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CAMPEÕES DO MUNDO

DIAS GOMES
Do autor:

Amor em Campo Minado


O Bem-Amado
O Berço do Herói
Decadência
A Invasão
Meu Reino por um Cavalo
Odorico na Cabeça
O Pagador de Promessas ,."
As Primícias
O Rei de Ramos CAMPEOES
O Santo Inquérito
Sucupira, Ame-a ou Deixe-a
lilrgas
DO MUNDO
Coleção Dias Gomes
Mural dramático em dois painéis
Vol. 1- Os Heróis Vencidos
Vol. 2 - Os Falsos Mitos
Vol. 3 - Os Caminhos da Revolução
VoI. 4 - Espetáculos Musicais
Vot. 5 - Peças de Juventude

Apenas um Subversivo
Autobiografia

IB
BERTRAND BRASIL
Copyright © 1991 by Dias Gomes

Capa: Raul Fcrnandcs

Eclítoração eletrônica: Imagem Virtual Editoração Ltda.

2004
Sumário
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

Prefácio 7
CIP-Bra.,il. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Calendário 25
Gomes, Dias, 1922-1999
G613c Campeões do Mundo: mural dramático em dois painéis/ Dias
2"ed. Gomes; - 2" ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
192p. Nota do Autor 31
ISBN 85-286-1071-3
Texto da Peça 37
1. Teatro brasileiro (literatura). I. Título.

CDD-869.92
04-1789 CDU - 821.134.3(81)-2

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Prefácio

Não será por acaso que Dias Gomes é o dramaturgo bra-


sileiro mais estudado no exterior, em artigos, ensaios, teses
universitárias e até mesmo cursos monográficos. A distância
geográfica e o "estranhamento cultural" permitiram aos tea-
trólogos estrangeiros perceber algo que o calor da proximi-
dade, dos modismos e a vivência das disputas paroquiais
nem sempre nos permitiram ver com clareza: que, se é im-
possível apontar-se um dramaturgo contemporâneo "típico"
no Brasil (e o "típico" é sempre algo que a estética repele ou a
história desmente), Dias Gomes é indiscutivelmente o mais
representatiuo autor do que se convencionou definir como "o
moderno teatro brasileiro",
É essa "representatividade" abrangente que confere à
dramaturgia de Dias Gomes uma condição quase paradig-
mática do teatro brasileiro moderno e contemporâneo, cons-
tituindo-se num parârnetro sólido (e talvez único) que per-
mite discernir as principais linhas de força de um conjunto
aparentemente desconexo, assim como dar a medida dos
desvios individuais, frutos da originalidade das personalida-
des artísticas que o compõem,

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Dois são os motivos principais que conferem à drama- d ua produção e a integridade de sua personalidade artísti-
turgia de Dias Gomes esse caráter paradigmático: a conti- a, por outro lado teve a sabedoria de fazer-se sensível às mu-
nuidade na ordem temporal e a natureza integrativa de que danças da conjuntura econômica, social e política, assim
se reveste, tanto no plano temático e conteudístico como ao como às inovações surgidas na literatura, no teatro e no cená-
nível da expressão dramática. rio artístico-cultural, de modo mais amplo.
Quanto ao primeiro desses aspectos, convém lembrar Sua dramaturgia consubstancia o que-de mais caracte-
que Dias Gomes inaugura, juntamente com Nelson rístico possui o moderno teatro brasileiror'a tentativa de pôr
Rodrigues, o período considerado como "moderno" do tea- em cena o personagem autenticamente nacional, com suas
tro nacional, nos inícios da década de 40. De Pé de Cabra a particularidades, seu modo peculiar de expressão, suas con-
Campeões do Mundo sua produção dramática tem sido tradições e incongruências; a preocupação de enfocar esse
constante e praticamente ininterrupta (mesmo quando o personagem não como indivíduo isolado, ao nível pura-
veículo foi diverso do palco), atravessando os vários mo- mente psicológico, mas de mostrá-lo como integrante de
mentos vividos por nossa dramaturgia até o presente. E seja um contexto histórico-social determinado e o supera e
por suas qualidades intrínsecas, por seus dotes de comuni- delirüi a o -âffil51to de sua atuação; a utilização do perso-
cação com o público e pela habilidade com que o dramatur- nagem e do mythàs para, através deles, promover a análise e
go soube contornar entraves das mais variadas ordens, essa a discussão daqueles aspectos estruturais ou conjunturais
produção foi contínua não apenas enquanto literatura dra- mais abrangentes; a consciência de que é preciso significar
mática (como a de outros dramaturgos que permaneceram com clareza e estabelecer uma comunicação efetiva com o pú-
escrevendo, embora tivessem suas obras compulsoriamente blico, dosando adequadamente a discussão das idéias e a
"engavetadas" pelos censores), mas fez-se presença cons- necessidade da diversão, e excluindo por princípio todo
tante nos palcos, nas telas e nos vídeos, sem que para isso o hermetismo ou elitismo ao nível da expressão literária; de
dramaturgo se visse forçado a abrir mão do ideário que o modo mais genérico, a convicção de que o teatro não pode
norteava. Dias Gomes nem sempre pôde dizer o que quis; ser simples divertimento alienante nem, em contrapartida,
mas jamais se furtou a dizer o que pôde. E mais do que o uma arena real onde se travam batalhas decisivas para as
período de tempo considerado ou o volume do acervo pro- mudanças sociais - é, isto sim, um importante instrumen-
duzido, é a constância desse diálogo entre autor e público to de ampliação de consciências, que nada muda por si,
que contribui para fazer de sua dramaturgia a mais repre- mas pode (ou não) levar o espectador a tornar-se um agente
sentativa do teatro brasileiro moderno. ou protagonista das mudanças lá onde elas efetivamente se-
No âmbito da temática, do conteúdo e dos modos de ex- rão feitas: fora do palco, no "grande teatro do mundo".
pressão dramática, esse caráter de representatividade é ainda Estas postulações simples e gerais, reconhecíveis ao lon-
mais evidente. Durante quase quarenta anos, Dias Gomes go de toda a dramaturgia de Dias Gomes, poderiam ser to-
atravessou momentos, movimentos e modismos os mais di- madas como o programa básico, o denominador comum
versos; se, por um lado, soube manter a coerência ideológica daquilo que o moderno teatro brasileiro procurou realizar

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desde a reviravolta dos anos 40. Não porque o autor de O Pa- reflexão ampla sobre o período que viveram, sobre a validade
gador de Promessas formulasse tais itens como um ideário ou o desacerto de suas opções, as conseqüências das ações que
prévio a ser seguido por seus companheiros de geração, mas praticaram e as perspectivas do presente. Essa reflexão leva-os
sim porque soube captar e integrar ao seu teatro e às suas não apenas a rememorar os episódios mais marcantes do se-
opções de cidadão e de artista os temas e idéias mais marcan- qüestro como também a rever seus próprios itinerários e os da-
tes do seu tempo, traduzindo-os através de recursos expressi- queles que a seu lado participaram da luta armada nesse pe-
vos sempre atualizados, graças ao diálogo ininterrupto que ríodo. Assim, propõe-se Dias Gomes a trazer ao palco uma
conseguiu manter com a platéia ao longo de todos esses anos. amostragem, se não completa, ao menos bastante representati-
Se para o historiador do teatro é importante reconhecer va de personagens da nossa história recente, aos quais até há
na obra de Dias Gomes a súmula do que constitui o projeto pouco foi negado o direito de existência cênica; e, através do
da moderna dramaturgia brasileira, para o crítico representa desenrolar da ação, pretende o dramaturgo ir além da discus-
um desafio fascinante a tentativa de reconhecer, a cada nova são do evento centralizador do entrecho (o seqüestro em parti-
peça desse autor, as indicações dos rumos para os quais pode cular ou o fenômeno da luta armada em geral), para esboçar
tender o conjunto de nossa dramaturgia, num futuro próxi- um panorama amplo e geral do período sobre o qual se voltam
mo. É com esse espírito que tentaremos examinar alguns as- as reflexões de Tânia e Ribamar (1964/1979).
pectos da última peça de Dias Gomes, Campeões do Mundo,
O projeto é ambicioso, como se vê; e poderia redundar
recentemente estreada no Rio de Janeiro. Num momento em
numa das peças mais maçudas e maçantes de toda a drama-
que a literatura dramática no Brasil parece inusitadamente
turgia nacional se, em mãos menos hábeis, menos expe-
amorfa, abúlica e apática, será útil tentar desvendar as con-
rientes ou menos inspiradas, contasse apenas com os esque-
quistas alcançadas por esta nova peça e os rumos possíveis mas tradicionais de desenvolvimento e progressão da ação
que prenuncia.
dramática; ou se, atendendo aos devaneios de alguns inte-
lectuais que em seus gabinetes - e talvez levados por um in-
o enredo de Campeões do Mundo pode ser resumido em consciente mecanismo de compensação - idealizam ro-
poucas palavras: voltando ao país após nove anos de exílio, o manticamente o nível de reflexão e discussão mantidos pelos
escritor e ex-publicitário Ribamar, um dos muitos banidos pe- que no Brasil optaram pela luta armada no final da década
los governos militares que se sucederam no poder após 1964, de 60, o autor consentisse que seus personagens se entregas-
encontra-se no aeroporto com Tânia, antiga companheira de sem a fastidiosas e intermináveis ponderações de natureza
organização, com quem participara do seqüestro de um ética e filosófica, no momento mesmo em que participavam
Embaixador norte-americano no Rio de Janeiro, em 1970, na da ação revolucionária. Isto, além de contrariar os mais co-
época em que o Brasil inteiro se voltava para o Campeonato mezinhos princípios de verossimilhança, conferiria aos per-
Mundial de Futebol, no México. Todos os demais partici- sonagens uma substância e um tipo de comportamento in-
pantes diretos daquela ação foram mortos pelos órgãos de re- teiramente diverso do revelado pela média dos muitos
pressão ao terrorismo; resta hoje a Tânia e a Riba fazer uma combatentes reais que serviram de referência à criação

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dramática*. Felizmente, porém, Dias Gomes - como au- deixá-lo fruir tranqüilamente das verdades literariamente
têntico homem de teatro - preferiu sempre deixar que a enunciadas pelo autor através das falas de seus personagens.
ação dramática falasse por si e suscitasse os problemas a se- E desagradável igualmente àqueles que estão acostumados a
rem posteriormente tomados como objeto de reflexão pelo identificar o teatro voltado para temas sociais e políticos com
leitor ou espectador. Opção corretíssima, de vez que o ele- uma certa dramaturgia festiva e simplista que, herdeira de
mento fundante do fenômeno teatral- a ação dramática - movimentos norte-americanos e europeus anteriores à Se-
jamais poderá ser substituído pelo elemento constituinte da gunda Guerra Mundial, floresceu entre nós até recentemen-
literatura (a palavra), que é arte de natureza inteiramente di- te. A prevalência da ação dramática como elemento básico da
versa**. Com isso, ganhou a dramaturgia coâtemporânea significação torna a obra necessariamente mais aberta, passí-
uma peça dotada de linguagem cênica provocativa e grande vel de leituras diversas, permeável à dúvida, à incerteza, à
impacto teatral, e concomitantemente livrou-se o público de discussão. Excluem-se, assim, aquelas "certezas" bombásti-
assistir, aprês Ia lettre, uma reedição nacional d'Os Justos, de cas proclamadas pelo autor travestido em personagem - tão
Camus, ou uma espécie de Mortos sem Sepultura às avessas reconfortantes para um certo tipo de platéia engajada que,
_ ou seja, um tipo de literatura dramática datada e, a des- traindo neste ponto sua mentalidade burguesa, procurava no
peito de suas virtudes intrínsecas, inaceitável como escritura palco apenas a pública confirmação de seus valores e de sua
cênica neste final do século XX. visão do mundo. Campeões do Mundo, ao contrário, abre-se
A apresentação dos fatos para uma reflexão posterior da para o questionamento, para a dúvida e até mesmo para a
platéia aparece assim como o fator capital das inovações tra- perplexidade, em todos os níveis: nos itinerários de seus
zidas por Campeões do Mundo e é o elemento determinante personagens, nas situações com que se defrontam, em seus
das estratégias dramatúrgica adotadas pelo autor nesta obra. modos diversos de encarar os fatos vividos e as decisões a to-
Esta opção dramatúrgica parece indicar que o teatro brasilei- mar, e, acima de tudo, na própria organização estrutural do
ro tenderá a privilegiar a ação dramática como base da signi- rnythõs (onde o mais frisante exemplo é, sem dúvida, a justa-
ficação no fenômeno cênico, relegando a segundo plano a posição e a convivência de elementos tão diversos como anis-
expressão puramente verbal ou literária (e é este, aliás, o lu- tia e Flamengo, seqüestro e Campeonato Mundial de Fute-
gar que verdadeiramente lhe cabe em todo teatro autêntico, bol, etc.). Assim, desagradando a gregos e troianos, Dias
nos tempos modernos). Aos passadistas certamente repugna- Gomes consegue atingir precisamente aqueles que consti-
rá esta escolha, que força o público a uma leitura muito mais tuem a mais importante parcela do público: os que procu-
atenta e "ativa" das ações mostradas em cena, ao invés de ram compreender e identificar-se com a realidade de um país
que a todo momento os força ao questionamento de posi-
* Basta conferir, para tanto, os relatos testemunhais
de Alfredo Syrkis, em ções, coloca-os em dúvida e freqüentemente deixa-os perple-
Os Carbonários, Ed. Global, SP, 1980, e Fernando Gabeira, em depoimen-
xos. É a estes, que não se mumificaram em imutáveis certe-
to a O Pasquim, 1979. . a
** Cf. Anatol Rosenfeld, Texto/Contexto, São Paulo, Perspectiva, 3 ed., zas nem em verdades de ocasião, que a peça se dirige, como
1976, pp. 21-43. proposta de reflexão - pois são eles (os que estão vivos e

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sensíveis à mudança) os únicos espectadores válidos junto julgamento passado sobre os jovens dos anos 60 ou sobre os
aos quais o teatro poderá efetivamente desempenhar a fun- participantes da luta armada: a todo momento suas ações pa-
ção social que lhe cabe: promover o debate, questionar as recem contrariar as idéias e as intenções originais; por vezes,
verdades estabelecidas, instigar a um aprofundamento da constata-se o saldo positivo de ações aparentemente equivo-
compreensão e ampliar as consciências. cadas; outras vezes, são essas ações que parecem escapar aos
objetivos visados pelos personagens, conduzindo-os a um
É claro que a persona do autor não se anula nem de- rumo não desejado. Não há, aqui, impolutos heróis gorkia-
saparece; apenas se torna uma presença mais discreta, menos nos nem idealizações materializadas em personagens, tão a
rnessiânica no que tange à veiculação das idéias, abrindo gosto de uma certa corrente do chamado "realismo socialis-
campo para a participação ativa do espectador no processo de ta;'. Aliás, é exatamente o confronto entre a teoria e a práxis
reflexão e formulação de conceitos. Em contrapartida, seu revolucionárias que constitui um dos mais fortes elementos
posicionamento ideológico torna-se muito mais importante de tensão na ação dramática de Campeões do Mundo, e os
e vigoroso, porque exercido através de um instrumental mais exemplos disso são inúmeros: a discussão mantida pelo ve-
sutil e sofisticado: a seleção dos fatos a serem apresentados e lho militante do Partido com o Dirigente, quando o primeiro
sua estruturação como ação dramática. A exemplo do que parte para uma luta suicida ao constatar que chega ao fim da
faz a cârnera no cinema, é ele quem nos indica os fatos para vida sem que aparentemente tenha avançado um palmo na
os quais devemos atentar e os ângulos até então insuspeita- consecução dos seus objetivos sociais e políticos, após déca-
dos pelos quais poderemos doravante encará-los, Ao agir as- das de militância intensa; a contraditória figura do Embaixa-
sim, revela o que a aparência ocultava e abre perspectivas dor norte-americano, tão fácil de caricaturar em outras cir-
para uma compreensão renovada - o que corresponde à sua cunstâncias, mas que Dias Gomes esmera-se em apresentar
função de artista -, mas exime-se de passar julgamentos ou como cindido entre a realidade que vive como pessoa e a de-
formular conclusões (embora os tenha para si, como homem fesa convicta dos interesses do país que representa; a atribui-
e cidadão). A obra é fruto de sua visão do mundo, mas esta ção da colocação mais elitista ao personagem mais radical e
visão não é imposta ao leitor/espectador como a única pos- intransigente da peça (Carlão, o mais violento e sectário dos
sível, através de formulações verbais "fechadas". A preva- seqüestradores, filho de operários, fica indignado ao consta-
lência da ação dramática como fonte de significação traz tar que o povo não dá qualquer importância ao seqües-
consigo uma necessária abertura que exclui, ad limine, as tro, preferindo acompanhar a decisão da Copa do Mundo:
reduções simplistas e a possibilidade do maniqueísmo no "- ... Será que esse povo merece o que tamos fazendo por
desenvolvimento dos personagens e situações. E isto é tanto ele? Tou arriscando a minha vida por um povo alienado, que
mais verdadeiro no caso de Dias Gomes, cuja visão dialética só pensa em futebol! Puta que pariu!"); a própria organiza-
da realidade põe sempre em evidência as contradições inter- ção dos quadros na estrutura do enredo, onde por vezes uma
nas e externas dos personagens e das situações. Sairá certa- dada ação ou afirmação é contestada ou questionada pelo
mente frustrado quem espere de Campeões do Mundo um que se revela na ação seguinte; os conflitos entre as vidas

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RIBA - Pela pressa que tínhamos? Ou por não enxer-
pessoais e as atitudes decorrentes das opções políticas de
garmos outro caminho?
Velho militante e de sua mulher, do industrial pai de 'Tânia,
( ...)
Müller (que financiou os órgãos de repressão onde sua filha
TÂNIA - Há erros que não podem ser evitados.
é torturada), do policial inquiridor, etc. Essa opção antirna-
niqueísta por excelência não é fruto do acaso, mas constitui RIBA - E o que você acha?
uma postura claramente intencional, coerente com a visão TÂNIA- É.
dialética do mundo perfilhada pelo autor, como se pode veri- RIBA - Não estou certo disso."
ficar no diálogo que hoje travam os dois protagonistas:
É, como se vê, um questionamento incessante que se
"TÂNIA - Você não mudou nada. Sempre se questio- conta e se propõe como tal, sem subterfúgios, excluindo de-
nando. liberadamente a possibilidade de certezas e verdades pré-
RIBA - Você não se questionou durante todos esses fabricadas. E é essa postura aberta que permite ao público,
anos? Suas intenções, os fins a que se propunha, as ações no painel final da peçarnedir e confrontar posições diame-
que praticou? tralmente opostas sobre a luta armada, por exemplo, ao rece-
TÂNIA - Claro. Mas acredito ainda nas mesmas ber em sucessão imediata os julgamentos do Embaixador
coisas. norte-americano e do Dirigente do PCB sobre os combaten-
tes daquele período.
RIBA - Também eu. Ainda acho que a dignidade do
homem é inseparável das intenções e dos fins a que ele se Estamos diante de uma linguagem cênica que, sem ex-
propõe. Só que entre as intenções e os fins há sempre uma cluir a tensão dramática e a diversão, propõe-se delibera-
série de mal-entendidos. damente a fazer pensar sobre os conteúdos a que se refere,
TÂNIA - Mas será que isso não é inevitável em todos sem proclamar verdades ou certezas. Nisto, Campeões do
os processos revolucionários? Ilusões, mal-entendidos ... Mundo revela um extraordinário salto qualitativo em relação
à nossa dramaturgia de cunho político-social dos anos 60 e
( ...)
70, onde o dramaturgo parecia freqüentemente possuir a
. .. acho que as coisas não podem ser julgadas assim,
chave de uma verdade já de antemão compartilhada por uma
certo-errado, errado-certo. Qualé? Nossa geração não teve
platéia cúmplice, que extravasava catarticamente sua apro-
outras opções. Não é justo que nos chamem agora pra um
vação no teatro para submergir depois numa realidade feita
ajuste de contas, de dever e haver, sem levar isso em conside-
de silêncios e omissões inglórias. Nesta peça, Dias Gomes
ração.
procura obter o efeito contrário, demonstrando ter assimila-
RIBA - O que me pergunto é se nós adiantamos ou
do magistralmente e adaptado com perfeição à nossa estética
atrasamos o processo. Isso me fundiu a cuca durante todos
a lição do melhor Brecht: rovocar a olêmica e a discussão
esses anos. Tou me referindo à nossa ação como um todo, à
entre .2 Rúblico, estendendo e Q[olong~do as fronteiras do
luta armada.
fenômeno teatral para além dos limites d~ palco, da sala e
TÂNIA - Era a única saída.

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..•,
o
gas duas horas.de.duração do espetáculo. Pois foi o próprio epos contemporâne~..:;ag~sh~.Lg!!errilheiros urbanos no
B. B. quem afirmou, no final da Alma Boa de Setsuan: Brasil dos anos 1QJHá também a considerar o fato de que a
história, ao menos superficialmente, já é conhecida do gran-
". .. Ficamos tristes também ao notar, por nosso lado, de.público, o que faz com que, sem quebra da tensão dramá-
tanto problema em aberto e o pano de boca fechado. Qual- tica, o interesse da platéia se desloque do desfecho (o que vai
quer sugestão, portanto, acatamos com respeito: recolham-se acontecer) para outros as ectos mais relevantes do discurso
às suas casas e disto tirem proveito! cênico fcomo e por ue aconteceu). Por isso, sem deixar-se
submergir pelo desenrolar do entrecho, ode o úblico assim
( ...)
se fossem outros os homens, ou se outro fosse o mundo, "d!stanc~ado" exerfitar suaÔ~lig~ncia.s6ti.ç.a - objetivo
ou se os Deuses fossem outros ou nenhum - como seria? .: primordial do dramaturgo, neste caso.
( ...)
<r>
Prezado Público, vamos: busquem sem esmorecer! O elemento épico de maior realce é, porém, a estrutura-
. haver uma saída: precisa haver, tem que haver.1"*
Deve ção da fábula em cenas independentes de curta duração (al-
gumas não atingindo sequer meia página de texto), e que
Não é ao Brecht didático e proverbial dos leherstiicke que Dias Gomes maneja com maestria inigualável. Isso dá ao
Campeões do Mundo nos remete; nem tampouco àquele discurso dramático uma fluência, uma agilidade e um ritmo
Brecht de linguagem dramática mais tradicional e "realista" absolutamente novos, que jamais poderiam ser obtidos
_ Terror e Miséria, As Visões de Simone Machard, Os Fuzis da numa peça de estrutura tradicional, com sua progressão em
Sra. Carra~, etc. -, como já foi o caso de outras obras do autor atos ou mesmo em cenas e quadros dispostos em sucessão
(O Santo Inquérito, O Pagador de Promessas). Obra de maturi- cronológica. Não existe propriamente um fulcro irradiador
dade, é ao Brecht mais maduro que Campeões do Mundo mais de imagens do passado (como era o apartamento de Man-
se avizinha - ao de Galileu, Alma Boa e Mãe Coragem, que se guari Pistolão no Rasga Coração, de Vianinha); as cenas são
propunham mais a interrogar do que a responder, e nos quais aqui dispostas com total flexibilidade e independência, suce-
há um sensível equilíbrio entre as exigências da tensão dramá- dendo-se unicamente na medida em que servem ao desen-
tica e a estrutura épica. volvimento do discurso - ou seja, não funcionam como me-
A referência ao épico não pode ser esquecida na análise ros flashbacks (recurso já amplamente explorado em nossa
de Campeões do Mundo. Em que pese a estrutura dramática dramaturgia), mas como unidades independentes de signifi-
de seus diálogos, a peça está eivada de elementos de natureza cação que se esclarecem mutuamente. São estas unidades
épica, sem os quais não poderia ser devidamente compreen- que vão afinal constituir a própria substância do discurso
dida nem atingiria os fins a que se propõe. O primeiro deles dramatúrgico através de sua justaposição, ora no sentido de
reside na própria escolha do tema, que nada mais é senão um complementar o que anteriormente foi mostrado, ora no
sentido de questioná-lo, negá-lo ou então evidenciar as-
* B. Brecht,AAlma Boa de Setsuan, trad. Geir Campos e A. Bulhões, Rio,
pectos que passariam despercebidos, como uma espécie de
Civilização Brasileira, 1977.

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contraponto à ação desenvolvida em outra cena. Este modo I irarna mais vasto. São estas, aliás, as exigências básicas
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muito mais "aberto" e flexível de estruturação do texto d, t atro épico, tanto do ponto de vista da coerência estética
dramático é uma das mais expressivas conquistas de Dias t mo da eficácia no plano ideológico.

Gomes em Campeões do Mundo: um caminho que, se bem É certo que, ao escrever Campeões do Mundo, Dias
aproveitado, poderá resultar numa adequação muito maior 1 mes valeu-se de relatos individuais dos que tomaram
da linguagem de nossos palcos ao tipo de informação estética Iarte naquelas ações e de notícias que reuniu nas mais va-
e factual que o homem contemporâneo vem recebendo de ri das fontes. Isto, porém, foi apenas a base, o ponto de par-
outros veículos de comunicação. lida para a construção de uma obra que nada tem de docu-
Além de excepcional domínio técnico, essa estrutura mental, de histórico ou jornalístico. Trata-se de obra de
entretecida de cenas curtas e autônomas entre si implica ficção na mais pura acepção do termo, e que assim deve ser
um grande poder de síntese e concisão, para que em poucas lida, sob pena de lamentáveis equívocos em sua interpre-
palavras e sem perda do ritmo geral da peça se possa criar tação. Campeões do Mundo nada tem a ver com o teatro-
uma dada atmosfera ou transmitir com precisão uma idéia. documento pós-brechtiano (O Interrogatório, de Peter
Essa concisão e esse tipo de abordagem enxuta e sintéti- Weiss, O Caso Oppenheimer, Are you now or haue you euer
ca conferem aos personagens e situações de Campeões do been, de Eric Bentley, ou mesmo, entre nós, O Caso Aracelli,
Mundo uma outra característica que novamente os aproxi- baseada no livro-reportagem de José Louzeiro), cujas técni-
ma do teatro épico moderno: a exemplaridadc (que, diga-se cas e finalidades são outras. Num momento em que uma
de passagem, nada tem a ver com o caráter prototípico ou parcela ponderável do teatro e da produção literária no
didático que encontramos nos personagens e situações de Brasil procura validam ente os traços de um passado recente
uma dramaturgia menor e inclinada ao facilismo). O cará- que havia sido condenado ao silêncio, o objetivo de Dias
ter exemplar de personagens e situações de Campeões do Gomes é diverso: ele não quer reconstituir o passado, nem
Mundo em nada reduz a riqueza de suas dimensões huma- mesmo criticamente (como é o caso, por exemplo, de
nas ou a complexidade de que se revestem, em todos os ní- Gabeira em O que é isso, companheiro?, obra importante
veis; pelo contrário, enriquece essas dimensões e essa com tanto sob o ponto de vista documental como literário, mas
plexidade, porque não as torna privativas de uma situação cujo sentido e cujos propósitos nada têm a ver com os de
única e irrepetível, ou de uma psicologia individual, mas Campeões do Mundo): sua preocupação não é ater-se aos fa-
alarga o campo de reflexão de modo a abranger os variados tos realmente acontecidos, a fim de elucidá-los ou mesmo
protagonistas e as ações diversas que compuseram um dado posicionar-se em relação a eles (e por isso mesmo não relata
momento histórico. Sem contentar-se com os temperamen- um seqüestro ocorrido nem retrata indivíduos realmente
tos e psicologias individuais, a análise dirige-se também aos existentes, mas reúne dados expressivos de várias ações ar-
pensamentos, às ações e às idéias; sem ignorar a particulari- madas e enfeixa em alguns personagens as facetas mais re-
dade das situações, a reflexão encaminha-se para aquelas presentativas daqueles que tomaram o caminho da luta
que são mais representativas, a fim de poder abranger um armada no Brasil). Para Dias, como esclarece sua nota

20 21

r
introdutória à peça, "o que importa é a essência do gesto, e Em boa hora, Dias Gomes deu-se conta desse contra-
não o gesto em si". Diríamos que a diferença básica entre s .nso que é erigir-se uma estratégia em norma de escritura
aquelas outras.~~ C!!:m1!!õesdo Mundo pode ser assim dramática; e escreveu uma peça onde a metáfora está com-
resumida· não há nesta peça a tentativa de q
-licar o.passa-. pletamente ausente, onde a analogia é dispensável e o para-
do, nem de formular juízos sobre ele; o que interessa, aqui,) I lismo seria emasculante, porque o dramaturgo e seu pú-
é compreender o present e suas perspectiv,§(ou faha blico, juntos, conquistaram a duras penas o direito de se
... ), mesmo que para isso seja necessário, 'de quando em xprimirem de modo mais direto, aberto e sem subterfúgios.
vez, volver os olhos para o passado, que funciona neste caso ampeões do Mundo é a celebração dessa conquista, desse
como pano de fundo a enquadrar e situar nossas opções ti spojamento do que se tornou supérfluo nos modos de ex-
atuais. Ou seja: nas outras obras mencionadas, o passado I ressão dramática .:
assume o primeiro plano, informando e enformando o pre-
É possível que o abandono desses recursos poéticos faça
sente; em Campeões do Mundo o primeiro plano é hoje, são
om que a linguagem do dramaturgo soe áspera aos nossos
as muitas dúvidas e poucas certezas de Ribamar e de Tânia,
uvidos desacostumados à exposição direta e franca dos pro-
vistas contra o fundo de um imenso mural dramático que
blemas e das situações; mas é possível também que esta peça
abrange cerca de 15 anos de nossa história recente.
inaugure na dramaturgia nacional novas perspectivas para
Isso é evidente não apenas ao nível da estrutura drama-
uma poética da escritura cênica - mais fundada na ação
túrgica montada pelo autor, mas fica patente até mesmo ao
dramática do que na expressão verbal e literária; mais preo-
nível da retórica utilizada no discurso cênico. Nossa literatu-
cupada com as novas possibilidades da estrutura drarnatúr-
ra dramática, nos últimos anos (e muito particularmente
gica do que com a perfeição a ser atingida dentro dos esque-
aquele acervo de obras conhecido como "dramaturgia de re-
sistência"), convertera-se no império da metáfora, da analo- mas tradicionais; mais voltada para a contundência de uma
gia e dos paralelismos - e o próprio Dias Gomes não fugiu à linguagem simples e direta do que para o jogo retórico da
regra, como eloqüentemente atesta o exemplo exacerbado e metáfora. Em suma: uma linguagem mais apta a retratar o
pouco feliz das Primícias. Isto, que de início fora uma estra- momento de hoje para o homem contemporâneo, como deve
tégia dos dramaturgos que buscavam um modo possível de ser toda linguagem teatral autêntica.
dizer o que era então impossível de ser dito, converteu-se E se é verdadeira nossa postulação inicial de que Dias
paulatinamente numa regra da expressão dramática entre Gomes, mais do que qualquer outro autor, prenuncia os ru-
nós, mesmo quando as circunstâncias não mais compeliam
mos da mudança no teatro brasileiro, então há razão para
ao emprego de um discurso metafórico. Habituamo-nos, po-
sermos otimistas, porque com Campeões do Mundo o teatro
rém, à metáfora; e hoje parecerá estranho a muitos que se
brasileiro retoma o seu melhor caminho.
possa fazer poesia cênica sem primeiro codificar as idéias em
metáforas que deverão ser posteriormente decodificadas pelo
ANTONIO MERCADO
leitor ou espectador.

22 23
Calendário de Acontecimentos para
Compreensão da Peça

22 - É fundado o Partido Comunista do Brasil (hoje


Partido Comunista Brasileiro). Entre seus
fundadores encontram-se alguns militantes
anarquistas.

1924- Tropas remanescentes da fracassada revolução


paulista formam a chamada Coluna Prestes, que
percorre o País numa marcha guerrilheira.

30 - Prestes recusa o comando da revolução burguesa que


. levaria Getúlio Vargas ao poder.

1935- Levante chefiado pela Aliança Nacional Libertadora,


órgão de massa controlado pelo Partido Comunista.
O fracasso do movimento leva Prestes e vários líderes
comunistas à cadeia.

1937- Getúlio dissolve o Congresso e decreta o Estado Novo,


de inspiração fascista. O fascismo está em ascensão em
todo o mundo.

1945- Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota


do nazifascismo, as forças democráticas impõem o

25
fim do Estado Novo e a saída de Getúlio. O Partido ( ) Brasil conquista pela segunda vez o título de
Comunista, pela primeira vez, alcança a legalidade. (J \ peão Mundial de Futebol.
( . Beatles vão aos Estados Unidos e se transformam
1947 _ O Partido Comunista é declarado ilegal e seus
I coqueluche mundial, influenciando fortemente
deputados são cassados.
O jovens em seu comportamento.
1950 _ Eleito em votação popular, Getúlio Vargas volta ao R aliza-se em 13 de março o chamado Comício das
poder e inicia uma administração democrática e 1 formas, no Rio, onde Jango anuncia a
marcadamente nacionalista. nacionalização das refinarias de petróleo particulares
1954 _Interesses antinacionais e antipopulares movem a reforma agrária.
violenta campanha de cunho moralista contra Vargas. - m São Paulo (19 de março) realiza-se a "Marcha
Perdendo o apoio das Forças Armadas, pressionado da Família com Deus pela Liberdade", em oposição
para renunciar, Vargas suicida-se com um tiro no a Jango.
- No dia 30 de março, Jango comparece à Assembléia
coração.
dos Sargentos, no Automóvel Clube do Brasil, e
1955 _A mesma facção político-militar que levou Vargas ao reafirma seus propósitos e suas posições.
suicídio tenta impedir a posse de Juscelino - No dia 31 é desfechado o golpe militar que depõe
Kubitschek, após as eleições em que saiu vitorioso
Jango.
com apoio das esquerdas. - A UNE é incendiada e proibido seu funcionamento.
1958 _ O Brasil sagra-se Campeão Mundial de Futebol. - Inicia-se um período de prisões, cassações de
mandatos e direitos políticos. Inquéritos
1960 _ [ânio Quadros, candidato carismático, derrota o
Policial-Militares.
Marechal Lott, apoiado pelas esquerdas, e toma
posse em Brasília. João Goulart é eleito I» - A Censura Federal inicia a extensa série de
Vice-Presidente. proibições de peças teatrais, cujo número atingiria
algumas centenas.
1961 _ [ânio Quadros renuncia inesperadamente, por
- O Reitor da Universidade de Brasília pede a
motivos obscuros. Grupos militares tentam impedir a
intervenção do Exército.
posse de João Goulart, que tem o dever
constitucional de sucedê-lo. 11) 7 - Em agosto, realiza-se em Havana a Conferência da
_Difunde-se o uso da pílula anticoncepcional, graças à OLAS (Organização Latino-Americana de
sua comercialização, liberando sexualmente a mulher. Solidariedade), onde a teoria do foco revolucionário
_De uma dissidência do PCB, que passa a chamar-se é amplamente discutida. Carlos Marighela, já
P C. Brasileiro, surge o P C. do B (Partido Comunista divergindo da linha política do PCB, comparece,
desobedecendo a resoluções partidárias.
do Brasil).
27
26

S'
- Em dezembro, realiza-se o 6° Congresso do PCB.
69 fuzis, 10 metralhadoras e 3 bazucas para
Marighela rompe com o Partido para fundar a
comandar um setor da guerrilha urbana.
Aliança Libertadora Nacional (ALN), grupamento
- De uma dissidência do PCBR, por sua vez
que se define pela luta armada, com base na teoria
dissidência do PCB, surge o Movimento
do foco, repudiada pelo PCB.
- A 8 de outubro, morre, na Bolívia, Che Ghevara,
numa fracassada tentativa guerrilheira.
-~~::: ~ê~:~~r~;~:~1~8
~~
1968 - Em fevereiro, a classe teatral realiza, nas escadarias
) Embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick,
por um grullQcomRosto de elementos do MR8 e da
do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, uma '-ALU - - -' _/
concentração de protesto contra a Censura, que - Em novembro, em São Paulo, vítima de uma
termina em passeata. armadilha policial, é assassinado Carlos Marighela.
- Em março, o estudante secundarista Edson Luis é - Financiada por empresários e com o objetivo de
assassinado pela Polícia, no restaurante do combater a subversão, entra em ação a OBAN
"Calabouço". (Operação Bandeirantes).
- Em maio, em Paris, o movimento de contestação 1970 - A máquina de propaganda estatal inventa o "milagre
estudantil atinge o seu ponto culminante. A brasileiro". Os sloeans "Brasil Grande" " "Brasil
ô'
Faculdade de Nanterre é fechada. A Sorbonne é ame-o ou deixe-o" procuram pintar uma nação em
invadida por policiais. desenvolvimento e sem problemas.
- Em junho, no Rio, estudantes e intelectuais realizam - O Brasil torna-se campeão mundial de corrida ao
a "Marcha dos Cem Mil". pregão da Bolsa de Valores.
- Em outubro, nas proximidades de Ibiúna (SP), cerca - O DOI-CODI, órgão do Exército, apura técnicas de
de novecentos estudantes que participavam do tortura para obter confissões e informações. Técnicos
Congresso clandestino da UNE são presos. em tortura são trazidos dos Estados Unidos e outros
- Surgem as primeiras ações de guerrilha urbana. países.
- Em dezembro, é editado o Ato Institucional n? 5, - O Embaixador da República Federal Alemã é
pelo qual o governo renova o direito de cassar seqüestrado no Rio de Janeiro por um grupo de
mandatos e direitos políticos e suspende o instituto guerrilheiros urbanos.
do habeas corpus para crimes políticos contra a - O Brasil conquista o Tricampeonato Mundial de
segurança nacional. Futebol, no México.
- Em dezembro, é seqüestrado no Rio de Janeiro o
1969 - Em janeiro, o Capitão Carlos Lamarca foge de seu Embaixador suíço, por um grupo chefiado pelo
quartel com alguns companheiros de farda, levando Capitão Lamarca.

28
29
1971 - O Capitão Carlos Lamarca é perseguido, cercadoe
morto por tropas do Exército, no sertão da Bahia:

1973 - Uma tentativa de estabelecimento de um foco


guerrilheiro é feita sem sucesso na região do
Araguaia. Descomunal força militar é enviada ao
local para liquidar os guerrilheiros.
_ A Escola de Samba Beija-Flor desfila no Carnaval Nota do Autor
do Rio ao som do samba-enredo
"PIN- Pro-terra- Funrural".

1974 - "Desaparecem" 23 dirigentes do PCB. O líder do


governo, deputado José Bonifácio, declara à CPI
instaurada para averiguar seu paradeiro que o Esta peça foi escrita, evidentemente, em cima de fatos
governo não é balcão de achados e perdidos. ontecidos e hoje amplamente divulgados. Convém ressal-
v r, entretanto, que suas personagens são absolutamente
1975 - Em outubro, o jornalista Vladimir Herzog é
/I tícias e que a realidade foi manipulada e recriada segundo
assassinado numa cela do DOI-CODI, em São
( , interesses da ficção dramática. O fato de ter havido real-
Paulo.
mente o seqüestro de um Embaixador norte-americano no
1978 - Recrudesce em todo o País a campanha Pró-Anistia. Rio de Janeiro em 1969 pode levar o espectador a conferir da-
1979 - Escolhido para suceder Geisel, João Figueiredo ta e informações e a tentar identificar personagens. Isso o
assume a Presidência, comprometendo-se em nduzirá a vários equívocos, além de redundar numa
democratizar o País, e decreta a Anistia. I itura errada da peça. Os dados, em muitos casos, foram
_ Os políticos banidos ou voluntariamente exilados propositadamente alterados. As personagens pouco têm a ver
retomam ao País. m os verdadeiros protagonistas daquela ação política. Não
_ O Flamengo vence o campeonato carioca e se sagra Iretendi realizar uma obra. jornalística nem histórica (na
Tricampeão Estadual. epção rigorosa do termo), por isso não me considerei
obrigado a reproduzir fotograficamente os fatos, o que limi-
t Iria muito o alcance da peça. Assim, o espectador mais in-
orrnado verificará que incorporei dados de outros seqües-
tros, como o do Embaixador alemão e do Embaixador suíço.
I•..
a pesquisa que realizei para poder escrever a peça
, estendeu até a ações semelhantes executadas em outros
I aíses, já que o que importa é a essência do gesto e não o

31
30
.' .

gesto em si. Também será um erro pensar que esta 'é 'uma dt '&briressa verdade fora do teatro. E a Ievá-los, pelo teatro,
peça sobre o seqüestro (qualquer que ele seja). É, sim, uma I I r um domínio sobre o mundo".

reflexão sobre um com~amento político do qual ~ , para não esconder nenhuma carta na manga, devo di-
qüestro de personalidades, a ação espetacular, foi ~ ef!,as "/.r, laramenre, que isso só me parece possível se colocarmos
ux:,n~specto - bastante ilustrativo, sem dúvida - e por isso III primeiro lugar, na ordem prioritária dos objetivos, a

(lI strução do edifício dramatúrgico, pois de sua solidez de-


tomado aqui como síntese de uma visão histórica. É esse
comportamento político como um todo, principalmente pende a eficácia de qualquer objetivo que ambicione ultra-
11 is ar as fronteiras do teatro.
, suas causas e seus efeitos, mais do que o grande gesto em si,
que procuramos iluminar.
Utilizei depoimentos publicados ou que pude colher,
pessoalmente, de pessoas que viveram, protagonizaram ou
simplesmente testemunharam a grande crise político-social
dos anos 60 e 70. Também me vali, basicamente, de minha
experiência pessoal de militante político e não há dúvida de
que aqui me coloquei por inteiro e sem ressalvas. Entretan-
to, procurei, neste pequeno mural histórico, muito menos
impor a minha visão particular da realidade do que fornecer
elementos para que o espectador conclua e formalize a sua
própria visão, fazendo seu próprio julgamento; tentei apenas
levantar questões, debatê-Ias, sem ser conclusivo, mas forne-
cendo dados suficientes para uma conclusão que vai depen-
der da consciência, do condicionamento e da formação de
cada um. No meu entender, não cabe ao teatro revelar ou di-
tar a verdade. Mesmo porque o palco é o reino da mentira. A
verdade está fora dele. Mas o teatro pode conduzir a ela, ar-
mando o espectador para que ele possa, por si mesmo e fora
do teatro, encontrá-Ia. Como diz Bernard Dort", "o objetivo
da atividade teatral é cada vez menos o de trazer o mundo
para o palco, dar deste mundo uma imagem perfeita e acaba-
da, dizer sua verdade aos espectadores. Tende muito mais a
colocar os espectadores no estado de poderem eles mesmos

* O teatro e sua realidade, Ed. Perspectiva, tradução de Fernando Peixoto.

32
33

L
Manifestantes, Torcedores, Vizinhos, Estudantes: Decca z
Bolonha, Clemente Viscaino, Edmir Simon, Eduardo
Tudella, Evandro Comin, Carlos Felipe, José Araújo, Leda
Borges, Lu Mendonça, Monique Alves, Paulo César Soares,
Viviane Fernandes.
Músicos (Trilha sonora): Guilherme Emmer, Waltel
Blanco, Alfredo Dias Gomes, filho, Carlos Henrique de
Campeões do Mundo foi apresentada pela primeira vez no Aquino, Alceu Reis, Aldo Vale e Celso Waltzenlogel.
dia 4 de novembro de 1980, no Teatro Villa-Lobos, no Rio de Terna musical: Denise Emmer
Janeiro, com os seguintes intérpretes: Expressão corporal: Ausônia Bernardes
Arranjos e Direção musical: Waltel Blanco
Cantora / Denise Emmer Efeitos visuais: Luis Genari e Fred Pinheiro
Ribamar / Dênis Carvalho Contra-regra: Paulo César Soares
TV-Repórter / Ana Lúcia Torre Assistente de Produção: Clemente Viscaino
Fotógrafo / Eduardo Tudella Pesquisa: Patrícia Macruz e Alfredo Ebasco
Maquinista: René Magalhães
Tânia Müller / Ângelo Leal
Assistente de Direção: Eduardo Tudella
Mário, o Velho / Leonardo Vilar
Programação Visual: Jacy Lage Jr.
Dirigente / Femando José
Direção de Produção: Sandro Poloni e Geraldo Fontenelle
Embaixador / Jorge Cherques Figurinos: Marcos Flaksman e Patrícia Macruz
Carlão / [onas Bloch Cenário: Marcos Flaksman
Inquiridor / Clemente Viscaino Direção: Antonio Mercado
Tânia (no interrogatório) / Viviane Femandes Produção: Maré Produções Artísticas Ltda.
Torturador / José Araújo
PERSONAGENS:
Frederico Müller / Iuan Cândido Tânia Müller Dirigente
Elza / Ruthinéa de Moraes Riba Inquiridor
Glória Müller / Beatriz Lyra Velho Médico
Médico / Carlos Felipe Carlão TV-Repórter
Homem 1 / Evandro Comin Embaixador Gerente
Homem 2 / Clemente Vz'scaino Frederico Müller Homem
Líder estudantil/Lu Mendonça Glória Müller Torturador
Gerente / Femando José Elza

35
34
AÇÃO: Rio de Janeiro

ÉPOCA: Vários momentos distintos entre 1963 e 1979.

CENÁRIO: o espaço cênico deve ser dividido em vários


planos, de modo a permitir várias ações em locais diferentes.
Apenas um cenário é fixo e deve ocupar dois planos centrais,
o primeiro deles ao nível do palco. Este cenário fixo sugere PRIMEIRO PAINEL
uma sala e um quarto no andar superior. Na sala, poucos
móveis, um sofá-cama, uma cadeira, um aparelho de televi-
são, um rádio de pilha e uma pequena impressora offset. Na
parede da esquerda, uma janela e uma porta. Pilhas de jor-
nais sobre a mesa e pelo chão, bem como livros, panfletos e
garrafas de refrigerantes vazias. No quarto, uma cama de ar-
mar. Quarto e sala se comunicam por uma escada. É um
"aparelho revolucionário". Os outros planos são adaptáveis
às suas situações, sendo que as cenas desenroladas no pre-
sente, isto é, em 1979 (no aeroporto e no apartamento de
Tânia), devem ser marcadas sempre o mais próximo possível
do espectador.

36
CENA I

Ainda com a cena às escuras, ouve-se uma voz cantando a


canção Campeões do Mundo.

CANTOR

Onde andam os campeões


guerreiros e ladrões
jío mundo
imundo?

Onde estão essas crianças:


milagre, esperanças,
iradas
quebradas?

As luzes de cena vão-se acendendo em resistência.

39
CANTOR
VOZ
Viva Ribamar!
Sem bandeiras, sem canções,
aprenderam as lições TODOS
de vida, de morte, Viva!
de vida e morte.
VOZ
o primeiro
plano da cena é invadido por manifestantes que Viva a Anistia!
conduzem faixas com os dizeres: SEJA BEM-VINDO À PÁTRIA-
COMITÊ BRASILEIRO PELA ANISTIA - A UNE SAÚDA O TODOS
COMPANHEIRO RIBAMAR - ANISTIA AMPLA, GERAL E Viva!
IRRESTRITA. Tânia Müller está entre os manifestantes. Fotógra-
fos, jornalistas e um operador de TU com uma cãmera portátil. CORO
Estamos no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, em Ri-ba-rnarl
1979. Ri-ba-rnar!
Ri-ba-marl
CORO
Ri-ba-marl

De volta às estações, Riba é can'egado por um grupo de manifestantes.


perdidos campeões,
VOZ
por onde andarão seus companheiros?
Viva a democracia!
Tantas histórias contadas,
tanto sangue nas calçadas,
TODOS
mas vejam ainda cantam os brasileiros.
Viva!
Riba é abordado por uma moça, repórter da televisão.
LOCUTORA DO AEROPORTO
(l0z pelo alto-falante.) Vôo 221, da Varig, procedente de TV-REPÓRTER
Paris. Anunciamos a sua chegada. Varig'sflight 221from Paris
Ribamar, o que é que você sente ao pisar novamente o
nowamvzng. solo de sua terra, depois de nove anos de exílio?
Quando termina a canção, Ribamar entra, com algumas
malas num carrinho, e é imediatamente cercado pelos jornalistas RIBA
e fotógrafos. Espocam flashes, o operador de TV grava tudo. (Emocionado.) Nem acredito. Nem acredito.

40
41
TV -R I RTJ.ll RIBA
h /11 IÍs os seus projetos? (Só agora vê Tânia.) Tânia!

RInA
TÂNIA
(Atordoado.) Projetos?
Oi, Riba. (Larga o cartaz e os dois se abraçam calorosa-
mente.)
TV-REPÓRTER
É, dentro do novo contexto político, que é que você pro-
RIBA
põe?
Puxa vida, você tava aí. .. Não tinha visto.
RIBAMAR Eles se olham nos olhos, emocionados.
Primeiro comer uma boa feijoada.
RIBA
CORO Que bom te encontrar.
Ri-ba! Ri-ba!
Ri-ba! Ri-ba! TÂNIA
Não esperava que eu viesse?
REPÓRTER
(Para a câmera.) Sandra Helena para o Jornal Nacional. RIBA
Entra um grupo portando enormes bandeiras rubro-negras e Sei lá ... claro ... quer dizer, tanto tempo fora, a gente
vestindo camisas da mesma cor. Cantam. volta sem saber direito o que vai encontrar, ou não vai encon-
trar, o que restou ...
TV-REPÓRTER
(Para o operador.) É a delegação do Flamengo que tá che- TÂNIA
gando! Vamos lá cobrir! (Sorri.) Eu restei.

TORCEDORES
RIBA
Uma vez Flamengo, sempre Flamengo, Flamengo sem-
Restou ... e não mudou nada. A mesma Tânia ...
pre hei de ser; é meu maior prazer vê-lo brilhar, seja na terra,
seja no mar, vencer, vencer, vencer, uma vez Flamengo, Fla- TÂNIA
mengo até morrer. Bobagem. Quem é que não mudou? Tudo mudou.
Os torcedores saem cantando, com a adesão dos mani-
festantes políticos, jornalistas, fotógrafos, etc. Somente Tânia RIBA
permanece, empunhando um cartaz: "Seja Bem-vindo, Com- Vendo você, não posso deixar de lembrar ... Carlão, o
panheiro". Velho Baiano ...

42
43
TANIA
RIBA
Estão mortos, você sabe. O Velho foi assassinado.
~ão isto é, não sei... tenho que consultar os compa-
nheiros .
RIBA
Soube na Europa.

TÂNIA
e=-: Os torced01:esvoltam, can-egando um jogador do Flamengo
o hino. Junto com eles, vêm também os manifestan-
tes do tniao, que carregam Riba e levam Tânia de roldão.
Montaram uma daquelas farsas pra dizerem que resistiu
à prisão. Com Carlão nem se preocuparam, sumiram com o
corpo, mas se sabe que morreu empalado.

RIBA
(Como se sentisse na própria carne.) Filhos-da-puta.
Riba tem 35 anos e um olhar de náufrago que mal acredita
ter chegado à praia. Tânia tem 31, bonita, segura de si, passa de-
terminação e experiência.

RIBA
Daquela turma do seqüestro, só nós restamos inteiros,
eu acho.

TÂNIA
(Irônica.) Inteiros ... Será que estamos inteiros?

RIBA
É ... tanta água passou debaixo da ponte ...

TÂNIA
Não vamos falar disso agora. Você mal chegou ...

RIBA
Temos tanto que conversar ... muito que discutir.

TÂNIA
Claro ... e há muito tempo pra isso. Você tem pra onde
ir?

44
45
VELHO
Tá enxergando bem daí?

RIBA
Toda a ladeira, até a curva. (Tira os óculos e limpa-os na
barra da camisa.) Quando eles dobrarem a curva , não há
como ... Não existe outro caminho, existe?
CENA II
VELHO

Não. E, além do mais, eles têm de seguir o plano. (Con-


sulta o relógio de pulso.)

RIBA
Quarto do "aparelho". 1970. O Velho está em cena. 55 anos, Que horas são?
tem a cabeça grisalha. Um ar sempre tranqüilo e determinado.
Seu carisma é evidente, inspira confiança ilimitada pela capaci- VELHO

dade que tem de jamais deixar transparecer suas próprias dúvi- Faltam dez para meio-dia.
das. A par de sua firmeza, que beira a intransigência, irradia
RIBA
equilíbrio e ponderação. Tem o olhar translúcido dos santos e dos
Seu relógio tá certo? (Consulta o próprio relógio.) No meu
obstinados. Demonstra também alguma tensão, mas está escu-
faltam quinze, dá no mesmo. De qualquer maneira, eles já
tando o rádio, que transmite alguns acordes do hino "Pra Frente deviam estar aqui há uma pá de tempo.
Brasil".
VELHO
LOCUTOR Calma.
Amanhã, dia 21 de junho de 1970, pode transformar-se
RIBA
numa data histórica. Na Cidade do México, o Brasil joga sua
última partida no Campeonato do Mundo, contra a Itália. Se O gringo sai de casa entre nove e nove e quinze, todos os
vencermos, seremos tricampeões, trazendo definitivamente dias, Tânia informou. E esses caras são metódicos. De Bota-
para nossa Pátria a Taça Jules Rimet. fi go até aqui não pode levar mais de meia hora. Uma hora
[ue seja, se o trânsito estiver difícil.
O Velho baixa o volume do rádio. Riba entra.
VELHO
RIBA
(Sorri.) Calma, companheiro. (Uzi até à janela, olha, vol-
Nada até agora. (Olha por um basculante.) lu, pega um jornal para controlar a tensão.)

46
47
RIBA
1('v i se foder e do o
. I . que to o o Impeno napoleônico vai pra
í •

Velho, você não acha que eles devem ter caído? 11


1 U. s~~ te deixa engasgado nesse ouriço, como eu tou
VELHO
(Atttoc1'ltzcando-se.) Bom tal do i .
_ ' vez tu o ISSOseja uma defor
Não, ainda não. Vamos esperar mais um pouco. Pode lIIaçao profissionaL .. Como publicitário V' - de i -
lc tual, '" isao e mte-
ter havido um imprevisto. Fique aí, não tire o olho da
ladeira.
VELHO
RIBA Ou de político.
(Procura controlar-se.} É, deve ter acontecido alguma
COisa. RIBA
É isso aí.
VELHO
É a primeira ação em que você toma parte?
VELHO

RIBA na ::r::~e atenção. O carro não pode chegar e ficar parado


Não, já participei de dois assaltos a bancos. (Como que
corrigindo.) Duas expropriações. Antes, fui do Comitê Cul-
tural do Partidão. Rachei em 68, quando houve a invasão da RIBA

Tcheco-Eslováquia. (Sorri.) Claro, isso não é nada, diante de este r:;nl~aai olhar pela janela, agora com um binóculo.) Com
sua experiência, seu passado. (Reage.) Mas você me olha ocu o posso ver quand v bí
lá em bai o a rsorn I virar naquela rua
aixo. '
como se eu estivesse me cagando de medo. Não tou não. É a
ansiedade ... e a euforia.
VELHO
VELHO (Começa a se inquietar.) Nada ainda?
Que euforia?
RIBA
RIBA Nada.
Não sei se você me entende ... Porra, bicho, vai ser um
gesto histórico. Já pensou quando a notícia explodir? Nas
VELHO
manchetes, no rádio, na televisão. Puta que pariu, vai sacu-
É. " (Consulta novamente o relógio.)
dir o mundo. E eu sei, você sabe ... antes da coisa acontecer.
Isso é que me deixa nessa euforia, nesse barato. É como se
RIBA
eu soubesse por antecipação o curso da História. Imagina
Escute, Velho você - h .
você antes da batalha de Waterloo já sabendo que Bonapar- eles caí _' nao ac a pengoso esperar tanto? Se
irarn, vao ser torturados... até falar.
48
49
VELHO fixa a platéia. A iluminação fecha sobre ele. Fica apenas um
Pelo menos um dia qualquer um agüenta. Se não for um foco em seu rosto.
frouxo. Estamos dentro do teto de segurança. (Olhando pela
DIRIGENTE
janela.) Se a ação tivesse falhado, os homens da cobertura te-
(Fora de cena.) O companheiro tá numa posição ultra-
riam vindo avisar.
esquerdista.
RIBA
E se caíram todos?

VELHO
É muito difícil. A menos que não tenham seguido o pla-
no à risca, como tracei.
Riba gira o dial, passando por várias estações, detendo-se
numa onde se ouve uma música da época.

VELHO
Ei, lá vêm eles!

RIBA
(Desliga o rádio e corre para a janela.) É, é a Kombi.

VELHO
(Pega o binôculo.) Parece que tá tudo bem.

RIBA
Não tou vendo o gringo.

VELHO
Deve estar no chão, deitado. Ande, vá abrir a porta da
garagem, depressa, o carro tem de entrar direto.
Riba sai correndo. O Velho continua olhando pela janela,
agora sem o binóculo. Ouve-se o ruído do carro que se aproxi-
ma e pâra. O Velho tem uma expressão de satisfação. Agora, a
sós, controla menos a ansiedade. Acende um cigarro, ainda
atento à janela, observando se o carro não foi seguido. Volta e

50 51
DIRIGENTE
Mas veja o que aconteceu com Che Guevara na Bolívia.
Quando o povo não participa, quando não há condições
para a luta armada ...

VELHO

{Interrompe.} Se não há condições para a luta armada, é


porque só a luta armada criará essas condições.
CENAllI
DIRIGENTE

O companheiro tem uma visão desesperada da situação


e procura enfrentá-Ia assumindo uma posição voluntarista.
Acha o companheiro que através da criação de um foco de
Aparelho do Partido. O Dirigente está sentado. Seu tom, guerrilha urbana ou rural, sem que haja condições para
embora firme, é persuasivo, nada impositivo. isso, vai poder derrubar a ditadura. No fundo, o compa-
nheiro não acredita num movimento de resistência de mas-
DIRIGENTE sas, no trabalho lento e paciente do Partido para formar
Com todo o respeito e com a estima pessoal que ten~o.ao uma frente democrática e antifascista.
companheiro, me sinto obrigado a lhe dizer que esta. in-
correndo num grave equívoco, e está dividindo o Partido. VELHO

A teoria do foco revolucionário é romântica, suicida e an- Isso vai demorar cem anos. Estou ficando velho e quero
rílemnista. fazer a revolução eu mesmo, e agora, não quero deixar para
meus netos.
VELHO

(Volta-se para o dirigente, sem sair de seu ~róp~io Acen.ári~.) DIRIGENTE


Parece-me que foi Lênin quem disse que a violência e a Por que o companheiro .não vem discutir suas teses no
parteira da História". Por outro lado, a Revolução cubana ... Comitê Central, como membro da Direção?

DIRIGENTE VELHO
(Interrompe.) O companheiro tá querendo aplica~ meca~ Porque tou farto de discutir, reunir, tou farto de falatõ-
nicamente um exemplo histórico. Mas a nossa realidade e rios e manifestos. Entrei pro Partido com,I7 anos. Estou há
outra. Esse seu mecanismo ... quase 40 discutindo, reunindo, organizando, preparando
uma revolução que nunca vem e não virá nunca porque
VELHO
não saímos da teoria. A hora é de ação e mais ação.
Doze homens iniciaram a revolução em Sierra Maestra.
53
52
VELHO
(Notando o ferimento.) Que foi isso?

TÂNIA
Foi o Carlão ... (Sai.)

VELHO
Precisava?
CENA IV
CARLÃO
Foi na hora do transbordo. Quando íamos mudar de car-
ro, pensei que ele ia reagir ... foi só uma coronhada.

Ilumina-se a sala do "aparelho" totalmente. Ouvem-se ~o- VELHO


zesfora. Entram Riba, Tânia e Carlão conduzindo o Embaixo- Sr. Embaixador, o senhor desculpe ... Não queremos lhe
dor, que tem uma venda nos olhos. O Embaixador é homem de fazer mal algum. O companheiro deve ter ficado nervoso.
meia-idade, traja-se impecavelmente e traz uma pequena m~la Mas o senhor pode estar certo de que aqui vai ser bem trata-
preta. Está um pouco assustado, embora faça todo .0 possioel do. O melhor que pudermos, dentro das circunstâncias.
para manter a tranqüilidade. Tem um peque~o fertme:zto ~a
testa, de onde escorre um filete de sangue. Tânia e Carlão estao EMBAIXADOR
armados com metralhadoras portáteis. Ok, eu posso ... fazer uma pergunta?

RIBA VELHO

Por aqui ... Claro.

CARLÃO EMBAIXADOR

Pra onde vamos levar ele? O que os senhores pretendem?

VELHO VELHO

Praquele quarto dos fundos, lá em cima. O senhor está sendo seqüestrado por um grupo de
patriotas. Não somos bandidos. A ação que estamos prati-
TÂNIA cando é uma ação política. Nada temos contra o senhor, pes-
Mas espere, é preciso fazer um curativo nele. (Tira a ven- soalmente, embora tenhamos muito contra o governo de seu
país. Nossa luta no momento é contra a ditadura.
da do Embaixador.)
55
54
RIBA
EMBAIXADOR
É a diferença entre o Produto Nacional Bruto americano
/ Perdão, não entendo. Que tenho eu, embaixador de um
e o nosso, 40 vezes maior ... (Ri.)
país democrático, a ver com a ditadura de seu país?

~- ~ELHO ---- EMBAIXADOR


Well... vamos supor que governo brasileiro não aceite es-
Vários companheiros nossos foram presos. Sabemos que sas condições de modo algum ...
estão sendo torturados e que muitos não têm chance de so-
breviver. Em primeiro lugar, queremos líbenã-los. VELHO
Bem, Embaixador, nós não estamos brincando, nem ble-
EMBAIXADOR fando. Estamos numa guerra. Nesse caso, vamos ter que fa-
Entendi. Vão exigir libertação deles em troca da minha. zer o que não queremos fazer.

VELHO CARLÃO
É uma das condições. A outra é a divulgação de um ma- Vamos ter que matá-lo,
nifesto. Pelos jornais, rádios e televisão. Por um momento, o Embaixador perde a sua altiva tran-
qüilidade.
EMBAIXADOR
VELHO
Suponhamos que autoridades não concordem.
O senhor seria justiçado.
VELHO Há uma pausa altamente significativa, em que o Embaixa-
Vamos mantê-I o aqui até que aceitem nossas condições. dor sente que está diante de pessoas dispostas a tudo e que sua
vida está realmente ameaçada. A pausa é quebrada pela entrada
EMBAIXADOR de Tânia com uma caixa de medicamentos.
Quantos são os presos?
TÂNIA

VELHO
Também Carlão não precisava ter tascado o gringo.

Quarenta. CARLÃO
{Irrita-sc.) Porra, Tânia, já expliquei!
EMBAIXADOR

Não acha um pouco demais? TÂNIA


Tá bem ... (Começa a jazer o curativo no Embaixador.)
VELHO
O senhor Embaixador vale esse preço. Para a ditadura, VELHO
Calma, gente.
naturalmente.
57
56
TÂNIA
Cartão vai até ajanela efica olhando para fora. O Velho vai
Pronto. É o que eu posso fazer.
até ele.
EMBAIXADOR
VELHO Obrigado.
- fiora m seguidos?.
Você tem certeza de que nao
TÂNIA
CARLÁO Tá doendo?
Não, fizemos tudo certinho, trocamos de carro, tudo de
EMBAIXADOR
acordo com o plano. Um pouco.
VELHO
TÂNIA
Por que demoraram tanto? Quer tomar uma aspirina?
CARLÁO EMBAIXADOR
Ele saiu de casa com quase duas horas de atraso. Não, não posso tomar aspirinas, tenho alergia. Rosto
incha.
TÂNIA
E isso nunca aconteceu, eu acho. CARLÃO
(Nota a pequena mala preta na mão do Embaixador.) Ei,
EMBAIXADOR . gente, e essa maleta ... (Num gesto brusco, arranca a mala das
. J. antar ontem e comi
Eu amanheci indisposto. F Ul a um mãos do Embaixador, abre-a, despeja o conteúdo sobre a mesa:
um marisco, acho que não me fez bem. documentos, charutos, uma caneta, um frasco de remédio.)

RIBA RIBA

Amanheceu com dor de barriga. Que é que foi, cara?

CARLÃO
EMBAIXADOR
(Examina a mala detidamente, mostra-se frustrado.) Pen-
É... sei que podia ter algum aparelho de rádio ou radar, desses
CARLÁO que localizam o sujeito.

E tinha que ser hoje. RIBA


Tás vendo muito filme policial. ..
EMBAIXADOR
Carlão recoloca os objetos dentro da mala e devolve-a ao
Peço desculpas ... Embaixador, que pega ofrasco e toma uma pílula.
Tânia termina o curativo.
59
58
EMBAIXADOR VELHO
(Verifica.) Aca- Fica pra depois, quando eles divulgarem o manifesto.
Remédio para coração. Sou cardíaco ...

bou ... CARLÃO


RIBA Quem vai levar?
tro quando sair.
Me dá o frasco, a gente compra ou ,
VELHO
VELHO Você ou Tânia. Só vocês dois devem sair e entrar na casa,
. , U de nós tem que ficar
Agora levem ele lá pra CIma. m d h as Vá você porque estão morando aqui há um mês e a vizinhança já co-
d de duas em uas or . nhece. Nem eu nem Riba devemos aparecer, pra não desper-
sempre com ele, revezan .o E bai dor A quem o senhor
primeiro, Tânia. Uma c~lsa, ?m aixa . tar suspeitas.
quer que avise que esta bem.
CARLÃO
EMBAIXADOR .
Tânia disse pra vizinhança do lado que a gente tava es-
Melhor comunicar o Ministro Conselheiro da Embaixa-
perando parentes de São Paulo. Aliás, a vizinhança é muito
da. Peça para avisar minha mulher. legal, fizemos um bom relacionamento.

VELHO
VELHO
Ela será avisada. d Mesmo assim, é bom não nos mostrarmos muito.
. . o Embaixador. Os dois sobem a esca a e pas-
Tânia sai com
sam ao quarto, no plano superior. CARLÃO
Certo. Eu levo o comunicado.
VELHO
, h' sempre um homem na ja-
É preciso tambem que aja . Você VELHO
nela atento a qualquer movimento suspeIto na rua. ,
(Coloca os painéis em três envelopes e entrega a Carlão.}
Riba. scolha dois lugares bem longe daqui. A caixa de esmolas de
Riba vai para a janela. uma igreja e uma caixa do Correio, por exemplo. Depois
telefone pros jornais, pras rádios e pras tevês dizendo onde
VELHO
.. à segunda parte do plano. (Apanha stão.
Vamos passar agora anifesto e o co-
algumas folhas de papel sobre a mesa). O m RIBA
municado com as condisões. E aproveite, Carlão, ligue pra Embaixada, diga que o
RIBA mbaixador tá bem. E compre este remédio pra ele. (Entrega
. ? () frasco.)
A lista com os nomes dos presos.

61
60
CARLÃO
VELHO
(Pega ofrasco com evidente má uontade.} Merda, virei boy Em parte, ele tem razão. Mas não podemos deixar de
de gringo ... com~rar o remédio. Procure numa farmácia bem distante
daqui,
RIBA
Sem essa, bicho. Se ele sofre do coração, é bom ter esse CARLÃO
Tá legal. (Sai.)
remédio aqui. Não vai querer que o gringo morra na nossa
mão. O Velho e Riba voltam a olhar pela janela.

CARLÃO
Por mim, quero que ele se foda. (Inicia a saída, pâra.)
Além do mais ... não, não vou comprar porra nenhuma.

RIBA
Por quê, cara?

CARLÃO
Isso pode ser uma pista pra polícia.

RIBA
o remédio?
CARLÃO
É, alguém pode alertar que o gringo sofre do coração e
toma esse remédio. Aí a polícia vai de farmácia em farmácia e
acaba pintando aqui.

RIBA
Acho que você superestima a eficiência da nossa polícia.

CARLÃO
Segurança, companheiro, temos de seguir as normas de
segurança.

62
63
EMBAIXADOR
(Senta-se. Sente doer a cabeça.) Você acha?

TÂNIA
Isso não vai depender de nós, vai depender deles. Se de
ara os milicos aceitarem as nossas condições, tudo bem. Se
não Sua Excelência vai ter que passar uns dias aqui neste
afofo. É uma pena, mas a nossa Organização é ainda sub-
CENA V desenvolvida. Não temos ainda aparelhos apropriados para
hospedar embaixadores.

EMBAIXADOR
Eu não estou me queixando.

No quarto. O Embaixador ainda de pé, Tânia monta guar- TÂNIA


da à porta. Se quiser, podemos continuar o papo, pra matar o tem-
po. Senão vai ser muito chato pra você.
EMBAIXADOR
Será que eu podia ... se não fosse indelicado ... EMBAIXADOR
Obrigado.
TÂNIA
O quê? Quer ir no banheiro? Só que eu tenho que ir TÂNIA
Fui eu que tomei todas as informações a seu respeito.
junto.
S .us hábitos, a hora que saía de casa, o tipo de segurança ...
EMBAIXADOR
EMBAIXADOR
Junto?
Perdão. Mas você, uma moça, metida nisso ... Não en-
TÂNIA ndo. Estudante?
E tem que deixar a porta aberta.
TÂNIA

EMBAIXADOR Fiz dois anos de Sociologia, um ano de História.


Não, eu só queria sentar um pouco! EMBAIXADOR

TÂNIA
Por que não continuou?
Senta, pô. Também pode se deitar, se quiser. Tira o pale- TÂNIA
tó , fica à vontade. Relax. Vamos ter que ficar uma pá de tem- Porque entrei na luta armada.
po aqui, eu acho.
65
64
EMBAIXADOR
EMBAIXADOR
Por que devo estar?
Qual o objetivo dessa luta?
TÂNIA
TÂNIA \
Porque a CIA tem muito a ver com isso. É a CIA que está
Derrubar a ditadura, evidentemente.
mandando peritos em tortura pra instruir os nossos.
EMBAIXADOR I

EMBAIXADOR
E vocês acham que assaltando bancos, seqüestrando e1-
Mas eu nada tenho a ver com a CIA.
baixadores, vão mudar o regime?
I.

TÂNIA -'\ TANIA


(Ri.) Ora, Embaixador, corta essa...
Claro que não. Essas são ações logísticas. Para financiar
a luta armada precisamos de dinheiro. E o dinheiro tá nos / EMBAIXADOR
Bancos. ---- -------. É verdade que a CIA trabalha no Brasil, mas é um enga-
no de vocês imaginar que Embaixador americano tem con-
EMBAIXADOR
trole da CIA. Eles trabalham diretamente junto a generais,
Daí os assaltos ...
altas personalidades, donos de grandes empresas. Quanto a
TÂNIA ssa história de torturas e assassinatos, desculpe, mas não
Não assaltamos, expropriamos. O dinheiro foi roubado acredito que seja verdade.
ao povo e o que fazemos é uma expropriação.
TÂNIA
EMBAIXADOR Ah, você não acredita.
Ladrão que rouba ladrão ... (Sente que foi grosseiro.) Des-
EMBAIXADOR
culpe. . Pe~om~nos os generais com quem converso dizem que
TÂNIA ISSO nao existe.

Usamos o dinheiro em favor do povo, não em proveito


TÂNIA
pessoal. Não existe... (Abre a blusa e mostra os seios.) Não exis-
EMBAIXADOR te...
Vão exigir dinheiro também para me libertar? \.
EMBAIXADOR
TÂNIA (Impressionado.) Que foi isso?
Não, apenas a liberdade dos companheiros que estão \
TÂNIA
sendo torturados e assassinados nas prisões. E o senhor J
Choque elétrico. Não só aqui, também na vagina.
Embaixador deve estar por dentro disso. ,/" /'

66 _
--------------------- 67
um dever. Você tá nisso por idealismo? Eu também. E tou
arriscando minha vida tanto quanto você.

TÂNIA
Se é assim, por que não me deixa ver seu rosto?

INQUIRIDOR
Porque sei que amanhã, se um de vocês me pega, me
CENA VI liquida. É uma guerra suja, 'sim, essa nossa. Mas não pense
que tou nisso por dinheiro ou porque fui treinado cienti-
ficamente pra isso. Também tenho minha ideologia. E o que
faço é por convicção. Acredito que a razão e o direito estão do
írid ao lado da "cadeira meu lado, tanto quanto você acredita que estão do seu. Vocês
Sala de torturas. Em cena, I nqutrt or,
d . a com o assento, o querem salvar o Brasil. Nós também. Só discordamos no
do dragão", uma poltrona tosca, d e ma ctr ,
encosto e os apoios dos braços revestidOsde placa~ d;dmethal,na~ método.
. . d ", una e c oque
uais são ligados osfios termtnazs e uma maqi .
q, . h Tânia entra de capuz, condusida TÂNIA
que esta sobre uma mestn a. ,
Vocês acham que praisso é preciso primeiro liquidar to-
pelo Torturador.
dos os que não pensam como vocês.
INQUlRIDOR

Tire a roupa. INQUIRIDOR


Tânia se despe. Fica de calcinha. . Sabe, eu tenho uma filha de 5 anos. Lembrei dela agora
porque neste momento ela deve estar tendo sua primeira
INQUlRIDOR
ota ~Comunista aula de piano. E porque olhando pra você eu fico pensan-
Toda. T á com vergo~ha de mostrar a xox .
do ... Temos que fazer alguma coisa pra que amanhã, quan-
não tem vergonha. . a
Tânia tira a calcinha. Torturador obrtga-a a sentar-se n do ela tiver a sua idade, um cara qualquer não seja obrigado
ernas e seu tronco 1 fazer com ela o que eu estou fazendo com você. Entendeu?
"cadeira do dragão"; amarra seus b raços, suas P .
~ por isso, por ela, que eu estou nessa.
com cOlTeiasde couro.
INQUlRIDOR TÂNIA
(Brincando com a maquininha de choque.) Olha, garota, Muito comovente. Se me tirar o capuz, vai ver que estou
eu não queria fazer isso com você. Não tenho nenhum .prda- h rando.
AE ~ Tou apenas cumpnn o
zeroHá uns caras que tem. u, nao.
69
68
INQUIRIDOR
INQUIRIDOR
(Irritando-se, grita.) Sua putinha comunista! Vou-lhe dar esmaiou. Chame o médico.
uma chance. Uma única chance, meta na sua cabeça!
O Torturado~ = A luz se apaga em resistência, fica apenas
TÂNIA ttm foco ~o Inqumdor, cuJo rosto se ilumina, como se escutasse,
rmbeveczdo, a filha tocar.
Que é que você quer?

INQUIRIDOR
Os nomes. Os nomes de todos os componentes do grupo.

TÂNIA
(A esmo.) Pedro, João, Dário, Pirajá ...

INQUIRIDOR
Quero os nomes verdadeiros, não codinomes.

TÂNIA
Não sei os nomes verdadeiros, não usamos nomes verda-
deiros.

INQUIRIDOR
E os pontos?

TÂNIA
Que pontos?

INQUIRIDOR
Não se faça de idiota. Quero os pontos! (Faz um sinal ao
Torturador, que se acerca da maquininha de choque.) Vai dizer
ou não vai?

TÂNIA
Mas eu não sei! Não sei!
O Inquiridor faz um sinal e o Torturador aciona a manive-
la. Tânia solta um grito de dor e desmaia. Ouve-se um exercicio
de piano primário executado por uma criança.

70
71
RIBA
É, tem razão. Acho que é uma debilidade minha. Não
consigo escapar ao envolvimento emocional e raciocinar po-
liticamente. Não, não me venha com aquele chavão "debili-
dade pequeno-burguesa", a classe operária tá toda envolvida,
torcendo adoidado.

VELHO
CENA VII
Não falei nada.

RIBA
Sei não ... às vezes penso até que a gente devia estudar
mais a fundo essas coisas. A paixão do povo pelo futebol, pe-
No aparelho. Riba está na janela, vigilante. O Velho está las Escolas de Samba, pela novela de televisão. Isso de dizer
diante do televisor. que é alienação, "ópio das multidões", e descartar, pura e
simplesmente, sem parar pra pensar, pra tentar entender ...
LOCUTOR Acho isso furado, você não acha?
(Voz.) O Presidente Médici enviou ao c?efe da delegação
brasileira no México o seguinte telegrama: As vésperas da ba- VELHO

talha final, saibam todos que o Brasil tem seus olhos voltados Onde você quer chegar?
para os valorosos atletas da nossa seleção. Confiantes,. espe-
RIBA
ramos que cada um saiba cumprir o seu dever. Assinado,
Quero chegar na alma do povo. E começar daí. Desco-
Emílio Garrastazu Médici.
brir o mecanismo da paixão popular e usar esse mecanismo.
Ouve-se o hino "Prafrente, Brasil". Riba baixa o volume do
pra envolver a massa e trazê-Ia para o nosso lado. Porque a
televisor revolução é também uma paixão, certo? Uma paixão ao nívey
do racional, mas uma paixão. ~
RIBA
Já pensou se o Brasil vence? Os gorilas vão capitalizar, VELHO
vão fazer um carnaval. E o povo vai esquecer tudo, a fome, a E o que é que o companheiro propõe? Parar tudo pra es-
opressão. Só que não dá pra torcer contra o Brasil, não dá. tudar o futebol, o carnaval, a telenovela?
Você não acha?
RIBA
VELHO (Aborrecido com a ironia.) Já vi que você não me enten-
Por que não? O selecionado não é a pátria de chuteiras. deu ...

73
72
VELHO RIBA

Entendi, sim. Pode ser até que você tenha razão. Aconte- (Muito excitado.) Puta merda, Velho! Já imaginou que
ce que passei quase 40 anos no Partido teorizando a revolu- bomba! Daqui a pouco essa notícia tá no mundo todo. Vai
ção. Praticamente, toda a minha vida. Estou velho e não cr manchete do Neto York Times! BBC de Londres, NBC!
quero morrer com a sensação de ter sido tudo inútil. Temos lorra, é o representante do Grande Império! Já pensou,
teorias de sobra na cabeça. Estamos intoxicados de teoria. Velho, os patrões lá de Nova York em cima dos milicos daqui,
Precisamos botar todo esse intelectualismo de lado e passar à omé, que merda é essa? Queremos o nosso homem, custe o
ação. Ou você vai chegar à minha idade discutindo teses, in- ue custar, senão desembarcamos os marines. E os milicos
formes e vendo tudo em volta continuar na mesma. om a batata quente na mão vão ter que arriar as calças. Vão
dar tudo que a gente quiser.
RIBA

(Olha para o Velho com profundo respeito.) Eu entendo ... I


VELHO

entendo o seu drama. (Também eufôrico, mas procurando controlar-se.) Calma,


companheiro, contenha um pouco o seu entusiasmo. Cabeça
VELHO fria. Agora é que começa a fase decisiva.
Não é o meu drama. É o drama do povo brasileiro. Ouve-se o ruído de um carro.

RIBA RIBA
Mas você ... puxa vida ... uma vida inteira ... a juventu- (Olha pela janela.) Carlão tá chegando.
de, a mocidade ...
O Velho aumenta o volume do televisor. VELHO

Veja se não tá sendo seguido.


LOCUTOR

(l0z.) E atenção, atenção! Acaba de ser seqüestrado o RIBA


Embaixador dos Estados Unidos. O Cadillac preto CD-3 da Não ... Espera, vem um fusca atrás ... Não; é uma velha.
Embaixada foi interceptado por um Volks de onde saltaram Tudo bem.
cinco homens armados, que obrigaram o motorista a seguir
até à Rua Euclides de Figueiredo. Ali, o Embaixador foi colo- CARLÃO

cado numa Kombi, que desapareceu como uma flecha. (Entrando.) Oi, gente. (Traz uma pizza embrulhada, que
Ignoram-se maiores detalhes. (Noutro tom.) A companhia coloca sobre a mesa.)
do Metrô informa que as maiores dificuldades para a cons-
trução do trecho inicial, .. VELHO

O Velho desliga o televisor. Tudo certo?

74 75
VELHO
CARLÃO
Tudo. Botei uma cópia na caixa de esmolas de uma Encontrou algum conhecido?

19rep. CARLÃO
VELHO Não.

Que igreja? VELHO


CARLÃO Convém evitar bairros ' I,-:gareson d e você possa ser reco-
nhecido.
Aquela do Largo do Machado. Deixei a segunda cópia
num supermercado, no Leblon. Telefonei pro JR e pro
CARLÃO
Globo. Claro, não precisa me dizer . Foi uma ban dei
eIra.
RIBA
RIBA
E a Embaixada?
(Sente o cheiro.) Pizza?
CARLÃO
Bati um fio também, falei com o tal Ministro- CARLÃO
Conselheiro. Quando disse que o Embaixador tava bem, o mos.Me lembrei que nao
- provIidenci
enciarnos comida E
. squece-
babaca do gringo começou a gritar "Where? Where?".

RIBA RIBA
Na Embaixada deve estar o maior rebu. !ou mesmo com uma fome de lascar. (Desembrulha.)
Sem que o Embaixador gosta de pizza?
CARLÃO
Acho que só fiz uma besteira. O supermercado onde eu CARLÃO
deixei uma das cópias é perto do apartamento onde morei. Eu, já comi . (Mostra um pequeno embrulho) C
tambem o remédio. . omprei
VELHO
Por que deixou lá? VELHO
Leva pra ele e renda Tânia E .
CARLÃO o pai dela é testa-de-ferro de ~msacute'l~e l~formaram que
mu tinacional.
Sei lá. Só depois é que me dei conta.
, RIBA
RIBA
.'E sim testa-de-fer ro e reaça. Fredenco
. M"lI Ud .
Qualé, cara, você que vive tão preocupado com as nor-
anticornunista de espumar no canto da boc~. er. erusta,
mas de segurança.
77
76

fi
VELHO
Será que a gente pode confiar nela?

CARLÃO
Fique tranqüilo, companheiro, eu respondo por Tânia.
É uma companheira cem por cento. Foi presa, torturada e
não abriu o bico.
CEN1\ VIII
RIBA
E isso de ser filha de reaça não quer dizer nada. Conheço
até filhos de gorila militando na esquerda.

VELHO
Também por já ter sido presa ela não devia estar aqui. Prisão. 1969. Em cena, Tânia e Müller

CARLÃO MÜLLER
Era preciso uma garota bonita pra namorar o Chefe da d Não vamos discutir agora suas idéias. Eu acho que estão
Segurança da Embaixada e colher todas as informações so- to as erradas e nem sei como você, sendo minha filha pode
bre o Embaixador e ela recebeu da Organização essa tarefa. pensar desse modo. '
Daí em diante, não se podia mais deixá-Ia de fora.
TÂNIA

Eu também não sei como você pode ser meu pai.

MÜLLER

~om: depois nós discutimos esse assunto. Agora o que é


preciso e que você proceda como eu ordenar. '

TÂNIA

Ordenar ... Você parece que tem alma de milico tá sem-


pre ordenando. '

MÜLLER

~dequiser sair daqui. Diga que está arrependida de ter-se


mel! o nesse movimento. Que foi iludida, envolvida pelo
seu namorado.

79
78
l
TÂNIA TÂNIA
Eu não vou dizer nada disso. " ~s~~eça esse detalhe. E não arrisque a sua pasta no
M rnisteno.

MÜLLER
MÜLLER
Mas é a única maneira de eu poder tirar você daqui.
lh Tânia, você tá louca! Será que não percebe o que pode
Você tem que ajudar, droga, senão eu não vou poder fazer e acontecer se não mudar de atitude?
nada.
TÂNIA
TÂNIA Sei, sim. Já fui torturada e já 'vi um companh .
assassinad . "_ eIro morrer
Mas eu não quero que você me tire daqui. Eu não lhe .1 d o aqui na pnsao. Enfiaram a cabeça dele num bar-
pedi nada. n e merda.

MÜLLER MÜLLER
(Choca-se.) Coisa horrível.
(Patético.) Minha filha, eu tenho que fazer alguma coisa
por você! Sua mãe tá lá sofrendo, chorando, desesperada. Eu TÂNIA
também. Estou, inclusive, me arriscando. Saiba que meu Você acha horrível?
nome está sendo cogitado para uma pasta no Ministério e
talvez, por sua causa, eu venha a ser preterido. Mas você é MÜLLER
minha filha, eu tenho que fazer alguma coisa pra libertar Claro, são excessos que ninguém aprova.
você.
TÂNIA
E~tão faça alguma coisa pra acabar com isso.
TÂNIA
Só se todos os meus companheiros saírem comigo. MÜLLER
Estou tentando livrar você.
MÜLLER
TÂNIA
Você sabe que isso é impossível. Eles assaltaram bancos,
~ão é só livrar sua filha. Tome uma posição Q
atacaram depósitos de munição. São terroristas, filha. lhe dIg . uer, eu
o os nomes dos carrascos, dos torturadores.
TÂNIA MÜLLER
Então eu também sou. Você não percebe nad
a...
Vcoces ... se dizem tão Iirí
A

zados e não entendem nem mesmo o po It1-


. d momento que estão
MÜLLER vIve~_ o. Tud~ isso é resultado de uma decisão tomada em
Mas você é minha filha. esca oes supenores. Não posso fazer nada para mudar, nem

80
81
acho que deva. Estamos lutando contra um inimigo ex-
terno, o comunismo internacional, cujo exército está dis-
seminado dentro da nossa população. É uma situação se-
melhante à de um território ocupado, onde, teoricamente,
toda pessoa é um soldado inimigo em potencial. Nessas
circunstâncias, as autoridades encarregadas da segurança
nacional têm o direito de usar de violência, quando ne-
cessário. CENA IX

TÂNIA

E matar?

MÜLLER No ~pa1:elho.Riba sintoniza um canal de televisão, enquan-


to Cartão lzmpa o revólver junto à janela.
Se for preciso .:

RIBA
TÂNIA
Carlão, quanto tempo faz que voce d eIXOU
1.
A . o comu-
É essa então a filosofia. nicado?

MÜLLER CARLÃO
E é uma filosofia baseada nos direitos de legítima defesa, Umas seis horas.
de represália e de necessidade. Desenvolvida pelos maiores
juristas do país, sabia? RIBA

. Não acha que já era tempo deles divulgarem o nosso ma-


TÂNIA nifesto?

A serviço da Escola Superior de Guerra.


CARLÃO

MÜLLER Que ele já tá na mão dos milicos, disso eu tenho certeza.


A serviço da Revolução.
RIBA

Também pode ser que eles resolvam endurecer.


TÂNIA

Entendo: vocês acharam uma justificativa moral para a CARLÃO


imoralidade. É, pode ser. Aí a gente endurece também.

82
83
RIBA TÂNIA
Se não divulgarem o manifesto, nem ao menos isso, é si- Talvez não tenha havido tempo.
nal de que não vão querer dialogar conosco.
RIBA
CARLÃO Acho que já houve tempo de sobra.
Mas eles não têm nada que dialogar. Têm é que cumprir
TÂNIA
as exigências. Divulgar o manifesto e soltar os 40 presos. Quero dizer, tempo pra decidir. Porque com certeza eles
Nem um a menos. vão ter que discutir entre eles.A linha dura, a linha modera-
RIBA
da, deve estar rachando um pau.
Também não é assim. Pode-se negociar. »>: CARLÃO
/'

(Faz u~yat.-)-Esperã!(Aumenta o volume da TV.)


CARLÃO
Ficou decidido, companheiro. Por que amolecer, se a ~ LOCUTOR
gente tá mandando no jogo? Com a faca e o queijo na mão, / Ate~ção! Atenção! Edição extraordinária. Já se encontra
como diz meu velho. em poder do governo a mensagem dos seqüestradores o
Embaixador americano contendo as exigências para libe -
RIBA
tá-lo. Essas exigências são duas: primeira, a divulgação e
Verdade que teu velho foi fundador do Partido?
um manifesto redigido pelos terroristas; segunda, a libert -
CARLÃO ção de 40 presos políticos cujos nomes serão fornecidos p s-
I

Fundador, não, mas militou logo no início, ainda nos teriormente. O Presidente Médici convocou o Conselh de
Segurança Nacional em caráter de emergência para d cidir
anos 20. Por quê?
sobre o assunto.
RIBA Carlão, Riba e Tânia se entreolham, tensos.
Por nada.
, , TÂNIA //
CARLÃO E isso aí, bicho! Tá rachando o pau.
»>
Era anarquista. Um dia escreveu na porta de uma igreja:
"Morra Deus". (Ri.) Foi expulso.

TÂNIA
(Entra, olha a teleuisão.) Não deram nada ainda ...

RIBA
Demorando, não?

84
85
EMBAIXADOR
( orri, sem muito entusiasmo.) Estou tranqüilo. Minha
mulher, meus familiares é que não devem estar. Estou mais
pr cupado com eles.

VELHO
Escreva um bilhete para sua mulher e nós vamos fazer
CENA X h gar às mãos dela.

EMBAIXADOR
Posso escrever?

Quarto. O Embaixador está tenso. VELHO


Pode, claro. Até nos interessa que o senhor faça isso para
EMBAIXADOR
provar que está vivo. Um refém morto não vale nada.
Pensei que aceitassem sem discutir.
EMBAIXADOR
VELHO
(Abre a pasta, pega uma agenda e começa a escrever.) Que
Eu também. Mas deve haver divergências dentro do go- devo escrever?
verno. O senhor deve saber, há uma linha dura e uma linha
moderada. Mais ou menos como os "falcões" e as "pombas" VELHO
no seu governo. Nem nisso somos originais ...
. Que está bem e que ela fique tranqüila. É bom acrescen-
tar que espera que o governo brasileiro satisfaça todas as nos-
EMBAIXADOR
sas condições. Dê a entender que sua vida depende disso. E
(Mostrando certa intranqüilidade.) Qual a linha que o se- que não tentem localizá-Io, pois poderia ser fatal.
nhor espera que prevaleça?
EMBAIXADOR
VELHO
(Termina de escrever; arranca a página e entrega ao Velho,
A moderada, evidentemente, porque, além do mais, con- que lê rãpido.)
ta com aliado poderoso e decisivo: o governo dos Estados
Unidos, que neste momento deve estar pressionando violen- VELHO
tamente. Fique tranqüilo, eles vão acabar aceitando as nos- Ótimo. Vamos fazer o possível para que receba ainda
sas condições e o senhor será libertado. hoje. (Chama.) Ei! Venha alguém aqui.

86
87
EMBAIXADOR
VELHO
Desculpe dar esse trabalho, deviam ter seqüestrado al- E o senhor parec -
~m que não tivesse tantos problemas. e que nao nos considera seres humanos.
Carlão entra. EMBAIXADOR
esco~~~ ~ãO, desc.ulpe, n~o quis ofender. Acho até a vida que
VELHO
em mais emOCIOnante b .
O Embaixador escreveu um bilhete para a esposa. É do minha. ., em mais romântica que a
isso interesse que ela receba.
VELHO
CARLÃO (Tira do bolso dois retratos.) Minha m Ih M .
(Pega o bilhete.) Entendido. (Sai.) lhos. Este é o mais velh p . u er. eus dOIS fi-
'~ . o. arece multo comi A .
saiu mais à mãe. rmgo. menma
EMBAIXADOR
Mary nunca enfrentou uma situação dessas, coitada. EMBAIXADOR
lém do mais, somos muito unidos. Vinte anos de casados, Não acha perigoso para eles andar com ess s r trntos?
unca nos separamos. Talvez o senhor esteja achando ridí-
, VELHO
ulo ...
E COntra as normas de se ".
por isso. Mas se f gurança. Ja fUI muito criti ad
VELHO , ar preso, engulo os retratos J' fi .
vez. . a IZ ISSOuma
Ridículo por quê? Também tenho mulher, tenho filhos.

EMBAIXADOR
Mas deve ser diferente. Sua mulher deve estar acostuma-
Ia, Quero dizer, sinceramente, não sei como o senhor pode
conciliar ... o tipo de vida que vive, suas atividades como ter-
roris ...

VELHO
(Corta, corrigindo.) Como revolucionário.

EMBAIXADOR
Desculpe ... Mas acho que não pode dormir em casa to-
das as noites, nem pode beijar seus filhos todos os dias. Bom,
talvez o senhor considere essas coisas simples hábitos bur-
gueses decadentes.

88
89
ELZA
As ligações estão difíceis. Preferi tratar dela eu mesma.
Achei mais seguro.

VELHO
-E ela ficou boa?

ELZA
CENA XI
Ficou. Fique tranqüilo. Mas passei um mau pedaço.
Estava precisando tanto te ver. Tenho lido tanta coisa nos
jornais. Estão te caçando por toda parte. Os meninos estão
assustados.

F:lza espera, impaciente, num "ponto". É uma praça VELHO


pouco movimentada. Ela consulta o relógio. Está prestes a ir Por que você fala disso com eles?
embora, quando vê o Velho, que se aproxima. Disfarça. O
Velhoentra. Os dois falam sem se olharem, de costas um para o ELZA
outro. Tenho que falar. Eles já não são tão crianças. Luís Carlos
vai fazer quinze anos. E já está lendo Marx.
ELZA
Já ia embora. Passa vinte minutos da hora combinada. VELHO
É muito cedo ainda. Não vai entender nada. Ou vai en-
VELHO tender tudo errado.
Devia ter ido. Nunca espere mais que dez minutos. Você
sabe.Eu podia ter caído. Por sorte foi o trânsito. Como vão as ELZA
crianças? Mas é inevitável. Também é justo que ele queira saber
por que o pai tá sendo caçado como um bandido.
ELZA
Vão bem. Mês passado, Aninha pegou uma bronquite VELHO
muito forte. Fiquei com medo de chamar um médico. Você procura explicar?

VELHO ELZA
. -?Ti Claro. Até onde eles possam entender. Muitas perguntas
Por que não entrou em contato com a O rgarnzaçaor e
ficam sem resposta.
mandariam um companheiro.
91
90
VELHO
Eles colam os corpos, costas com costas. E ofazem sensual-
Um dia eles vão ter resposta pra tudo. mente, como num ato de amor.

ELZA
VELHO
Mas até lá ... tive que tirar os dois da escola.
Cuidado ...
VELHO
ELZA
Por quê? Não tinha conseguido matricular sem o meu
sobrenome? Há tanto tempo não fazemos amor. Será que você tam-
bém não sente falta de mim?
ELZA
Tinha. Mas eu vivia apavorada que acabassem desco- VELHO
brindo que eram nossos filhos. Soube que estão torturando Claro. Tanto quanto você. Ou mais até, porque você ain-
crianças. Podiam fazer isso com eles pra obrigar você a se da tem as crianças, pode procurar um parente, um amigo.
entregar. Eu, não. Da minha solidão depende em parte a segurança da
Organização, você sabe. E tá certo.
VELHO
É, acho que fez bem. Talvez tenha que ir com eles pra ELZA
outro Estado. Por segurança.
Será que tá mesmo, Mário?
ELZA
VELHO
Mais longe de você ainda. Só nos vemos de mês em mês,
Você tem dúvida?
assim, numa praça, numa esquina, sem poder ao menos nos
olharmos nos olhos.
ELZA
VELHO Às vezes eu me pergunto se tudo isso vale a pena. Sacrifi-
Compreenda, Elzinha, é a nossa luta. Me admira você, car nossos filhos do jeito que estamos sacrificando, renun-
tão politizada ... Você tá me decepcionando. ciando a tudo.

ELZA VELHO
Ah, não vem com isso, Mário. Sou politizada, mas mu- Elza, tou estranhando você. Que é que tá se passando?
lher. Sinto falta de você, sinto falta de seu corpo. Agora mes- Não é a primeira, nem a segunda vez que caímos na clandes-
mo, que vontade de te abraçar. Encoste ao menos um pouco
tinidade. Você sempre agüentou com firmeza. Em 47, em 61,
em mim.
em 64... quantos anos de cadeia ...
92
93
VELHO
ELZA Agora, depois que fiz a minha opçao- A •

Mas nunca foi como agora. Desde que você optou pela posso me dar ao luxo de ter dúvid , :omo voce dl~, não
as. N ao posso vacilar,
luta armada que eu sinto que sua vida tá por um fio. Selamos
~ ELZA
um pacto com a morte, Mário.
tempEoqquUeeVOCê não é obrigado a criar seus filhos, ao mesmo
VELHO executa sua taref as ~ A

/ horas por dia Eu _ h . oce pode ser guerrilheiro 24


., nao, ten o que ser mãe também Ou A

Eu optei pela luta armada, esse é o único caminho que ac h a que essa nã ~ . . voce
o e uma tarefa Importante?
pode levar à derrubada da ditadura. Não há outro, Elza. E eu
pensei que você também estivesse convencida disso. VELHO

---------- Pra Das


usar mais
de importantes
. _ ,meu b em. (Tenta fazer hurnor.}
---- -
ELZ
um Jargao do Partido, fundamental.
(Controlando-se.) Desculpe ... eu me descontrolei.
ELZA
VELHO (Não se contém, segura a mão dele.) Mário!
Tou sentindo você insegura, cheia de dúvidas.
VELHO

ELZA ElzaQuePodé isso? Tá chamando ate nçao


- ... Deixe
. de criancice
. emos estar sendo seguidos. '
Você não tem dúvidas, de vez em quando? Nunca teve?
Me lembro em 56, quando Kruschev denunciou os crimes ELZA
de Stálin, você passoU um mês sem dormir. E uma noite eu Um minuto só!
acordei e vi você andando pela casa e falando sozinho.
E você me disse, quase chorando: sabe, Elza, é como a VELHO

gente descobrir de repente que nosso pai, que aprendemos Controle. Assim você não a· d
cendo dois adole JU a em nada. Estamos pare-
a amar e admirar desde criança, não passa de um assassi- scentes.
no, um estripador. Como é possível que uma idéia nobre e
ELZA
justa produza homens dessa espécie. Que há de errado (Controla-se ''J. 'e d ete e t/oIta à p . -
afasta -~, .
perdoe Mário B . oSlçao anterior} Me
nela?! , . 01 mesmo uma crianci N- .
mais. Nunca mais E' Ice. ao vai acontecer
tica. Di a ai . ~queça, por favor. Vamos falar de polí-
VELHO

Que sentido tem relembrar isso agora? que sej: um~:::I:Iss:~~~;:~~estitu.a ~ o~~mismo. Nem
está em crise ago . Partidão, o capitalismo
,
o mundo". Ou e _
rnzante e o soei
,;
r
ocia ismo avança em todo
ELZA
ntao. .. Nossos focos guerrilheiros estão
Quero que você entenda minhas fraquezas.
95

94
pipocando pelo país todo e os gorilas estão com os dias con-
tados, se cagando de medo."

VELHO
Isso ainda não aconteceu, mas vai acontecer.

ELZA
Um, dois, muitos Vietnãs.
CENA XII
VELHO
Você não acredita?

ELZA
(Fazendo o possível para ser convincente.) Acredito. Acre-
No aparelho. Cartão com os olhos fixos no televisor. Ouve-se
dito. o diálogo de um filme. Tânia junto à janela fichada, vigiando
através das venezianas.

TÂNIA
Já é mais de meia-noite. A esta hora eles não vão dar
mais nada.

CARLÂO
Pode ser que leiam o manifesto bem no eu UI rnn
da. Só de sacanagem. (Abaixa o volume da telaoi o.)

TÂNIA
Nós exigimos que fosse lido no horário nobr . 1 1"
não vai dormir um pouco? É a sua vez de descan r.

CARLÃO
Vá você, eu fico no seu lugar.

TÂNIA
Por quê? Esse é o meu turno.

7
96
CARLÃO <,.
,"CARLÃO
Posso então ficar aqui com vôcê?
Era tarefa dormir com o Segurança do Embaixador?
TÂNIA
Acho que não deve, Carlão. Somos só quatro e temos TÂNIA
que nos revezar. Eu não dormi I M
E com e e. as se fosse tarefa, dormia.
~or favor, corte esse papo que eu não quero magoar você
CARLÃO
Nha~"" das que trepam só por solidariedade ou compa~
Entendo, você não quer ficar sozinha comigo. Fique n einsmo.
tranqüila, não vou voltar a encher seu saco.
CARLÃO
TÂNIA
Não quero sua solidariedade.
Carlão! Você prometeu não insistir nesse assunto.
TÂNIA
CARLÃO
Não tou insistindo em assunto nenhum, Tânia. Tou só lh Então, tud~ bem. Vai dormir, Carlão. (Volta-lhe as costas,
o a pela ueneztana, Há uma pausa.)
pedindo pra ficar aqui com você.

TÂNIA CARLÃO
Eu sei no que isso acaba. Já te conheço de sobra. Você sabe o que fizeram comigo na PE?

CARLÃO TÂNIA
Não conhece. Porque estamos vivendo há um mês nesta Sei.
casa fingindo de marido e mulher, você pensa que conhece.
CARLÃO
TÂNIA Quem contou?
Tá legal. Conheço pouco. Mas não tou a fim de aprofun-
dar esse conhecimento. Tá? TÂNIA

El ~m companheiro que estava na mesma cela. Cassiano


CARLÃO
e VIU você chegar arrebentado. .
Só que um mês vivendo juntos, dia e noite, era preciso
ser de ferro pra não ... não se envolver. CARLÃO
Então é isso...
TÂNIA
Eu não sou de ferro e pra mim isso é só uma tarefa, com-
TÂNIA
panheiro. Isso o quê?
98
99
VELHO
CARLÃO' Então vocês fizeram mal em indicar um companheiro
Agora toU sacando. Por isso você falou em soli~aried~de .. -corn esse problema pra uma ação como esta. Aqui, o controle
· ib ue eu nao toU lOU-
Talvez quisesse dizer piedade. P O1S sal a q sobre os nervos é condição básica.
tilizado, como você pensa.
TÂNIA
TÂNIA Foi a Organização que indicou. É um companheiro
," , po que não me inre- muito firme politicamente.
(Veemente.) Porra, cara, esse e um pa
ressa, VELHO
A tevê não deu nada?
CARLÃO
(Descontrolando-se.) Mas a mim interessa e eu quero chos TÂNIA
você saiba. Você já viu fazer vinho? Os caras pisam os caco os Nada. (Pausa.) Escute, Velho, como era no Estado Novo?
smagam. Assim eles fizeram comigo-
de uva esmagam, e
Pulara:n em cima dos meus colhões, ~isaram, e~magaram. VELHO
Mas eu não tou impotente! Não tou lmpotente. Como era o quê?

TÂNIA TÂNIA

E em que isso me interessa? Eu não preciso dos seus Não sei se é lenda, dizem que arrancaram teu bigode, fio
a fio.
colhões pra nada, porra!
. de choro Tânia se arrepende, sente
Carlão tem uma crlse . VELHO
que foi cruel. (Sorri.) Foi. Na Polícia Especial. Também me enfiaram
farpas nas unhas e queimaram a sola dos meus pés com ma-
TÂNIA
çarico. Mas isso até que não foi nada. Houve os que enlou-
id ) Companheiro ... Carlão ... sem essa ...
(Compa d ea a. queceram, como Herry Berger.

CARLÃO TÂNIA
Filhos-da-puta! (Saindo, grita.) Filhos-da-puta! Então a tortura no Brasil não nasceu hoje.

VELHO VELHO
- ) Que houve com ele? Hoje ela é apenas mais sofisticada. Os torturadores usam
(Entra, cruzando com Car 1ao.
a tecnologia, fazem cursos no exterior. Torturam cientifica-
TÂNIA mente. Se você quer comparar, os torturadores do Estado
. E' . de vez em quando funde a cuca. Foi Novo eram simples amadores.
Pirou. assim,
muito torturado.
101

100
---,'C'

TÂNIA
O que teria a ontecido com homem cordial brasileiro?

VELHO
Talvez nunca tenha existido. A verdade é que no Brasil
o pobre sempre apanhou. Preso político ou preso comum.
O direito de espancamento foi adquirido pelas classes domi-
nantes nos tempos da escravidão. Meu pai era italiano, mas
CENA XIII
minha mãe era mulata. Meus bisavós pelo lado materno fo-
ram escravos. E devem ter sido torturados, chicoteados nos
pelourinhos e nos troncos do senhor de engenho. Tenho nas
costas quatrocentos anos de tortura.

TÂNIA Müller em angustiosa espera. Gl6ria entra, em trajes de


Então o que tá acontecendo não é porque uma dúzia de dormir.
sádicos se apoderou do aparelho de repressão.
GLÓRIA
VELHO Frederico, você não vem se deitar?
Se fosse só isso, seria muito simples e desimportante.
Apenas um acidente histórico. Mas não é. Se você quer a ex- MÜLLER
plicação, vai ter que mergulhar mais fundo, no tecido social Pra quê? Você acha que eu vou poder dormir?
em decomposição.
GLÓRIA
TÂNIA Também não adianta você ficar nessa tensão nervosa.
O buraco é mais embaixo ...
MÜLLER
VELHO
Durma você. Vou ficar aqui até ela chegar.
Bem mais embaixo. (Sai.)
A luz fecha em Tânia. GLÓRIA
Olhe a sua pressão, você não pode se aborrecer ...
Ouve-se o ruído de um carro que chega.

GLÓRIA
Parou um carro aí na porta. Deve ser ela. Sim, é ela, gra-
ças a Deus!

102 103
MÜLLER
MÜLLI.
(No mesmo tom.) Exagero. Uma menina de IS anos che-
(Mais deprimido que irado.} horas da manhã. Com o ga em casa depois do sol nascer, uma coisa tão natural, ..
dia amanhecendo.
TÂNIA
GLÓIUA
Eu dormi em casa da Sílvia.
Espere ela explicar prim ir, rederico. Quem sabe...
ela faz parte da diretoria do Grêmio Esses estudantes hoje MÜLLER
varam a noite discutindo política . Mentira! Eu liguei pra casa dela • E VI. quem te trouxe de
carro. -
MÜLLER
Estive na Escola, falei com a Diretora. O Grêmio foi fe- TÂNIA
chado. Felizmente. E você acha que eu sou idiota? Era o car- (Percebe q ue nao
- aditanta sustentar a mentira.) 11 . h
Eu tava com I avin o.
ro daquele pilantra, eu vi. e e.

GLÓRIA MÜLLER
Hoje em dia ... pense bem, Frederico ... uma moça dor- Estava onde?
mir fora de casa não é como no nosso tempo.
TÂNIA
MÜLLER Ih, pai, me deixa ir dormir ...
Uma moça, não uma menina. . Ela
d. ten t~ sau;
. mas ele a agan'a violentamente pelo braco
fiazen o-a cair: .• '
Tânia entra. Tem 15 anos. Assusta-se ao ver os pais.

MÜLLER
TÂNIA
(Descontrolado.) N-ao., "\
voce
T. Anão vai dormir COlo sa ne-
Oi ... Que houve?
nhuma!
MÜLLER
GLÓRIA
(Controlando-se, fala com suavidade e ironia.) Não houve
Frederico! Tenha calma!
nada. Por que haveria? Tá tudo normal. Estamos apenas es-
perando você. Ji telefonei para o Pronto-Socorro, para o Dis- MÜLLER
trito policial, para o Instituto Médico-LegaL .. (Debruça-se sobre J',Aama,
. possesso, e começa a cspancâ-la.)

TÂNIA
ua sem-vergonha! Sua vagabunda! Eu te mato' Eu te
111 1I l •
Mas que exagero, pai.
105
104
GLÓRIA:' ,
, GLÓRIA
(Teruando arrancâ-lo de cima -d~ Tânia) Frederico! Por Sabia E - , ,'-- ,
, 'T' . n:o va se expor ao ridículo de processar esse ra-
Deus! Pare! Pare com isso! Chega, você tá machucando a paz, Ialvez nao tenha sido ele,
menina!
Mií-lter larga Tânia, porfim. Ela se levanta, o olhar cheio de MÜLLER
É possível. ..
ódio.

TÂNIA MÜLLER
(Fitando-o com raioa.) É a última vez que você vai me ba- , rv:zise encolhendo, como se sentisse o mundo desabar sobre a
propria cabeça, Seus olhos se enchem de lâgrimas.) I 'h '
ter. (Sai) vel '" h ornve...
' I o . sso e orn-
-
MÜLLER
(Grita.) Não é não. E se prepare porque hoje mesmo GLÓRIA
(Preocuha-se ve d.
vou te levar num médico. Vou pedir um exame de virginda- co 'r , , n O O quanto ele está sofrendo.)
:JI •
D d
rre en-.
, '" que e ISSO,Frederico ... Tenha calma '
de. E conforme for o resultado, vou mover um processo t ' -, '" procure aceI-
ar. .. ISSOnao e o fim do mundo.
contra esse pilantra com quem você passou a noite.
MÜLLER
TÂNIA
Pra mim , e' .
(Entra) Exame de quê?
Em primeiro plano, num flashback, torcedores do Flamen-
MÜLLER go passam cantando e carregando um jogador.
De virgindade. Quero saber se você ainda é virgem.

TÂNIA
(S01i'i) Ora, pai ... Ridículo. (Sai)

MÜLLER
Que é que ela quis dizer?

GLÓRIA
frederico ... não é mais como no nosso tempo ... te dis-
se .. ,

MÜLLER
(Compreende e se sente arrasado.) Ela ... Tânia ... nossa fi-
lha", com 15 anos! Nunca imaginei ... você sabia, Glória?!

106
107
Foi aqui que eu me escondi logo depois do seqüestro, até
conseguir sair do país.

RIBA
Você não foi banida.

TÂNIA·
Não, consegui atravessar a fronteira no Sul. Estive no
CENA XIV
Chile, Peru ... foi lá que soube que você tinha sido preso e
depois trocado pelo Embaixadór suíço.

RIBA
Quando você voltou?
Apartamento de Tânia. 1979. Ela e Riba acabam de chegar.
TÂNIA
TÂNIA Há uns quatro anos.
Vou preparar um cafezinho pra nós.
RIBA
RIBA Não foi presa?
É aqui que você mora?
TÂNIA
TÂNIA Fui, me encheram um pouco o saco, mas o troglodita,
É. meu pai, livrou a minha barra. (Ela serve o café.) Pirei, fiz so-
noterapia ... e tou aqui.
RIBA

Sozinha? RIBA
Você me parece muito bem.
TÂNIA

Hum-hum. TÂNIA
Bem em que sentido?
RIBA
Posso ficar aqui até arrumar um apartamento? RIBA
Bem de cuca.
TÂNIA
Sem problema. Quanto tempo quiser. Numa boa. Este TÂNIA
apartamento é meu e já serviu de geladeira pra muita gente. Quatro anos de análise.

108 109
, .

RIBA . f-: _-·.~TÂNIA

Que tal o casamento de Freud' com Marx? Tem alguma coisa em mente?

RIBA
TÂNIA
Sei lá. Não creio que a agência me queira de volta. Tam-
São felizes e têm muitos filhos. De vez em quando um
bém não queria voltar a trabalhar em publicidade. Escrevi
corneia o outro, mas tudo bem. uma peça, vou tentar encenar. Mas acho que não vai ser fácil.
Eles riem. Tou pensando em tentar a tevê. Que é que você acha?
TÂNIA TÂNIA
É claro que as feridas cicatrizam, mas deixam marcas. É uma boa. De um modo geral, a barra tá pesada. Na im-
Ou a gente faz uma plástica para efeito externo, ou deixa ... prensa, estão despedindo gente. O campo de trabalho cada
só pra agredir. Você... vez menor.

RIBA RIBA
Umas poucas certezas e muitas dúvidas. Apesar de ter O sonho acabou. O milagre econômico foi pra Cucuia.
tido muito tempo pra pensar, acho que algumas dessas dúvi-
TÂNIA
das vão morrer comigo. Dentre as poucas certezas está a de
Uma merda. A única vantagem é que agora a merda é
que a revolução socialista no Brasil não depende fundamen-
pra todos. Democraticamente.
talmente de mim. (Ri.) Por incrível que pareça, eu já tive
essa ilusão. RIBA
É a merdocracia. Deu-se a Abertura, abriram-se as com-
TÂNIA portas, e a merda jorrou, inundando o país. Fez-se distribui-
Estou te achando um pouco assustado. ção justa da riqueza nacional.
Eles riem e param de rir de súbito, olhando nos olhos um do
RIBA
outro.
O choque da volta ... Acho que não cheguei ainda, tou
chegandQ aos poucos. RIBA
Quando eu te vi no aeroporto, levei um susto. Agora
TÂNIA acho que o espantoso foi eu ter-me surpreendido com isso.
Também agora não há pressa.
TÂNIA
RIBA A luta, o perigo e o sofrimento unem as pessoas para toda
Há, sim. Trouxe algum dinheiro. Muito pouco. Tenho a vida. '
que arnumar emprego rapidinho. A intimidade é quase epidérmica.

lU
110
RIBA ->;
Talvez eu tenha que ir à Bahia: ficar um tempo com meu
pessoal.
TÂNIA
Qualé? Tá com medo de ficar aqui e se e~~olver? Não te
trouxe pra uma armadilha, não. Fica tranqmIo. CENA XV
RIBA .
Mas nem precisava. A armadilha já funcionou quando
eu te vi no aeroporto. . dei
Ele a beija. Um beijo tímido, a princípio, que se mcen e:e
depois. Os dois rolam no chão e r: am~~ Ouve-se a voz No aparelho. Cartão olhando, vidrado, para a televisão.
Entram o Velho e Tânia, correndo. Todos escutam, tensos.
Carlão gritando: "Ei, pessoal! Estão lendo!

CARLÃO
Estão lendo o manifesto!

LOCUTOR
Este ato não é um episódio isolado. Ele se soma aos
inúmeros atos revolucionários já levados a cabo: assaltos a
bancos, onde se arrecadam fundos para a revolução, to-
mando de volta o que os banqueiros roubam ao povo;
tomadas, de quartéis e delegacias, onde se conseguem ar-
mas e munições para a luta pela derrubada da ditadura: in-
vasões de presídios, quando se libertam revolucionários,
para devolvê-los à luta do povo. Na verdade, o seqüestro do
Embaixador é apenas mais um ato da guerra revolucionária
que avança a cada dia e que este ano ainda iniciará a sua
etapa de guerrilha rural.
Acende-se o quarto. Riba escuta, tenso, apontando o revól-
ver para o Embaixador, que também está preocupado.

113

112
EMBAIXADOR CARLÃO
Que está acontecendo? Vai entrar o futebbL· (Desliga a TV.)
Riba faz um sinal para ele se calar!
TÃNIA
LOCUTOR Agora devemos mandar a lista dos presos.
O Embaixador representa em nosso país os interesses do
imperialismo que, aliados aos grandes patrões, aos grandes VELHO

fazendeiros e aos grandes banqueiros nacionais; mantêm o . A li~ta é aquela que foi decidida pelas Organizações.
regime de opressão e exploração. O seqüestro do Embaixa- (n.ra a lista do bolso.) Inclusive aqueles três que não conse-
dor é uma advertência clara de que o povo brasileiro não lhes gurrnos saber os nomes verdadeiros. Constam aí com os co-
dará descanso e a todo momento fará desabar sobre eles o dinomes e com as indicações que podemos dar.
peso de sua luta. É uma luta longa e dura, que não termina
com a troca de um general por outro, mas que só acaba com TÂNIA

o fim do regime dos grandes exploradores e com a constru- Isso vai criar problemas.
ção de um Governo que liberte os trabalhadores de todo o
VELHO
país da situação em que se encontram. A vida e a morte do
Podemos tirá-Ios.
Senhor Embaixador estão nas mãos da ditadura. Se ela aten-
der às nossas exigências, ele será libertado. Caso contrário,
TÂNIA
seremos obrigados a cumprir a justiça revolucionária. Ação
Libertadora Nacional (ALN) , Movimento Revolucionário Não, não é justo que esses companheiros percam essa
8 de Outubro (MR-8). chance de serem libertados só porque não sabemos os nomes
deles.
TÂNIA
CARLÃO
Eles cumpriram a exigência!
Eu não poria os do Partidão.
Tânia e Carlão se abraçam, radiantes.
VELHO
VELHO
Por que não? O critério foi incluir todas as organizações
Espera! revolucionárias.
Ouve-se o hino "Pra frente, Brasil".
CARLÃO
LOCUTOR
O PCB não é revolucionário. É um partido burguês
(l0z.) E passamos a transmitir, diretamente da Cidade reformista. Mero apêndice da oposição burguesa conci-
do México, Brasil e Itália, final da Copa do Mundo de 1970. liadora.

114
115
TÂNIA
Mas tem uma tradição de luta contra a ditadura. E a re-
pressão tá perseguindo e prendendo quadros tanto do PC
quanto os nossos.
CARLÃO
Pro Partidão nós não passamos de aventureiros. E neste
momento eu garanto a vocês que eles estão contra nós, re-
CENA XVI
provando o seqüestro.
TÂNIA
Por tudo isso mesmo é que eu acho que eles não podem
ficar de fora. Quarto. Riba e o Embaixador ainda tensos, mas eufóricos.

CARLÃO
RIBA
Bom, a maioria é que resolve, sou voto vencido, mas
Puxa, cara, é de arrepiar. Puta merda, tou me sentindo
quero deixar claro que fui contra.
uma espécie de Josué fazendo parar o Sol. Fazendo parar o
VELHO mundo e obrigando o mundo a me ouvir. E se eles cum-
Essa discussão não tem razão de ser. Estamos só perden- priram a primeira exigência é sinal de que vão aceitar tam-
do tempo. bém a segunda. E isso prova que estamos certos em nossa
TÂNIA tática. E devemos aproveitar para libertar o maior número
É o que eu também acho, porque tudo isso já foi decidi- possível de companheiros. Será que o senhor não entende?
do anteriormente. São companheiros que estamos salvando da tortura e da
VELHO
morte.
(Entrega a lista a Carlão.) Pode levar.
EMBAIXADOR
Carlão sai.
Eu entendo. E embora não concorde com o método que
estão usando, se é verdade que essas pessoas estão mesmo
sendo torturadas, eu não posso também concordar com isso.

RIBA
O senhor ainda não acredita?

117
116
EMBAIXADOR
latino-americanas. E tinha para com elas um desvelo que só
Eu não acreditava. Dou minha palavra de honra, não sa- se tem para com os filhos excepcionais.
bia que essas coisas estavam ocorrendo no Brasil.
EMBAIXADOR
RIBA Muitas dessas posições estão sendo revistas. Minha opi-
Corta essa, Embaixador. Vai me dizer que o senhor nião pessoal é que para os Estados Unidos só pode ser pre-
também não sabia que estamos sob uma ditadura militar. judicial e constrangedor a existência de qualquer ditadura
Vamos jogar um jogo franco, Embaixador, Ninguém aqui no continente americano. É constrangedor do ponto de
é idiota pra aceitar que o representante do Grande Im- vista ético e moral. É prejudicial sob qualquer outro ponto
pério americano em nossa terra é um :desinformado, um de vista.
ingênuo.
RIBA
EMBAIXADOR Inclusive do ponto de vista dos monopólios e das multi-
Nem devem acreditar também que o regime que existe nacionais? r

aqui é bom para os Estados Unidos.


EMBAIXADOR

RIBA Sim, porque as ditaduras são sempre instáveis e uma das


E não é? condições para se fazer bons negócios, bons investimentos, é
a estabilidade do regime.
EMBAIXADOR
RIBA
Claro que não.
Mas num regime discricionário, onde os detentores do
RIBA poder não têm que dar satisfação a ninguém dos seus atos, é
Uma informação espantosa de parte de quem há um muit? mais fácil a penetração do capital estrangeiro, a con-
século vem se dedicando à indústria de fabricar Trujillos, quista de privilégios, enfim, a colonização econômica do
Somozas, Strossners como fabrica automóveis, em série. país.

EMBAIXADOR EMBAIXADOR

Temos talvez alguma culpa pelo aparecimento de al- Numa etapa inicial, sim. Depois, não.
guns, pela manutenção de outros, mas por princípio desa-
RIBA
provamos as ditaduras.
Quer dizer que estamos nessa etapa inicial e que neste
RIBA momento a ditadura interessa aos grandes trustes.
Pois olha, eu julgava que a nossa Grande Mãe do Norte
EMBAIXADOR
sempre olhava com carinho maternal para todas as ditaduras
(Titubeia.) É uma conclusão que o senhor está tirando.

118
119
RIBA
. RIBA
E que leva a outra; numa segunda etapa, quando as
multinacionais já tiverem tomado conta do país, a ditadura Talvez por causa do jogo.
não interessará mais aos Estados Unidos e então podemos
EMBAIXADOR
ter esperanças até mesmo de que vocês venham a pressionar
Que pensou que fosse?
pela volta à democracia. Ou um tipo de democracia que
garanta seus interesses econômicos e deixe em paz sua
RIBA
consciência.
Sei lá. Temos que estar preparados para qualquer sur-
EMBAIXADOR presa. Apesar de já terem divulgado o nosso manifesto, os go-
Falando com franqueza, é muito provável que isso venha rilas devem estar procurando nos localizar.
a ocorrer nos próximos anos. Porque nós somos uma nação
EMBAIXADOR
de homens de negócio. Queremos fazer bons negócios com
nossos vizinhos, com todo o mundo. Mas não queremos que Se isso ocorrer, no caso de tentarem invadir a casa...
esses negócios deixem os nossos fregueses infelizes, porque
RIBA
isso não é ser bom comerciante, entende? Bom comerciante
é aquele que realiza transação vantajosa, mas deixa o freguês Vamos morrer, todos. Mas o Embaixador morre pri-
meiro.
satisfeito, feliz.

RIBA EMBAIXADOR
Enfim, vocês querem continuar pondo na nossa bunda, (Sente um calafrio, mas procura manter-se impassível.) Já
mas, se possível, sem dor. fez isso alguma vez? Já matou alguém?

EMBAIXADOR RIBA
É um pouco difícil o nosso diálogo, porque o senhor tem Não, nunca. Participei de dois assaltos, mas não houve
opiniões preconcebidas a nosso respeito. mortos.
Ouve-se o espocar de um foguete. Logo depois outro e outro.
Riba estremece e aponta o revólver para o Embaixador. EMBAIXADOR
Antes, o que fazia?
EMBAIXADOR
Que foi? RIBA
Escrevia.
RIBA
Acho que são foguetes.
EMBAIXADOR
Os dois ficam tensos. Livros?
120
121
E_MBAlXADOR
RIBA Tudo isso me parece muito contraditório.
Também Um romance, duas peças de teatro. Ganhav~ a
. o redator de uma agen- RIBA
vida mesmo torrando meu saco com
O intelectual é um animal contraditório e cheio de dúvi-
cia de publicidade.
das, Embaixador. Estou tentando me proletarizar, mas não é
EMBAIXADOR fácil. Não basta botar uma calça larga, sujar a gola da camisa.
Um intelectual. É um problema de formação de entranhas. Posso agir como
um operário, mas continuo pensando como intelectual. É
RIBA
uma merda.
Isso aí.
VELHO
EMBAIXADOR
(Entra trazendo uma camisa dobrada nos braços.} É a mi-
Ganhava bem? nha hora de ficar com ele. Vá lá pra baixo. Atenção ao movi-
mento da rua. Tou sentindo alguma coisa estranha.
RIBA
aís onde o intelectual é uma espé-
Razoavelmente, num p .d r inclusive RIBA
. . 1 de luxo. podia me consi era, ' Vou ver. (Sai.)
cie de margma
bem-sucedido dentro dos padrões.
VELHO
EMBAIXADOR . .. Embaixador, sei que está se sentindo mal com essa cami-
. .s posslblh-
- do Não acha que teria muito mal sa suja de sangue.
N ao enten .
dades num regime capitalista?
EMBAIXADOR
RIBA É," foi o sangue do ferimento ...
É possível. É possível até que esteja lut~ndo por uma r~~
VELHO
_o ue a mim pessoalmente, não rrara nenhum provel
voluça q . dade tediosa e desestimulante. Eu lhe trouxe uma das minhas. Se o senhor aceita ...
to. Por uma SOCle
EMBAIXADOR
EMBAIXADOR
Mas não era preciso ...
Então, por quê? Não entendo.
VELHO
RIBA
'd· - tem um pro- Sei que o senhor não tá acostumado a passar vários dias
Seguinte: minha classe, a classe me ia, oieto de uma ou- em trocar de camisa. E não sabemos quantos dias mais tere-
. h.'· o 'T'enho então que abraçar o proJe mos que passar aqui.
Jeto istortc . l'
tra classe, o proletariado.
123
122
EMBAIXAD R
Ok, é uma gentileza de sua p rte. (Troca de camisa.)

VELHO
Enquanto isso, lavamos a sua.

EMBAIXADOR
Quem vai lavar?
CENA XVII
VELHO
Eu mesmo. Tou acostumado a lavar as minhas. Só peço
um pouco de tolerância para com os meus dotes de lavadeira.

Sala do aparelho. Tânia está na janela. Riba entra.

TÂNIA
Riba ...

RIBA
Quem é?

TÂNIA
Aqueles dois homens ... Já passaram duas vezes em fren-
te à casa, olhando muito.

RIBA
(Olha.) Têm cara de milicos. Estão subindo a ladeira ...
não estou vendo mais ...

TÂNIA
Que é que você acha?

RIBA
Sei lá ... Pode ser simples coincidência. Mas a verdade
é que estou sentindo ... bom, isso é muito subjetivo ...

124 125
Também não consigo controlar minha imaginação e fico fa- RIBA

zendo suposições ... Quanto é que tá? (Posta-se diante do aparelho, inte-
ressado.]
TÂNIA
O que você imagina? Que já estão no nosso piso? CARLÃO
Sei lá.
RIBA
Se começo a raciocinar sobre possibilidades ... sobre nos- TÂNIA
sa inexperiência, sobre os meios de que eles dispõem ... Escolhemos mal a data do seqüestro.
,
Abre-se a porta de súbito e Cartão entra. Tânia e Riba se as-
RIBA
sustam e num gesto instintivo empunham suas armas.
O Brasil tá jogando muito. Deve estar vencendo.
CARLÃO
CARLÃO
Que é isso? Assustados ...
Tomara que perca. E perca de goleada.
TÂNIA
RIBA
Puxa, você ...
Não fala assim, cara.
RIBA
Não viu aí fora dois caras com pinta de milicos à pai- TÂNIA
Você disse que as ruas estão desertas. Mas se o Brasil for
sana?
campeão, vai haver um carnaval.
CARLÃO
CARLÃO
Não ...
E o governo vai conseguir distrair a atenção do povo.
TÂNIA Há um gol do Brasil
E a lista com os nomes?
RIBA
CARLÃO (Vibra.) Gol!
Tarefa cumprida. (Aumenta o volume da TV, ouve-se o lo-
cutor descrevendo o final do jogo Brasil x Itália.) TÂNIA
Gol de quem?
CARLÃO
Essa merda desse jogo. As ruas estão desertas. Todo RIBA
mundo grudado na televisão. Nem parece que seqüestramos Do Brasil! Carlos Alberto! E é o quarto! Quatro a um
o Embaixador dos Estados Unidos. Brasil!

126 127
CARLÃO
CARLÃO
Esses dois caras de que vocês falaram ... Porque você é um pequeno-burguês de merda.

TÂNIA RIBA

Que é que tem? (Ofendendo-se.) Pera lá, cara!

CARLÃO TÂNIA
Como é que foi? Carlãol:

RIBA CARLÃO
(Vibrando com ojogo.) O jogo tá no fim. O Brasil vai ser
Um intelectualzinho de bosta que tá nisso porque quer
campeão.
fazer bonito, brincar de revolucionário. No dia que cair e lhe
apertarem os colhões, entrega todo mundo.
CARLÃO
(Irritado.) Desliga essa merda!
RIBA

TÂNIA (Avança para agredir Carlão.) Olha, eu não admito ...


Ei, calma, cara ...
TÂNIA
CARLÃO (Mete-se entre os dois.) Parem com isso, porra! Se
Agente seqüestra o Embaixador americano, faz o mun- querem brigar, esperem um pouco e vão ter que brigar com
do inteiro se voltar para essa bosta de país, e o país, 90 a Polícia e com o Exército. Se querem mostrar valentia,
milhões de pessoas grudadas nos rádios e nas televisões, mostrem na hora de levar porrada nos DOPS e no
acompanhando o futebol! Porra! Será que esse povo merece DOI-CODI, que é isso que nos espera. Não sejam crian-
o que tamos fazendo por ele? Tou arriscando a minha vida ças. Desafiam o mundo e brigam por causa de futebol. Ri-
por um povo alienado, que s6 pensa em futebol! Puta que dículo.
pariu! Carlão sai, abruptamente. Ouve-se o locutor anunciando o
fim do jogo. Entra o hino "Prafrente, Brasil".
TÂNIA
O povo não tem culpa. TÂNIA

RIBA Chato isso.


E não tem nada uma coisa com a outra. Eu não sou alie-
RIBA
nado e gosto de futebol. Sei que os milicos vão capitalizar
Muito chato.
essa vitória, mas não consigo deixar de vibrar.

129
128
TÂNIA
Não ligue. Carlão é um sectário.

RIBA
., E A~,
Mas ele parece que discorda de rmrru por que ..

CENA XVIII

Enfermaria. Cartão nu, desmaiado, sobre uma mesa.


O Médico o examina, sob as vistas do Inquiridor e do Tor-
turador:

MÉDICO

Quem é ele?

INQUIRIDOR

Estudante universitário, trabalhava na Petrobrás, filho


de operários. Ninguém importante.

MÉDICO

Mas é preciso parar, senão ele vai morrer.

INQUIRIDOR

Isso também não nos interessa. Morto não informa. E eu


acho que ele não tem também nada a informar. Foi uma fa-
lha do computador. Trate dele, faça o que puder. (Consulta o
rclôgio.) Tenho que ir pra casa, preciso dormir, amanhã mi-
nha mulher vai me acordar cedo pra ir à igreja. Completa-
mos 15 anos de casados, mandamos rezar uma missa.

131
MÉDICO
Parabéns. Isso prova que o casamento não é uma insti-
tuição falida, como dizem por aí. E que alguns valores mo-
rais de nossa sociedade continuam de pé ...

INQUIRIDOR
Graças a Deus.
CENA XIX

Aparelho. Ruídos de buzinas efoguetes que vêm da rua. Ou-


ve-se também a campainha tocar, insistente. Riba e Tânia estão
tensos.

RIBA
Que é isso?

TÂNIA
(Olhando pela janela.) Não sei... tem um mundo de gen-
te aí fora ...
A' campainha toca insistente. Carlão entra, tenso, rev6lver
em punho.

CARLÃO
São os homens?!

TÂNIA
Não, é o pessoal da rua, os vizinhos.
Ouve-se um coro, fora: Bra-sil! Bra-sil! Bra-sill

RIBA
E agora?

133
132
TÂNIA
Acho melhor abrir.

CARLÃO
Não! Tá louca? Com o Embaixador aqui dentro!

TÂNIA
Mas eles sabem que estamos aqui. Vão desconfiar. CENA XX
CARLÃO
Mas o que podem pensar? Que não queremos abrir. Que
estamos ocupados ...

TÂNIA
Quarto. a
Velh~ e o Embaixador, tensos, preocupados. a
Velho aponta o revolver para a cabeça do Embaixador.
E se já notaram que temos visitas? .
EMBAIXADOR
RIBA Que está acontecendo?
É, não tem saída, acho melhor abrir. Pra não despertar
suspeitas. VELHO
N-ao sel.. ..
TÂNIA
Carlão, vá avisar o Velho. E não deixe ninguém subir. CARLÃO

a coro aumenta e a campainha marca o ritmo. Carlão sai, {Entra.} Os filhos-da-puta


E - .
dos vizinhos I' di
nva Iram a
Tânia e Riba escondem as armas, cobrem a impressora com casa. stao fe:teJando a vitória do Brasil. Tivemos que deixar
entrar, pra nao despertar suspeitas.
uma toalha. Tânia abre a porta. A cena é invadida por um
grupo que empunha bandeiras verde-amarelas e também de
EMBAIXADOR
clubes cariocas e canta o hino "Pra frente, Brasil".
Não entendo ...

TÂNIA
VELHO
(Gritando.} Olá ... sejam bem-vindos ... Este é meu ir-
É o Campeonato do Mundo. O Brasil venceu.
mão ... agrupo evolui pelo cenário, arrastando Tânia e Riba,
que são obrigados a participar da euforia geral. Após certo tem- EMBAIXADOR
po, apagam-se as luzes, mas eles continuam cantando. Oh, yes ...

134
135
, r

CARLÃO De repcnt é aquela


É melhor que não vejam você. Fique aqui com ele. corrente pra frente
parece que todo o Brasil
VELHO deu a mão ...
Cuidado, isso é muito perigoso. Policiais podem se infil-
trar no meio do povo.

CARLÃO
Se isso acontecer, eu dou um tiro e você fuzila o gringo.
(Sai.)

EMBAIXADOR
(Espantadíssimo, ante o inusitado da situação.) Está ha-
vendo uma festa lá embaixo ...

VELHO
É... parece. Isso não estava nos nossos planos.

EMBAIXADOR
My God, nunca vou entender este país!
Acendem-se simultaneamente as luzes da sala e de oârias sa-
las de tortura. Na primeira, todos cantam e dançam agitando
bandeiras. Nas salas de tortura, em cada uma delas um homem
ou uma mulher; nus, pendurados nos paus-de-arara.

CORO

Noventa milhões em ação


pra frente, Brasil,
do meu coração
Todos juntos vamos
pra frente, Brasil,
Salve a Seleção!

136
137
SEGUNDO PAINEL
".

CENA XXI

Apartamento de Tânia. 1979. Tânia e Riba deitados, nus,


depois de fazerem amor. Ambos im6veis. Riba estende o braço,
pega os cigarros, acende um. Fica pensando, fumando, olhando
para o teto, enquanto se ouve a canção "Campeões do Mundo"
(apenas a 1/J. parte).

TÂNIA
Em que você tá pensando?

RIBA
Tudo aquilo ... Tanta gente ... tanta gente ... que foi feito
deles?

TÂNIA
Quem?

RIBA
Tavinho, Marcelo ...

TÂNIA
Marcelo desbundou. Tavinho inda tá preso, teve a pena
reduzida pra 30 anos, mas não pegou a Anistia. Lembra do
Rocha? Virou executivo da Volkswagen.

141
RIBA RIBA
Acredito. Por mim, acho que se no tempo de Cristo os
Miranda?
métodos de tortura tivessem chegado à sofisticação a que
TÂNIA chegaram hoje, até Jesus teria entregue os doze apóstolos.
Tá meio lelé... Pentotal na veia, éter no ânus.
TÂNIA
De um modo geral, toda a esquerda se portou bem. Fo-
RIBA
ram poucos os canalhas.
Ouvi dizer que entregou muita gente.
RIBA
TÂNIA Camargo, que foi feito da J;ndira, aquela garota loura ...
Há quem queira crucificá-l o por isso.
TÂNIA
RIBA Camargo está na lista dos desaparecidos ... Aquela garo-
Não eu. A resistência física tem um limite além do qual ta loura foi metralhada no Araguaia.
toda estrutura psicológica se desintegra e toda ética vai pra
RIBA
Cucuia. E é este o final da história. Uma garota loura metralhada
no Araguaia. O resto é silêncio ...
TÂNIA
Ouvem-se rajadas contínuas de metralhadora. Um grupo
Há companheiros que não aceitam. Um comunista mor-
de guerrilheiros passa correndo ao fundo, enquanto slides são
re, mas não fala. Principalmente um dirigente.
projetados. São cenas de guerrilha, entremeadas com fotos de

RIBA
Marigucla, Larnarca, Gueuara.

Acho uma posição puramente romântica.

TÂNIA
Muitos morreram e não falaram.

RIBA
Eu sei. Sei também que muitos morreram sem falar
porque nada sabiam. E que em outros casos houve erro de
cálculo.

TÂNIA

Mas houve heróis.


143
142
CARLÃO
Também pode ser uma sondagem.

VELHO
Atenda você. Não deixe que passem da porta. Eu lhe dou
cobertura. (Pega a metralhadora, esconde-se e fica atento.}

CARLÃO
CENA XXII (Entreabre a porta. Surgem os dois homens} Bom-dia.

HOMEM
Bom-dia. Somos marinheiros e estamos oferecendo al-
guns artigos estrangeiros, relógios, jóias, perfumes, tudo de
primeira qualidade ...
Sala do aparelho.Ouve-se a campainha da porta. Várias ve-
zes o Velho olha pela janela. Carlão entra. CARLÃO
Obrigado, não estou interessado.
CARLÃO
HOMEM
Quem él Quem sabe sua senhora? ... Permite que entre pra mos-
trar, sem compromisso ...
VELHO
Venha ver... são dois homens ... CARLÃO
Estou sozinho, minha mulher saiu.
CARLÁO Ohomem procura olhar o interior da casa, como se buscasse
(Olha.) Achoque são os m smos... Os mesmos que Riba alguma coisa.
e Tânia viram...
CARLÃO
A campainha volta a tocar. Eles ficam indecisos.
Com licença. (Os homens saem, ele fecha a porta. Espera
alguns segundos.) Você escutou?
CARLÃO
É melhornão abrir. VELHO
Escutei. Já fomos localizados.
VELHO
CARLÃO
Pode serque não seja nada. Se fossea polícia ou o Exér-
Também acho. Nenhum deles tem cara de marinheiro
cito, não viriamapenas dois, mandariam um choque no mí-
ou contrabandista.
nimo.
145
144
VELHO
CARLÃO
Têm cara de oficiais do Exército ou da Aeronáutica. Dois
Não ... não vejo ninguém ... Só um carro ... Tânia está
agentes. chegando.
CARLÃO
VELHO
E agora? Acho que temos de mudar de aparelho.
Observe bem. Veja se ela não foi seguida.
VELHO
Calma. Se já nos localizaram, não adianta sair daqui. CARLÃO
Devem estar vigiando a casa e iriam atrás de nós. Nada de anormal na rua. Mas tenho certeza de que esses
filhos-da-puta já instalaram postos de observação em torno
CARLÃO
da casa. Você não acha?
E se resolverem invadir a casa?
VELHO
VELHO
Eles não podem fazer isso; sabem que mataríamos o É possível.
Embaixador. E neste momento eles estão muito mais preo-
cupados em salvar a vida do Embaixador do que em nos CARLÃO

prender. Talvez tenham ocupado outras casas e estejam de lá


com lunetas, teleobjetivas, filmando até e esperando a
CARLÃO hora de dar o bote. A sensação que tenho é de estar sentado
(Sem estar muito convicto.) É, eles também não podem sobre um barril de pólvora que a qualquer momento vai ex-
fazer nada. Mas, de qualquer maneira, isso muda muito a si- plodir, mandando tudo pelos ares.
tuação. Sabemos agora que estamos na mira deles.
TÂNIA
VELHO
(Entra, trazendo vários jornais.) Oi.
Muda a situação, mas não muda nosso plano. Temos que
seguir item por item, como se nada tivesse acontecido.
VELHO

CARLÃO Tudo bem?


Podem prender Tânia ... ela foi comprar jornais e
comida. TÂNIA

Cartão volta a olhar pela janela. Tudo.

VELHO VELHO
Está vendo eles? .. Notou alguma coisa estranha na rua quando chegou?
146
147
CARLÃO
TÂNIA
O fato é que já passaram dois dias desde que o governo
Quando parei o carro aqui na porta, senti mil olhos me
recebeu a lista de presos.
fitando. Olhei em volta e não vi ninguém. Deve ser só uma
sensação. TÂNIA
O rádio não deu nada?
CARLÃO
Já não é mais apenas uma sensação. Aqueles dois caras CARLÃO
que você e Riba viram rondando a casa estiveram aqui. Fin- Nada.
giram-se de marinheiros querendo vender contrabando. Mas
são dois agentes, não há dúvida. TÂNIA
Esse silêncio é de encher o saco.
TÂNIA
Então já sabem onde estamos ... CARLÃO
Editorial do JB violento contra nós.
VELHO
É provável. Mas tudo bem. Vamos em frente. TÂNIA

Carlão começa a folhear osjornais, excitadamente. . E o q~e você queria, que a condessa batesse palmas?
VeJa tam?em o Estadão. Os Mesquitas estão espumando de
TÂNIA raiva, Ate mesmo o Correio da Manhã ... E com razão. É
Estamos em todas as manchetes. Dividimos com Pelé as muita audácia. Seqüestram o Embaixador dos Estados
glórias nacionais. U~idos e exigem a libertação de 40 subversivos. Onde é que
n~s estamos? (Isola-se um pouco, avança para a boca de cena.)
VELHO
FIco pensando no meu pai. O troglodita deve estar num da-
(Interessando-se também pelos jornais.) Alguma coisa so-
queles' ataques de ira sagrada. (Ela ri.) Imagina se ele sou-
bre os presos? besse que estou metida nisso ...
CARLÃO
O Globo diz na primeira página que a oficialidade jovem
não aceita que o governo negocie conosco. Essa oficialidade
sugere uma operação-resgate. (Lendo.) Segundo fontes
bem-informadas, essa operação já estaria sendo minuciosa-
mente planejada, temendo-se que grupos mais radicais a po-
nham em prática por conta própria.

VELHO
Tudo isso é especulação.
149
148
TÂNIA
Uma miss ra de Porto Alegre. O 3° Exército v \I c I
vantar em d f sa de Jango.

MÜLLER
(Ri, irônico.) Ah. Vai... Quem lhe disse isso? Seus co-
leguinhas lá da UNE? É isso que vocês estão esperando,
é? Idiotas. Jango já está a caminho do Uruguai. Ele, Brizola
CENA XXIII , e toda a canalha comunista que queria entregar o país a
Moscou.

GLÓRIA
E foi Deus quem nos salvou, foi Deus que ouviu as nos-
A'

Casa d e T ama.
1964
.
uau« escuta a "Cavalgada das
d
sas preces.

Valquírias", de Wagner. Glória bate nervosamente na porta o TÂNIA

quarto de Tânia. É, Deus deve ter-se comovido com a Marcha da Família.

GLÓRIA MÜLLER

Tânia? Tânia, abra aí, meninal (Para Miiller.) Ela hão Ou não deve ter gostado do comício de 13 de maio ...

quis falar comigo hoje, s trancou no quarto, estou preo- TÂNIA

cupada. Jango foi traído.

MÚLLER GLÓRIA

Preocupada por quê? Se ela está em casa, tudo bem. O O que é muito bem feito. Ele também traiu sua classe.
na-o deve é deixá-Ia sair. Aqueles livros?
A
Um fazendeiro, um senhor de terras, querer cornunizar o
que voce Brasil.
GLÓRIA
TÂNIA
Queimei. Queimei tudo. Avalie que tinha um com o re- Vocês acreditam mesmo nisso?
trato de Che Guevara! .
MÜLLER
Tânia entra com um rádio de pilha colado ao ouvIdo.
Está mais que evidente. Quem mandava nas cidades? A
MÜLLER CGT, Comando Geral dos Trabalhadores. Quem mandava
no campo? As Ligas Camponesas. O Exército estava minado
Que é que você está escutando?
151
150
pelos sargentos e a Marinha pelos marinheiros. Não havia
GLÓRIA
mais hierarquia, o terreno estava preparado para que os co-
Tânia, aonde você vai?
munistas fizessem daqui uma nova Rússia.
TÂNIA
GLÓRIA
Vou sair, não agüento mais.
Do que nós escapamos.
GLÓRIA
MÜLLER
Não, você não vai sair.
E trate de se afastar daqueles subversivos lá da UNE.
Principalmente daqueles baderneiros que viviam trepados
TÂNIA
em caminhões fazendo palhaçadas. Por quê?
TÂNIA
GLÓRIA
Era teatro para o povo.
Diga pra ela, Frederico.
MÜLLER
MÜLLER
Teatro comunista. Tome juízo. Porque nós não vamos
ter contemplação. Agora não vai ser como em 54, quando Um general amigo meu me disse que seu nome está
deixamos o poder escapar de nossas mãos, depois do suicídio numa lista de ativistas do movimento estudantil que devem
ser presos.
de Getúlio. E não vai ser também como em 61, após a renún-
cia de [ânio, quando acabamo p rmitindo que Jango assu-
GLÓRIA
misse a Presidência. A ra vamos às últimas conseqüências.
Tá vendo o que você foi arranjar? Quantas vezes eu te
E se seus ami uinh da UN' pensam que vão de novo bo- falei ...
tar a cabeça d fora, t' n anados. Nem agora, nem daqui
a dez anos. MÜLLER
Consegui que ele riscasse o seu nome. Mas isso tem uma
TÂNIA
condição: você vai romper com essa gente e sumir por uns
Nunca vi você tão eufórico.
tempos. Aproveitamos e fazemos aquela cirurgia.
MÚLLER
TÂNIA
Estamos cansados de ganhar e não levar. Agora vamos
ganhar e levar tudo a que temos direito. Vamos desmontar O senhor inda não tirou isso da cabeça?! Será possível?!
essa máquina subversiva e modelar este país à nossa ma-
MÜLLER
neira.
Claro que não. E já falei com um cirurgião amigo meu, é
Tânia inicia a saída.
coisa simples, uma costurinha à-toa.
152
153
TÂNIA
Mas eu não quero! Nem quero favores de seus amigos
gorilas! (Sai.)
GLÓRIA
. .?
Fazem mesmo esse tipo de cirurgiar

MÜLLER CENA XXIV


Fazem, claro. Costuram o hímen e pronto. Ela volta a ser
• • )o~ ,

virgem.

Na sala do aparelho. O Velho e Carlão em cena, um pouco


tensos. Riba entra, trazendo o Embaixador.

VELHO
Sente-se, Embaixador.

EMBAIXADOR
(Intranqüilo, senta-se.) Obrigado.

VELHO
Chame a Tânia.
Riba sai.

VELHO
Nós achamos que o senhor devia ficar a par das decisões
que vamos tomar. O governo, segundo o noticiário radiofô-
nico, recusa-se a cumprir a segunda parte das exigências, ale-
gando que cinco dos nomes não constam de nenhuma lista
de prisioneiros.
Riba entra.

CARLÃO
Mentira.

155
154
RIBA
RIBA
Vamos supor que o governo formalize a proposta de li- Mas podem cumprir. Como é que ficamos, então?
bertar 35. Já seria uma vitória.
CARLÃO
CARLÃO Nesse caso, eles serão responsáveis pela morte desses 40
Seria uma traição. mais um, o Embaixador.
Entra Tânia.
RIBA
Traição? RIBA

CARLÃO Eles, não, nós!


Aos cinco que não vão ser libertados.
CARLÃO
VELHO Como, nós?
É possível que o governo esteja querendo só ganhar tem-
po até solucionar divergências internas. RIBA
Claro. Nós não entramos nessa pra matar ninguém, en-
CARLÃO tramos pra salvar companheiros.
Ou enquanto prepara a operação-resgate.
CARLÃO
VELHO
E nunca te passou pela cabeça essa possibilidade, ter que
Os jornais falam numa operação militar para libertar o
matar o Embaixador?
senhor.
RIBA
EMBAIXADOR
Operação militar ... dos Estado Unidos? Não, nunca.

VELHO VELHO
Não, de grupos de extrema dir i a brasileiros. Esses mes- Nenhum de nós faria isso com prazer, companheiro.
mos grupos ameaçam fuzilar t 40 presos políticos de Todos esperamos que não seja preciso. Mas, se tiver que ser
nossa lista. feito, será feito.

RI DA RIBA
E se eles cumprirem a um \ lr No caso de assassinarem 40 dos nossos, seria uma vin-
gança estúpida contra quem, afinal de contas, pouco tem a
V I
ver com isso.
Acho improvável.
157
156
RIBA
CARLÃO
De qualquer maneira, vamos matar um inocente. E todo
Pouco, não, muito. Ele representa ';1m país que apoiou o
mundo vai nos responsabilizar pela morte de 40 compa-
Golpe de 64 e quase todos os golpes militares na América
nheiros.
Latina. Nosso gesto terá pelo menos um efeito simbólico de
condenação ao imperialismo. CARLÃO
Todo mundo, não, só a reação. E ele não é um inocente.
RIBA
Não aceito essa colocação.
Mas será que ele vale 40 vidas de 40 companheiros nos-
sos? ...
.' ' .. VELHO
Há uma pausa. Estamos numa guerra. E numa guerra muitos
inocentes morrem, infelizmente. Ou o companheiro veio
RIBA
para a luta armada julgando que isso jamais iria ocorrer?
Respondam! Quero que me respondam!
CARLÃO
, VELHO
Acho que o companheiro está emocionalizando o pro- Acho essa discussão pura perda de tempo. Devíamos
era escolher quem será incumbido de executar o Embai-
blema, que por enquanto é apenas uma hipótese.
xador.
RIBA
Estamos discutindo essa hipótese. Se o governo declarar, TÃNIA

oficialmente, que fuzilará nossos companheiros se não liber- Essa responsabilidade não deve recair sobre um só, deve
ser de todos.
tarmos o Embaixador, como é que ficamos?

VELHO CARLÃO

O Governo não pode declarar isso publicamente. Só po- Se for de todos, acaba não sendo de ninguém. E na hora
demos conceber o fato como urna ação isolada de um escalão da confusão ele acaba escapando.

intermediário. VELHO

RIBA Os companheiros acham que um de nós deve desde já


receber a tarefa?
E aí?

VELHO TÃNIA

Aí estaremos diante de um fato consumado. E de um di- É o que ele tá propondo. E eu concordo.


lema: ou liquidamos o nosso refém, ou mostramos que está-
VELHO
vamos blefando. E nenhuma ação desse tipo poderá ser pra-
O companheiro tá de acordo com isso?
ticada ..
159
158
--
RIBA
TÂNIA
(Hesita um pouco.) De que adianta discordar? Sou voto
(Tira um papelzinho} abre-o.) Em branco.
vencido.
VELHO
CARLÃO
(Para Cartão.) Você.
Eu me apresento como voluntário.

TÂNIA CARLÃO
Corta essa vocação de herói, ca{~'. Vamos fazer um (Tira um papel} ,~ambém em branco. Mostra decepção.)
sorteio.
VELHO
CARLÃO
(Apanha u'}1 papcl.) Também ...
Tá certo, como quiserem.
O Velho corta uma folha de papel em quatro pedaços. Marca Todos se voltam para Riba. Este compreende que foi o sor-
teado.
um deles com uma cruz. Dobra-os.

VELHO RIBA
Quem tirar o papel marcado com uma cruz terá a tarefa Eu?!
de justiçar o Embaixador, em caso de um ataque de surpresa.
Ou de um massacre de presos políticos. Entendido? TÂNIA
Só pode ser...
TÂNIA
Entendido. RIBA

VELHO
(Abre o último papelzinho e vê que foi sorteado.) É ... fui
eu.
Vamos colocar nas mãos do próprio Embaixador. (Coloca
os papéis na mão do Embaixador.) Desculpe ... o senhor con-
VELHO
corda?
~ uma tarefa desagradável. Mas é uma tarefa, cornpa-
nheiro,
EMBAIXADOR
(Sorri}procurando ainda mostrar senso de humon) Eu mes-
mo escolher meu próprio carrasco. Muito gentil. .. CARLÃO
Quero que fique registrado o meu protesto Contra essa
VELHO forma de distribuir tarefas. Tarefas importantes devem ser
Não, o senhor vai apenas abrir a mão para que cada um confiadas a companheiros capacitados. Não se faz revolução
de nós apanhe um papelzinho. Quem começa? com loteria. (Sal: bruscamente.)

160
161
· ,
VELHO
(Para Tânia e Riba.) Fiquem atentos. Qualquer movimento
Se o senhor Embaixador quiser escrever uma nova carta suspeito na rua, dêem o sinal.
a sua esposa, isso talvez ajude. Foi para lhe pedir isso que o
Saem o Velho e o Embaixad01: Há uma pausa. Tânia nota a
trouxemos aqui.
confusão que se estabeleceu no espírito de Riba.
EMBAIXADOR
TÂNIA
(Revelando na voz o medo pela perspectiva da morte.) Que-
ro, sim. Mas antes queria dizer alguma coisa, se me permi- Gostei que você dissesse tudo aquilo. Não que esteja de
tirem. acordo. Mas a ge~te deve botar pra fora o que sente.
.•.:!l':

VELHO RIBA
Claro. O senhor pode falar o que quiser. Sem censura. .Talvez Carlão tenha razão, talvez eu não seja o mais ca-
pacitado para a tarefa. Não sei... nunca matei ninguém
EMBAIXADOR
(A voz um pouco trêmula.) Eu, até há pouco, acreditava TÂNIA
que estava diante de pessoas bem-intencionadas, apesar de E não seria capaz de matar? Então que diabo tá fazendo
toda a violência que estão fazendo contra mim. Pessoas que aqui?
eram forçadas a praticar essa violência contra uma criatura
indefesa para conseguirem um objetivo muito nobre, libertar RIBA
companheiros que estão na prisão. Agora, depois dessa de- Não é que eu não seja capaz. Em defesa própria, durante
cisão de me tirarem a vida, caso as coisas não saiam como um. assalto, uma ação revolucionária qualquer, é outra coisa.
planejaram, eu qu ro diz r que estou profundamente decep- Assim ... é uma execução fria. Não é nada de que alguém
cionado. Porqu i o tá m desacordo com tudo que me possa se orgulhar.
disseram sobre justiça, lib rdade, direitos humanos.
TÂNIA
VELHO Mas é uma tarefa.
Terminou?
RIBA
EMBAIXADOR
E se é tarefa, fim de papo, não se discute. Tenho minhas
Já. dúvidas. Acho que você também tem. É humano ter dúvidas.
Ou não?
VELHO
Vamos então voltar ao quarto. Não podemos perder tem-
TÂNIA
po com essa discussão de princípios. Mais importante que
Quem entra numa ação desse tipo tem que estar por
tudo agora é a carta que o senhor vai escrever a sua esposa. tudo.

162
163
!o ,o '",

TÂNIA
RIBA
Tl dos n bemos. Mas eu acho que é sempre assim, a
Eu sei, não tenho o direito de recusar. Afinal, também há gente chega aonde pode e como pode, não aonde quer e
tarefas desagradáveis. Não se pode escolher. Isso não é pi- como quer.
quenique.
RIBA
TÂNIA
Não dei um salto no escuro. Fiz uma opção consciente.
Não se faz uma omelete sem quebrar os ovos... Troquei um mundo em que me sentia mal por uma luta por
outro mundo, ao qyal espero chegar. Conscientemente.
RIBA ,:.

Sei o que você tá pensando. Que eu sou um intelectual TÂNIA


de merda, com o vício pequeno-burguês da liberdade indivi~ Não estou duvidando de sua consciência política.
dual. Tou reagindo porque não escolhi a tarefa, ela me f01
imposta. Não é nada disso. É que de repente me de! c~nta. :. RIBA
Isso pode ter um desfecho que nenhum de nos imagi- Não, no fundo, você também me olha com desprezo,
nou. Se matam os quarenta ... uma barbaridade ... matamos como Carlão.
então o Embaixador ... outra barbaridade. Aonde estamos
TÂNIA
indo, Tânia?!
Você é injusto. E eu não mereço que me agrida como se
TÂNIA eu estivesse contra você. Tou até procurando te entender.
Você se esqueceu de completar: podem nos matar a todos
RIBA
também.
Desculpe. Esse cara vive me encostando na parede. E por
RIBA quê? Por que nunca fui preso? Por que nunca fui torturado?
Por que ainda não esmagaram meus colhões, nem me enfia-
Então?! Isso tem sentido?
ram um cassetete no rabo? Mas isso não é culpa minha, é fa-
TÂNIA lha deles. Ou é um problema de classe? Ele é filho de operá-
Acho muito tarde pra você se fazer essa pergunta. Bota- rios ... Porra, mas eu não sou carreirista, não tenho nada a
mos o nosso barco na corredeira, não há como pular fora, ganhar nessa merda. Ao contrário, se fosse um carreirista, ti-
nha ficado onde estava, só tinha a ganhar com o sistema. E
temos de ir até o fim, dê onde tiver que dar.
chutei tudo pro alto.
RIBA
TÂNIA
Mas isso não é racional. Eu tenho um fim em mente, sei
E por que chutou?
aonde quero chegar.
165
164
RIBA
Porque minha vida não tinha sentido. Porque não me re-
conhecia no que fazia. E principalmente porque, num dado
momento, compreendi a necessidade da luta armada para
destruir o sistema.
TÂNIA
. h
Então você tem muito a gan ar ...
Nós temos muito a CENA XXV
ganhar. Porque nenhum de nós entrou.~essa por um proble-
ma existencial apenas. ','
RIBA
1968. Em primeiro plano, manifestantes, portando faixas,
Claro, claro ... entram e vão-se agrupando, enquanto se ouve, fora, um cantor.
("Pra não dizer que não falei de flores", de Geraldo Vandré.)

CANTOR

Caminhando e cantando
e seguindo a canção,
somos todos iguais
braços dados ou não
nas escolas, nas ruas,
campos, construções,
caminhando e cantando
e seguindo a canção.

Uma líder estudantil sobe num plano mais elevado efaz um


comício-relâmpago.

LÍDER

Companheiros! Vocês que estão aí nas janelas, nas saca-


das! Não basta bater palmas, é preciso descer e vir para a rua
mostrar que o povo está unido contra a ditadura. Eles só

167
166
estão no poder porque têm armas. Mas o povo também pode GERENTE
se organizar e se armar. Também pode responder à violência N) U· \ 0, rapaz, com o futuro que tem pela frente,
com a violência! Só o povo armado derruba a ditadura! fran um III ,1\ dá pra entender.

CORO RIBA
Meu futuro ... Continuar essa lutazinha mesquinha pra
subir de degrau em degrau, de posto em posto, até sentar a
Só o povo armado
bunda aí na sua cadeira de Gerente. Bela merda.
derruba a ditadura!
Só o povo armado r GERENTE
derruba a ditadura! Que é que você queria? Ser o dono da agência?

Enquanto a passeata continua a se organizar em primeiro RIBA

plano, a ação se desenrola, simultaneamente, numa agência de O que eu queria, não sei, mas sei o que não quero. Não
sei o que vai dar sentido à minha vida, mas sei o que não dá.
publicidade. O Gerente, sentado à sua mesa, Riba diante dele.
Tou fazendo uma opção. Acho que vou ficar muito mais
GERENTE
satisfeito comigo mesmo depois disso. Ainda que me ar-
rebente.
Vamos, Riba, abra o jogo comigo. Você vai pra outra
No primeiro plano a passeata continua se organizando, en-
agência, recebeu alguma proposta vantajosa. Se é isso, posso
quanto se ouve a voz do cantor e se acende a casa de Tânia. A
falar com o big boss pra melhorar sua situação. Se bem que ação, daí em diante, transcorre nos trêsplanos ao mesmo tempo.
não s ja fácil, você tá ganhando muito acima do padrão. Miiller e Glória em cena.

RIBA GLÓRIA
Já disse, não vou pra agência nenhuma, não recebi ne- Ela está arrumando as malas.
nhuma proposta, nem quero melhorar minha situação. Só
MÜLLER
quero a minha demissão. Pra quê?

GERENTE GLÓRIA
Não me diga que vai abandonar a profissão. Pra ~ir embora. Já te disse,Frederico, ela vai embora. Não
deixe. E uma loucura. .
RIBA
MÜLLER
E por que alguém não pode abandonar a profissão? Que Uma loucura que está se alastrando pelo mundo todo.
há de espantoso nisso? De Paris a Praga, de Nanterre a Berkeley, de Varsóvia a

168 169
,

Tóquio. Não sei o que há com esses Jovens. Pensam que vão MÜLLER
mudar o mundo. Is o é 6 pra me agredir?
Na agência de publicidade, o Gerente conclui seu diálogo
com Riba. TÂNIA
Ah, desculpe, não é informação que você dá, é dinheiro.
GERENTE
GLÓRIA
Continuo não entendendo.
Tânia!
RIBA
TÂNIA
Você não vai entender nunca. Não lum problema de ló- Vai negar?
O"

gica formal nem de bom senso. É um problema de consciên-


cia. Tchau. MÜLLER
Essa é uma contribuição que todos os empresários dão.
GERENTE
Tchau, Riba. Boa sorte. TÂNIA
Riba desce e se une aos manifestantes na passeata. Todos?

CORO MÜLLER
Os que têm consciência da necessidade de combater a
subversão.
(Canta.)
Vem, vamos embora . N~ primeiro plano, com intervenção da Polícia, a passeata é
que esperar não é saber, dzssolvzda pela violência. Os manifestantes fogem.
quem sabe faz a hora
TÂNIA
não espera acontecer.
Então é verdade. E é você quem arrecada esse dinheiro.

Na casa de Tânia, ela entra com uma grande bolsa de couro MÜLLER
às costas, alguns livros debaixo do braço. Quem te disse isso?

MÜLLER TÂNIA
Que palhaçada é essa, Tânia? Pra onde a senhora vai? (Sorri.} Também temos o nosso serviço de informações.
Um belo trabalho, Sr. Müller, um belo trabalho em defesa
TÂNIA dos ideais cristãos pra varrer da terra o comunismo ateu. Pois
Pra que quer saber? Pra informar o SNI ou os seus ami- você sabe o que estão fazendo com o seu dinheiro? Estão
gos da Operação Bandeirantes? . montando salas de tortura.

170
171
..
'
;

MÜLLER
Invenção de comunistas.

TÂNIA
Antes fosse. E antes você não tivesse consciência do que
está fazendo, para que está contribuindo. (Inicia a saída.)

GLÓRIA
Tânia! Me prometa ao menos que não vai continuar par-
ticipando dessas passeatas, dessas arruaças estudantis. CENA XXVI
TÂNIA
(Sorri.) Passeatas ... Acabou-se o tempo das passeatas,
mãe. Fecharam as praças, fecharam as ruas, fecharam os pal-
cos, todos os espaços. Também não existem mais estudantes,
lho S;:a do .aparelho. Ouve-se o ruído de um helicóptero. O lí--
nem professores, nem artistas. Foi tudo abolido por um deus es. a na Janela e procura visualizar o aparelho.
chamado Segurança Nacional. Não sei se é o mesmo que es-
tava com vocês na Marcha da Família. (Sai.) CARLÃO
Müller e Glória olham um para o outro, perplexos, sem Que é isso? ..
ação. Ouve-se o coro, vindo de longe.
VELHO
CORO
É um helicóptero. Tá sobrevoando a área.

(Fora.) CARLÃO
Vem, vamos embora Exército ou Polícia?
que esperar não é saber,
quem sabe faz a hora VELHO
não espera acontecer. Não dá pra ver...

CARLÃO
(Toma o binóculo.) É do Exército! Eles estão vindo.
Eles escutam, tensos. O ruído aumenta.

VELHO
Parece mais de um.
Sirene de ca17'Oda Polícia.
172

173
<.,f.~~~'
,.;': ~
~
'.

RIBA
CARLÃO
N ,iss não pode ser assim, tem que haver uma deci-
Vem também um carro cheio de policiais subindo a la-
são... O Velh que tem de ordenar. Ele é que deve decidir.
deira! A casa tá toda cercada!
CARLÃO
VELHO
Mas a televisão anunciou que os presos iam seguir hoje Você não tem é coragem. Veado!
Riba dá um mUITOem Carlão. Os dois se atracam. Entra o
pra Argélia!
Velho.
CARLÃO
Golpe pra ganhar tempo. Não vão libertar ninguém! VELHO
(Sobe as escadas correndo-) Querem é nos pegar! Parem com isso! Estão loucos?!
Riba e Carlão se separam.
VELHO
CARLÃO
Calma, Calma!
Acendem-se as luzes do quarto. Riba e o Embaixador, tam- Ess; cara ... Eu sabia! Nunca confiei nele! Agora tive a
bém tensos. escutam o helicóptero. Carlão entra, correndo, prova! E um traidor! Ou quem sabe um policial infiltrado!

CARLÃO VELHO
Começou a operação-resgate! Prepare-se, você vai ter Espera ... vamos com calma. Não se pode acusar um
que matar o gringo. companheiro assim, sem provas.

RIBA CARLÃO
Calma ... espera ... que é que tá havendo? Eu tive a prova. Ele se recusa a matar o gringo!

CARLÃO VELHO
A tarefa é sua, sem discussão. E faz bem. Ainda não chegou a hora. E quem vai dar
essa ordem sou eu.
RIBA
O ruído do helicóptero vai se afastando lentamente. Até que
Eu sei, mas ... pode não ser! Só tou ouvindo um helicóp-
Tânia grita da sala, diante do aparelho de tevê.
tero ...
TÂNIA
CARLÃO
Ei! Venham ver. .. Estão partindo! Estão transmitindo
Também carros de polícia cercando a casa. Devem atacar
do Galeão!
por terra e por ar, com pára-quedistas, talvez ... os filhos-
O Velho e Cartão descem a escada correndo, voltam à sala.
da-puta! Vamos, tasque o gringo!
Riba pega um rádio de pilha e escuta.
Riba aponta a arma para o Embaixador, que está lívido.
175
174
TÂNIA TÂNIA
Vejam... estão embarcando! Os quarenta! lh ,/I anharnos a parada! Parece incrível, mas ga-
Neste momento o televisor deve estar voltado para a platéia, nh ur s.
e as imagens do embarque dos banidos surgem no videotape da
RIBA
época.
(Caindo em si.) É, você tá salvo, nós é que estamos
LOCUTOR fodidos.
Neste momento, no Aeroporto do Galeão, os 40 banidos Apaga-se a luz do quarto. A cena segue apenas na sala.
embarcam no "Hércules" da FAB, rumo à Argélia. O gover-
no cumpriu assim a exigência dos seqüestradores, esperan- CARLÃO
do-se agora que o Embaixador seja libertado, tão log~ as Espera, isso aí pode ser uma simulação.
agências internacionais anunciem a chegada dos subversivos
à cidade de Argel. TÂNIA
Todos dão expansão à sua alegria, inclusive o Embaixador, Qualé, cara, não viu eles entrando no avião? (Saindo.)
Riba! Riba!
que se sente aliviado.

RIBA CARLÃO
Seguiram pra Argélia! Nossos companheiros libertados Sei lá ... Pode ser tudo fajutado. Mostraram eles entran-
já seguiram pra Argéli 1 do no avião, não mostraram o avião levantando vôo. E mes-
mo assim ...
.MDAIXADOR
VELHO
1 ,my odl
Mas é claro que nós não vamos libertar o Embaixador
RInA antes da chegada deles a Argel ser confirmada pelas agências
Vencemosl ~ n 1 internacionais.
Esquecendo-se momentaneamente de que são uma se~tinela
e um prisioneiro, Riba larga a arma e abraça o Embazxador, CARLÃO

ambos comovidos. Então vamos esperar antes de soltar foguetes.


Voltam os ruídos do helicóptero e da sirene da Polícia.
RInA
Você tá salvo, cara! Você tá salvo! CARLÃO
Na sala, simultaneamente, Tania, Carlão e o Velho riem, E os filhos-da-puta inda estão aí, nos cercando por todos
eufóricos. os lados. Esperando a gente sair pra dar o bote.

176 177
CARLÃO
VELHO
(Olha 1ara o Velho como filho que se separa drarnatica-
Enquanto tivermos o Embaixador em nosso poder, esta-
mente do p/-d/ rio pai.) Mas eu quero ir com você. Pra onde
mos garantidos, eles não vão nos atacar.
você for.
CARLÃO
VELHO
E depois? Isso seria um erro primário. Não tenha dúvidas, compa-
VELHO nheiro, a Polícia virá atrás de nós. Atrás de mim, principal-
Cada um de nós tem exata consciência do que fez e do mente. E se eles me pegam, sei que me matam. Você terá
muito mais chance de escapar se se separar de mim.
preço que pode pagar.
CARLÃO
CARLÃO
Eu não me importo de correr o risco.
Então é uma burrice libertar o gringo. Vamos levar ele
conosco. VELHO
Mas eu me importo.
VELHO
Não mesmo lutando contra um inimigo sem ética, nós
, CARLÃO
precisamos ter a nossa. (Sente-se rejeitado.} Talvez então a gente não se veja mais.
Queria lhe dizer uma coisa ... (Está em~cionado. Não encon-
CARLÃO
tra as palavras.) Bom, posso lhe dar um abraço?
A ética revolucionária é a que serve à Revolução. E esse
Carlão e o Velho se abraçam. O ruído dos helicópteros au-
gringo filho-da-puta nada rnai é que o imperialismo, cuja
n:enta, juntamente com a sirene da Polícia, até se tornar quase
ética é p na d D nd r u int resses. insuportâuel. Cessa de súbito.
VELHO
(Incisivo, calmo, autoritário.) Companheiro, nosso
objetivo era libertar 40 companh iros nossos. Logo que haja
confirmação da chegada deles a Argel, vamos soltar o Em-
baixador. Nem que isso possa cus ar a vida a alguns de nós.
Vamos sair, todos juntos, e deixá-lo em algum lugar.

CARLÃO
E aí?

VELHO
Aí ... temos de nos separar. Cada um cuide de si.
179.
178
~;t, ~ .).
.:,.",

TÂNIA
"C/ti nin 11muito machucada. E isso é mexer nas feridas.
P rr 1, o qu importa é o que a gente vai fazer daqui pra
frent .

RIBA
Você sabe?

CENA XXVII TÂNIA


Não.

RIBA
Então pelo menos que a gente saiba o que não vai fazer.
Isso já ajuda.
Apartamento de Tânia. 1979. Riba já vestiu as calças e está
fumando. Tânia acaba de vestira vestido. Há uma longa pausa.
TÂNIA

RIBA Você não mudou nada. Sempre se questionando.


Que é que você acha? ... RIBA

TÂNIA Você não se questionou durante todos esses anos?


Suas intenções, os fins a que se propunha, as ações que pra-
Que? ..
ticou?
RIBA
r ~ ;>
Você acha que nós cometemos um erro d e ava iaçao: TÂNIA
Claro. Mas acredito ainda nas mesmas coisas.
TÂNIA
RIBA
Isso não é hora de fazer auto crítica.
Também eu. Ainda acho que a dignidade do homem é
RIBA inseparável das intenções e dos fins a que ele se propõe. Só
Você já f~z? que entre as intenções e os fins quase sempre temos que pas-
sar por uma série de mal-entendidos.
TÂNIA
Não. TÂNIA
Será que isso não é inevitável em todos os processos revo-
RIBA lucionários? Ilusões, mal-entendidos ...
Parece que todo mundo exige que a gente faça.
181
180
RIBA TÂNIA

Naquele tempo, nós nos julgávamos capazes de ações lue não podem ser evitados.
individuais que podiam mudar a face do mundo. E essas
RIBA
ações pareciam ter sentido ... Era como se disséssemos ao
É o qu v cê acha?
povo, olha, vocês não precisam se organizar, nem fazer nada,
porque há aqui um punhado de heróis que vai fazer tudo TÂNIA
por vocês. É.

TÂNIA RIBA

Também acho que as coisas não podem ser julgadas as- Não estou certo disso.
sim, certo-errado, errado-certo. Qualé? Nossa geração teve TÂNIA
outras opções. Não é justo que nos chamem agora pra um Só numa coisa eu te dou razão. Não devemos repetir.
ajuste de contas, de dever e haver, sem levar isso em conside- Não temos esse direito. Porque os tempos são outros. Nós
ração. também mudamos. Eu já passei dos 30 e você deve estar a ca-
minho dos 40. Devemos ter vivido. É o mínimo que se espera
RIBA
de nós. E é importante não esquecer.
O que me pergunto é se nós adiantamos ou atrasamos o
Eles permanecem pensativos, olhando para o teto, enquanto
processo. Isso me fundiu a cuca durante todos esses anos.
as cenas seguintes se desenrolam nos outros planos. Voltam os
Tou me referindo à nossa ação como um todo, à luta armada.
ruídos de helicópteros e sirenas da Polícia.

TÂNIA

Era a única saída.

RIBA

Pela pressa que tínhamos. U r não enxergarmos ou-


tro caminho.

TÂNI

Não sei. E acho que al rn \ ntes, de todas as que


plantamos, vingaram e d r 11 'o I o movimento popular
de resistência, tempos d p i .

I JI
É possível, se levarmo 1111 1111' o, spectos subjetivos.

182 183
VELHO
i, i. ..

ELZA
E eu soube que a ordem é matar. Matar e depois dizer
que tentou resistir. Quando caiu o aparelho de Vila Cosmos,
semana passada, dois companheiros foram metralhados dor-
CENA XXVIII mindo.

VELHO
Cabeça fria, companheira. Não vamos perder a cabeça,
O aumento da repressão é um sinal de fraqueza do regime.
A Ditadura sente que nós estamos crescendo e tá caindo no
Um ponto. O Velho entra, indo ao encontro de Elza. Estão
desespero.
quase no escuro. Ela, nervosa, tensa, assustada.
ELZA
ELZA
Mário! Tava rezando pra você não vir! Crescendo como, Mário, se a cada dia cai um com-
panheiro? Depois do seqüestro do Embaixador, quantos já
VELHO caíram, quantos já foram mortos? Perdemos vários grupos
Por quê? Calma. Tomei todas as precauções. Um com- de ação, E não só nós, o PC do B, o MR-8, a Val-Palrnares,
panheiro st v aqui ant s, ficou meia hora rondando a pra- todos estão perdendo quadros todos os dias. Só estamos cres-
!Sa.Não há tiras, ninguém suspeito. Este é um ponto seguro. cendo nas prisões e nas salas de tortura.

ELZA VELHO
Não há mais pontos seguros, não há mais segurança em Vai haver um novo seqüestro por esses dias para libertar
parte alguma, Mário. companheiros.

VELHO
ELZA
(Impaciente.) As crianças, as crianças?
Um novo seqüestro. E depois mais prisões, mais tortura,
ELZA mais assassinatos. E até quando? E tudo isso leva a quê?
Mandei elas pra Bahia, pra casa de meus pais. E mudei A nada! Ou quem sabe até não estamos fazendo o jogo do
de aparelho duas vezes este mês. Mas sinto ~ue eles e~tã.o fe- inimigo, dando uma justificativa para a escalada da violên-
chando o cerco. Caíram vários companheiros nos últimos cia? Será que não estamos fazendo justamente o que eles
dias, você deve saber. querem?

185
184

.100
~.
..
VELHO VELHO
Que é que há? Essa tese é do Partido. AIIl mh . I r isso vim aqui, correndo esse risco, porque
qu ri I I J I dir de você. Os companheiros foram contra,
ELZA
ma' u vim. (Sorri.} Sempre fui um indisciplinado incor-
Mário, está sendo criada a indústria da repressão. Uma rigível.
grande máquina, com verbas secretas, pessoal especializado Eles se abraçam. As luzes continuam acesas.
e tudo o mais. Essa indústria está enriquecendo muita gente.
Mais violência, mais verbas.

VELHO
Isso é uma conseqüência do regime, não de nossa luta.

ELZA
Um governo de força só se mantém quando consegue
justificar o uso da força. E minha dúvida é se nós não esta-
mos ajudando ...

VELHO
Quando vencermos, essa máquina será desmontada.
Claro, a luta não vai se decidir nas cidades. Esta é apenas
uma luta tática. Por isso stou seguindo para o Nordeste.
Talvez você fi u um cmpo sem notícias minhas.

ELZA
Você vai pra onde?

VELHO
Pro campo. Todo o preparo logístico foi feito. Temos di-
nheiro, temos armas e temos homens treinados. Vamos esta-
belecer um eixo guerrilheiro, que marchará pelo interior do
país, em operações móveis, promovendo a rebelião social no
campo. Lá é que vamos derrubar a Ditadura.

ELZA
Quando você viaja?

186
187
.
l-·
..
•·
.

INQUIRIDOR
A. /li 1 dá gosto trabalhar.
Médi começa a escrever o atestado de óbito. As luzes
continuam acc as.
No outro espaço cênico, o Velho e Elza se separam.

ELZA
CENA XXIX Mário, eu quero ir com você.

VELHO
Depois. Depois você vai. Quando o eixo guerrilheiro es-
tiver bem-estruturado, quando as massas camponesas come-
çarem a aderir, aí vamos ter ainda muita luta pela frente e eu
Sala de torturas. Carlão nu, morto, sobre uma mesa. O Mé-
vou precisar muito de você. Só quero que até lá você cuide de
dico toma-lhe o pulso, examina as pupilas, sob as vistas do
si e dos meninos. Se você soubesse que saudade eu tenho de-
Inquiridor e do Torturador.
les...
MÉDICO Ouve-se o ruído de um carro que freia violentamente, ran-
Por que não me chamaram antes? Isso não está certo. gendo os pneus. Um foco de luz cai sobre eles. Elza se assusta e
Vocês não estão seguindo as normas. Eu não posso aceitar grita.
isso.
ELZA
INQUIRIDOR Mário!
Faça alguma coisa. O Velho se volta e tenta sacar do revólver, ouve-se o pipocar
de uma metralhadora e ele cai crivado de balas. Elza se atira so-
MÉDICO
bre ele.
O quê? Sou médico, não sou milagreiro.
ELZA
INQUIRIDOR Mário!
(Culpando o Torturador) Foi essa besta. Empregam gente As luzes continuam acesas.
incompetente, sem preparo técnico, sem o menor conheci- Na casa de Tânia, Müller e Glória assistem televisão. No ot-
mento do ofício, dá nisso. deo, a imagem do Embaixador.

MÉDICO EMBAIXADOR
Merda. Agora que é que eu ponho no atestado de O que posso dizer é que eram rapazes determinados e
óbito? inteligentes, embora fanatizados por um ideal. Não, não

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eram gangsteres, Mas para alcançar esse ideal aparentemen- RIBA
te nobre estavam dispostos a assaltar e a matar. Falavam de (.'11111) N.I uele tempo, pelo menos nós éramos cam-
uma sociedade justa e feliz, mas pretendiam construí-Ia pe- P' ('~ Ic 11\1111 I ...
la força das armas. Caso tivessem vencido, teriam feito do A lusos 1I () se apagando lentamente, em resistência, en-
Brasil uma nação com a qual dificilmente poderíamos conti- quanto se ouue hino "Prafrente, Brasil". A princípio falado,
nuar mantendo boas relações e bons negócios. cadenciado.
A imagem do Embaixador continua no vídeo, falando sem
CORO
som. Tânia levanta-se de súbito e começa a arrumar-se rapi-
damente. (Falado.)
Noventa milhões em ação
TÂNIA
pra frente, Brasil,
Puta merda! Ia esquecendo ... do meu coração.
Todos juntos vamos
RIBA
pra frente, Brasil,
Aonde você vai? salve a Seleção!

TÂNIA
De repente é aquela
Tenho uma reunião daqui a meia hora. Você quer ir? Ia
corrente pra frente
ser bacana, os companheiros iam gostar de você.
parece que todo o Brasil
Riba levanta-se. deu a mão ...
todos unidos na mesma emoção
RIBA
é tudo um só coração. "
Hoje, não. Na próxima ... quem sabe?
Aos poucos as vozes da declamação vão sendo abafadas por
TÂNIA outras vozes cantando a mesma letra.
Tá legal. (Continua arrurnando-se.)
Há uma pausa.

RIBA
Sabe, naquele tempo ...

TÂNIA
Que foi que você disse?

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