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Identidade Negra

Primeiramente, eu gostaria de agradecer à comissão organizadora do evento


pelo convite em participar e, especialmente, para falar deste tema, que é a
identidade negra. O tema é importantíssimo para todos aqueles que vivem, em
sua própria corporeidade, os efeitos de uma sociedade racista, que, entretanto,
não se considera racista. Em uma pesquisa, publicada em um artigo intitulado
“As novas formas de expressão do preconceito e do racismo”, 90% das pessoas
entrevistadas disseram ser não-racistas. Para toda ação racista, há uma
justificativa pretensamente não-racista. Ora, o racismo e o preconceito do Brasil
contemporâneo são, predominantemente, sutis e velados. Mas, de qualquer
forma, vivemos dentro de uma sociedade estruturalmente racista. – E, sendo
assim, também é importante para todos aqueles que pretendem lutar, na esfera
política e legal, contra esta estrutura social segregatória e vexatória e a favor de
uma sociedade mais solidária e igualitária. Nesta luta, eu acredito que as
pesquisas acadêmicas, o conhecimento, têm um papel importante. Mas, eu
acredito que não é qualquer tipo de conhecimento que é, aqui, útil – e, o que é
mais importante, libertador. Depois, podemos conversar melhor sobre que tipo
de ciência ou de conhecimento seria mais interessante para nós. Mesmo assim,
tentarei colocar, em minha exposição, algo desta perspectiva. Com isso, eu
quero dizer que, diferentemente de muito do que já foi produzido na
psicologia, eu não acho adequado enfatizar, na temática da identidade,
qualquer preocupação com a adequação do negro à sociedade. Trata-se, muito mais,
de problematizar o funcionamento da sociedade e os seus efeitos sobre a posição social
e existencial do negro, que somente existe, como tal, nesta contextura. Do ponto
de vista psicológico, acredito que se trata de olhar, dentre outras coisas, para
como estes efeitos se encarnam e tornam-se concretos na vida pessoal do negro,
em especial para a sua maneira de posicionar-se perante os outros e perante si-
mesmo, ou seja, de autoposicionar-se. Ainda entendendo que esta é uma
perspectiva importante, eu gostaria apenas de dizer que eu me coloco, aqui, não
na posição de quem possui um saber, que eu exporia a vocês. Antes, muito
antes, eu gostaria de colocar-me como um dialogante.

Eu acredito que o livro clássico de psicologia do negro no Brasil, Tornar-se negro,


de Neusa Santos Souza, seja capaz de comunicar de maneira exemplar que o
problema social do racismo no Brasil se manifesta, também, como um problema
enraizado na identidade do próprio negro e, a partir daí, em sua maneira de
criar vínculos com os outros. No prefácio do livro, Jurandir Freire Costa resume
esta tese de Neusa Santos Souza de maneira que me pareceu bastante
interessante para ilustrar esta questão. Ele escreve:

“Ser negro [no Brasil – acrescento] é ser violentado de forma


constante, contínua e cruel, sem pausa ou repousa, por uma
dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do
sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do
corpo negro. [...] A violência racista do branco exerce-se, antes
de mais nada, pela impiedosa tendência a destruir a identidade
do sujeito negro. Este, através da internalização compulsória e
brutal de um Ideal de Ego branco, é obrigado a formular para si
um projeto identificatório incompatível com as suas
propriedades biológicas do seu corpo. Entre o Ego e seu Ideal
cria-se, então, um fosso que o sujeito negro tenta transpor, às
custas de sua possibilidade de felicidade, quando não de seu
equilíbrio psíquico” 1.

1. A identidade negra: raça e identidade

Antes de falar propriamente da identidade negra, eu gostaria de começar por


algumas outras palavras que demarcam este território. Os conceitos de “raça”,
“cor da pele” e “etnia” possuem uma intrincada e interessante história. A reste
respeito, eu recomendo a leitura do texto “Raça, cor, cor da pele e etnia”, de
Antônio Sérgio Alfredo Guimarães.

De um ponto de vista social e histórico, é importante sublinhar que o conceito


de “raça” surge de um discurso naturalista, que pretendia explicar as diferenças
culturais entre os povos através de fatores exclusivamente biológicos. A raça
negra é descrita como intelectualmente e moralmente inferior à raça caucasiana,
europeia, e é associada a características como a força bruta e o apetite sexual.
Esta imagem do negro – mais ou menos comum ao negro brasileiro e ao negro
estadunidense, no início do século XX (por exemplo, o negro retratado no filme
estadunidense “O nascimento de uma nação”, algo que vocês podem ver ao
conferir o documentário, disponível na Netflix, “A 13ª Emenda”) – logo foi
colada à imagem da animalidade e do criminoso. Ademais, fatores sociais e
econômicos empurravam e mantinham as pessoas negras nas periferias dos
grandes centros urbanos, nas recém-criadas “favelas” ou mesmo nos ainda
existentes quilombos. O negro foi logo visto como um problema social (e
sanitário) para o avanço social e econômico do Brasil.

O conceito de “cor” possuiu um uso importante, por exemplo, para os censos


demográficos realizados pelo IBGE no território nacional. A partir de 1991,
entretanto, o IBGE passou a adotar a categoria “raça/cor”. Em todo caso, vale
dizer que, no uso cotidiano e comum do termo “cor”, está-se referindo a algo
mais do que a “cor da pele”: inclui-se a textura do cabelo, o formato do nariz e
dos lábios, os traços e símbolos culturais. O “preto” ou “negro” é aquele cujo
conjunto de referências remonta a traços africanos, tanto do ponto de vista
fenotípico quanto do ponto de vista cultural e simbólico. E, então, os conceitos
de “cor”, de “raça” e de “etnia” passam a ser, basicamente, equivalentes, sendo
usados como marcadores de diferenças e fronteiras entre grupos, de maneira
reducionista e naturalizadora.

Ao mesmo tempo, entretanto, na década de 1970, o Movimento Negro


Unificado passou a reivindicar outro uso para o conceito de “raça”, um uso
libertador, que parte do colonizado, diferente do uso imperalista, que parte do
1 COSTA, Jurandir Freire. Prefácio. In: SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes
da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, pp. 2-
3.
colonialista. Este movimento defendia o uso político do conceito de raça, como
uma estratégia política com fins de inclusão e de reivindicação política, isto é,
de combate à exclusão e ao assujeitamento. Apontou que o conceito de raça não
designa nada na realidade objetiva ou física, como os traços fenotípicos do
negro, mas teria uma realidade social efetiva, capaz de ser enxergada nas
formas de desigualdade e de oportunidade a que estavam sujeitos os negros no
Brasil moderno. Sendo assim, este conceito sócio-político de raça remete a uma
história de opressão, de desumanização e de opróbrio. Para o MNU, entretanto,
a mestiçagem e o hibridismo foram vistos como enfraquecendo a identidade
étnica do grupo (a origem, os marcadores culturais etc.) ante os marcadores
físicos.

É este conceito sócio-político de raça que guiará a minha exposição sobre


o conceito de identidade racial negra.

2. Racismo e lugar estrutural do negro

É estruturante de nossa sociedade uma forma específica de racismo, que


determina o lugar social do negro e as suas possibilidades de participação social
e econômica nesta sociedade, e que possui dois eixos de consideração: (1) o
discurso de embranquecimento (ou branqueamento) e (2) o discurso mitológico
da “democracia racial”. Estes dois discursos surgem com o crescimento
econômico do Brasil e sua industrialização nas décadas de 1940 a 1970, onde,
além de outras coisas, acontecem migrações massivas de grupos de nortistas e
nordestinos (dos quais cerca de 75% eram negros) para o sul e o sudeste do
Brasil2. Com isso, a homogeneização cultural e racial foi acelerada e criou-se um
certo “hibridismo geográfico”. Isso tudo favorece o surgimento daqueles dois
discursos. Pois bem, a democracia racial surge como um discurso de
reconhecimento da importância cultural de todos os povos para a formação da
nação e como a afirmação da igualdade de oportunidades de participação social
e econômica para estes povos. Entretanto, enquanto um efeito discursivo e uma
imagem mítica, ideológica, mascara uma série de fatores sociais reais e
concretos, porquanto estruturas e sistêmicos, que criam a desigualdade nas
oportunidades de participação social e econômica e de desenvolvimento
humano (por exemplo, no acesso a serviços de saúde, de informação, da escola
etc.). Some-se a isto o discurso do embranquecimento, que afeta diretamente a
imagem que o negro tem de si mesmo e a maneira como ele interpreta a si
mesmo e a cultura, assim podendo acarretar uma vivência de desacordo desta
pessoa com si-mesma, nos diversos aspectos que compõem a sua vida pessoal e
psíquica, e uma perspectiva de inferioridade para com o outro no processo de
desenvolvimento pessoal. Ou seja, o ideal de ser, transmitido pela cultura,
passa a ser introjetado e o negro passa a se situar e a se posicionar em sua
relação com os outros e com si-mesmo a partir deste ideal, que diz,
basicamente, que ele é inferior e que o outro branco é superior. As saídas para
esta vivência podem ser desde a constante repetição do discurso, vindo do
outro e de si mesmo, de que se é inferior ou até mesmo no esforço por negar

2 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Raça, cor, cor da pele e etnia, Cadernos de Campo, n. 20, v. 20,
2011.
tudo aquilo que, em si, diz respeito à negritude e a construção de uma
autoimagem e de uma expressão pessoal que sejam condizentes com o ideal de
ser branco. Em uma palavra, o negro que introjeta este ideal deseja o lugar do
branco e tudo aquilo que este lugar representa.

Essas passagens evidenciam uma das facetas daquilo que fez com que
Ruth Frankenberg – uma das precursoras dos estudos sobre
branquitude – definisse a branquitude como um lugar estrutural de
onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo. Uma posição de
poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo
que não se atribui a si mesmo: a raça (Frankenberg, 1999).
Ideologicamente, o negro é visto como racializado, o branco não. 3

Os efeitos desta posição de poder que ocupa o negro são determinantes


para a formação e a expressão de sua identidade. Sendo assim, eu gostaria de
definir a identidade racial negra brasileria como este lugar que é um efeito das
relações de poder. Isso coloca, sempre repetidamente, cada sujeito negro
concreto em um lugar no olhar do outro (a negra que é automaticamente
considerada empregada ou babá no olhar do branco, por exemplo), fruto de
estereótipos socialmente construídos. Por isto, a identidade do negro é
estigmatizada.

3. Identidade pessoal e identidade étnico-racial

Psicologicamente, a identidade pessoal tem de ver com a minha atitude perante


características que são minhas próprias (isto é, a minha corporeidade, que inclui
a imagem corporal) e com o conjunto de valores e significados que norteiam as
minhas relações com as outras pessoas, estando ela baseada em significados
emocionais característicos. Existe um aspecto normativo e de origem social na
identidade pessoal, e que diz respeito àquilo que citei atrás como sendo o “Ideal
de Eu”, nas palavras de Jurandi Freire Costa e Neusa Santos Souza. O outro (o
reconhecimento do outro) é, portanto, constitutivo da maneira como se constitui
a minha identidade pessoal.

E é importante tematizar, aqui, a situação na qual se encontram os negros


devido à associação sistêmica de fatores de vulnerabilização. O sofrimento do
negro e o impasse que vive no aproveitamento das oportunidades sociais é o
resultado da associação de fatores ligados a ambientes socialmente
desfavorecidos que produzem padrões de vulnerabilização. Ora, um número
importante de negros vive em condições socioeconômicas precárias e habita nas
periferias e, vivendo nas periferias, está mais sujeito à violência do tráfico e à
violência policial. O negro brasileiro está sujeito a uma série de estressores,
ligados à discriminação, ao preconceito e à segregação, e que podem se somar,
ainda mais, caso outros diferenciadores sociais determinem a trajetória social
daquela pessoa, como o gênero e a orientação sexual. Além disso, a iniquidade
3 SCHUCMAN, L. V.; COSTA, E. S.; CARDOSO, L. Quando a identidade racial do pesquisador deve ser
considerada: paridade e assimetria racial, Revista da ABPNI, V. 4, N. 8, jul.-out. 2012, P. 19
no acesso a instituições de cuidado físico e psíquico e de educação contribui,
também, para que fatores de proteção não se desenvolvam como se
desenvolvem em outros grupos não-minoritários. Aqui, falamos de um
escalonamento de vulnerabilidades, que é chamado, nas ciências sociais, de
interseccionalidade.

Sabe-se que o desenvolvimento emocional saudável depende de um um


ambiente facilitador, ou “suficientemente bom”, para usar a expressão famosa
do psicanalista inglês Donald Woods Winnicott. Em outros termos, o
desenvolvimento emocional depende do tipo de reconhecimento com o qual
nos deparamos ao longo de nossa vida, assim frustrando ou validando o nosso
desejo de sermos reconhecidos e amados pelo outro. Não é demais dizer que o
suporte materno e familiar, além da identidade racial, é importante para a
maneira como a criança e o adolescente perceberão o estresse e enfrentarão,
emocionalmente, os efeitos de uma sociedade estruturada por relações
racializadas4. A depender, a depressão e a ansiedade, além de outros sintomas
relacionados à identidade, poderão ser consequências deste desenvolvimento
conflituoso.

A importância da escola.

Um dos importantes aspectos da identidade é o pertencimento a grupos. Este


pertencimento envolve, no caso da população negra, toda uma camada negativa
de efeitos relacionados ao racismo e ao vínculo com outros grupos e com a
“sociedade” (sentimento de “estranheza” ou de desprendimento social,
sintomas depressivos, fracasso acadêmico e profissional, abuso de substâncias,
isolamento etc.); e envolve, também, afetos positivos, como o apego e os afetos
positivos com pessoas do mesmo grupo (pertencimento, envolvimento,
orgulho), algo que também é importante de ser considerado. Algumas teorias
enfatizam a importância da consideração positiva intragrupal para um
sentimento positivo de si-mesmo5: sentir-se bem, feliz e orgulhoso. A
consideração positiva intergrupal – portanto, pública – é, também, de grande
importância para o funcionamento psicológico6 e é ela quem determina, mais
fundamentalemente, o que chamamos de reconhecimento, aspecto básico do
exercício da cidadania.
Normalmente, na literatura, distingue-se (a) identidade étnica (relacionada aos
sentimentos individuais de orgulho, envolvimento e pertencimento a um
contexto cultural e a um grupo) de (b) identidade racial (identidades
desenvolvidas em resposta à opressão e a estratificação social baseadas na

4 CALDWELL, C. H.; ZIMMERMAN, M. A.; BERNAT, D. H.; SELLERS, R. M.; COTARO, P. C. Racial Identity,
Maternal Support, and Psychological Distress among African American Adolescents, Child Development,
v. 73, n. 4, 1322-1336, July/August 2002.
5 RIVAS-DRAKE, D.; UMAÑA-TAYLOR, A.; FRENCH, S.; LEE, R.; SYED, M.; MARKSTROM, C.; SCHWARTZ, S. J.
Feeling Good, Happy, and Proud: A Meta-Analysis of Positive Ethnic-Racial Affect and Adjustment, Child
Development, v. 85, v. 1, pp. 77-102, jan./feb. 2014.
6 SELLERS, R. M.; COPELAND-LINDER, N.; MARTIN, P.P.; L’HEUREUX LEWIS, R. Racial Identity Matters: the
relationship between racial discrimination and psychological functioning in African American
adolescents, Journal of Research on Adolescence, 16(2), 187-216, 2006.
racialização)7. Apesar desta distinção conceitual, nas vivências concretas das
pessoas é bastante difícil de efetuar uma separação correspondente, visto que os
dois fatores se sobrepõem. Sendo assim, prefiro falar de uma identidade étnico-
racial (ou, mais adequadamente, identidade afrobrasileira).

4. Identidade negra e cidadania: o reconhecimento

Acredito ser importante também falar da diferença entre uma identidade


conhecida e de uma identidade reconhecida. Seguindo as reflexões do sociólogo
Roberto Cardoso de Oliveira8, que trabalha com a perspectiva da eticidade, a
identidade étnica conhecida diz respeito a uma identidade privada. É
importante pontuar que o “privado”, aqui, tem paralelo com as dimensões
sociais da propriedade e dos costumes. Mais ainda, que o privado abre a
possibilidade do singular. Por outro lado, a identidade reconhecida depende de
um ato expressivo e, por isto, é pública. Como tal, envolve uma teia de
significados e valores que caracteriza uma cultura e os horizontes de contato
interétnico e intercultural, onde pode haver comunicação e conflito,
especialmente em sociedades multiculturais como a nossa. A cultura e
tradicional mais ampla é, aqui, um operador endógeno e exógeno que faz
mediação das identidades na esfera pública, onde acontecem as “fricções
interétnicas”, assim validando ou invalidando uma identidade étnica. Todo
reconhecimento se baseia em um desejo de reconhecimento e de exercício da
cidadania. E se expressa, segundo o filósofo alemão Axel Honneth, em três
formas de relação intersubjetiva: no amor, no direito e na solidaridade (ou
respeito). O reconhecimento, neste caso, é um ato recíproco e intencional.

Por outro lado, na invalidação, pode ocorrer, para o indivíduo negro, a


interiorização do outro dominante e, assim, a vivência de uma identidade
alienada. E isso pode culminar, ademais, na perda de cidadania. Aqui, os
sentimentos vividos pela pessoa são negativos e correspondentes às três formas
de relação intersubjetiva que citei há pouco. São: o ódio, a injustiça e o
desprezo. E estes sentimentos são interpretados como ferimentos morais. Além
disso, são efeitos tanto de situações em que há uma coerção sem a intenção de
ferir (algo que dizemos não ser intencional) quanto de situações de ofensa
moral e de agressão intencional. Há estudos que descrevem os efeitos desta
invalidação, produto do racismo instituído e estrutural, como “estresse racial,
abuso emocional e trauma psicológico”9.

Exemplo: as religiões de matriz africana são reconhecidas em nossa sociedade,


tanto politicamente quanto legalmente. Entretanto, quando dezenas de casas de
7 RIVAS-DRAKE, D.; UMAÑA-TAYLOR, A.; FRENCH, S.; LEE, R.; SYED, M.; MARKSTROM, C.; SCHWARTZ, S. J.
Feeling Good, Happy, and Proud: A Meta-Analysis of Positive Ethnic-Racial Affect and Adjustment, Child
Development, v. 85, v. 1, pp. 77-102, jan./feb. 2014.
8 CARDOSO DE OLIVEIRA, R. Identidade étnica, reconhecimento e mundo moral, Revista
ANTHROPOLÓGICAS, V. 16, N. 2, 2005.
9 FRANKLIN, A. J.; BOYD-FRANKLIN, N.; KELLY, S. Racism and Invisibility: Race-Related Stress, Emotional
Abuse and Psychological Trauma for People of Color, Journal of Emotional Abuse, 6:2-3, 9-30, 2006.
culto são vilipendiadas e outras tantas vivem em constante ameaça (com
ameaças de morte, inclusive), como vemos atualmente no cenário carioca, então
vive-se, justamente, esta perda de cidadania, ou perda deste lugar de
participação social e intersubjetiva, baseado no reconhecimento. Em todas as
ações discriminatórias, em todo rechaço, em toda violência física contra uma
pessoa, em toda restrição e/ou marginalização da liberdade de expressão, de
práticas e ideais que constituem a identidade de alguém, assiste-se a uma
violação básica da cidadania e, dado que isto é internacionalmente reconhecido,
também dos direitos humanos. Nestes casos, ademais, todo sentimento
negativo, doloroso, é vivido e interpretado como destrutivo e, por isto, gera
sofrimento. Falamos, então, de um sofrimento ético-político atrelado ao
impedimento e à frustração do desejo de reconhecimento e do exercício da
cidadania.

É por isto que as demandas de reconhecimento são bastante específicas e devem


sê-lo. Porque o respeito aos direitos civis é insuficiente para o exercício da
cidadania. Conforme Luís Roberto Cardoso de Oliveira, “a falta de
reconhecimento é percebida como um ato de desconsideração por meio do qual a
identidade do grupo seria negada ou rejeitada, caracterizando uma atribuição
de indignidade que não permitiria sua aceitação plena”10.

Eu acredito que o professor Jefferson Olivatto irá falar melhor sobre isso à noite,
em sua fala sobre A saúde do negro, mas acredito que é importante fazer a
conexão aqui e, talvez, já adiantar alguma coisa: a identidade racial (ou étnica) é
considerada, em vários estudos psicológicos, como um mediador e moderador
do estresse e dos efeitos sofridos em decorrência do racismo 11 e, sendo um
pouco redundante, mas para ser enfático, das relações racialmente estruturadas
de nossa sociedade. Isso porque a identidade favorece, como vimos, uma
consistência interna, emocional. Sendo assim, a identidade racial pode ser
considerada como um fator positivo no enfrentamento do racismo e na
promoção do bem-estar e qualidade de vida de pessoas negras.

A questão fundamental, acredito, encontra-se no fato de que, para o sujeito


negro, o importante é deixar de ocupar o lugar que foi a ele destinado pelo
outro (na terminologia psicanalítica, dir-se-ia, pelo grande Outro) no tecido
social (como inferior, como incapaz, ou, ainda, como não podendo realizar
determinadas atividades ou expressar determinados valores e símbolos na
esfera pública) e, para além desta negativa, ocupar um lugar que lhe é próprio e
que é positivo, donde podem resultar sentimentos de orgulho, felicidade, bem-
estar, amor, solidariedade, respeito e reconhecimento legal. Sendo assim, a
construção da identidade negra tem profundos impactos psicológicos sobre o
indivíduo e possui uma importante implicação no exercício da cidadania, isto é,
no reconhecimento social e jurídico da própria identidade afrobrasileira, com

10 CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Racismo, direitos e cidadania, Estudos Avançados, 18(50), 2004, P. 86.
11 SEATON;, E. K.; UPTON, R.; GILBERT, A.; VOLPE, V. A moderated mediation model: racial
discrimination, coping strategies, and racial identity among black adolescents, Child Development, v.85,
n. 3, 882-890, May/June 2014.
toda a sua riqueza estética e simbólica. O direito moral de ser reconhecido em
um lugar social legítimo e com características totalmente próprias – isto é, que
não passam pelo ideal de brancura – é um dos objetivos da luta anti-racista.
Mas, como nos lembra Luís Roberto Cardoso de Oliveira, para que este lugar
exista de fato, é necessário que o reconhecimento que parte dos outros seja não
apenas fruto de uma obrigação jurídica, de uma coerção, mas seja, justamente,
um ato intencional e autêntico. Para tanto, uma mudança estrutural da
sociedade – que implicaria na mudança do sentimento intersubjetivo e
introjetado de reconhecimento e que faria de todo ato de reconhecimento algo
recíproco – é indispensável.

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