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Objetivo do artigo: “No presente artigo, objetivamos demonstrar como o poeta constrói uma

paisagem religiosa através da ritualização da morte dessas personagens no palco,


evidenciando as possíveis hipóteses para tal, relacionando as obras com seu contexto de
produção.” (p. 1)

Tópicos: Introdução (1); Da transgressão à educação: o papel social do teatro grego e


Eurípides (2); Construindo uma paisagem religiosa: a ritualização da morte sacrificial em
Eurípides (3); Ifigênia: a morte pela Hélade (3.1); Polixena: a morte pela liberdade (3.2);
Conclusão (4).

● Introdução
○ A partir do tema da pesquisa de mestrado (analisar como a morte era
representada nas obras de Eurípides, tanto ao que se refere aos “ritos funerários
quanto ao imaginário acerca do além-vida” - p. 1), o artigo pretende destacar
um tipo de morte específico, que é o sacrifício humano.
○ O sacrifício humano é um tema de impacto, uma vez que não estava dentro das
normas da sociedade grega. E, como não é possível comprovar através de
relatos históricos e da arqueologia a sua existência como prática religiosa,
considera-se que estava presente no imaginário helênico, já que havia,
principalmente nas documentações poéticas, uma crença de que o sacrifício
humano existiu em seu passado histórico e que, eventualmente, foi abolido
pela sociedade.
○ Eurípides, portanto, “colocando em evidência o sacrifício de jovens virgens, o
poeta, além de gerar um impacto emocional e uma purgação das emoções, a
chamada catarse, também debatia questões do seu próprio cotidiano, sendo
uma em especial: a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.)” (p. 2)
○ Pretende-se analisar o rito do sacrifício não só por ele mesmo, mas também
como ele é construído, constituindo o que Catherine Bell chama de
“ritualização”. → “Devemos entender por esse conceito um conjunto de
estratégias culturais específicas que, apesar de seguir certas prescrições, é
singular e dinâmico, sendo capaz, inclusive, de contestar a ordem social
(BELL, 2009: 74).” (p. 2)
○ Os autores também utilizam o conceito de “representação social” da autora
Denise Jodelet com a finalidade de analisar como Eurípides simboliza e
interpreta o ato do sacrifício. → “Segundo a autora, as representações sociais
devem ser entendidas como o estudo “dos processos e dos produtos, por meio
dos quais os indivíduos e os grupos constroem e interpretam seu mundo e sua
vida, permitindo a integração das dimensões sociais e culturais com a história”
(JODELET, 2001: 10).” (p. 2)
○ A partir da análise da representação da morte sacrificial e da sua ritualização,
os autores defendem que “Eurípides compõe em sua peça uma paisagem
religiosa, construindo simbolicamente, como ressalta Polignac, uma mensagem
que deve ser entendida a partir do seu contexto de produção (POLIGNAC,
2010: 484).” (p.2)
○ “Paisagem religiosa” → “[...] O culto e os ritos existem apenas a partir do
espaço, de maneira estável ou provisória, devendo ser entendida, como
defendido pelo autor supracitado, como a integração de uma rede de
construções simbólicas do espaço a partir de um lugar preciso de
representação.” (p.2)
○ Os autores pretendem, a partir da análise das obras Hécuba e Ifigênia em Áulis,
evidenciar como e com quais finalidades a ritualização do sacrifício de duas
jovens virgens é apresentada por Eurípides.
○ O artigo tem a intenção de, primeiramente, evidenciar o papel social do teatro
e, depois, focar na ritualização do sacrifício, demonstrando como e para que
Eurípides constrói uma paisagem religiosa em suas peças.

● Da transgressão à educação: o papel social do teatro grego e Eurípides


○ O teatro ateniense pode ser considerado como uma instituição social, pela qual
se comunica e se educa e que, através dos personagens, encenavam os ideais de
cidadania que deveriam ser seguidos pelos helenos.
○ As tragédias tinham o objetivo de mostrar a necessidade de construir uma
sociedade voltada para o bem comum, que todos fazem parte de algo maior —
da pólis e da koinonìa politiké (comunidade política).
○ Com os mitos de pano de fundo, as tragédias também tinham um potencial
pedagógico: colocando-se a pólis em discussão, invertendo e contestando seus
valores, o público era educado pela catarse de ver sua comunidade destruída.
→ “Como destaca Goldhill, “É para o sentido de ser um cidadão ateniense que
a tragédia se volta, como veremos, com sua específica retórica de
questionamento” (GOLDHILL, 1986: 69).” (p.3)
○ “O poeta trágico, dessa forma, segundo Aristóteles, falava politicamente
através de suas personagens, alcançando verdadeira importância política
(JAEGER, 2010: 285 e 294).” (p. 3)
○ “Dessa maneira, o teatro torna-se espaço do tudo dizer, de debater, mas
também de transgredir.” (p.3)
○ O teatro grego acaba sendo um espaço de paradoxos → “Como ressalta
Vanessa Codeço, “Espaço híbrido. Espaço onde se constrói a pólis, destrói suas
bases, purgam seus efeitos e renasce uma pólis com valores atualizados e mais
fortes que quando o momento anterior ao festival. Esse é o teatro antigo grego”
(CODEÇO, 2010: 64).” (p. 4)
○ Os autores questionam: onde, então, a tragédia euripidiana se encaixa nesses
espaços? Como os sacrifícios humanos e suas ritualizações evidenciam o
caráter transgressor e educador do teatro? Quais as relações de poder exercidas
com o público? (p. 4) A paisagem religiosa seria a resposta ao relacionar a
mensagem simbólica, no caso o sacrifício humano, com o contexto de
produção. Portanto, de onde Eurípides fala?
○ As obras de Eurípides foram escritas em um período conturbado para Atenas:
de um lado, a democracia, a politização do homem, o comprometimento com a
coletividade e do outro, a Guerra do Peloponeso, na qual muitos guerreiros
morreram e, ainda, coincidiu com uma peste que assolou a pólis. Os atenienses
ficaram privados de alimento, só restando observar a fome e a peste se
espalhando.
○ As peças de Eurípides são as quais o cenário da cidade se faz mais presente e,
consequentemente, a atmosfera de morte e desilusão presentes em Atenas
atravessam suas obras e mostram os males da guerra, “humanizando” a
tragédia grega, “levando aos palcos os sofrimentos extremos de mães perdendo
seus filhos, de mulheres nobres sendo escravizadas e dos horrores da guerra.”
(p. 5)
○ O debate também é uma característica muito marcante das peças euripidianas:
seus personagens estão sempre em constante questionamento e, dessa forma,
Eurípides pretende que o público não apenas aceite suas obras, mas que
debatam-nas e contestem-nas.
○ Eurípides causava muito impacto com suas apresentações, levando ideias
diferentes ao povo ateniense e, dessa forma, tendo “papel considerável na
elaboração de uma visão do espaço ático” (p. 6).
○ É destacado, “como ressalta Maria de Fátima Sousa e Silva, como o artista
mais inconformado com a tradição e o que melhor soube dar voz as
preocupações que assolavam a pólis ateniense (SILVA, 2005: 127-8).” (p. 10)

● Construindo uma paisagem religiosa: a ritualização da morte sacrificial em


Eurípides
○ Qual o propósito de Eurípides ao transgredir as normas e levar o sacrifício
humano para os palcos?
○ “[...] O assassinato de seres humanos com fins sacrificiais segue as mesmas
circunstâncias e propósitos rituais que o usual assassinato de animais.” (p. 6)
→ Os gregos empregavam para sacrifícios humanos ritualizados as mesmas
palavras as quais eram utilizadas para referir ao abate sagrado de animais,
principalmente thuein, sphazein e derivados. (p. 6)
○ Ao sacrificar duas jovens virgens de sangue real, Eurípides aproxima as suas
mortes às dos animais que, usualmente, deveriam estar em seus lugares e até as
compara com novilhas e potras. E como essas jovens teriam toda uma vida
pela frente, casamento e família e isso lhes é tirado, o potencial trágico é maior.
○ A Guerra de Tróia se inicia e termina com um sacrifício. “Ifigênia e Polixena
são postas sob o cutelo do degolador como oferta a seres divinizados, mas
mesclando-se a todo tempo motivações políticas às religiosas” (SILVA, 2014,
p. 104-105).
○ Eurípides ao representar esses ritos sacrificiais cria uma paisagem religiosa
própria, que deve ser entendida a partir de seu contexto de produção.

● Ifigênia: a morte pela Hélade


○ “Agamêmnon, pai da personagem que dá nome a obra e chefe dos guerreiros
aqueus, é colocado diante de um dilema: sacrificar sua própria filha para que a
deusa Ártemis permita que o exército consiga avançar sobre Troia, visto que
uma calmaria acometia as frotas helenas.” (p. 7)
○ O conflito central da peça é o amor cívico à Hélade em disputa com os laços
familiares.
○ O sacrifício humano é uma resposta a um perigo que ameaça a existência da
coletividade.
○ O motivo religioso se atrela ao político, este último tendo um maior destaque
durante toda a obra.
○ “O foco dos versos de Ifigênia em Áulis se dá no constante agôn [conflito]
entre as personagens, as tentativas de persuasão e as cenas de súplica.” (p. 7)
○ “Ironia trágica” → relação entre o matrimônio e a morte sacrificial → os
animais utilizados para identificar jovens virgens, como novilha (móskos), são
também empregados para jovens que se dirigem ao altar nupcial. → “Tanto o
casamento quanto o sacrifício envolvem uma morte voluntária (real ou
simbólica), designando um resguardo do convívio social.” (p. 8)
○ “Participação no sacrifício significa participação em uma sociedade e, por
implicação, submissão a suas regras e requerimentos, e uma autorização por
uma parte em seus benefícios (ITO, 2005: 362).” (p. 8)
○ Nos versos 672 a 677 a paisagem religiosa do ritual vai sendo construída e
assim Eurípides dá, aos poucos, sinais do ritual que apenas se concretizará no
fim da peça: “para o sacrifício ser identificado como tal exige-se o pedido de
um deus, a presença de uma bacia lustral no local onde ocorrerá, assim como
de cantos no momento do mesmo.” (p. 9)
○ Ao descobrir o destino que lhe aguarda, Ifigênia, inicialmente, suplica ao pai
para que não a sacrifique, mas Agamêmnon resiste, já que o amor a Hélade
deve ser maior que os desejos pessoais.
○ Ifigênia, porém, passa de “vítima” para “agente heroicizada” e aceita seu
destino, consentindo seu sacrifício e colocando o amor pela patris acima de
sua própria vida.
○ O sacrifício de Ifigênia só é mostrado a nível de discurso através de um
mensageiro que narra à mãe, Clitemnestra, como ocorreu e, assim, construindo
a paisagem religiosa: Ifigênia é levada aos prados de Ártemis e posta sobre seu
altar e assim como no ritual matrimonial, uma coroa é colocada na cabeça da
virgem. Bacias de água são levadas e cantos e danças são realizados. Ifigênia é
conduzida ao altar e pede para que não seja segurada, que ela aceita
voluntariamente o golpe. Iniciam-se, então, as preces, que pedem a Ártemis os
ventos para que possam navegar à Tróia em troca do sacrifício. Quando
Ifigênia está prestes a ser degolada, a garota é substituída por uma corça e é
levada para junto dos deuses e sua coragem será rememorada pelas próximas
gerações.
○ “[...] Quais os fins dessa performance poética e as relações de poder que ela
exerceria com o público espectador? O que a construção simbólica dessa
paisagem religiosa implica para nós, historiadores, ao relacionarmos o
contexto de produção ao texto analisado?” (p. 10) → “Após a análise da peça,
interpretamos, assim como outros autores, que o poeta leva ao seu público os
males que a guerra pode causar, exigindo-se até mesmo a morte de jovens com
toda uma vida pela frente; mas também reiterando a necessidade de se colocar
sempre a pátris frente aos desejos individuais. Destaca-se aí a ambiguidade
que marca seu teatro, sendo um instrumento que é capaz de provocar a reflexão
do público e não dar a eles respostas sobre os problemas da cidade.” (p. 11)
○ Ifigênia pode ser relacionada com o hóplita: apesar de não querer morrer,
encara a morte de forma gloriosa e dá sua vida pela pólis. Essa devoção
altruísta serve para inspirar o exército, incentivando a coragem e o patriotismo
e os homens a fazerem o mesmo caso fosse necessário.
○ Ainda visando o contexto, era compreensível “a subordinação do indivíduo ao
Estado” (p. 11) aparecer nas obras de Eurípides, uma vez que, na época, “o
sacrifício pela pátria era uma virtude comum entre os gregos” (p. 11).
○ Observa-se uma transgressão em prol da educação através da catarse.

● Polixena: a morte pela liberdade


○ “Tendo sua história narrada após o embate entre aqueus e troianos, a peça
Hécuba, considerada um díptico, ou seja, dividida por duas temáticas
independentes, destina sua primeira parte a apresentar o sacrifício da filha da
personagem que dá nome a obra: Polixena. Assim como Ifigênia, jovem e
virgem, de sangue real, a princesa de Troia, agora escrava, é exigida como
géras de guerra de Aquiles, que já morto vem sob a forma de um fantasma
requisitando honrarias de sangue sobre seu túmulo.” (p. 12)
○ “Assemelhando-se à Ifigênia em Áulis, Aquiles, elevado a uma categoria
divinizada, não permitiria a volta das frotas aqueias se o sacrifício não fosse
realizado. Novamente vemos o religioso conectado ao político: põe-se em
debate a necessidade de prestar honras aos mortos, assim como a tristeza dos
cativos.” (p. 12)
○ “Através da votação em assembleia, levando a democracia ateniense ao interior
do mito, os guerreiros, entre discordâncias e defesas sobre o sacrifício da
jovem, decidem por acatar o pedido do semideus.” (p. 12)
○ Hécuba é a principal debatedora da peça ao tentar persuadir (peithó) a não
sacrificarem sua filha, Polixena.
○ Hécuba questiona a transgressão do ato sacrificial, mas mais uma vez as
necessidades cívicas são superiores aos desejos próprios e aos laços familiares.
○ Polixena, no entanto, diferentemente de Ifigênia, aceita a própria morte por
preferi-la ao futuro que estava reservado para ela como escrava. Desde o início
ela aceita voluntariamente seu sacrifício e não suplica pela sua vida.
○ Não é o amor à pátria que move Polixena. Pelo contrário, ela vê em sua própria
morte uma libertação da situação a qual se encontra, mesmo que seja em
sacrifício para um herói que venceu o seu país (Tróia).
○ Assim como Ifigênia, Polixena é uma virgem retratada como um hóplita:
enfrenta a morte de frente. Ambas são a “vítima ideal”: elas aceitam a própria
morte e não resistem e “submissamente” consentem em “servir e exaltar” com
seus corpos “a honra de um guerreiro” (p. 13).
○ O sacrifício de Polixena também é apenas narrado por um mensageiro à sua
mãe, Hécuba.
○ O local de sacrifício é o túmulo de Aquiles e quem o realizará é o filho do
herói, Neoptólemo. Assim como Ifigênia, se recusa a ser segurada, recebendo a
morte voluntariamente. Neoptólemo ora a Aquiles, pedindo para que receba as
libações e o sangue de Polixena e que, assim, permita o retorno dos guerreiros.
Polixena, por sua vez, ressalta novamente o porquê de aceitar sua própria
morte: prefere ser livre morta a viver como escrava sendo rainha. A jovem,
então, mostra seus seios de forma a gerar piedade e sua garganta é cortada,
jorrando sangue e finalizando o ritual.
○ Quais os propósitos dessa ritualização? Qual a relação entre a paisagem
religiosa e o contexto de Eurípides? → Primeiramente, evidencia de novo os
males da guerra, mas a partir da escravidão imposta aos vencidos e à violação
das mulheres e dessa forma demonstra que é melhor morrer a se submeter aos
inimigos. Em segundo lugar, demonstra que as devidas honrarias devem ser
dadas aos mortos.

● Conclusão
○ A partir da ritualização da morte, Eurípides ressignifica o sacrifício e
estabelece uma relação de poder com a sociedade: a de debater o dia a dia e a
de educar os cidadãos sobre as condutas corretas. O poeta levava aos palcos os
males da guerra, mas também a sua necessidade; como deveria enfrentar a
morte e prestar honra aos mortos.
○ A tragédia grega, portanto, não é apenas um entretenimento, mas uma reflexão.

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