quando todos os novos eleitos pediram e con- Tiers de pesos ¢ medidas, 0 predto das mullas, por infragio de pos Meee einige e finamente’o faguel das “casinhas"’= em certs Ingares, {rms Taba’ chamavanyse as "ecbanss” —, onde ram comeriados j= frees de primeira necesidade, Firmagao do Brasil Contempordneo 317 seguiram isengio; estava-se para proceder & eleigdo de barrete, jue como vimos era indicade nestes casos, quando interveio a de= isio, a ordem do govenador (Act., XX, 153), Ocupa-se 0 go- vernador de assuntos puramente locais, realizando obras piblicas ¢ ordenando & Cimara que colabore coin cle; assim na construgio de bicas em Sao Paulo, em 1800 (Reg., XI, 601); estabelece pro- vidéncias sobre 0 comércio de géncros de ‘primcira necessidades (Reg., XII, 248), e medidas relativamente a administragio das “casinhas”.” (Reg’, XI, 601) Em compensagéo, vemos a Cimara tratar de assuntos que nada tém de Tocal, como a nomeagao dos fiscais da Intendéncia do Ouro, Em suma, nao se encontra na administragio colonial, pito, uma divisto marcada e nitida entre governo geral e local. Acresce ainda para comprové-lo, que de todos os atos da Camara hid recurso para alguma autoridade superior: ouvidor, governador, elagio, at8 mesmo a corte. Doutro lado, as CAmaras agem como verdadeiros érgios locais da administragao geral. £ assim que 0 governador se dirige a elas, sob a forma de ordens, para a reali Zagio de providéncias gerais do seu governo ( Reg. XII, 248 ¢ £56). ‘A Cimara fanciona ai como simples departamento executivo, st- bordinado & autoridade do governador; e seu papel, neste terreno, tem grande amplitude, pois 0 contacto direto que ela snantém com & populacio permite as autoridades superiores, mais distantes nfo Gispondo de outros drgios apropriados, executarem através dela suas decisdes. Até para a publicacio de editais emanados do gorernador com determinagdes dirigidas ao povo, é & Camara que incumbe faze-lo (Reg., XII, 483). As Juntas da Fazenda, por intermédio da Camara, também fazem afixar editais de praga dos contratos ¢ oficios (Reg., XI, 589); ¢ & por via dela que arreci- dam alguns tributos (Reg, XiI, 508; ¢ Act., XX, 427) Este carter de mero departamento administrativo, subordi- nado a0 governo geral ¢ nele entrosado mtimamente, aparece ainda bem claro na forma e termos com que se referem’ a0 Senado da Cimara os relatérios dos governadores. Assim 0 Vice-Rei do Rio de Janeiro, dando contas da sua administragio, trata da Camara local e de seus negécios indiscriminadamente com os demais érgios da adminstragio, e referindo-se as suas fungdes © atos como se fossem assunto do “seu” governo (Relatério do Marqués do La- vradio, entre outros). Coisa semethante faz Vilhena quando enu- 1nera ¢ analisa o departamento da administraczo piblica da Bahia, em que nio da destaque algum go Senado da Cimara, tratando dele como dog demas drglos sob a epigrafe gral de “empregos de Justiga e Fazenda”. (Recopilagdo, Carta 10). ‘Assim, embora as Cémaras tenham uma caracteristica espe- cial que se revela sobretudo no fato de possuirem patriménio 318 Caio Prado Kinior (iaangas préprias, e estarem revestidas de uma quase personit- lidade juridica, 0 que nfo se encontra nos demais érgios da adm nistrago colonial, elas funcionam como verdadeiros departamentos do governo geral, e entram normalmente na organizacio ¢ hierer- quia administrativa dele. Mas dada aquela sua caracteristica, © ainda mais a forma popular com que se constituem ¢ funcionam, ‘ste contacto intimo que mantém com governadores € adminis: trados, as Camaras assumem um papel especial. “Cabeca do povo", designa-se a si o Senado de Sao Paulo numa representagio dirigi- da em 1798 ao bispo (Reg,, XIZ, 291); € é por ele que transita’a maior parte das queixas e solicitagdes do povo (Reg., XIT 259). Seri esta a origem da forga com que contario mais tarde as Ci maras para agir efetivamente, como de fato agiram, e intervi muitas vezes decisivamente, nos sucessos da constitucionalizaca« independéncia e fundagio do Império. Ser 0 tinico drgao da admi nistragio que na derrocada geral das instituigdes coloniais, sobre- viverd com todo seu poder, qui¢é até engrandecido. juiz ordinario ou de fora, além de suas fangdes como mem- bbro do Senado e seu presidente, tem uma esfera propria que além de judicisria, € igualmente administrativa. Reporto-me ao que aci- ma ja foi dito a tal respeito: além de julgar e dar sentengas, isto resolver litigios entre partes desavindas, cle é um agente da admi- nistragio e um executor de suas providéncias(30). Em ambos os casos, representa uma instincia superior aos julzes vintenérios, ¢ inferior do ouvidor da comar Este tltimo, que em regra acumula as fungdes de corregedor, = isto, “Tiscal® da administragao, — vem logo acim, na hierar quia administrativa, dos érgéos que acabamos de ver. Cabe-lhe jurisdiggo nas comarcas e tados os termos respectivos. Nao é pre- ciso especificar suas atribuigdes, que sio as da administragio em geral, embora em instincia superior aos érgios j4 analisados: Ca- mara ¢ juizes. J4 vimos aliés varios casos particulares de sua com- téncia(31). Os ouvidores sio nomeados pelo soberano, € pro\ Bos por ts anos. Nas comaress muito importantes, Bahia Rio de Jancizo, havia, além do ouvidor do cfvel, um do crime. Um outro faziam parte das Relagées daquelas cidades. Estes érgiios colegiais tinham jurisdigao, respectivamente, sobre as capitani setentrionais (menos Para, Maranhio, Piaui ¢ Rio Negro, que es- (GO) Falando de suas atebuigdes, assim se exprime, 0 Manqués. do Lavniior “procurar © promover 0 adlntamento.¢ feliedade” dos! povos, fosin para 0 sostego ett que or déve conserva, como para os anime "0 ier cefncrcio © agetealtrl ‘no Ines consenir pregutga e erados.Pre- ios Reledi 49. si) “ein Carta Régia de 22 de julho de 1706 0 Ouvidor esercis também fungio Ge Intetlente de Paticn Formagao do Brasil Contempordneo 319 tavam subordinados, como jé referi, A Casa de Suplicacio de Lis- boa); ¢ meridionas: Fspnto Santo para o Sul, inhusive as capi- tanias interiores. As Relagdes funcionavam sob a presidéncia do Govermador (0 Vice-Rei no Rio de Janeiro), e contavam, além dos ouvidores referidos, com varios outros membros: agravistas, pro- curador, juiz da coroa, etc., todos com o titulo de “desembarga- dores”. As atribuigées da Relagdo, sempre a mesma observacao, sf0 judicifrias e administrativas; mas como funciona unicamente como tribunal de recursos e instncia superior, nfo The cabendo nenhuma aio direta, o seu papel na administragao se reduz muito, e asse- melha-se mais aos modernos tribunais judiciarios (32). Passemos aos érgios fazendérios. Para gerir 0 Real Exétio nas capitanias do Brasil(33), arrecadar tributos e efetuar despesas, hd uma série de érgios paralelos com funges mais ou menos espe- cializadas. Eles no se subordinam uns aos outros, nem ao gover. nador, no sentido em que hoje entendemos a hierarquia adminis- trativa, E neste terreno que a falta de simetria e organizagao hierdr- gquiea regular, que jf asinalet como um dos tragus caractersticos overno colonial, aparece de. modo mais fagrante. O. ergo principal da administragio fazendéria é a Junta da Fazenda( 34), ‘que tem forma colegial e ¢ presidida pelo governador. Cabem & Junta de uma forma geral as atribuigées que seu nome indica; ‘mas as execugées so momerosas, particularmente nas capitanias de malor importincia © cabem we competéncia de érgfos para- Telos: Junta de Arrecadagio do Subsidio Valuntério( 35), também Bresidida pelo governador; « Aljandega, que arrecala os direitos le importagio; 0 Tribunal da Provedoria da Fazenda, que & nio 36 0 que hoje sio as procuradorias fiscais, mas exerce também (32) Entre os recursos administrativos de que toma conhecimento — « sairia mais rea- Dilitada: isto porque, salvo er1 discursos le- daiérios e de ordem pessoal (que pela sua freqiineia jé nfo coustituem nenhum bom sintoma), no se encon’ra nos depoimentos contempordneos nenhum conceito, jé ndo digo elogioso, mas de tolerincia e justi ficativa para com a administragao, Parta de onde partir a critica ou observagio, dos simples cidadios nascidos na colénia ou dos reindis, como dos mesmos delegados do poder, a opiniéo & inva- ridvel e igualmente severa. Acrescente-se a isto 0 que referem os viajantes estrangeiros que nos visitaram em prineipios do século ppassado, quase todos eles da maior consciéncia e honestidade © sem motivo especial algum para nao dizerem a verdade e ter-se-A uma colegio de dados tais que, a ndo ser que se conteste a répria hipétese fundamental de toda pesquisa histérica e que 6 a “possibilidade de reconstmir 0 passado”, levam com seguranca absoluta 20 que ficou dito scima, ‘Tem uma larga responsabilidade em tudo isto, afora 0 vicio ue & geal ma adminstragto portuguesa desde o tempo longinquo das Indias, o espirito particular que anima 0 governo metropoli- tano no gerir a sua coldnia. Se se justifiea 0 conceit do autor anénimo do Roteiro do Maranhdo que “as colénias sfo estabe- lecidas em utilidade da metrépole” ou daquele outro contem- porineo para quem “seu efeito primério e comum é certamente (0 de enriquecer a metrépole e aumentar-lhe 0 poder"(58) — ‘confissies em que h& ao menos franqueza em matéria onde a hipocrisia tem hoje assento inconteste — Portugal no entanto sempre interpreton mesquinhamente este objetivo primordial © latente em todas as colonizagées de cariter oficial. Suas vistas (58) Roteiro, 102; © Rodrigues Barata, Meméria da Capitania de is, 337, 836 Caio Prado Kinior Gi raramente foram além dos proveitss imediatos que sob a forma de tributos podia auferir da colénia. Um governador do Rio Grande do Sul aliés um dos mais notiveis, Silva Gama, resumia em 1805 este pensamento numa confissio crua e nua: “Nada me interessa com mais fervor, escrevia ele ao governo do Reino, do que a fiscalizagdo da Real Fazenda. Diminuir as suas despesas (© quanto 6 possivel, fazer arrecadar arsiosamente tudo que possa pertencer-Ihe sem dano dos vassalos, e esquadrinhar novos recur- 50s para aumenticla, so os objetivos do meu maior desvelo” (59). Um objetivo fiscal, nada mais que isto, é 0 que anima a metropole na colonizacio do Brasil. Raros sio os atos da administracao ou os administradores que fazem excegio a regra. Pombal, cajo governo 6 0 iinico talvez, depois do perfodo herdico da histérie Bortuguess, que teve vsts langas, Fombal mesmo nfo eonseguin svencilhrse inteiramente do que estava no fundo da cons cigneia nacional, ou antes da politica da monarquia. O ouro e 0s diamantes, entfo, fizeram perder 0 resto da cabeca ¢ bom-senso que sobravam & metrépole. Com uma ansia sem paralelo, ela se atira sobre 0 metal e as pedras como um cio esfaimado sobre 0 sso que aflora na terra cavada. $6 que nao tinha sido ela quem © escavara... Durante um século quase, nao haveré outra reocupagio striae de conseqiénea que a eobranga | dos ireitos regios, 0 quinto; a histéria administrativa do Brasil se contard em fungio dela. Assente mama tal base, a administragio colonial no podia ser outra coisa que foi. Negligencia-se tudo que niio seja percep- 0 de tributos; ¢ a ganancia da corsa, tio crua ¢ cinicamente afirmada, a mereantilizacio brutal dos objetivos da colonizagio, contaminar todo mundo, Ser4 0 arrojo entio geral para 0 lucro, ara as migalhas que sobravam do banguete real. O construtivo Er cdministagao relogado Bars um segundo plano obseuro em que 56 idealistas deslocados debateram em. vio. Tudo isto se refere, em particuler, & administragao civil. A eclesidstica, nada ou quase nada Ihe ‘fica a dever. Admitamos contudo, de inicio, uma restricio que é de justica salientar. Se ndo muito pouco 40 nivel moral, pelo menos no da capacidade, 6 clero da coldnia é nitidamente superior ao funcionalismo civil, como aliés a qualquer outra categoria particular da populagio colonial. Nao seria por simples coincidéneia que boa parte dos individuos, de formagéo intelectual acima do comum. extrema- mente baixo com que tomam contacto os viajantes estrangeiros que nos visitaram em principios do séeulo passado, seja de ecle- (59) Docs, relatioos a hstéria da cexpitonia de Sao Pedro do Rio Grande do Sul, 285, Formas do Brasil Contempordnco 337 sidsticos. Em Goi, Saint-Hilaire chega a afirmar que as dnicas pessoas com “alguns conhecimentos” sa0 0s padees( 60). ‘Tamnbiy nfo ser tida como fruto do acaso a circunstincia da tamanha roporcio de membros do clero aparecerem entre aqueles que se destacaram nas letras e oféncias da colénia; ¢ de terem sairam dele os expoentes de seus principais ramos(61). Aliés ja referi no capitulo anterior a razio por que o clero se tornou a carreira intelectual por exceléncia na colénia: é a unica que abre as portas 4 todos sem distingio de categoria. Refuglar-se-io nele todos ou quase todos a quem a inteligencia faz cécegas sero ES, Rowe terreno, no seu teor moral médio, a massa do clero no se destaca muito acima ée seus colegas da administracio leiga. A mercantilizacio das fungies sacerdotais tomars-se. pela época em que nos achamos um fato consmado, jd 2 obser- vagio de uma autoridade eclesifstica, que reconhece terse tornado a Datina um simples “modo de vida’, um emprego, parecendlo alids perfeitamente conformado com 6 fato(62). Que’ se. podia esperar dai? A geral e persistente grita dos povos contra os tributos eclesidsticos é alidés um sintoma bem sensivel do caminho que tomara 0 clero colonial. Baltasar da Silva Lisboa, alto fun- clondrio da administragao, expondo ao Vice-Rei os assuntos de suas atribuigSes, assim rematava as consideragdes que faz sobre © clero: “Bles ‘sé querem dinheiro, © nio se embaragam que tenham bom titulo"(63). Noutro oficio do ano seguinte repete conceito semelhante(64). Para se ter uma idéia do que ia pelos conventos do Brasil em matéria de costumes e corrupeao, leia-se a longa exposigio que a respeito faz 0 Vice-Rei Luis de Vascon- cel, a0 Seoretirio de Estado, e que repete resumidamente no relatério com que entrega 0 governo 20 sucessor que o vinha substtuir( 5); se se descjar um depoimento ainda mab autoreado insuspeito, veja-se 0 que dizem de seus conventos respectivos (60) Voyage aux sources, 1, 347, (61) José Mariano da Conceigio. Veloso, Joaquim di’ Cunha. Azeredo Coutinho nas. cléne Sousa Azevedo Pizarro e Gaspar da Madco. de ining nator, José onload de histor Jose Mauricio Nunos Carcla, tm misica Este’ pare nor fle ee contemporineos do. mements que nos scpa, Nokcae aia gee 9 pees Het co” ana cola por aigima ctr de sls Sages foto oratiriasaera.'A noses ocd mio pode fora prtenso de algae ° coven tern e da erudigao literéria, Pe oe lop el Antnio-da Vita, superior dos Capuchos do Rio do Jae nei So Cetecia de, wdrias autordades, 291. eu 5 autoridades, 298, AS Comesponde a 6 (84) "Loc cit, 28, (65) Negccosecesstios, © Ofio, 53 388 Caio Prado Jinn os Superiores dos Carmeiitas ¢ dos Capuchos(66). Mas no é de um bispo, Frei Anténio do Destérro, do Rio de Janeiro, © em correspondéncia oficial 20 Secretirio de Estado, 6 seguinte texto tio elucidativo da compreensio que tinha 0 clero colonial de suas fungies sacerdotais? "Como prémio ¢ remuneragio. do trabalho, escreve ele, que estimula fortemente a todos, principal- mente neste Brasil onde se cuida mais no interesse do que na boa fama e gléria do nome, me parecia mais preciso ¢ justo que sua Majestade remunerasse enefectivamente a estes pirocos (aqueles que tivessem servido com os indios) com igrejas de Minas, dando a cada um tantos anos de pirocos nas ditas igrejas, por serem pingues, quantos tiverem servido nas freguesias dos indios’(67). Poderiam ser alongados estes testemunhos, encon- tradigos nos documentos da época, ¢ que se no abundam tanto como os relativos A administragio leiga, nao sio menos precisos ou convincentes. Mas bastard para supri-los todos, o que Saint- “Hilaire, catélica e crente convicto, deplorando-o embora e pro- curando consolar o leitor cristio de tantos golpes vibrados & sua sensibilidade, desereve com miniicias em seu longo capitulo dedi- cado 20 clero brasileiro( 68). Nestas condigies, nao é de esperar do clero colonial, animado de tal espirito, grande diligéncia no cumprimento dos seus deveres. E de fato, 0 que se verifies, Ele exercera ativamente sua fungdo de satisfazer As necessidades espirituais da populagao 14 onde pode ser ¢ é bem remunerado por ela: nas paréquiis “pingues” a que se refere o bispo acima citado; nas capelas de engenhos abastados. O resto da populacio fica ao desamparo. Para ela, os padres rezardo no maximo as missas e ministrarao a comunhao da desobriga que constitui o melhor de seus rendimentos. O resto do tempo, ocupar -se-fo em afazeres bem distanciados de suas obrigagSes: muitos sio fazendeiros: era eclesiastico o melhor farmaceutico de Sao Joao del- -Rei, e preparava e vendia ele proprio suas drogas; um outto sacer- dlote vendia tecidos no baledo'de sua fja (69). (68) Correspondéncia de wéris cutordades, 168 © 985 sel, ,Corerondets do tno do de Tne {X7S4160), 4. 0 Bre (68), Voyage aur provinces de Rio de Janeiro, 1, cap. VIL, Apesar ae ge amas, gu tr 0 mn Yuet bl, arse a “Tiaite que neste’ ssunto poderio. acusilo de retlcéncas, mas nnca de agers Ein ote mulas pasagens de Seu dss, natural ants bunds em observagies sabre os padtes e seus costumes no Brasl Catdlico fervoroso, o\ assunto Ihe cespertiva naturalmente a” atenglo, 0 maior Unico elogio que Thes faz, em conjint, é relativamente 20 elero da comarca de Minas Novas, onde afirma parécerthe hover menos simonia que no rete && copttana, 1d, T, 238, 69)" Sein Hilaire, Voyage aux sources. J, 192. Formapio do Brasil Contemporinco 339 Ese astm campriam, ou deixavam de cumprir seus deveres fundamentais, que dizer dos de assisténcia e amparo social que a tradigéo, como seus estatutos e a divisio estabelccida das fungdes piblicas Thes impunham? Algumas Ordens, aiguns de seus membros pelo menos, ocupavam-se ainda com a catequese dos indios, ¢ citei em capitulos anteriores alguns destes rarissimos cxemplo. Em certs conventos ministravam-se educagio o ensino, ‘mas 36 nas maiores capitais, ¢ para grupos reduzidos da populagio. ‘Alguinas iemandades leigas dedicavarnse aos enfermoe expostes «indigenes, como os sempre lembrados com justiga Trmos da Miserieérdia. Hi exemplo de dedicago e trzbalho, e nao quero subestimé-los, mas infelizmente exceg6es, casos raros num oceang de necessidades nao atendidas e de que ninguém se preocupava. A grande maioria do clero, secular e regular, desde os mais altos dignatirios até 0s mais modestos coadjutores, deixava-se ficar numa indiferenga completa de tais assuntos, usufruindo placida mente suas Gingruas e demais rendimentos, ou suprindo'a defi- cigncia deles com atividades © negécios privados. Que parcela de responsabilidade caberd disto, diretamente, & politica metropolitana? Com a expulsio dos jesuitas, desfalcara-se colénia do quase ‘nico clemento que promovera em larga escala uma atividade social apreciével. Mas 0s efeitos nocivos da medida de Pombal, neste terreno de que nos ocupamos, ‘nii0 dove ser exagerados. Ji passara, fazia muito, 0 tempo dos Nébregas © Anchietas, ea Companhia de Jesus decaira conside- ravelmente. O que seria no futuro, 6 dificil se nio_impossivel assentar com seguranca. Mas avaliar a perda pela bitola daqueles primeiros missionérios, seria anacronisto lamentével. A iineficiéneia do clero no momento que nos ecupa tem eausas mais profundas que esta ou aquela medida singular da politica metropolitana ou da propria Igreja de Roma, Umas de cariter geral, e que atingem 0 conjunto da estrutura eclesiastica universal nos tempos que prececem a nessa época. Nig me cabe aqui abordé-las. Outras locais, proprias da colonia. E estas se resumem na resposta a ser dada a uma questio fundamental: estava a sociedade colonial apta a produzir um clero eapaz, de clevado teor mora? © na altura de suas fungées? Havia nela ambiente social e moral para isto, e para a mantitengio e floresci- mento de um clero daquele naipe? “As conclusoes gerais sobre sociedade colonial em prinefpios do séewlo passado, © que. me esforcarei por esbogar no préximo capitulo, fomecerio’ talvez alguns elementos para a resposta pedida, 340 Caio Prado Jinior Vida Social e Politica ‘Temos os elementos agora para concluirmos sobre a vida social da colénia, conclusdes que nos dardo o tom geral desta vida e 0 aspecto de conjunto que apresenta a obra da colontzagto portuguesa: no Brasil, Observamos nos seus diferentes aspectos esse aglometado heterogéneo de ragas que a colonizacéo reuniu fqui ao aexso, sem outro objetivo que realizar uma vasta empresa comercial, © para que contra conforne as circunstincis © as erigecis dag empress, rancor carpets, ness afeos, indigonas do continente. Tres raga e culturtslargamente dispares, de que duas, semi-bérbaras ern seu estado nativo, e cujas aptidées culturais originérias ainda se sufocaram, forecerao © contingente ‘maior, ragas arrebanhadas pela forca ¢ incorporadas pela violencia ta colonizagio, sem que para iso se Ihes dispensasse 0 Tacnor pre- paro e educagéo para o convivio cm uma sociedade tip estranha para elas; cwja escola tiniea foi quase sempre o eito ¢ a senzal ‘Naima populagao assim constituids originariamente ¢ em que tal processd dh formagéo se perpetuava e'se mantinha ainda ‘oo tomhento que. nos. ocupa, © primeiro trago que & de esperar, ¢ que de fato nao falhara 8 expectativa, é a auséncia de nexo moral. ‘Ragas ¢ individuos mal se unem, nfo se fundem num todo coeso; justapde-se antes uns os outros; constituem-se unidades © grupos Incosrentes que apenas coeristem © se tocar, Os mais fortes lagos que Ihes marten a intogridade social no serio sendo. os rimarios € mais rudimentares vinculos humanos, os resultantes freta e imediatamente das relagoes de trabalho © produgio: em particular, a subordinagio do escravo ou do semi-escravo a0 set, Zenhoe. ‘Matto. poucos elementos novos. se incorporarao. a este cimento original da sociedade brasileiza, cuja trama, ficard assim reduzida quase exclusivamente aos ténues © sumérios lagos que resultam do trabalho servil. £ neste sentido que nao faltaria razio a Alberto Térres, quando num aparente paradoxo que escandali- Zaria seus contemporaneas, cle Tevanta a vor para fazer @ apologia, no como escravocrata, mas pela primeira vez como socidlogo, do regime sorvil(2). (1) “A escravido fot wine das poueas eotas com visos de organizagio «qe ‘ste pais jamals pon». Schl © eeonamicament, 8 strsisi0 Formagdo do Brasil Contempordneo 34) Para constatar 0 acerto da observagio, basta-nos comparar os setore: da vida colonial em que respectivamente domina uma e outra forma de trabalho, escravo ou livre. A organizagio do primeiro, & sua sélida e acabada estruturagio e coesio, corres- Pondei a dipersio e incoeréncia do outro. Vimos estes dois aspectos da sociedade colonial: de um lado 6 escravo ligado a0 seu senhor, ¢ integrados ambos nesta célula orginica que & 0 “cla” patriareal de que aquele lago forma a textura principal; doutre, 0 setor imenso e inorgiinico de populagbes desenraizadas, flutuando sem base em tomo da sociedade colonial organizada; chegando apenas, em parcelas pequenas a se agregar a cla, adquitindo assim 0s tinicos visos de organizagio que apresentam. Fica-se em suma na tentagdo de generalizar ainda mais 0 conceito de Alberto Torres, ¢ no ver na servidio senao 0 tinico elemento real ¢ sélido de organizagio que a colénia possui Mas seja como for, a andlise da sociedade colonial obriga a um desdobramento de pesquisa., Qualquer generalizagio que abranja as duas situagdes tio diversas que nela se encontram comers o rico de errs considerdveis de apreciagio, Fara com- preendermos, no seu conjunto, os lagos que the mantém a coesio € de que se forma a sua trama, temos que vé-la como de fato la se constitui: de um niéicleo central organizado, cujo elemento principal é a escravidao; e envolvendo este niicleo, ou dispondo-se nos largos vécuos que nele se abrem, sofrendo-the mesmo, em mult casos, a influgneia da proximidade, uma nebulosa socal incoerente ¢’ desconexa. Nao preciso acentuar mais uma vez 0 papel que a escravidio tem mquele primeiro setor, 0 orginico Ga" soedade. colonial Mas devemos acrescentar aqui o cardter primério das relagées sociais que dela resultam, e daquilo que com ela se constituiu Primério no sentido em que nao se destacam do terreno puramente ‘material em que se formam; auséncia quase completa de superes- trutura, dir-se-ia para empregar uma expressio que jé se vulga- Fizou, Realmente a escravidio, nas duas fungbes que exerceré na sociedade colonial, fator trabalho e fator sexual, nao determi- ard sendo relagdes ‘elementares e muito simples. O trabalho escravo nunca ird além do seu ponto de partida: o esforgo fisico constrangido; nao educari 0 individuo, nao 0. preparard para um plano de vida humana mais elevado. Nao thes acrescentark elementos morais; e pelo contrério, degradé-lo-4, eliminando mesmo nele ¢ contetido cultural que porventura tivesse trazido do seu dew-oy, pot longs anos, todo oesforn de toda a orden que tg possuinos, © fundou toda a produgig material que ainda’ (cmos O Problema’ Nacional, 11. ™ “ 342 Cecio Prado Hinior estado primitivo. As relagbes servis sio e permanecerio relagSes puramente materiais de trabalho e produgio, e nada ou quase nada mais acrescentario ao complexo cultural da colénia. A outra funcio do escravo, ou antes da mulher eserava, instrumento de satisfagio das necessidades sexuais de seus senhores e dominadores, nao tem um feito menos elementar. Nao ultra- passaré também o nivel primério e puramente animal do contacto sexual, nfo se aproximando senfio muito remotamente da esfera Bropriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve le todo um complexo de emogoes e sentimentos tio amplos que chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele ato que afinal the deu origem(2). Em alguns outros setores, a escravidio foi mais fecunda, Destaquemos a “figura boa da ama negra” — a expressio é de Gilberto Freyre, — que cerca o bergo da crianga brasileira de luma atmosfera de bondade e termura que nao é fator de menor importincia nesta florescéncia de sentimentalismo, tio caracte- ristica da indole brasileira, e que se de um lado amolece o indi- viduo e 0 desampara nos embates da vida — nao padece divida que boa parte da deficiente educagao brasileira tem ai sua origem, = doutro contribui para quebrar a rudeza brutalidade proprias de uma sociedade nascente. Mas neste, como em muitos casos semelhantes, € preciso distinguir entre o papel de escravo ¢ do negro, 0 que Gilberto Freyre acentuou com tanto acerto. A isting é difiil: ambas as figuras confundsm-se no mesmo indi- viduo, e a contribuigao do segundo se realiza quase sempre através do primeiro, Mas nao € impossivel, e de uma forma geral, 0 que se conclui & que se 0 negro traz algo de positive, isto se anulou na maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais, O escravo enche 0 centirio, e permitiu ao negro apenas que apontasse em raras oportunidades. J notei acima que outro teria sido o papel do africano na formiagio cultural da colnia se Ihe tivessem ermitido se nao o pleno, a0 menos um minimo de oportunidade para o desenvolvimento de suas aptidées naturais. Mas a escra- vidéo, como se praticou na colénia, o esterilizou, e ao mesmo tempo que Ihe amputava a maior parte de suas qualidades, agugou nele 0 que era portador de elementos corruptores ou que’se tornaram tal por efeito dela mesma. E 0 baixo nivel de sua cultura, em oposigio ao da raga dominante, impediu-lhe de (2) “Le mizacle de Tamour Thumain, cest que, sur un instinct trds simple le dest consrut les ddifices de sentinents les plus complenes ct les’ plus ddlicats.” (André Maurois.) E este milagre que o amor da Senzala nig tealizau ¢ io podia realizar no. Bnsil-colé Formagio do Brasil Contemporineo 343 se afirmar com vigor ¢ sobreporse A sua miserdvel condigio, «0 contrério do que cm tantas instincias ocorreu no mundo antigo. Em suma, @ escravidao e as relagSes que dela derivam, se bem que constituam a base do tinico setor organizado da sociedade colonial, ¢ tivesse por isso permitido a esta manter-se e se desen- volver, nio ultrapassam contudo um plano muito inferior, ¢ nao frutificam numa superestrutura ampla e complexa. Serviram apenas para momentancamente conservar 0 nexo social da colénia. No contro setor dela, o que se mantém & margem da escravidio, a situagso se apresenta, em certo sentido, pior. A inoryanizacio é af a regra. O que aliés sua origem faz prever; vimo-lo anterior- ‘Pente: aqucla parte da populacéo que 0 consitut ¢ que vegeta & margem da vida colonial, nio é senao um derivado da escravidio, fu diretamente, ou substituindo-a 14 onde um sistema organizado de vida econémica e social-nio pode constituir-se ou se manter. Para este setor no se pode nem ao menos falar em “estrutura” social, porque é a instabilidade e incoeréncia que a caracterizam, tendendo. em todos os casos para estas formas extremas de desa- gregagio social, tio salientes e caracteristicas da vida brasilviea, € que notei em outro capitulo: a vadiagem e a caboclizacio(3). E isto, em resumo, que 0 observador encontrar de essencial na sociedade da coldnia: de um lado uma organizagio estéril no que diz respeito a relagdes sociais de nfvel superior; doutro, um estado, ou antes um processo de desagregacio mais ou menos adiantado, conforme o caso, resultante ou reflexo do primeiro, e que se alastra progressivamente, E note-se, antes de seguirmos adiante, € repisando um assunto j4 ventilado, que tais aspectos correspondem grosseiramente, no terreno econémico, aos dois setores que ai fomos encontrar: a grande lavoura e a mineracio de um lado, as demais atividades que reuni na categoria geral de “economia de subsisténcia”, do outro. A observagio é impor- tante porque vem confirmar mais uma vez 0 que jf foi dito sobre a caracterizagio da economia brasileira, votada essencial- mente A produgio de alguns géneros exportiveis; este seu cariter unilateral se revela aqui Sonsivelmente, mostrando a. precariedade (8) Hi execgSes a assinalar, excogiecs em que vemos se constitute neste setor dav vida colonial formas sciis mate aperfegontss. Mas. sto Tatas, como arias interessante e conhecida delas, "muti, que. ainda Subsite em, certas partes do, Bras, 'e que consite no, trabalho’ oh comm ¢ auxtio mitvo na lavoura. Sainte teve ocaso' de observer © mutt Suma tegtio do hoje Teangulo. Mineo, Voyoge a sourcen-y~. {he 200. Parece"Contido” que se tals antes de umd’ Sevivenclaindigens © exelent ir eee ay 8p com ait Uae” de Sangte,mestigo, Nao ae tratars entio de" wind cago, us de" un Wage cilia! que aobrov.da vida conwnitiia. do 844 Calo Prado Jinior daquilo que sai do cfrculo estreito desta forma particular de atividade’produtora, A luz desta vista d’olhos preliminar por sobre a socledade colonial, torna-se possivel compreender a maior parte dos seus tragos ¢ caracteres essenciais. Porque ela se soma © sumaria na observago geral feita de inicio: a falta de nexo moral que define a vida brasileira em prinefpios do século passado, a po- breza_ de seus vinculos sociais, Tomo aquela expressio “nexo moral”, no seu sentido amplo de conjunto de forgas de aglutinacio, complexo de relagées humanas que mantém ligados e unidos os individuos de uma sociedade e os fundem num todo coeso € ‘compacto. A sociedade colonial se definiré antes pola desagrogacio, ppelas forcas dispersivas; mas elas sio em nosso caso as da inérc € esta inércia, embora infecunda, explica suficientemente a relativa, estabilidade da estrutura colonial: para contrarid-la e manter a precdria integridade do conjunto, bastaram os ténues lagos mate- riais primérios, econdmicos e sexuais, ainda néo destacados de seu plano original e mais inferior, que se estabelecem como resul- tado imediato da aproximagio de individuos, ragas, grupos dis- pares, € ndo vao aléin deste contacto elementar. £ fundada nisto, @ somente nisto, que a sociedade brasileira se manteve, e a obra da colonizago péde progredir. Poderfamos acrescentar a pressio exterior que 0 poder, a autoridade eagio soberana da metrépole exetveram ‘sobre. & sociedade colonial, contribuindo assim para congregé-la. Nao é dle desprezar este fator, que apesar do rao limitado do sua exten- so e penetracdo — j4 0 vimos ao falar da administragéo publica tm colonia, contou por muito na subistncia ¢ mamutengio da estrutura social brasileira, Os acontecimentos posteriores, que precedem imediatamente a Independencia ¢ a segucm, estio ai para demonstré-lo. O enfraquecimento daquele poder Ievou o pats, durante muito tempo, para a iminéncia da anarquia, que lids muitas vezés, e em varios setores, embora restritos, se tornot. efetiva; e 36 se conteve com a constituigéo de um Estado que, embora nacional de nome e formagio, reproduziu quase integral. mente a monarquia portuguesa que viera substituir; que no brotou do intimo da sociedade brasileira, incapaz de tal criagio, mas the & imposta do exterior, continuando a exercer sobre ela ‘© mesmo tipo de pressio que 0 daquela(4). 4) _Nho se caracerizard isto unleamente pelo fato da perpetuagio da orgazagio mondsquica no Estado nacional eastenoy ine al, intunn dinastty 9 que por si J @ uma prova do arficalisme da consituicto {ine adutamos, Nilo via no. Brasil afora 0" Mbito do) passa, ne ‘gum para otrono. Mas ndo 6 romente nsto que se ascinla's persténcla do" regime polite anteriog, embora sob. vestimenta nacional, 6 0. pro Formagdo do Brasil Contempordneo 43 aunt gid ue evar em conta uma certa uniformidade de ‘atitudes’, empreguemos esta expresso ampla, que identifica 0 conjanto colorial e suas virias partes, Uniiormidade de sents mentos, de usos, de erencas, de lingua. De cultura, numa palavea, Ela sersiri, © de fato serviu de base moral c psicaloyea pers @ formagio do Brasil como nacio, e The proporcionou a unidade "ucional i realizada na geografia © ma tradigdo. Mas neste sentido cla se afirmard posteriormente, em oposigio & metropole e mai eas icin Bearman em, niet A metas al € ndo traz no momento e no assunto particular que nos ocupa, contribuisio aprecivel para trama da Sociedade colonial. Aquela oposigio ainda nao representa papel social, mas comeca apena: opal. Seprmenin Bape sia mas comeys apenas Caracterizemos agora, mais de perto, a vida colonial ¢ as relagGes que nela vamos ‘encontrar. ‘Toda sociedade organizada se funda precipuamente na regulamentagao, nao importa a com- lexidade posterior que dela resultar4, dos dois instintos primérios lo Homem: 0 econdmico e 0 sexual. Isto nao vai aqui como afi magio de principio, incabivel em thosso assunto, mas. serviri uunicamente de fio condutor & anilise que vamos empreender das relagGes fundamentais que se estabelecem no seio da sociedade colonial. Na primeira categoria, o elemento que definiré, © na base do qual se formario aquelas relagtes, 6 o trabalho, tomado aqui no sentido amplo e mais geral qu corres scl ee ges dhe psd Us pr erat olin politica’ de Humonidede, * " . ‘6 Celo Prado Kinior ‘ociosidade que para os senhores resulta do: trabalho entregiie Entel famente a eservos. Besta uma alitude peleolbgien por demals conhecida para nela nos demorarmos. Um € outro efeito da escravidio se somario para fazer ou eviter quaisquer ‘A indoléncia, 0 écio dos casos extremos, mas sempre uma atic vidade retardada, uma geral moleza ¢ um minimo de de energia resultarao dai para 0 conjunto da sociedade col Tudo repousaré exclusivemente no trabalho forgado 2 néo con- sentido imposto pela servidao; fora disto, a atividade colonial fquase aula, Onde falta a obrigaeao sancionada pelo agoite, 0 tronco e demais instrumentos inventados para dobrar a vontade humana, ela desaparece. Os libertos que se fazem por via de regra vadios, apesar da escola em que se formaram, é disto uma das provas. Isto, para as atividades de natureza fisica, é regra pratica- mente universal: nenhum homem livre se rebaixa 2 empregar 05 misculos no trabalho, & de Luccock uma anedote bem ilus- trativa do caso: tendo ido buscar um serralheiro de cujos servigos precisava, este o fez esperar longamente na expectativa de um hegro de servico para transportar sua ferramenta de trabalho, pois carregé-la pelas ruas da cidade nfo era ocupagio digna de tum homem livre(5). AS outras fungdes se praticam sempre com um minimo de energia. Uma lentid’o e economia de esforgos que faziam a cada paso 0 desespero dos enérgicos europeus {que nos visitavarn, Somente num setor encontramos mais atividade: ¢ no dos colonos recentes ainda nao contaminados pelo exemglo do pais; destes reindis que vinham para c4 “fazer @ América’, avidos de ganho, dispostos a tudo educados numa escola de trabalho & ambigio muito diferente da dos brasileiros. Eles representam, com {98 escravos, 05 tinicos elementos verdadeiramente ativos da colénia Num interessante ensaio sobre as causas da Independéncia, escrito em 1823 e dedicado ao soberano portugués, Francisco Sierra y Mariscal analisa com muita clareza este abismo de concepcaio fe atitudes que separa brasileiros de portugueses imigrantes. Enquanto esses ultimos, chegados ao Brasil de mos abanando, escreveré Mariscal, “nio hd nada a que se nao sujeitem, ¢ com economia e trabalho chegam a ter grandes cabedais", o brasileiro, nascido na abastonca, “o orgulho se apodera dee, e este sempre maior que os meios de o sustentar... no conhece o trabalho nem a economia... e quando chega ao estado viril, jé est pobre”, (5) Notes, 17, Formacdo do Brasil Contompordneo S47 porque, conclui com muita légica 0 nosso autor, que chegue a quem gasta muito, e nfo ganha nada”(6). Uma tal atitude da grande maioria, da quase totalidade da colénia relativa a0 trabalho, de generalizada que é, ¢ mantida através do tempo, acabaré naturalmente por se integrar na psico- logia coltiva como um tra, profundo e inerraigavel do cardter rasileiro, niga € 0 6cio, aqui no Brasil, “até se pega como visgo", dir: Vilona, Mas se 2 escrvidi, ‘nas suas voras repercussdes, é a responsivel principal por isto, hé outros fatores 4 segundo plano que nao deikam do toro seu papel, O principal doles & a contribuigio do sangue indigena, consideravel como sabemos. A indoléngia do indio brasileiro tomou-se proverbial, e de certo modo a observagio é exata, Onde so erra é atribuindo-a a nio se sabe que “caracteres inatos” do selvagem, Na sua vida nativa, mesmo na civilizada quando se empenha em tarefas que conhece, e sobretudo cujo alcance compreende, 0 selvagem br leiro é tio ativo como os individuos de qualquer outra raga. Serd indolente, € s6 ai 0 colono interessado o enxergava e julgava, quando metido num meio estranho, fundamentalmente diverso do seu, onde ¢ forgado a uma atividade metédica, sedentiria e or- ganizada segundo padrées que nao compreende. Em que até os stimulos nada dizem a seus instintos: a gandncia, a participagio em bens, os prazeres que para ele nio so nem bens nem prazeres. Nada houve de mais ridiculo nos sistemas de educagio dos indios gue lsto de tentar Ievi-los por tals ineantivos, modelades por figurinos curopeus ¢ estranhos a seus gostos(7). (6) das goris sobre a revoligas do Bras, 55. Esta difernga & do tal forma produto do melo, que os proprios filhos do- portugues enrique Sido, Brasdeios' do nace © edstio, cher of mest. Marie, Sip" sgucm 0° esegplo dos pais © vention ordem gett, he dae, cahem na pobreza.” " " § a)" Reem bene profundamenteconhecodor dis raat de sun terra 0 Pak monn lcm Tost Vato, nb eer arent et stagie®pardoval tnd peste cag. Inoleuins “ita de anbeio que se observaty no faa! nao" 520 senso Eto de ta complet infernga quando do do hosdaereltvanente tums" chlagie que 1 the hpi e-coj vals, com todo on aves fp toa pana pra ee ate. Boule fodiens beers ced cll St ty har de nl’ oe saute. situdee opis de um inadplado ow revolts, 69 veo obretudo dos angloiricanes. Mas qual fea, perguntamos nbs: a reagho Soi desir entghon sngin sss a ue tne ede uni de teal "ser pogo.com win jar'Ge pts dele ou de mandica pub? Natit imate én meso co sue Se econo indigent ©. Sica at ads que". indo coped fot’ guaelent, que por ioe a oie empregon agen 348 Caio Prodo Jinior ‘Mas seja como for, 0 indio e com ele seus descendentes mafs on menos mestigados, mas formados na sua escola, e que consti- tuem parte tio aprecidvel da populagdo colonial, tém por feigte dominante, para todos os efeitos da colonizagio, “a falta completa @ absoluta ‘de energia e agio"(8). E esta seria uma das principais Tazies por que as regides onde eles formam contingentes muito andes nunca fizeram mais que vegetar. O governador do Paré, Francisco de Sousa Coutinho, escrevia desalentado & metrépole depois de trés anos de. governo: “0 poderoso inimigo destes hhabitantes © a mais poderosa causa entre muitas outras de seu atraso € a preguiga deles"(9). ‘Ao influxo do sangue indigena como fator de indoléncia, inda ha que acrescentar esta causa geral que é 0 sistema econd- ico da colénia, tio acanhado de oportunidades ¢ de perspectivas to mesquinhas, Nao seria um tal ambiente propicio a estimular as energias ¢ atividades dos individuos, uma escola muito favorével de trabalho. De tudo isto resultart para a colénia, em conjunto, um tom geral de inércia, Paira na atmosfera em que a populagio colonial se move, ou antes “descansa”, um virus generalizado de preguica, de moleza que a todos, com raras excesGes, atinge. © aepeeto do Brasil & de estagnagdo, Saint-ilaire, depois de lon- gas peregrinagdes ¢ de uma permanéncia jé de muitos anos em ‘contacto intimo com a vida do pafs, nio esconderd sua admiracio, € por isso elogiaré calorosamente’ os moradores de Ttu e Sorocaba (Sio Paulo), porque encontrou ai... um jogo de bola; no estado de espirito em que st achava, ¢ tendo em vista o que presenciara ‘até entio, constituia isto j& uma “prova” de energia(10). Até nos seus prazeres e folguedos, a populacio colonial é apiitica( 11). A apatia, Paulo Prado esqueceu-se de a incluir entre os fatéres da tristeza brasileira, que no vem somente da luxiria e da cobiga, mas sobretudo de uma inatividade sistemética, que acaba se (8) Josh Verssimo, Populapdes indigenas da Amazinie, 208 (9) Informagies, 66. (10) “Voyage aux provinces de Saint-Paul. 1, 978. (11) Seria“ muito Intoressante estudar 8 folclore brasileiro sob el aspecto om paralelo com 0 de outros pases, Polo que qualquer um ja poder ma Been, caplsio no irae men vid Compares cleo poplar’ bras como, de qualquer das populates aa Europe, we orhor h apati¢ tisteza daquels, corresponde 0 entusiesmo legit jetsa tines, © proprio’ Gamaval, para quam 0 tlver observado com Stengto nio escapa ogra. Afora a3 expansdes do cariter acentuadamente rela, ou do euiloy de croncas ancestats que nos dias comans levam 0 (eidio"h polila, nada ina hiv neke, — Notewe ainda quo o clenento brasileiro male ativo neste sotor & 0 negro, que tem a tradigio do trabalho Formasio do Brasil Contempordneo 49 derardo do individuo todo, tirando-the até a energia de rir ¢ folga:(12), Que dizer, nestas condigées, do teor econdmico da colénit? No pode deixar de ser, e ndo foi efetivamente, mais que uma Lstirna, Porque afora o' trabalho constrangido ¢ mal execuito do eicravo, no se vai além do estritamente necessirio para perecer A mingua. E isto explica suficientemente, a par das conc foes gerais daveconomia que jéassinalet, © que so afinal a cansa indireta de tudo isto que estamos vendo, 0 baixo, o infimo padrio de vida da populacio colonial, a sua pobreza, sem excetuar mesmo as classes mais favorecidas. Do Brasil em conjunto, dir& Vilhena jue, apesar dos recursos naturais dele, é a “morada da pobreza.” E aos habitantes da Bahia, a segunda, se nio a primeira cidade da coldnia em riqueza, com excegio dos grandes comerciantes © de alguns senhowes de engenho e. lavtadores “aperatosos", que aliés nada mais tém de seu que esta aparéncia de ricos, chamaré de “congregacio de pobres"(13) Vejamos o segundo grupo de relagées sociais.a que me referi acimé, as que derivam mediata ou imediatamente dos impulsos sexuais dos individuos. Sobre os costumes do Brasil-colénia, neste particular, hé uma documentagao abundante que s6 faz 0 desi- nnimo do pesquisador obrigado a escolher. O desregramento atinge tais proporgdes e se dissemina de tal forma, que volta debaixo da pena de cada observador da vida colonial, por mais despreve- nido que seja. A causa primeira e mais profunda de um tal estado de coisas & com certeza, e ja toquei incidentemente no assunto, a forma pela qual se processou, na maior parte dos casos, a emigracio para o Brasil. Ela ndo se faz sendo excepcionalmente por grupos familiares constituidos, mas quase sempre por indi- viducs isolados que vémn tentar uma aventura, e que mesmo tendo familia, deixam-na atrds & espera de uma situagio mais definida © segura do chefe que emigrou. Espera que sé prolonga e nio 12), Palo Prado, Rate do Bra, A tex basa fo observed por Suint-Hilaie, que 4 opoe a alegria do camponio frances (Voyege ase fptrooy I 124); la stare ai eon passages de seve die rarlcular no que diz respeito as ‘ranges, im que deplore. a falta de expontancidade @ contentamento, id, 1, 374” De tudo iso. podetiamos laivez excetuar 0° Rio. Grande do Sul, de formagio lls tio diferente do reo 13)" "Recoplordo, 928 ¢ 927. — A pobreza da populagéo colonial & testemunhada mo a6: polo depoimento de tolor os. cbvervaores, conten nas, mas hoje anda. pelos escasos emiserivels vestiges, que. os zou. Onde as constuetes, os objetos, todo exte aparehamento que ums soticdade mesmo, mediocre deixa sempee atris desi? Nada ou quae nada possuimos de uma época que no es ainda a séeulo’e meio de és; eo que fou € em regra umn pobre testemunho, 350 Caio Prado Hinior raro se eterniza, porque 0 novo colono, mesmo estabilizado, aca- bar& preferindo a facilidade de costumes que Ihe proporcionan mulheres submissas de ragas dominadas que encontra aqui, as restrig6es que a familia Ihe traré. E quando nio, jé estaré tao habituado a tal vida que o freio da mulher e dos filhos no atuaré nele seno muito pouco( 14). Langadas nesta base nao familiar, outras circunstancias vém reforar a iregoaridade dor costumes soxuais de cola, scr vidio, a instabilidade e inseguranga econémicas...; tudo contri buiria para se opor & consiuigfo da fami, na sun expressio integral, em bases sélidas e estdvais. A formacio brasileira, a0 contrério do que se afirma correntemente, ndo se processou, salvo no caso limitado e como veremos, deficiente, das classes superiores da “casa-grande”, num ambiente de familia. Nao é isto que ocorre com a massa da populagio: nem com o colono reoém-chegado, nem com 0 eseravo, escusado acrescenti-lo; talvez ainda menos com esta parte da populaczo livre, econdmica ¢ socialmente ins- tivel que temos j4 visto sob outros aspectos, ¢ & qual falta base sélida em que assentar @ constituig4o da famflia(15). Quanto bcasngrande, ce 6 certo que o seu nicleo € a familia, ou antes, a familia do senhor, ¢ s6 ele (da pequena, da miniscula minoria portanto, isto se esquece freqiientemente); e se, neste sentido, € um ambiente familiar que cerca o filho-rico da’ socie- dade colonial, excecio, no conjunto, quase iniea; h& que abrir larga margem para’ restrigées se pelo concelto de familia nao centendemos apenas uma estrutura exterior, mas todo aquele com- pplexo de normas, de “atmosfera” mesmo, que concede a familia, nas sociedades da nossa civilizagdo, 0 grande papel de formador dos individuos e do seu cardter. Neste sentido, a casa-grande ficou muito aquém de sua missio. O sistema de vida a que dé lugar, a promiscuidade com escravos, e escravos do mais baixo teor moral, as facilidades que proporciona as relagbes sexuais lergulares' desbragadas, 2 indisciplina que nela reina,|mal disfargada por uma hipéerita submissio, puramente formal, a0 pai e chefe, tudo isto faz a casc-grande, antes uma escola de vicio ¢ desregramento, apanhando a crianga desde o bergo, que de formagao moral(16). A familia perde af inteiramente, ou quase, 14)_Ainda hoje isto se verfca, @ « cada pisto topemes com fic uanly Casson ta Bap ¢ amanesbabos so Bebe (13). talver por iso que tanto se nsiste no Brasil sobre a orlgem familar Esta crigem eleva e distingue os Individucs, porgue € propria 26 de uma clase superior dura, Ser "Ue familia” entre nes, constaia un Aisintive. de miperiridade, de quase vobrera. (U6) Sobre exte assinto, Vilhena nor fornege uma sintese admirivel do observagdes Ay quais no plecisimos acrescentar nada, Racopilo, 198 Formagao do Brasil Contempordneo 351 as suas virtudes; ¢ em vez de ser 0 que Ihe concede razfo moral ‘isica de existéncia e que é de disciplinadora da vida sexual dos individuos, torna-se pelo contririo campo aberto e amplo para © mais desenfreado sexualismo. Advirta-se que nio é no terreno dos sentimentos que me coloco aqui: nao slo as reagées emotivas e afetivas nas relagées reciprocas de homem para mulher, ou de pais para filhos que procuiro negar, ou mesmo subestimar, Até pelo contririo, destas s6 se poderiam recriminar os exeessos, der- tamando-se em condescendéncias ¢ tolerincias sem limite que nio foram pouco responstveis pela mé edueagio que receberam as geragées coloniais( 17). Mas nao é por este lado somente que devemos analisar a familia; 0 seu contetdo & mais amplo que © da simples esfera sentimental e afetiva. E se neste pecou a familia brasileira pelo excesso, nos demais falhou lamentavelmente. Reduzido assim, extensiva e intensivamente, o papel da familia na vida colonial, ficou aberta larga margem a indisciplina sexual. Néo podemos aqui limitar nossas observagées a0 fato da maior ou menor frequéncia do exsament, pois este ndo 36 nfo é, por st apenas, uma garantia de regularidade e disciplina sexuais, como esta regularidade, entendida em termes sociologicos, nao é exclu. siva das relagées legalmente sancionadas. Precisamos por isso dirigitnossas atengdes sobretudo para o grau de estabilidede que apresentam as relagées sexuais, sejam ou ndo sancionadas legal mente pelo casamento, E isto & em nosso caso, e para 0s fins que temes aqui em visa, partculamente importante, porque segundo © gue se colige dos’ depoimentos contemporineos. quase se pode afrmar que, fora 0 caso das classes superiores, 0 casamento constitui uma situagdo excepcional. Mas é preciso reconheeer que muitas das situagées legalmente irregulares se explicam por outros salvos que a simples indsipina sexual. Assim, em mfos casos, a difiealdade da realzagio do casamento pela distancia ery qe fica 0 sacerdote celebrante ‘estas pardquias imensas, onde ‘im padre s6, € quase sempre pouco diligente, tem de atender populagdes esparsas por dezenas de léguas de raio. Maior obs- ticulo 2 realizagio do easamento, e mais freqlente, ¢ 0 seu custo; este respeito, as queixas comlemporineas. abundam, ¢ esta-se sempre as voltas com a questio(18). Ainda ha o preconceito de segs. E lembremos que ele & um professor, um educador, que fala postanto com antoridade © enpeiiincia postas servigo de uma’ inteligencieritien notivel, ° . 8 (27) Veja-so 0 que « respite escreve 6 mesmo autor ji citado acim Sierra y Marital, 1dDue gerab sobre a Tecolueao do Bros (18) "Par ao deh de arom Spent ene omits gue possuimos, remeto 0 letor pars o que dic a respcjo um dos espitee rene SSelareaidos de principios do s6clo.pastado: 0 Cons. Velose 852 Caio Prado Kinior le Oliveira cor ¢ de classe que impedia a regularizacio de muitas situagéet extramatrimoniais; preconccito 120 forte que pode levar até a desenlaces extremos, como este caso trégico de um ex-governador de duas capitanias, Fernando Delgado de Castilho, que, apaixonado or uma mulher de condi¢éo humilde, de quem tivera varios Rites, prefer suicidarse a levé-la, casada com ele, para o Reino, de onde 0 chamavam(19). Como se ve, eriam freqientes 0s casos da vida em comurn extraconjugal que nfo se poderiam s6 por isso, e para o efeito Ge terme om vista, conslerar como exemples a ndicplina sexual. Alids, de tio freqtientes que eram, acabam nem se notando, @ a opinigo piblica os admitia sem © menor constrangimento( 20). Mesmo contudo sem formar nosso juizo sobre os costumes sexuais da colnia com esta irregularidade aparente e tio generalizada, temos outros elementos seguros para nos fixar sobre cles. “Os brasileiros”, escrever’ Hércules Florence em 1828, relatando a expedicao Langsdorff que acompanhou na qualidade de desenhista, eujas amAveis qualidades sf tao caracteristicas encontram, incli nados como so aos prazeres, nas mulheres do pafs facilidade de costumes, e em geral nfo pensam em se deixar prender nos lagos Tianio we «eget, 18), 02 emt manent ea ent ct aes Slo sans ae se em eee coon, om poet pore a > et, a ce rot eon an aces, Sch fe ges eel ng ait Yin a Gg, 29 deme de 1 9 ego pea ps ep ae Sa as ee et Been ene Soe ome gorge dt im 2, See Fn, ge een re Regma, 2) ot oe mE tee a ge See, apmetn e iee es seca oy Apt de Eo ant ice deg om os Bl opel Sot ce SE a ee tod, meee coe oa wala, aig aero, Gms Seem oaane oh eatsataie geo conkers pelts guands sowed ae cit) ttn, «smb epee ane og eo a gael ce op ee, eae oo wre Se SE ong RR ed slo mn op Ce (Copal re, 20), ea gare epee Sue len oa mul ae fr re co ees oe oe een ca ate SE" cnn, Vogge ou rie de is oct 28 0 on nme ries eT de Jn: state Cnet Dando Cali ot oo Sse ae tata ats Nouns Gia ee Formapio do Brasil Contemporineo 35% do matriménio.” E acrescenta mais adiante que “as mocas fithas de pais pobres nem sequer pensam em casamento:, nao Ihes passa pola cabega a possibilidade de arranjarem um marido sem o engodo do dote, ¢ como ignoram os meios de uma mulher poder viver do trabalho honesto ¢ perseverante, sio facilmente arrastadas | vida licenciosa”(21). Florence repete quase textualmente 0 que (© Marqués do Lavradio escrevia meio século antes: “As mulheres [por se nao empregarem e por falta de meios para se sustentarem, se prostituem”(22). Tocamos aqui um ponto que é o mais alarmante sintoma da geral indisciplina de costumes que reina na sociedade colonial: 8 larga disseminagio da prostituigio. Nao hi recanto da colénia fem que nfo houvesse penetrado, e em larga escala. Nao falemos naturalmente das grandes e médias aglomeragées, onde o fato 6 mais natural, e sempre se encontrou em toda parte. Observemos os pequenos, os mais insignificantes arraiais: quase toda a sua populagio fixa é constituida, além dos vadios, de prostitutas. E uum depoimento este geral: “Nés mais humildes povoados, teste- munharé Saint-Hilaixe, a mais vergonhosa libidinagem se mostra com uma imprudéncia que no se encontraria mas cidades mais corrompidas da Europa.”(23). Circunstincia aliés que explica 0 destino da parte feminina deste numeroso contingente da. popu: lagao, cuja masculina jé vimos noutro capitulo: os desocupados € vadios, vivendo de expedientes, com um pé na ociosidade e outro Formava a Religido, para ‘tamanha corrupgéo, dique de alguma eficicia? Que a ‘tenga religion tem fa vida colonial papel consideravel, jé 0 notei em outro lugar. Esta aparece lit Falimente. entranhada por atos e ceriménias do culo. Folheando as Atas da Cémara de Sao Paulo p. ex., nfo se virara pagina quase fem que no se encontre algum “termo de ajuntamento” para 0 fim de comparecer a Camara incorporada a missas importantes ou de agio de gragas por isto ou aquilo, tedeuns, procissbes — (1) Eshovo de viogem de Eangsdrf, 901 «448, (33) Ce acto Se taco de ATT ity. Femandes Pishelo, Os sitincs Vice Re do Bras D4k. Logo adlante acesoetas “Na facie Gus hasnt tea cart ato, das ult se Segue tambem os poucas Ae Bec tle ee ute tow nae ex natuniea de atsesttva hem pedpiis do se feo. profundamente religios. Seu hdats ae todos de recengas ng punta, © Pree sea um fepug: sista am wat dele. Mas a fidelidade ‘do shseror no. pode escondee sie Go ekhdlosimente se vide; © dt 0 ineroue abe apresentan feta seca teas amano srl Gait pe 354 Caio Prado Janior “saimentos”, como se dizia, Mas dat para um verdadeieo espirito religioso, vai distincia consideravel. As festas religiosas indige navam o piedoso Saint-Hilaire, que as chama de “irreverentes ceri ménias, em que ridiculas palhagadas se misturam aquilo que a religiio catélica apresenta de mais respeitivel(24), Sobre 0 espitito religioso da coldnia, 0 mesmo autor endossa’a opiniéo que ouviu do vigitio de Sto Joao del-Rel, c que “os brasileiros cram naturalmente religiosos, mas que sua religifo nao ia além dos sentidos; e quanto aos pastores, este parecem considerar a ofensa e 0 perdio como simples fungées ‘maquinais"(25). Nao é assim de esperar dos mandamentos religiosos um freio sério & corrupgio de costumes. O culto fica nos ritos externos, estes sim rigorosamente observados, Quanto moral, era-se de uma tolerincia infinita, Coisa que nfo é para admirar: afora as ‘causas gerais € mais profundas que numa sociedade como a nossa da colénia, © cuja feiga0 ja ficou bastante caracterizada nas ‘paginas acima, tomam’ inviével uma compreensio elevada da Religiio e do seu culto, cabe nisto ao clero, aliés vitima também das mesmas circunstincias, uma boa dose de responsabilidades. Nao cogitou ele nunca, em conjunto, de levar a sério a instrugio religiosa: 0 seu desleixo neste terreno é lamentavel, ¢ parece que 05 sacerdotes nfo tém outra fungio na colénia que presidir ou praticar 0s atos exteriores do culto ¢ recolher os tributos eclesids- ticos. “Em muitos lugares.a firma Saint-Hilaire, a religiio se con- serva s6 por tradigio, pois os figis, afastados de centros povoados importantes, passavam a vida num completo isolamento e sem ‘9 menor socorto espiritual”(26). Nos outros lugares, embora pre- sentes, os padres se ocupavam muito mais em atividades privadas © com seus negécios, ji 0 vimos anteriormente. E a este abandono em que deixa a populagio, acrescenta o clero 0 exemplo tio freqitente de uma. vida escandalosa e desregrada. O resultado de tudo isto néo & de admirar portanto que tenha sido aquela religito reducida a un esqueleto de pritieas exteriores e maquinais vazio de qualquer sentimento elevado, ¢ que é ao que se reduziu © catolicismo na colénia(27). (24) Voyage aux sources, 1, 102 (25) "Ls'pestours somblent considerér comme un jeu offense le pardon loc, et (20) Vosige au sures, 298 jue acrescentar as etirpaghes da mate grossera sy fo da ignorincia e sobrctado da contaminagdo de exenges caller est hos ao_crstiantmo, trailor pelgsafcanos c coompides pel escri A contbuigto do indigena épequena pois cm materia de erensn slgion, sua cara nativa ¢ como se sabe mdinentar = Semente ts Jesuas poles afirmar, realzaram obra mais Iotensa e sstemdtien Ge insteugao e edacagan Formasdo do Brasil Contempordneo 353 subiam para sucessivos graus de recurso: ouvidor, Relagdo, Supli- eagio de Lisboa, as vezes até Mesa do Desembargo do Paco, arrastando-se sem solugéo por dezenas de anos. A seguranga pibli ca era preciria. Ja vimos os recursos ¢ adaptagdes a que a administragao teve de recorrer para suprit sua incapacidade neste terreno da ordem legal, delegando poderes que dariio nestes Guistos de mandonismo que se perpetuario pelo Império a dentro, se _nio a Repiiblica, ¢ tomando tio dificl em muitos casos agio legal ¢ politica da autoridade. Mas mesmo com esta adapta. go forcada, nio se conseguiu fazer predominar a orden, a inseguranga foi sempre a regra, nao s6 nestes sertdes despoliciados que constituem a maior parte da colénia, mas nos préprios grandes € muiores centros, & sombra das principais autoridades. Seo banditismo e o crime permanente nao assolaram a colonia exces. sivamente, isto se deveu. muito mais & indole da populagio, e nao as providéncias de uma administragio inexistente na ‘maior parte do territério da colénia(52) As finangas nfo estio em melhor postura; alguma coisa, bastante ilustrativa jf foi dita acima com respeito arrecadagao das rendas piblieas. © manejo delas néo é de melhor qualidade Nunea se viveu, em todas as capitanias, cidades e vilas de cujas finangas temos noticias, sendo em regime permanente de deficit, E um deficit “desorganizado”, se podemos' sem pleonasmo acres. Centar este qualificativo para caracterizar o sistema financeiro da celénia, onde a falta de rendimentos para cobrir as despesas se resolvia sumariainente com o calote, nao se pagando, ‘nem com boas intengdes, os credores que nio fossem protegidos das autoridades. Nem 0 soldo das tropas se satisfaria regularmente, € 0 espeticulo de soldados mendigando pelas ruas era comum, Se nas suas fungdes essenciais a administragdo era isto, nas outras é pior. A instrugdo piiblica estava reduzida a umas poucas aulas de primeiras letras, latim e grego, esparsas pelos principais contros, © a0 parco ensino ministrado nas maiores cidades pelas ordens religiosas(53), Os servigos de higiene ¢ sade pibliea se constatam pelo estado das principais cidades, Bahia ¢ Rio de san SOS se tparangs my olin, vfs a etn do Sait “Hilal, que resume admiravelmente 0 astntor Vehoge aur proctces de i Janeiro i, 048 segs, ieee oes 53) "Sobce 6 sing da Bahia, consultese Vibiena, Recopilagdo, Carta VINE, que esereve com a autoridade’ propria de_ profesor tegen ere ry (Tg de Jani ejmon a nantes cosa ant re: Scatagio dos protessres gion em 178%, e.publiada nu’ Corcopondcta de" ets outiridedes, 215: Um rests Sumicon mas bes tenor da instrugfo. colonial, é 0 trabalho de ‘Morea de A‘eveto, Tnsrugts’ nee tempor colonia 834 Caio Prado Kinior Janeiro(54). Hospitais nfo havie senfo uns rarfssimoe militares Tome edo Rio ce Janeioy uc ce hntsloy no any eolgia dae Jesuitas(55), e as’ Santas Casas de Misericérdia, que emt joucas, constituem a mais bela e quase tinica instituigéo social Ee cerio vulto ‘da coldnia. Das obras. piblicas, vimos jd uma amostra nestes miseraveis caminhos e mais vias ce coma E afora isto, legou-nos a colénia pouquissimas obras. di meng2o; algamas fortaleras medogres eo aqueduto da Carioca, no Nio de Janeiro, quase esgotam a Tista(50). © fomento da produgio estava inteiramente entregue & boa yontade de um ou outro administrador mais esforcado, e nunca ppassou de pequenas limitadas providéncias(57). A lista poderia ser alongada, mas inutilmente, neste mesmo diapasdo: a mesma falta de esforco construtivo, a mesma ineficiéncia e negligencia se encontraré por toda parte. Um exemplo bastarla para earac terizar a administragio colonial: a mineragio. Durante quase tum século, a explorago do ouro © dos diamantes constitu a maior riqueza da monarquia, a base em que assentou a prosperi- dade e até mesmo a existéencia do trono portugues. Pois nem assim ela mereceu mais que a consideragio de um bem tributdvel uma fonte de renda que se tratava de explorar ao maximo. Sora io, a seer. © deouse ti 4 tera 0 abandon ‘A incapacidade da administragio colonial, a negligéncia ¢ que demonstrou diante da imensa dissipagzo’e destruigho. de Fiqueza natural que se praticava nas minas, é um atestado que Aspensa quatsquer outros comentarios Se no terreno da eficiéncia ¢ este o retrato da administragao0 colonial, nio é ele mais avantajado no da moralidade. De alto a baixo da escala administrativa, com raras excegdes, é a mais grosseira imoralidade ¢ corrupgao que domina desbragadamente. Boder-se-ia repetir aqui, sem nenhuma injustiga, 0 conceito do Soldado Prdtico: “Na India nao h& cousa sa: tudo esti podre e afistulado, e muito perto de herpes...” Os mais honestos (54) Para a Bahia: Viena, Recoplacdo; para o Tho de. Janeiro, sobretudo D. Yodo Vino’ Bras, fnsreviase no. avg da feininstracdo a ntrodugie. dt vacina “nos primelos anes, do\ dee 1K 55) "Sabre este hospital: Pedro Cirio de Carvalho, MitOnto da hegpe tng ator oa ee a (36) Ha sinda or edificios pibicos, povcs alan dat ima. dessas tem sido" considerivelmente’ exagerado, Algumas ty Rad id valor artistico; mas nenhuma a grandeza ou suntuosidade que se Dhes quiet Tmpresfa Ao Tada" dos. monuakntor seigiosos das clbate eta, Neo fee purr, fay ede hee fc 32) Lombremos guts adminisiagio, unica. sob se Marqute do Lavadio no Rio de Jenewo, Tambien» de 1.66 de Amada ft Capitan do. To Negros Formagdo do Brasil Contempordneo 335 delegados da administragio régia sio aqueles que nfo eam smarizmente os bene publices, ou nto usam dos cargos para especulacies privadas; porque de diligéncia ¢ bom cumpri- mento dos deveres, nem se pode cogitar. Aliés o préprio sistema vigente de negociar os cargos piiblicos abria naturalmente portas Iargas A corrupgio. Eles eram obtidos e vendidos como a mais vulgar mercadoria. Mas isto ainda é 0 de menos, porque estava nos métodos aceitos ¢ reconhecidos. O que fazia Vieira, j& século ¢ meio antes, conjugar no Brasil o verbo “rapio” (no’sermio do Bom Ladrio) em todos os modos, tempos e pessoas, era esta geral © universal pritica, que j& passara para a esséncia da administragio colonial, do peculato, do subomo e de todas as demais formas de corrupeio administ~stiva. Se fos-e alinhar aqui testemunhos, seria um nto acabar "nea. Ei mesr-o fazendo neles © desconto da maledicéncia, a administracio 14° sairia mais rea~ Dilitada: isto porque, salvo era discursos la. daiérios e de ordem pessoal (que pela sua freqivencia jé nfo coustituem nenhum bom sintoma), no se encon’ra nos depoimentos contemporéneos nenhur conceito, j& no digo elogioso, mas de tolerincia ficativa para com a administracio, Parta de onde partir a critica ou observagao, dos simples cidadios nascidos na col6nia ou dos reindis, como dos mesmos delegados do poder, a opinitio é inva- ridvel e igualmente severa. Acrescente-se a isto 0 que referem os viajantes éstrangeiros que nos visitaram em prinefpios do século pasado, quase todos eles da maior consciéncia e honestidade € sem motivo especial algum para nfo dizerem a verdade e terse-& uma colegio de dados tais que, a nfo ser que se conteste a propria hipdtese fundamental de toda pesquisa histérea © que 6 a “possibilidade de reconstruir 0 passado”, levam com seguranca absoluta ao que ficou dito acima, ‘Tem uma larga responsabilidad em tudo isto, afora o vicio gue gerl na adminstragio portguess desde o tipo longinguo las Indias, o espirito particular que anima o goveno metropoli- tano no gerir a sua colénia, Se se justifia 0 conceito do autor andnimo do Roteiro do Maranhdo que “as colénias sio estabe- lecidas em utilidade da metrépole” ou daquele outro contem- porineo para quem “seu efeito primirio © comum é certamente © de enriquecer a metrépole e aumentar-the 0 poder"(58) — ‘confisses em que hé ao menos franqueza em matéria onde a hhipocrisia tem hoje assento inconteste — Portugal no entanto sempre interpretou mesquinhamente este objetivo primordial e latente em todas as colonizagoes de cariter oficial. Suas vistas (58)_ Roteiro, 102; © Rodrigues Barata, Meméria da Capitania de Goids, 387. 836 Caio Prado Jinior faramente foram além dos proveitcs imediatos que sob a forma de tefbutos podia,auferi da colin, Um goverador do Bio Grande do Sul aliés um dos mais notéveis, Silva Gama, resumia ‘em 1505 este pensamento numa confissio crua ¢ mera: “Nada me interessa com mais fervor, escrevia ele ao governo do Reino, do que a fiscalizagio da Real Fazenda. Diminuir as suas despesas 0 quanto é possivel, fazer arrecadar ansiosamente tudo que possa pertencer-The sem dano dos vassalos, e esquadrinhar novos recu- $08 para aumenté-la, sio 03 objetivos do meu maior desvelo"( 38). ‘Um objetivo fiscal, nada mais que isto, é 0 que anima na colonizagio do Brasil. Raros so 03 atos da administragsa ou os administadores que fazem excegio 2 reg, Romnbah, caja governo é o Gnico talvez, depois do perfodo herdico da. histérle ortuguesa, que teve vistas largas, Pombal mesmo no Resvencithar-se intelramente do que estava no fundo da. conse cigncia nacional, ou antes da politica da monarquia. OQ ouro e 0s diamantes, entfo, fizeram perder o resto da cabeca ¢ bom-seniso {que sobravam & metrépole. Com uma insia sem paralela, ela se atira sobre o metal e as pedras como um cio esfaimade. sobre 0 (0ss0 que aflora na terra cavada, Sé que nfo tinha sido ela quem © escavara... Durante um século quase, nfo haveré outra reocupacio ‘séria ¢ de conseaiénca que a cobranga dos ireitos régios, 0 quinto; a histéria administrativa do Brasil se contarf em fungio dela, Assente numa tal base, a adminisragto colonial no podia ser outra coisa que foi. Negligencia-se tudo que nao seft pereep- so de trbutos oa gantacle Ga coroa, to! crua e cimloxmento afirmada, a mercantilizacio brutal dos objetivos da colantzacdo, contaminard todo mundo. Seri o arrojo entio geral para 6 luero, ara as migalhas que sobravam do banquete real. O construtivo Rr administagio relogado Jara um segundo plano obscuro em que 86 idealistas deslocados debateram em vio. Tudo isto se refere, em particular, & administragio civil. A eclesidstica, nada ou quase nada Ihe fica a dever. Admitamos contudo, de inicio, uma restrigio que ¢ de justiga salientar, Se nfo muito pouco a0 nivel moral, pelo menos no da eapacidade, 0 elero da colin ¢ ntidamente superior 20 funcional ei como aliés a qualquer outra categoria particular da colonial. Nao seria por simples coincidéneia que tou ae individuos, de formagio intelectual acima do commun. extremt- mente baixo com que toma "i que nos visitaram em princfpios do século passade, seja pd (59) Docs, relatos & histiria da copitanta de So Pedre do Blo Grande do Sul, 285, Formapio do Brasil Contemportnen $37 —_ Aldsticos. Em Goids, Saint-Hilaire chega a afirmar que as «micas [pessoas com “alguns conhecimentos” si0 os padres(60). Também fo seri tida como fruto do acaso a circunstincia da tamanha [proporsio de membros do clero aparecerem entre aqueles que fe destacaram nas Jetras ciéncas da colin, e de terem suum lele os expoentes de seus principais ramos(61). Alids j& referi no tapi anterior a razio por que o cero se tonou' a carro intelectual por exceléncia na coldnia: é a dnica que abre as portas a todos sem distingio de categoria, Retugfar-se-a0 nele todos ou quase todos a quem a inteligéncia faz cbcegas. Mas noutro terreno, no seu teor moral médio, a massa do clero nio se destaca muito acima de seus colegas da administracio leiga. A mercantilizagio das fungdes sacerdotais tornara-se pela Epoca em que nos achamos um fato consumado. Citei jé a obser- vagao de uma autoridade eclesistica, que reconhece ter-se tornado a batina um simples “modo de vida’, um emprego, parecendo aliés perfeitamente conformado com 0 fato(62). Que se podia esperar dai? A geral © persistente grita dos povos contra os tributos eclestésticos é aliés um sintoma bem sensivel do caminho que tomara o clero colonial. Baltasar da Silva Lisboa, alto fun- ciondrio da administracio, expondo ao Vice-Rei os assuntos de suas atribuigdes, assim rematava as consideragses que fz sobre 0 clere: “Eles 36 querem dinheiro, ¢ ndo se embaragam que tenham bom titulo"(63). Noutro oficio do ano seguinte repete conceits semelhante(64). Para se ter uma idéia do que ia. pelos conventos do Brasil em matéria de costumes ¢ corrupeio, leia-se a longs exposi¢ao que a respeito faz 0 Vice-Rei Luis de Vascon- celos a0 Secretario de Estado, e que repete resumidamente no relatério com que entrega 0 governo ao sucessor que o vinha substituir(65); se se desejar um depoimento ainda mais autorizado € insuspeito, veja-se 0 que dizem de seus conventos respectivos Frere icon” que a colon prodaiu guna colt de tas destagoe Mca 8 ace gee + Po neiro, Correspondéncia de vérlas autoridades, 201. j (60) Voyoge aux sources, 1, Loe ‘cit., 228, Negécios eclesidsticos, © Oficio, 33. 388 Caio Prado Jinior ‘0s Superiores dos Carmeiitas e dos Capuchos(66). Mas nia & de um bispo, Frei Anténio do Destérro, do Rio de Janeiso, © em correspondéncia oficial ao Sccretario de Estado, o texto tio clucidativo da compreensio que tinha o clero colonial de suas fungées sacerdotais? “Como prémio ¢ remuneragio: do trabalho, esereve ele, que estimula fortemente a todos, principal. mente neste Brasil onde se cuida mais no interesse do que na bboa fama ¢ gléria do nome, me parecia mais preciso ¢ justo que soa Majestade remunerasse. enefectivamente’ a estes plrotos (aqueles que tivessem servido com os indios) com igrejas de Minas, dando a cada um tantos anos de parocos nas ditas igrejas, por screm pingues, quantos tiverem servido nas freguesias dos {indios” (67). Poderiam ser alongados estes testemunhos, encon- tradigos nos documentos da época, e que se no abundam tanto ‘como 0s relativos & administracao leiga, nao sio meros pi ou convineentes, Mas bastard para supri-los todos, 0 que Saint- Hilaire, catélica e crente convicto, deplorando-o embora e pro- ceurando consolar o leitor cristio de tantos golpes vibrados & sua sensibilidade, descreve com mimicias em seu longo capitulo dedi- cado 20 clero brasileiro( 68). ‘estas condigbes, no é de esperar do clero colonial, animado de tal espirito, grande diligencia no cumprimento dos seus deveres. E de fato, 6 0 que se verifica. Ele exercerd ativamente sua funcio de satisfazer As necessidades espirituais da populacio Ii onde pode ser e € bem remunerado por cla: nas paréquias “pingues” a que se refere o bispo acima citado; nas capelas de engenhos abastados. O resto da populacio fica ao desamparo, Para ela, os padres rezario no méximo as missas ¢ ministrario a comunhio da desobriga que constitui o melhor de seus rendimentos. O resto do tempo, ocupar- -se-do em afazeres bem distanciados de suas obrigagSes_ muitos so fazendeiros: era eclesidstico 0 melhor farmacéutico de Sio Joao del- -Rei, e preparava e vendia ele proprio suas drogas; um outro sacer- dote vendia tecidos no baledo de sua loja... (69). ) Correspondéncia de wdris gutoridades, 168 © 288. ) Correspondéncia do bispo do Rio de Janciro (17541800), 42.0 sgrifo 6 meu (68). Voyage ave procinces do Rio de Janeiro, 1, cap, Will. do suas afirmagdes, que Constituem o mals veemente libelo, acreseenta ‘Hilaire que neste assunto poderic acusi-lo de reticéncias, meg nunea de aageros. Em outrat miitas passagens do seus diarios, 0 Francés anda em observagies sobre os padres e seus costumes no Beal. Catblies voroso, 0 asstinto The despertava naturalmente a ateniao, OF rigor @ {inico elogio que Ines faz, em conjunto, & relativamente ao eler da eomtired de Minas Novas, onde afiema parecer-the haver menos Simona que Be Fite: dda capitania, 1d, TI, 258, (69). Saint-Hlilaie, Voyage aux sources ..., 1, 18. Formacio do Brosil Contenportines: 200 (66) (er E se assim cumpriam, ou deixavam de cumprir seus deveres fundamentais, que dizer dos de assisténcia e amparo social que a tradigio, como seus estatutos ea divisio estabelecida das fungées’ puiblicas thes impunham? Algumas Ordens, aiguns de seus membros pelo menos, ocupavam-se ainda com ‘a catequese dos indios, ¢ citei em capitulos anteriores alguns destes rarissimos cexemplos. Em certos conventos ministravam-se educagio e ensino; mas 36 nas maiores capitais, e para grupos reduzidos da populagio. Algumas irmandades Teigas dedicavarnse os enfermos, expostos ¢ indigentes, como os sempre lembrados com justiga Irmaos da Misericérdia. Hla exemplo de dedicagio e trabalho, ¢ nfo quero subestimé-los; mas infelizmente excegses, casos raros mum oceano de necessidades nao atendidas e de que ninguém se preocupava. A grande maioria do clero, secular e regular, desde os mais altos dignatérios até os mais modestos coadjutores, deixava-se ficar numa indiferengn completa de tais assuntos, usufruindo placida- mente suas céngruas e demais rendimentos, ou suprindo a defi- cigncia deles com atividades © negécios privados. Que parcela de responsabilidade caberd disto, diretamente, & politica metropolitana? Com a expulsio dos jesuitas, desfalcura:se colonia do quase tinico elemento que promovera em larga escala uma atividade social aprecidvel. Mas os efeitos nocivos da medida de Fombal, neste terreno de que nos ocupamos, mio dovem ser exagerados. J4 passara, fazia muito, 0 tempo dos Nébregas e Anchietas, ¢°a Companhia de Jesus decaira conside- ravelmente. O que seria no futuro, é dificil se nao. impossivel assentar com seguranca. Mas avaliar a perda pela bitola daqueles primeiros missionérios, seria anacronismo lamentavel. ‘A ineficiéncia do cleo no momento que nos ocupa tem ceausas mais profundas que esta ou aquela medida singular da politica metropolitana ou da propria Igreja de Roma. Umas de caréter gral, © que atingem 0 conjunto ds estruturaeclesiistica universal nos tempos que precedem a nossa época. Nao me cabe aqui abordélas. Outas loeaiy,proprias da colonia, estas. se resumem na resposta a ser dada a uma questio fundamental: estava a sociedade colonial apta a produzir um clero capaz, de clevado teor moral e na altura de suas fungies? Havia nela ambiente social ¢ moral para isto, ¢ para a manutengio ¢ floresci- mento de um clero daquele naipe? As conclusies gerais sobre a sociedade colonial em principios do século passado, ¢ que me esforgarei por esbocar no préximo capitulo, fornecerio. talvez alguns elementos para a resposta pedida. 340 Caio Prado Junior 3 Vida Social e Politica ‘Temos os elementos agora para concluirmos sobre a vida social da colénia, conclusées que nos dario o tom geral desta: vida ¢ 0 aspecto de conjunto que apresenta a obra da. colonizago: portuguesa no Brasil. Observamos nos seus diferentes tse aglomerado heterogénco de ragas que a colonizagio rewnia aqui a0 acaso, sem outro objetivo que realizar uma vasta empresa comercial, e para que contribuiram conforme as circunstindias € as exigéncias daquala empresa, brancos europeus, negros afriaa0s, indigenas do continente. Trés racas ¢ culturas largamente dispares, de que duas, semi-barbaras em seu estado nativo, e cujas aptiddes culturais origindrias ainda se sufocaram, fornecerdo 0 contingente ‘maior; racas arrcbanhadas pela forca e incorporadas pela violéneia na colonizagio, sem que para isso se Ihes dispensasse o menor pre aro e educacio para 0 convivio em uma sociedade tio estranba para elas; cuja escola tinica foi quase sempre 0 eito e a senzala, ‘Numa populagio assim constituida originariamente e em que tal processo da formagio se perpetuava e se mantinha ainda no momento que nos ocupa, 0 primeiro trago que é de esperar, € que de fato nio falhara 8 expectativa, é a auséncia de nexo moral Haas ¢ individuos mal se uhem, nio se fundem num todo eoesa: justapée-se antes uns aos outros; constituem-se unidades ¢ grupos Hrcodrentes que apenas coexstem ese. tocar, Os. mais fortes lagos que Ihes mantém a integridade social no serio seno os Brimérios © mais rudimentares vinculoshumanos, 0 renulantes ireta e imediatamente das relagées de trabalho ¢ producios em particular, a subordinagao do escravo ou do semi-escravo a se Senhor. Muito poucos elementos novos se incorporario a este cimento original da sociedade brasileira, cuja trama ficard assim reduzida quase exclusivamente aos tenties ¢ sumérios lagos que resultam do trabalho servil. £ neste sentido que nao faltaria razio a Alberto Térres, quando num aparente paradoxo que escandali- zaria seus contemporineos, ele levanta a voz para fazer a apologta, rnio como eseravoerata, mas pela primeira ‘vez como soeiélogo, do regime servil(1) (1). “A eseravidie foi uma das poucas coisas com visos de organtzagso {que este pais jamais posi... Soclal e economicamente, a eseavi Formagdo do Brasil Contempordaeo S41 Para constatar o acerto da observagio, basta-nos comparar os setores da vida colonial em que respectivamente domina uma outra forma de trabalho, escravo ou livre. A organizagio do ci ida © acabada estruturagio € coesto, corres- ponderé a dipersio © incoeréncia do outro. Vimos estes dois aspectos da sociedade colonial: de um lado 0 eseravo ligado a0 seu senhor, ¢ integrados ambos nesta eélula organica que ¢ 0 “cla atrlareal de" que aguele ago forma. a texture prineipal; doutro, 0 setor imenso e inorginico de populagSes desenraizadas, flutuando sem base em tomo da sociedade colonial organizada; chegando apenas, em parcelas pequenas a se agregar'a cla, & adquirindo assim’os tinicos visos de organizagio que apresentam. Fica-se em suma na tentagéo de generalizar ainda mais 0 conceito de Alberto Torres, e nao ver na servidio senio 0 tinico elemento real e s6lido de organizagéo que a colonia possui Mas seja como for, a andlise da sociedade colonial obriga a um desdobramento de pesquisa., Qualquer generalizagio que abranja as duas situagies to diversas que nela se encontram correrd o risco de erros considerdveis de apreciagéo. Para com- preendermos, no seu conjunto, os lagos que lhe mantém a coesio € de que se forma a sua trama, temos que vé-la como de fato ela se constitui: de um micleo central organizado, cujo elemento principal é a escravidio; ¢ envolvendo este micleo, ou dispondo-se nos largos vacuos que nele se abrem, sofrendo-the mesmo, em muitos casos, a influéncia da proximidade, uma nebulosa social incoerente e’ desconexz. Nao preciso acentuar mais uma vez o papel que a escravidio tem nagquele primeiro setor, 0. oginico Gat socedade’ colonial Mas devemos -acrescentar aqui o carter primério das relagSes sociais que dela resultam, e daquilo que com cla se constituiu. Primério no sentido em que nio se destacam do terreno puramente material em que se formam; auséncia quase completa de superes- ‘rutura, dir-se-ia para empregar uma expressio que jé se vulga- rizou. Realmente a escravidio, nas duas fungées que exercera na sociedade colonial, fator trabalho e fator sexual, nio determi- nara sendo relagdes ‘elementares e muito simples. O trabalho escravo nunca ird além do seu ponto de partida: 0 esforgo fisico constrangido; no educaré o individuo, nfo o prepararé para tum plano de vida humana mais elevado, Nao hes acrescentaré elementos moras; pelo contririo, degradé-lo-,eliminando mesmo nele © contetdo cultural que porventura tivesse trazido do seu Seuos pot anges not todo ofan de tu 4 eka que gig posiuimos, e fueiow toda a produgio material que ainda. mos." O Problema ‘Nacional, 11. | 342 Caio Prado Hinior estado primitivo. As relagées servis sio e permanecerio puramente materials de trabalho ¢ producto, ¢ nada ot quae nada mais acrescentardo ao complexo cultural da colémia. A outra fungio do escravo, ou antes da mulher eserava, instrumento de satisfagao das necessidades sexuais de seus senhores ¢ dominadores, nao tem um feito menos elementat, Nao ultra- passard também o nivel primério e puramente animal do contacto sexual, nfo se aproximando sendo muito remotamente da esfera Bropriamente humans do! amor, em que o ato sexual se envolve le todo um complexo de emogées ¢ sentimentos tio amples que chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele ato que afinal The deu origem(2). Em alguns outros setores, a escravidio foi mais fecunda, Destaquemos a “figura boa da ama negra” — a expressio é de Gilberto Freyre, — que cerca 0 bergo da crianga brasileira de juma atmosfera de bondade e ternura’ que nao é fator de menor importincia nesta florescéncia de sentimentalismo, tio caracte- ristica da indole brasileira, e que se de um Jado amolece 0 indi- viduo ¢ 0 desampara nos embates da vida — no padece divida que boa parte da deficiente educagio brasileira tem ai sua ori = doutro contribui para quebrar a rudeza e brutalidade préprias de uma sociedade nascente. Mas neste, como em muitos casos semelhantes, é preciso distinguir entre 0 papel de escravo e do negro, 0 que Gilberto Freyre acentuou com tanto certo, A distingéo € dificil: ambas as figuras confundem-se no mesmo indi- viduo, ¢ a contribuigio do segundo se realiza quase sempre através do primeiro. Mas nao ¢ impossivel, e de uma forma geral, 0 gue se conclui 4 que se 0 negro traz algo de positivo, isto se antl na maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais, O escravo enche o cendrio, e permitiu ao negro apenas que apontasse fem raras oportunidades. J notei acima que outro teria. sido 0 papel do africano na formiagio cultural da colénia se Ihe fivessem Permitido se nfo o pleno, ao menos um minimo de oportunidade ara o desenvolvimento de suas aptidées naturais. Mas a escrae vidio, como se praticou na coidnia, 0 esterilizou, e a0. mesmo tempo que the amputava a insior parte de. suas qualidades, agugou nele 0 que era portador de elementos corruptores. otf qque'se fomaram tal por efeito dela mesma. Eo BANG Mivel de sua cultura, em oposigio ao da raca dominante, impediu-the de (2) “Le mizacle de Tomour humain, c'est que, sur wn lndlach, tle sig da A cot Thiers det ‘< ler’ plus dalcats” (Anise. Mautor,) este mlagie que 0 amor Seanad rezoy ¢ alo pode teszar so Brae Formagdo do Brasil Contemponines 14%

Você também pode gostar