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Por que langar um livro de de- bates nesse momento? Temos coi- sas urgentes e importantes a di- zer? Na realidade, uma conversa como a que reproduzimos aqui tem seu lugar no momento em que os grupos alternativos bus- cam sair do gueto e contribuir pa- ra as transformagoes de um pais em crise. Agora que se fala tanto da cria- ¢ao de um Partido Verde no Bra- sil, nada melhor do que examinar experiéncias ja existentes e ouvir delas seus caminhos e descami- nhos, aconfissao de sua novidade e de seus mecanismos de repeti- ¢ao. O trabalho que coloco na mesa para mais uma reflexao é uma continuidade do livro Vida Alter- nativa, que publiquei ainda no inicio deste ano. Comecei exami- nando as formulagdes tedéricas dos alternativos, principalmente dos alemaes. Prossigo colhendo as impresses de uma grande figu- ra que participou da forma¢ao do Partido Verde e viu nela, de algu- ma maneira, a continuidade das grandes lutas de 68. Ninguém deseja uma volta de 68 porque ninguém gostaria de re- petir acontecimentos vividos. Mas algumas das preocupacoes da década podem renascer, num momento em que palavras como solidariedade e participacao cole- tiva nado soam mais como estran- geiras e marginais. Continuamos desejando o im- possivel. E creio que dessa espe- ranca jamais conseguiremos nos separar. Fernando Gabeira NOS QUE AMAVAMOS TANTO A REVOLUCAO Didlogo Gabeira — Cohen Bendit , Won a. ale susd Mp dado de pat er ZIAD Sinsaht 5 “oa RA Sa da eee EO Ran aires a Mom wa 2a les ¢ £ danas \e ween ot Wrage - oe Wr law Kunding = AS ~ . Daven Jee, cones Par becka vend ums FO OR Gi13n Copyright © by Fernando Gabeira, 1985 Direitos desta edigao reservados a EDITORA ROCCO LTDA. Rua Visconde de Piraja, 414-Gr. 1405 CEP 22410 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: 287-1493 Printed in Brazil | Impresso no Brasil capa JEJO CORNELSEN revisao UTAHY CAETANO DOS SANTOS CLAUDIO ESTRELLA CIP-Brasil. Catalogasio-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Gabeira, Fernando Nés que amavamos tanto a revolusio; didlogo Gabeira — Cohen Bendit / Fernando Gabeira. — Rio de Janeiro: Rocco, 1985. 1, Literatura Brasileira — Entrevistas (reporta- gens). I. Bendit, Daniel Cohen Il. Titulo. 85-0983 CDD - 869.96 INTRODUCAO Nos que Amévamos tanto a Revolugao € 0 titulo de um interessante filme de Ettore. Scola. Grosseiramente, a hist6ria do filme pode ser resumida assim: um_ grupo de guerrilheiros que combateu 0 fascismo na It4lia encontra-se anos depois do fim da II Guerra num pais préspero e agora domina- do pela democracia crista €, portanto, bas- tante longe do ideal de uma revolugao socia- lista que acalentaram, no inicio da década de 40. Envelhecidos e engajados agora na batalha. pela sobrevivéncia, os ex-guer- rilheiros vio revelando sua vida atual e, 5 nesse processo, revelando também o fio que os mantém ligados ao idealismo do passado — convergéncias e comtradigdes com Os ve- lhos sonhos de transformar o mundo. Daniel Cohen Bendit retoma a aventu- ta de Ettore Scola. $6 que seu objeto € preo- cupacao nao € mais o guerrilheiro antifasci ta_mas os jovens que participatam do movi- mento de 1968, movimento do qual o préprio Daniel é um dos expoentes. O que aconteceu com as pessoas que fi- zetam o 68? Até que ponto mantém uma unidade com seu passado de lutas, até que ponto se integraram no sistema e olham o jovem que um dia foram como se olhassem para um incémodo estranho? A resposta a todas essas perguntas s6 poderemos ter assis- tindo a série de televiséo que seta mostrada na Holanda e na Franca e que foi dirigida por Daniel. Nesse conjunto de programas, participo nZo como fepresentante do Brasil- 68, pois havia pessoas muito mais significa- tivas e mais comprometidas do que eu. Faco parte, apenas porque Daniel, lendo aciden- talmente um dos meus livros na Franga e sa~ bendo de minhas atividades atuais no Bra- sil, considerou que existia na minha tra- jet6ria uma curiosa unidade entre passado ¢ Presente. Ele deixou o Brasil com varios rolos de filme, nafrando nossa experiéncia no 68 —_ 6 brasileiro, na Juta armada, na prisdo e, so- bretudo, nossa vida atual numa grande ci- dade brasileira. Sua equipe viajou centenas de quilémetros comigo, filmando conferén- cias, debates com estudantes univetsitarios € temas ecolégicos como a defesa do Pantanal de Mato Grosso. De sua passagem, ficou uma longa fita gtavada, na qual debatemos algumas de nossas aspiracdes do passado e seu confronto com a impiedosa realidade hist6rica. Du- rante dias de discussdo e convivéncia, nio me lembro de um s6 instante saudosista. Analisamos criticamente nosso cotidiano ¢ interrogamos o futuro com gtavidade. Ri- mos muito também, pois cada vez nos leva- mos menos a sério, no sentido tradicional, Este livro € o relato da experiéncia, uma’ reprodug’o comentada por mim do dialogo com Daniel Cohen Bendit. y b we LU her ao Mare 65 va - Aart oR PARTEI La fora era uma planicie de savana, 1985. A velha Kombi rodava a toda velocidade, pois tentavamos alcangar um véo que partiria ao anoitecer, de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Creptisculo no Panta- nal. O sol deslocava-se no céu mas no pare- cia um sol caindo; continuava redondo e in- teiro, apenas um pouco mais pélido. — Olha como o sol morre de pé no Pantanal — disse eu. Daniel estava absorto na longa reta da estrada. Era uma reta cortada ao meio por 11 uma faixa amarela. Reta cor de chumbo, faixa amatela apontando para o infinito- hipnético, visual. S6 quando terminei a frase é que percebeu que tentei dizer alguma coi- sa. Perguntou meio sobressaltado: — O qué? — Nao se preocupe — respondi. — Vamos fazer tudo de novo. Segure firme no volante, atento de novo para a estrada. Eu direi: olha como o sol morre de pé no Panta- nal. Daniel riu. Compreendeu logo que ironizava nossa situagdo anterior, os dias em que passivamos repetindo nossas frases muitas vezes, pata alcangarmos um resulta- do perfeito no documentario da televisao. As filmagens mal acabaram e ainda es- tavamos levemente cansados das repeti- ges e um pouco entediados com a prépria voz. O trabalho comum serviu para esclare- cer nossa situacdo atual. Continudvamos fa- Jando muito, mas agora era diferente, Antes eram os megafones, as frases mervosas € emocionadas que brotavam de nossas gat- gantas irtitadas com o gas lacrimogénco. Hoje, estivamos diante de um moderno gravador Nagra, produzido na Suiga, com um cidadio suigo supervisionando pessoal- mente a qualidade do som, indicando com © polegar se nossa voz conseguira ou nao se 12 impor aos barulhos do mato, se o ruido mo- lhado do remo na 4gua foi ou nao captado com fidelidade. Do megafone do Quartier Latin ao mi- crofone direcional do Nagra, muita coisa mudou, Caimos na midia. Para mim, essa queda soa apenas como um retorno em no- vas bases, pois foi dos jornais que s ruas. Para Daniel, entretanto, € uma outra oportunidade de dizer sua paixdo por um mundo novo, agora mais calmamente, com eficécia — como um profissional, Essa palavra rondou nosso trabalho. Yuppies (Young Urban Professionals) como todo mundo? Seguramente, nao _tinhamos trocado os coquetéis Molotov por um cartaéo de crédito, como propdem alguns norte- ameéricanos que viveram intensamente os anos 60 ¢ hoje patecem ter se integrado com entusiasmo ao sistema. Na noite anterior 4 viagem ao Panta- nal,.aum quarto de hotel em Campo Gran- de, fomos forcados a mudar de planos trés vezes. Iamos viajar de avifo até um lugar chamado Passo da Lontra, onde existem dois hotéis que funcionariam como ponto de apoio, guardando parte do equipamento e fornecendo os barfcos para uma incursao mais profunda. Mas as chuvas j4 haviam co- megado e as chuvas transformam completa- mente a vida do Pantanal. O piloto nfo sa- 13 bia mais se comseguiria aterrissar bem num campo meio alagado e, além disso, levaria cinco passageiros com uma bagagem pesa- da, Quando o piloto comegou a vacilar, co- mecei também a achar que a viagem de trem, no fundo, acabaria sendo mais inte- ressante. Veriamos uma boa parte do Mato Grasso do Sul e uma ponta do Pantanal, an- tes mesmo de comegarmos o trabalho. Da- niel perguntou pelas condicgdes dé aterrissa- gem e cu disse que eram més, que o piloto vacilava e que os pilotos dessa regiao, assim como os que operayam na Amazénia, eram mundialmente conhecidos pela sua audacia. Resposta rapida: cancelamos 0 véo. Imediatamente, pattimos para as reser- vas do trem e quando percebemos que o trem chegatia muito tarde, mudamos de novo os planos: tentariamos um veiculo grande, com motorista que conhecesse a area, para nos colocar no Pantanal ainda no mesmo dia, antes que a luz caisse de todo. A luz e sua trajet6ria passaram a ser nossa principal preocupaga0. Metemos na aniflise meteoroldgica todas as boas intengdes que outrora concenttamos na anilise de classe. Uma velba Kombi sem motorista aca- bou sendo a solucao final, depois de nego- ciagoes burocraticas que pareciam inter- minaveis. Durante toda a noite tomamos e 14 cancelamos decisdes. Estévamos perfeitos para conduzir uma cara equipe de televisao com seus delicados aparelhos pelas matas e rios do Pantanal. Nossa rapidez ¢ flexibilidade na toma- da de decisdes talvez nao sejam nenhuma novidade pata os jovens profissionais dos anos 80. No entanto, conseguimos fazer tu- do de bom humor, sabendo que um ou dois dias de atraso comprometeriam todo o orga- mento. Tinhamos passado pata a midia, é verdade. Deixamos a revolucdo pela atuagao nos meios de comunicagéo. Mas nao conse- guimos, e temo que jamais conseguiremos de fato escapar dos orcamentos apertados, onde nunca se sabe se o filme € mesmo um produto material ou fruto de nossa magia. Para quem esteve nas batricadas dos anos 60, por mais bem realizado que fosse, o trabalho de televisio ainda tinha uma ponta de-incompletude. Daniel passou por outras tarefas ao longo desses anos. Traba- thou numa livraria, cuidou de criangas em escolas e tudo serviu pata enriquecer sua ex- periéncia politica. Mas ainda nao era o tipo de realizacdo da politica que a ascensao de sua catreira, na lideranca do maio de 68 na Franga, deixara pressentir. i Essa poderia ser_a primeira questao do nosso debate. Por que nao étamos politicos profissionais, deputados, senadores ou mi- 15 nistros em nossos paises? Alias, o tema foi suscitado por ele, quando me perguntou por que nao era deputado. Fiz uma ligeira alusao aos politicos profissionais, mencionei a decadéncia politica do Congresso € apon- tei para ele alguns dados tipicos de um pais em desenvolvimento: muitos deputados, mesmo os de esquetda, nas regides mais po- bres do Brasil, elegem-se comptando os yo- tos. Num contexto desses, tornar-se deputa- do € aceitar um pouco cair num pantano mais complicado do aquele que itiamos visi- tar em Mato Grosso. Na realidade, eta acei- tar reduzir a propria capacidade de interven- ¢40 nama sociedade quase que totalmente desiludida com os politicos profissionais. — Pois gostaria de ser deputado — disse ele. — Na verdade gostaria de set mi- nistro, na Alemanha. Sabia dessa disposicgao de Daniel. Os jornais franceses j4 a mencionaram varias ve- zes, ceferindo-se 4 pretensao como algo que estava para ser consumado num futuro préximo, sobretudo agora que os Verdes aproximavam-se da social democtracia, co- megando a moldar uma alianca que tende a se tornar muito forte eleitoralmente, Se queria ser ministto, deputado ou o diabo que fosse, por que estava investindo suas energias em programas de esportes para a radio francesa, ou dirigindo uma série so- 16 bre a geracao de 68 para as tevés da Holan- da? Por que nao estava mais diretamente li- gado a um partido politico, mais em conta- to com 0 tipo de vida que, realmente, pro- duz um ministro? Na realidade, muito rapido ficou claro que, por baixo da questo, estava toda uma dificuldade de relacionamento com partidos politicos, mesmo os democtaticos ¢ avanga- dos, como o Partido Verde, na Alemanha. Nosso encontro foi baseado numa con- fianca mGtua. Demos um ao outro 0 direito de teproduzir © pensamento do patceiro, com 0 m&ximo de fidelidade possivel. Mas por precaugdo, tinhamos sempre _o recurso da gravacdo pata dirimir dtvidas. Eis o que ele disse a respeito de sua relagao com os Verdes na Alemanha, idéias que, no fundo, imagino eu, esclatecem com onsegue vi- ver com a co contradigao de desejar ser minis- tro ou de 0 ou deputad e, na fealidade, nao se me- xer muito ativ essa direcio. ~~ Entrei no Partido Verde h4 um ano e minha relacao com ele € um pouco com- plicada. Considero o partido um projeto politico importante para o contexto alemao. Quero dizer com isso que o nascimento do partido com uma intervencio eleitoral, seus sucessos nas campanhas de que patticipou, serviram para mudar completamente 0 qua- dro institucional da Alemanha. Sua presen- 17 ca no Parlamento permitiu a toda uma Area de pessoas que se identificavam com outro tipo de politica se darem uma expressado politica parlamentar. “‘Acompanhei positivamente nos jor- nais, tomando posicgdes, sempre que ne- cess4rio, na pr6pria formagao do partido. Ao longo dos anos, montamos comités de apoio ao Partido Verde, participamos de de- monstragGes € eu mesmo intervim v4rias ve- zes no congresso regional. Finalmente, tornei-me membro do Partido Verde, coma a _getacao dk de 68 deveria se dedicar a elaboracgao da politica verde, E ai surgiu o problema. Af esta o pro- blema: o Partido Verde € um partido com muitas tendéncias, muita gente, com um funcionamento burocratico! “*Se vocé propde alguma coisa, € o que estou querendo mostrar, vocé tem a assem- bléia municipal, depois a assembléia geral, precisa harmonizar tendéncias, fazer acor- dos politicos e acaba perdendo mais tempo na discussao interna do que propriamente fazendo politica fora, na propria sociedade. Imagine: metade do tempo gasto tentando conquistar maioria de votos, formulando propostas, pensando como vai vencer na vo- tagao. E ai reside minha dificuldade. Entro no trabalho alguns meses, mas tenho a ne- cessidade de me retirar alguns meses, pois 18 tenho uma enorme dificuldade pessoal com esse funcionamento burocratico de um pat- tido.”’ Como deixar de concordar com esta ar- gumentagio? A experiéncia da luta armada no Brasil mostrou_que_ além_ um desejo 1 muito grande i 4 propria or- g nizagac Se gastarem_ t a sua energia nas intérminaveis quetelas internas, ficaraio satisfeitas, pois essa é a vida que lhes basta. E sem contar com a dificuldade de introdu- zit idéias novas, ja aceitas tas parcialmente na sociedade, mas ainda incapazes de transitar com naturalidade num partido, de um mo- do geral, voltado para o proprio umbigo. Daniel retoma sua argumentacao: — Creio que o Partido Verde ainda nao chegou a inventat a nova maneira de e fazer politica Ele “parte da democracia d de base contra as estruturas tradicionais dos parti- dos, estes Gltimos baseando suas decisdes num trabalho de ctipula. Mas o Partido Ver- de inventou também uma coisa: a ditadura de base. Cada individuo que tem algo a dar, além do denominador comum verde, é constantemente pressionado pela base, que procura cortar sua cabeca ¢ barrar seu voo. “‘Nesse caso, fica dificil caminbar pois n&o sao reconhecidas as pessoas enquanto 19 individuos, mas sim o partido no seu con- junto.” Pergunta registtada na gravacao: FG — Esse tipo de militancia (vou usar a palavra militancia, ok?) te satisfaz? DCB — Pessoalmente nado. Pra seu go- verno, acho que passar a vida na tarefa de organizacao de um partido € mais que frs- trante. Tenho necessidade de trabalhar em jotnal, necessidade de ir a Paris fazer meu programa tadiofénico. Tenho necessidade de me mexer muito e, freqiientemente, a militancia num partido é militancia local. Num nivel abstrato, entretanto, a Gnica coi- sa que me apaixonaria seria ter uma inter- vengao institucional, tornar-me deputado. O que me apaixonaria, de fato, €.a coisa in- telectual, o problema da , telaca oO. po- der. Gente da nossa geracdo, com o tipo de pratica e aspiragdes que temos, pode ou nao patticipar de um governo? Era uma perguata muito complicada pata ser respondida naquele instante. As objegdes ao partido € seu tipo de atuacao sao mais ou menos universais. No caso brasilei- ro, onde ainda temos uma possibilidade de intervir na legislagdo eleitoral, o dilema de Daniel poderia ser solucionado. Uma das propostas dos alternativos brasileiros é exa- tamente de que também se aceitem como candidatos pessoas que nao estejam vincula- 20 das aos partidos, independente de suas rz zOes para nao o estatem: minorias segrege das, individuos que nao se ajustam 4 ma quina burocratica, como € 0 caso dele. Mas ainda assim a questo central fica tia de pé: a relacao com o poder. As pessoa: que se Jangaram as tebelides de 68 e muito: que foram 4 luta armada nos anos 70 repre. sentam uma feserva humana peepee lutaram, softeram, estudaram, aprenderam, em alguns casos viajatam por varias expe- riéncias politicas divergentes no mundo in- teiro. Nenhum pais poderia dispensar sua atuacio a nivel de governo. Mas elas supor- tariam as dores de estarem participando de us governo real, completamente diferente 0 overno sonhado? Em muitos « casos, 0 melhor € trocar de atividade para nao cons- purcar o sonho, manter a idéia de politica congelada naquela €poca, quando o im- possivel era uma presenca intima. Embora nao tenha condicdes cientificas de afirmar isto, me parece que We _ dos pon- tos essenciais Da pose ee thiacace, de 68 com 0 ler € 0 efotismo. Marcuse, em suas célebres conferéncias no meio da década de 60, propunha uma transformagao social que tivesse como objetivo a liberagao das dimensdes estético-erdticas das pessoas. Ele ia mais longe, afirmando que essa di- mensio ja estava embutida no movimento 21 4ippie, ou mesmo nas demonstracoes pacificas contra as usinas nucleares. Na Uni- versidade de Berlim, conseguiu exemplificar um pouco melhor esses conceitos, mencio- nando uma demonstracg4o antinuclear bar- rtada pela policia. Os manifestantes, impe- didos de prosseguir, sentaram-se no chao e se deixaram ficar ali, abracados, fazendo ca- tinho uns nos outros, enquanto a policia agtessivamente batrava sua progressao rumo a usina. Quem examina o discurso dos moder- nos lideres alternativos alemaes, sobretudo o de Petra Kelly, a mais conhecida interna- cionalmente, sempre encontra afirmagoes semelhantes. Petra em certos despachos de imprensa aparece dizendo que a etotizacao da sociedade é sua principal meta ¢ que isso € que, as vezes, distingue sua corrente de outras do pensamento alternativo. Numa sociedade altamente tepressiva, o exercicio do poder aparece realmente como obra do proprio Tanatos, em que pesem de- claragSes contrarias, como a de Henry Kis- singer, que considerava o poder como algo afrodisiaco. Um simples olhar nos lideres politicos mais importantes do mundo talvez bastasse para colocar em diivida esta afir- magio de Kissinger. De todas as maneiras, o problema con- tinua de pé para mim. Poder e deseroti- 22 zacgio parecem caminhar juntos ¢ as pessoas que o experimentam talvez possam dar uma visio um pouco mais clara de como isto acontece. Mas é evidente que além das tare- fas repressivas que o poder as vezes exige, tudo indica que, nas condig&es atuais da vi- da politica, os responsdveis pelos paises s6 conseguem dar cabo de suas tarefas subli- mando sua energia sexual e transforman- do-a em energia propriamente politica. Na conversa com Daniel, entretanto, esse t6pico nao pareceu vital. O eixo nao era exatamente o que dificulta a geracdo de 68 chegar a2 um poder, hoje mais ou menos ao seu alcance. O eixo era este: chegar ao poder para fazer o qué? O que significaria a chega- da ao poder de muitos de nés, em termos de uma autéatica renovacio da vida politica de gossos paises? Na argumentagao de Daniel, a chegada ao poder aparece de diferentes maneiras. Sente-se que tem uma intuigfo extrema- mente sensivel de uma nova democracia, nova nao apenas na sua composi¢éo (mulhe- res, jovens, imigrantes etc.) mas também na sua relacio com a modernidade. Eis um tre- cho de nossa convetsa que ilustra isto: DCB — No meu entender, 0 que ha de mais essencialmente novo no projeto de transformagao social € o desejo das pessoas de estabelecerem uma felacdo diferente en- 23 \ av tre trabalho e vida. Ja existem pessoas pron- uM tas* para aceitatem redugSes em seus sa- ‘ larios a fim de disporem de mais tempo li- Ae yl vee. Num periodo de desemprego, ha os , que querem manter o seu trabalho inaltera- do, a todo custo, Disso nasce um choque entre a tendéncia de manter o trabalho e uma tradicao de trabalho e a tendéncia de buscar uma maior disponibilidade voltada ao autocrescimento. FG — Nao é uma discussao no vazio. A presenga macica dos computadores e todos 4 os efeitos da onda eletrénica podem ser de- _o»* terminantes. Ao deslocar o trabalho para o interior da casa, numa espécie de taba ele- trénica, 0 processo industrial acaba determi- nando novos comportamentos. DCB — Vocé pode dar uma definicao positiva do trabalho em sua casa, sobretudo do trabalho com os computadores, que per-- mitita as pessoas tere: ida _mais livre pois, pelo menos, nao serao obrigadas a via- o°_,, jat_de casa pata o trabalho e vice-versa. Em ye sintese: domin: melhor o seu tempo. Por ge outro lado, o computador, potencialmente, pode introduzir também diferencas entre os trabalhadores, mantendo as mulheres den- tro de casa, digitando, cuidando das crian- gas ¢, de certa maneira, santificadas em seu papel doméstico. oF La gota / * Referéncia 4 Alemanha. 24 “‘H4 pessoas, por sua vez, que véem um valor positivo no trabalho em grupo: nao querem ttabalhar sozinhas. Se as pes- soas querem trabalhar em casa, sou a favor, desde que isso corresponda 4s suas necessi- dades. Ao mesmo tempo, é preciso prestar atengao as pessoas que querem trabalhar em grupo, fora de casa. Creio que a modernida- de, com suas novas tecnologias, pode trazer muita coisa boa — nova dinamica, novas fa- cilidades. No entanto, sempre se deve to- mar cuidado para nao fazer disso uma pres- sdo sobre os individuos, impedindo que se definam e obrigando-os, a partir da socieda- de, ase tornarem modernos. A Franca trans- formou, no govetno de esquerda, os avancos técnicos modernos numa espécie_de“ideolo- _gia. E isso nado me parece muito democrati- co, do ponto de vista do individuo.’’ Esta primeira fase da conversa foi en- cerrada com uma pergunta. FG — Vocé trabalha como, normal- mente? DCB — Trabalhei na radio francesa e ainda hoje trabalho, Fiz varias coisas: pro- gramas sobre ptoblemas sociais, debates. Ti- nha vontade de trabalhac também com fu- tebol, pois me interesso muito por esse tipo de esporte. Disse que queria ser comentaris- ta esportivo e, no principio, minha proposta foi encarada com suspeigaa. Quando come- 25 cei a falar de futebol, viram, rapidamente, que entendia do assunto € que nao havia nenhum truque no meu empenho em tra- balhar com esporte. Para mim € importante esse jogo. Tinha vontade de tepresentar o papel de um comentarista de futebol. Isto nao quer dizer que quero ser comentarista de futebol para sempre, todo o tempo. Seria terrivel. Agora, gostatia de representar 0 pa- pel de um deputado. Por isto me condenam muito, entre os Verdes. Para eles, vocé tem de ser ou nao ser uma coisa. No fundo, en- tretanto, 0 que gostaria mesmo € de repre- sentar o papel de um ministro, Sei que nZo seria nunca um ministro como os outtos. Is- to n3o quer dizer que nao faria o papel de ministro com seriedade. Trabalhei como educador num jardim de infancia e desem- penhei minha tarefa com toda a aplicacao. No quero ser militante revolucion4rio pro- fissional; nZo quero ser jornalista profissio- nal. Quero viver diferentes papéis, partindo incessantemente de um para 0 outro. Essa busca permanente de novas ativi- dades é uma das caracteristicas de Daniel com a qual me identifico. Entretanto, quando se trata de um intelectual do Tercei- ro Mundo a formulagao fica um pouco mais complicada. E indiscutivelmente melhor poder saltar de um papel para outro, nunca ser encontrado no lugar onde as classifi- 26 cagdes te petseguem. Quem nao gosta de ver seu nome antecedido da palavra ex: ex- militante, ex-jornalista, ex-prisioneito? InalcangAvel. Daniel, creio eu, partia do principio de buscar 0 maximo prazer possivel em suas atividades. Mesmo as atividades revolu- ciondrias deveriam ser vistas sob essa Otica: impossivel projetar um futuro luminoso a partir de um presente infeliz. O principio da busca do prazer nas ati- vidades € fundamental também no Terceiro Mundo. Mas aqui, penso, deve ser mediado por consideéracoes sobre a importAncia do in- tel tual comp! cetta m neita, Pre- ja na década de 60, in- trigou-me 0 contato com alguns estudantes afticanos na Europa que vinham com bolsas de estudo pagas pelo seu Governo e tinham como compromisso voltarem aos seus paises € assumirem cargos pGblicos na _adminis- tracHo. y aisg 2 — » Havia_na concessao sie -daauclac bolsas bui icao Gust ela tiatia, no final de suas pes- quisas, Independente de quem financiou suas possibilidades de alargamento dos hori- zontes politicos e até administrativos, a questZo sempre se coloca: 27 SG at oye __-— > Considerando as grandes necessidad: do pais onde moro, nao seria um des- perdicio deixar de contribuir com ele? P Se c S ~~ Essa_sensacao de utilidade em relagao ao préprio pais me parece diferente entre um europeu e um latino-americano. Daniel fala em ser ministro, acha que fara bem o seu trabalho, mas nado d4 a minima bola pa- fa o que acontecer4 com a Alemanha se o seu talento nao for aproveitado nesse nivel. Ele sabe, de uma forma ou de outra, que as coisas continuarao o seu rumo. A Alemanha pode se dar o luxo de per- der centenas de quadros com experiéncia do movimento social e com conhecimento dos processos politicos no resto do mundo. O Brasil nao. Aqui, ao lado do principio de prazer, a cada instante, coloca-se também a tsesponsabilidade_Gnica rticipar_do processo de superacio do atraso social € eco- ndmico. O prazet, portanto, é€ uma busca muito mais delicada. A-experiéncia deve setvir simultaneamente para evitar 0s pro- cessos neurotizantes de trabalho politico e para se dividir com os outros, socializando- Se sem cessat, nas miiltiplas tarefas. que yao se abrindo, no movimento social ¢ no _pr6- prio espaco do poder. E uma pequena ressalva. No fundo, est4vamos de acordo. 28 } / PARTE II A segunda etapa de nossa conversa seria mais delicada: o impacto do movimento fe- minista na vida e na pratica de cada um. Ha poucas indicacdes no proprio gravador e, no entanto, falamos bastante do tema. Patti- mos de uma concordAncia basica sobre a im- portancia do movimento feminista nos anos que se seguiram a 1968 e admitimos que, na realidade, ele havia se tornado uma das li- nhas divis6rias da nova época. Cada um entretanto sentiu o impacto de uma certa maneira. Quando mencionei 0 abalo no intelectualismo e num tipo de ra- 31 yao instrumental, como conseqiiéncia pes- soal do contato com o movimento das mu- lheres, Daniel observou que nele esse aspec- to nao tinha desempenhado um papel im- portante. Pelo contrario, na sua vida, a emocdo, a capacidade de chorar, sempre fe- presentaram uma pfesenca marcante, inde- pendente ou nao do choque do movimento das mulheres. Deixar-se levar pela emogdo, segundo ele, era uma constante na sua prdtica. Todos que o conheceram nos primeiros momentos de 68 poderiam confirmar isto. Nao fora por ai que a explosao do movimento 0 alcangou. O impacto foi mais sutil. Ele se lembra de passear com sua com- panheira pelas ruas de Frankfurt. De repen- te, ela faz uma observacao sobre o que estao vendo: as vitrines, as pessoas passando, uma ligeira interpretacdo e algo aparece com cla- reza na sua cabega: “4 uma certa maneira de entender o mundo, uma maneita de descrevé-lo e de compreendé-lo que parece fechada a minha capacidade. Isto me intriga, me deixa um pouco desanimado por nao conseguir enten- der esse c6digo a ponto de ver o mundo através de suas lentes. Sinto-me ultrapassa- do por um outro saber e gostaria muito de ter acesso a ele, nao apenas como resultado mas como matriz de novas descobertas.’” 32 Esse iltimo paragrafo € uma tentativa de reproduzir o que foi realmente dito. Al- gumas nuangas podem ter se perdido mas a verdade € que é uma apreensao bastante di- ferente da de um latino. Por mais que se deseje chegar 4 Stica feminina e suas possibilidades de desvelar um mundo novo, o desabar do edificio ma- chista no universo latino € também fragoro- so e traumatico. No meu entender, esse de- sabamento passa pelo sexo e as dolorosas descobertas que ele, as vezes, pode suscitar. E dificil teorizar sobre um sentimento que se expressa de formas t&o diferentes, mas parece-me fora de divida que aceitar uma nova visio das mulheres, no universo latino, significa aceitar um novo tipo de te- lag&o sexual, pois o velho tipo no se susten- ta mais um segundo, quando o questiona- mento do papel classico dos homens entra em jogo. Quando penso num exemplo que pos- sa, pura e simplesmente, introduzir essa questao, lembro-me das primeiras festas a que fomos na Suécia ¢ vimos que, nelas, nao somente os homens tiravam as mulheres para dangar, mas as mulheres também o fa- ziam. Isto era um embaraco no principio. Tirar para dangar € apenas uma me- téfora pois, no passo seguinte, iria se com- preender que tanto um homem pode convi- 33 dar a mulher para dormirem juntos quanto a mulher também pode fazé-lo. Os homens latinos nado costumam tro- car segredos sobre sua vida sexual. De qual- quer forma, € facil constatar que muitos de- les temem a alteracdo das regras do jogo. De qualquer regra do jogo. Os homens gostam de ficar por cima e, as vezes, a simples mu- danca de posicao ja € sentida como algo ameacgador. Da mesma maneira, gostam de tomar a iniciativa da conquista e, em muitos casos, chegam a ficar impotentes diante de alguém que tome essa iniciativa. A passivi- dade é tratada como um atributo feminino — deixar-se levar por alguém que os seduza é algo impensavel por quem, nesse campo, nao somente escolhe a hora como o lugar e circunst4ncias em que o amor pode aconte- cer. Nao € 4 toa que o estigma de homosse- xualismo s6 é langado, na adolescéncia, so- bre o que recebe, 0 que da e se deixa levar pela vontade do encontro. O que esta por cima, 0 que se movimenta, o que penetra, € sempre o homem ‘‘normal’’, pois sao atri- butos essencialmente masculinos, dentro dos critérios mais habituais de se ver o mun- do. Por isso, desconfio que a resisténcia do homem latino nao se reduz apenas a um choque entre razio e sentimento. Ele se de- fronta também com um enorme perigo fantastico, presente de alguma maneira no 34 filme de Fellini, a Cidade das Mulheres. Eo perigo de se cair num mundo de relagdes em que se petca o contato com a prépria sexualt- dade, concebida apenas como um elo entre dominador e dominado. Minha intengao nao é a de superesti- mat a questdo sexual mas apenas a de reco- nhecer que, apesar das variaveis econédmi- cas, ela representa um dado indispensavel para definir a transigao do machismo para um novo momento. Sobre mulheres e€ seu impacto, nosso intercambio ficou ai. Uma nova questao se impunha: a questao pedagégica. Daniel tra- balhou dois anos numa escola infantil e sabe como se tentou revolucionar nesse campo, sobretudo depois de 68. Diante disto, fiz a seguinte pergunta: FG — Vocé aprendeu alguma coisa nesse trabalho com as criancgas? Vocé teve oportunidade de criticar, na pratica, a re- lagdo pedagégica existente? DCB — O que me pareceu importante constatar no inicio foi o fato de que, ao lado das criangas, vocé € obrigado a ter um outro ritmo de vida. Quando vocé esta seis horas com as criangas, € necessdrio estar a sua dis- posigéo. Pela primeira vez, accitei estar a disposigio das criangas, no sentido de que podiam -me solicitar, quando quisessem. Depois, descobri que se tratava de uma fe- 35 lagae emocional diferente: as vezes queriam um contato afetivo; 4s vezes nao queriam. Descobri que freqtientemente utilizavam o outro para suas proprias necessidades. A crianga ainda nio interiorizou que se a gen- te ama 0 outro, deve ser gentil, delicado etc. Ela diz sim ou nao. FG — Vocé teve oportunidade de ex- petimentar uma pedagogia nao-autoritaria? DCB — Todos nés trabalhavamos com critérios educacionais antiautoritarios. Era uma transposicao um pouco mecdnica de Summerhill. No fundo, baseava-se no fato de que as criancas tém as suas necessidades e que é preciso atender a essas necessidades. Mas a coisa nao é simples assim. As criancas, dentro de uma certa sociedade, tém necessi- dades, tém capacidades, amam desenhar mas, a0 Mesmo tempo, tém também yonta- de de que vocé faca alguma coisa com elas. “Na critica 4 educagao tradicional, des- tacamos 0 ponto basico: a tendéncia de im- por; facam isso, fagam aquilo. Isso a peda- gogia antiautoritaria viu bem. Mas, no Principio dos anos 60, a tentativa de cons- truir escolas novas foi baseada apenas na idéia de que as criangas viviam em estado de espontaneidade permanente. Isto, acho que foi um erro. : “‘Colocar-se 4 disposigao das criangas, buscar junto com elas o que querem fazer e, 36 ao mMe€smo tempo, tomar iniciativa com elas, € para mim uma pedagogia justa. A peda. gogia antiautoritaria era, freqiientemente, um sindnimo de ‘deixar rolar’. Se havia um garoto violento, com tendéncia a bater nos outtfos, a pedagogia antiautoritaria dizia: é preciso deixar que os outros se defendam. Se meninos e meninas tinham um papel muito rigidamente determinado, a | pedago- gia antiautoritaria dizia apenas: € preciso que aprendam a criticar esse papel. “No meu entender, € preciso procurar juntos Os jogos que possam levar as criangas a encontrarem um novo comportamento. Is- so € importante para mim: integrar-me al- gumas horas na vida das criangas, com- preender seus desejos e tentar encontrar as solugdes. Se vocé faz isso, vocé pode fazer durante dois ou trés anos. Depois, é preciso parar, pois fica completamente esgotado. As criangas exigem muito. Se vocé trabalha muito tempo com elas, comeca a achar que conhece tudo e a reagir mecanicamente. Isto ndo € justo para com as criangas. E a vida de- las que esta em jogo e vocé no pode resol- ver todos os problemas como um mecanico cuidando de um motor: isto funciona, aqui- lo nZo funciona; € preciso mudar uma ou outra pega pata a coisa comecar a andar de novo.”” 37 Havia uma concordancia quanto a critica a uma pedagogia antiautoritaéria que, na realidade, nao fez mais do que simples- mente liberar o que era proibido, sem colo- car os necessdrios limites. Uma concordan- cia, no fundo, facil de ser atingida pois as criangas criadas nesse equivoco nao sao pou- cas e quase todos ja tivemos oportunidade de conhecé-las, com suas qualidades e defei- tos. O que nfo era possivel concordar tao facilmente: a idéia de que com criangas se pode trabalhar apenas dois ou trés anos, porque depois disso o trabalho fica mecani- co. Daniel falava como trabalhador e eu ve- jo a quest4o enquanto pai. O trabalhador pode deixar as criancas em busca de outro lugar mais estimulante; o pai se coloca nu- ma relacgio que vai durar, no minimo, toda a infancia e adolescéncia. Naturalmente que muitos pais podem encarar essa relagao a longo termo, porque ndo se interessam pe- las criancas e nao dao a elas a mesma energia que um educador precisa dar. Ainda assim, sao perspectivas de relagdo com diferentes prazos. Se considerarmos. a coisa apenas no campo da propria pedagogia, veremos que dois ou trés anos talvez nao sejam suficien- tes para criar uma experiéncia. Neill* traba- + A. S. Neill, nascido na Escécia, um dos grandes educadores do século XX. 38 lhou durante toda a sua vida com as criangas _ e acabou produzindo algo que matcou a pe- dagogia: Summerhill, com todas as suas qua- lidades ¢ pequenos ertos, acabou se tor- nando o ponto de referéncia critica funda- mental as escolas estabelecidas. Talvez possamos voltar a discutir 0 as- sunto numa outta oportunidade. No fundo, ele coloca em questao quase tudo que se dis- se a respeito da liberdade de fazer as coisas, sem se deixar aprisionar por uma rotina. A idéia de trocar sempre de trabalho, de expe- rimentar varias dimens6es da atividade hu- mana, é uma idéia que fortalecé a liberdade individual, mas ao mesmo tempo significa um obstaculo ao conhecimento profundo de um tema. Vocé ganha em mobilidade, tran- sitando de uma esfera para outra, de acordo com a atracdo que ela exerce, em determina- do momento. Mas, em compensagao, perde em profundidade, pois dificilmente num periodo muito curto pode realizar algo que realmente revolucione ou contribua para re- volucionar um aspecto da pratica humana. Nunca é demais lembrar que opgoes re- presentam ganhos e perdas. Querer rolar de uma pata outra esfera e construir um traba- lho duradouro pode ser um pouco de onipo- téncia e dificuldade de aceitar uma ou outra frustracao, algo que talvez estivesse presente na geracao de 68, na sua época de agitagao 39 de ruas, mas que pode ter desaparecido ago- ra. Quase 20 anos, alguns deles engolindo sapos, contribuem para 0 amadurecimento de qualquer um, mesmo daqueles que, com toda a razao, desconfiam dessa palavra. 40 PARTE I Uma nova etapa de nossa conversa iria se abrir com 0 tema pacifismo, Mencionei a import4ncia do assunto porque me patecia o maior movimento de massas, na década de 80. Ao mesmo tempo, era um movimento que havia transcendido as fronteiras nacio- nais € nasceu completamente fora dos parti- dos politicos. DCB — O movimento pacifista € tao forte na Alemanha porque a Alemanha esta no centro da guerra possivel. Nao digo que a guetra vai acontecer, necessariamente. Di- gO apenas que um general americano, um 43 general inglés, um general francés vao sem- pre tera decisao de fazer a guerra na Alema- nha. O fato da existéncia de novas armas, sobretudo dos novos misseis, reconfere a guerra a dimensfo que ela havia perdido com a arma nuclear absoluta: ela volta a ser um campo de batalha. “‘A populacgdo alema tem uma cons- ciéncia aguda de que € possivel fazer uma guerra limitada 4 metade de seu territério. Ela sabe que, pelo fato de ter perdido a I Guerra, ela sera um primeiro terreno de ba- talha, caso aconteca uma outra. “O movimento pacifista se alimentou desse medo a guerra. Ele criticou o petigo das novas armas, quer dizer: mostrou que as novas armas transformam a guerra limitada numa possibilidade e, com a guerra limita- da, transformam também a guerra ilimitada numa possibilidade. “O erro do movimento pacifista, no meu entender, foi.o de argumentat com o apocalipse. A guerra vai acontecer, os mis- seis setao instalados. Penso que a guerta nu- clear € improvavel. Antes dos misseis, era invidvel na base de 95 por cento; agora € in- vidvel na base de 92 por cento. Ela apenas ficou um pouquinho mais provavel. ““O grande problema sao as guerras que aconteceram depois da II Guerra Mun- 44 dial, que n&o foram nucleares, mas fizeram muito mais mortos, proporcionalmente, que a propria Il Guerra. E ai que entra em cena a indtstria do armamento. Cada pais gue se industrializa utiliza a inddstria de ar- mas, como a Franga, a América do Norte, a Inglaterra, Israel e o Brasil, para equilibrar seu balanco comercial. O projeto consiste em financiar o padrao de vida interno coma indtstria armamentista, Creio que este € um perigo que a proptia logica interna do capitalismo impée.”’ Quanto ao caso do Brasil, as obser- vagdes eram cortetas. Nao que o pais fosse financiar seu crescimento Ginica e exclusiva- mente baseando-se na indtstria de armas. Mas a indiistria de armas é um ponto impor- tante desse processo, significando uma pre- senga crescente do pais no mercado interna- cional, onde foi algado a condigado de quinto exportador. A transformacao dessa tendéncia de- pendera, enormemente, da consciéncia so- cial. No nivel em que esta hoje, considera-se muito comumente a indtstria de atmas co- mo uma indastria positiva porque abre em- ptegos ¢ canaliza ddlares. Essa maneita de argumentar tem um grande potencial de fascinio entre os trabalhadores e € uma cons- tante entre militares e politicos. 45 Ao ser escolhido presidente da Re- publica, apdés 21 anos de ditadura militar, Tancredo Neves fez uma viagem 4 Europa e, em Roma, ao lado do Papa, praticamente, concedeu uma enttevista coletiva afirmando que a indGstria bélica brasileira seria manti- da ¢ o pais nao estava disposto a abrir mao da faixa de mercado que tao arduamente conquistara. DCB — O impasse do movimento pa- cifista € que ele consegue mobilizar emoti- vamente sobte o nuclear mas nao consegue mobilizar para a guerra cotidiana. Por exem- plo: havia 500 ou 600 mil pessoas protestan- ‘do contra os misseis; trés semanas depois, havia apenas oito mil pessoas numa mani- festacgio contra a guerra das Malvinas. Uma guerra real e concreta ndo tem Oo mesmo efeito: o motor da manifestacgao pacifista é sempre 0 apocalipse e € necessario saber dis- to para dar uma dimensao mais realista a si- tuagao geopolitica e estratégica do mundo. FG — Mas o movimento pacifista ain- da € 0 mais importante movimento de mas- sas Nos paises avancados, nao? DCB — Sime nao. Ele ainda € o movi- mento de massas mais importante na Euro- pa, mas creio que, no momento, est4 deso- tientado. Deu voz e mobilizou milhares de pessoas mas nfo tem perspectiva. H4 muita gente contra a guerta, que sempre foi contra 46 a guerra, que é capaz de fazer grandes, pe- quenas e médias demonstragdes pela paz. Mas ainda assim, est4o desorientados. ‘Na melhor época das mobilizagdes, o objetivo era evitar o apocalipse. No momen- to, estamos nos habituando a viverlado a la- do com os misseis. Vocé deve continuar a vi- ver e, em se habituando a viver, vocé da um passo atras. Agora que os misseis ja estao 1a, acredito em novas mobilizagdes contra o projeto de Reagan, chamado Guerta nas Es- trelas. Mas ainda é 0 apocalipse como fator de mobilizagao.”’ Diante do pessimismo moderado de Daniel em relagéo ao movimento pacifista, €fa necessario voltar um pouco 4 politica. FG — Vocé disse, numa de suas entre- vistas, que o Partido Verde seria o maior partido reformista da Alemanha, no ano 2000, Vocé nao cré nas potencialidades te- volucionarias dos Verdes ou nao cré nas po- tencialidades revoluciondrias da Alemanha? DCB — Para mim, uma boa definicao de sevoluc&o € dizer que sevolugdio € uma forma excepcional de reformismo. A revo- higdo russa, em certo momento, tomou a forma de uma conquista violenta do poder por um partido. O que estava na ordem do dia, entretanto, era uma espécie de reforma estruturalr Podemos discutir a intensidade da reforma, mas era de uma reforma que se 47 tratava. O grande problema, para mim, nao é a tomada do poder por um partido. O problema que 0 reformismo coloca € que, para transformar uma sociedade, € preciso uma vontade majoritaria nesse sentido. A subjetividade das pessoas desempenha um papel enorme € os partidos politicos no po- dem substituir, ainda que com contetido ar- ticulado, a vontade majoritaria. “Os partidos politicos e 0 quadro insti- tucional funcionam como uma espécie de guarda-chuvas pata a teforma ea autonomia da sociedade civil. A sociedade civil, ela mesma, se reforma. A ideologia revolu- ciondria tradicional cometeu um erro quan- do afirmava que havia uma objetividade ne- cessatia A transformagio da sociedade, logo uma legitimidade objetiva no processo revo- luciondrio. Isto nao existe. “A partir dai, reformismo significa dizer que para haver transformacao € necessario se conseguir maioria. Vao dizer contra esta te- se: mas h4 0 capitalismo, o poder do Estado. E verdade. O poder do Estado, se 0 toma- mos de um ponto de vista policial-militar, nao pode ser vencido por nenhum processo revolucionario. O estado moderno, que sur- giu gtacas 4 revolucao francesa} terminou com a era das revolucdes. Hoje, a tomada do poder, talvez revolucionaria pela profundi- dade de transformagOes que trara, passa pe- 48

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