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HISTÓRIAS DE

GENTE QUE ENSINA


E APRENDE
EDUSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração

Coordenação Editorial
Irmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoria Administrativa
Irmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria Comercial
Irmã Áurea de Almeida Nascimento

Coordenação da Coleção Educar


Luiz Eugênio Véscio
Andrea Cecilia Ramal

HISTÓRIAS DE
GENTE QUE ENSINA
E APRENDE
EDUSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração

R1656h Ramal, Andrea Cecilia.


Histórias de gente que ensina e aprende / Andrea,
Cecilia Ramal. -- Bauru, SP: EDUSC, 1999.
102 p.; 21 cm. -- (Educar)

ISBN 85-86259-80-2

1. Educação. I. Título. II. Série.

CDD - 370

Copyright © 1999 EDUSC

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO


Rua Irmã Arminda, 10-50
CEP 17044-160 - Bauru - SP
Fone (014) 235-7111 - Fax (014) 235-7219
e-mail: edusc@usc.br
sumário

Apresentação 7

À procura do Santo Graal 11

Era uma vez uma escola 23

O Menino e a caixa 27

O Arquivo de gavetinhas 29

A Escola dos macacos e dos papagaios 31

A História da avaliação 37

A Professorinha e os especialistas 47

A Caminho da escola 61

A Aula de pesca 73

O Perfil de um mestre 79

Os pássaros 91

A Aula de Leitura 93
apresentação

“Histórias de gente que ensina e aprende são nossas


histórias”, foi o que pensei quando terminei de ler o li-
vro pela primeira vez. Nossas porque falam de coisas vivi-
das por nós que, um dia, entramos devagarinho na esco-
la como alunos e nela continuamos até hoje (10, 15, 20
anos depois, tantos!), como professores, coordenadores
ou diretores: doces conquistas, momentos delicados, pro-
blemas mais ou menos difícieis, desafios, encontros. E são
histórias contadas de um modo que convidam à reflexão,
partilham a crítica, propõem a generosidade, exigem que
um olhar sensível e informado seja dirigido às mais dife-
rentes situações da escola.
Escritas com suavidade, ironia e poesia, produzidas
com a firmeza de quem, como Andrea, domina a teoria e
não abre mão da ética e da utopia, nessas histórias você
irá encontrar,leitor,sobretudo lições que apostam no mo-
vimento,na mudança,na tentativa de fazer de outro jeito.

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Escritas com meiguice e bom humor, as histórias fa-
lam para além das palavras; o pensamento, a partir delas,
voa, transita, se inquieta. Desde “À Procura do Santo
Graal”, a questão é a procura de si, do outro e da espe-
rança.Mas indo “A Caminho da Escola”encontramos me-
ninos,caixas,arquivos,gavetinhas,macacos e papagaios,
histórias de avaliação, professores e especialistas. Neste
trajeto, Andrea surpreende a própria escola com seus
modismos; denuncia o preconceito que se manifesta
nos íntimos momentos da vida escolar, mas os com-
preende, contesta o autoritarismo mas afirma que é pos-
sível superá-lo.Assim, caminhando com a autora, temos
“Aula de pesca”, conhecemos o “Perfil de um mestre” –
e nele nos reconhecemos –, vemos pássaros (poema em
prosa) e entramos na “Aula de Leitura”. Ao longo do per-
curso, as histórias se referem ao dia a dia mas, ao mes-
mo tempo, nos transportam, puxam e empurram, provo-
cam a emoção, o riso, a indignação e a vontade de en-
tender, de debater, de refazer, desfazer, transformar. An-
drea diz no poema “Era uma vez na escola…” que ele é
uma homenagem a Paulo Freire; para mim, o livro intei-
ro é uma homenagem ao mestre, por nos oferecer a
possibilidade de tecer uma leitura do mundo crítica e
criativa, indignada e resistente, firme e suave.
Walter Benjamim – um filósofo com quem apren-
do muito – ensina que um acontecimento vivido é fini-
to, se esgota nele mesmo, na vivência imediata, enquan-
to um acontecimento contado se torna infinito por se
entregar a muitas possibilidades de compreensão, por
entrar numa corrente da história para além do cotidia-
no, tornando-se verdadeira experiência. É dessa forma

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que vejo as histórias aqui apresentadas por Andrea:
como experiências contadas de um modo que o mundo
da escola e seus problemas se revelam a partir de uma
perspectiva mais coletiva e, acima de tudo, humana,
onde os elos de solidariedade são esboçados, traçados,
firmados.
A publicação deste livro vem atender, do meu pon-
to de vista, a uma necessidade existente no campo edu-
cacional. Temos aqui textos que tratam de situações da
prática pedagógica, articulando cognição e afeto, di-
mensão individual e coletiva, conteúdo e forma, teoria e
ação educativa, cotidiano e história, fazendo isso com
graça, simplicidade, seriedade, açúcar e afeto, aliás uma
maneira competente e eficiente de falar da escola se
queremos compreendê-la nas suas contradições e na
sua complexidade.
Os contos, poemas e crônicas incluídos neste livro
interessam aos profissionais que trabalham com crian-
ças, jovens e adultos, e também aos estudantes das es-
colas de formação de professores, dos cursos de peda-
gogia e das licenciaturas, a todos que se importam com
as questões educacionais, aos professores e aos alunos
que, passando tanto tempo dentro da escola precisam
aprender a vê-la com outros olhos, a buscar outros enre-
dos, a ouvir e contar mais…

Sonia Kramer

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à procura do santo graal

Por mais que se esforçasse, seus alunos não gosta-


vam de estudar.
Preparava cuidadosamente as aulas, cumprindo to-
dos os passos que haviam lhe ensinado, durante quatro
anos de formação superior, acerca da elaboração de
planos de ensino e da escolha de caminhos metodoló-
gicos. A cada conteúdo a ser trabalhado, pensava e re-
digia de modo muito preciso e completo os objetivos a
serem alcançados; depois, calculava as melhores estra-
tégias: aula expositiva, música, filme, trabalho escrito,
estudo dirigido, criação de textos... Tudo com o tempo
minuciosamente cronometrado e, é claro, uma margem
de flexibilidade que, devido à sua experiência, raramen-
te precisava ser utilizada.
No entanto, seus alunos não gostavam de estudar.
Nas aulas expositivas, mantinham-se apáticos, to-
talmente desinteressados, como que sem vontade de vi-
ver. Nem pareciam as mesmas crianças que, no recreio,

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ela via disputando a bola com a gana de quem daria o
próprio sangue para alcançar a vitória naquele jogo de
quinze minutos.
Quando preparava uma aula com música, o entu-
siasmo durava apenas até saber quem era o cantor ou
qual era a canção proposta. Nem pareciam as mesmas
crianças que ela contemplava, mais tarde, submersas
num mundo próprio, com o fone do walkman nos ou-
vidos, e às vezes, para seu estranhamento, ouvindo a
mesma melodia que há instantes haviam rejeitado.
E assim por diante, qualquer que fosse a atividade
proposta para cada dia.

Como a professora era muito preocupada com um


ensino de qualidade, e rejeitava as velhas posturas tra-
dicionais, de culpar apenas a falta de estudo dos alunos
diante do fracasso da aprendizagem, e como também
considerava já ter esgotado todos os próprios recursos,
pensou em procurar ajuda e recorrer aos conselhos de
um sábio.
Decidiu visitar um ancião que era famoso por ha-
ver sido um excelente educador em outros tempos.
“Ele saberá me ajudar”, pensou, confiante. E foi até o lu-
gar em que esperava poder encontrá-lo.
Para sua decepção, o velho já não tinha muita pa-
ciência para conversar sobre as coisas que ela queria
lhe falar. Ouviu sem muito interesse a descrição de to-
das as atividades que a professora costumava propor à
sua turma.Apenas folheou os planos de curso e de aula
que ela levara, cuidadosamente encadernados para
aquela ocasião. E chegou a bocejar enquanto ela falava

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de sua frustração por, apesar de cumprir à risca todas
as inovações metodológicas das teorias pedagógicas
mais atualizadas, não conseguir motivar os alunos.
“O que o senhor me aconselha fazer?”, inquiriu ela
finalmente, ávida pela resposta.
O sábio, então, falou:
- Existe uma lenda que tu, como professora, de-
ves conhecer: a lenda do Santo Graal. Lembras-te
dela?
- Sim, lembro-me muito bem - respondeu ela, cu-
riosa pelo sentido desta referência, e satisfeita pelo
ancião lhe falar de modo enigmático, como imagina-
va que todo sábio devia fazer. E continuou - O Santo
Graal era o cálice sagrado, pelo qual muitos cavalei-
ros medievais procuraram e que, para muitos, se
constituiu na razão de ser e no sentido da sua exis-
tência.
- Pois bem -, replicou o sábio, agora mais paciente
- digo-te que em verdade, para cada profissão, há um
Santo Graal a ser buscado. Para muitos, como na lenda,
ele sequer existe, e não vale a pena perder tempo com
tal idéia. Para outros, porém - e nesse momento olhou
para ela com cumplicidade e certo mistério - ele existe
e pode ser encontrado.
O sábio prosseguiu:
- Quando o profissional encontra esse Santo Graal,
ele descobre que não é só o trabalho, mas a própria
vida, que ganha um novo sentido.
A professora ouvia, atenta, sem desviar os olhos do
mestre.

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- Tudo é acessório, pouco é essencial. Isso é o que
eu tenho a te dizer: busca onde deves buscar, e encon-
tra, então, o teu Santo Graal.
Depois desta frase, apesar da perplexidade da pro-
fessora, o sábio encaminhou logo a conversa para as
despedidas e os desejos de boa sorte.
Nos dias que se seguiram a este encontro, a profes-
sora se via taciturna e pensativa. “Que Santo Graal é
esse?”;“Como e onde poderei encontrá-lo?”, pergunta-
va a si mesma.
E, enquanto isso, como não vislumbrava ainda
qualquer outra possibilidade, continuava desenvolven-
do as suas aulas com métodos criativos e realizando ex-
periências didáticas inovadoras, porém sem observar
qualquer modificação no comportamento indiferente
dos alunos.
Assessorou-se com a coordenadora do setor de in-
formática e levou a turma para estudar nos microcom-
putadores: novo insucesso, pois os alunos simplesmen-
te se esqueceram de sua própria presença na sala, tão
inebriados ficaram com as maravilhosas máquinas. Ao
invés de prestar atenção aos conteúdos, fascinavam-se
com a forma como estes eram apresentados nos moni-
tores. Foi difícil avisá-los do avançado da hora e conse-
guir que voltassem para sua sala, a fim de receberem o
professor da matéria seguinte.
Obteve a aprovação da diretora da escola para
uma excursão para o estudo da natureza da região ser-
rana; contratou ônibus, solicitou autorizações dos res-
ponsáveis, fez o passeio. Novo fracasso: os alunos con-
versavam o tempo todo entre si mesmos, usando gírias

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e vocabulários específicos do grupo, e raramente inter-
rompiam a alegria do passeio para ouvir suas explica-
ções sobre a vegetação ou a fauna dos locais por onde
passavam.
E assim ia crescendo a indagação que a professora fa-
zia a si mesma, e a ansiedade por encontrar alguma saída.
Buscava em livros de teóricos renomados alguma chave
para o que podia vir a ser o seu Santo Graal, de que o sá-
bio lhe falara. A cada nova teoria pedagógica que lia, a
cada experiência didática diferente que ouvia contar, ti-
nha a sensação de que aquela, exatamente aquela, daria a
direção para o seu Santo Graal a ser alcançado. Mas tudo
era em vão, bastava colocar as idéias em prática para que
o velho cotidiano se repetisse e a professora voltasse para
casa, mais uma vez, desestimulada e frustrada.
Mesmo assim, a coisa não lhe saía da cabeça:
- Como chegarei até o Santo Graal?

Muito tempo se passou, e sempre do mesmo


modo, até que a professora teve, finalmente, a sensação
de que sua busca não tinha mais razão de ser.
Tentara de tudo: ninguém mais do que ela, em sua
escola, havia lido tanto e feito tantas experiências de
transformação do ensino. Entretanto, o resultado espe-
rado não chegara.
“Tenho que me conformar”, pensou. “Os tempos
mudaram, não devo mais estar preparada para lidar
com estas gerações”. Embora fosse ainda bem jovem,
reconhecia que a distância entre as idades aumentava
cada vez com maior rapidez, e sentia-se ela mesma uma
vítima desse fenômeno.

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“Não vou abrir mão dos meus métodos moder-
nos”, assegurou a si mesma;“mas vou tentar esquecer
essa obsessão de querer que meus alunos gostem do es-
tudo e da sala de aula”.
- Um dia, já quando adultos, eles lembrarão das au-
las e valorizarão o meu trabalho - consolou-se, triste-
mente.
E decidiu parar de se incomodar com a indiferen-
ça de seus estudantes.

Sem que a professora se desse conta, porém, aquela


desistência abalou profundamente o seu interior. Depois
daquela decisão radical,à medida que os dias iam passan-
do, um estranho fenômeno começou a acontecer: a voz
da professora foi ficando mais fraca, e cada vez mais fra-
ca, até que acabou por desaparecer definitivamente.
Suspeitou de um calo nas cordas vocais, problema
comum entre seus colegas de profissão: os exames
nada indicaram.
O médico receitou-lhe descanso de uma semana,
ficando em casa e evitando emitir qualquer tipo de
som. Depois dessa licença, voltou à escola da mesma
maneira: sua voz não reaparecera.
Agora a professora sentia-se envergonhada de ir à
sala de aula. “Como explicarei as coisas aos alunos?”,
perguntou-se.“Como apresentarei a matéria?”
A direção acompanhava o caso com toda a bene-
volência. Aquela professora era das mais esforçadas
da escola, não era justo demiti-la ou afastá-la do cargo
num momento daqueles. Sua busca de renovação
constante era um exemplo para todos, havia até

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quem invejasse sua motivação, risse de seu “furor pe-
dagógico” e se referisse a ela com escárnio quando a
via, de lá para cá, com gravador numa das mãos, fita
de vídeo na outra.
Mas diante daquela situação, todos estavam mobi-
lizados.“O que estaria acontecendo?”, perguntavam-se
os colegas, com pena e, ao mesmo tempo, com receio
de que aquele mal os atingisse em algum momento de
suas carreiras.
Sentindo que o impasse se prolongava, a professo-
ra ofereceu, por escrito, seu pedido de demissão à dire-
toria. “Não tenho condição de dar aulas deste modo”,
alegava,“e quero deixar a direção à vontade para deci-
dir sobre um substituto para meu trabalho”.
A direção chamou-a e negou veementemente
aquela idéia. “De nenhuma maneira!”, insistiu a dire-
tora,“tu és uma professora exemplar; estudiosa, moti-
vada, preocupada com a qualidade do processo de
ensino-aprendizagem”. Garantiu que a escola não
abriria mão de sua presença sem antes ter certeza so-
bre a irreversibilidade daquele mal que a acometera.
“É muito cedo para dizer algo sobre isso”, assegurou.
E terminou o encontro sugerindo que a professora
voltasse à sala, e continuasse as aulas durante mais al-
gum período.
- Afinal, - argumentou a diretora - tuas lições são
tão bem preparadas que a turma vai sempre ter o que
fazer. Confia em mim - pediu-lhe, mas sem ter, inte-
riormente, ela própria, muita certeza sobre o que su-
cederia.

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Foi-se a professora, muito envergonhada, para sua
sala de aula. Ao entrar, foi logo escrevendo no alto do
quadro-negro, em letras grandes: “Ainda continuo sem
voz”. Sob esta frase traçou, depois, as orientações para o
dia: fazer a ficha de estudos, página 4, exercícios 1 a 5.
Era um trecho que se referia a um desenho animado a
que os alunos haviam assistido. Como ela não podia ex-
plicar, decidiu confiar na capacidade e na autonomia de
cada um para pesquisar e se recordar do que havia visto.
Como o tempo da aula seria longo e precisava ser todo
preenchido, não podendo ela falar nada, teve a idéia, ain-
da, de escrever:“Observação: discutir com o colega sem-
pre que necessário as respostas que serão colocadas”.
E, resignada, sentou em sua cadeira de professora
e dedicou-se a observar a turma, enquanto folheava o
próprio plano de curso para recalcular o tempo do bi-
mestre.
Naquele momento, sentada atrás da mesa, embai-
xo do tablado, ouviu um som que lhe pareceu insólito,
até então desconhecido.
Aguçou os ouvidos para escutar melhor: novamen-
te veio o som - lindo, musical, enchendo a sala de aula,
como que encantando o ambiente, e crescendo cada
vez mais.
Era um som com palavras? Sim, parece que sim...
O que dizia? Procurou ouvir, colocando todos os senti-
dos nessa escuta.
Então conseguiu distinguir de onde vinha aquele
murmúrio fascinante: eram as vozes das crianças, que
haviam começado a se pronunciar, primeiro timida-
mente, depois com maior desenvoltura, mais leveza, e

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agora já preenchiam todo o espaço da sala, como uma
orquestra que chega, na sua harmonia encantadora, ao
momento em que todos os instrumentos participam.
Assim, calada, não mais por força maior, mas por
vontade própria, como que por um encantamento, ela
ficou durante vários minutos, ouvindo maravilhada
aquele som inebriante, que não era bem um ruído,
eram quarenta vozes afinadas pronunciando, cada
uma, pensamentos, opiniões, criações, sentimentos.
Não podia tirar os olhos das crianças, extasiada ao ver
que muitas das coisas que ela havia lhes ensinado es-
tavam, agora, saindo nas palavras delas, transformadas,
ditas em outra linguagem, mais simples mas também
mais bonita, convertendo-se em argumentos próprios
para que o grupo optasse por uma ou outra resposta
ao exercício.
Sorriu com uma satisfação que nunca sentira den-
tro daquela sala. Sorriu pelo prazer que aquela música
falada lhe proporcionava, aquela melodia que parecia
tocar dentro dela mesma, ou que talvez fosse vinda do
céu, mais linda que um coral de pássaros e sinos de
igreja do entardecer das cidades do interior.

A melodia era tão doce, suave e contagiante que


ela não pôde permanecer sentada - num ímpeto, deci-
diu andar pela sala, e sentar em meio aos grupos, para
ouvir de perto o que diziam. De repente, lá se viu ela
própria, sentada numa daquelas mesinhas especial-
mente feitas para crianças, desequilibrada e ao mesmo
tempo segura numa das cadeirinhas bambas, amare-
las, que havia na sala. Sentou junto com um grupo e,

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entusiasmada com a discussão de uns e outros, não se
conteve: falou também.
Sua voz havia voltado.
As crianças, no início, se espantaram com o fato,
já que a professora dissera que estava sem poder fa-
lar. Mas logo reagiram naturalmente, esquecendo dis-
so. Não sabiam bem por quê, naquele dia ela não pa-
recia a professora de sempre, não estava querendo
explicar como se respondia, o que tinha que ser es-
crito, nem dizendo que palavras eram mais adequa-
das para preencher aquelas linhas. Naquele dia, a pro-
fessora parecia mais interessada em saber, para sur-
presa deles, o que eles pensavam, como se expressa-
vam, o que tinham a dizer. No início, tiveram a tenta-
ção de perguntar-lhe logo:“está certo assim, professo-
ra?”; ou “pode responder assim, professora?”. Porém,
acabaram deixando de lado essa intenção. E começa-
ram então todos a discutir, como num só grupo de
alunos, o que seria colocado naquele exercício, que
idéia era mais apropriada, e até quando um deles fez
uma brincadeira, a professora riu, e chegou a comple-
tar com um gracejo ainda mais divertido, que levou
todos a rirem como nunca - muito embora, curiosa-
mente, aquele fosse o trabalho mais sério que jamais
haviam realizado.
Em meio àquela inusitada sinfonia em que to-
das as vozes soavam junto com a sua, numa harmo-
nia que a ela parecia tão bela, uma das crianças
mais novas, muito pequenina, aproximou-se e lhe
perguntou:
- Posso ir beber água?

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A professora respondeu:“Pode!”, contendo-se para
não gritar, sufocando a própria euforia, aquela alegria
que lhe explodia no peito, com vontade de abraçar
aquela menininha e lhe dizer:“Que voz bonita que tu
tens, que palavras lindas pronuncias, como é que eu
nunca conversei contigo antes para me contares tantas
coisas sobre ti...”
E a menina saiu satisfeita, indo até o bebedouro
que ficava logo na porta da sala.
Na volta, trouxe um copo para a professora:
- Eu trouxe água para a senhora também - disse a
menina, no que era seu primeiro movimento de aproxi-
mação afetiva em tanto tempo de conteúdo trabalhado
e tantas páginas de plano de curso cumprido.
A professora sorriu, agradeceu e bebeu aquela
água deliciosa e refrescante.

Não precisava mais desse sinal, e mesmo assim ele


ainda veio, pensou consigo mesma. Somente ela com-
preendia que aquele copo d’água era a própria mensa-
gem, vinda não saberia jamais dizer de onde, de que ela
encontrara, finalmente, o cálice que podia saciar a sua
sede e outras tantas.
Encontrara, por fim, o seu Santo Graal...

21
era uma vez uma escola

(homenagem a Paulo Freire)

Era uma vez uma escola


onde trabalhava um mestre
que ensinava diferente
de tudo o que conheceste.

Em sua aula, não dizia


“nada sabes, só eu sei”,
nem falava assim:“copiem
tudo isso que expliquei”.

Disse que não era ele


só quem tinha que ensinar
e falou que todo mundo
tinha algo para dar.

“Ninguém educa ninguém”


Ninguém “dá” educação:
“os homens é que se educam,
um ao outro, em comunhão”.

23
Ensinando o alfabeto
não pediu, como já vi
prá escrever “uva”,“vovó”,
“asa”,“ema” ou “siri”:

pediu prá escrever “tijolo”,


“enxada”,“trabalhador”,
ensinou a escrever “salário”,
“justiça”,“direito”,“amor”.

Depois ele então pedia


prá falar nossa opinião
pois essas belas palavras
estavam nas nossas mãos.

Nós sentados sempre em roda


íamos tendo consciência
de que toda a teoria
de que toda a ciência

só têm valor para o mundo


se ajudam a transformar
Se ajudam o homem pobre
aos problemas superar.

Naquela sala de aula


se formava todo dia
em nossa humilde cabeça
uma linda utopia

Podemos mudar o mundo!


Prá isso serve aprender!

24
Prá construir a sociedade
nossa enxada é o saber!

Era assim como se dava


cada aula deste mestre
e no fim não tinha nota
nem tinha prova, nem teste:

Cada um ia falando
se se sentia aprovado
porque percebia em si
como ele tinha mudado.

Tu também vais hoje à escola?


Tu também tens o teu mestre?
E tu, como te avalias
No fim de cada bimestre?

Quanto é que tu mudaste


em razão e sentimento?
O que deste tu ao mundo
com o teu conhecimento?

Não te esqueças de uma coisa:


se acaso o teu professor
não te vê como pessoa,
não procura teu valor

Se contigo nada aprende


se não pode te escutar
e apenas nas suas provas
é que podes te expressar

25
Se não fala de justiça
se não quer transformação
se não vê na aprendizagem
um instrumento da ação

Se ele nunca põe afeto


na sua aula exemplar
e é só ele quem escolhe
a matéria que vai dar

Fala a ele desse mestre


que acabei de te falar;
conta a ele dessa escola
onde se pode sonhar.

Quem sabe ele te escute


e juntos possam viver
a fascinante aventura
que se chama aprender.

26
o menino e a caixa

Todos os dias ele sentava na mesma sala e, como


de costume, abria a sua caixa.
Quando o entregador de objetos chegava, cumpri-
mentava-o e começava a lançar-lhe as coisas preparadas
para aquele dia. À medida que estas eram lançadas, ele
as guardava, indiscriminadamente, dentro da caixa.
No início tentara dividir o espaço em compartimen-
tos, e cada objeto ia para seu lugar, de acordo com seu
gênero e função. Depois as coisas foram ficando confu-
sas: havia objetos sem função aparente, e era difícil en-
tendê-los ou catalogá-los. Havia também compartimen-
tos totalmente cheios, enquanto outros permaneciam
quase vazios,e como os objetos se acumulavam teve que
começar a sobrepor os elementos.Assim, com uns sobre
os outros, e sobre estes os novos que chegavam a cada
dia, quase não sobrava espaço livre, e os objetos se amas-
savam e se achatavam no fundo e pelos lados da caixa,
inutilizados e esquecidos, deformando-a toda.

27
Não havia mais lugar, mas os objetos não paravam
de ser jogados pelo entregador para dentro da caixa,
que ficava aberta especialmente com esse fim. Alguns
novos, outros muito parecidos com coisas que já havia
dentro dela. Mesmo que fossem totalmente idênticos,
ele os guardava.
Quando o entregador de objetos terminava sua ro-
tineira tarefa, ele então fechava mecanicamente sua cai-
xa, amassava e espremia como podia os objetos sobre-
postos, como numa mala em que não cabem as coisas
de volta da viagem. Depois saía da sala, esquecendo-se
deles até o dia seguinte.
Mas houve um dia em que os lados da caixa come-
çaram a ceder. O entregador de objetos ficou atento: pen-
sou que de dentro dela,vazando pelos lados,talvez pudes-
sem sair objetos novos, frutos de uma combinação criati-
va de tudo o que jogara durante todo aquele tempo.
Mas não: eram apenas peças soltas, desconexas, pe-
daços das velhas coisas amassadas que haviam se que-
brado, partidas dentro da caixa apertada.
Os objetos vazavam e a caixa estremecia, como
um vulcão que se preparasse para entrar em erupção.
E assim aconteceu o inevitável: depois de se sacudir em
estranhos movimentos sem nenhum ritmo, a caixa sim-
plesmente se rompeu numa explosão que lançou os
objetos em múltiplas direções, fragmentos de mil co-
res, pela sala e pelo espaço.
Foi quando ele, olhando com expectativa para a
própria caixa esvaziada, viu de seu fundo nascendo, pe-
quena, uma coisa nova, estranha e desengonçada, mas
surpreendentemente linda.
Era, muito tímida e despretensiosa, a sua primeira
idéia.

28
o arquivo de gavetinhas

Era uma menina muito organizada: achava que já


tinha nascido assim. Mas na escola aperfeiçoara sua
própria técnica.
Tinha decidido, desde muito criança, organizar a
própria cabeça em gavetinhas, como num arquivo.
Visualizava mentalmente as pastas, com as respec-
tivas saliências e os papéis caprichados que indicavam
o conteúdo da cada uma: sonhos, projetos, sentimen-
tos, lembranças...
A cada dia de aula, conforme fossem a matéria e o
professor, abria apenas a gavetinha necessária.
Às vezes, em alguma redação ou numa pecinha
teatral de fim de ano, tirava certas coisas da gavetinha
dos sentimentos e da pasta das lembranças. Outras ve-
zes (bem menos) das pastas de projetos e de sonhos.
Usava, e depois guardava tudo intacto, sem qualquer
acréscimo ou modificação.

29
Mas a maior parte das vezes quase nem usava es-
sas gavetas, pediam-lhe que abrisse apenas as pastas da
lógica, do cálculo e do pensamento organizado.

Um dia, preparando o material, decidiu não levar


mais para a escola a chave das outras gavetinhas.

Não precisava...

30
a escola dos macacos dos papagaios

Argumentando a favor da idéia de que a linguagem


articulada seria uma capacidade exclusivamente huma-
na, John Locke relata um caso bizarro, sobre o qual ele
mesmo levanta dúvida.
Diz o filósofo que, para alguns pensadores antigos,
além do homem, também os papagaios teriam a facul-
dade do raciocínio associado à linguagem.A prova seria
uma certa ave daquela espécie que, segundo conta o
povo, quando inquirida sobre o lugar de onde vinha, te-
ria respondido:“Venho do Brasil”.
- E de onde, no Brasil? - continuara o diálogo.
- De Fortaleza - situara melhor, por sua vez, a pró-
pria ave.
Locke não deixa de tratar o caso com a seriedade
que lhe era peculiar e diz que não há, entretanto, dados
mais precisos que possam comprovar o referido fato
ou a teoria que ele poderia vir a sustentar.
Isso me lembra, de todo modo, o caso de um país
que conheci, onde se acreditava realmente numa teoria
parecida com a que Locke rebatia. Pensavam as pessoas

31
daquele lugar que, na verdade, a primazia da natureza
era dos animais. Afinal, eles já nasciam sabendo as coi-
sas fundamentais e não precisavam que alguém lhes en-
sinasse. Já o homem, atrasado, deficitário, não nascia
com essas qualidades, e por isso tinha que adquiri-las
lenta e gradativamente, num processo que demandava
muito esforço para vencer sua preguiça, única condi-
ção inata da natureza humana.
Em função disso, naquele país as crianças freqüen-
tavam a escola junto com macacos e papagaios - sendo
os professores, evidentemente, representantes destas
duas espécies animais. Com os macacos-guias, macaqui-
nhos e crianças aprendiam a fazer os movimentos cor-
porais. Gesto que o macaco-guia fizesse, gesto que era
repetido à exaustão pelos aprendizes, até que a imita-
ção ficasse perfeita e fosse impossível distinguir quem
fora o modelo e quem era a réplica.
Com os papagaios-mestres, todos aprendiam a fa-
lar elegante e articuladamente. Frase enunciada pelo
mestre, frase que devia ser aprendida, primeiro apenas
balbuciando os sons, desconhecendo a fonética dos ter-
mos, para depois ir ganhando forma, até ficar idêntica à
fala inicial.
No final de cada período, havia uma avaliação úni-
ca à qual todos eram submetidos. Macaquinhos, papa-
gaios-filhotes e crianças passavam por um teste que ti-
nha o objetivo de verificar se eles haviam realmente es-
tudado e aprendido todos aqueles conteúdos. A cada
aluno era atribuído um número, de acordo com uma es-
cala estabelecida previamente, segundo o critério de
maior ou menor perfeição na repetição do que os guias

32
e os mestres haviam feito ou pronunciado. Em geral, as
notas dos macaquinhos e dos papagaios-filhotes eram
melhores do que as dos humanos, e em suas reuniões
de avaliação os macacos-guias e os papagaios-mestres
comentavam que as crianças humanas eram realmente
muito preguiçosas, tinham muitas limitações e logo
perdiam o interesse pelas atividades propostas.
Embora algumas crianças abandonassem as esco-
las dos macacos e dos papagaios, aquelas que se forma-
vam garantiam à sociedade a manutenção de sua cultu-
ra, de suas estruturas básicas e de seus valores funda-
mentais. Estas, por sua vez, quando ficavam adultas e ti-
nham filhos, também os enviavam às escolas em que
haviam estudado, para não deixar que a longa cadeia se
rompesse.
E assim se fazia a tradição e a história daquele país.
Ocorreu, porém, que certa vez apareceu uma
criança diferente das que freqüentavam as escolas dos
macacos e dos papagaios. Era tida como rebelde: não
queria fazer nada do que era pedido nas repetições.
Gesto que o macaco-guia fazia, gesto que ele trans-
formava, dizendo: “assim ficaria mais bonito”, ou “este
outro movimento me parece melhor”, e fazia piruetas
como num balé, mexendo com todo o corpo, de um
modo que parecia muito gracioso aos meninos e meni-
nas da turma, mas totalmente desengonçado para o
macaco-guia e para os macaquinhos.
O mesmo se dava na aula do papagaio-mestre. Ao
som pronunciado na frente da sala, antes que os demais
o repetissem, ele contrapunha uma nova possibilidade:
às vezes cantando, às vezes em forma de poemas, com

33
metáforas e outras variadas figuras de linguagem. Ele di-
zia: - o senhor não acha que assim é melhor, professor?
Se o professor sequer compreendia o que o estu-
dante propunha, que dizer dos papagaios-filhotes...
Mas as outras crianças da turma, admiradas, em-
bora sem coragem de admitir, pensavam:“que bonita
essa frase diferente que ele falou”; “que melodia en-
cantadora”.
Quase que naturalmente, aos poucos o estranho
menino foi sendo motivo de uma divisão nas tur-
mas. Tanto na aula dos macacos como na dos papa-
gaios, as crianças humanas o procuravam, pediam
que ele também lhes ensinasse aqueles gestos e mo-
vimentos, que ele lhes dissesse como é que se fala-
va sem repetir.
Ele respondia sempre:
- É só você criar.
E explicava:
- Eu acho que a vida foi feita para cada um criar as
suas idéias, os seus movimentos... E não para ficar ape-
nas repetindo.
As crianças estavam extasiadas. Como aquele pen-
samento não lhes ocorrera antes? Como haviam se sub-
metido a ficar durante anos e anos de escolaridade ape-
nas repetindo, das estruturas simples às mais comple-
xas, mas sem nunca pleitear o direito de criarem seus
próprios enunciados, suas próprias danças e seus movi-
mentos?
A partir daquela descoberta, ficou praticamente
impossível assistir às aulas. Os gestos do macaco-guia
pareciam às crianças movimentos animalescos, sem

34
qualquer estética, perto das piruetas que elas ensaia-
vam por si mesmas, nos recreios e fora da escola.As pa-
lavras dos papagaio-mestre lhes soavam banais, repro-
duções da mesmice do dia anterior e das semanas ante-
riores, perto das idéias novas que elas criavam em suas
conversas, e que o menino rebelde lhes sugeria aprimo-
rar transformando em poesias, em diálogos teatrais, em
canções de amor.
Depois de muita repressão sem sucesso, a direção
e os professores da escola tomaram uma decisão: era
preciso criar escolas separadas.

Hoje, passados muitos anos, naquele país as crian-


ças humanas já têm a sua própria escola.
Lá elas podem criar, reinventar as próprias idéias,
descobrir coisas novas sempre que sentem vontade.
Não há um currículo pronto: os conhecimentos a
serem estudados vão sendo escolhidos por elas mes-
mas, com a ajuda do professor, à medida que vão avan-
çando nas descobertas, ao passo que vão desenvolven-
do as próprias aptidões, num leque muito amplo de
possibilidades que se chama “Mundo”.
Nas provas não vale mais a repetição do que o
mestre falou, mas sim a criatividade, a originalidade de
cada aluno, unida à capacidade que se percebe que ele
foi desenvolvendo em cada uma de suas faculdades e
aptidões, e à profundidade das idéias e das próprias re-
flexões.
Parece que nenhum outro humano abandonou as
aulas depois desta divisão. Ao contrário, todos traba-
lham juntos, com alegria, e os conhecimentos construí-

35
dos na escola são logo aplicados na comunidade, para
melhorar a vida de todos.
É claro que ainda existe a escola dos macacos e
dos papagaios.
Lá continua tudo do mesmo modo, e contam inclu-
sive que não se perceberia mudança nenhuma se al-
guém a visitasse, depois de tanto tempo.
O que parece incrível é que ainda há algumas
crianças humanas que são matriculadas nesta escola.
Seus pais e, por sua influência, talvez elas próprias,
acreditam mais no método de ensino tradicional dos
macacos-guias e dos papagaios-mestres.
Dizem que suas provas rigorosas e exigentes criam
mais disciplina.
Dizem que a outra escola é uma bagunça.
Dizem que as crianças da outra escola ficam rebel-
des e mal-educadas.
Que as crianças da outra escola sequer sabem se
comportar bem.
E, por isso, entregam seus filhos para os macacos e
papagaios, a fim de que se formem, contra a própria na-
tureza, na arte da repetição...

36
a história da avaliação

Terminado seu domingo,


de tanto ter estudado,
o aluno se sentia
totalmente preparado
para realizar o teste
que o respectivo mestre
já havia planejado.

Entretanto, ao iniciar
o exame programado,
percebeu que se anunciava
um vexame inesperado,
pois a complexa questão
exigia uma equação
de grau muito elevado.

Com a prova à sua frente


o aluno, apavorado,
constatava não captar
o estranho enunciado,

37
já que aquela operação
nivelava a avaliação
de um curso aprofundado.

Entregando ele de volta


o exame incompleto
decidiu que não seria
desta vez já tão discreto:
conhecendo seu valor
foi falar com o professor
de um modo bem direto.

O mestre compreendeu
a veemente reação
e também lhe confirmou
que era absurda tal questão.
Mas bem se justificou:
quem tudo isso estipulou
foi a coordenação.

O aluno procurou
pelo coordenador
e de novo ponderou
como fez com o professor ;
mas ouviu como argumento
que todo o planejamento
cabia ao supervisor.

O aluno, obstinado,
procurou a supervisão
e apresentou o problema
fazendo a indagação:

38
se era justo requerer
o impossível de entender
sem qualquer explicação.

Ao que o supervisor
igualmente deu razão,
pois nem ele desconfiava
a resposta da equação.
Mas falou que o diagrama
do que estava no programa
vinha lá da direção.

Na curiosa via sacra


que ele até sem perceber
já havia começado,
foi pedir o parecer
da própria diretoria:
por que é que se pedia
esse complexo saber.

A senhora diretora
sem ver nisso muito mal
respondeu-lhe calmamente
como fosse natural:
“Quem envia tal programa
é o organismo que se chama
Secretaria Estadual”.

Quase sem acreditar


o aluno já angustiado
perguntava-se até onde
ele seria enviado

39
até que por fim chegasse
alguém que lhe explicasse
o porquê tão perguntado.

Naquela Secretaria
à qual fora encaminhado
recebeu nova resposta
sobre a causa do estudado:
“Tu tens que considerar
que ao fazer vestibular
é assim que isso é cobrado”.

O aluno esperava
ter alguma novidade
quando questionou o grupo
responsável na cidade
por dirigir o processo
determinante do ingresso
a cada universidade.

Disse o chefe do projeto:


não me falta consciência
de que um conteúdo desses
vai além da tua experiência.
Quem quer tal complexidade
é a universidade
que pede ênfase na ciência.

O aluno foi então


procurar a reitoria
e pediu para saber
qual a regra que dizia

40
que sem tal profundidade,
numa universidade
o aluno não entraria.

O reitor lhe explicou


que o complexo se enfatiza
quando sobre todo o resto
só a razão se valoriza.
“Mas quem diz se é relevante
o saber do estudante
é o comitê de pesquisa”.

Vai e pergunta o aluno atento


para o dito comitê
por que eles antecipam
um só lado do saber
- e um saber já tão difícil
que transforma em sacrifício
o que pode ser prazer.

Ao que o comitê lhe explica


que isso já prepararia
os alunos para as áreas
que o governo financia
Pois o seu próprio sustento
virá do financiamento
que o Poder Público envia.

O aluno, intrigado,
dirige o requerimento
para o comitê gestor
que dita o financiamento.
Um dos membros dá o recado:
nada disso é motivado
por nosso planejamento.

41
O fato de que a ciência
ganhe sempre mais valor
a ponto de numa prova
daquele teu professor
Tu teres que responder
o complicado saber
seja do modo que for

tem um motivo social:


não só na universidade
o modelo racional
é o modelo da verdade.
Isso é apenas a expressão
dos valores da Razão
para toda a sociedade.

O aluno se inquietou:
se o problema era social
quem é que lhe explicaria
o contexto estrutural?
Que fenômeno gerava
a importância colocada
sobre o mundo racional?

Então lhe veio a intuição:


para ler o pensamento
de toda a sociedade
naquele exato momento
Somente se poderia
ir até a filosofia
para obter um argumento.

42
O aluno procurou
um filósofo entendido
e a ele, então, expôs,
o que havia ocorrido.
Perguntou sua opinião:
o que explica que a Razão
tenha no mundo vencido?

O filósofo explicou
que o problema era antigo;
para não ir muito longe,
nem entediar o amigo,
explicou que há muitos anos
o modelo cartesiano
neste mundo teve abrigo.

Foi Descartes quem separou


a razão da emoção?
Mas não foi ele quem disse
numa certa ocasião
que o seu tempo mais prezado
era aquele dedicado
a viver uma paixão?

O filósofo assentiu
e deixou bem explicado
que às vezes um pensamento
é entendido todo errado:
esse esquema cartesiano
no senso comum mundano
não foi bem interpretado.

43
O mesmo já aconteceu
com o lema da igualdade
colocado lá na França
ao lado da liberdade
numa bela trilogia
que aos dois valores unia
também a fraternidade.

“Liberdade” originou
o sistema liberal,
que trocou a igualdade
por um mundo desigual.
E a razão, que era o troféu
que punha o homem no céu
gerou um mundo instrumental,

onde é mais valorizado


num frio materialismo
o concreto e o objetivo.
Por cair em tal abismo
sem valer mais um centavo,
o homem virou escravo
de seu próprio pragmatismo.

- A culpa não é da idéia,


mas do uso que é feito.
Muita gente se apropriou
do que se disse de um jeito,
dando a interpretação
que justifica uma ação
diferente do conceito.

44
Observe, pois, amigo,
quanto ocorre deste engano:
Platão não era platônico
e nem Kant era kantiano;
São Tomás não era tomista,
como Marx não foi marxista
nem Descartes, cartesiano.

Depois dessa explicação


vista da filosofia
o aluno encerrou
o caminho que empreendia
sem querer seguir viagem
mas feliz com a aprendizagem
que obtivera nesse dia.

Quer dizer que ao mal se ler


o ideário cartesiano
e outros tantos pensamentos,
deturpando-lhes o plano,
uma das conseqüências
era o abuso das ciências
nas provas do fim do ano.

Só que se o aluno entendeu,


não pegou a explicação
quando ao pai foi entregar
a nota da avaliação.
Fim da história: chinelada
e um corte de mesada
prá deixar de vadiação.

45
a professorinha e os especialistas

Conheci uma escola que ficava numa pequena ci-


dade bem distante da capital. Lá trabalhava uma humil-
de professorinha, que cumpria seu papel de modo mui-
to simples e despretensioso.
Na escola havia duas turmas: uma estudava na par-
te da manhã, e outra à tarde.
Em ambos os grupos encontravam-se alunos de va-
riadas idades.A menor era Juliana, de seis anos, que es-
tava iniciando seu processo de alfabetização. O mais ve-
lho era Roberto, tinha dezoito anos e ainda estava mais
atrasado que algumas crianças mais novas, porque ti-
nha parado os estudos duas vezes, em períodos de co-
lheita, quando o pai pedira sua ajuda.
Dona Inês, a professorinha, era uma mulher muito
baixa, o rosto enrugado em parte pelo início da velhi-
ce, em parte pelo excesso de sol nas caminhadas de vá-
rios quilômetros até chegar à escola. Não era tão vi-
brante como se imaginaria ao conhecer todo o traba-
lho que realizava; mas não era apática nem boba, como
costuma pensar muita gente a respeito das professoras

47
desses lugarejos, sem conhecer bem o povo do in-
terior.
Num único caderno que servia para dois anos - às
vezes até três - Dona Inês fazia anotações sobre o pro-
cesso de aprendizagem dos seus meninos. A turma da
manhã era a mais cheia, tinha quarenta e sete alunos.
Por isso todas as informações eram anotadas a caneta
azul, que era a mais fácil de conseguir por lá.
Os dados sobre os alunos da tarde iam em preto
e, quando não dispunha desse tipo de caneta, usava o
lápis ou um resto de tinta do velho tinteiro, lembran-
ça da mãe.
A mãe, sim, fora uma verdadeira educadora, na
opinião de dona Inês. Organizada, limpa, clara nas
idéias. Toda a cidade a respeitava - era até conhecida
do prefeito, e quando lá se hospedava uma autoridade
de um município ou cidade vizinha, logo ia ela organi-
zar a festa de recepção e até fazer discurso de boas-
vindas.
Dona Inês pensava sempre na mãe com grande
admiração, e propusera-se seguir seu exemplo na es-
cola. Recebia hoje os filhos dos meninos que a mãe
educara. Pensava, com certa culpa, que não herdara a
liderança da mãe. Na cidade, era querida, mas não re-
cebia papel especial nas solenidades importantes. Às
vezes reprovava-se por isso, reparava insatisfeita o
quão pouco exigia dela mesma como forma de auto-
superação.
Mas isso terminava por não incomodá-la mais do
que alguns instantes: seja porque o trabalho de cor-
reção dos cadernos não lhe deixava muito tempo

48
nem para pensar em si mesma, seja porque ela pró-
pria se respondia que ela gostava mesmo era daque-
le contato com as crianças na sala de aula: separar
uma ou outra briga, ralhar com os mais velhos quan-
do não respeitavam os pequenos, consolar um choro
e comover-se com os olhares arrependidos suplican-
do-lhe perdão, ir para casa com o rosto melado dos
beijos que, uma a uma, cada criança fazia questão de
lhe dar. E, é claro, falar na sala sobre coisas de que a
meninada sequer suspeitava, acompanhar comovida
os seus olhares fascinados com os primeiros conta-
tos com o conhecimento, e construir diariamente
uma busca que ela esperava que fosse a grande com-
panheira da vida de cada um deles, pois para isso
lhes acendia a curiosidade e lhes tentava despertar o
gosto por saber e por descobrir as coisas novas e di-
ferentes.
Nas reuniões de pais, as crianças apresentavam al-
guns de seus trabalhos: uma pecinha teatral, uma músi-
ca ensaiada em duas vozes, uma aula dada por eles mes-
mos, explicando conteúdos estudados. Os pais ficavam
encantados com o trabalho, sabiam que aquela escoli-
nha, a única das redondezas, era boa e confiável.
Às vezes aparecia algum pai de aluno novo, que-
rendo saber dos programas, pedindo uma cópia do cur-
rículo. Dona Inês, na sua simplicidade, mas com toda a
firmeza, respondia:
- O último currículo que essa escola recebeu é de
dez anos atrás. Se o senhor quiser, pode levar para a ci-
dade vizinha e tirar cópia, mas desde já eu lhe aviso que
não é seguido à risca.

49
E, como notasse o pai já meio ressabiado, expli-
cava:
- Aqui o nosso currículo é feito a partir da vida e
das necessidades do dia-a-dia. Talvez isso não seja o
ideal - dizia Inês, e completava, decidida: - mas é o me-
lhor dentro do possível.
E, para sossegar o pai, garantia:
- Pode esperar, que seus filhos vão se sentir bem
e vão aprender, tenha certeza. E o que é mais impor-
tante: vão sair daqui com vontade de continuar
aprendendo.
- Isso eu duvido! - respondeu-lhe certa vez uma
das mães de dois irmãos que acabavam de ser incor-
porados ao grupo. - Esses dois não querem nada, foi
sempre assim. Se derem um valorzinho para o estudo,
eu lhe confesso que fico até satisfeita. Mas, a senhora
sabe... Gostando ou não gostando, a gente tem que
aprender. Principalmente quando se trata de homem,
que vai sustentar casa. Não é nem aprender, é enfiar
mesmo, goela abaixo! - entusiasmou-se a mãe, como se
falasse de um cavalo que não quer entrar na cocheira,
e só vai no laço.
Dona Inês sorriu, condescendente. Como se adi-
vinhasse a comparação, discordou, com muito res-
peito:
- Criança não é cavalo, e por isso não precisa de es-
tribo e nem rédea curta. E conhecimento não pode ser
igual a alfafa seca... - completou, gracejando com bon-
dade.
Aproximando-se da mãe dos meninos, como se
fosse contar um segredo muito divertido, disse:

50
- Aprender é uma aventura...!
E, ficando séria, continuou, para a mãe ainda sur-
presa:
- E além de ser uma aventura, aprender com gos-
to é um direito.Também para as mulheres, lembre-se
sempre disso, mesmo a senhora que só tem filhos ho-
mens.
Assim falava dona Inês, misturando conforme ne-
cessário um pouco de firmeza e um pouco de doçura,
traduzida sempre num olhar muito tranqüilo, que diri-
gia às crianças junto com um sorriso cheio daquela ter-
nura pouco conhecida no mundo das salas de aula. E
terminava as reuniões assegurando, orgulhosa, como se
falasse dos próprios filhos:
- Desta escola só sai rapaz e moça inteligente.

Contaram-me que certa vez chegou à cidadezinha


um grupo importante, causando grande alvoroço, rece-
bido pelo prefeito com honras de parlamentar. Comen-
tou-se que eram do governo. Mais tarde se soube: eram
especialistas do Ministério, do departamento ligado à
Educação Básica, que vinham fazer uma pesquisa sobre
o ensino justamente na escola de dona Inês, e propu-
nham-se verificar a aplicação das chamadas “teorias e
práticas pedagógicas modernas”.
A professorinha adorou saber da proposta e até
comemorou: “Até que enfim alguém lembra de nós!”
No dia da visita ao estabelecimento, ela vestiu sua me-
lhor roupa, que na verdade nem era muito diferente
dos outros três conjuntos que costumava usar, só que
mais nova, e saiu para sua caminhada sentindo aquele

51
esquecido ânimo de seu tempo de aluna, também ela
na escola indo fazer prova com aquele nervoso bom,
vindo da certeza de que saberia quase tudo na ponta
da língua.
Controlando sua ansiedade, dona Inês esperou ain-
da duas horas pelo grupo de especialistas, que se per-
dera na viagem, por não saber que os quilômetros finais
do trecho de acesso à escola só podiam ser feitos a pé
ou a cavalo.
- Bom dia, professora - cumprimentou a que pare-
cia ser a coordenadora da equipe, com a respiração ain-
da entrecortada devido ao cansaço da caminhada na-
quele dia de calor. Em seguida, fez as apresentações:
- Meu nome é Lúcia Blanco, sou uma das repre-
sentantes do CAREP, Comitê de Avaliação e Reforma
do Ensino do País. Esta é a professora doutora Cássia
Benja, especialista em Informática Educacional, e
aquele é o professor doutor Cipriano Mendonça, pós-
graduado na universidade de Harvard e doutor hono-
ris causa de Oxford. A senhora sabe onde ficam Ox-
ford e Harvard, não é?
- É claro que sim - respondeu prontamente
dona Inês, com certo estranhamento, imaginando
se aquela pergunta tão fácil já seria a primeira da
avaliação, e esperando que a qualquer momento um
deles pegasse um caderninho e anotasse:“Disse que
sabia”.
A representante do CAREP sorriu com cordiali-
dade, e enquanto entravam na sala de aula (naquele
dia sem os estudantes, que haviam sido dispensados
a pedido dos avaliadores) continuou uma conversa

52
que iniciara com os colegas durante a caminhada, so-
bre a necessidade de dona Inês elaborar uma petição
formal exigindo uma estrada pavimentada de acesso
à escola.
- Nas nossas cidades, aqui no interior, todas as es-
colas são mais ou menos assim. Nós já tentamos de-
nunciar a situação ao Poder Público, mas não tem ha-
vido resposta - disse-lhe dona Inês, e continuou: -
Uma das mães dos meninos, que é muito simples de
estudo mas bastante consciente como pessoa, vive
comentando que os políticos só passam aqui em épo-
ca de eleições, para fazer promessas que nunca serão
cumpridas...
Os membros do Comitê se entreolharam, numa
cumplicidade cuja mensagem dona Inês não conseguiu
decifrar. “Devem me achar conformista”, suspeitou.
Lembrou-se da própria mãe e sentiu aquela ponta de
culpa, achando que ela teria conseguido uma estrada
para a escola, e agora receberia aqueles especialistas
com todo o orgulho.
- Bem, vamos fazer algumas perguntinhas, dona
Inês, coisa rápida e simples, não se preocupe. Antes
de mais nada, nós queremos dizer que esta pesquisa
não é para colocar em dúvida a sua competência,
nem para ameaçar o seu cargo. O país precisa do seu
trabalho aqui, justamente aqui neste fim de... quer di-
zer, nesta cidade tão pitoresca do nosso querido in-
terior.
Dona Inês achou que os outros dois iam dar uma
risadinha de escárnio, mas estes se mantinham impassí-
veis e levando muito a sério aquela conversa.

53
- Estou à sua disposição - disse Inês, e temeu que a
frase tivesse soado meio desafiadora -. Pergunte o que
quiser.
Somente a coordenadora falava, enquanto os dois
faziam, agora sim, as anotações em seus caderninhos -
dois avançados notebooks de última geração.
- Primeiro, sobre sua experiência, digamos as-
sim, de vida. Com que idade a senhora começou a
dar aula?
- Quando me formei, aqui na escola, estudando
com a minha mãe - respondeu ela, orgulhosa.
- Então a sua formação é só de primeiro grau?
- Não, eu dava aula e fazia o curso normal de noi-
te, ao mesmo tempo, em Vendinha Verde, aqui no muni-
cípio vizinho.
- Sua mãe é professora.
- Era.
- E seu pai?
- Meu pai trabalhou sempre na roça, não tem
muito estudo formal, mas sabe das coisas, já leu bas-
tante e é um grande contador de histórias. Hoje em
dia ele já não pode ir para o campo, mora comigo e
cuida da casa para mim. Eu casei nova, mas meu ma-
rido morreu cedo, de pneumonia. Agora somos só os
dois, mesmo.
- Por que a senhora escolheu essa profissão?
- Nem sei se eu escolhi, acho que a vida me levou
um pouco... Mas se tiver que colocar aí uma razão,
pode escrever que é porque eu gosto.
- Gosta de quê?
- De ser professora, não é disso que estamos falando?

54
- Mas como a senhora definiria o trabalho de um
professor?
- Gostar de estudar, de aprender e também de en-
sinar. Gostar de criança, de jovens, querer que o aluno
fique todo o tempo que ele quiser do seu dia na esco-
la. E ajudar para que ele fique menos tempo da sua vida
na mesma sala de aula.
- É uma maneira peculiar de falar sobre a questão
da repetência.
- É só o meu modo de ver, se a senhora achar ina-
dequado, talvez seja melhor não anotar isso.
Os outros dois ignoraram o pedido de Inês e, im-
passíveis, continuaram digitando as respostas.
- Agora me diga algo sobre seus métodos de ensino
- continuou a coordenadora do grupo. - A senhora utili-
za o construtivismo?
Inês sentiu que naquele momento a situação se
complicava. Ela simplesmente sequer desconfiava o
que era isso. Vacilou para responder, tentando se sair
daquela com alguma idéia que não lhe vinha. Os exami-
nadores perceberam.
- É o método baseado nas teorias psicológicas pia-
getianas.A senhora não conhece?
Inês permanecia em silêncio, envergonhada.
- Nunca ouviu nem falar em Piaget? - Admirou-se o
professor doutor que até aquele momento não se pro-
nunciara. - E Vigotsky?
- Vou dizer a verdade a vocês - assumiu Inês -. Real-
mente, não conheço esses nomes.
- Mas que método a senhora usa? - inquiriu a outra
professora doutora - .Talvez montessoriano...? Ou críti-
co-social dos conteúdos...?

55
Inês sorriu meio sem jeito, já entrando em deses-
pero, mas sem demonstrar.
- Também não, eu confesso que não conheço.
A essa resposta seguiu-se uma pausa e um silêncio
ameaçador. Os três trocaram o mesmo olhar de cumpli-
cidade indecifrável do início, e levantaram.
- Muito bem, dona... Inês, não é? Não se preocupe,
nós compreendemos a situação, é justamente por isso
que estamos aqui. Agora vamos conhecer a escolinha.
Mas antes, mostre-me o banheiro, por favor.
- Professora Lúcia, banheiro aqui na escola nós não
temos, só lá fora, a uns cinqüenta metros.
- Mas como?? E cada vez que as crianças querem ir
ao banheiro, têm que ir até lá?
- Não tem outro jeito.
- E para beber água?
- Ah, para beber água são mais cento e cinqüenta
metros, no poço da rua lá de baixo.
- A escola não tem água potável? - escandalizou-se
novamente o pós-graduado de Harvard.
- Não senhor, professor doutor Mendonça.
- Lamentável - concluiu ele secamente, como se a
culpa fosse da própria dona Inês.
- Bem, então vamos ver a sala de aula.A esta altura,
já imagino que deve ser uma só, não é?
- Exatamente! - assentiu dona Inês, feliz por, pelo
menos desta vez, ter correspondido à expectativa do
grupo.
Abriu a portinha de madeira, construída apro-
veitando uma porteira velha de uma fazenda aban-
donada.

56
Não é preciso dizer que os examinadores do Minis-
tério novamente se surpreenderam: com a falta de car-
teiras, com a ausência de uma mesa para a professora,
e mesmo ao depararem com um tipo de quadro-negro
que eles pensavam que já nem se usasse mais. Mas não
deixaram de registrar também, para consolo de Inês, o
mapa-mundi pregado na parede, que ela mesma havia
comprado, cansada de esperar pela prefeitura, sentindo
a necessidade de explicar às crianças os novos contor-
nos do mundo no novo milênio.
A equipe saiu, sempre ciceroneada pela professo-
rinha, e já no gramado do lado de fora, exatamente no
mesmo local em que se realizavam as reuniões de pais,
se despediram.
- Vocês não vão voltar para ver as crianças traba-
lhando? - indagou a professora.
- Não é necessário - respondeu Lúcia Blanco -. Seus
dados foram suficientes e serão de extrema relevância
para nossa pesquisa.
Inês não conseguia evitar o pensamento de que,
ao ouvir esses elogios, os outros dois membros do Co-
mitê dessem uma risadinha. Mas isso não ocorreu.
- E a que conclusão vocês chegaram... Se é que eu
posso saber, é claro.
A coordenadora deu-se o direito de demorar al-
guns instantes para responder, criando a expectativa
necessária nessas ocasiões. E finalmente disse:
- Não temos nada claro por enquanto, precisa-
mos confrontar os dados com os de outros pesquisa-
dores. Mas uma coisa é certa - garantiu, impostando a
voz - : a informática chegará até vocês. Não tarda mui-
to, estaremos cumprindo o novo projeto do Ministé-

57
rio, de dotar as salas de aula com computadores para
seus alunos.
- Que bom... - comentou dona Inês, não muito con-
vencida -. E cadeiras, vocês também vão mandar?
- Cadeiras eu não sei - respondeu a coordenadora
com ar bastante cético -. Não está no projeto. Mas com
os computadores, a senhora já pode até contar.
E assim se despediram, meio apressados, temendo
que escurecesse e eles a pé, naquele mato.
- Só uma pergunta - gritou a professora, fazen-
do com que se voltassem -. Desculpem perguntar,
mas fiquei interessada... O que é, afinal, o construti-
vismo?
- Mandaremos umas cartilhas para a senhora. Basi-
camente, trata-se do aluno construir, ele próprio, o seu
caminho para a aprendizagem. O ensino tem que ser
personalizado, considerando a heterogeneidade de gos-
tos e aptidões. É mais ou menos por aí.
- Ah... - Exclamou suavemente dona Inês, sentindo
uma suspeita de alívio.
- Até breve! - Despediu-se Lúcia Blanco, sabendo
que na verdade não se veriam novamente.
- Até breve! - imitou-a dona Inês, com a mesma cer-
teza.

Daquela visita já se passou algum tempo. Não se


sabe quando os equipamentos que foram enviados pela
comissão do CAREP serão instalados na sala de aula de
dona Inês, pois isso depende de alguns terminais elétri-
cos que ainda não puderam ser colocados por falta de
verbas.

58
O que agora, depois de alguns meses transcorri-
dos, me veio como notícia é que Juliana já está lendo e
que Roberto organizou, com ajuda de outros dois cole-
gas, um mutirão para construir um poço na parte de
trás da escolinha. Contaram-me ainda que dona Inês es-
pera com ansiedade pelas cartilhas do Ministério. E não
me lembro quem comentou que certa vez, depois de
uma aula em que ela e as crianças haviam se sentido
muito felizes, e tinham aprendido muito uns com os ou-
tros, enquanto arrumava seu material para a caminhada
de volta para casa, dona Inês disse a si mesma, como
que pensando alto:
- Será que eu já não aplico esse tal de “construtivis-
mo”?
Mas reprovou-se em seguida pela própria arrogân-
cia, e afastou logo da cabeça aquele pensamento tão
ousado.

59
a caminho da escola

Era seu primeiro dia de aula.


Até então, não pudera nem pensar em estudos, aju-
dava a mãe e os irmãos no sustento da casa. Por isso, a
maioria das crianças daquela turma eram mais novas do
que ele. Aliviava-o apenas o fato dele ser, fisicamente,
menor do que o comum para sua idade, e realmente
não seria possível notar qualquer diferença, exceto se
alguém visse sua certidão de nascimento.
Seus irmãos já haviam tentado freqüentar aquela
escola, a única instituição pública relativamente próxi-
ma do morro em que viviam. Mas não haviam se saído
bem, e em parte pelas notas fracas, em parte pela ne-
cessidade de mais braços para trabalhar pela família, ha-
viam terminado por abandonar o curso.
Ele ouvira da mãe que seu caso seria diferente.“O
Aparecido tem outra cabeça”, vivia repetindo, com vee-
mência, mesmo na frente dos outros filhos, o que o dei-
xava um pouco encabulado. “Esse vai conseguir com-

61
pletar o primário”, garantia a todos e a si mesma.
A expectativa era grande e, já nas semanas anterio-
res ao início do curso, ele tentara colher alguns dados
com os mais velhos.
- Como é que é lá? - perguntou ao Toninho, que já
completara quinze anos.
- Ih, cara, é “barra”- respondeu este. - Não dá prá en-
tender nada do que a professora fala.
- Mas tem gente que entende? - continuou Apa-
recido.
- É, tem gente que entende -, afirmou o irmão, já
com ar de superioridade, por possuir uma informa-
ção cobiçada. E, num tom mais enigmático, falando
muito baixo e devagar, revelou: - Mas é porque eles
vem de outros lugares, onde se fala do jeito que a pro-
fessora fala.
Aparecido coçava a cabeça, curioso, ainda sem
conseguir sentir preocupação. Dera conta de tudo o
que haviam lhe pedido até aquele momento: vender
bala, engraxar sapato, mendigar lanches na padaria
para completar os suprimentos da casa. Era considera-
do esperto, admirado até por muitos de sua idade, que
não tinham a mesma desenvoltura. Sabia que era sim-
pático, e por isso usava às vezes, com certa malandra-
gem, seu sorriso de dentes muito brancos para con-
quistar as pessoas.
Por tudo isso, confiava em si mesmo. Sem falar na
matemática, pensava, pois ele já sabia dar troco até de
nota de cem, com centavos ou não.“Eu vou tirar de le-
tra”: foi seu último pensamento, antes de adormecer na
noite da véspera.

62
Poucos instantes depois dele entrar na sala, antes
mesmo de que pudesse percorrer com a vista todos os
seus colegas, chegou a professora.
Era uma mulher alta, de meia idade, bonita.
“Ela é branca”, foi a primeira impressão que lhe
veio, confirmando uma hipótese que havia traçado ao
imaginar o mundo da escola.
A professora deu bom dia, apresentou-se (chama-
va-se Tia Cíntia), e começou a falar.
Aparecido arregalou os olhos, sem acredi-
tar no que estava acontecendo. Um arrepio cor-
reu-lhe na espinha. “Não é que o Toninho falou
certo, não dá para entender nada do que ela
fala?”
A professora, sem atentar para o desespero do me-
nino, explicava:

A maioria das crianças assentava com a cabeça,


sorrindo, com sinal de entendimento.

- continua ela.
Aparecido ouvia aquilo atônito, cada vez mais
preocupado.
“Se ela mandar fazer alguma coisa agora, o que é
que eu vou fazer!!??”, apavorava-se.

- continuava ainda sem interrupção a professora, como


se todos falassem aquela língua.

63
- O que ela está falando? - perguntou Aparecido, em
voz bem baixa,a um menino que estava sentado a seu lado.
- Ela falou que daqui a pouco cada um vai dizer o
seu nome, e ela vai aprendendo. - O menino deu uma
pausa, esperando que a professora olhasse para outro
lado, para continuar - E falou também que é para quan-
do tiver dificuldade, chamar ela.
- Que língua é essa que ela fala?
- É a nossa, você não está entendendo não?
“Nossa? Nossa língua?”, perguntou-se ele.
- Não...
- Presta mais atenção que você entende - assegu-
rou o menino, já sem muita paciência.
Ele grudou os olhos na professora,sem perder um de
seus movimentos. No entanto, mesmo assim, era impossí-
vel compreender e, em decorrência disso, era difícil não
abstrair-se,ao menos momentaneamente,das explicações.

Enquanto ele pensava na sua tia Zica, de quem


lembrara porque uma menina tinha alguns traços do
rosto muito parecidos, o colega o cutucou:
- Acorda, ela está te chamando!
- Hã? O quê? Hã? Chamou, professora?

- Desculpa, professora, eu estava tentando prestar


atenção, só que eu não estava entendendo direito o que
a senhora estava falando. Meu irmão já estudou aqui e

64
disse que era difícil mesmo, mas a gente estamos nos
esforçando. Quase ninguém lá do morro onde eu moro
consegue entender o que as professoras fala.

Sem jeito, percebendo que levava bronca, o meni-


no se calou. Quando a professora tornou a se virar para
escrever no quadro, perguntou ao colega:
- Ela falou algo de mim?
- Não liga não, ela é muito nervosa.
- Pode falar, eu não fico chateado.
- Ela disse que não sabe por que é que tudo quan-
to é criança que mora no morro é desatenta.
Aparecido levou um golpe com a frase, parecia um
banho de água fria. Fingiu não ligar, até deu um sorriso
amarelo enquanto respondia:
- Ela é que fala estranho, como é que eu vou ficar
prestando atenção?
Mas a voz saiu com gosto de choro.
O quase amigo consolou:
- Não liga.
Por dentro, a raiva era enorme.“Vou fazer bagunça
a aula inteira”, planejou.“Hoje, amanhã, e todos os dias
dessa semana. Ela fala estranho e eu é que levo a pior?
Tem até graça!”
E praguejava internamente, ansioso para que o si-
nal tocasse e ele pudesse voltar para casa, para contar
tudo ao irmão.
- Você tem razão, mano - ia lhe falar -. Não dá para
entender nada mesmo, e a professora ainda por cima

65
não gosta da gente. Eu estava tão animado prá estu-
dar, mas agora... agora eu odeio, quero mais é voltar
para a rua.
A única razão que o segurava eram as falas da mãe,
que também lhe vinham à mente, como num diálogo
entre bem e mal, entre anjo e diabo.“Se comporta, me-
nino; seja o que for que a professora falar, ela está sem-
pre certa, entendeu bem?”
Danação. O que ia fazer?
Ainda por cima, sentia-se já incômodo na mes-
ma posição. No seu barraco não havia cadeiras da-
quele estilo. Todos sentavam em caixotes para co-
mer ou, na época em que os irmãos estudavam,
para fazer as lições. Ele mesmo estava acostumado
a sentar no chão.
“Devia ter um treinamento prá que a gente fosse
se acostumando aos poucos, igual aos jogadores de fu-
tebol quando voltam das férias”, pensou, massageando
irrequieto a região dos rins.

Nova bronca.
“Eu vou é deixar essa mulher de lado, ela está é de
marcação” - resignou-se.
Um outro menino, do fundo da sala, olhava para
ele sorridente, com ar de cumplicidade.
“Pelo menos alguém está do meu lado” - consolou-
se, mas ainda repleto de sentimentos maliciosos, esfor-
çando-se por ter alguma idéia sobre como atrapalhar
aquela aula confusa.

66
Finalmente, apesar do relógio parecer mais vagaro-
so que nunca, ouviu-se a campainha da saída.A profes-
sora anunciou algo e se despediu. Houve rumores. Já
imaginando que ele não ouvira ou não entendera, o
amigo avisou:
- Olha, ela disse que amanhã vai ter uma prova oral
sobre a aula de hoje.
- Prova!!!???
E, antes que ele pudesse comentar qualquer coisa,
o grupo de meninos e meninas se desfazia, correndo
ansiosos cada um para seu lado, como uma boiada que
tivesse estado presa num cubículo e, de repente, abris-
sem a porteira e lhes permitissem ganhar a imensidão
do pasto todo verde e plano.
Aparecido chega em casa num estado de espírito
totalmente diferente daquele com que saíra. Desola-
do, a raiva inicial substituída por uma preocupação
até então desconhecida. Não conseguia falar quase
nada, respondia apenas monossilabicamente às per-
guntas dos irmãos sobre o seu dia. No fundo, sentia
vergonha de confessar que com ele acontecera o mes-
mo, era igual aos outros, também não tinha cabeça
para o estudo, apesar de todas as expectativas sobre
ele colocadas.
- Vem almoçar, menino.
- Não estou com fome não, mãe.
Ao contrário do que poderia ocorrer em outras fa-
mílias, em que os pais se preocupam se o filho não
come, a mãe de Aparecido sentia alívio: “Vai dar prá
todo mundo”, calculava, pois se todos almoçavam isso
já não era uma garantia.

67
Passou a tarde cabisbaixo e calado, o olhar perdido
sem fixar qualquer ponto. Pensava:“Isso é injustiça. Dar
prova sobre algo que ela não sabe se todo mundo enten-
deu.Aliás, ela sabe que nem todo mundo entendeu”.
A raiva voltava, e ele, remoendo, continuava:
“Ela sabe que eu não entendi, e pensa que é por-
que eu estava conversando. Ou porque não estava pres-
tando atenção. Mentira! Eu tentei, mas como é que eu
vou ficar ligado sem entender aquelas palavras de outra
língua?”
E o sentimento de injustiça crescia.
A mãe, vendo o garoto assim, ainda interpretou ao
contrário. Enquanto lavava roupa numa tina e conver-
sava com a vizinha da janela, contou:
- O Aparecido, você precisa ver, que gracinha. Vol-
tou da escola todo pensativo. Já deve estar estudando
tudo o que aprendeu. Esse sim, dá valor ao estudo, está
todo sério, está levando com seriedade. Que diferença
dos outros, que chegavam aqui, parece que nem tinha
havido aula!
“Estou frito”, concluiu Aparecido, ouvindo as pala-
vras da mãe.“Entre a cruz e a espada”, como dizem.
O fato de ter ficado só com o café da manhã até
aquele fim de tarde já causava os seus efeitos.Apareci-
do começou a sentir uma fraqueza, uma moleza só.
“Vou ficar é doente”, pensou, encontrando um motivo
de esperança.“Quem sabe eu consigo passar mal e mi-
nha mãe não deixa eu ir à escola?”
Deitou na esteira que, à noite, dividia com o irmão
mais velho. Assim, sem o companheiro, ela ficava bem
mais espaçosa, quase confortável. Sem perceber que fu-

68
gia pela primeira vez da própria sorte, foi-lhe chegando
aquela sonolência branda, as pálpebras pesando...
Abstraiu-se de tudo e, naquele calor que vinha do
teto de zinco, o sol ainda forte sobre ele, dormiu pro-
fundamente...

- Menino, você vai perder a hora, quer fazer o favor


de levantar AGORA?????
Ele abriu os olhos, como emergindo aos poucos de
um abismo.
- Já é a terceira vez que estou chamando!
Olhou para fora. Pela cor do céu e pelos passari-
nhos que cantavam, calculou que deviam ser cinco e
pouco da manhã. Espreguiçou-se, ainda sem saber mui-
to bem o que estava acontecendo.
- Você não vai querer chegar atrasado no seu pri-
meiro dia de aula, vai? - inquiriu a mãe, já ralhando.
“Primeiro dia? Primeiro?”
Depois de pensar alguns instantes, descobriu: tive-
ra um sonho! Tudo não passara de um terrível pesade-
lo! Impressionado pelo que o irmão lhe contara, inven-
tara dormindo toda aquela história da estranha língua
falada pela professora, do seu jeito rabugento e impa-
ciente, da prova no dia seguinte.
Levantou sentindo-se bem melhor do que no sonho,
embora aquele gosto de angústia ainda permanecesse.
Foi até a escola sem poder esquecer aquela história.
“Pode ter sido um pressentimento”, foi a idéia que
o aterrorizou.“E se for?”
Criança, ainda encontrou pontos positivos na pos-
sibilidade do sonho ter sido profecia: “Posso ganhar a

69
vida como mágico” - e se imaginava, adulto, vestido
com roupas exóticas e com uma bola de cristal sobre a
mesa, dizendo a um grupo de meninos assustados e ad-
mirados com seus poderes:“Na prova vai cair essa ma-
téria... Podem anotar as respostas que eu vou dizer...”
Mas ele mesmo não acreditava naquela possibilida-
de.Tanto que, ao entrar na sala de aula, levou um gran-
de susto ao perceber que não só a disposição das me-
sas e cadeiras, como os próprios coleguinhas, eram os
mesmos, literalmente iguais aos que ele vira no sonho.
- Ou pelo menos muito parecidos - comparou, en-
golindo em seco.
Não havia muita algazarra porque poucos se co-
nheciam. Por isso, quando a professora entrou, foi qua-
se que natural o silêncio que se seguiu.
O de Aparecido, não, era forçado. O sangue lhe ge-
lara nas veias.
A professora era igual, exatamente idêntica à mu-
lher de seu pesadelo.
“Estou perdido”, concluiu para si mesmo, deso-
lado.
Entretanto,ao contrário de suas previsões,quando a
professora começou a falar, Aparecido ficou encantado.
Era uma voz suave, branda, quase doce, mas ao mesmo
tempo firme, segura. As frases saíam de sua boca como
uma leve melodia. E o que era melhor, muito melhor:
- Eu estou entendendo!!!
Todos riram. Sem querer, Aparecido falara alto.
Olhou assustado para a mestra: mas ela também sorria,
até satisfeita com a frase. Perguntou seu nome, ele res-
pondeu.

70
- Aparecido -, disse ela - eu quero é isso mesmo, que
vocês entendam tudo o que acontece aqui. Se não for
assim, não está certo, não está bom.
Aparecido não cabia em si de felicidade. Ninguém
adivinhava por quê, mas para ele não tinha importância.
- Obrigado, professora. É porque eu pensei que nós
ia ficar sem saber direito como é que era prá fazer as
coisas aqui.
Um ou outro menino riu do modo de Aparecido fa-
lar. “Nós ia”, hahaha. Um outro parodiou: “A gente ía-
mos...”, hahaha.
Só aí a professora brigou. Mas com os outros.
- Aqui ninguém pode rir do que o colega falar.Todo
mundo está aqui para aprender. Até eu, vocês acham
que eu não aprendo? Todo dia eu posso aprender algu-
ma coisa, é só saber pesquisar.
Virou-se para Aparecido.
- E você, menininho - num tom carinhoso -, tem
que saber de uma coisa: a maneira como você falou é
bonita, mas para viver na sociedade, no mundo em que
a gente vive, você vai ter que aprender a falar também
de um outro jeito, que não foi o que você falou até
hoje, mas que eu vou te ajudar a ir descobrindo...
- Eu quero saber como é que é, professora, eu que-
ro aprender - garantiu Aparecido, ansioso por saber da
novidade, certo de que com aquela professora não te-
ria mais problemas, nem angústias, mesmo que tivesse
que estudar muito.
A aula acabou sem que Aparecido pudesse acredi-
tar que haviam se passado quatro horas. Queria ficar
mais, pediu.A professora sorriu de novo:

71
- Amanhã nós nos encontramos de novo -, respon-
deu. Acho melhor você ir para casa, que tem uma lição
para preparar...
Aparecido concordou e começou a arrumar as coi-
sas, recolhendo lápis e papéis. A professora permitiria
que ficasse trabalhando sentado no chão, como na sua
casa.“Aos poucos você vai se acostumando a estudar na
mesa”, disse-lhe na despedida.
- Eu vou voltar, sim, professora - garantiu ele, rindo
da estranha possibilidade.
Na rua, ainda ria sozinho daquele diálogo, do pró-
prio jeito maroto. Sentia-se confiante, segura de si
mesmo. Simplesmente feliz.

No dia seguinte, não pôde evitar que, por uma últi-


ma vez, o sonho lhe voltasse à cabeça.
- Já pensou se a escola fosse daquele jeito? - falou
consigo mesmo. Que injustiça...!
- Ainda bem que não é assim! - respirou, aliviado,
afastando aquelas idéias absurdas.
E, voltando à sua alegria, começou a subir o cami-
nho para a casa, mochila nas costas, saltitando nos de-
graus do morro, às vezes até pulando de dois em dois,
assobiando melodias puras e simples, transbordantes
de uma esperança menina.

72
a aula de pesca

Gostava de inovar em suas aulas. Fazer sempre


algo diferente, para motivar os alunos.
Quando ia falar da pesca como atividade comer-
cial, por exemplo, teve a idéia: vou levá-los para a beira
de um rio, e ensinar-lhes a pescar.
A excursão foi divertida, todos encantados com as
paisagens da serra, cantando músicas dos grupos da
moda.
Finalmente chegaram: a aula seria num córrego
que atravessava um vale entre duas cidades. Parece que
era cheio de traíras, lambaris e tilápias.
- Primeira parte da aula - disse a professora -:
aprender a segurar a vara de pesca. Cada um pegue
a sua.
Os alunos, sem conter a ansiedade, correram até o
porta-malas do ônibus que os trouxera e começaram a
disputar as varas.

73
- Mas... e a linha, professora? - perguntou um
aluno.
- E o anzol? - continuou outro.
A professora explicou:
- Linha e anzol para vocês não precisa, basta a
vara. Depois eu mostro a vocês com o meu, que tem
tudo.
Os alunos começaram a ficar decepcionados.
- Vamos lá, segurem a vara de pesca. Assim, com
as duas mãos, nem muito firme, nem muito frouxo,
para poder sentir o beliscão do peixe... Assim, estão
vendo?
Os alunos repetiam seus gestos nas próprias varas
sem linha nem anzol, com pouco entusiasmo.
- Agora vou colocar a isca... Isso se faz cobrindo
bem o anzol, viram? Não ficou nada sobrando. Então
vou mostrar como é que se joga a linha. Como é num
rio, e nós estamos com vara de bambu, basta puxar o
anzol aqui para a frente e... - ia fazendo os movimentos,
concentrada, até que num impulso jogou o anzol para
a água, bem distante da margem - ... e jogar para bem
longe!
Observou, curiosa, em local em que o anzol
caíra.
- Viram? Perfeito! Caiu bem no meio do rio!
- Posso fazer também, professora?
- Primeiro eu! - pediam os alunos.
- Agora não, o anzol está pronto para a pesca, e nós
vamos pegar um peixão!
- “Nós?” - comentou um dos alunos com o colega,
em voz baixa.

74
- Silêncio, turma! Falando desse jeito vocês espan-
tam os peixes!
E a professora se mantinha, de pé, concentrada na-
quele ponto de água cortado pela linha, à espera de
uma fisgada.
Nada acontecia e os alunos começavam a se dis-
persar.
- Olha que campo enorme! Você trouxe a bola?
- Trouxe, vamos jogar futebol!
- Mas o que é isso? - espantou-se a professora -.Vo-
cês não entenderam que isso aqui é uma aula normal,
só que fora do colégio? Quero a mesma seriedade de
todos! Senão, não saio mais.
Todos se aquietaram: embora não pudessem parti-
cipar da pesca, pelo menos ir para lá era melhor do que
ficar na sala de aula, e não queriam nem pensar em per-
der a chance de voltar outras vezes.
Ao perceber o silêncio, a professora disse consigo
mesma:“Que bom, eles estão gostando de estar aqui.A
aula está sendo um sucesso”.
Mas seus pensamentos foram interrompidos por
um forte puxão na vara.
- Oh! Acho que é... Será...? Estão sentindo?
Os alunos não falavam nada, sequer sabendo a que
se referia a professora.
- É o puxão inconfundível! Vejam, a linha está an-
dando! Estão sentindo? Dá para sentir que o peixe é
grande.
Os alunos conversavam entre si, baixinho, ape-
nas um ou outro continuava olhando para a água e
para ela.

75
- Hora de puxar! - exclamou, e lançou a vara para
cima, com decisão. O bambu, agitando-se todo, trazia no
final da linha uma boa traíra de uns dois quilos.
- Pegamos! Pegamos! - agitava-se a professora, en-
quanto soltava a vara sobre o capim, e preparava-se
para tirar o peixe do anzol.
A traíra custava a se render, pulou ainda várias ve-
zes dentro do balde antes de ficar definitivamente quie-
ta.
- Viram que beleza? Pescar é muito bom! Que delí-
cia que é a pescaria! - exclamava para si mesma, sem
perceber que alguns alunos sorriam com desdém, ou-
tros sequer a ouviam.
- Posso tentar agora, professora?
- Eu também vou querer!
- Vamos sortear de quem é a vez! - inquietaram-se
os meninos.
- Agora não, pessoal - respondeu a professora -.
Já está ficando tarde e, de qualquer forma, não daria
mesmo para todos pescarem.
Um “Aaaaah...” prolongado, que parecia um coro
ensaiado, foi a expressão da decepção de todos.
A viagem de volta pareceu mais rápida, não havia
mais a expectativa nem a alegria do primeiro momen-
to. A professora, satisfeita, levava o peixe para mostrar
na escola “o que os alunos pescaram”. Lembrou-se de
avisar:
- Turma, não esqueçam de que, como sempre, de-
pois que houve um estudo de um conteúdo, teremos a
nossa provinha.
- Ah, não... - mais uma expressão de desânimo.

76
- Não reclamem! - pediu carinhosamente -. Será fá-
cil, é só vocês contarem o que sentiram na pescaria.
- Mas eu não pesquei nada - comentou um dos alu-
nos com um colega, sem que a professora ouvisse -. O
que é que eu vou colocar?
- Inventa - aconselhou o outro, solução que lhes pa-
receu muito satisfatória e fez com que os dois se esque-
cessem definitivamente do problema.

77
o perfil de um mestre

As aulas haviam sido suspensas para uma jornada


de formação docente. O tema da reunião do dia era “o
perfil do professor”.
Josefina escrevia bem e foi logo escolhida para ser
a redatora de seu grupo. Papel em branco na mão, as
idéias soltas na cabeça de todos.
- Creio que deveríamos tentar sair daquele lugar-
comum de todas as reuniões, em que ficamos registran-
do nossos pensamentos só no nível dos ideais. Desta
vez, queria propor uma ação concreta – disse Maria,
num determinado momento do encontro.
E qual seria essa ação? – perguntaram alguns dos
colegas.
- Penso em algo diferente, revolucionário. Minha
idéia é a seguinte: em vez de ficar escrevendo sobre o
perfil ideal de um professor, por que não encontramos
essa figura e a trazemos para cá?
Poucos entendiam o propósito de Maria.Ela continuou:

79
- Vamos traçar o perfil do professor que quere-
mos e, ao invés de entregar um documento escrito à
comunidade, procuraremos e traremos o próprio para
trabalhar aqui. Se a minha idéia funcionar, ele saberá
ir contagiando o trabalho de todos com a sua manei-
ra de ser.
Parecia uma possibilidade interessante. Josefina re-
gistrou tudo em ata. Enquanto escrevia, outros já toma-
vam a palavra:
- Bem, de qualquer forma temos que encontrar al-
guns critérios que vão nos ajudar a distinguir esse pro-
fessor. Proponho que comecemos a pensar numa lista
de características.
Todos concordaram e se dispuseram a trabalhar
naquela primeira etapa do projeto.
- Na minha opinião, deve ser uma pessoa muito hu-
mana – começou o professor de Ciências, dando ênfa-
se à palavra “humana”. – Quero dizer, uma pessoa que
veja a vida com a razão, sim, mas também com a emo-
ção, que aprecie os sentimentos humanos, o sentido
humanitário da vida, e não apenas um profissional com-
petente, dotado somente de uma boa técnica.
Josefina gostou da explicação. Anotou tudo, subli-
nhando as expressões “emoção” e “sentido humanitá-
rio”.
- Daí eu penso que decorre outra coisa, ligada dire-
tamente a isso – continuou o professor de História - :
que seja uma pessoa interessada no bom relacionamen-
to com seus alunos. Que o aluno seja alguém com
quem ele realmente se importe, alguém que ele veja
como um parceiro de trabalho.

80
- Exatamente – animou-se a professora de Geogra-
fia, e completou: - Que se coloque na disposição de um
possível amigo, para ouvir o aluno, e ajudá-lo no que for
preciso.
Josefina anotava tudo, muito atenta. Arriscou tam-
bém um palpite:
- Deve ser também uma pessoa interessada no pró-
prio desenvolvimento. Manter uma atitude de estudo,
de aprendizagem e aperfeiçoamento constante – ex-
pressou, esperando pela aprovação dos demais.
- Isso aí, é por aí mesmo – reforçaram vários, fazen-
do com que ela colocasse as próprias palavras no rela-
tório do grupo.
E assim foi a reunião se desenvolvendo, até que no
fim do tempo combinado havia duas páginas de carac-
terísticas que compunham o perfil do professor ideal, e
que iriam orientar a busca daquela figura: competente,
que aliasse o saber profissional com o lado humano,
aberto ao conhecimento, solidário com os demais, do-
tado de espírito de equipe, pronto para aprender junto
com o aluno, capaz de criticar o próprio trabalho, que
não se colocasse numa posição superior, em afinidade
com a proposta da escola, visão aberta e atual da edu-
cação, pronto para aprender a partir da experiência co-
tidiana, crítico, politicamente consciente, participante
das atividades extra-curriculares, disponível, engajado
em algum projeto social.
Saíram todos para a reunião seguinte com uma ta-
refa: tentar encontrar aquele professor. Existiria alguém
assim? Tinha que existir, não aceitavam a idéia de que
tudo fosse uma grande utopia.

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Júlio, professor de Literatura, muito interessado
nas novas tecnologias, sorria para si mesmo e pensava:
eu o encontrarei, com meu método infalível.Vou me co-
nectar na Internet, nos sites de “busca” e, através das ca-
racterísticas indicadas, encontrarei uma foto desse su-
jeito. Em algum lugar do mundo ele se encontra. Ire-
mos, então, procurá-lo.
Já Sofia, professora de Português, pensou num ou-
tro caminho possível.“Tenho cópia de muitas das reda-
ções que meus colegas fizeram no curso de formação
de professores”, lembrou. Quem sabe se naquele tema
“Os meus sonhos pedagógicos” aparece uma redação
que revele esse perfil? Esse professor deve estar em al-
gum lugar, hoje em dia, dando aula”, assegurou a si mes-
ma.
Josefina também tinha a sua idéia. Ia consultar uma
antiga professora do Instituto de Educação e perguntar-
lhe se, em toda a sua história, havia conhecido uma pes-
soa assim. Ela, ao contrário dos outros, estava bastante
cética quanto à existência daquele que haviam denomi-
nado de “professor ideal”. Na verdade, não sabia se
aquele tipo era um ser perfeito ou um verdadeiro idio-
ta, por continuar pensando daquela forma apesar das
dificuldades do magistério. Mas queria ficar bem com o
grupo e imaginava que, se ela o encontrasse, sua ima-
gem no colégio seria valorizada.
Marcou entrevista para aquela mesma semana
com a professora Conceição, de quem tinha muito boas
lembranças.
Foi ao encontro com certo receio. Pensava que po-
dia ficar chocada ao ver a antiga professora, assustar-se

82
com a passagem aparentemente repentina do tempo.
“Ela já não era nova quando eu assistia às suas aulas, no
primeiro ano do curso de formação de professores...
Imagine agora, como estará, se hoje em dia meus alunos
é que me consideram uma senhora...”
A suspeita se confirmou de um outro modo.
Dona Conceição envelhecera, mas não fisicamente.
Faltava-lhe apenas, na maneira de falar e de andar,
aquela jovialidade dinâmica, aquela força de persona-
lidade que fazia outrora com que todos os estudantes
a admirassem e alguns deles até procurassem imitar
os seus modos.
“Teria sido ela a professora ideal, a que reunisse to-
das aquelas qualidades?” – perguntou-se Josefina. Mas
logo voltou atrás na análise.
A antiga professora, a propósito da pergunta sobre
um possível professor ideal de que ela se lembrasse, já
começava a falar-lhe das dificuldades do magistério, de
suas descrenças, suas desilusões.Tudo devido à política
do país, da qual, aliás, já tinha desistido de participar. A
escola lhe parecia ultrapassada em seus métodos para
o mundo de hoje, mas... ninguém conseguia mudar as
exigências das Secretarias, dos exames para o ensino
superior... Isso fazia com que procurasse atalhos, como
um ensino mais objetivo, para dar conta dos progra-
mas...
- Eu acho que já não dou mais para isso, mesmo –
arrematou a velha professora.
“Como ela mudou”, admirava-se cada vez mais a ex-
aluna Josefina. Não é pela idade, é pela perda de todas
as suas crenças, de tudo o que animava seu trabalho.

83
Lembrava-se como se fosse hoje de algumas redações
que ela devolvia aos alunos com nota máxima e com
um brilho no olhar:“Parabéns, como melhoraste teu tex-
to!”, dizia, e todos sentiam que ela própria estava se
emocionando com aquilo. Participava, muitas vezes, das
excursões programadas pelo Instituto, abrindo mão até
dos finais de semana. “Depois eu me arrependo, corri-
gindo as redações na segunda-feira à noite, mas... vale a
pena”, contava às alunas, rindo de si mesma.
Josefina percebia nas frases amargas de dona Con-
ceição que tudo aquilo terminara, ficara perdido no
tempo, em algum lugar entre a sua turma de curso nor-
mal e o dia de hoje. Onde seria...?
- Mas talvez eu ainda possa ajudar-te, menina – dis-
se Conceição à Josefina, num tom de professora para
aluna, como se não tivessem transcorrido trinta anos
desde o último encontro e não fossem, agora, duas se-
nhoras adultas. E continuou:
- Eu conheci uma mocinha que parecia pensar as-
sim, como tu me descreveste. Eu lia seus textos e pensa-
va sempre comigo mesma que aquela seria, ela sim, uma
grande professora. Livre, sonhadora, parecia-lhe que ti-
nha o mundo pela frente e que,uma vez entrando na sala
de aula, iria conseguir mudar todas as coisas: as injusti-
ças, os problemas do mundo, a miséria, a ignorância...
- Pois é justamente essa pessoa que eu preciso en-
contrar! – interrompeu Josefina, com ansiedade. Con-
ceição pareceu nem ouvir, mergulhada nas próprias
lembranças felizes.
- Essa moça era bem nova, mas de muita maturida-
de, nas suas idéias. Ao mesmo tempo, idealista. Eu sen-

84
tia que ela seria uma grande professora. Participava do
grêmio, colaborava no jornal da escola, assumia muitas
vezes até tarefas que seriam da coordenação, organi-
zando eventos no Instituto. E tu sabes de uma coisa? Ti-
nha algo que é tão difícil encontrar... Ela acreditava na
mudança, ela acreditava que era possível fazer alguma
coisa... Sonhava em mudar a escola, em propor novos
programas, currículos diferentes, com atividades liga-
das à arte, ao humano...
E assim, encantada com o próprio mundo de lem-
branças, suspirou, sorrindo carinhosamente:
- Ah, essas crianças...!
“Que perfeita idiota, isso sim...” , pensou consigo
mesma Josefina. Com certeza já desistiu de tudo isso.
Idealismo ingênuo...!
- Onde estará ela hoje, dona Conceição? Preciso en-
contrá-la, é muito importante. Disso pode depender a re-
forma total da escola em que trabalho – e completou para
si mesma, interiormente:“e talvez a minha promoção”.
- Eu não sei onde ela estará agora... – respondeu a
professora, como que voltando aos poucos de um so-
nho, de uma visita que há muito não fazia ao próprio
passado -. Mas acho que devo ter alguma foto de final
de ano em que ela apareça. Devo ter até alguma dedi-
catória feita por ela, no meio das demais assinaturas. Se
esperas, eu vou procurar.
Josefina concordou e dona Conceição foi até seu
quarto, onde tinha um armário grande, todo de madei-
ra escura, desses que hoje não se fabricam mais. Da ga-
veta inferior retirou uma caixa que continha fotografias
soltas, um álbum de retratos e alguns papéis amarela-

85
dos, com dedicatórias de alunos e declarações de afeto
e admiração.
- Sei que está aqui no álbum... Vamos ver o ano...
será esta turma...? Talvez... sim, acho que sim...Ah, aqui
está, é isso mesmo – disse finalmente Conceição, e re-
tornou à sala.
- Vou descolar a foto para tu levares. Mas peço que
me devolvas depois, só tenho essa.
- Não quero estragar seu álbum, dona Conceição –
preocupou-se Josefina, mas no fundo desejando que ela
realmente descolasse a imagem.
- Não há problema, não te preocupes. Não sou des-
sas velhas apegadas aos objetos... – brincou. Josefina
riu. – Pode levar, minha filha. Ah, aqui está ela – mos-
trou, apontando para uma das moças da foto com o
dedo um pouco entortado pela artrite.
Josefina aproximou-se bem do retrato, sem óculos
não enxergava naquela distância. Quando fitou a tal
menina, arregalou o olhar, sentiu o sangue gelar.
- Q... Que... Quem é essa, do-dona Conceição..? –
perguntou, mas conhecendo a resposta.
- Ora, já te falei, é a tal “professora ideal”, que tu
procuras. Vamos ver a dedicatória atrás da foto – pro-
pôs, parecendo não perceber a perturbação de Josefi-
na.
- Veja aqui, que graça:“Com muita admiração, o ca-
rinho da Jô”.
- Mas... eu... não estou entendendo... – disse Jose-
fina, já meio em desespero, assustada, olhando para
seu próprio retrato, sua face adolescente sorrindo
para a câmera através do tempo. Aquilo parecia-lhe

86
um pesadelo, uma espécie de brincadeira macabra do
destino.
- Sim, é a tua foto, Josefina – disse dona Conceição,
condescendente, carinhosa, chamando-a pela primeira
vez em tantos anos pelo nome, como nas suas aulas. És
tu esta menina que eu te conto que sonhava, que acre-
ditava em outro mundo, que eu sabia que seria uma
grande professora.
- Não pode ser... eu... eu... – balbuciava Josefina,
sem ter o que dizer.
- Eu é que te pergunto agora, Josefina. O mundo
também pôde contra ti, assim como pôde comigo? De-
sististe de tudo ? Aceitaste a escola pronta, a aula fácil,
o aluno distante, a matéria pura?
Josefina não dizia nada.
- Mas quero te dizer que em algum lugar, entre a
nossa aula de Português há trinta anos, e o dia de hoje,
esses sonhos ficaram. Eles existem ainda, estão em al-
gum outro espaço que não é uma sala de aula nem um
corredor de colégio, Josefina. Eles ficaram esquecidos
em algum canto, dentro de ti.
Josefina ouvia quieta, os olhos úmidos, a garganta
doendo.
- Eu te entrego hoje esta foto, e te faço um desafio,
Josefina, a ti que tanto gostavas dos difíceis desafios.
Por que tu não vais procurar essa professora? Por que
tu não procuras a nossa Jô?

Naquele final de tarde, ao se despedirem, Dona


Conceição insistiu no pedido: faze isso que te disse,
por nós duas. Se tu conseguires encontrá-la, estarás
nos resgatando, e estarás redimindo através disso

87
muitas outras histórias que tentaram também ser
construídas e que o mundo, com suas penas, não
deixou.

Josefina voltou ao colégio no dia marcado para a


reunião seguinte com sua foto no bolso. Não sabia
como fazer. O que diria? Sentia-se, de qualquer modo,
incrivelmente leve, estranhamente outra.
Na reunião, todos estavam muito bem humorados,
apesar de não terem conseguido nada.
Contaram pouco sobre suas buscas, pareciam mais
entusiasmados com uma nova idéia que alguém trouxe-
ra: fazer um grande encontro com todos os professores,
para estudo e convivência.
Josefina novamente foi a relatora. Mas, desta vez,
olhava para o papel de modo diferente, sem a descren-
ça conhecida. Parecia-lhe que as idéias eram mais viá-
veis. Mesmo quando alguém da reunião comentou -
como ela mesma em outro tempo teria também comen-
tado - que pelo fato de tal encontro ser realizado num fi-
nal de semana, poucos do colégio iriam participar.
“Eu vou”, contrariou-a interiormente Josefina, sor-
rindo sem que os outros soubessem por quê.

Naquele dia, antes de entrar na sala de aula, pôs-se


a conversar no corredor com seus alunos. Ao ver que
um ou dois estavam com ela, outros se aproximaram.
Eram todos crianças de dez ou onze anos, na quinta sé-
rie. Josefina sorria sem parar, achando tudo tão bonito:
seus cabelos desalinhados, sua agitação, aquela vida
toda em torno dela.

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- Estás feliz, hein, professora? - brincou um dos alu-
nos, com um tom malicioso.
- Estou, sim - respondeu ela. - E sabes por quê?
- Não...
- Conta, professora!!
- É porque as provas foram boas???
Josefina riu com o palpite e contou:
- É porque gosto de ser professora, e gosto de que
sejam meus alunos.
Os alunos se entreolharam e alguns sorriram tam-
bém, meio sem entender.
- Eu estou meio boba hoje, não?
- Tá não, professora.
- A gente também gosta da senhora. - garantiu um
deles, com aprovação dos demais.
- Vai gostar mais ainda se não tiver mais prova!!! -
arriscou José Maurício, um dos mais brincalhões da tur-
ma.
- É, isso mesmo! Boa idéia! - aprovaram outros, que-
rendo dar corda na brincadeira.
- E todo mundo tirar dez!!! - novo grito, com ainda
maior apoio.
Josefina ria, achando muita graça daquela infantili-
dade ingênua, daquelas brincadeiras bobas e carinho-
sas das crianças, ela que tantas vezes chegara tão séria
naquela mesma turma, sem tempo para conversas.
Depois de entrar na sala, abriu o caderno de pro-
gramação de aulas, retomou os conteúdos que planeja-
ra para o dia. Era gramática. Nada muito adequado para
seu propósito de encontrar a Jô, pensou. Mas garantiu
a si mesma: é hoje, a partir desta mesma aula de gramá-

89
tica, que vou começar a redimir esse passado, cons-
truindo uma outra história para ser narrada.
Pegou no bolso, sem que ninguém notasse, a velha
foto amarelada, para dar mais uma pequena olhadela,
lembrando das palavras de dona Conceição. Olhou
bem nos olhos da moça do retrato e sorriu-lhe com
cumplicidade.
Naquele momento, todas as outras salas estavam
em aula.
O que Josefina não sabia é que, por uma estranha
coincidência, uma dessas ironias que só ao destino po-
dem se atribuir, naquele exato instante, todos os outros
membros do seu grupo de trabalho estavam também
retirando algo do bolso: uma foto envelhecida, um re-
corte amarelado, uma redação velha...

Nenhum deles sabia do que acontecera com os de-


mais; mas se por acaso houvesse alguém que de longe
visse a cena, certamente também se encantaria, vendo
tanta luz nos olhos daqueles mestres, e quem sabe dis-
sesse, tal como fizera dona Conceição, suspirando en-
ternecida, sorrindo carinhosamente:
- Ah, essas crianças...!

90
os pássaros

Era uma vez uma longínqua terra em que, para


educar os pássaros, decidiu-se colocá-los em gaiolas.
Mas eles recusavam-se a aprender.
Bater as asas, nada.
Cantar, muito menos.
E passavam todo o dia de aula olhando para fora
das grades, esperando a hora da saída.
Quando saíam, punham-se a voar e a cantar.
O professor não chegava a ouvir aquelas melodias
e nem a ver aqueles vôos: pensava que eles não sabiam.
E, no dia seguinte, trazia novas lições, com novos
métodos, para os passarinhos novamente engaiola-
dos.
Decidiu enfeitar toda a gaiola, para que já não pa-
recesse: muraizinhos, flores, quadro de gizes coloridos.
Tanto enfeitou o ambiente que quase não sobrava espa-
ço livre para olhar para fora. Só uma fresta, numa das

91
traves da gaiola, deixava entrever o sonhado espaço
multicolorido e arejado. Nela os pássaros se ajuntavam,
com seu olhar aflito, deliciando-se apenas quando um
resto de brisa penetrava pela fresta, surpreendendo-os
risonhamente.

Um dia, o professor resolveu sair com os alunos,


deixá-los finalmente livres por alguns instantes.
E, espantado, percebeu que imediatamente pu-
nham-se a voar, mal se abria a porta, cantando mil gor-
jeios por ele nunca imaginados. E o vôo parecia-lhe de
estranha beleza: cadenciado, equilibrado, um bater de
asas vigoroso e jovem, como numa dança.

Decidiu então abandonar a gaiola e embrenhar-se


com eles nos jardins, em meio aos bosques, na mata sel-
vagem do desconhecido.“Mostrem-me o que vocês sa-
bem”, pediu. E deixou-se encantar.

Hoje, professor e passarinhos aprendem juntos,


numa grande floresta em que podem experimentar me-
lodias novas e saltos por sobre árvores e lagos.

E juntos riem daquele tempo distante e tão estra-


nho, em que passavam em gaiolas o tempo das manhãs
ensolaradas...

92
a aula de leitura

O pedagogo escolhera cuidadosamente a lista de


livros que seriam estudados no semestre. Um clássico,
de autor renomado, verdadeiro símbolo da cultura uni-
versal. Outro, de autor nacional, que certamente seria
cobrado nos exames de admissão ao ensino superior.
Os outros dois, balanceara, direcionados meramente
para o prazer da leitura: um policial e um romance de
aventuras. Desta vez, imaginou, os alunos iriam ler. Mas
isso novamente não ocorreu.
Há tempos enfrentava um problema sério com a
leitura em suas turmas.Ao contrário do que ocorria em
sua época de estudante, quando Homero e Dante eram
autores lidos e discutidos, e chegavam a se apresentar
peças de Shakespeare nas reuniões de pais no final do
ano, os alunos de hoje não gostavam mais de ler.
Cada vez que anunciava uma leitura extra-classe,
seu ânimo decrescia. Chegava à sala entusiasmado para
falar do contexto do autor, do estilo literário que seria

93
estudado, dos valores que a crítica atribuíra ao volume
escolhido. Quando revelava o título do livro, as únicas
perguntas que a turma lhe fazia eram: “É grande?”;
“Quantas páginas tem?”. E, quando mostrava a obra,
logo tinha que conter a revolta dos mais exaltados, que
reclamavam da grossura da lombada.
Ele não entendia tal reação.“Nem é tão grande”,
argumentava. “São cento e poucas páginas...” Mas o
que para o pedagogo podia servir como atenuante
das reações negativas, acabava funcionando até ao
contrário. “Mais de cem páginas!!??”; “Não é possí-
vel!!!”;“Tenha pena de nós!!!”, continuavam as excla-
mações, transformando-se em seguida em súplicas
por uma ampliação do prazo estipulado para o térmi-
no da leitura.
“Na minha época era tão diferente”, lembrava o
pedagogo.“É claro que nem sempre nós entendíamos
tudo... Havia trechos de obras que para mim eram ver-
dadeiras incógnitas... Mas, pelo menos, líamos os maio-
res clássicos da história literária universal...”
Chamava-lhe a atenção, sobretudo, o fato de nem
sequer causarem sucesso os livros do final da lista, es-
colhidos pelos critérios do prazer e da distração.
“Como uma história policial tão interessante não anima
esses jovens?”, não cansava de se perguntar.“E o roman-
ce de ação, que eu tinha certeza de que deixaria os ra-
pazes ávidos pelo desvendar da história? Pensei que
não largariam o livro, e alguns sequer passaram dos pri-
meiros capítulos...”, desconsolava-se.
O pior era que, às vezes, quando o livro já havia
sido transformado em roteiro e adaptado para o cine-

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ma, muitos assistiam ao filme e mal abriam as páginas
da história original.
Outros, ainda, pediam que um amigo mais estudio-
so lhes contasse o enredo. Preocupados apenas com a
avaliação, pensavam que o fato de saber da trama e co-
nhecer os personagens pudesse substituir a leitura
completa do volume, as descrições do ambiente, as re-
flexões do autor.
Chegou o dia em que, completamente extenuado,
o pedagogo decidiu desistir da idéia de transformar
seus alunos em leitores de qualidade.“Não posso mais
me desgastar nem perder tempo por causa disso”, pon-
derou. “Um dia eles descobrirão a boa leitura, mas eu
nada mais posso fazer”.
Entretanto, como a avaliação de livros estava na
programação, algo devia ser pensado. Já não tinha âni-
mo para escolher os títulos mais adequados. Recusava-
se também a ler os últimos lançamentos para indicar o
melhor.
Agendou, então, uma espécie de excursão à bi-
blioteca da escola, e mais outra a um centro cultural
que ficava nas proximidades. Levou os alunos e, sem
querer mais se inquietar com nada, largou-os no
meio do amplo salão repleto de estantes e lhes dis-
se:“Aqui estamos.Agora, escolham vocês o que dese-
jam ler”.
Num primeiro momento, os alunos ficaram atôni-
tos, sem saber muito bem o que fazer. Não saíam do lu-
gar, esperando que o pedagogo lhes indicasse algo mais
- por onde procurar, a que estante se dirigir, quantos li-
vros separar, de que tipo, qual a cor da capa.

95
Mas o pedagogo nada dizia.Até que, aos poucos, os
alunos foram se movimentando, embrenhando-se no
enorme labirinto daquela sala de leitura. Retiravam li-
vros das estantes e os tomavam nas mãos. Alguns fo-
lheavam as obras, outros cheiravam as páginas amarela-
das, outros ainda buscavam na estante dos lançamentos
o fascínio dos livros novos, recém catalogados.
- Pode escolher esse aqui? - perguntou uma aluna
ao pedagogo, com um livro minúsculo nas mãos, e um
jeito maroto de quem queria se salvar das centenas de
páginas dos demais volumes.
- Pode - respondeu o pedagogo, indiferente.
- E esse aqui, professor, eu posso ficar com ele? - in-
quiriu outro aluno, trazendo uma publicação de contos
sobre robótica.
- Não perguntem se pode ou não - avisou a todos -
. Quero que a partir de agora vocês mesmos escolham,
independentemente de minha vontade.
Por alguns momentos, entretanto, o pedagogo -
que inicialmente decidira permanecer impassível - não
pôde deixar de se maravilhar com o que ocorria. Alu-
nos que normalmente se recusavam a ler pareciam
agora absortos, em meio às prateleiras, encantados
com inúmeros volumes e indecisos quanto ao que le-
variam para suas casas. Outros já haviam começado a
ler as primeiras páginas, sentados numa das mesinhas
de leitura, e alguns faziam isso mesmo de pé, com o li-
vro nas mãos, levemente reclinados sobre as estantes
de madeira.
E mais ainda se admirou quando, terminado o tem-
po destinado ao passeio, teve dificuldade para reunir a

96
todos e retornar à escola.Alguns queriam permanecer,
não haviam ainda decidido, ou queriam terminar de ver
as demais estantes. Outros perguntavam quando volta-
riam a fazer uma excursão daquelas. Todos, sem exce-
ção, carregavam um ou dois livros escolhidos.
Para a surpresa e a satisfação do pedagogo, entre as
obras que levavam não havia apenas livros finos. Aliás,
quase não havia. Os gostos eram variados: contos, ro-
mances, até novelas de cavalaria. E mesmo um ou outro
clássico chegou a passar sob seus olhos, enquanto con-
tava os estudantes na fila de saída, para conferir se esta-
vam todos.
Não houve prazo marcado para a leitura; apenas
foi combinado que todos devolvessem à biblioteca os
volumes emprestados dentro do período acertado, ou
adiassem quando necessário. E assim se fez.

Semanas depois, uma idéia não saía da cabeça do


pedagogo, apesar da decisão tão radical que já tomara.
Queria saber se algum dos alunos solicitara novo em-
préstimo.
“Não devo fazer isso”, censurava-se.“Para que fazê-
lo, se na certa irei me decepcionar?” - tentava conven-
cer-se. No entanto, aquela idéia lhe voltava, a curiosida-
de era maior.Talvez houvesse descoberto o Método.Tal-
vez houvesse chegado, intuitivamente que fosse, à me-
todologia ideal para a iniciação dos jovens na leitura.
Até que, sem poder mais resistir, foi conversar com
a bibliotecária.

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Caro leitor, tu que lês estas páginas, se és tam-
bém um pedagogo, ou se alguma vez já te perguntas-
te sobre como fazer para que os estudantes descu-
bram o gosto pela leitura, deves estar ansioso por sa-
ber os resultados da consulta.Algo cético, deves estar
desconfiado da resposta, pronto para verificar que
este conto é inverossímil, distante da realidade, caso
seja dito que aquela simples tentativa docente des-
pertou o prazer de ler.
Bem, se por acaso é assim, tens razão, não omitirei
os fatos de ti. Com efeito, ocorreu que o pedagogo sou-
be da bibliotecária que apenas quatro estudantes, dos
trinta e cinco que levara, haviam retornado para retirar
novos volumes.
Mas eram quatro alunos que, segundo sabia, até en-
tão não haviam lido quase nada além das obras solicita-
das em sala de aula.

O que sei da história termina aqui. Desconheço in-


clusive qual foi a lição que o pedagogo retirou daquele
episódio.
Em todo caso, tu e eu, caro leitor, podemos arris-
car algum palpite. Eu, pessoalmente, creio que o peda-
gogo deve ter concluído que não havia receitas para
ensinar a ler, nem para cativar para a leitura. Podia ha-
ver, sim, formas diferentes para cada um. E um dos pa-
péis do pedagogo, ou do orientador de estudos, ou do
educador, como quisermos chamar, será sempre tentar
descobrir quais são as formas que podem despertar
esse desejo em cada indivíduo. Os jovens estão ainda
se aproximando da própria vida; a escola tem o gran-

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de e sublime papel de fazer com que venham a se fas-
cinar com as coisas.

Falo-te sobre isto, caro leitor, porque imagino que


tu já deves ter experimentado o sentir-te deliciado com
um romance a ponto de desejar que as páginas não pas-
sassem tão rapidamente, e que a história continuasse
um pouco mais.Acaso já viveste a experiência de deter-
te numa mesma página um, dois, ou mesmo vários dias,
sem que te voltasse a intenção de continuar, mas sen-
tindo os dizeres de certos trechos presentes em teu
próprio pensamento, voltando ao longo de teu dia de
maneira cíclica? Já ficaste até a mais avançada madruga-
da acordado, sem poder fechar o livro apesar de teres
que acordar bem cedo na manhã seguinte, sem poder
parar de ler antes de desvendares os enigmas que o au-
tor escondeu de ti secretamente?
Se já passaste por alguma dessas situações, ami-
go leitor, estamos irmanados no grande universo dos
homens e mulheres que amam a leitura porque, de al-
gum modo, deixaram-se capturar por ela, por seu en-
cantamento que nos transporta, por um instante, des-
te mundo. Imagino, então, que concordas também
com a idéia de que cada um terá sempre a sua pró-
pria trajetória de leitura e a sua própria experiência
de leitor.
Sem ir mais longe, conta-me de ti, leitor, como foi
que começaste a ler? Aprendeste a aproximar-te do li-
vro como um pesquisador que busca, entre pedras e
vestígios antigos, alguma marca que venha a fascinar-te,
que te fale de costumes distantes, que conte sobre ho-

99
mens e culturas que passam a fazer parte também de
tua vida e de tua cultura?
Percebeste, acaso, que não há tempo para o livro?
Seja qual for a época da publicação, uma vez escrita, a
obra já não mais pertence nem ao autor, nem a seu tem-
po, transformando-se numa possibilidade de encontro
entre os homens de todas as épocas e de todas as cultu-
ras. Ou acaso, quando lês, não ouves as vozes de autores
que jamais te viram, e no entanto escreveram para ti?
Penso muito nisso porque eu já fui como aquele
pedagogo de que te falava ainda há pouco, e pude cons-
tatar também, nos encantos e desencantos das muitas
salas de aula por onde andei, que nosso papel será tão
bem cumprido quanto mais formos capazes de instigar,
de questionar, de apresentar o desconhecido, sem su-
por que seja exatamente naquele momento que o alu-
no deverá se aproximar do novo.
Mas, assim como pode ter ocorrido com o pedago-
go de que te falei, algumas idéias me ficaram muito cla-
ras: primeiro, que não se desperta o gosto pela leitura
obrigando a ler. Segundo, que seria ideal se cada um pu-
desse escolher a sua própria leitura, mesmo que para
isso o professor não precisasse ser tão radical como foi
nosso protagonista, e se dispusesse a prestar certas
orientações sobre autores, ou épocas, ou períodos lite-
rários e seus contextos.Terceiro, que a leitura tem seu
próprio tempo, e é pouco natural estabelecer prazos
iguais para todas as pessoas.

Bem vês, apenas disso pude dar-me conta, nestes


anos de sala de aula. Que conclusões mais simples... E,

100
no entanto, talvez te surpreendesses, leitor amigo, se te
contasse que nem todos assim pensam, e que muitos jo-
vens ainda hoje são obrigados a ler na escola o que não
querem, que os prazos já lhes vêm estipulados, e que in-
clusive suas leituras são por outros definidas...

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Sobre o livro

Formato: 14x21cm
Mancha: 16.5x34 paicas
Tipologia: Garamond Book (texto)
Gill Sans (encabeçamento)

Equipe de realização

Assistente de Produção Gráfica


Luzia Bianchi

Revisão
José Romão
Sérgio F.Torres de Freitas

Projeto Gráfico
Cássia Letícia Carrara Domiciano

Criação da Capa
Marcos Horta

Diagramação
Osmarina Lucinéia Buzzola Ambrósio
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