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Yukio Mishima

Excertos de O Templo Doirado

Na realidade o rosto de um morto desce a uma infinita fundura, muito abaixo do nvel
que ocupava quando vivo, e o que fica para os sobreviventes verem apenas a moldura da
mscara; desce tanto que nunca mais pode ser puxado superfcie. O rosto de um morto
mostra-nos melhor do que qualquer outra coisa do mundo a distncia a que nos achamos da
existncia do que se chama matria, (...). Pela primeira vez na vida eu constatava esse
trabalho da transformao de um esprito, pela morte, em mera substncia fsica; e senti que
estava gradualmente a compreender a razo por que as flores primaveris, o sol, a minha
carteira, a escola, os lpis toda a substncia fsica, claro sempre se me afiguravam to
frios, sempre me pareciam existir to longe de mim.
(...)
O cadver deixava-se olhar. Eu olhava somente. Saber que olhar (o acto, isto , olhar
para algum, como de ordinrio se faz, sem nenhuma conscincia especial) era a prova dos
direitos dos que estavam vivos, (...).

Como te parece que se conseguiu manter a paz e a ordem durante a guerra se no


pondo em cena exposies pblicas de morte violenta? O motivo por que as execues
pblicas acabaram foi, creio bem, o receio de que o povo se tornasse sanguinrio. Estpidos!
As pessoas que removiam os cadveres depois dos bombardeamentos areos tinham todas
expresses gentis e alegres. Ver seres humanos na agonia, v-los cobertos de sangue e ouvir
os seus gemidos de morte, torna as pessoas humildes. Faz-lhes o esprito delicado, vivo,
pacfico. Nunca nessas ocasies que nos tornamos cruis ou sanguinrios. No. numa bela
tarde primaveril como esta que as pessoas, subitamente, se tornam cruis. No achas que
num momento como este, enquanto se contempla vagamente o sol entre as folhas das rvores,
por cima de um relvado bem tratado? Todos os pesadelos do mundo, todos os pesadelos da
histria, nasceram assim.

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