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A MADEIRA
E A HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO NO OCIDENTE
ALBERTO VIEIRA
1. O ENTORNO
A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação
em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois,
utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago
foi o centro de irradiação dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo
atlântico: os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os
portugueses aportaram. A par disso a ilha foi, nos alvores do século XV, a primeira
experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas
institucionais. Tudo isto foi depois utilizado em larga escala noutras ilhas e no litoral
africano e americano. O arquipélago foi o centro de divergência dos sustentáculos da
nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais
arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. Madeira não se
posiciona apenas nos anais da História universal como a primeira área de ocupação
atlântica, pioneira na cultura e divulgação do açúcar ao Novo Mundo.
A área definida pela Península Ibérica, Canárias e Açores foi o principal foco de
intervenção do corso europeu sobre os navios que transportavam açúcar ou pastel ao
velho continente. Por outro lado o protagonismo das ilhas não se fica só pelos séculos
XV e XVI, pois as navegações e explorações oceânicas nos séculos XVIII e XIX
levaram-nas a assumir uma nova função para os europeus. De primeiras terras
descobertas passaram a campos de experimentação e escalas retemperadoras da
navegação na rota de ida e regresso. Finalmente, no século XVIII desvendou-se uma
nova vocação: as ilhas como campo de ensaio das técnicas de experimentação e
observação directa da natureza. A afirmação da Ciência na Europa fez delas escala para
as constantes expedições científicas dos europeus. O enciclopedismo e as classificações
de Linneo (1735) tiveram nas ilhas um bom campo de experimentação. Tenha-se em
conta as campanhas da Linnean Society e o facto de o próprio presidente da sociedade,
Charles Lyall, ter-se deslocado em 1838 de propósito às Canárias. De entre as culturas
que a Europa deu ao mundo atlântico aquelas que assumiram maior valor económico e
condicionaram a História dos espaços onde foram lançadas merecem destaque a vinha, a
cana sacarina e o pastel.
Uma das funções privilegiadas das ilhas nos últimos quinhentos anos foi o serviço de
escala oceânica, servindo de apoio a todos os que sulcavam o oceano em distintos
sentidos. Primeiro escalas de descobrimento que abriram os caminhos para as rotas
comerciais e depois escalas do percurso de afirmação da Ciência através das expedições
científicas que dominaram os areópagos europeus a partir do século XVIII. Umas e
outras entrecruzam-se por diversas vezes e revelam-nos quão importante foi para a
Europa o mundo das ilhas.
O Atlântico surge, a partir do século XV, como o principal espaço de circulação dos
veleiros, pelo que se definiu um intricado liame de rotas de navegação e comércio que
ligavam o velho continente às costas africana e americana e as ilhas. Esta multiplicidade
de rotas que resultou da complementaridade económica das áreas insulares e
continentais surge como consequência das formas de aproveitamento económico aí
adoptadas. Tudo isto completa-se com as condições geofísicas do oceano, definidas
pelas correntes e ventos que delinearam o traçado das rotas e os rumos das viagens.
A mais importante e duradoura de todas as rotas foi sem dúvida aquela que ligava as
Índias (ocidentais e orientais) ao velho continente. Foi ela que galvanizou o empenho
dos monarcas, populações ribeirinhas e acima de tudo os piratas e corsários, sendo
expressa por múltiplas escalas apoiadas nas ilhas que polvilhavam as costas ocidentais e
orientais do mar: primeiro as Canárias e raramente a Madeira, depois Cabo Verde, Santa
Helena e os Açores. Nos três arquipélagos, definidos como Mediterrâneo Atlântico, a
intervenção nas grandes rotas faz-se a partir de algumas ilhas, sendo de referir a
Madeira, Gran Canaria, La Palma, La Gomera, Tenerife, Lanzarote e Hierro, Santiago,
Flores e Corvo, Terceira e S. Miguel. Para cada arquipélago afirmou-se uma ilha,
servida por um bom porto de mar como o principal eixo de actividade. No mundo
insular português, por exemplo, evidenciaram-se, de forma diversa, as ilhas da Madeira,
Santiago e Terceira como os principais eixos.
3
. Victor Morales Lezcano, Los Ingleses en Canarias. Libro de Viajes e Historias de Vida, Las Palmas de Gran Canaria, 1986, p.124
4
. Mary L. Pratt, Imperial Eye.Travel Writing and Transculturation, N.Y., 1993; STAFFORD, B. M., Voyage into Substance - Science, Nature and the
Illustrated Travel Account 1770-1840, Cambridge, Mass., 1984, pp. 565-634
5
. Estampas, Aguarelas e desenhos da Madeira Romântica, Funchal, 1988.
6
. Francisco Morales Padron, Ordenanzas del Concejo de Gran Canaria(1531), Las Palmas, 1974; José Peraza de Ayala, Las Ordenanzas de Tenerife, Madrid,
solução estava no recurso às demais ilhas, nomeadamente Tenerife e La Palma. Mas
mesmo nestas começaram a fazer-se a sentir as mesmas dificuldades. Nos Açores o
facto de a cultura da cana não alcançar o mesmo sucesso da Madeira e Canárias salvou
o espaço florestal deste efeito predador.
O homem do século XVIII perdeu o medo ao meio circundante e passou a olhá-lo com
maior curiosidade e, como dono da criação, estava-lhe atribuída a missão de perscrutar
os segredos ocultos. É este impulso que justifica todo o afã científico que explode na
centúria. A ciência é então baseada na observação directa e experimentação. A
insaciável procura e descoberta da natureza circundante cativou toda a Europa, mas
foram os ingleses quem entre nós marcaram presença, sendo menor a de franceses e
alemães 7 . Aqui são protagonistas as Canárias e a Madeira. Tudo isto é resultado da
função de escala à navegação e comércio no Atlântico. Foi também na Madeira que os
ingleses estabeleceram a base para a guerra de corso no Atlântico. Se as embarcações de
comércio, as expedições militares tinham escala obrigatória, mais razões assistiam às
científicas para a paragem obrigatória. As ilhas, pelo endemismo que as caracteriza,
história geo-botânica, permitiram o primeiro ensaio das técnicas de pesquisa a seguir
noutras longínquas paragens. Também elas foram um meio revelador da incessante
busca do conhecimento da Geologia e Botânica.
1976; Pedro Cullen del Castilho, Libro Rojo de Gran Canaria o Gran Libro de Provisiones y Reales Cédulas, Las Palmas, 1974. Alfredo Herrera Piqué, La
Destrucción de los Bosques de Gran Canaria a comienzos del siglo XVI, in Aguayro, n1.92, 1977, pp.7-10; James J. Pearsons, Human Influences on the Pine
and Laurel Forests of the Canary Islands, in Geographical Review, LXXI, n13, 1981, pp.253-271.
7
Cf. "Algumas das Figuras Ilustres Estrangeiras que Visitaram a Madeira", in Revista Portuguesa, 72, 1953; A. Lopes de Oliveira, Arquipélago da Madeira.
Epopeia Humana, Braga, 1969, pp. 132-134.
americanos as ilhas eram a primeira escala de descoberta do velho mundo. Por outro
lado os Açores despertaram a curiosidade das instituições e cientistas europeus. Os
aspectos geológicos, nomeadamente os fenómenos vulcânicos foram o principal alvo de
atenção. Mesmo assim o volume de estudos não atingiu a dimensão dos referentes à
Madeira e Canárias pelo que Maurício Senbert em 1838 foi levado a afirmar que a
"flora destas ilhas [fora]por tanto tempo despresada", o que o levou a dedicar-se ao
estudo 8 .
A aclimatação das plantas com valor económico, medicinal ou ornamental adquiriu cada
vez mais importância. Aliás, foi fundamentalmente o interesse medicinal que provocou
desde o século XVII o desusado empenho pelo estudo 12 . Assim em 1757 o inglês
Ricardo Carlos Smith fundou no Funchal um dos jardins onde reuniu várias espécies
com valor comercial. Já em 1797 Domingos Vandelli (1735-1816) e João Francisco de
8
. "Flora Azorica", in Archivo dos Açores, XIV(1983), pp.326-339.
9
.Las islas Canarias, Escala Científica en el Atlántico Viajeros y Naturalistas en el siglo XVIII, Madrid, 1987.
10
. Richard Grove, Ecology, climate and Empire. Studies in colonial enviromental. History 1400-1940, Cambridge, 1997, p. 46; J. Prest, The Garden of Eden:
The Botanic Garden and the Re-creation of Paradise, New Haven, 1981.
11
Raymond R. Stearns, Science in the British Colonies of America, Urban, 1970
12
K. Thomas, Man and the Natural World. Changing attitudes in England. 1500-1800, Oxford, 1983, p. 27, 65-67.
Oliveira no estudo sobre a flora apresentou no ano imediato um projecto para um
viveiro de plantas. O viveiro foi criado no Monte e manteve-se até 1828. O naturalista
francês, Jean Joseph d'Orquigny, que em 1789 se fixou no Funchal foi o mentor da
criação da Sociedade Patriótica, Económica, de Comércio, Agricultura Ciências e Artes.
Também na ilha de Tenerife, em Puerto de La Cruz, Alonso de Nava y Grimón criou em
1791 um jardim de Aclimatação de Plantas.
Nos Açores foi evidente a aposta nos jardins de aclimatação. Um dos principais
empreendedores foi José do Canto que desde meados do século XIX criou diversos
viveiros de plantas de diversas espécies que adquiriu em todo o mundo. Na década de
setenta as suas propriedades enchiam-se de criptomérias, pinheiros, eucaliptos e
acácias 17 . Tenha-se em conta os contactos com as sociedades científicas e de
aclimatação francesas, as visitas aos mais considerados jardins europeus. Tudo isto
permitiu que o mesmo e alguns dos compatriotas micaelenses transformassem a
paisagem da ilha em densos arvoredos e paradisíacos jardins de flora exótica. A José do
Canto podemos juntar António Borges que em 1850 lançou o parque das Sete Cidades e
oito anos após o jardim de Ponta Delgada que ostenta o nome. Outro entusiasta da
natureza foi José Jácome Correia que nos legou o jardim de Santana. Tenha-se em
consideração o facto de António Borges ter permanecido desde 1861 oito anos em
Coimbra onde trabalhou no Jardim Botânico e manteve contactos estreitos com a
universidade, mercê do apoio do patrício Carlos M. G. Machado. Daqui resultou uma
estreita cooperação como envio à ilha de Edmond Goeze 18 com a finalidade de recolher
espécies arbóreas para a estufa do jardim coimbrão. Já nas Canárias a preocupação
fundamental foi a política de florestação. Para isso contribuíram a partir do séc.XVIII as
Sociedades Económicas de los Amigos del Pais em Gran Canaria (1777),
Tenerife(1776) e La Palma. Das actas da de Las Palmas rapidamente se extrai a
preocupação e aposta na política de reflorestação 19 . Os Jardins botânicos surgem aqui a
13
. Cf. Ebarhard Axel Wilhelm, "Visitantes de língua Alemã na Madeira(1815-1915)", in Islenha, 6, 1990, pp.48-67.
14
. "um Jardim de Aclimatação na ilha da Madeira", in Das Artes e da História da Madeira, n1. 2, 1950, pp.15-16
15
César A. Pestana, A Madeira Cultura e Paisagem, Funchal, 1985, p.65
16
Cf Boletim da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, Abril de 1960; Rui Vieira, "Sobre o 'Jardim Botânico' da Madeira ", in Atlântico, 2, 1985,
pp.101-109.
17
. Fernando Aires de Medeiros Sousa, José do Canto. Subsídios para a História micaelense (1820-1898), Ponta Delgada, 1982, pp.78-113
18
. A Ilha de S. Miguel e o Jardim Botânico de Coimbra, in O Instituto, 1867, pp.3-61.
19
. Jose de Viera y Clavijo, Extracto de las Actas de la Real Sociedad Económica de amigos del Pais de las Palmas(1777-1780), Las Palmas de Gran Canaria,
1981.
partir da década de quarenta do nosso século: em 1943 o de Puerto de La Cruz em
Tenerife e em 1953 o de Viera y Calvijo em Gran Canaria.
20
. A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.173, 178
21
. Peter J. Bowler, Fontana History of environmental Sciences. N. Y., 1993.,p.111.
22
. Cf. K. Thomas, ibidem, pp.207-209, 210-260
23 . James Clark, The Sanative Influence of Climate, Londres, 1840; W. Huggard, A Handbook of Climatic Treatment, Londres, 1906; Nicolás González Lemus, Las Islas de la Ilusión. Británicos en Tenerife 1850-1900, Las Palmas, 1995; Zerolo, Tomás,
Climatoterapia de la Tuberculosis Pulmonar en la Península Española, Islas Baleares Y Canarias, Santa Cruz de Tenerife, 1889. O debate sobre o tema provocou a publicação de inúmeros estudos a favor e contra. Cf. Bibliografia textos de S. Benjamin (1870),
John Driver (1850), W. Gourlay (1811), M. Grabham (1870), R. White (1825).
24 . M. J. Báguerra Cervellera, La Tuberculosis y su História, Barcelona, 1992.
25 .António Ribeiro Marques da Silva. Apontamentos sobre o Quotidiano Madeirense (1750-1900), Lisboa, 1994, N. González Lemus, Viajeros Victorianos en Canarias, Las Palmas, 1998.
26 Journal of a visit to Madeira and Portugal (1853-1954), Funchal, 1970. Todavia, a primeira viajante na ilha foi Maria Riddel que em 1788 visitou a ilha durante 11 dias: A Voyage to The Madeira..., Edinburgh, 1792.
Stone 27 para as Canárias. O turista ao invés é pouco andarilho, preferindo a bonomia
das quintas, e egoísta guardando para si todas as impressões da viagem. O testemunho
da presença é documentado apenas pelos registos de entrada dos vapores na alfândega,
das notícias dos jornais diárias e dos "títulos de residência" 28 , pois o mais transformou-
se em pó.
A Madeira firmou-se a partir da segunda metade do século dezoito como estância para o
turismo terapêutico, mercê das qualidades profiláticas do clima na cura da tuberculose,
o que cativou a atenção de novos forasteiros 40 . Aliás, a ilha foi considerada por alguns
como a primeira e principal estância de cura e convalescença da Europa 41 . No período
de 1834 a 1852 a média anual de Invalid's oscilava entre os 300 e 400, maioritariamente
ingleses. Em 1859 construiu-se o primeiro sanatório. O último investimento foi dos
alemães que em 1903 através do príncipe Frederik Charles de Hohenlohe Oehringen
constituiu a Companhia dos Sanatórios da Madeira. Da polémica iniciativa resultou
apenas o imóvel do actual Hospital dos Marmeleiros 42 .
Não temos dados seguros quanto ao desenvolvimento da hotelaria nas ilhas, pois os
dados disponíveis são avulsos43. Os Hotéis são referenciados em meados do século
XIX mas desde os inícios do século XV que as cidades portuárias de activo movimento
27 .Teneriffe and its six Satellites(1887)
28 . Na Madeira as autorizações de residência estão registadas para os anos de 1869 a 1879 e 1922 a 1937.
29 . A Guide to Madeira Containing a Short Account of Funchal, Londres, 1801.
30 . Madeira its Climate and Scenery containing Medical and General Information for Invalids and Visitors; a tour of the Island, Londres, 1825.
31 . A Sketch of Madeira Containing Information for the Traveller or Invalid Visitor, Londres, 1851.
32 Madeira its Climate and Scenery. A Handbook for Invalids and other Visitors, Edinburg, 20ed., 1857, 30ed., 1860.
33 .Madeira its Scenery and How to See it with Letters of a Year's Residence and Lists of the Trees, Flowers, Ferns, and Seaweeds, Londres, 10ed., 1882, 20 ed., 1889.
34 . The Invalid's Guide To Madeira With a Description of Tenerife..., Londres, 1840.
35 . Madeira and the Canary Islands.
36. Madeira Its Climate and Scenery. A Handbook for Invalid and Other Visitors, Edimburgo, 1851.
37 . Madeira and the Canary islands. A Handbook for Tourists, Liverpool, 1887.
38 . Tourist´s Guide to the Island of Madeira, Londres, 1914.
39 . C. A. Gordon, The Island of Madeira for the Invalid and Naturalis- "the Flower of the Ocean. The Island of Madeira: A Resort for the Invalid; a Field for the Naturalist, Londres, 1896.
40 . As mais antigas referências a esta situação surgem em 1751 em texto de Thomas Heberden em Philosophal Transactions, sendo corroborado pelo Dr. Fothergill em On Consuption Medical Observation (1775). Veja-se ainda J. Adams, Guide to Madeira
with an Account of the Climate, Londres, 1801; W. Gourlay, Observations on the Natural History, Climate and Desease of Madeira During of Period os Sixteen Years, Londres, 1811.
41 . Hugo C. de Lacerda Castelo Branco, Le Climat de Madère. Ébauche d'une étude Comparative:Le Meilleur Climat du Monde: Station Fixe et la Plus Belle d'Hiver, Funchal, 1936.
42 . Nelson Veríssimo, A questão dos Sanatórios da Madeira, in Islenha, 6, 1990, 124-144; Desmond Gregory, The Beneficient Usurpers: A History of the British in Madeira, Londres, 1988, pp.112-124; F. A. Silva, Sanatórios da Madeira, in Elucidário
Madeirense, 10 ed. 1921-22.
43 . Apenas a partir de 1891 temos o Registo de Licenças de Botequins, tabernas, Hoteis, Estalagens, Clubes e Lotaria(1891-1901). Cf. Fátima Freitas Gomes, Hotéis e Hospedarias (1891-1901), in Atlântico, n1.19, 1989, 170-177.
de forasteiro deveriam possuir estalagens. A documentação oficial faz eco desta
realidade como se poderá provar pelas posturas e actas da vereação dos municípios
servidos de portos. No caso da Madeira assinala-se em 1850 a existência de dois hotéis
(the London Hotel e Yate's Hotel Family) a que se juntaram outros dez em 1889 44 . Em
princípios do século XX a capacidade hoteleira havia aumentado, sendo doze os hotéis
em funcionamento que poderiam hospedar cerca de oitocentos visitantes 45 . A
preocupação destes visitantes em conhecer o interior, nomeadamente a encosta norte
levou ao lançamento de uma rede de estalagens que tem expressão visível em S.
Vicente, Rabaçal, Boaventura, Seixal, Santana e Santa Cruz 46 . Tenha-se ainda em conta
um conjunto de melhoramentos que tiveram lugar no Funchal para usufruto dos
forasteiros. Assim, desde 1848 com José Silvestre Ribeiro temos o delinear de um
moderno sistema viário, a que se juntaram novos meios de locomoção: em 1891 o
Comboio do Monte, em 1896 o Carro Americano e finalmente o automóvel em 1904.
Nos Açores o turismo teve um aparecimento mais recente. Não obstante Bullar (1841)
referir a presença de doentes americanos na Horta foi reduzido o movimento no
arquipélago. Todavia, isto conduziu ao aparecimento do primeiro hotel conhecido no
Faial, em 1842. Em 1860 chegou o primeiro grupo de visitantes norte-americanos, mas
só a partir de 1894 ficaram conhecidos como tourists 51 .
A partir de finais do século XIX o turismo dava os primeiros passos. Foi como corolário
disso que se estabeleceram as primeiras infra-estruturas hoteleiras e que o turismo
passou a ser uma actividade organizada e com uma função relevante na economia. E
mais uma vez o inglês é o protagonista. Este momento de afluência de estrangeiros
coincide ainda com a época de euforia da Ciência nas Academias e Universidades
44 . Isto de acordo com as informações de J. Driver (Guide to Visitors, Londres, 1850) e C. A. Mourão Pita (Madère, Station Mèdicale Fixe, Paris, 1889).
45 . Marquês de Jácome Correia, A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.232
46 . Para S. Vicente veja-se nossos estudos sobre "Retratos de Viajantes e Escritores", Boletim Municipal. São Vicente, n1.3, 1995,pp.3-7; "O Norte na História da Madeira", in Boletim Municipal. São Vicente, n1.8, 1996,pp.7-15
47 . W. Cooper, The Invalid's Guide to Madeira with a Description of Tenerife, Londres, 1840; M Douglas, Grand Canary as a heatlth Resort for Consummptives and Others, London, 1887; John Whiteford, The Canary Islands as a Winter Resort, Londres,
1890; George Victor Pérez, Orotava as a Health Resort, Londres, 1893.
48 . Note-se que em 1861 Richard F. Burton (Viajes a las Islas Canarias I. 1861, Puerto de La Cruz, 1999, p.26) que na sua viagem todos os tuberculosos ficaram na Madeira.
49 .A. Hernández Gutiérrez, De la Quinta Roja al Hotel Taoro, Puerto de La Cruz, 1983; IDEM, Cuando los Hoteles eran Palacios, Islas Canarias, 1990; A.Guimera Ravina, EL Hotel Marquesa, Puerto de la Cruz, 1988; IDEM, El Hotel Taoro, 1890-
1990.Cien Años de Turismo en Tenerife, Santa Cruz de Tenerife, 1991.
50 . Madeirenses e açorianos cedo se aperceberam desta realidade culpando as autoridades de Lisboa. Vide: João Augusto d'Ornellas, A Madeira e as Canárias, Funchal, 1884; João Sauvaire de Vasconcelos, Representação da Câmmara Municipal da Cidade
do Funchal ao Governo de S. M. sobre Diversas Medidas Tendentes a Conservar e Arruinar a Navegação de passagem neste Porto dos Paquetes Transatlânticos, Funchal, 1884; Visconde Valle Paraizo, Propostas Apresentadas pela Commissão Nomeada em
Assembleia da Associação Commercial do Funchal de 14 de Novembro de 1894 para Estudar as Causas do Desvio da Navegação do Nosso Porto e do Afastamento de Forasteiros, Funchal, 1895; Maria Isabel João, Os Açores no século XIX, Economia,
Sociedade e Movimento Autonomista, Lisboa, 1991.
51. Ricardo Manuel Madruga da Costa, Açores, Western Islands. Um Contributo para o Estudo do Turismo nos Açores, Horta, 1989.
europeias. Desde finais do século XVII as expedições científicas tornaram-se comuns e
a Madeira (Funchal) ou Tenerife (Santa Cruz de Tenerife e Puerto de La Cruz) foram
portos de escala, para ingleses, franceses e alemãs.
Por muito tempo alguns produtos foram identificados com determinadas regiões. A
maça apela-nos à grande metrópole de Nova York, enquanto o ananás nos recria as
paradisíacas ilhas do Havai. Mas tudo terá mudado a partir do século XVIII. A
alimentação progrediu e as ementas universalizaram-se. Os produtos perderam o selo de
identidade de origem e entraram definitivamente no quotidiano. A mesa do mundo
ocidental é igual. As divergências e exoticidade sucedem como resultado do confronto
com outras culturas, como o mundo árabe e as regiões orientais.
A Madeira está situada numa posição estratégica fundamental para acolher as rotas de
migração de plantas e produtos. No século XV foi a ilha que promoveu a expansão das
culturas europeias no mundo atlântico. E de novo a partir do século XVI a descoberta de
novos produtos e frutos com valor alimentar levou a que a ilha servisse de entreposto de
expansão dos mesmos no velho continente. Tudo isto acontece porque a ilha continua a
ser uma área charneira entre os dois mundos e dispunha de uma variedade de
microclimas propícios à fixação de novas plantas e sementes. Aliás, a singular condição
levou a que nos séculos XVIII e XIX a ilha se transformasse num viveiro de
aclimatação de plantas. Dos inúmeros produtos que chegaram às ilhas dois há que se
afirmaram rapidamente na dieta alimentar. São eles a batata, o inhame e o milho, que no
decurso da segunda metade do século dezanove destronaram rapidamente a hegemonia
dos cereais na dieta alimentar. Em princípios do século XX é ainda visível a expansão
dos produtos hortícolas e dos tubérculos em desfavor dos cereais. Em 1908 a produção
média por hectare era de 15.000 quilos, dando a ilha vinte e cinco toneladas.
A batata é originária do Andes mas foi a Irlanda o principal centro difusor do tubérculo
na Europa. A presença na Madeira está documentada a partir de 1760, mas a
generalização só aconteceu em princípios do século XIX. A batata-doce, também
oriunda da América do sul aparece na Madeira no século XVII, sendo referenciada na
década de setenta do século XVIII como o principal sustento do camponês. Já a batata,
dita semilha para o madeirense, só se generalizou no consumo desde 1845 com a
introdução de uma nova variedade de Demerara. Em 1842 o míldio atacou a batata
irlandesa, provocando uma das maiores mortandades na população da ilha. O mais
evidente é que a situação teve eco noutros espaços europeus, como foi o caso da
Madeira em 1846 e 1847. Tendo em conta que havia adquirido um lugar dominante na
alimentação é fácil de adivinhar as dificuldades daqui resultantes. O próprio
governador, José Silvestre Ribeiro, testemunha a situação refere em 1847 que a batata
era “de há longos anos o alimento principal dos camponeses, e quando as colheitas
eram abundantes, viviam sofrivelmente” isto, porque além deste produto só tinham para
comer “algum inhame e pouco milho”
A crise da batata conduzirá inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a
plena afirmação do milho O Milho, na dieta popular. Sob a forma de pão ou de farinha,
transformou-se rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso
século. O milho introduzido cedo conquistou a mesa do madeirense, tornando-se, de
parceria com a batata, no sustento preferencial dos madeirenses. Em 1847 a ilha
produzia apenas vinte moios, tendo necessidade de importar o restante. Em 1841 a ilha
importava 9000 moios de milho e 8000 de trigo, passando em 1852 para cerca de
10.000 de milho e 5500 de trigo. Já nas décadas de setenta e oitenta o milho era a base
da alimentação das populações mais pobres. Em Câmara de Lobos já em princípios do
século o milho dominava a dieta alimentar.
Por diversas vezes a imprensa do tempo de guerra refere-nos que o milho era o principal
alimento do povo. E quase todo ele era importado do estrangeiro, ou das colónias: a ilha
produzia uma ínfima parte daquilo que consumia. O milho era servido de diversas
formas na mesa rural madeirense: papas de milho, milho escaldado e estroçoado. Com a
farinha faziam-se as papas de milho e com o milho pilado com que faziam um caldo
com cebo de carneiro ou boi, ou então umas papas com leite. No “Diário de Noticias”
de 4 de Setembro de 1941 dizia-se: - “o milho é, há muitos anos, um elemento
fundamental da alimentação das nossas classes menos remediadas. Barato, de fácil
preparação e de forte poder alimentar, nenhum produto da terra o pode substituir ou
sequer igualar”. Dai, deverá ter resultado a expressão popular: “Vai-se ganhando para
o milhinho...”.0 milho era o alimento das classes pobres e a ausência atingia
principalmente estes, por isso o articulista do D.N. apelava em Agosto de 1943 às
classes mais abastadas, que lhe reservassem este privilégio: - “O milho é o alimento das
classes pobres, das classes populares (...) o milho, repetimos, é o alimento dos pobres:
assim aqueles que o podem dispensar, deixem-no aos pobres -porque para as almas
bem formadas, deve constituir amargura, provocar, impensadamente, as faltas de
alimentação nos lares onde o dinheiro não abunda”. Mais tarde, no Inverno de 1945 em
face de novas dificuldades as páginas do mesmo jornal abriram-se para expressar o grito
plangente ecoado por todos os madeirenses em surdina. O Racionamento de 1 kg
semanal por cabeça propiciou o seguinte comentário: -“Não era bastante para as
necessidades duma população que tinha afeito a sua economia doméstica ao consumo
quase diário daquele produto.., numa terra onde o milho se podia chamar o pão-nosso de
cada dia.”
A Madeira tinha necessidade de importar anualmente 13.000 toneladas. Todavia em
1941 ainda eram grandes as reservas de cereal e a frequência de embarcações. Os
problemas de abastecimento só começaram a surgir no Outono de 1943, mas já no
anterior começou o racionamento e distribuição do milho. Mas aqui, mercê da iniciativa
da Comissão Regulador do Comércio de Cereais, a situação não foi tão gravosa como
havia sucedido no decurso da primeira guerra. A política de intervencionismo
económico definida por Salazar levou à criação em 1954 do Grémio do milho colonial
português e em 1938 surgiu a delegação madeirense da Junta de Exportação dos
Cereais, que passou a coordenar todo o processo de abastecimento e fixação de preços
do grão e farinha. Foi responsável Ramon Honorato Rodrigues, que em 1962, no
momento de extinção, publicou uma memória sobre os serviços prestados pela junta que
presidiu. Por ai se ficou a saber das dificuldades sentidas nos anos da guerra e da acção
da Junta e Governador Civil para solucionar a situação por meio do racionamento do
milho e da solicitação de carregamento à ordem do governo. Para termos uma ideia das
dificuldades sentidas basta-nos aludir à capitação estabelecida pelo racionamento e
relacioná-la com a média anterior à guerra: entre 1937-39 ela foi de 123 kg/ano,
enquanto de 1942-44 passou para apenas 80 kg. Mas houve anos em que a situação se
agravou: por exemplo em Março e Abril de 1945 a ração semanal por cabeça era de
apenas 550 gramas de milho. A partir de 1941 o racionamento foi determinado por
concelho de acordo com o número de cabeças de casal, variando o quantitativo
conforme os stocks disponíveis.
À SOBREMESA: DOCES E FRUTOS. Parte significativa do açúcar produzido na ilha,
e mais tarde importado do Brasil, era usado no fabrico de conservas e de doçaria. São
vários os testamentos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico dos
produtos. Tal como se deduz de um documento de 1469 o fabrico de conservas era
indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava
"mulheres de boas pessoas e muitos pobres que lavraram os açucares baixos em tantas
maneiras de conservas e alfenim e confeitos de que têm grandes proveitos que dão
remédio a suas vidas e dão grande nome a terra nas partes onde vão...". Os livros do
quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispêndio que dele se fazia no fabrico
de conservas, frutas seca e marmelada. Nisso gastaram-se cerca de quatrocentas arrobas
de açúcar de vários tipos, sendo na maioria para consumo dos proprietários do referido
açúcar.
A fama da arte da confeitaria madeirense espalhou-se por toda a Europa e teve o
expoente máximo na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa.
Segundo Gaspar Frutuoso compunha-se de "muitos mimos e brincos da ilha de
conservas, e o sacro palácio todo feito de açúcar, e os cardiais todos feitos de alfenim,
dornados a partes, o que lhes dava muita graça, e feitos de estatura de hum homem".
São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes
produtos. Segundo Hans Sloane em 1687 o madeirense produzia "açúcar indispensável
aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos
depois John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos ou cidra que se
exportavam para a França e Holanda. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol,
Ribeira Brava, Machico e Câmara de Lobos (Ribeira dos Socorridos), quase
desaparecendo em finais do século XVIII e arrastando inevitavelmente a indústria para
o fim.
Um dos factores de promoção desta indústria ao nível das conservas foi a importância
assumida pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a navegação
atlântica. Muitas embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de
conservas de citrinos para a dieta de bordo. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial
das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real portuguesa. D. Manuel foi o
consumidor preferencial e aquele que divulgou as qualidades na Europa. Assim, ficaram
como o principal presente, dentro e fora do reino, sendo o exemplo seguido por Vasco
da Gama, que também ofertou o xeque de Moçambique com conservas da ilha. No
período de 1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129 arrobas e 58 barris de açúcar em
conservas e frutas secas. A par disso o rei havia estabelecido a partir de 1520 o envio
anual de 10 arrobas de conserva para o feitor de Flandres. A indústria manteve-se por
todo o século XVII, suportada com o pouco açúcar da produção local ou com as
importações dele do Brasil. No último caso sabe-se que em 1680 foram importadas
2.575 arrobas para o fabrico de casca. Aliás, de acordo com uma informação dada ao
governador da ilha, D. António Jorge de Melo referia-se que "é a casquinha negócio
muito grande porque há ano que se carregam com aquela terra mais de 20
embarcações de um só doce para o qual é necessário comprar açúcar da terra ou
manda-lo vir do Brasil". A correspondência de William Bolton refere que a conserva de
citrinos estava em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo
usada para o abastecimento das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas
para Lisboa, Holanda e França.
O fabrico do açúcar começava em Março mas só em Agosto havia dele disponível para
distribuir às conserveiras que fabricavam a casca e conserva. A partir daqui eram mais
trinta dias de árdua tarefa até que o produto estivesse disponível para a exportação. Da
existência ou não de açúcar, da sua qualidade dependia a disponibilidade para o fabrico
destes derivados, que activavam o comércio com as praças do Norte da Europa, donde
nos províamos de cereais e manufacturas. Estamos perante uma indústria muito instável,
dependendo das possibilidades de oferta de açúcar brasileiro e da procura do produto
acabado pelos mercadores europeus. A correspondência particular de alguns
mercadores, como é o caso de Diogo Fernandes Branco e W. Bolton, testemunha de
forma evidente esta realidade. Diz o último em 7 de Agosto de 1697: "Pensou-se fazer
uma grande quantidade de conserva de citrinos mas muitos fabricantes desistiram por
não saberem se os barcos os viriam buscar".
3. A MESA DO MADEIRENSE
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