Você está na página 1de 2

Naquela manhã acabou "o terror habitual"

Por Maria João Guimarães

http://jornal.publico.clix.pt/noticia/28-01-2010/naquela-manha-acabou-o-terror-
habitual-18679984.htm

Sobreviventes de Auschwitz reuniram-se para marcar a libertação do campo de


concentração e de extermínio por soldados do Exército Vermelho há 65 anos

A neve branca cobria as estruturas do tempo da II Guerra ontem em Auschwitz, um lugar que
parece estar num limbo do tempo. Entre o presente e o passado, uma série de sobreviventes
do campo de concentração e de extermínio juntaram-se a responsáveis polacos e israelitas
para marcar o Dia da Memória do Holocausto.
Ontem usavam agasalhos quentes, mas traziam lembretes de quem foram ali: um número de
prisioneiro no pano às riscas do uniforme, o barrete da roupa de detido. E lembraram o que
aconteceu no campo há 65 anos, quando os soldados do Exército Vermelho chegaram ao
campo na Polónia ocupada pelos nazis.
Jadwiga Boguka tinha 19 anos nesse dia. "Estava tudo coberto de neve e estava muito frio",
recorda a polaca, hoje com 84 anos. "Naquela manhã não houve gongo para o pequeno-
almoço como costumava haver, mas na noite anterior tinha havido o terror habitual, ou pior - a
chamada para ver se estavam todos, os gritos dos homens das SS", lembra Boguka, que foi
enviada para o campo, onde 90 por cento dos detidos eram judeus, na sequência do apoio a
uma revolta contra o domínio nazi de Varsóvia. "Deixei o pavilhão para ver o que se passava.
Havia corpos mortos por todo o lado porque os alemães tinham disparado contra quem quer
que ainda se conseguisse mexer ou que tentasse fugir", relatou, citada pelo New York Times.
Temendo os avanços do Exército soviético, os alemães ainda levaram uma parte dos
prisioneiros para outros campos, nas chamadas "marchas da morte" - muitos morreram de
fome ou frio.
Marian Turski, preso número B9408, lembrava-se bem do frio - e dos piolhos, da fome, da
humilhação. "Um dia fiz um colete às escondidas, com o pano de um saco de cimento", contou
ontem. "Um guarda descobriu, acusou-me de ter roubado propriedade alemã e espancou-me."
Libertar, perdoar
A judia húngara Eva Mozes escapou aos carrascos por ter uma irmã gémea. Eva e Miriam
tinham dez anos quando chegaram a Auschwitz. "Os meus pais e a nossa irmã mais velha
morreram 30 minutos depois de terem chegado ao campo", contou Eva Mozes à agência AFP.
Joseph Mengele, "o anjo da morte", seleccionava gémeos para viverem, para fazer com eles
experiências médicas: normalmente fazia de um a vítima de experiências (injecções com vírus,
retirada de órgãos, amputações, castrações) e deixava o outro normal para fazer comparações.
Um dia, Eva lembra-se de ter ficado com uma forte febre depois de uma das injecções.
Mengele comentou com outros médicos que ela deveria morrer dentro de duas semanas. Mas
Eva resistiu. "Decidi lutar para sobreviver." A sua irmã Miriam também sobreviveu ao campo,
mas morreu entretanto, em 2003. (Mengele morreu no Brasil em 1979, afogado.)
No braço tatuado com a tinta nazi, Eva (que tem hoje 75 anos e vive no estado norte-
americano do Indiana) tem uma pulseira com a inscrição "Never give up. Forgive". "Perdoei os
nazis em 1995 e isso foi como uma segunda libertação", explicou.
O Dia da Memória do Holocausto foi estabelecido pela ONU em 2005. Com o envelhecimento
dos sobreviventes, começa a discutir-se como preservar memórias do Holocausto.
O que fazer, por exemplo, com o grande campo de Auschwitz-Birkenau, preservado hoje como
foi deixado pelos nazis, com algumas partes semidestruídas (os nazis não queriam deixar
provas dos seus crimes), outras partes dos pavilhões ocupadas por objectos dos prisioneiros
que lá morreram. Há uma grande vitrina com centenas de malas, outra com sapatos de
criança, outra com pedaços de cabelo. Há pormenores macabros como o tecido feito com os
cabelos que eram cortados às mulheres antes de estas serem assassinadas.
No campo de Auschwitz morreram mais de um milhão de pessoas, uma grande maioria judeus.
O número de visitantes do campo-memorial foi, no ano passado, o mais alto de sempre: 1,3
milhões de pessoas. O ano de 2009 foi ainda marcado pelo estranho roubo da arcada que à
entrada do campo proclamava "Arbeit Macht Frei" ("o trabalho liberta"). A arcada foi entretanto
recuperada.

Você também pode gostar