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Cantar os Reis e as Janeiras (Vila Real – Trás-os-Montes e Alto Douro)

Após o Natal e até ao fim do mês de Janeiro, grupos de homens e mulheres, jovens e
crianças, com ou sem instrumentos musicais (muitas vezes apenas acompanhados por
uma gaita de beiços), iam cantar, de porta em porta, para anunciar o nascimento do
Deus-Menino:

«’Inda agora aqui cheguei,

Mal pus o pé nesta escada,

Logo o meu coração disse

Qu’aqui mora gente honrada.

Avante, pastores,

Corramos a Belém,

Adorar o Deus-Menino

E à Sua Mãe.»

Há quem diferencie «os Reis» d’«as Janeiras», defendendo que aqueles cantar-se-iam
até ao dia de Reis:

«Hoje é dia cinco,

Amanhã é dia seis,

Viemos dar Boas Festas

E também cantar os Reis».

enquanto que as Janeiras cantar-se-iam, essencialmente, desde essa data até ao fim do
mês de Janeiro, sendo que o tema das quadras também mudariam um pouco:

«Quem diremos nós que viva,

No ramo da salsa crua,

Viv’à menina da casa

Qu’alumia toda a rua.


Quem diremos nós que viva,

No pêlo do cobertor,

Viv’ó menino da casa

Qu’anda a estudar p’ra dôtor.

Quem diremos nós que viva,

Nós não queremos ficar mal,

Vivam os patrões desta casa,

Vivam todos em geral.»

No final, a porta da casa abria-se e os donos ofereciam fumeiro, nozes, castanhas, vinho,
etc.

Quando alguma porta não se abria, todos diziam em uníssono: «Esta casa cheira a unto;
morreu aqui algum defunto».
Janeiras… Janeiras!
Viva o Senhor João

Cara de fino papel

Chegam-se as moças a ele

Como as abelhas do mel.

Janeiras… Janeiras… As Janeiras cantadas de porta em porta pelas ruas da minha aldeia
rodeada de pinheiros, castanheiros, vinhedos e olivais; defrontando, a altiva, Serra da
Estrela, vestida de neve debaixo do luar gelado.

Na escuridão da noite ouvem-se vozes em coro, cantando aqui e além em grupos, as


mesmas cantigas que de geração em geração se fizeram ouvir até aos nossos dias numa
comunhão de festa e de partilha em louvor do Ano Novo.

Levante-se daí Senhora

Do seu banco de cortiça

Venha-nos dar as janeiras

Ou de carne ou de chouriça.

As casas fartas; de porcos na salgadeira, papas na taleiga, fartura de sequeiro e dispensa


bem farta, raramente diziam que não aos cantadores. Aos garotitos umas maçãzitas,
nozes, figos secos, avelãs, castanhas, tudo servindo para a divisão final.

Outro rancho se aproxima. Cantadeiras de vozes bem timbradas, que a viola segue e a
guitarra acompanha os seus trinados.

Viva lá o Senhor António

Raminho de bem querer

Traga lá a chave da adega

Venha-nos dar de beber.

A espera não era muita, porque a porta de imediato se abria.


Então as raparigas com os xailes pela cabeça, abafavam o riso para não serem
reconhecidas. Os homens, esses não queriam saber de mistérios, aceitavam a pinga de
vinho que de tão boa vontade lhes era oferecido.

As Janeiras que nos deram

Deus será o pagador

Queira Deus que para o ano

Nos faça o mesmo favor.


Vimos dar as Boas-Festas,
Boas-Festas de alegria,
Já nasceu o Deus-Menino,
Filho da Virgem Maria!

Ainda a canção ia a meio e já a porta se abria, para que a luz da casa a todos
acolhesse. E a mesa, embora já levantada da ceia, voltava a encher-se do bom e do
melhor. “Quem é o do saco?” - perguntava de dentro uma voz meiga, anunciando uma
malga de figos secos, ou uma abada de nozes, prontas a entrar para o bornal do Zé. Às
vezes, porém, em casas de maior recato, para que a porta se abrisse tínhamos de orientar
a preceito a cantoria:

Levante-se daí, senhora,


Desse banquinho de prata!
Venha-nos dar Santos-Reis,
Que está um frio que mata!

E a porta, ainda que timidamente, lá acabava por abrir-se também. Ninguém


resistia aos cantadores. Ai, se resistisse!... Havia sempre versos para desfiar em todas as
circunstâncias:

Estas barbas de farelo


Não têm nada que nos dar:
Nem os restos da merenda,
Nem as sobras do jantar!

A menos que houvesse luto na casa - e aí, sim, respeito absoluto -, ninguém
tinha o direito de travar a alegria da noite. Uma alegria que distribuíamos, as mais das
vezes, a troco de uma simples malga de figos. E quem é que não tinha, afinal, uma
malga de figos para dar? Por isso não havia contemplações com os desmancha-prazeres:

Esta casa cheira a unto,


Aqui mora algum defunto!

E se o egoísmo ou a avareza dos da casa eram já pecha reconhecida, também não


havia perdão. Com voz de falsete, a malta entoava:

Nesta casa não cantamos,


Ali dentro cheira a sebo!
O tinhoso que lá mora
Ou é moiro ou é galego!

Corríamos, a pente fino, as casas pobres e ricas. E não se aprimoravam as rimas


só porque o senhorio era afidalgado ou pessoa de “teres”. Isso nunca. Mas onde
cheirasse a “matança” recente, aí sim, valia a pena o esmero da cantoria:

Quem “diramos” nós que viva,


Na doçura dum confeito?
Viva lá o Ti João
Que é um homem de respeito!

Às vezes o esmero do solista levava-o a fazer valer os seus méritos de


versejador. E, com novo fôlego, lá acrescentava:

E respeito quem o tem


É homem rico a valer.
Abra a porta, Ti João,
E venha-nos receber!

A porta abria-se num instante, como que movida por um acto de magia, e as
vozes dos cantadores invadiam toda a casa. O anfitrião, a derreter-se de orgulho, ordena
à mulher que encerte o fumeiro, e encarrega-se ele próprio de encher a pichorra. “Olhai
que é o melhor pingato da terra!” - vai avisando, entre duas goladas e um sugestivo
estalo da língua. Por fim, nós, os cantadores, “inspirados” pelas roscas de salpicão que
já nos namoravam os olhos sobre a toalha de linho, tratávamos de pôr termo com chave
de ouro à cantoria:

E p’ra acabar desejamos,


Com salpicão, vinho e broa,
P’ró Ti João muitos anos
E que lhos conte a patroa!

Era assim a noite de Reis, quase mística, quase divina, naquele altar da minha
infância, que foi a pequena vila de Sabrosa, no Alto Douro.

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