Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
NÓLIBOS, P. Sacrifício Na Grécia Antiga (Art.) PDF
NÓLIBOS, P. Sacrifício Na Grécia Antiga (Art.) PDF
Paulina Nólibos*
Resumo: O presente artigo é resultado de uma investigação sobre a função social da morte
sacrificial de jovens, presente na tragédia e na iconografia grega do período arcaico. O sacrifício
humano surge enquanto problema histórico, e percebe-se uma distinção entre jovens rapazes ou
moças, apontando para uma discussão sobre a questão de gênero no sacrifício e suas fundamen-
tações. Entre Micenas e o Oriente imaginário, no ciclo da Guerra de Troia, o sangue feminino co-
necta o Mediterrâneo. Ifigênia e Polixena, duas personagens do mito, representam o problema da
morte das donzelas, e estão presentes na abertura e no fechamento da guerra. Apontamos suas
presenças ora como signos de conotação erótica, numa relações entre casamento e morte, ora
como parte de uma estratégia reguladora dos costumes e normas sociais antes das leis escritas
serem produzidas e configuradas como padrão civilizatório.
Palavras-chave: Arte. Mito. Morte. Justiça. Norma.
Abstract: The present article is part of an inquiry about the social function of sacrificial death of
young people, in tragedy and greek iconography of the archaic period. The human sacrifice apears
as a historic problem, and we perceive a distinction between young male and female, pointing a
gender issue in sacrifice and its meanings. Between Mykenae and the imaginary orient, in the cicle
of Trojan war, the feminine blood connects the Mediterranean sea. Iphigenia and Polixene, two
mythical characters, show the women’s death problem, and they are present in the beginning
and in the end of the war. We point out their presences as signs of erotic meaning, in a relation
between marriage and death, or as part of rules and social norms strategies of social regulation,
before written laws had been produced and configurated as civilized pattern.
Keywords: Art. Myth. Death. Justice. Social rule.
Na Grécia antiga, muitas práticas sociais que nos parecem estranhas eram
observadas como parte de um universo de normas sociais reconhecidas. O pro-
blema é não apenas oferecer um contexto compreensivo dessas práticas ar-
caicas, mas valorizá-las como parte de um discurso acerca dos costumes e sig-
nificados existentes muito antes que leis escritas tivessem concedido o direito
de praticá-las ou as tivessem proibido definitivamente.
*
Doutora em História (UFRGS), graduada em Filosofia e professora na Universidade Luterana
do Brasil.
Nossas fontes mais antigas para o assunto não são casos verídicos, mas
obras de caráter literário e visual, as tragédias e os vasos de pinturas negras, pro-
duzidos na região da Ática, mais especificamente em Atenas, e nosso limite
cronológico se estabelece entre os séculos VI (para o documento visual) e as
tragédias de Eurípides, Ifigênia em Áulis (representada após a morte do autor,
em 406 a.C.) e Hécuba (em torno de 424 a.C.).
O problema que ora nos ocupa é o do sacrifício de jovens do sexo femi-
nino por motivos de ordem ritual: seu sangue derramado outorga certos pode-
res ou soluciona certas questões entre deuses e homens ou entre homens e
homens; simetria e assimetria assim se constituem. Nem todo o sacrifício hu-
mano descrito nas narrativas literárias é de mulheres: no mito de Tebas, confor-
me Eurípides nas Fenícias, o filho de Creonte, Meneceu, é oferecido para que
a cidade seja vitoriosa contra os chefes inimigos, mas a situação que nos ocupa
e que se refere a Troia indica duas personagens femininas, em idade núbil e
que, de alguma maneira, identificam-se no intrincado tecido do mito.
Evidências de existência real de sacrifícios humanos foram encontradas
em Creta e o corpo encontrado num santuário era de um rapaz, mas isso ainda
no segundo milênio antes de Cristo; em Esparta, Licurgo substitui o antigo sa-
crifício humano pela aspersão do altar quando da flagelação dos jovens (Pau-
sânias, III, 16, 10-17); Tucídides faz menção a um sacrifício humano antes da
Guerra do Peloponeso, mas já como gesto anômalo. Entre estes momentos,
um milênio da história grega havia transcorrido e as narrativas de Ifigênia e
Polixena estariam inscritas entre estes exíguos testemunhos históricos da pre-
sença de tal estrutura que é ao mesmo tempo política e religiosa. Elas, extraí-
das do mito, marcam o limite do início e do final da Guerra de Troia.
Ifigênia, segundo o verbete do Dicionário mítico-etimológico, de J. S.
Brandão, é um composto de ís, força, vigor, sob a forma instrumental îphi,
com força, vigorosamente, e da raiz gend que aparece no tema em s, guénos,
raça, família, notadamente a grande família patriarcal, donde Ifigênia é “a nas-
cida de uma raça forte, de uma família patriarcal” (1991, p. 599). Ifianassa é a
forma mais antiga do nome da filha de Agamemnon e Clitemnestra conforme
a encontramos na Ilíada (IX, 145,287), e a narrativa do seu sacrifício é matéria
corrente entre os artistas do século V.
Em parte por vingança pela sua morte, Clitemnestra justifica a morte do
rei, em Agamemnon de Ésquilo, mas este mito é entrecortado por variantes e
problemas, e Eurípides vai oferecer em Ifigênia em Táuride uma variação radi-
cal, pois a filha de Agamemnon nesta tragédia teria sido preservada a serviço
da deusa como sacerdotisa e sacrificadora de estrangeiros e termina por retornar
à Grécia. Segundo a tradição, a tragédia perdida de Sófocles, Crises, também
se refere à mesma variante, dando sequência à narração da fuga de Ifigênia,
Orestes e Pílades da Táurida, perseguidos pelo rei Toas e salvos por Crises,
neto do Crises da Ilíada, filho de Agamemnon com sua filha Criseide, e, por-
tanto, meio-irmão de Ifigênia e Orestes.
mais do que com a questão de Briseide e, senão, desencadearei sobre eles uma
tempestade depois da outra, [...] até que derramem para mim libações [...]. A ela,
a donzela, se quiserem, depois de tirar-lhe a vida, que a sepultem longe, ao que
de modo algum me oponho (v. 210-223).
vital; saltaram jatos de sangue. Porém, mesmo enquanto morria, ela deu grande
atenção a cair de modo apropriado, escondendo aquilo que se deve esconder
dos olhos dos machos”. Depois, alguns guerreiros espalharam folhagens sobre a
morta. O comentador anota:” Lançam-se folhas sobre Polixena como se tivesse
obtido a vitória nos jogos; de fato, era aquela a homenagem prestada aos vence-
dores (CALASSO, 1990, p. 85-86).
Referências
ANDERSON, Michael J. The fall of Troy in early Greek poetry and art. Oxford: Clarendon Press,
1997.
BOARDMAN, John. Athenian black figure vases. London: Thames and Hudson, 1995.
CALASSO, Roberto. As núpcias de Cadmo e Harmonia. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
EURIPIDES. Duas tragédias gregas: Hécuba e Troianas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
GELLIE, G. Helen in the trojan women. In: BETTS, J.; GREEN, J.; HOOKER, J. Studies in T.B.L.
Webster’s honour. Bristol: Bristol Classical Press, 1986. v. 1.
GREGORY, Justina. Euripides and the instruction of the Athenians. Ann Harbor: University of
Michigan Press, 1991.
LEXICON Iconographicum Mythologiae Classicae (LIMC). Artemis Verlag Zürich und München.
Printed in Zwitzerland. 1981. 16 v.
LORAUX, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher: imaginário da Grécia Antiga. Rio de
Jaaneiro: Jorge Zahar, 1995.
MICHELINI, A. Euripides and the tragic tradition. Madison: University of Wisconsin Press, 1987.
SHAPIRO, H. A. Painting, politics and genealogy: Peisistratos and the Neleids. In: MOON, Warren
G. Ancient Greek art and iconography. Madison, Wis: University of Wisconsin Press, 1983. p. 89.