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GESCHÉ, Adolphe, Dieu pour penser, II l’homme, Paris, Éditions du Cerf, 2001, cap. 1
— O enigma do sagrado pela idolatria, que, precisamente, quer substituir
ao Deus diferente e verdadeiro, o deus fácil e confortador do reflexo no espelho
de si mesmo.
— O enigma do saber pela racionalidade ou a magia querendo conhecer
tudo e imediatamente.
As grandes narrativas bíblicas falam das finalidades. Devemos
progredir na busca imprescritível da razão, do amor e do sentido, sem jamais
crer e fazer crer que podemos dominá-los. Diferentemente das respostas que
são sempre frágeis, as questões são sempre inteligentes, precisamente porque
não saturam jamais. As perguntas cuidam das respostas. Claro que desde o
nascimento, somos municiados de respostas: nesse sentido as respostas
precedem as perguntas, justamente como enigmas e enigmas que devem ser
interrogados. O problema da vida talvez não seja outra coisa do que saber
interrogar as respostas. Nosso modelo será a maieûtica de Sócrates que
consiste em
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GESCHÉ, op. cit. p. 26
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GESCHÉ, Adolphe, Dieu pour penser, II l’homme, Paris, Éditions du Cerf, 2001, cap. 2
marcou as origens da ciência ocidental e certas formas do nosso ateísmo. A
transmissão foi assegurada por Platão embora ele não a compartilhe
pessoalmente.
No começo, antes que sejam as coisas que conhecemos, existe a
chôra (Timeu 52a)4, palavra muito difícil de ser traduzida: pode significar lugar,
região, sitio virtual, ou ainda totalidade indistinta, onde tudo, que um dia será
mas não é ainda, está contido de modo imanente. Mas, justamente, como,
dentro e a partir dessa chôra primordial, a emergência das coisas vai se fazer
(gênesis)? Segundo essa tradição reportada por Platão “tudo o que se produz,
se produziu ou se produzirá, o deve as vezes à natureza (physis), as vezes à
arte (technè), as vezes ao acaso (tuchè).” (Leis X 888e)
Os dois termos de natureza e de acaso, essas duas “razões” das
coisas estão em pé de igualdade no acontecer do que existe e se produz: a
única diferença sendo que a natureza é compreensível, racional – as futuras
“leis da natureza” – enquanto o acaso é impenetrável para a razão. Ambos
porém presidem no mesmo grau ao acontecimento da realidade: eles
arrancam-na da indiferença agitada do caos, segundo um processo de
necessidade imanente, “sem nenhuma intervenção de uma inteligência, nem
de qualquer deus que seja, nem da arte” (Leis X 889c)
O que dizer então da technè (arte, técnica), terceira razão do
surgimento das coisas? Não está no mesmo plano: “a arte vem depois” (Leis X
889 c), cronologicamente e essencialmente, tardiamente produzida a partir dos
dois outros princípios “resultado mortal de princípios mortais” (ibid) e
produzindo coisas inferiores (cf. Leis X 889a). A arte, secundária, só age sobre
o que foi produzido pelo acaso e a necessidade, fazendo isso de dois modos:
um, nobre e bastante sério, quando age no prolongamento da natureza, como
quando se trata por exemplo de medicina e de agricultura; o outro, não muito
sério, quando se trata de “brinquedos, que contêm uma fraca parte de verdade
e são simples simulacros (eidôla), tais como os que criam música e pintura.”
(889 c-d)
Assim, a realidade (verdadeiramente verdadeira, a que conta) é
produzida, segundo o esquema grego, pela natureza (acaso e necessidade),
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Traduzo para o português os textos citados em francês por Gesché.
pelo próprio cosmos, segundo sua imanência. É realmente uma “cosmo-lógica”
da criação.