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Teoria do controle e o planeta Mundo das Margaridas – James Lovelock (Gaia: Cura para um planeta doente 2006)

Os fisiologistas estão a caminho de entender a aplicação da teoria do controle aos organismos vivos. Será que é possível
utilizar essa mesma abordagem com a Terra, supondo que ela também é uma forma de sistema vivo? Uma maneira de fazer
isso veio, de modo inesperado, de um modelo que começou simplesmente como uma resposta a críticas da Teoria de Gaia
feitas pêlos biólogos W. Ford Doolittle e Richard Dawkïns. Ambos criticaram a teoria com base na suposição de que não há
nenhuma maneira de os diversificados organismos vivos da Terra poderem agir altruisticamente (visando às suas
vantagens mútuas) de modo a regular o ambiente planetário. A evolução pela seleção natural, dizem eles, estaria sempre a
favor dos genes. A simbiose, eles notaram, é rara e ocorre apenas entre organismos intimamente relacionados. Ambos
foram severos nas suas críticas. Doolittle observou que a regulação planetária exigiria previsão e planejamento pela biota,
o encontro das comissões das espécies para negociar a temperatura do próximo ano. Dawkins alegou que Gaia não poderia
existir porque não havia nenhuma possibilidade de a Terra se reproduzir e, portanto, nenhuma possibilidade de evolução
por meio de uma seleção natural entre os planetas!
Essas críticas foram valiosas: elas me fizeram perceber que eu estava pensando intuitivamente, e não racionalmente, a
respeito de Gaia e que faltava uma explicação adequada. Um modo de responder a eles era expressar o que entendo por
Gaia na forma de um modelo científico. Chamei o meu modelo de "Mundo das Margaridas" porque ele era, muito
simplesmente, um modelo de computador de um planeta nó qual cresciam apenas duas espécies de organismos, margaridas
de cor escura e de cor clara.
O mundo das margaridas pode ser imaginado como um planeta como a Terra, orbitando uma estrela muito semelhante
ao Sol. A temperatura superficial de um planeta que recebe a luz solar é afetada pela tonalidade da sua cor por causa do
efeito albedo: um planeta mais escuro absorve a luz solar, e por isso se aquece. O solo nu do Mundo das Margaridas é de
um meio-tom, nem escuro nem claro. O nosso planeta modelo é úmido e fértil; as sementes crescerão sempre que a
temperatura for quente o bastante, acima de 5°C. O crescimento é melhor nas temperaturas próximas a 22°C, mas diminui
em temperaturas mais altas, e cessa acima de 40°C. Imagine que, assim como o Sol, a estrela do Mundo das Margaridas se
aquece à medida que evolui. Será que a evolução do ecossistema do Mundo das Margaridas levaria à auto-regulação do
clima?
Quando a produção de calor pela estrela aumentasse o suficiente para elevar até 5°C uma parte das regiões equatoriais
do Mundo das Margaridas, algumas sementes de margaridas germinariam e cresceriam. As margaridas escuras são
favorecidas porque elas absorvem mais luz da estrela e são mais quentes do que a terra nua. As margaridas claras são
desencorajadas porque refletem a luz da estrela e são mais frias do que a superfície nua. No final da primeira estação, há
muito mais sementes de margaridas escuras deixadas no solo do que sementes de margaridas claras. No início da estação
seguinte, as margaridas escuras estão florescendo em profusão e as margaridas claras só raramente são vistas. A extensa
área do solo coberta pelas margaridas escuras altera a refletividade da superfície, e o planeta é aquecido, assim como as
margaridas. Logo, graças a uma poderosa realimentação positiva, as margaridas escuras crescem e a temperatura planetária
se eleva até que, em algum ponto acima do ideal para o crescimento das margaridas, a temperatura e o crescimento se
estabilizam. Agora que o planeta está quente, as margaridas claras crescem e competem por espaço com as margaridas
escuras, até que o seu efeito de resfriamento altera de modo adverso à temperatura ambiente. Finalmente, é atingido um
estado estacionário com margaridas claras e escuras, com um albedo médio próxirrio do necessário para manter a
temperatura da superfície em um valor ideal para o crescimento das margaridas.
Quando a estrela aumenta a sua produção de calor, o número de margaridas escuras diminui e a população de margaridas
claras se espalha. A temperatura permanece próxima daquela preferida pelas margaridas. Como no ferro elétrico, o sistema
tende a se regular no lado quente do ideal quando a luz da estrela está fraca, no começo, e no lado frio quando a produção de
calor pela estrela é maior, mais tarde. Finalmente, a uma certa altura na evolução da estrela, a sua produção de calor
aumenta tanto que até mesmo que o planeta fique totalmente coberto de margaridas claras refletoras de calor isso será
insuficiente para manter um clima tolerável para as margaridas. Então, o sistema, súbita e catastroficamente, decai e o Mundo
das Margaridas morre.
O modelo simples do Mundo das Margaridas é uma mera caricatura de Gaia. Ele considera a regulação de uma única
variável, a temperatura, e inclui duas únicas espécies, as margaridas claras e escuras. Mesmo assim, apresenta semelhança
com os sistemas naturais dos organismos vivos, como a regulação da temperatura nos seres humanos. Ele é fortemente
regulado, é robusto e resistente a perturbações. A exemplo do sistema de regulação de
temperatura nos seres humanos, ele não tem um único ponto de referência formal ajustado como uma meta para a
regulação; nesse aspecto, difere dos sistemas de engenharia cujos termostatos se referem sempre a um determi¬nado ponto
ajustado. O Mundo das Margaridas funciona desenvolvendo um clima conveniente à preferência das suas margaridas.
O modelo do Mundo das Margaridas foi elaborado para responder à críti¬ca dos biólogos de que a regulação da
temperatura global, envolvendo orga¬nismos vivos, estaria invocando previsão e planejamento por parte dos organismos, o
que é absurdo e impossível. O Mundo das Margaridas fun¬ciona maravilhosamente bem e refuta as críticas; Gaia pode se
auto-regular sem a necessidade de previsão ou de planejamento pela biota. A regulação é inteiramente automática.
Mas o modelo do Mundo das Margaridas acabou se tornando muitíssimo mais do que a resposta a uma crítica
inadequada. Apesar da sua simplicidade, o Mundo das Margaridas é um exemplo completo de um novo tipo de mo¬delo
global, um modelo geofisiológico. Um modelo no qual a evolução dos organismos e a evolução do seu ambiente físico
estão estreitamente acopladas uma à outra de modo a constituir um único processo evolutivo. Tal modelo não poderia ter
surgido facilmente do corpo de conhecimento fragmentado que é a ciência atual. Os biólogos, que não estão familiarizados
com a geofí¬sica e a geoquímica, não constróem modelos que incluam o ambiente mate¬rial. Os geofísicos e os
geoquímicos não incluem organismos nos seus mode¬los. Até mesmo os biogeoquímicos, que reconhecem a existência da
biota, fa¬lham por nada mais fazer do que incluir organismos em compartimentos iso¬lados, fracamente acoplados e não
responsivos.

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