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O HOMEM E SEU ENIGMA

Não somos totalmente transparentes para nos mesmos1. O enigma


faz parte de nossa vida. Todo ser humano deverá cada vez mais aprender,
para ser homem, a viver com o enigma. Ele não pode ser abolido nem pela
racionalidade (ela não satura toda questão existencial), nem pela fé, nem pela
afetividade (o mito do amor fusional), nem pela ação (ilusão das ideologias),
nem pela técnica (desespero do consumo). É preciso aprender a conviver com
essa parte de enigma que existe em nos, nos outros, no mundo e com Deus.
— Em nós: ninguém está totalmente transparente a si mesmo.
— Nos outros: mesmo o amor o mais perfeito não dá todas as chaves,
nem toda resposta sobre si mesmo e sobre o outro.
— No mundo: a ciência e sua racionalidade não encerram toda a
realidade.
— Em relação a Deus: Deus não serve para resolver todos nossos
enigmas. Deus não existe para dar sentido, mesmo que ele dê esse sentido.
Se o homem não for preparado para viver esse enfrentamento com a
opacidade e o mistério, a vida se torna impossível a ser vivida. O perigo de
toda formação é de dar a ilusão de respostas que saturam, seja no domínio da
racionalidade, da afetividade, da moral ou do divino.
Assim, mesmo os interditos têm sua importância na nossa
construção de humanos. Eles não são “sádicas proibições” de uma divindade
ciumenta e arbitrária. Eles expressam esse limite enigmático de nosso ser e de
nosso agir fora do qual acabamos nos destruindo. Os três grandes interditos,
do incesto, do assassinato e da idolatria, não representariam a impossibilidade
de crer que podemos suprimir todo enigma?
— O enigma da afetividade, pela ilusão que se poderia dispor dela numa
relação imediata, sem a escuridão e o imponderável da diferença.
— O enigma do outro, como fez Caim no assassinato, gesto brusco e
impaciente que quer suprimir o mistério “insuportável” e sempre indecifrável do
irmão.

1
GESCHÉ, Adolphe, Dieu pour penser, II l’homme, Paris, Éditions du Cerf, 2001, cap. 1
— O enigma do sagrado pela idolatria, que, precisamente, quer substituir
ao Deus diferente e verdadeiro, o deus fácil e confortador do reflexo no espelho
de si mesmo.
— O enigma do saber pela racionalidade ou a magia querendo conhecer
tudo e imediatamente.
As grandes narrativas bíblicas falam das finalidades. Devemos
progredir na busca imprescritível da razão, do amor e do sentido, sem jamais
crer e fazer crer que podemos dominá-los. Diferentemente das respostas que
são sempre frágeis, as questões são sempre inteligentes, precisamente porque
não saturam jamais. As perguntas cuidam das respostas. Claro que desde o
nascimento, somos municiados de respostas: nesse sentido as respostas
precedem as perguntas, justamente como enigmas e enigmas que devem ser
interrogados. O problema da vida talvez não seja outra coisa do que saber
interrogar as respostas. Nosso modelo será a maieûtica de Sócrates que
consiste em

“parir e transmitir respostas que vamos interrogar e perscrutar como


enigmas abençoados, a serem decifrados para neles encontrar o sentido
do nosso ser.”2

O HOMEM CRIADO CRIADOR


A afirmação de um Deus – e singularmente: a afirmação de uma
relação entre Deus e o homem (o que conota a idéia de criação) – infirma
nossa autonomia e, mais radicalmente, nossa humanitas? É a pergunta de
Gesché3. O termo de criação é um termo propriamente teológico (não filosófico
nem cientifico). Seu conceito institui uma epistemologia totalmente especifica
da realidade, redutível a nenhuma outra. Para entender sua originalidade, ele
será comparado a uma outra concepção que chamaremos de cosmológica;
depois passaremos para a concepção teológica; para passar à lógica que essa
concepção teológica induz; terminaremos com a visão antropológica implicada.

uma “cosmo-lógica” da criação


Das inumeráveis representações que o homem construiu da origem
de todas as coisas, fora da judeu-cristã, podemos olhar para aquela que mais

2
GESCHÉ, op. cit. p. 26
3
GESCHÉ, Adolphe, Dieu pour penser, II l’homme, Paris, Éditions du Cerf, 2001, cap. 2
marcou as origens da ciência ocidental e certas formas do nosso ateísmo. A
transmissão foi assegurada por Platão embora ele não a compartilhe
pessoalmente.
No começo, antes que sejam as coisas que conhecemos, existe a
chôra (Timeu 52a)4, palavra muito difícil de ser traduzida: pode significar lugar,
região, sitio virtual, ou ainda totalidade indistinta, onde tudo, que um dia será
mas não é ainda, está contido de modo imanente. Mas, justamente, como,
dentro e a partir dessa chôra primordial, a emergência das coisas vai se fazer
(gênesis)? Segundo essa tradição reportada por Platão “tudo o que se produz,
se produziu ou se produzirá, o deve as vezes à natureza (physis), as vezes à
arte (technè), as vezes ao acaso (tuchè).” (Leis X 888e)
Os dois termos de natureza e de acaso, essas duas “razões” das
coisas estão em pé de igualdade no acontecer do que existe e se produz: a
única diferença sendo que a natureza é compreensível, racional – as futuras
“leis da natureza” – enquanto o acaso é impenetrável para a razão. Ambos
porém presidem no mesmo grau ao acontecimento da realidade: eles
arrancam-na da indiferença agitada do caos, segundo um processo de
necessidade imanente, “sem nenhuma intervenção de uma inteligência, nem
de qualquer deus que seja, nem da arte” (Leis X 889c)
O que dizer então da technè (arte, técnica), terceira razão do
surgimento das coisas? Não está no mesmo plano: “a arte vem depois” (Leis X
889 c), cronologicamente e essencialmente, tardiamente produzida a partir dos
dois outros princípios “resultado mortal de princípios mortais” (ibid) e
produzindo coisas inferiores (cf. Leis X 889a). A arte, secundária, só age sobre
o que foi produzido pelo acaso e a necessidade, fazendo isso de dois modos:
um, nobre e bastante sério, quando age no prolongamento da natureza, como
quando se trata por exemplo de medicina e de agricultura; o outro, não muito
sério, quando se trata de “brinquedos, que contêm uma fraca parte de verdade
e são simples simulacros (eidôla), tais como os que criam música e pintura.”
(889 c-d)
Assim, a realidade (verdadeiramente verdadeira, a que conta) é
produzida, segundo o esquema grego, pela natureza (acaso e necessidade),

4
Traduzo para o português os textos citados em francês por Gesché.
pelo próprio cosmos, segundo sua imanência. É realmente uma “cosmo-lógica”
da criação.

Uma “teo-lógica” da criação


A seqüência judeu-cristã começa por “no início, Deus criou o céu e a
terra”, quer dizer no começo tem um sujeito, uma liberdade e não um acaso ou
uma necessidade. A afirmação teológica da criação não diz tanto respeito ao
fato de que, relativamente banal e evidente para um crente, Deus criou o
mundo (não seria uma explicação). Ela diz principalmente respeito ao fato de
que (é uma hermenêutica), dizendo Deus, estamos afirmando na origem das
coisas uma intenção e uma vontade, não uma necessidade e um acaso. É
evidentemente totalmente diferente. Isso significa:
— primeiro, que a realidade será ela mesma dotada, toda ou em parte,
da liberdade criadora, que a realidade é resultado – ou mais exatamente: a
criação (technè) – de uma liberdade. Escapamos do regime de necessidade
para entrar no da liberdade.
— Segundo, colocar Deus no inicio significa escapar ao anonimato para
ser colocado imediatamente no reino da pessoa. A criação responde a um
designo e não está submetida a um destino impessoal.
— Terceiro, colocar Deus no início significa também dizer que a arte (a
technè, a invenção, a criação, aqui o ato posto por Deus) não é tardio, mas,
pelo contrário, primeiro, cronologicamente e essencialmente, enquanto a
natureza e a necessidade são elas tardias e criadas: a seqüência grega é
invertida. A technè define o que será a natureza. O homem grego, dominado
pela natureza, será em grande parte condenado à imitação. O homem judeu-
cristão, cujo universo é governado por uma “invenção” se encontra nela muito
mais a vontade. O que existe primeiro é uma intervenção e uma decisão: está
portanto inicialmente no campo da liberdade. A liberdade é essencial, está na
origem do ser e decorre da natureza das coisas. A liberdade não é conquista
aleatória e angustiada: ela é desenvolvimento natural das coisas.
— Assim a liberdade e a invenção são, em regime de criação, de pleno
direito e alheias a toda noção de problema de consciência. Porque a liberdade
preside ao ser das coisas, seu exercício pelo homem estará de pleno direito e
lógico, e não uma perigosa provocação ou fratura do ser. A liberdade é o nervo
das coisas criadas, sua razão de ser, seu arché, seu principio mesmo. O judeu-
cristianismo tirou a fatalidade não só da história, mas do ser.
— Dizer que Deus está na origem, é dizer ainda e finalmente que não
estamos na imanência onde as leis são as que a natureza dita para si mesma o
que significa um fechamento na auto-referência e no solipsismo, sendo
condenado à repetição e à proibição de toda invenção e novidade. Falar de
Deus significa estabelecer a alteridade. Falar de alteridade significa, ao invés
da imanência tautológica, reconhecer uma transcendência, quer dizer uma
referência em relação à qual é preciso responder e estabelecer uma
responsabilidade. A liberdade não é, primeiro, possibilidade de escolher – isso
é somente conseqüência psicológica e moral. A liberdade é primeiro essa
capacidade metafísica, esse direito ontológico de assumir pessoalmente seu
destino de modo responsável, quer dizer prestando conta. A afirmação de um
Terceiro, de uma Transcendência, de uma Alteridade, longe de deprimir a
liberdade, a anuncia significando que, diante dela, o homem tem o direito e o
poder de decisão e de liberdade porque ele é capaz de prestar contas, o que
não se pode no círculo fechado da imanência. O homem é um ser que precisa
fazer atos responsáveis precisamente porque existe uma exterioridade, um vis-
à-vis. É liberdade de acolhida porque não é uma conquista arrancada mas sim
uma conivência inventiva. É uma liberdade responsável porque o
consentimento é ação inventiva em conivência com a criação e descentração
em relação à solidão. O outro não é agressão.

Uma lógica da criação


O ato mesmo desse Deus, a criação, vai ser entendido na lógica
desse Deus. O termo hebraico bara que traduzimos por criar conota duas
noções: a de fazer e a de separar.
— Criar, é fazer fazendo diferente, diferenciando: é constituir algo distinto
de Deus; não é uma emanação do divino. É uma realidade quista como
totalmente outra, autônoma, atéia. A separação é boa.
— Criar é fazer algo de inteiramente separado e distinto de toda
antecedência (é um dos sentidos do ex nihilo). A realidade criada não é
precedida por um modelo ou um mundo ideal cuja cópia ela seria, sem
consistência própria. Nenhum peso de anterioridade virá constranger a ação do
homem.
— Criar separar significa ainda estabelecer a separação dentro da
própria criação: é colocar um princípio de ordem, de diferenciação em vez de
uma confusão originária de todas as coisas (chôra ou caos): é um gesto de
arte, de technè. É instaurar uma realidade que não é completa, “uma”,
acabada, fechada e bloqueada, mas uma realidade onde existem espaço, falta
para que exista novidade, liberdade, invenção. A diferenciação e a alteridade,
e, portanto, o jogo da liberdade são iniciais e iniciadores.
Deve se medir bem as conseqüências dessa criação – separação
onde a cultura (technè) precede a natureza (physis), e onde a realidade é vista
como um imenso campo de intervenção e de criação, um espaço de liberdade
onde nada é definitivamente acabado e definido. Existe uma preeminência da
liberdade e da invenção em relação à repetição e à fatalidade de natureza. Por
específica que seja a aparição da liberdade humana, ela se enraíza numa
ordem geral onde toda a realidade está já atravessada por um regime de
liberdade. O status do homem não é acósmico; ele é excepcional não no
sentido de uma exceção desligada do todo. Seu status está em conivência com
uma volatilidade do ser, já presente na realidade inteira. Existe como uma
“intra-história” na criação que espera a história do homem e a aventura do
espírito, não como uma irrupção curiosa mas como uma realização e uma
atestação: “a criação espera com impaciência a revelação dos filhos de Deus.”
(Rm 8,19).

Uma antropo-lógica da criação


Tendo por escopo levar até o fim a espera da criação inteira, o
homem é criado criador. Esse direito e dever de uma liberdade de invenção, o
homem vai exercê-los numa tríplice dimensão: em relação ao cosmos, a ele
mesmo, a Deus.
— Criado criador em relação ao cosmos: o homem será como um
sacerdote da criação. O descanso de Deus no sétimo dia sugere que um outro
deve prosseguir o ato criador. O tema do jardim plantado para ser trabalhado, e
não simplesmente cuidado e conservado, indica a concepção de uma criação
onde o gesto, como suspenso por Deus, é imediatamente entregue ao homem.
A criação não está acabada: é incoativa, apelo para que seja algo. Nos
mesmos somos inacabados: criados à imagem, precisamos levar a cabo a
semelhança. O homem não foi simplesmente causado: ele foi criado causa,
criado para criar. Deus não criou coisas: ele “criou uma criação”. O misterioso
plural do “façamos” não contém nossa presença?
— Criado criador em relação a si mesmo: tornar-nos o que somos,
realizar por nossa existência, o apelo de nossa essência: é assim que se
concebe a antropologia cristã, antropologia da vocação. A liberdade criador nos
confia a nos mesmos. A palavra “liberdade” é associada à palavra “criação”.
Um criador não faz qualquer coisa. Tem mais consistência, no fundo, na
palavra criação do que na palavra liberdade. Aqui, a palavra liberdade quer
dizer realmente o que ela quer dizer: uma responsabilidade criadora, a
coragem de inventar o melhor, confiança de poder realizar-se num designo
generoso. É uma liberdade que se sabe agraciada por um dom e que sabe que
esse dom lhe transmite a vocação. Não se trata de negar a autonomia do
homem mas, sim, de pensar que essa nunca será tão grande, mais verdadeira,
mais livre do que quando ela se pensará em conivência com uma Liberdade
mais vasta que a constitui.
— Criado criador em relação a Deus: a relação com Deus, assim como
as outras, não pode ser vivida em termos de obrigação, de natureza, de
necessidade; ela existe para ser vivida em termos de liberdade, de criação e de
invenção. Deus, para dar lugar à sua criatura, contraiu-se, como se
“diminuísse”. Existe na criação um espaço que significa direito e vocaçao para
invenção e de criação.

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