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T.S. ELIOT

O Ateneu Rumor da Língua


DE POESIA E POETAS
Retórica e paixão Roland Banhes
Ley la Perrone Moyses (org.)
Sade, Fourier e Loyola
Capítulos de Literatura Colonial Roland Barth es Tradução e Prólogo:
Sergio Buarque de Holanda Ivan Junqueira
Os Sertões
Conversas com Vargas LI osa Edição crítica
Ricardo A. Setti Walnice N. Galvão

Discurso sobre a Poesia


Coleção Primeiros Passos
Dramática
Denis Diderot
O que é Língua
Fernando Pessoa Antônio Houaiss
Um detetive-leitor e muitas
pistas O que é Literatura
Salete de Almeida Cara Marisa La^olo

A História e o Conceito na O que e Poesia


Literatura Medieval Fernando Paixão
Katharina Holzermayr-
Rosenfield O que é Comunicação Poética
Décio Pignatari
Introdução à Literatura Negra
Zilá Bernd

Literatura como Missáo


Tensões sociais e criação cultural
na Primeira República
Nicolau Sevcenko

Obras Escolhidas
Vols. /, II e III
Walter Benjamin

editora brasiliense
Copyright © by Faber and Faber Limited, 1988
Título original: On Poetry and Poets
Copyright © da tradução: Editora Brasiliense S.A.
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,
reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia do editor.

ISBN: 85-11-22032-1
Primeira edição, 1991

Indicação editorial: Paulo Cesar Souza


Preparação de originais: Cássio Arantes Leite
Revisão: Ana Célia de M. Goda. Irati Antonio e
Ana Maria M. Barbosa
índice Onomástico: Claudia Beck Abehng
Capa: Ettore Bottini

IP
Rua da Consolação, 2697
01416 São Paulo SP
Fone (OU) 881-3066 - Fax 881-9980
Telex: (11) 33271 DB LM BR

IMPRESSO NO BRASIL
Para Va/erte
SUMÁRIO

Prefácio 9
Prólogo 11

I
DE POESIA

A função social da poesia (1945) 25


A música da poesia (1942) 38
O que é poesia menor? (1944) 56
O que é um clássico? (1944) 76
Poesia e drama (1951) 100
As três vozes da poesia (1953) 122
As fronteiras da crítica (1956) 140

II
DE POETAS

Virgílio e o mundo cristão (1951) 163


Sir John Davies (1926) 178
Milton I (1936) 187
Milton II (1947) 197
Johnson como crítico e poeta (1944) 216
Byron (1937) 257
Goethe, o sábio (1955) 277
Rudyard Kipling (1941) 303
Yeats (1940) 335
índice onomástico 351
I

PREFÁCIO

Com u m a única exceção, 1 todos os ensaios incluídos neste


livro são posteriores aos q u e integram meus Selected essays (En-
saios escolhidos).2 A maioria deles foi escrita nos últimos dezes-
seis anos. Meus Ensaios escolhidos eram u m a miscelânea; este
livro, como o título indica, restringe-se aos ensaios relativos a
poetas ou à poesia.
A presente coletânea difere de meus Ensaios escolhidos
em outro aspecto. Somente um ensaio nesse volume — o estudo
sobre Charles Whibley — foi escrito para ser lido diante de
u m a platéia; todos os demais foram escritos para publicação
em periódicos. Dos dezesseis ensaios que constituem o presente
volume, dez foram originalmente escritos para serem lidos junto
ao público; um décimo primeiro, o que escrevi sobre Virgílio,
era u m a palestra radiofónica. Ao publicar agora tais conferên-
cias, não tentei transformá-las naquilo em q u e poderiam ter
sido se destinadas originalmente aos olhos, e não aos ouvidos;
nem me ocupei de fazer alterações, a não ser omitir os comentá-
rios preliminares a "Poesia e d r a m a " , além de algumas daque-

1 O ensaio sobrr Sir J o h n Davies, q u e apareceu em The Times Literary Supple


ment em 1926, foi resgatado do esquecimento e recomendado para ser aqui incluído
pelo Sr. J o h n Hayward. (N A.)
I
2. Selected essjys 1917 1932. Fáber and Fáber. Londres, 1932; e Harcourt, Brate
and C o m p a n y , Nova York, 1932. ( N . T . )
i
I
10 T. S. ELIOT

las observações preambulares e gracejos incidentais q u e , t e n d o


sido concebidos para seduzir o ouvinte, poderiam apenas irritar
o leitor. Tampouco me pareceu correto, ao preparar para a
publicação em um volume de ensaios escritos em épocas distin-
tas e em diversas ocasiões, remover passagens q u e repetem afir-
mações feiras alhures, ou tentar suprimir discrepâncias e recon-
ciliar contradições. Cada item é substancialmente idêntico ao ELIOT ENSAÍSTA
da época de sua leitura para o público ou primeira publicação.
Ao reler algum tempo depois certos ensaios e palestras, clas-
sificados por data e assunto para inclusão, decidi rejeitá-los por
não os considerar bons o bastante. Pretendi poder considerar
dignas de inclusão duas conferências pronunciadas na Universi-
dade de Edimburgo, anteriores à Segunda Guerra Mundial,
sobre "O desenvolvimento do verso shakespeariano", pois o
que eu estava tentando dizer parecia-me digno de ser dito.
Tais conferências, porém, deram-me a impressão de estar mal
escritas, e seria necessário uma revisão completa — tarefa q u e
adiei para algum f u t u r o longínquo. Lamento menos a omissão, Faz um q u a r t o de século q u e T h o m a s Stearns Eliot mor-
entretanto, uma vez que tomei desse c o n j u n t o de conferências reu em Londres, com setenta e seis anos de i d a d e , a 4 de
uma de suas melhores passagens — uma análise da primeira janeiro de 1965. Ocioso dizer aqui q u e sua obra — o vasto
cena do Hamlet — para incorporá-la a u m a outra palestra, " P o - e complexo legado desse tríplice talento de p o e t a , ensaísta e
esia e d r a m a " . Assim, já que furtara u m a conferência em bene- d r a m a t u r g o , " u m devoto d a tradição q u e q u e b r o u o s moldes
fício de outra, aduzo agora a Poesia e drama outro breve tradicionais para dar novas formas à poesia i n g l e s a " , c o m o
extrato da mesma conferência de Edimburgo, um comentário dele disse Brand Blanshard — continua viva, talvez até mais
à cena do balcão em Romeu e Julieta. viva do q u e na época em q u e foi escrita. Antes de mais n a d a ,
Meus reconhecimentos aparecem sob a forma de notas de c u m p r e e n t e n d ê - l o , e n q u a n t o crítico e ensaísta, n a q u e l e sen-
pé de página aos diversos ensaios. Elas me p e r m i t e m expressar tido cm q u e Baudelaire e n t e n d i a o poeta q u a n d o e n t r e g u e à
as gratas lembranças da hospitalidade com q u e me acolheram sua eventual atividade de prosador: " S ê sempre poeta, m e s m o
em várias cidades, como Glasgow, Swansea, Minneapolis, Ban- em p r o s a " . Ou a i n d a , s e g u n d o o m e s m o Baudelaire, d e n t r o
gor (Gales do Norte) e Dublin. As dívidas de gratidão são por d a q u e l e ideal de q u e " t o d o s os grandes poetas se fazem natu-
demais numerosas para particularizá-las; mas como meu ensaio r a l m e n t e , f a t a l m e n t e , críticos". O u a i n d a , afinal, d e n t r o d o
sobre Goethe* foi lido na ocasião em que recebi da Liga Han- p e n s a m e n t o de Alceu Amoroso Lima, para q u e m " t o d o
scática o Prêmio Goethe, gostaria de expressar meu apreço à g r a n d e poeta ( . . . ) é um g r a n d e crítico, ao menos na perspec-
hospitalidade da Stiftung F. V. S. (a fundação que concede o tiva ( . . . ) , c o m o t o d o g r a n d e crítico é um poeta, ou em pers-
prêmio), ao reitor da universidade e ao burgomestre e ao Senado pectiva ou em a ç ã o " . Q u e m tentar e n t e n d e r - l h e o ensaísmo
da cidade de Hamburgo. ou a crítica literária fora do contexto de sua concepção poé-
T. S. Eliot tica, ou seja, de sua perspectiva ou de sua ação, corre o risco
O u t u b r o de 1956 de passar ao largo não apenas de seus propósitos e formula-
ções estéticas, mas de seu próprio p e n s a m e n t o como h o m e m
" G o e t h e as the s a g e " , aqui traduzido como " G o e t h e , o s á b i o " . ( N . T . )
e como artista.
12 PRÓLOGO PRÓLOGO 13

O que aqui se p r e t e n d e configurar como o p e n s a m e n t o de minadas atitudes religiosas e políticas. Podem explicar-se assim
Eliot se esgalha em muitas vertentes e direções, mercê de seus as influências dos simbolistas franceses, cm particular a de Jules
compromissos não apenas poéticos, mas t a m b é m filosóficos e Laforgue, as de T. H. H u l m e e Ezra P o u n d , a do pessimismo
religiosos, ou até mesmo políticos. Um ano após adotar em splcngeriano, as analogias com as dos humanistas norte-america-
1927 a cidadania britânica, Eliot se d e f i n i u , em sua célebre trí- nos, entre os quais George Santayana e Irving Babbit, o resgate
plice declaração, como " u m algo-católico em religião, um clas- de D o n n e e de toda a poesia metafísica inglesa,do século XVII,
sicista em literatura e um monarquista em p o l í t i c a " . Na ver- a exumação de Dryden e Pope como poetas da inteligência, e
dade, como herdeiro de uma elite de emigrantes ingleses q u e , daí, afinal, o tortuoso c a m i n h o rumo ao m o d e r n i s m o , ao seu
em meados do século XVIII, se estabeleceram em Massachusetts, modernismo sui generis, um modernismo passadista e reacioná-
na Nova Inglaterra — entre os quais se incluía o reverendo rio, pois o q u e de fato interessava a Eliot era o fim da litera-
William Greenleaf Eliot (1811-1887), avô do poeta e f u n d a d o r tura romântica e da democracia do século XIX. Eliot destrói a
da Igreja Unitária de St. Louis e da Universidade de Washing- métrica e a sintaxe como um vanguardista parisiense e engen-
ton —, não é de surpreender que Eliot haja chegado às conclu- dra visões apocalípticas como um expressionista alemão, mas
sões filosóficas, religiosas e políticas a q u e chegou, as quais tan- é, ao m e s m o t e m p o , um saudosista da antigüidade clássica q u e ,
genciam não raro um extremo reacionarismo. Acrescente-se a graças à sua m o n u m e n t a l cultura literária, mobiliza (ou "elioti-
isso não apenas o fato de q u e seus ancestrais mais próximos per- z a " ) Ésquilo, Sófocles, Aristófanes, Empédocles, Heráclito, Vir-
tenciam à sociedade mercantilista em Boston, mas t a m b é m a gílio, D a n t e , Arnault Daniel c os provençais, Santo Agostinho,
circunstância de que tal condição lhe iria favorecer u m a forma- São João da Cruz, Juliana de Norwich, Pascal, Baudelaire, Mal-
ção intelectual esmerada cm academias de primeira linha em larmé — e n f i m , todas as literaturas de todas as épocas e países,
St. Louis e Massachusetts e, depois, na Universidade de Har- pois, como um estrangeiro dentro da literatura européia, ignora
vard, em Boston, estudos esses q u e o poeta concluiu na Sor- quaisquer fronteiras nacionais. Em 1914, a civilização européia
bonne, em Paris, o n d e fez os cursos de língua e literatura fran- ia acabar m u i t o simplesmente porque os europeus se recusavam
cesas e de filosofia contemporânea, e no Merton College, em a ser o q u e Eliot apregoava ser: anglo-católico, classicista e
Oxford, onde durante o ano de 1914, pouco antes de eclodir monarquista. Era a hora dos exilados norte-americanos no Velho
a Primeira Guerra Mundial, dedicou-se, na q u a l i d a d e de Lec- M u n d o . A hora de Eliot e de P o u n d .
tor, às pesquisas filosóficas sobre os prc-socráticos. Esse perfil Eliot e P o u n d tornam-se assim os norte-americanos q u e
de exigente e sofisticado scholar pode não dizer m u i t o , sobre- d o m i n a m t o d o o passado da civilização européia, interpretando
tudo q u a n d o se pensa nos destinos q u e tomou a vida de Eliot, as catástrofes políticas, espirituais e morais da Europa através
mas afinal sempre diz alguma coisa, pois é ele, queiram ou não, do a b a n d o n o , pelos europeus, de suas grandes c vivificantes
a matriz de suas futuras convicções. tradições. São ambos como q u e cristãos novos q u e vieram para
Embora tenha Eliot recusado a vida acadêmica, como era ensinar os cristãos velhos, os quais eles consideram apóstatas
desejo do pai, sua formação universitária só poderia m e s m o tê- já condenados. É esse, sem dúvida, o espírito q u e impregna
lo conduzido àquilo que, do ponto de vista intelectual, enten- cada um dos versos de The waste land (A terra desolada —
dia ele como um sistema mental cujos corolários eram a o r d e m , 1922), sem a leitura dos quais n i n g u é m poderá e n t e n d e r seu
a disciplina, a coerência e a tradição. Para além daquela forma- ensaísmo ou sua crítica literária. Criador de u m a desconcer-
ção, todavia, são múltiplas as influências q u e atuaram sobre o tante " m ú s i c a de idéias" , Eliot é, na verdade, o ú l t i m o dos
espírito de Eliot, e é possível reconstituí-las em certa ordem, metaphysical poets q u e ele próprio exumou e, talvez, o mais
considerando-se não apenas a relação entre o esteticismo e o a m b í g u o poeta de u m a época em t u d o e por t u d o a m b í g u a , a
pessimismo, como também a relação entre pessimismo e deter- época rentre deux guerres, como ele m e s m o a define n u m a das
7 PRÓLOGO PRÓLOGO 13

passagens de seus Four quartets (Quatro quartetos — 1943). em estruturas poéticas. Assim, a crítica literária passa a ser enten-
Por isso mesmo, como já dissemos, sua primeira visão do m u n d o dida como uma ciência autônoma que se dedica ao estudo dessa
é essencialmente pessimista e apocalíptica, sugerindo-nos u m a técnica, sem n e n h u m a preocupação com os elementos biográfi-
árida "terra desolada" na qual se arrastam e agonizam os ho- cos, psicológicos ou históricos.
mens ocos". É esse o cenário purgatorial q u e nos descortina o Exigia-se t a m b é m do close reading q u e tivesse um f u n d a -
mais terrível poema de toda a literatura ocidental c o n t e m p o r â - m e n t o filosófico, da mesma forma como filosófica foi a técnica
nea, The waste landy insólita c o m u n h ã o de sátira e desespero, exegética de Coleridge, o q u e de certo m o d o deixava Eliot
de pensamento e emoção, de caducidade e transcendência, de m u i t o à vontade graças ao seu p r o f u n d o conhecimento da filo-
liturgia e perversão, de náusea profana e êxtase religioso, de sofia ocidental e mesmo dos corpos de doutrina do Oriente.
discurso oratório e balada metafísica. Embora convertido ao cato- Nesse caso, entretanto, os new critics voltavam a recorrer à psi-
licismo anglicano, a impressão q u e se tem é a de q u e Eliot canálise, à antropologia, à sociologia ou até m e s m o à execrada
jamais conseguiria desvencilhar-se desses estigma s espirituais, biografia do autor como ciências auxiliares do close reading,
pois, se era inabalável a sua fé no pecado original, o m e s m o q u e deixou então de ser estritamente lingüístico. Mais impor-
já não se pode dizer de sua esperança na redenção h u m a n a . tante do que essa base filosófica, porém, foi a distinção, pro-
De sua obra como poeta e ensaísta quase t u d o se poderá dizer posta por Ramson e incorporada por Eliot, entre a " e s t r u t u r a "
ou argüir, menos q u e seja gratuita, pois o q u e aí se encena é do p o e m a e sua " t e x t u r a " , ou seja, a lógica poética de acordo
o drama daquele h o m e m arcaico, antigo, medieval, renascen- com a qual os detalhes se subordinam ao c o n j u n t o e se relacio-
tista e moderno, o h o m e m do qual todos descendemos. nam entre si, o q u e reflete um conceito tipicamente colerid-
giano. E a partir dessa distinção, aliás, q u e Cleant Brooks irá
Embora solidário com a reação desencadeada pelo New Cri-
propor os "símbolos d e t e r m i n a n t e s " , ou symbolic patterns,
ticism contra a crítica histórica e psicológica no sentido de foca-
q u e caracterizam a obra literária e constituem a chave para sua
lizar os aspectos formais da obra literária, Eliot não chegou pro-
interpretação. Sempre q u e necessário ou o p o r t u n o , esses pat-
priamente a filiar-se àquele m o v i m e n t o , t e n d o inclusive lhe
terns são explicados à maneira psicanalítica e, a partir daí, pra-
denunciado u m a série de abusos, como se p o d e 1er sobretudo
ticamente se a b a n d o n a o ideal do close reading no que se refere
em De poesia e de poetas (1957). Não obstante, é ele conside-
à interpretação p u r a m e n t e formal e estética da obra literária.
rado um dos fundadores dessa importante vertente crítica anglo-
O m é t o d o dos symbolic patterns acabou assim por transformar
americana, ao lado de J o h n Crowe Ransom, Cleanth Brooks,
a obra estudada n u m a alegoria que o crítico decifrava como
Ivor Armstrong Richards, William Empson, K e n n e t h Burke,
bem lhe aprouvesse. Os abusos foram inevitáveis, o q u e levou
Richard Blackmur, Allen Tate e alguns outros. Mas o New Cri-
Helen Gardner a denunciá-los, no q u e foi seguida pelo próprio
ticism estava longe de constituir um bloco h o m o g ê n e o , abri-
Eliot poucos anos depois.
gando tendências das mais divergentes, embora todas revelem
um ponto comum: a origem na contribuição crítica de Samuel O curioso na formação de Eliot como crítico e ensaísta é
Taylor Coleridge, a partir de cuja Biographia literaria (1817) q u e esta, pelo menos no início, nos dá a nítida impressão
reaparece como exigência basilar a necessidade de se 1er, cada de ser mais francesa do que inglesa, razão pela qual, em um de
vez mais exatamente, as "palavras na p á g i n a " , o q u e se pres- seus primeiros ensaios, Hamlet, datado de 1919, ousa o autor
tou até para pesquisas estatísticas sobre a freqüência de certas manifestar sérias dúvidas q u a n t o à perfeição dramática e à pro-
expressões e imagens em determinado poeta. Ε o close reading, f u n d i d a d e filosófica daquela tragédia shakespeariana. Um ano
princípio do qual Eliot foi ortodoxo adepto. De acordo com a depois, em The sacred wood, Eliot aconselha aos críticos ingle-
lição de Coleridge, deve ser dispensada a mesma atenção à estru- ses o estudo de Rémy de G o u r m o n t , que lhe fora revelado por
tura do conjunto de palavras e à técnica de sua organização Pound. É que, nessa cpoca, o p o n t o de partida de Eliot se frag-
8 PRÓLOGO PRÓLOGO 13

mentava em premissas p u r a m e n t e estéticas. Em sua crítica aflo- Houaiss, q u e , e n q u a n t o poeta, Eliot " s e h u m i l h o u quase à con-
ram certos critérios cientificamente definidos, como o objective dição de um n ã o - e u " , para assim — e somente assim — " a t i n -
correlative, a auditory imagination ou a dissociation of sensibi- gir a condição de p a n - p o e t a " . E seu ensaísmo, assim como sua
lity. os quais, todavia, nada têm em c o m u m com as pretensões crítica literária, deve t u d o não apenas a essa formação, mas
"científicas" de alguns críticos da vertente norte-americana do sobretudo à sua convicção de q u e a literatura ocidental nada
New Criticism. O próprio Eliot, aliás, julgava q u e o valor de mais é do que um continuum q u e se estende desde H o m e r o
sua crítica estava diretamente ligado às suas próprias experiên- até a m o d e r n i d a d e , o q u e lhe confere aquela revitalizante con-
cias como poeta. E foi isso, sem dúvida, q u e lhe permitiu des- dição de f e n ô m e n o de cultura , sobre a qual ele tanto insistiu.
cobrir não só a p r o f u n d i d a d e poética dos dramaturgos elisabeta- Ao longo dos dezesseis ensaios aqui reunidos pode-se obser-
nos, mas t a m b é m "a poesia metafísica" de J o h n D o n n e , var a extraordinária e cerrada coerência com q u e Eliot expõe e
Andrew MarvelI, George Herbert, Richard Crashaw ou Henry d e f e n d e seus pontos de vista, os quais, como ele próprio a d m i t e
King e a poesia da " i n t e l i g ê n c i a " de J o h n Dryden e Alexan- cm diversas passagens, pouco se modificaram d u r a n t e o período
der Pope. Mas tais descobertas não seriam possíveis se não o de trinta e três anos em q u e foram escritos esses textos sobre
guiasse, t a m b é m , o agudo senso do f u n d o moral da obra des- poesia c poetas, seara fora da qual — à exceção da dramaturgia
ses autores, o mesmo senso moral e religioso q u e o levou, anos em verso pouco se arriscou o autor, sob a alegação de q u e ,
mais tarde, a rejeitar o agnosticismo dos vitorianos e de todos para além de certos limites, se diluiria sua competência. É de
os liberais e o pelagianismo de T h o m a s Hardy e D. H. Lawren- fato notável, entretanto, a naturalidade com q u e Eliot se move
ce, aos quais opõe o dogma do pecado original e a perversão no â m b i t o da estética, da filosofia, do pensamento religioso,
(logo, a existência) dos valores morais dos católicos transviados da história, e, não raro, da psicologia e da política. É q u e ,
Baudelaire e Joyce. Revela-se em Eliot, portanto, aquela previsí- como herdeiro direto do ensaísmo de Coleridge e como um
vel consciência de alguém que fora herdeiro de gerações e gera- dos principais demiurgos do New Criticism, não podia ele com-
ções de puritanos anglo-saxónicos. E como se, ao final, o esteta preender a análise do texto literário sem um sólido e coeso
cedesse lugar ao moralista. entourage cultural. Q u e m lê os textos críticos de Eliot percebe
Ainda assim é preferível q u e se e n t e n d a Eliot, para além de imediato q u e os f u n d a m e n t a m não apenas u m a formação
de seus fundos e inequívocos compromissos éticos e religiosos, acadêmico-erudita, mas sobretudo uma harmônica, c o n q u a n t o
como um poeta de poetas e um crítico de poetas, c o m o o autor dilacerante, visão do m u n d o c um ideário estètico-filosofico
de uma obra que, a um t e m p o clássica e m o d e r n a , révolue ioná- q u e confere à sua crítica uma condição de obra do pensamento,
ria e reacionária, realista e metafísica, está na própria raiz q u e embora jamais se deva esquecer, como anteriormente dissemos,
informa e conforma a mentalidade poética de nossos dias, t e n d o q u e ela não pode ser e n t e n d i d a senão e n q u a n t o vinculada à
exercido fecunda e duradoura influência sobre todas as gera- sua atividade de poeta e dramaturgo.
ções que se fizeram a partir de 1930. Isso se explica pelo fato Tais virtudes p o d e m ser melhor apreciadas em determina-
de que Eliot resume e absorve, nos complexos c heterodoxos dos ensaios, particularmente em "O que é um clássico?" e
estratos do mosaico intertextual de sua atividade criadora, toda em seu d e s d o b r a m e n t o apendicular, "Virgílio e o m u n d o cris-
a herança poética legada por aqueles q u e o precederam, desde t ã o " , nos quais ele nos convence, a partir de premissas literá-
o remoto passado oriental sanscrito e as difusas inervações greco- rias m u i t o sugestivas e dentro de parâmetros histórico-filosófí-
latinas ou mesmo hebraicas até a m u l t i f o r m e floração da poesia cos e lingüísticos irretorquíveis, de q u e Virgílio é o único clás-
ocidental. Em decorrência dessa inumerável e mimètica assimila- sico da literatura ocidental, se a entendermos como aquele con-
ção literária, que alguns críticos passaram a designar de "elioti- tinuum q u e se estratifica e amadurece a partir do advento da
zação", pode-se afirmar, como o faz lucidamente Antônio era cristã c de t u d o aquilo com q u e ela impregnou a alma do
9 PRÓLOGO
PRÓLOGO 13

homem do Ocidente. Virgílio seria o único clássico ocidental pertinência de sua linguagem teatral. Segundo Eliot, Shakespe-
porque, ao escrever a sua Eneida, o fez n u m m o m e n t o histó- are seria aquele q u e criou um m u n d o dramático " n o qual o
rico em q u e se consumava a m a t u r i d a d e de u m a língua — a criador está presente em toda parte, e em toda parte o c u l t o " .
latina —, de u m a literatura — a greco-latina, s o b r e t u d o por- No ensaio O q u e é poesia m e n o r ? " , o autor nos delineia
que Virgílio reinventa e revigora o m o d e l o helénico —, e de os critérios de q u e nos devemos servir para estabelecer as possí-
uma civilização — a romana, da qual somos herdeiros diretos veis fronteiras entre o q u e seja poesia maior e poesia menor,
em todos os campos do saber e do p e n s a m e n t o . E q u e , e m b o r a descartando de saída aquela concepção maniqueísta e necrosada
mais criativo e poderoso, o espírito grego só nos chega através de q u e o autor de poemas curtos seria necessariamente um
de Roma e, mais do q u e isso, modificado e interpretado por poeta menor, e n q u a n t o o autor de poemas longos seria obriga-
Roma. E no caso de Eliot se observa, além disso, um o u t r o toriamente um poeta maior. Ao examinar o problema com
aspecto f u n d a m e n t a l : o de sua p r o f u n d a filiação ao cristianismo; base na produção de alguns dos chamados "poetas metafísicos",
e seria ocioso recordar q u e o m u n d o cristão e m e r g e precisa- o autor consegue nos esclarecer um pouco mais sobre o assunto
mente das ruínas do Império Romano, logo após conhecido, q u a n d o , a partir dos poemas curtos de George Herbert, subli-
aliás, como o Sacro Império Romano do O c i d e n t e . nha q u e eles têm não apenas um significado em si, e n q u a n t o
Em dois outros ensaios, "Poesia e d r a m a e As três vozes unidades poemáticas definidas, mas t a m b é m um sentido de
da poesia", Eliot se debruça sobre a questão do e m p r e g o do c o m p l e t u d e q u a n d o examinados à luz do conjunto a q u e per-
verso na dramaturgia, f a z e n d o aí, paralelamente, u m a análise tencem no plano global da obra do poeta. E seria inadmissível,
de sua própria obra como d r a m a t u r g o . A preocupação do autor pelo menos para o autor, considerar Herbert como um poeta
nesses ensaios é com a recuperação do d r a m a em verso no cená- menor, "pois não é de alguns poemas prediletos que me recordo
rio do teatro contemporâneo, pouquíssimo interessado, aliás, ao pensar nele, mas de toda a sua o b r a " . Eliot aproveita a oca-
em recorrer a esse expediente estilístico do qual t a n t o se servi- sião para pôr o d e d o na mais p r o f u n d a ferida poética do século
ram os tragediógrafos gregos e latinos e quase todos os d r a m a - XIX, q u a n d o a literatura, especialmente a inglesa e a francesa
turgos elisabetanos, a começar por Shakespeare, Marlowe e Ben — com perniciosas repercussões pelo m u n d o afora, inclusive
Johnson, entre vários outros. U m a das teses aqui sustentadas aqui m e s m o , entre nós —, viu-se assolada pela praga do poema
por Eliot é a de q u e a platéia não deve estar, d u r a n t e o espetá- longo, q u e levou a própria poesia a um impasse somente ultra-
culo, consciente do recurso dramático do verso, pois isso a des- passado com o advento do modernismo em princípios de nosso
viaria tanto da ação q u a n t o da intriga cénicas, colocando-a em século, e justamente com a publicação, em 1922, de um poema
permanente sobressalto nos momentos de transirão entre as par- longo escrito por Eliot, The waste land, q u e revolucionou a
tes em verso e cm prosa de uma peça em q u e ambas sc mistu- m e n t a l i d a d e poética contemporânea.
rem. Eliot alude aqui, quase à exaustão, ao vasto cxcmplário Outra peça importante na ensaística eliotiana é a "A música
do drama shakespeariano, que, talvez como n e n h u m outro, con- da p o e s i a " , o n d e o autor examina em p r o f u n d i d a d e a questão
seguiu superar esse impasse por meio de u m a arte teatral em da métrica e da versificação, assim como a da utilização do verso
cuja tessitura tais transições são praticamente imperceptíveis branco e do verso livre, na poesia inglesa. Muito particularmen-
porque atendem, acima de tudo, a exigência de caráter estrita- te, Eliot esmiuça o problema representado pelo terreno move-
mente dramático. Em Shakespeare, como assinala Eliot, as três diço q u e é a fronteira a ser imposta entre a poesia e a música.
vozes da poesia — a do poeta que fala consigo m e s m o , a do Essa " m ú s i c a da poesia" se nutre de uma estrutura verbal e sin-
poeta que se dirige a u m a platéia e a do poeta q u a n d o tenta tática q u e não pode ser c o n f u n d i d a com a trama específica de
criar uma personagem dramática q u e fala em verso — soam u m a partitura musical, sob o risco de u m a inevitável diluição
como que cm uníssono, daí resultando a grandeza e a absoluta da linguagem poética. Apesar disso, Eliot admite que, em
10 PRÓLOGO PRÓLOGO 13

determinadas instâncias, caiba ao poeta recorrer a certas proprie- que a função do crítico é f u n d a m e n t a l m e n t e a de ajudar seus
dades da música que lhe poderão interessar m u i t o de perto, leitores a compreender e a sentir o prazer que nos pode propor-
como a noção de ritmo e de estrutura. E vai ainda mais longe cionar esse mesmo texto, e não, como a m i ú d e se fez em n o m e
o ensaísta q u a n d o nos sugere q u e "seria possível para um poeta de sabe-se lá que estapafúrdios objetivos, de dissecá-lo ao nível
trabalhar muito intimamente com analogias musicais", já q u e da prospecção cadavérica, impedindo às vezes tais leitores de fruí-
o ritmo pode conduzir ao nascimento da ideia e da i m a g e m . rem o poema apenas e n q u a n t o poesia. O grande crítico, con-
Pouco adiante observa o autor q u e há no verso possibilidades clui Eliot, é aquele q u e consegue fazer com que vejamos algo
que comportam certa analogia com o desenvolvimento de um q u e jamais havíamos visto anteriormente, ou que havíamos entre-
tema por diferentes grupos de instrumentos e q u e " h á n u m visto apenas "com os olhos enevoados pelo preconceito". O u ,
poema possibilidades de transições comparáveis aos distintos em outras palavras, aquele que nos coloca face a face com u m a
movimentos de uma sinfonia ou de um q u a r t e t o " . Ao leitor nova realidade e, desse modo, nos deixa sozinhos com ela.
habituado aos textos poéticos de Eliot, tais considerações não A segunda parte do volume está toda ela dedicada ao exame
chegam a surpreender, pois não foi exatamente isso o q u e ele específico de sete poetas, além do já citado Virgílio, alguns de
fez q u a n d o recorreu ao esquema da sonata-forma para escrever importância secundária, como J o h n Davies e Rudyard Kipling,
os seus Four quartets? outros de alta significação, entre os quais Milton, Byron, Goe-
Em dois outros ensaios, 44A f u n ç ã o social da p o e s i a " e the e Yeats. Dois desses ensaios c h a m a m atenção particular:
"As fronteiras da crítica Eliot aborda mais especificamente " J o h n s o n como crítico e p o e t a " e " G o e t h e , o s á b i o " , este
o problema da poesia no contexto social em q u e é p r o d u z i d a ú l t i m o talvez a peça maior dessa segunda parte do volume e
e a delicada questão dos limites além dos quais, n u m a certa na qual a u n i d a d e criadora reflete admiravelmente as preocupa-
direção, a crítica literária deixa de ser literária e. n u m a outra, ções literárias do escritor. O caso de Johnson é particularmente
deixa de ser crítica. A função social da poesia, e m b o r a esteja curioso e parece decorrer, pelo menos até certo ponto, da pró-
ela mais ou menos difusa em toda grande poesia p r o d u z i d a até pria concepção eliotiana de q u e muitas vezes admiramos alguns
hoje, constitui uma questão diante da qual Eliot nos dá a escritores mesmo q u e deles não gostemos. Não é bem o caso
impressão de um ceticismo algo desolado, t a n t o assim q u e , das relações entre Eliot e J o h n s o n , mas observe-se q u e o pró-
logo de início, observa: "Mas me parece q u e se a poesia — e prio Eliot se confessa muito mais à vontade como herdeiro de
refiro-me a toda grande poesia — não exerceu n e n h u m a f u n ç ã o Coleridge do que do autor do Dictionary of the English lan-
social no passado, não é provável que venha a fazê-lo no f u t u - guage. C o m o se sabe, ao longo da ditadura intelectual e literá-
r o " . Pouco interessa, como salienta o ensaísta, q u e o poeta uti- ria q u e exerceu durante quase toda a segunda metade do século
lize sua poesia para defender ou atacar d e t e r m i n a d a a t i t u d e XVIII, J o h n s o n tornou-se o responsável direto pelo esqueci-
social. Todos sabemos que o mau verso p o d e alcançar prestígio m e n t o de D o n n e c de todos os demais "poetas metafísicos"
temporário q u a n d o o poeta reflete u m a a t i t u d e p o p u l a r do do século XVII até a segunda década do presente século, quando
momento, mas a verdadeira poesia, adverte o autor, "sobrevive Eliot os resgatou do limbo no memorável ensaio " T h e metaphy-
não apenas à mudança da opinião pública como t a m b é m à com- sical p o e t s " , escrito cm 1921 e publicado originalmente em
pleta extinção do interesse pelas questões com as quais o poeta Homage to John Dry den (1924). E é t a m b é m o mesmo Eliot
esteve apaixonadamente envolvido". Q u a n t o à questão das fron- q u e , como já o fizera com Dryden e Pope, por ele reabilitados
teiras da crítica, alerta o ensaísta para o fato de q u e , em mui- como poetas da " i n t e l i g ê n c i a " , resgata o prestígio de Johnson
tos casos, certa crítica "explicativa" das origens do p o e m a con- não apenas como poeta, mas t a m b é m como crítico e ensaísta,
duziu antes a um vazio exegético, pois, em seu afã de espre- sobretudo graças a The lives of the English poets, que o autor
mer todas as gotas do significado de um texto, esqueceu-se de publicara cm 1791.
22 PRÓLOGO

Não creio que seja pertinente, como t a m p o u c o razoável,


alongar-me aqui mais d e t a l h a d a m e n t e sobre a matéria de q u e
consiste De poesia e de poetas. Seria como q u e antecipar a frui-
ção do leitor em seu contato direto com o texto eliotiano o u ,
o que é pior, correr o risco de perturbar-lhe c até m e s m o frus-
trar-lhe tal fruição. Q u e ele possa, assim c o m o nós, degustar a
elegância, a erudição, a inteligência e a luz invisível" desses
admiráveis e f u n d a m e n t a i s ensaios, desse lúcido e instigante
testemunho literário de um poeta maior e de um sábio para
quem

A única sabedoria que podemos aspirar I


E a sabedoria da humildade a humildade é
infinita.

Ivan Junqueira
DE POESIA
Rio, 9 de fevereiro de 1990
A FUNÇÃO SOCIAL DA POESIA'

É de tal m o d o provável que o título deste ensaio sugira coi-


sas diíerentes a diferentes pessoas q u e posso desculpar-me por
explicar de início o q u e ele não significa, antes de tentar escla-
recer o q u e significa. Q u a n d o aludimos à " f u n ç ã o " de qual-
quer coisa, provavelmente estamos pensando naquilo q u e essa
coisa deve produzir em vez daquilo que ela produz ou haja pro-
d u z i d o . Trata-se de u m a importante distinção, pois não pre-
t e n d o falar sobre aquilo q u e julgo que a poesia deva produzir.
Pessoas q u e nos disseram o que a poesia deve produzir, sobre-
t u d o se são poetas, tem habitualmente em mira a espécie parti-
cular de poesia que gostariam de escrever. E sempre possível,
n a t u r a l m e n t e , q u e a poesia possa desempenhar no f u t u r o um
papel distinto daquele d e s e m p e n h a d o no passado; mas, ainda
assim, vale a pena decidir primeiro qual a função por ela exer-
cida no passado, seja n u m a ou noutra época, seja nesse ou
naquele idioma, e de um p o n t o de vista universal. Poderia
escrever facilmente sobre o que eu próprio faço com a poesia,
ou o q u e gostaria de fazer, e então tentar persuadir alguém
de q u e isso é exatamente o que todos os bons poetas têm ten-

1. Palestra p r o n u n c i a d a no I n s t i t u t o Británico-Norueguès cm 1943 e posterior-


m e n t e desenvolvida para ser a p r e s e n t a d a ao p u h l i c o parisiense em 1945. Esse texto
apareceu d e p o i s em The AJelphi. ( N . A . )
T. S. ELIOT A F U N Ç Ã O SOCIAL DA POESIA 27
26

tado fazer, ou devem ter feito, no passado — só q u e não o Algumas dessas formas persistem na poesia mais recente,
lograram de todo, embora talvez não por sua culpa. Mas me como é o caso dos hinos religiosos a q u e me referi. O signifi-
parece provável q u e se a poesia — e refiro-me a toda grande cado da expressão didática, para poesia, passou por algumas
poesia — não exerceu n e n h u m a função social no passado, não transformações. Didático pode significar "transmissão de infor-
é provável que venha a fazê-lo no f u t u r o . mação ', ou significar "administração de instrução m o r a l " , ou
Q u a n d o digo toda grande poesia, p r e t e n d o abster-me de pode equivaler a algo q u e abrange ambas as coisas. As Geórgi-
outro meio através do qual possa ocupar-me do assunto. Alguém cas de Virgílio, por exemplo, são poesia belíssima e contêm con-
poderia estudar as diversas espécies de poesia, u m a após outra, siderável dose de informação sobre a boa agricultura. Mas pare-
e discutir a função social de cada u m a delas sucessivamente sem ceria impossível, nos dias de hoje, u m a obra atualizada sobre
a agricultura q u e pudesse t a m b é m ser poesia refinada: de um
tangenciar a questão geral de qual é a f u n ç ã o da poesia c o m o
lado, o próprio assunto tornou-se m u i t o mais complexo e cien-
poesia. Desejo distinguir entre as funções gerais e particulares,
tífico; de outro, pode ser mais facilmente desenvolvido cm
de m o d o que saibamos do q u e estamos f a l a n d o . A poesia pode
prosa. N e m poderíamos, como o fizeram os romanos, escrever
ter um deliberado e consciente propósito social. Em suas mais
tratados astronómicos e cosmológicos em verso. O p o e m a , cujo
primitivas formas, esse propósito é a m i ú d e absolutamente claro.
objetivo ostensivo é transmitir informações, foi s u p l a n t a d o pela
Há, por exemplo, antigas runas- e cantos, alguns dos quais reve-
prosa. A poesia didática tornou-se aos poucos restrita à poesia
lam propósitos mágicos verdadeiramente práticos, destinados a
de exortação moral, ou poesia que pretende persuadir o leitor
esconjurar o mau-olhado, a curar certas doenças ou a obter as
a aceitar o p o n t o de vista do autor sobre alguma coisa. Por con-
boas graças de algum d e m ô n i o . A poesia era utilizada primiti-
seguinte, ela inclui em boa parte aquilo q u e se pode chamar
vamente em rituais religiosos e, q u a n d o e n t o a m o s um hino,
de sàtira, embora esta se c o n f u n d a com o burlesco e a paródia,
estamos ainda utilizando-a com um d e t e r m i n a d o propósito
cujo propósito é, f u n d a m e n t a l m e n t e , causar hilariedade. Alguns
social. As primitivas formas do gênero épico e a saga p o d e m
dos poemas de Dryden, no século XVII, são sátiras na m e d i d a
ter transmitido aquilo q u e sustentamos c o m o história antes de
cm q u e têm em mira ridicularizar os objetos contra os quais
se tornar apenas u m a diversão comunitária, e antes do uso da
a p o n t a m , e são t a m b é m didáticos q u a n d o objetivam persuadir
linguagem escrita, u m a forma de verso regular deve ter sido o leitor a aceitar determinado ponto de vista político ou reli-
extremamente proveitosa à memória — e a memória dos primi- gioso; e, ao cumprir esse desígnio, eles se utilizam do m é t o d o
tivos bardos, dos contadores de histórias e dos sábios deve ter alegórico, q u e apresenta a realidade como ficção: The hind and
sido prodigiosa. Nas sociedades mais evoluídas, tal c o m o a da the panther, q u e se propõe a persuadir o leitor de que a razão
Grécia antiga, as funções sociais reconhecidas da poesia são tam- estava do lado da Igreja de Roma, contra a Igreja da Inglaterra,
bém bastante conspícuas. O drama grego se desenvolve a partir é seu mais notável poema desse gênero. No século XIX, boa
dos ritos religiosos, e permanece como cerimónia pública for- parte da poesia de Shelley inspirou-se n u m entusiasmo pelas
mal associada às tradicionais celebrações religiosas; a ode pindà- reformas políticas e sociais.
rica se desenvolve em relação com u m a d e t e r m i n a d a ocasião
Q u a n t o à poesia dramática, que hoje tem uma função
social. Certamente, tais usos definidos da poesia deram a ela
social peculiar, pois e n q u a n t o a maior parte da poesia atual é
uma estrutura que tornou possível alcançar a perfeição em gêne-
ros particulares. escrita para ser lida em solidão, ou em voz alta em pequenos
grupos, o verso dramático tem em si a f u n ç ã o de provocar u m a
impressão imediata e coletiva sobre um a m p l o n ú m e r o de pes-
2. Nome dado aos caracteres dos mais antigos alfabetos germânicos. A escrita rùnica
de que se serviam alguns povos, inclusive os escandinavos, e q u e se gravava em roche-
soas reunidas para assistir a um episódio imaginário encenado
dos e vasos de madeira. Por extensão, poemas escritos com esses caracteres (Ν Τ ) n u m palco. A poesia dramática é diferente de qualquer outra,
26 T. S. ELIOT 27
A F U N Ç Ã O SOCIAL DA POESIA

mas, como suas leis específicas são as do d r a m a , sua f u n ç ã o gênero de prazer, só poderei responder: o gênero de prazer q u e
em geral se f u n d e à do drama, e não me refiro aqui à f u n ç ã o so- a poesia proporciona; simplesmente porque qualquer outra res-
cial específica do drama. posta nos levaria a nos perdermos em divagações estéticas e na
No que se refere à função particular da poesia filosófica, questão geral na natureza da arte.
implicaria esta u m a análise e u m a explicação de certa ampli- S u p o n h o q u e se deva concordar com o fato de q u e qual-
tude. Penso que já mencionei bastantes gêneros de poesia para quer poeta, haja sido ele grande ou não, tem algo a nos pro-
deixar claro que a função específica de cada um deles se rela- porcionar além do prazer, pois se for apenas isso, o próprio pra-
ciona com alguma çutra função: a poesia dramática, com o zer pode não ser da mais alta espécie. Para além de q u a l q u e r
drama; a poesia didática informativa, com a f u n ç ã o de seu intenção específica que a poesia possa ter, tal como foi por m i m
assunto; a poesia didática filosófica, ou religiosa, ou política, exemplificado nas várias espécies de poesia, há sempre comuni-
ou moral, com a função de tais temáticas. Podemos considerar cação de alguma nova experiência, ou u m a nova compreensão
a função de quaisquer desses gêneros poéticos e, ainda assim, do familiar, ou a expressão de algo que experimentamos e para
deixar intocado o problema da f u n ç ã o da poesia, pois todas lo q u e não temos palavras o que amplia nossa consciência
essas coisas podem ser abordadas na prosa. ou apura nossa sensibilidade. Mas não é com esse benefício indi-
Mas, antes de prosseguir, q u e r o descartar u m a objeção q u e vidual extraído à poesia, nem tampouco com a qualidade do
pode ser levantada. As pessoas suspeitam às vezes de q u a l q u e r prazer individual, que este ensaio se relaciona, l odos compreen-
poesia com um propósito particular, isto é, a poesia em q u e demos, creio eu, tanto a espécie de prazer q u e a poesia p o d e
o poeta defende conceitos sociais, morais, políticos ou religio- proporcionar, q u a n t o a diferença que, para além do prazer, ela
sos, assim como outras pessoas julgam a m i ú d e q u e determi- pode oferecer às nossas vidas. Caso não se o b t e n h a m esses dois
nada poesia seja autêntica só p o r q u e exprime um p o n t o de resultados, simplesmente não há poesia. Podemos reconhecer
vista que lhes apraz. Eu gostaria de dizer q u e a questão rela- isso, mas ao m e s m o t e m p o fazer vista grossa para algo q u e isso
tiva ao fato de o poeta estar utilizando sua poesia para d e f e n - faz por nós coletivamente, e n q u a n t o sociedade. E falo no mais
der ou atacar determinada atitude social não interessa. O m a u a m p l o sentido, pois creio ser importante q u e cada povo deva
verso pode obter fama temporária q u a n d o o poeta reflete u m a ter sua própria poesia, não apenas por causa daqueles q u e gos-
atitude popular do m o m e n t o ; mas a verdadeira poesia sobre- tam de poesia — tal pessoa poderia sempre aprender outras lín-
vive não apenas à mudança da opinião pública c o m o t a m b é m guas e apreciar a poesia delas —, mas t a m b é m porque isso esta-
\ à completa extinção do interesse pelas questões com as quais o belece de fato u m a diferença para a sociedade como um todo,
poeta esteve apaixonadamente envolvido. Os poemas de Lucré- ou seja, para pessoas que não gostam de poesia. Incluo até
cio não perderam sua grandeza, embora suas noções de física m e s m o aqueles q u e ignoram os nomes de se us próprios poetas
e de astronomia hajam caído em descrédito; os de Dryden tam- nacionais. Eis o verdadeiro assunto deste ensaio.
bém, embora as controvérsias do século XVII há m u i t o já não
Observa-se q u e a poesia difere de qualquer outra arte por
nos digam mais respeito; da mesma forma, um grande p o e m a
ter um valor para o povo da mesma raça e língua do poeta,
do passado ainda nos agrada, mesmo q u e seu assunto seja um
q u e não p o d e ter para n e n h u m outro. E verdade que até a
daqueles que deveríamos hoje abordar em prosa.
música e a pintura têm um caráter local e racial; mas decerto
Mas se estamos à procura da função social essencial da poe-
as dificuldades de apreciação dessas artes, para um estrangeiro,
sia, precisamos olhar primeiro para suas funções mais óbvias,
são muito menores. É verdade, por outro lado, que os textos
aquelas que precisam ser cumpridas, se é q u e algum poema o
em prosa têm um significado em suas próprias línguas que se
faz. O principal, suponho, é que possamos nos assegurar de
perde na tradução; mas todos sentimos que perdemos muito
que essa poesia nos dê prazer. Se alguém perguntar qual o
menos ao lermos u m a novela traduzida do q u e um poema ver-
26 T. S. ELIOT 27
30 A FUNÇÃO SOCIAL DA POESIA

tido de outro idioma; e na tradução de alguns gêneros de obra afirmo que a poesia, mais do q u e a prosa, diga respeito à expres-
científica a perda pode ser virtualmente nula. O fato de q u e a são da emoção e do sentimento, não pretendo dizer q u e a poe-
poesia é muito mais local do q u e a prosa p o d e ser comprovado sia necessite estar desprovida de conteúdo intelectual ou sig-
na história das línguas europeias. Ao longo de toda a Idade nificado, ou que a grande poesia não contenha mais esse signi-
Média e no curso dos cinco séculos seguintes, o latim p e r m a n e - ficado do que a poesia menor. Mas para levar adiante essa invesr
ceu como a língua da filosofia, da teologia e da ciência. O tigação cu teria que me afastar de meu propósito imediaio.
impulso concernente ao uso literário das linguagens dos povos Admitirei como aceito o fato de que as pessoas encontram a
começa com a poesia. E isso parece a b s o l u t a m e n t e natural expressão mais consciente de seus sentimentos mais p r o f u n d o s
q u a n d o percebemos q u e a poesia tem a ver f u n d a m e n t a l m e n t e antes na poesia de sua própria língua do q u e em qualquer outra
com a expressão do s e n t i m e n t o e da emoção; e esse s e n t i m e n t o arte ou na poesia escrita em outros idiomas, isso não significa,
e emoção são particulares, ao passo q u e o p e n s a m e n t o é geral. é claro, que a verdadeira poesia esteja restrita a sentimentos
É mais fácil pensar do q u e sentir n u m a língua estrangeira. Por que cada um possa identificar c compreender; não devemos res-
isso, n e n h u m a arte é mais visceralmente nacional do q u e a poe- tringir poesia a poesia popular. Basta q u e , n u m povo homogê-
sia. Um povo pode ter sua língua trasladada para longe de si, neo, os sentimentos dos mais refinados c complexos t e n h a m
abolida, e u m a outra língua imposta nas escolas; mas a menos algo em c o m u m com os dos mais simples e grosseiros, algo q u e
que alguém ensine esse povo a sentir n u m a nova língua, nin- eles não têm em c o m u m com as pessoas de seu próprio nível
guém conseguirá erradicar o idioma antigo, e ele reaparecerá ao falar outra língua. E, q u a n d o se trata de u m a civilização
na poesia, que é o veículo do sentimento. Eu disse precisamente sadia, o grande poeta terá algo a dizer a seu compatriota em
"sentir n u m a nova língua ", e pretendi dizer algo mais do q u e qualquer nível de educação.
apenas "expressar seus sentimentos n u m a nova língua ". Um Podemos dizer que a tarefa do poeta, como poeta, é ape-
pensamento expresso n u m a língua diversa p o d e ser pratica- nas indireta com relação ao seu povo: sua tarefa direta é com
mente o mesmo pensamento, mas um s e n t i m e n t o ou u m a emo- sua língua, primeiro para preservá-la, segundo para distendê-
ção expressos n u m a língua diferente não são o m e s m o senti- la e aperfeiçoá-la. Ao exprimir o q u e outras pessoas s e n t e m ,
mento nem a mesma emoção. U m a das razões para q u e apren- t a m b é m ele está modificando seu sentimento ao torná-lo mais
damos bem pelo menos u m a língua estrangeira é q u e isso nos consciente; ele está tornando as pessoas mais conscientes daquilo
permite adquirir u m a espécie de personalidade s u p l e m e n t a r ; q u e já sentem e, por conseguinte, ensinando-lhes algo sobre si
uma das razões para não adquirirmos u m a nova língua em lugar próprias. Mas o poeta não é apenas uma pessoa mais consciente
de nossa própria é que a maioria de nós não deseja tornar-se do q u e as outras; é t a m b é m individualmente distinto de outra
u m a pessoa diferente. Uma língua superior raramente p o d e ser pessoa, assim como de outros poetas, e pode fazer com que
exterminada, a menos que se extermine o povo q u e a fala. seus leitores partilhem conscicntcmente de novos sentimentos
Q u a n d o u m a língua suplanta outra, isso acontece habitual- que ainda não haviam experimentado. Essa é a diferença entre
mente porque essa língua tem vantagens q u e a r e c o m e n d a m o escritor q u e é apenas excêntrico ou louco c o autêntico poe-
— e que oferecem não u m a mera diferença, mas um espectro ta. Aquele primeiro pode ter sentimentos q u e são únicos, mas
mais amplo c refinado, não só para o pensamento, mas t a m b é m q u e não p o d e m ser partilhados, e que por isso são inúteis; o
para sentir — preferencialmente à língua mais primitiva. último descobre novas variantes da sensibilidade das quais os
A emoção e o sentimento são, portanto, melhor expressos outros podem se apropriar. E, ao expressá-las, desenvolve e enri-
na língua comum do povo, isto é, na língua c o m u m a todas quece a língua q u e fala.
as classes: a estrutura, o ritmo, o som, o m o d o de falar de u m a Já disse absolutamente o bastante sobre as impalpáveis dife-
língua expressam a personalidade do povo que a utiliza. Q u a n d o renças de sentimento entre um povo e outro, diferenças que
32 T. S. ELIOT
A FUNÇÃO SOCIAL OA POESIA 33

se afirmam e se desenvolvem através de sua s diferentes línguas.


poetas mortos deixam de ter qualquer utilidade para nós, a
Mas as pessoas não sentem o m u n d o apenas d i f e r e n t e m e n t e
menos que tenhamos t a m b é m poetas vivos. Eu poderia até
em diferentes lugares; elas o sentem d i s t i n t a m e n t e em t e m p o s
impor meu primeiro ponto de vista e dizer q u e se um poeta
distintos Na verdade, nossa sensibilidade está c o n s t a n t e m e n t e
a l c a n a um grande público muito r a p i d a m e n t e , isso constitui
se transformando, assim como o m u n d o q u e nos rodeia se trans-
antes uma circunstância suspeita, pois nos leva a desconfiar de
forma; o que sentimos não é o m e s m o q u e sente o chinês ou
que ele não esteja realmente p r o d u z i n d o algo de novo, q u e
o hindu, mas t a m b é m não é o mesmo q u e sentiam nossos ances-
esteja apenas proporcionando às pessoas aquilo a q u e estas já
trais vários séculos atrás. Não é o m e s m o q u e nossos pais; e, estão habituadas e, por conseguinte, o q u e já receberam dos
finalmente, nós próprios já somos t o t a l m e n t e diferentes do q u e poetas de gerações anteriores. Mas se couber a um poeta tal rega-
éramos há um ano. Isso é óbvio; mas o q u e não é tão óbvio é lia, um p e q u e n o público em sua época / i m p o r t a n t e . Haveria
que esta constitui a razão pela qual não p o d e m o s nos dar o sempre ali uma vanguarda de pessoas, apreciadoras de poesia,
luxo de pararmos de escrever poesia. As pessoas mais educadas que são independentes e estão algo adiante de seu t e m p o , ou
têm um certo orgulho dos grandes autores de sua língua, ainda prontas para assimilar mais rapidamente a novidade. Desenvol-
que nunca os tenham lido, da mesma f o r m a c o m o se o r g u l h a m vimento da cultura não significa trazer todo m u n d o para com-
de qualquer outra qualidade q u e distinga seu país: alguns auto- por a linha de frente, o q u e equivale apenas a fazer com q u e
res tornam-se amiúde celebrados o bastante para serem citados todos m a n t e n h a m a marcha: significa a m a n u t e n ç ã o de u m a
ocasionalmente em discursos políticos. Mas a maioria das pes- tal élite, com a massa principal e acomodada de leitores distante
soas não percebe q u e isso não é o bastante; q u e a menos q u e não mais do q u e cerca de u m a geração para trás. As m u d a n ç a s
se continue a produzir grandes autores, e particularmente gran- e os desdobramentos da sensibilidade q u e afloram de início
des poetas, sua língua apodrecerá, sua cultura se deteriorará e em alguns começarão a insinuar-se g r a d u a l m e n t e na língua,
talvez venha a ser absorvida por outra mais poderosa. através de sua influência sobre outros, e mais facilmente sobre
Uma coisa é absolutamente certa: se não dispusermos de autores populares; e com o t e m p o tornam-se bem definidas,
uma literatura viva, nos tornaremos cada vez mais alienados exigindo assim um novo avanço. Ademais, é através dos auto-
da literatura do passado; a menos q u e m a n t e n h a m o s continui- res vivos q u e os mortos permanecem vivos. Um poeta como
Shakespeare influenciou p r o f u n d a m e n t e a língua inglesa, e não
dade, nossa literatura do passado tornar-se-á mais e mais dis-
apenas pela influência que exerceu sobre seus sucessores imedia-
tante de nós até nos parecer tão estranha q u a n t o a literatura
tos. Pois os poetas de maior estatura têm aspectos q u e não se
de um povo estrangeiro. E q u e nossa língua está se transfor-
revelam de imediato; e ao exercerem u m a influência direta
mando; nossa maneira de viver t a m b é m m u d a , sob a pressão
sobre outros poetas séculos mais tarde, continuam a afetar a lín-
das transformações materiais de toda ordem em nosso meio; e
gua viva. Na verdade, se um poeta inglês aprende a usar pala-
a menos que disponhamos daqueles poucos h o m e n s q u e asso-
vras em nosso tempo, deve dedicar-se ao rigoroso estudo daque-
ciam a uma excepcional sensibilidade um excepcional poder
les que melhor as utilizaram em sua época, daqueles q u e , em
sobre as palavras, nossa própria capacidade, não apenas de nos
seus próprios dias, reinventaram a língua.
expressar, mas até mesmo de sentir q u a l q u e r emoção, exceto
as mais grosseiras, se degenerará. Até agora apenas sugeri o ponto extremo até o qual, creio
Pouco importa q u e um poeta haja alcançado u m a a m p l a eu, pode-se dizer que se estende a influência da poesia; e isso
repercussão cm sua própria época. O q u e importa é q u e possa pode ser melhor expresso pela afirmação de que, no decurso
ter sempre existido, pelo menos, um p e q u e n o interesse por ele do tempo, ela produz uma diferença na fala, na sensibilidade,
em cada geração. Entretanto, o que acabo de dizer sugere q u e nas vidas de todos os integrantes de u m a sociedade, de todos
sua importância se relaciona à sua própria época, ou q u e os os membros de uma c o m u n i d a d e , de todo o povo, independen-
34 T. S. ELIOT
A K J N Ç À O SOCIAL Γ)Α POESIA

temente de que leiam e apreciem poesia ou não, ou até mesmo, dar a impressão de que a função da poesia é distinguir entre
na verdade, de q u e saibam ou não os nomes de seus maiores um povo e outro, pois não creio que as culturas dos diversos
poetas. A influência da poesia, na mais distante periferia, é natu- povos da Europa possam florescer isoladas u m a das outras. Não
ralmente muito difusa, muito indireta e muito difícil de ser com- resta dúvida de que houve no passado altas civilizações q u e pro-
provada. É como acompanhar o trajeto de um pássaro ou de duziram grande arte, pensamento e literatura, e q u e se desen-
um avião num céu luminoso: se alguém os percebeu q u a n d o volveram sozinhas. Não posso falar disso com segurança, pois
estavam muito próximos, e os manteve sob a vista q u a n d o se algumas delas podem não ter sido tão isoladas q u a n t o inicial-
afastavam cada vez mais, poderá vê-los a u m a grande distância, mente parece. Mas na história da Europa não tem sido assim.
a uma distância na qual o olho de outra pessoa, de q u e m se Até mesmo a Grécia antiga deveu muito ao Egito, e algo às
tenta chamar a atenção para o fato, será incapaz de percebê-los: suas fronteiras asiáticas; e nas relações dos Estados gregos entre
Assim, se rastrearmos a influência da poesia através dos leitores si, com seus diferentes dialetos e seus diferentes costumes,
mais afetados por ela às pessoas q u e jamais leram nada, a encon- podemos encontrar uma influência recíproca e estímulos análo-
traremos presente em toda parte. Pelo menos a encontraremos gos aos q u e os países europeus exerciam uns sobre os outros.
se a cultura nacional estiver viva e sadia, pois n u m a sociedade Mas a história da literatura européia não indica q u e q u a l q u e r
literatura tenha sido i n d e p e n d e n t e das outras, revelando antes
saudável há uma influência recíproca e u m a interação contí-
um movimento constante de dat e receber, e q u e cada u m a
nuas de uma parte sobre as outras. E isso é o q u e eu e n t e n d o
delas, sucessivamente, vem sendo revitalizada por estímulos
como a função social da poesia em seu mais a m p l o sentido: é
externos. Uma autarquia geral na cultura simplesmente não f u n -
isso o que, proporcionalmente à sua existência e vigor, afeta a
cionará: a esperança de perpetuar a cultura de q u a l q u e r país
fala e a sensibilidade de toda a nação.
repousa na comunicação com as demais. Mas se a separação de
Ninguém deve imaginar q u e estou d i z e n d o ser a língua culturas dentro da unidade européia é um perigo, t a m b é m o
que falamos exclusivamente d e t e r m i n a d a por nossos poetas. A seria uma unificação q u e levasse à uniformidade. A variedade
estrutura da cultura é muito mais complexa do q u e isso. A rigor, é tão essencial q u a n t o a unidade. Por exemplo, há m u i t o a ser
é igualmente verdadeiro que a q u a l i d a d e de nossa poesia dito, para certos propósitos limitados, de u m a língua franca
depende do m o d o como o povo utiliza sua língua: pois um universal como o esperanto ou o inglês básico. Mas s u p o n d o
poeta deve tomar como matéria-prima sua própria língua, da que toda a comunicação entre as nações fosse conduzida por
maneira como de fato ela é falada à volta dele. Se a língua se uma língua artificial, quão imperfeita ela seria! Ou antes, seria
aprimora, ele se beneficiará; se entra em declínio, deverá tirar absolutamente adequada em alguns aspectos, e apresentaria u m a
daí o melhor proveito. Até certo p o n t o , a poesia p o d e preser- completa falha de comunicação em outros. A poesia é uma cons-
var, e mesmo restaurar, a beleza de u m a língua; ela pode e tante advertência a t u d o aquilo q u e só pode ser dito em u m a
deve ajudá-la a se desenvolver, a tornar-se tão sutil e precisa língua, e que é intraduzível. A comunicação espiritual entre
nas mais adversas condições e para os cambiantes propósitos um povo e outro não pode ser levada adiante sem indivíduos
da vida moderna, q u a n t o o foi n u m a época menos complexa. q u e assumam o desafio de aprender pelo menos u m a língua
Mas a poesia, como qualquer outro e l e m e n t o solitário nessa estrangeira tão bem q u a n t o é possível aprender qualquer lín-
misteriosa personalidade social a q u e chamamos nossa 4 'cultu- gua que não a sua própria, conseqüentemente, q u e estejam
r a " , deve permanecer d e p e n d e n t e de muitíssimas circunstân- capacitados em maior ou menor grau, a sentire m outra língua
tão bem q u a n t o na sua. E a compreensão de outro povo por
cias que escapam ao seu controle.
parte de qualquer pessoa necessita, dessa forma, ser complemen-
Isso me conduz a algumas reflexões posteriores de natureza
tada pela compreensão daqueles indivíduos dentre esse povo
mais geral. Minha ênfase nesse ponto tem sido sobre a f u n ç ã o
que se esforçaram para aprender a sua própria língua.
local c nacional da poesia, e isso deve ser explicado. Não desejo
T. S. ELIOT
36 A F U N Ç Ã O SOCIAL DA POESIA 37

Pode ocorrer q u e o estudo da poesia de um o u t r o povo seja


Finalmente, se eu estiver certo de q u e a poesia tem u m a
particularmente instrutivo. Eu disse q u e há qualidades poéticas
" f u n ç ã o social" para o conjunto das pessoas da língua do poeta,
em cada língua q u e só p o d e m ser e n t e n d i d a s por aqueles q u e
estejam elas conscientes ou não de sua existência, conclui-se
dela são nativos. Mas há t a m b é m um outro lado da questão.
que interessa a cada povo da Europa que os demais devam con-
Descobri algumas vezes, ao tentar 1er u m a língua q u e não conhe- tinuar a ter sua poesia. Não posso 1er a poesia norueguesa, mas,
cia muito bem, que não conseguia c o m p r e e n d e r um texto cm se fosse dito que não mais está sendo escrita q u a l q u e r poesia
prosa senão na m e d i d a em q u e o digeria c o n f o r m e os padrões em língua norueguesa, eu sentiria um sobressalto q u e seria
do professor: ou seja, eu estava seguro q u a n t o ao significado muito mais do q u e uma generosa simpatia. Eu o veria como
de cada palavra, dominava a gramática e a sintaxe, e podia um indício de doença que provavelmente estaria d i f u n d i d a por
então decifrar a passagem em inglês. Mas descobri t a m b é m todo o continente, como o início de um declínio significando
algumas vezes q u e um texto poético, q u e eu não conseguia tra- que os povos de toda parte houvessem deixado de estar aptos
duzir, incluindo muitas palavras q u e não me eram familiares a expressar, e conseqüentemente a sentir, as emoções dos seres
e orações q u e eu não conseguia interpretar, c o m u n i c a v a - m e civilizados. Isso, é claro, poderia ocorrer. Muito já se falou em
algo vívido e imediato, q u e era único, distinto de q u a l q u e r toda parte sobre o declínio da crença religiosa; não tanto q u a n t o
coisa em inglês — algo q u e eu não podia transcrever em pala- se observa relativamente ao declínio da sensibilidade religiosa.
vras e, não obstante, sentia q u e c o m p r e e n d e r a . E ao a p r e n d e r O problema da idade moderna não se resume apenas à incapa-
melhor aquela língua, descobri q u e essa impressão não era ilu- cidade de acreditar cm certas coisas em relação a Deus e ao
h o m e m em que nossos antepassados acreditavam, mas à incapa-
sória, ou algo que eu imaginasse existir na poesia, mas algo
cidade de sentir Deus e o h o m e m como eles o fizeram. Uma
que estava de fato ali. De m o d o q u e . em poesia, vez por outra
crença na qual ninguém mais deposita sua fé constitui algo
alguém pode penetrar em outro país, por assim dizer, antes
que, até certo ponto, alguém ainda p o d e entender; mas q u a n d o
que seu passaporte seja expedido ou q u e seu bilhete de viagem
desaparece o sentimento religioso, as palavras com as quais os
seja comprado. homens lutaram para expressá-lo perdem o sentido. É verdade
Toda a questão do relacionamento entre países de línguas que o sentimento religioso varia naturalmente de país para país
diferentes, mas que possuem afinidades culturais, no â m b i t o e de época para época, da mesma forma como ocorre com o sen-
europeu, é por conseguinte aquela à qual somos conduzidos, timento poético; o sentimento varia, mesmo q u a n d o a crença
talvez inesperadamente, pela investigação relativa à função social e a doutrina não se modificam. Mas essa é u m a condição da
da poesia. E claro que não pretendo passar desse p o n t o para vida h u m a n a , e o que me deixa apreensivo é a morte. É igual-
questões estritamente políticas; mas gostaria q u e aqueles q u e mente possível que o sentimento pela poesia, e os sentimentos
se ocupam das questões políticas pudessem mais a m i ú d e cruzar que constituem a matéria-prima da poesia, possam desaparecer
a fronteira que conduz aos problemas q u e acabo de examinar, em toda parte: o q u e talvez pudesse favorecer aquela unificação
pois são estes que conferem ao aspecto espiritual das questões do m u n d o que alguns povos consideram cm si desejável.
o aspecto material de que se ocupa a política. Do lado em q u e
me encontro na fronteira, u m a dessas questões se relaciona com
as coisas vivas que têm suas próprias leis de crescimento, as
quais nem sempre razoáveis, mas que somente devem ser acei-
tas pela razão; coisas que não podem ser caprichosamente plane-
jadas e postas em ordem da mesma forma q u e não p o d e m ser
disciplinados os ventos, as chuvas e as estações.
Α MÚSICA DA POESIA 39

do que um juiz. Seu conhecimento tende mesmo a ser parcial,


pois seus estudos o levarão a concentrar-se em certos autores
em detrimento de outros. Q u a n d o teoriza sobre criação poética,
provavelmente generaliza um tipo de experiência; q u a n d o se
aventura à estética, provavelmente será menos, em vez de mais
competente do que um filósofo; e simplesmente faria m e l h o r
A MÚSICA DA POESIA' se relatasse, para a informação do filósofo, os dados de sua pró-
pria introspecção. O q u e ele escreve sobre poesia, em s u m a ,
deve ser avaliado em relação à poesia q u e escreve. Convém vol-
tarmos ao erudito para averiguar os fatos, e ao crítico mais desin-
teressado para um julgamento imparcial. O crítico, certamente,
deveria ter algo de um erudito, e o erudito algo de um crítico.
Ker, 2 cuja atenção se concentrou sobretudo na literatura do pas-
sado e nos problemas de relacionamento histórico, deve ser
incluído na categoria dos eruditos; mas tinha ele em alto grau
o sentido do valor, o bom gosto, a compreensão dos padrões
O poeta, q u a n d o fala ou escreve sobre poesia, revela quali- críticos e a capacidade de aplicá-los sem o q u e a contribuição
ficações e limitações peculiares: se admitirmos estas, p o d e r e m o s do erudito não pode ser senão indireta.
apreciar melhor aquelas — trata-se de u m a prudência q u e reco- Há um outro aspecto mais particular em q u e diferem o
m e n d o tanto aos próprios poetas q u a n t o aos leitores acerca do conhecimento do erudito e do poeta no que se refere à versifica-
que ambos dizem sobre poesia. Jamais releio q u a l q u e r de ção. Aqui, talvez, eu devesse ser cauteloso ao falar apenas de
meus próprios textos sem um a g u d o desconforto: esquivo-me mim mesmo. Nunca fui capaz de memorizar os nomes de pés
à tarefa, e conseqüentemente posso desconsiderar todas as acu- e versos, ou de guardar o devido respeito às regras consagradas
sações que, nessa ou naquela época, fiz a m i m m e s m o ; posso da escansão. Na escola, gostava muito de recitar H o m e r o ou
amiúde repetir o que já dissera, e posso com freqüência me con- Virgílio à minha própria maneira. Talvez tivesse alguma sus-
tradizer. Mas creio que os textos críticos dos poetas, dos quais peita instintiva de q u e ninguém sabia de fato como o grego
no passado há alguns autênticos exemplos ilustres, devem deveria ser pronunciado, ou o q u e , entretecendo os ritmos gre-
grande parte de seu interesse ao fato de q u e o poeta, no f u n d o gos e latinos, pudesse o ouvido romano apreciar cm Virgílio;
de sua mente, q u a n d o não com o propósito confesso, está sem- talvez fosse meu ócio que instintivamente me protegesse. Mas
certamente, q u a n d o esse ouvido conseguia aplicar as regras da
pre tentando defender o gênero de poesia q u e escreve, ou for-
escansão ao verso inglês, com seus diversos acentos diferentes e
mular o gênero que deseja escrever. Especialmente q u a n d o
valores silábicos variáveis, eu queria saber por q u e um verso era
jovem, e ativamente comprometido na luta pelo gênero de poe-
bom e outro ruim; e isso a escansão não podia me explicar. O
sia que pratica, ele vê a poesia do passado em relação à sua, e
sua gratidão com aqueles poetas mortos com os quais a p r e n d e u ,
bem como sua indiferença por aqueles cujos objetivos são estra- 2. Ker. William Patton. Escritor inglês (Glasgow, 1853 Mac u g n a ga, Alpes.
nhos aos seus, pode ser exagerada. Ele é antes um advogado 1925). Professor de história e literatura inglesas em Cardiff (1883), de literatura
inglesa na Universidade de Londres (1889-1922) c de poesia em Oxford (1922);
suas principais obras versam sobre literatura medieval, como, entre outras. Epic
1. Terreira conferência a memória de W. P. Kcr, pronunciada na Universidade de and romance (1897), The dark ager (1904), Essays on medieval literature (1903) e
Glasgow cm 1942 e publicada pela Glasgow University Press no m e s m o ano. ( Ν . Α . ) The art of poetry (1923). (N.T.)
T. S. ELIOT
48 A MÚSICA DA POESIA 49

único meio de aprender a manipular q u a l q u e r espécie de verso


c Surrey 4 é assunto para o erudito especializado em história.
inglês me pareceu ser o da assimilação e da imitação, das quais
O grande gramático O t t o Jespersen 5 sustentou q u e a estrutura
resulta um envolvimento tal com a obra de um d e t e r m i n a d o
da gramática inglesa tem sido mal interpretada em nossas ten-
poeta que se torna possível produzir um derivado reconhecível.
tativas de torná-la a d e q u a d a às categorias do latim, c o m o no
Isso não significa que eu considere o estudo analítico da métrica,
das formas abstratas q u e soam tão extraordinariamente distin- suposto " s u b j u n t i v o " . Na história da versificação não se cogita
tas quando manuseadas por diferentes poetas, c o m o total perda da questão relativa ao fato de que os poetas h a j a m e n t e n d i d o
de tempo. O que ocorre apenas é q u e o estudo da a n a t o m i a mal os ritmos da língua ao imitar modelos estrangeiros; deve-
não lhes pode ensinar o q u e é preciso para fazer u m a galinha mos aceitar as práticas dos grandes poetas do passado por serem
botar ovos. Desaconselho qualquer outro c a m i n h o para come- práticas com relação às quais nosso ouvido foi treinado e deve
çar o estudo dos versos grego e latino q u e não seja o da a j u d a ser treinado. Acredito que um certo n ú m e r o de influências vin-
dessas regras de escansão q u e foram estabelecidas pelos gramáti- das de fora haja enriquecido o espectro e a variedade do verso
cos com base na maior parte da poèsia q u e se escreveu até agora; inglês. Alguns eruditos clássicos sustentaram o conceito — este
mas, se pudéssemos reviver essas línguas a p o n t o de nos tornar- é um assunto q u e transcende m i n h a competência — de q u e a
mos capazes de falá-las e ouvi-las c o m o o fizeram os autores m e d i d a original da poesia latina foi mais rítmica do q u e silá-
que nelas se exprimiram, poderíamos encarar tais regras com bica, de q u e foi eclipsada pela influência de u m a língua m u i t o
indiferença. Aprendemos as línguas mortas por meio de um diferente — o grego — e de que regrediu a algo próximo de
método artificial, e nossos métodos de ensino t ê m sido aplica- sua forma primitiva em poemas como o Pervigilium Venens
dos a alunos que, em sua maioria, têm apenas um modesto (Vigília de Vénus) e os primeiros hinos cristãos. Nesse caso,
dom para as línguas. Mesmo ao abordarmos a poesia de nossa não podemos deixar de suspeitar q u e , para o público cultivado
língua, podemos descobrir a classificação de metros, de versos da época de Virgílio, parte do prazer da poesia provém da pre-
com diferentes números de sílabas e acentos cm lugares distin- sença, na poesia, de dois esquemas métricos n u m a espécie de
tos, úteis n u m estágio preliminar, como o m a p a simplificado contraponto, ainda q u e esse público não fosse necessariamente
de um complexo território; mas é apenas o estudo, não da poe- capaz de analisar a experiência. De m o d o semelhante, é possí-
sia, mas de poemas, que será capaz de educar nosso ouvido. vel que a beleza de certa poesia inglesa seja devida à presença
Não é a partir das regras, ou pela fria imitação do estilo, q u e
de mais de u m a estrutura métrica. São em regra m u i t o frias
aprendemos a escrever: aprendemos graças à imitação, é ver-
as tentativas deliberadas de estruturar metros ingleses com
dade, mas por meio de u m a imitação mais p r o f u n d a do q u e
base em modelos latinos. Entre os q u e obtiveram maior êxito
aquela que se adquire pela análise do estilo. Q u a n d o imitamos
incluem-se alguns exercícios de C a m p i o n , 6 em seu breve mas
Shelley, não foi tanto por um desejo de escrever como ele o
pouquíssimo lido tratado de métrica; entre os mais notáveis
fazia, mas porque nosso eu adolescente estava s u b j u g a d o por
malogros, em m i n h a opinião, estão as experiências de Robert
Shelley, e isso tornou o estilo de Shelley, naquela época, a
única forma de que dispúnhamos para nos expressar.
4. Surrey, Henry Howard (conde de). Político e poeta inglês (c. 1519 — Londres,
Não há dúvida de q u e a prática de versificação inglesa 1547). autor de Songs and sonnets (1557), publicados com os poemas de T h o m a s
Wyatt. A ele se deve a forma do soneto inglês. ( N . T . )
tem sido afetada pela consciência das regras da métrica: a
5. Jespersen (Jens O i t o Harry). Lingüista d i n a m a r q u ê s (Randers, 1860 Copenha-
avaliação da influência do latim sobre os inovadores W y a t t 3 gue. 1943), autor de obras de lingüística geral, como Language, its nature, develop-
ment and origin (1922). (N.T.)
y Wyatt. Sir Thomas. Poeta inglês (Allington Castle. K e n t . c. 1303 - S h e r b o r n e , 6. C a m p i o n . Thomas. Poeta inglês (Londres, 1567 — id. 1619), talvez o mais
Dorset, 1542), responsável pela introdução do soneto na literatura inglesa. Seus melodioso dos poetas elisabetanos. Figura em quase todas as antologias inglesas gra-
poemas foram reunidos na To t tei's miscellany (1557). ( N . T . ) ças aos poemas reunidos em A book of Ayres (1601). ( N . T . )
42 T. S. ELIOT
A MÚSICA DA POESIA 43

Bridges 7 — eu trocaria todas as sua s engenhosas invenções por Pode parecer estranho que, q u a n d o admito estar escrevendo
seus primeiros versos líricos, mais tradicionais. Mas q u a n d o sobre a " m ú s i c a " da poesia, p o n h a eu tanta ênfase na palestra.
um poeta assimila tão intensamente a poesia latina a p o n t o de Mas gostaria de lembrar-lhes, antes de mais nada, q u e a música
essa absorção estruturar-lhe o verso sem q u a l q u e r artifício deli- da poesia não é algo que exista à margem do significado. Do
berado — como no caso de Milton e em alguns poemas de contrário, poderíamos ter poesia de grande beleza musical q u e
Tennyson —, o resultado pode ser incluído entre as grandes não fizesse sentido, e jamais me deparei com tal poesia. As
conquistas da versificação inglesa. aparentes exceções revelam apenas u m a diferença de grau: há
O que suponho possuirmos na poesia inglesa é u m a espé- poemas nos quais somos inebriados pela música e a d m i t i m o s
cie de amálgama de sistemas de diversas fontes ( e m b o r a não o sentido como correto, assim como há poemas nos quais pres-
me agrade usar a palavra " s i s t e m a " , pois ela implica antes tamos atenção ao sentido e somos envolvidos pela música sem
uma sugestão de invenção consciente do q u e de crescimento q u e disso nos apercebamos. Consideremos um exemplo aparen-
espontâneo): um amálgama semelhante ao c a l d e a m e n t o de t e m e n t e extremo: o do verso absurdo de Edward Lear. 8 Sua
raças, e de fato parcialmente devido a origens raciais. Os rit- falta de sentido não implica vacuidade de sentido: é u m a paró-
mos dos anglo-saxões, celtas, franceses n o r m a n d o s , ingleses dia do sentido, e esse é o seu sentido. The jumblies é um poema
medievais e escoceses deixaram todos a sua marca na poesia de aventuras, e de nostalgia pelo romance de viagem ao estran-
inglesa, juntamente com os ritmos latinos e, em diversos perío- geiro e de exploração; The yong-'>ongy bo e The donq with a
luminous nose são poemas de paixão não correspondida — na
dos, os franceses, italianos e espanhóis. C o m o os seres h u m a -
verdade blues. Apreciamos a música, que é de alta q u a l i d a d e ,
nos constituem uma raça compósita, e diferentes tendências
c o sentimento de irresponsabilidade para com o sentido. Ou
podem ser dominantes em diferentes indivíduos, inclusive cm
tomemos um poema de outro tipo, o Blue closet, de William
membros de uma mesma família, do m e s m o m o d o q u e um
Morris." Trata-se de um delicioso poema, embora eu não possa
ou outro elemento no composto poético p o d e ser mais conge-
explicar o que significa, e duvido q u e o autor t a m b é m o possa.
nial para um ou outro poeta ou para um ou o u t r o período. A
Há um efeito algo semelhante ao de u m a runa ou de um sorti-
espécie de poesia que criamos é d e t e r m i n a d a , de t e m p o s em légio, mas as runas e os sortilégios têm fórmulas práticas desti-
tempos, pela influência de u m a ou outra literatura c o n t e m p o - nadas a produzir resultados definidos, como tirar u m a vaca de
rânea em língua estrangeira, ou por circunstâncias q u e t o r n a m um atoleiro. Mas sua intenção óbvia (e creio q u e o autor a rea-
um período de nosso passado mais simpático do q u e o u t r o , lizou) é produzir o efeito de um sonho. Não é necessário, para
ou pela ênfase que prevalece na educação. Mas há u m a lei da apreciar o poema, saber o que o sonho significa; mas os seres
natureza mais poderosa do q u e quaisquer tendências variadas, humanos cultivam uma crença inabalável de q u e os sonhos sig-
ou influências vindas de fora ou do passado: a lei é de q u e a nificam alguma coisa: era costume acreditar — e muitos ainda
poesia não deve se afastar demasiado da língua c o m u m de acreditam — que os sonhos revelem os segredos do f u t u r o ; a
cada dia que usamos e ouvimos. Seja a poesia rítmica ou silá-
bica, rimada ou não rimada, formal ou livre, ela não p o d e dar- 8. Lear. Edward. Poeta, artista plástico e humorista inglês (Londres, 1812 — San
se ao luxo de perder o contato com a linguagem m u t a n t e da Remo, Itália, 1888), autor das ilustrações de boa parte das obras de Tennyson.
conversação ordinária. Deixou, entre outros, Views of Rome and its environs (1841), A book of nonsense
(1846), Nonsense songs, stones, botany and alphabets (1871) e Teapots and quails
(ed. pósi., 1953). ( N . T . )

L π Λ ' *Cymour CrítIto c


inglês ( W a l m e r . ilha d e T h a n e t , 1844 9. Morris, William Robert Poeta, pintor e historiador de arte inglês (Elm House,
Sla SC ,ns ,ra n a rosódia Walthampstow, Essex. 1834 — Londres. 1896). Escreveu poemas narrativos de inspi-
//o,, Çí?
(1876) C The U S t a m e n t
P beau
P « . m o o atestam The
rarão pos-romântica e medievalista, como The life and death of Jason (1867) e The
S Γ η o s t 'u m a Λ °í ' y <> Ε o responsável pela edi-
P dos poemas d e Gerard Manley Hopkins (NT) earthly paradise (1868-1870). Deixou belas traduções da ilíada e da Odisseia. ( N . T . )
42 T. S. ELIOT
A MÚSICA DA POESIA 43

fé ortodoxa moderna é de q u e eles desvelem os segredos —


como de alguma experiência particular dele m e s m o . A interpre-
ou pelo menos os mais horrendos segredos — do passado. E
tação do leitor pode diferir e ser igualmente válida. E pode até
um lugar-comum observar q u e o significado de um p o e m a
ser melhor. Pode existir n u m poema muito mais do q u e aquilo
escapa à possibilidade de parafraseá-lo. Não é a b s o l u t a m e n t e
que o autor ali julgava existir. As diferentes interpretações
tão comum salientar que o significado de um p o e m a p o d e ser
p o d e m todas constituir formulações parciais de u m a coisa; as
algo mais amplo do que conscientemente o pretendeu seu autor,
ambigüidades podem ser devidas ao fato de q u e um p o e m a sig-
e algo distante de suas origens. Um dos mais obscuros poetas
nifica mais, e não menos, do q u e a língua ordinária é capaz
modernos foi o escritor francês S t é p h a n e Mallarmé, cuja lingua-
de comunicar.
gem os próprios franceses dizem ser tão peculiar q u e só p o d e
Assim, embora a poesia tente transmitir algo além do q u e
ser entendida pelos estrangeiros. O recém-falecido Roger Fry 10
pode ser transmitido pelos ritmos da prosa, ela permanece, não
e seu amigo Charles Mauron publicaram u m a tradução inglesa
obstante, como u m a pessoa falando com outra; e isso é igual-
com notas destinadas a esclarecer os significados: q u a n d o ouço
mente verdadeiro se você a canta, pois cantar é outro m o d o
dizer que um soneto difícil foi inspirado pela visão de u m a pin-
de falar. A relação íntima entre a poesia e a conversação não
tura sobre o teto refletido a partir do t a m p o polido de u m a
constitui um assunto sobre o qual possamos formular leis exa-
mesa, ou pela visão da luz refletida a partir da e s p u m a de um
tas. Cada revolução na poesia pode tornar-se, e às vezes assim
copo de cerveja, só posso dizer q u e se trata possivelmente de
se proclama, um retorno à fala c o m u m . Essa foi a revolução
uma embriologia precisa, mas não de um significado. Se nos
que Wordsworth anunciou em seus prefácios, e ele estava certo;
sensibilizarmos com um poema, isso significa algo, talvez impor-
mas a mesma revolução foi conduzida um século antes por
tante, para nós; caso contrário, será então, e n q u a n t o poesia,
O l d h a m , 1 1 Waller, 1 2 D e n h a m 1 5 e Dryden; e a mesma revolução
sem sentido. Podemos nos excitar ao ouvir a declamação de
deveria ocorrer de novo cerca de um século depois. Os seguido-
um poema n u m a língua da qual não c o m p r e e n d e m o s u m a só
res de uma revolução desenvolvem a nova linguagem poética
palavra; mas se nos disserem q u e o p o e m a é e s t a p a f ú r d i o e não
em uma ou outra direção, polindo-a e aperfeiçoando-a; entre-
tem qualquer significado, nos consideraremos logrados — não se
tanto, a língua falada vai m u d a n d o e o idioma poético envelhe-
trataria de n e n h u m poema, mas simplesmente u m a imitação
cendo. Talvez não consigamos conceber q u ã o natural deve ter
de música instrumental. Se, já q u e estamos conscientes, apenas
sido a linguagem de Dryden aos mais sensíveis de seus contem-
uma parte do significado puder ser transmitida por u m a pará-
porâneos. N e n h u m a poesia, é claro, constitui sempre a mesma
frase, é porque o poeta está às voltas com as fronteiras da cons-
linguagem q u e o poeta fala e ouve, mas ela precisa estar de tal
ciência, além das quais as palavras d e f i n h a m , e m b o r a os signifi-
m o d o relacionada à linguagem de sua época q u e o ouvinte ou
cados continuem a existir. Um poema p o d e dar a impressão
leitor possa dizer "assim e que eu falaria se pudesse falar em
de significar coisas muito distintas a diferentes leitores, e todos
verso". Essa é a razão pela qual a melhor poesia contemporâ-
esses significados podem ser diferentes daquilo q u e o autor ima-
ginou expressar. Por exemplo, o autor p o d e ter descrito a l g u m a
11. O l d h a m , J o h n . Satirista inglês (Shipton Moyne. perto de T e t b u r y , Gloucester-
experiência pessoal peculiar q u e considerou a b s o l u t a m e n t e dis- shire, 1653 - Holme-Pierrcpoint, perto de N o t t i n g h a m , 1683), cuja principal
sociada de qualquer coisa exterior; para o leitor, todavia, o obra, Satires on the Jesuits (1681). foi m u i t o elogiada por Dryden.
poema pode tornar-se a expressão de u m a situação geral, bem 12. Waller, E d m u n d . Poeta inglês (Coleshill, 1606 — Hall Barn, 1687). Primo
de Cromwell, foi m e m b r o do Parlamento, mas depois passou para o lado de Car-
los 1. Deixou um Panegyrical (1655), o n d e celebra os feitos do primo. Sua obra
anuncia o classicismo inglês. ( N . T . )

doTàZíi^r
Pais5siaRr[onli0t m 0 r C dc a n c mg,ês (Londrcs 1866
r · - 1934). 13 D e n h a m , Sir J o h n . Poeta e arquiteto inglês ( D u b l i n , 1615 — Londres, 1669),
gou C é 2 a n n c na Ing,atcrra c d c f c n d c u a artc
autor do poema didático-descritivo Cooper s hill, publicado em 1642. ( N . T . )
T. S. ELIOT 43
46 42 A MÚSICA DA POESIA

nca podc nos dar um sentimento de excitação e um sentido texto implica, poder-sc-ia dizer que n e n h u m poeta será capaz
de plenitude distinto de qualquer outro s e n t i m e n t o provocado de escrever um poema longo a menos q u e seja um mestre do
até mesmo por uma poesia verdadeiramente maior de u m a prosaico. 14
época anterior. O que importa, em suma, é o c o n j u n t o poemático; e se
A música da poesia deve ser, portanto, a música latente esse conjunto não precisa ser — e a m i ú d e não deveria sê-lo —
na fala comum de sua época. E isso significa t a m b é m q u e ela totalmente melodioso, deduz-se q u e o poema não é feito ape-
deve estar latente na fala c o m u m da região do poeta. N ã o seria nas de "palavras belas". Duvido q u e , do p o n t o de vista estrita-
meu presente propósito censurar a u b i q ü i d a d e do inglês padro- mente fonetico, uma palavra seja mais ou menos bela do q u e
nizado ou daquele que se fala na BBC. Sc todos viermos a falar outra dentro de sua própria língua, pois a questão relativa à
do mesmo modo, não estaremos m u i t o longe do p o n t o em q u e possibilidade de certas línguas não serem tão belas q u a n t o
passaremos a escrever da mesma maneira; mas até chegar esse outras é, a rigor, um outro problema. As palavras feias são aque-
tempo — e espero q u e ele chegue o mais tarde possível — é las que não se adaptam à companhia em q u e elas próprias se
tarefa do poeta utilizar a língua falada à sua volta, aquela com encontram; há palavras q u e são feias devido à sua crueza ou
a qual está mais familiarizado. Lembrarei sempre a impressão ao seu anacronismo; há palavras q u e t a m b é m o são devido à
que me causou W. B. Yeats ao 1er seus poemas em voz alta. sua estranheza ou rudeza (p. ex. televisão); mas não creio q u e
Ouvi-lo 1er suas próprias obras foi o m e s m o q u e reconhecer n e n h u m a palavra de uso corrente em sua própria língua seja
quanto o acento irlandês é necessário para apreciarmos as bele- bela ou feia. A música de u m a palavra está, por assim dizer,
zas da poesia irlandesa: ouvir Yeats lendo W illiam Blake foi num ponto de intersecção: ela emerge de sua relação, primeiro,
uma experiência de um gênero diferente e q u e me causou mais com as palavras que imediatamente a antecedem e a ela se
surpresa do que satisfação. Não desejamos, é claro, q u e o poeta seguem, e indefinidamente com o restante do contexto; e de
simplesmente reproduza com exatidão sua linguagem coloquial, outra relação, a de seu imediato significado nesse contexto com
ou a de sua família, de seus amigos e de seu distrito particular, todos os demais significados q u e haja possuído em outros con-
mas o que se encontra aí é a matéria a partir da qual deverá textos, com sua maior ou menor riqueza de associação. N e m
ser feita sua poesia. Como o escultor, ele deve manter-se fiel à todas as palavras, é óbvio, são igualmente ricas e bem aparenta-
matéria em que trabalha; é a partir dos sons q u e percebe q u e das: é parte da tarefa do poeta dispor as mais ricas entre as
o poeta deve constituir sua melodia e sua h a r m o n i a . mais pobres, nos lugares corretos, e não podemos nos permitir
sobrecarregar demasiadamente um poema com aquelas primei-
Seria um erro, entretanto, admitir q u e toda poesia deva
ras, pois apenas em certos m o m e n t o s é q u e a palavra pode ser
ser melodiosa, ou que a melodia seja mais q u e um dos c o m p o -
disposta para insinuar a história global de u m a língua e de
nentes da música das palavras. Há um tipo de poesia q u e se
uma civilização. Trata-se de uma " a l u s i v i d a d e " q u e não corres-
destina a ser cantada; a maior parte da poesia dos t e m p o s ponde à maneira ou à excentricidade de um tipo peculiar de
modernos destina-se a ser falada — e há muitas outras coisas a poesia; mas de u m a alusividade q u e está na natureza das pala-
serem ditas além do zumbido de incontáveis abelhas ou do arru- vras, e que é t a m b é m a preocupação de cada tipo de poeta.
lho dos pombos nos olmos imemoriais. A dissonância, e m e s m o Meu propósito aqui é insistir em q u e um " p o e m a musical" é
a cacofonia, têm seu lugar: assim, n u m p o e m a de certa exten- um poema q u e tem um modelo musical de som e um modelo
são, deve haver transições entre passagens de maior ou m e n o r
intensidade, a fim de que se o b t e n h a um ritmo de emoção flu-
14 Trata-se da doutrina c o m p l e m e n t a r à do verso ou da passagem tidos como " p e -
tuante essencial à estrutura musical do c o n j u n t o ; e as passagens dra de toque por Matthew Arnold: esse· teste para aferir a grandeza de um poeta
de menor intensidade serão, com relação ao nível sobre o qual é o m o d o c o m o ele escreve suas passagens menos intensas, ainda q u e vitais do
p o n t o de vista estrutural. (N A.)
todo o poema opera, prosaicas — ou seja, no sentido q u e o con-
T. S. ELIOT
48 A MÚSICA DA POESIA 49

musical de significados secundários das palavras q u e o c o m p õ e m ,


a distância que dela nos separa — como nos foi d e m o n s t r a d o
e também cm que esses dois modelos sào indissolúveis e únicos.
mais claramente cm u m a daquelas peças, das quais Hamlet é
E se alguém objetar que se trata apenas do som puro, divorciado a principal, que podem ser a d e q u a d a m e n t e produzidas com
do sentido, ao qual o adjetivo "musical' p o d e ser corretamente roupagem moderna. A época de Otway, 1 6 o verso branco dra-
aplicado, só me cabe repetir o q u e já disse antes, ou seja, q u e mático torna-se artificial e, na melhor das hipóteses, reminis-
o som de um poema é tanto u m a abstração do p o e m a q u a n t o cente; e q u a n d o chegamos às peças em verso dos poetas do
do sentido. século XIX, das quais a maior é provavelmente The Cenci}1 é
A história do verso branco ilustra dois pontos interessantes difícil guardar qualquer ilusão de realidade. Quase todos os
e relacionados: a dependência da linguagem e a s u r p r e e n d e n t e poetas do século passado puseram à prova sua habilidade ao
diferença, embora metricamente a forma seja a mesma entre o escrever peças em verso. Essas peças, que algumas pessoas leram
verso branco dramático e o verso branco utilizado com propósi- mais de uma vez, são respeitosamente consideradas alta poesia,
tos épicos, filosóficos, reflexivos e idílicos. A d e p e n d ê n c i a do e sua insipidez é habitualmente atribuída ao fato de q u e os
verso em relação à linguagem é m u i t o mais direta na poesia autores, embora grandes poetas, eram amadores em teatro.
dramática do que em qualquer outra. Na maioria dos gêneros Mas mesmo q u e os poetas houvessem tido maiores dons para
poéticos, a necessidade que tem ela de continuar para nós idên- o teatro, ou houvessem mourejado para adquirir alguma des-
tica à linguagem contemporânea está reduzida pela latitude treza, suas peças poderiam ter sido ineficazes, a menos q u e seu
que leva em conta a idiossincrasia pessoal: um p o e m a de Gerard talento teatral e sua experiência lhes demonstrassem a necessi-
Hopkins, 1 ^ por exemplo, pode soar razoavelmente distante do dade de um gênero distinto de versificação. Não é primordial-
modo pelo qual eu e vocês nos expressamos — ou m e l h o r , mente a falta de intriga, ou a falta de ação e de suspense, ou
do modo como nossos pais e avós se expressaram; mas H o p k i n s a inexistência de t u d o o q u e chamamos de 4 ' t e a t r o " , q u e torna
dá a impressão de que sua poesia tem a necessária fidelidade à tais peças tão apáticas: é que, acima de t u d o , seu ritmo de lin-
sua maneira de pensar e conversar consigo m e s m o . Mas no verso guagem constitui algo q u e não podemos associar a n e n h u m ser
dramático o poeta está falando em n o m e de u m a personagem h u m a n o , exceto a um declamador de poesia.
após outra, por intermédio de u m a c o m p a n h i a de atores ensaia- Mesmo sob a poderosa manipulação de Dryden, o verso
dos por um diretor, e de diferentes atores em épocas diferentes: branco dramático revela u m a grave deterioração. Há esplêndidas
seu idioma deve abranger todas as vozes, mas precisa estar pre- passagens em All for love}8 todavia, as personagens de Dryden
sente num nível mais p r o f u n d o do q u e o necessário q u a n d o o falam às vezes mais naturalmente nas peças heróicas q u e ele
poeta fala somente para si mesmo. Alguns dos últimos versos escreveu em dísticos rimados do que o fazem naquilo que pode-
de Shakespeare são muito elaborados c peculiares; no e n t a n t o , ria sugerir a mais espontànea das formas de verso branco,
a língua subsiste, não a de u m a pessoa, mas a de um universo embora com menos naturalidade do que as personagens de Cor-
de pessoas. Ela toma por base a língua de três séculos atrás, neille e Racine em francês. As causas dessa ascensão e queda
mas, quando a ouvimos bem interpretada, p o d e m o s esquecer
16. Otway, Thomas D r a m a t u r g o inglês (Trotten, perro de Midhurst, Sussex. 1652
Londres, 1685), último descendente da dramaturgia elisabetana e já discípulo
do teatro clássico francês. Sua obra-prima é Venice preservi(1682), de inequívoca
15. Hopkins, Gerard Manley. Poeta inglês (Stratford. Essex, 1844 - D u b l i n . 1889). influência shakespeariana. ( N . T . )
Membro da Companhia de Jesus, nada publicou em vida. Seus Poemi apareceram
17 Drama em cinco atos (1819) do poeta romàntico ingles Percy Bysshe Shelley
apenas em 1918 e pouco tem em c o m u m com t u d o o q u e se escreveu na poesia
(Field Place, perto de Horsham, Sussex, 1792 — La Spezia, 1882). ( N . T . )
vitoriana de seu tempo: sào intelectualistas e gravemente trágicos, distinguindo-se
pelo ineditismo métrico do sprung rhythm, q u e nos remete à poesia metafísica de 18 Escrita cm 1677. é talvez a melhor das peças de J o h n Dryden (Aldwinkle, Nor-
Donne e outros auiores ingleses do século XVII. H o p k i n s influenciou toda a gera- thamptonshire, 1631 — Londres. 1700), na qual o autor explora o tema de Antô-
ção de Eliot. (N.T.) nio e Cleópatra, de Shakespeare. ( N . T . )
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T. S. ELIOT 42 A MÚSICA DA POESIA

de qualquer-forma de arte são sempre complexas, e p o d e m o s ção com a língua falada corrente. Isso conduz à minha próxima
registrar diversos fatores q u e para isso contribuíram, ao m e s m o questão, ou seja, a de que a tarefa do poeta diferirá não ape-
tempo em que parece subsistir alguma causa mais p r o f u n d a inca- nas segundo sua constituição pessoal, mas t a m b é m de acordo
paz de ser formulada: eu não anteciparia n e n h u m a das razões com o período ao qual ele pertence. Em certos períodos, essa
pelas quais a prosa acabou por suplantar o verso no teatro. Mas tarefa consiste em explorar as possibilidades musicais de u m a
estou certo de que uma razão pela qual o verso branco não convenção estabelecida na relação entre o idioma do verso e
pode agora ser utilizado no drama é q u e muita poesia não dra- da fala; em outros períodos, a tarefa se destina a a c o m p a n h a r
mática, e de alta qualidade, tem sido escrita em verso branco as mudanças na linguagem coloquial, que são f u n d a m e n t a l -
nestes últimos três séculos. Nossa m e n t e está saturada dessas m e n t e mudanças no pensamento e na sensibilidade. Esse movi-
obras não dramáticas nas quais existe formalmente a mesma espé- m e n t o (íclico exerce t a m b é m uma enorme influência sobre
cie de verso. Se pudermos conceber, com um vôo de imaginação, nosso julgamento crítico. N u m a época como a nossa, um revigo-
Milton precedendo Shakespeare, este teria tido de descobrir ramento da dicção poética semelhante àquele q u e foi instau-
um meio bastante diferente daquele q u e utilizou e aperfeiçoou. rado por Wordsworth (quer tenha sido ele satisfatoriamente rea-
Milton lidou com o verso branco de u m a maneira c o m o nin- lizado ou não) exigiu q u e nos mantivéssemos predispostos, em
guém jamais o trabalhou ou jamais o trabalhará; e, assim nossos julgamentos sobre o passado, a exagerar a importância
dos inovadores à custa da reputação dos q u e a f o m e n t a v a m .
fazendo, realizou mais do que q u a l q u e r o u t r o ou q u a l q u e r
outra coisa por torná-lo impossível para o d r a m a , e m b o r a pos- Já falei o bastante, suponho, para deixar claro q u e não acre-
samos também acreditar q u e o verso branco dramático haja esgo- dito que a tarefa do poeta seja sempre e primordialmente a
tado seus recursos, e não tenha n e n h u m f u t u r o em q u a l q u e r de promover u m a revolução na linguagem. Não seria desejável,
caso. A rigor, Milton por pouco não tornou o verso branco mesmo q u e isso fosse possível, viver n u m estado de perpétua
impraticável para qualquer propósito por duas gerações. Foram revolução: o anseio pela p e r m a n e n t e novidade da dicção e da
os precursores de Wordsworth — T h o m p s o n , 1 ' Y o u n g , 2 0 Cow- métrica é tão pernicioso q u a n t o u m a obstinada aderência à lín-
per — que empobreceram os primeiros esforços para resgatá-lo gua de nossos avós. Há tempos em q u e se explora e tempos
em que se cultiva o território conquistado. O poeta q u e mais
da degradação a q u e o reduziram no século XIX os imitadores
fez pela língua inglesa foi Shakespeare; e ele e m p r e e n d e u , cm
de Milton. Há muito e variado verso branco no século XIX: o
sua breve existência, a tarefa de dois poetas. Posso apenas dizer
mais próximo da linguagem coloquial é o de Browning, con-
aqui, em suma, que o desenvolvimento do verso shakespeariano
quanto, significativamente, mais em seus monólogos do q u e
pode ser dividido, grosso modo, em dois períodos. D u r a n t e o
em suas peças.
primeiro ele foi lentamente a d a p t a n d o sua forma à linguagem
Tal generalização não implica n e n h u m j u l g a m e n t o q u a n t o
coloquial: assim, à época cm que escreveu Antônio e Cleopatra
à relativa estatura dos poetas. Simplesmente adverte para a pro-
concebeu um meio-termo graças ao qual t u d o o q u e houvesse
f u n d a diferença entre o gênero dramático e as demais espécies
a ser dito por qualquer personagem flramática, quer elevado
de verso: uma diferença na música, que é u m a diferença na tela- ou rasteiro, quer "poético' ou prosaico ', pudesse ser dito
io. T h o m p s o n , Francis. Escritor inglês (Preston. 1839 - Londres. 1907). Além
com beleza e naturalidade. Após atingir esse ponto, começou
de crítico (Essay on Shelley. 1909), tornou-se conhecido c o m o poeta lírico e de ins-
a elaborar. O primeiro período do poeta que principiou com
piração mistico-religiosa, como o atesta The hound of heaven (1893). ( N . T . )
Vénus e Adônis, mas que já havia, em Love's labour s lost,
20. Y o u n g , Edward Poeta inglês (Winchester, Hants, 1683 — W e l w y n . O x f o r d -
começado a perceber o que havia por ser feito vai do artifi-
shire, 1763). Além de d r a m a t u r g o , deixou o longo poema Nights (1742-1745),
cialismo à simplicidade, da rigidez à flexibilidade. As peças
u m a meditação gravemente melancólica sobre a morte, a noite e os t ú m u l o s , de posteriores caminham da simplicidade para a elaboração. O
imensa influência na Europa pré-romântica. ( Ν . Ί )
A MÚSICA DA POESIA 53
T. S. ELIOT
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Shakespeare dos últimos t e m p o s está o c u p a d o com outras tare- q u e a poesia m o d e r n a aboliu formas como essas. T e n h o perce-
fas do poeta — a da experimentação para ver q u ã o e l a b o r a d a bido indícios de q u e elas voltaram a ser utilizadas; e, na ver-
e complexa poderia se tornar a música sem p e r d e r i n t e i r a m e n t e d a d e , creio q u e a tendência ao retorno a tais modelos, inclusive
o contato com a linguagem coloquial, e sem q u e suas p e r s o n a - aos mais complexos, é p e r m a n e n t e , assim como p e r m a n e n t e é
gens deixassem de se c o m p o r t a r c o m o seres h u m a n o s . Ε o poeta a necessidade de um refrão ou de um coro n u m a canção p o p u -
de Cy m beline, The Winters tale, Pericles e A tempestade. lar. Algumas formas são mais apropriadas a certas línguas do
Milton é o mestre s u p r e m o d e n t r e todos aqueles q u e se envere- que a outras, e q u a l q u e r forma pode ser mais a d e q u a d a a deter-
d a m exclusivamente nessa direção. P o d e m o s s u p o r q u e Milton, minados períodos do q u e a outros. Em outro estágio, a estrofe
ao explorar a música orquestral da língua, deixa às vezes por constitui u m a formalização correta e natural da linguagem n u m
completo de falar um idioma social; p o d e m o s i m a g i n a r q u e modelo. Mas a estrofe — e q u a n t o mais elaborada ela for,
Wordsworth, ao tentar redimir o i d i o m a social, ultrapassou às q u a n t o mais regras forem observadas em sua correta estrutura-
vezes o limite e tornou-se prosaico. Mas é q u a s e s e m p r e ver- ção, tanto mais s e g u r a m e n t e isso acontece —, t e n d e a tornar-
d a d e q u e apenas ao irmos m u i t o longe p o d e r e m o s descobrir se regular para o idioma no m o m e n t o de sua perfeição. Ela
q u ã o longe ainda p o d e m o s ir, e m b o r a se t e n h a q u e ser de f a t o perde r a p i d a m e n t e o contato com a linguagem coloquial flu-
um grande poeta para q u e tais aventuras se j u s t i f i q u e m . t u a n t e , sendo d o m i n a d a pela perspectiva mental de u m a gera-
Até aqui falei apenas da versificação, e n ã o da e s t r u t u r a ção passada; cai em descrédito q u a n d o utilizada de forma solene
poética; é t e m p o de advertir q u e a música do verso n ã o consti- por escritores q u e , não t e n d o em si n e n h u m instinto para desen-
tui um assunto passível de ser t r a t a d o verso a verso, mas u m a volver u m a f o r m a , a ela recorrem para verter seus s e n t i m e n t o s
questão q u e se refere à totalidade do p o e m a . A p e n a s com isso liquefeitos n u m m o l d e pré-fabricado n o qual p r e t e n d e m e m
em m e n t e é q u e p o d e m o s abordar a controversa q u e s t ã o do vão introduzi-los. O q u e admiramos n u m soneto perfeito não
modelo formal e do verso livre. Nas peças de Shakespeare p o d e - é tanto a habilidade do autor em adaptar-se ao m o d e l o , mas a
se perceber um esboço musical em cenas isoladas, esboço q u e perícia e a força através das quais h a r m o n i z a tal m o d e l o àquilo
se manifesta como um todo em suas peças mais acabadas. E que p r e t e n d e dizer. Sem essa adequação, q u e d e p e n d e t a n t o
uma música t a n t o de imagens q u a n t o de sons: em sua análise da época q u a n t o do génio individual, o restante se resume, na
de diversas peças de Shakespeare, Wilson K n i g h t 2 1 d e m o n s t r o u melhor das hipóteses, ao virtuosismo; e o n d e o e l e m e n t o musi-
q u a n t o o emprego de imagens recorrentes e d o m i n a n t e s , do cal é o único e l e m e n t o , ele t a m b é m desaparece. As formas ela-
começo ao fim de u m a peça, tem a ver com o resultado global. boradas retornam, mas há períodos d u r a n t e os quais elas são
Uma peça de Shakespeare é u m a estrutura musical extrema- deixadas de lado.
mente complexa; a estrutura mais facilmente assimilada é a de Q u a n t o ao "verso livre", expressei meu p o n t o de vista há
tormas como as do soneto, da o d e tradicional, da b a l a d a , da vinte e cinco anos ao dizer q u e n e n h u m verso é livre para
villanelle,J: do rondeau25 ou da sextina. 2 4 A d m i t i u - s e às vezes alguém q u e deseja executar bem seu ofício. N i n g u é m m e l h o r
do q u e cu tem razões para saber q u e boa parte da má prosa
21. Crítico inglcs contemporâneo q u e se consagrou ao e s t u d o dos símbolos e d a s
foi escrita sob a d e n o m i n a ç ã o de verso livre, e m b o r a me pareça
imagens nas peças de Shakespeare. (N.T.)
22. Em port., vilanela: na França do se'eulo XVI, canção pastoril ou p o p u l a r . (Ν Τ ) indiferente q u e seus autores h a j a m escrito má prosa ou m a u
23 F.m port., rondò: composição poética com estribilho constante q u e inclui o verso, ou mau verso nesse ou naquele estilo. Mas s o m e n t e um
rondò simples, com duas rimas e f o r m a d o por três estrofes, e o r o n d ò dobrado. tam- mau poeta poderia acolher o verso livre e n q u a n t o libertação
bém com duas rimas e constituído de seis q u a d r a s sobre d u a s rimas. (N T )
da forma. Houve u m a rebelião contra a forma morta, e u m a
24. Poema de forma fixa, geralmente em decassílabos, composto de seis sextilhas e.
quase invariavelmente, um terceto, no qual cada uma das últimas palavras dos ver- preparação para a nova forma ou para u m a renovação da antiga;
sos da primeira sextilha (não r.mados, c o m o os demais) se repete no final dos versos trata-se de u m a insistência sobre a u n i d a d e interior q u e é única
das estrofes seguintes, m u d a n d o , p o r e m , d e posição d e n t r o d e u m processo. (N.T.)
T. S. ELIOT 42 A MÚSICA DA POESIA 43
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para cada poema, contra a u n i d a d e exterior q u e é característica. que mais interessam ao poeta são as da noção de ritmo e de
O poema surge anteriormente à forma, no sentido de q u e a estrutura. Julgo que seria possível para um poeta trabalhar
forma emerge da tentativa de alguém dizer algo, precisamente muito intimamente com analogias musicais: o resultado pode-
como um sistema de métrica constitui apenas a formulação das ria ser um produto artificial, mas sei que um p o e m a , ou u m a
identidades nos ritmos de u m a sucessão de poetas influencia- passagem de um poema, pode tender a definir-se inicialmente
dos uns pelos outros. como um ritmo particular antes de alcançar sua expressão ver-
As formas existem para serem destruídas e refeitas; mas bal, e que esse ritmo pode levar ao nascimento da idéia e da
creio que qualquer língua, desde q u e permaneça a m e s m a , imagem; e não creio que essa seja u m a experiência restrita a
impõe suas leis e restrições e concede sua própria autorização, mim mesmo. O uso de temas recorrentes é natural tanto na
ditando seus ritmos próprios de linguagem e padrões fônicos. poesia q u a n t o na música. Há no verso possibilidades q u e com-
E uma língua está sempre se t r a n s f o r m a n d o ; seus desenvolvi- portam certa analogia com o desenvolvimento de um tema por
mentos vocabulares, sintáticos, de pronúncia e de acentuação diferentes grupos de instrumentos: há n u m poema possibilida-
— e até mesmo, ao longo dos tempos, sua deterioração — des de transições comparáveis aos distintos movimentos de uma
devem ser aceitos e aproveitados pelo poeta. Ele t e m , por sua sinfonia ou de um quarteto; há possibilidades de arranjo contra-
vez, o privilégio de contribuir para o desenvolvimento e a m a n u - pontístico com relação ao tema.2** E n u m a sala de concerto,
tenção da qualidade, a aptidão lingüística para expressar um mais do que n u m a casa de ópera, que a matriz de um poema
amplo espectro (e uma sutil gradação) do s e n t i m e n t o e da emo- pode ganhar vida. Não posso dizer mais do q u e isso, mas con-
ção; sua tarefa é, a um só t e m p o , reagir à m u d a n ç a e torná-la vém deixar aqui o assunto aberto àqueles q u e tiveram u m a ini-
consciente, e lutar contra a degradação abaixo dos padrões q u e ciação musical. Entretanto, caberia recordar-lhes ainda duas tare-
recebeu no passado. As liberdades q u e ele p o d e tomar as t o m a fas da poesia, as duas direções em q u e a língua deve ser traba-
por amor à ordem. lhada em tempos distintos: assim, por mais q u e se possa levar
Q u a n t o ao estágio contemporâneo em q u e o próprio verso adiante a elaboração musical, devemos aguardar algum t e m p o
se encontra, devo deixar q u e vocês o julguem por si mesmos. até que a poesia seja outra vez chamada de volta à linguagem.
Suponho estarmos de acordo em q u e as obras dos últimos vinte Os mesmos problemas se apresentam, e sempre sob novas for-
e cinco anos merecem de algum m o d o ser classificadas, e sê-lo-ão mas; e a poesia tem sempre diante de si, como dizia F. S. Oli-
como algo que pertence a um período de busca por u m a ade- ver~'6 da política, u m a "aventura infinita' a cumprir.
quada linguagem coloquial moderna. l e m o s ainda um longo
caminho a percorrer no que se refere à invenção de um verso
apropriado ao teatro, um instrumento graças ao qual nos torne-
mos capazes de ouvir a linguagem dos seres h u m a n o s contem-
porâneos, graças ao qual as personagens dramáticas possam
expressar a mais pura poesia sem retórica e graças ao qual pos-
sam transmitir a mensagem mais trivial sem n e n h u m absurdo. 25. C u m p r e lembrar aqui que uma das maiores, senào a maior, dentre todas as
Mas quando alcançamos um ponto no qual o idioma poético criações poéticas de Eliot, Four quartets (Quatro quartetos, 1943), recorre, em sua
estrutura, ao esquema da sonata-forma, rigidamente distribuída em cinco movimen-
pode ser estabilizado, é possível que advenha então um período
ros ( N . T . )
de elaboração musical. Penso que um poeta pode lucrar m u i t o 2í>. Oliver, F S H o m e m ile negócios e pensador ingles (1864-1934) que se dedi-
com o estudo da música: não sei q u a n t o de conhecimento téc- cou ao estudo dos problemas políticos. Deixou u m a obra sobre Horace W a l p o l e
nico da forma musical é desejável adquirir, pois não d i s p o n h o ìht endless adventure e cartas sobre a Primeira Guerra Mundial (The anvil of war
(N.T.)
desse conhecimento. Mas creio que as propriedades da música
O Q U E F POESIA M E N O R ? 57

qualquer associação depreciativa vinculada à expressão "poesia


m e n o r " , j u n t a m e n t e com a sugestão de q u e a poesia menor é
mais fácil de 1er, ou vale menos a pena ser lida, do q u e a " p o -
esia m a i o r " . A pergunta é simples: quais são os gêneros de poe-
sia menor, e por q u e deveríamos lê-los?
o QUE É POESIA MENOR? 1 A abordagem mais direta, s u p o n h o , é considerar os diver-
sos gêneros de antologias poéticas, pois u m a associação da
expressão poesia menor faz com que esta signifique "a espé-
cie de poemas que só lemos em antologias". E, casualmente,
sinto-me satisfeito com a oportunidade de dizer algo sobre os
usos das antologias, pois, se os compreendermos, poderemos
t a m b é m nos precaver contra seus perigos, u m a vez q u e existem
amantes de poesia que p o d e m ser definidos como viciados em
antologias e que não conseguem 1er poesia a não ser desse
modo. Naturalmente, o valor primordial das antologias, como
de toda poesia, repousa no fato de serem elas capazes de pro-
Não me disponho a oferecer, n e m no princípio n e m no porcionar prazer, mas, além disso, deveriam servir a diversos
fim uma definição de 44 poesia m e n o r " . O perigo de u m a deli- propósitos.
nição como essa e que ela poderia nos levar à expectativa de Uma espécie de antologia, que se justifica por si m e s m a ,
que chegássemos a um acordo definitivo sobre quais são os poe- é aquela que inclui poemas de autores jovens, aqueles q u e per-
tas " m a i o r e s " e os poetas " m e n o r e s " . Portanto, se tentássemos manecem inéditos ou cujos livros não são ainda suficientemente
estabelecer duas listas, uma de poetas maiores e outra de poe- conhecidos. Tais coletâneas têm um valor particular tanto para
tas menores da literatura inglesa, descobriríamos estar de acordo poetas q u a n t o para leitores, ou porque apresentam a obra de
com relação a alguns poucos poetas, q u e ali haveria mais n o m e s um grupo de poetas q u e possuem algo em c o m u m , ou porque
acerca dos quais discordaríamos e q u e duas pessoas jamais elabo- a única u n i d a d e de seu conteúdo corresponde àquela q u e é
rariam a mesma lista: e qual seria e n t ã o a utilidade de nossa dada pelo tato de todos os poetas pertencerem à mesma gera-
definição? O que julgo podermos fazer, todavia, e nos inteirar- ção literária. Para um poeta jovem é desejável ter vários está-
mos do fato de que, q u a n d o definimos um poeta c o m o m e n o r , gios de publicidade antes de ter um p e q u e n o volume todo
estamos dizendo coisas distintas em épocas distintas; p o d e m o s para si. Primeiro, os periódicos: não os que são bem conheci-
clarear um pouco nossa mente sobre o q u e significam tais distin- dos e circulam em âmbito nacional — a única vantagem, para
o poeta jovem, de neles figurar é o provável guinéu (ou gui-
ções, e evitar assim a confusão e o m a l - e n t e n d i d o . C o n t i n u a r e -
néus) q u e poderá receber pela publicação —, mas as pequenas
mos certamente a conceituar várias coisas com o m e s m o t e r m o ,
revistas, dedicadas ao verso contemporâneo e lançadas por jovens
de modo que devemos, como no caso de muitas outras pala-
editores. Essas pequenas revistas parecem a m i ú d e circular ape-
vras, tirar daí o melhor partido, e não tentar introduzir coisa
nas entre os colaboradores c os pretensos colaboradores; com
alguma à força numa definição. O q u e me c o m p e t e é descartar
uma circulação habitualmente precária, aparecem a intervalos
irregulares, e sua existência é efêmera, embora sua importância
1. Conferência pronunciada diante da Associação dos Letrados de Swansea e do coletiva seja totalmente desproporcional à obscuridade em que
Oeste do País de Gales em Swansea, em s e t e m b r o de 1944. Posteriormente publi- lutam para sobreviver. Além do benefício q u e p o d e m trazer,
cada em The Sewanee Review. ( N A . )
64 T. S. ELIOT
O QUE É POESIA M E N O R ? 59

ensejando experiência aos futuros editores literários e bons uma promessa como se fosse uma realização madura, e julga a
editores literários têm um i m p o r t a n t e papel a d e s e m p e n h a r antologia, não pelos poucos poemas mais dignos nela incluídos,
numa literatura saudável —, tais publicações d ã o ao poeta a mas, na melhor das hipóteses, pela média.
vantagem de ver sua obra impressa, de compará-la com a de As antologias q u e dispõem de mais ampla circulação são
seus também obscuros (ou ligeiramente mais conhecidos) con- naturalmente aquelas que, como o Oxford book of English ver-
temporâneos e de mobilizar a atenção e a crítica daqueles q u e se J abrangem a totalidade da literatura inglesa até a geração
mais provavelmente despertam simpatia graças a seu estilo de mais recente; ou aquelas que se especializam n u m d e t e r m i n a d o
escrever Pois um poeta deve conquistar um espaço para si período do passado; ou, ainda, as que abrangem a história de
mesmo entre seus pares e no seio de sua própria geração antes alguma parte da poesia inglesa, ou, afinal, as q u e se restringem
de atrair um público mais a m p l o e mais velho. Para as pessoas à poesia moderna' das duas ou três últimas gerações, incluindo
que estão interessadas em publicar poesia, essas p e q u e n a s revis- poetas vivos q u e já conquistaram certa reputação. Estas últimas,
tas proporcionam t a m b é m um meio de m a n t e r sob os olhos é claro, atendem t a m b é m a algumas das exigências da antolo-
aqueles que se iniciam e acompanhar de perto seus progressos. gia estritamente contemporânea. Mas, limitando-nos à conveni-
( omo passo seguinte, um g r u p i n h o de jovens escritores, com ência dessas antologias q u e incluem apenas a obra de poetas
certas afinidades ou recíprocas simpatias regionais, p o d e j u n t o mortos, cabe-nos perguntar quais os propósitos q u e p r e t e n d e m
produzir um volume, l ais grupos f r e q ü e n t e m e n t e se a g l u t i n a m elas alcançar para atender a seus leitores.
graças à formulação de um c o n j u n t o de regras ou princípios, Não há dúvida de que The golden treasury3 ou o Oxford
aos quais em geral ninguém adere; com o correr do t e m p o , os book proporcionaram a muita gente o acesso a Milton, a Words-
grupos se desfazem, os integrantes mais fracos desaparecem e worth ou a Shelley (não a Shakespeare, mas não esperemos
os mais fortes desenvolvem seu estilo pessoal. Mas o g r u p o , e o adquirir conhecimento sobre um poeta dramático através de
grupo da antologia atendem a um propósito proveitoso: os poe- antologias). Não me caberia afirmar, entretanto, q u e q u e m
tas jovens normalmente não despertam m u i t a atenção — e na quer q u e haja lido, e apreciado, tais poetas, ou meia dúzia de
verdade é melhor que não a t e n h a m do público em geral, outros, n u m a antologia, e não tenha ainda a curiosidade e o
mas necessitam de apoio e de avaliação crítica recíprocas, e de apetite de devorar suas obras completas, ou pelo menos por
algumas outras pessoas. E, par último, há antologias mais elas ter corrido os olhos para ver o q u e de outro m o d o poderia
abrangentes do verso novo, quase sempre compiladas pelos gostar não me caberia afirmar, repito, q u e essa pessoa seja
mais eminentes editores jovens; têm elas t a m b é m o mérito de verdadeiramente um a m a n t e de poesia. O mérito das antolo-
dar ao leitor de poesia uma noção do q u e se está f a z e n d o , u m a gias ao nos introduzir à obra dos maiores poetas é m u i t o efê-
oportunidade de estudar as mudanças na temática e no estilo, mero; e n e n h u m de nós irá consultar antologias em busca de
sem que haja a necessidade de recorrer a um grande n ú m e r o seleções desses poetas, embora elas continuem a ser úteis. A
de periódicos ou volumes isolados; e servem para dirigir, mais antologia t a m b é m nos ajuda a descobrir se não há alguns poe-
adiante, a atenção desses leitores para a evolução de alguns poe- tas menores cuja obra nos caberia conhecer melhor — poetas
tas que lhes podem parecer promissores. Mas m e s m o tais coletâ-
neas não atingem o leitor em geral, q u e , via de regra, não 2 Publicada cm 1900 c 1939. esta antologia, organizada por Sir Arthur Quiller-
ouvirá talar de n e n h u m desses poetas até q u e estes p r o d u z a m Couch, é notável q u a n t o à sua abrangência relativamente a períodos histórico-literá-
rios e à sua organic idade como obra de consulta. ( N . T . )
vários volumes e, conseqüentemente, passem a ser incluídos
3. O título completo desta coletânea é Golden treasure of English songs ami lyrics
em outras antologias que cubram um maior lapso de t e m p o .
(1861), de Francis Turner Palgrave Trata-se de u m a antologia-padrão da poesia
Quando o leitor dá uma olhada n u m desses livros, pode julgá- lirica do período vitoriano e, embora reúna várias gerações de autores, está divi-
lo pelos padrões que não deveriam ser aplicados: considera dida em volumes por assunto. ( N . T . )
T. S. ELIOT O Q U E É POESIA M E N O R ? 61
64

nue não figurem tão conspicuamente em n e n h u m a história da ve i toso conhecimento de outros poetas de grande importância,
literatura que possam não ter influenciado o curso da litera- mas de q u e m não gostamos. Há somente duas razões para ler-
tura poetas cuja obra não é f u n d a m e n t a l para n e n h u m esquema mos em sua totalidade The faery queen** ou Prelude, de Words-
abstrato de educação literária, mas q u e p o d e m ter um forte worth. 6 Uma delas é q u e gostamos de lê-los: c gostarmos de
apelo pessoal para certos leitores. Na verdade, eu tenderia a ambos os poemas é um ótimo sinal. Mas se não gostarmos, a
duvidar da autenticidade do amor à poesia por parte de qual- única solução é nos tornarmos um professor de literatura ou
quer leitor que não tivesse uma ou mais predileções pessoais um crítico literário, e sermos obrigados a conhecer esses poe-
pela obra de algum poeta sem grande importância histórica: mas. Todavia, Spenser e Wordsworth são ambos m u i t o impor-
caber-me-ia suspeitar de que a pessoa q u e só gostasse de poetas tantes na história da literatura inglesa porque toda a outra poe-
que os livros de história concordam em indicar c o m o os mais sia que compreendemos melhor resulta do fato de conhecê-los,
importantes não passasse de um e s t u d a n t e consciencioso, parti- de m o d o q u e todos devemos saber algo sobre eles. Não existem
cipando com muito pouco de si m e s m o em suas apreciações. muitas antologias que forneçam trechos substanciais de poemas
Esse poeta pode não ser muito importante, diriam vexes dcsatia- longos; é muito útil, entretanto, a que foi compilada por Char-
doramente, mas sua obra é boa para mim. Trata-se em boa les Williams, q u e teve a singular peculiaridade de realmente
parte de uma questão de q u a n d o e c o m o a l g u é m a d q u i r e o apreciar toda sorte de poemas longos q u e ninguém mais lê.
conhecimento de tal poesia. N u m a biblioteca familiar p o d e se Mas até mesmo uma boa antologia constituída de peças curtas
encontrar um livro q u e ninguém adquiriu à época em q u e foi pode proporcionar algum conhecimento, que vale a pena adqui-
publicado, porque dele muito se falou, e q u e n i n g u é m leu. rir, acerca daqueles poetas de que não gostamos. E da mesma
Foi assim que me deparei, q u a n d o criança, com um p o e m a forma que todos devem ter seu gosto pessoal por certa poesia
pelo qual nutri uma fervorosa afeição: The light of Asta, de Sir à qual outras pessoas não dão valor, assim t a m b é m , desconfio,
Edwin Arnold. 4 Trata-se de um longo p o e m a épico sobre a todos têm um ponto cego relativamente à obra de um ou mais
vida de Buda; devo ter alimentado u m a simpatia latente pelo poetas que devem ser reconhecidos como grandes.
tema, pois o li com prazer do principio ao f i m , e mais de u m a Uma outra utilidade da antologia é aquela que só pode ser
vez. Nunca tive a curiosidade de saber nada sobre o autor, mas proporcionada caso o organizador não seja apenas alguém de
ainda hoje me parece um bom p o e m a , e q u a n d o conheço q u e m muita leitura, mas um h o m e m de gosto muito sensível. Há
quer que o haja lido e apreciado, sinto-me atraído por essa pes- vários poetas que são em geral enfadonhos, mas que têm ilumi-
soa. Via de regra, não mais se encontram nas antologias extra- nações ocasionais. A maioria de nós não dispõe de t e m p o para
tos de epopéias esquecidas; não obstante, é sempre possível 1er do princípio ao fim as obras de competentes e ilustres poe-
que numa antologia seja alguém surpreendido por a l g u m a com- tas enfadonhos, especialmente os de outra época, para pinçar
posição de um autor obscuro, capaz de levar a um íntimo conhe- os bons trechinhos que nos interessam; c raramente isso valeria
cimento da obra de algum poeta de q u e n i n g u é m mais parece a pena, mesmo q u e dispuséssemos de tempo. Há um século
gostar, ou que ninguém mais lê. ou mais, todo amante de poesia devorava um novo livro de

Assim como a antologia pode nos dar a conhecer poetas


de pouca importância, mas de cuja obra alguém talvez possa 5 E a obra-prima de E d m u n d Spenser, poeta inglês (Londres, c. 1552 — id. 1599).
Escrita entre 1590 e 1596. essa epopeia, a m b i e n t a d a na Irlanda e prevista para doze
gostar, é certo que uma boa antologia pode nos trazer um pro- livros, ficou incompleta, dela restando apenas seis livros e dois cantos do sétimo. O
poema é todo alegórico, revelando visível influência de Virgílio. Ariosto e Tasso. (N.T.)
6 Longo p o e m a , escrito entre 1799 e 1805. do poeta inglês William Wordsworth
4. Este poema, cujo título completo é lhe light of Aua, or the great renunciation ( C o c k e r m o u t h , C u m b e r l a n d , 1770 — Grasmere. 1850J, em q u e este aborda a sua
(Mahabhishkramana), foi escrito em 1879 pelo poeta e jornalista inglês Sir Edwin infância, e q u e só foi publicado após a morte do autor. ( N . T . )
Arnold (1832-1904). tendo gozado de extraordinário prestígio em sua época. ( N . T . )
64 T. S. ELIOT O Q U E É POESIA M E N O R ? 63

Tom Moore - tão logo era este publicado: q u e m nos dias de priamente a q u a n t i d a d e de iguarias, mas a combinação de coi-
hoje terá lido inteiro sequer Lalla Rookbi Southey* foi poeta sas boas, há também prazeres poéticos a serem degustados; e
laureado e, conseqüentemente, escreveu epopéias: duvido que vários poemas muito diferentes, de autores de t e m p e r a m e n t o s
alguém haja lido Thalaba, ou mesmo The curse of Kehavia, distintos e de distintas épocas, q u a n d o lidos juntos, p o d e m pro-
q u a n d o criança, e g u a r d a d o por eles algo da estima que tenho porcionar o sabor peculiar que lhes é recíproco, ganhando-se
por The light of Asia. Q u e r o saber quantas pessoas chegaram em um deles o que se perde nos outros. Para fruir esse prazer
a 1er Gebir\ e no e n t a n t o Landor, 9 o autor desse nobre poema precisamos não apenas de uma boa antologia, mas t a m b é m de
longo, foi na verdade um habílimo poeta. Há muitos poe- alguma prática de como utilizá-la.
mas longos, entretanto, q u e parecem ter sido legíveis q u a n d o Voltarei agora à questão da qual p o d e m vocês imaginar
publicados pela primeira vez, mas q u e agora ninguém lê — que me extraviei. Embora não sejam apenas os poetas menores
embora eu desconfie de q u e , hoje em dia, q u a n d o a prosa de os q u e se encontram incluídos em antologias, cabe-nos julgar
ficção supre a necessidade que era preenchida, para muitos lei- como poetas menores os que somente lemos cm antologias,
tores, pelos romances em verso de Scott, Byron e Moore, algu- l ive de fazer uma advertência com relação a isso, assegurando
mas pessoas ainda leiam um poema m u i t o longo mesmo que que para cada leitor de poesia deveriam existir alguns poetas
seja recém-saído do prelo. Assim, as antologias e seletas são pro- menores q u e lhe justificassem o esforço de lê-los por completo.
veitosas, pois ninguém dispõe de t e m p o para 1er t u d o e porque Mas além desse caso, encontramos mais de um tipo de poeta
há poemas dos quais apenas algumas passagens continuam vivas. menor. Há, é claro, poetas q u e escreveram exatamente um ou
A antologia pode ter u m a outra utilidade q u e , de acordo apenas alguns bons poemas, de m o d o que parece não haver
com a linha de pensamento que estou seguindo, poderíamos razão para que ninguém vá além dos limites da antologia. Ε o
aqui examinar. Essa utilidade se relaciona ao interesse da com- caso, por exemplo, de Arthur O'Shaughnessy, 1 0 cujo poema
paração, da habilidade em estabelecer, n u m espaço exíguo, que começa com o verso Somos os criadores da m ú s i c a " não
u m a sinopse da evolução da poesia; e se é m u i t o o q u e pode- figura em n e n h u m a antologia que inclua as produções poéticas
mos aprender com a leitura de toda a obra de um poeta, é do fim do século XIX. T a m b é m será o caso, para alguns leito-
muito o que aprendemos ao passar de um poeta para outro. res, embora não todos, de Ernest Dowson 1 1 ou de J o h n David-
Transitar de um lado para o outro entre u m a balada fronteiri-
son. 1 2 Mas é de fato muito reduzido o n ú m e r o de poetas dos
ça, uma lírica elisabetana, um poema lírico de Blake ou de Shel-
quais podemos dizer ser verdade para todos os leitores que hajam
ley e um monólogo de Browning é ser capaz de ter experiên-
deixado apenas um ou dois poemas particulares dignos de ser
cias emocionais, bem como temas para reflexão, q u e a concen-
lidos: as probabilidades são de que se um poeta houvesse escrito
tração da atenção sobre um poeta não pode proporcionar. Assim
um bom poema, este constituiria, no conjunto de sua obra,
como num jantar bem organizado o que se aprecia não é pro-
algo digno de ser lido por, pelo menos, algumas pessoas. Dei-
xando de lado esses poucos leitores, descobrimos que quase sem-
7. Moore, Thomas. Poeta irlandês ( D u b l i n . 1779 — Sloperton. 1852). autor de
Irish melodies (1808-1834) e do longo p o e m a orientalista Lallj Rookh (1817) Foi iti O'Shaughnessy. Arthur. Poeta inglês (1844-1881) amigo de D a n t e Gabriel
grande amigo de Byron na Itália. ( N . T . ) Rossetti. Autor maneirista, mais atento à melodia do verso. ( N . T . )
8. Southey, Robert. Poeta e historiador inglês (Bristol, 1^-4 Kerwick, 184 5).
que formou com Wordsworth e Coleridge o g r u p o dos l^ike Poets Os p o e m a v n a r - 11. Dowson. Einest. Poeta inglês (Lee. K e n t , 1867 — Cat f o r d , Lcwisham. 1900).
rativas Thalaba e The curse of Kehama foram publicados, respectivamente, em Influenciado por Verlaine e Swinburne, deixou dois volumes de poemas: Verses
1801 e 1810. ( N . T . ) (1896) e Decora/ions (1899). ( N . T . )

9. Landor. Walter Savage. Escritor inglês (Warwick. F 7 5 Florença. 1864) q u e 12 Davidson, J o h n . Poeta escocês (Barrhead. 1857 Pezance, C o r n u a l h a , 1909).
permaneceu fiel ao classicismo em pleno período romântico, c o m o se pode ver em Celebrizou-se pelo poema anarquista Fleet street eclogues (1893), escrito em métrica
suas Imaginary conversations (1824-1846). Gehn data de 1798 (N I ) tradicional. ( N . T . )
64 T. S. ELIOT O Q U E É POESIA M E N O R ? 65

pre julgamos o poeta menor como aquele q u e só escreveu poe- menor. O q u e dizer sobre as Seasons de T h o m s o n 1 6 e a Task
mas curtos. Mas poderíamos às vezes falar igualmente de Sou- de Cowpcr? 1 7 São ambos poemas longos q u e , se o interesse do
they e Landor, e de um p u n h a d o de escritores dos séculos leitor se orienta em outras direções, esse mesmo leitor p o d e ficar
XVIII C XIX, t a m b é m como poetas menores, embora t e n h a m satisfeito ao conhecê-lo apenas por meio de extratos; mas eu
estes deixado poemas de dimensões mais grandiosas; c penso não admitiria que são poemas menores, ou q u e n e n h u m a parte,
que hoje em dia sejam poucos, pelo menos entre os leitores de um ou de outro, seja tão boa q u a n t o o c o n j u n t o . O q u e
mais jovens, os que considerariam D o n n e um poeta m e n o r , dizer de Aurora Leigh,18 da senhora Browning, ou d a q u e l e
mesmo q u e ele jamais houvesse escrito sátiras e epístolas, ou longo poema de George Eliot cujo título não me recordo? 1 9
Blake como de idêntica estirpe, ainda que nunca houvesse escrito Sc tivermos dificuldade em separar os autores de poemas
seus Livros Proféticos. Assim devemos julgar como poetas meno- longos em poetas maiores e menores, não nos caberá n e n h u m a
res, até certo ponto, alguns autores cuja reputação, tal como decisão mais fácil no que se refere a autores de poemas curtos.
se afigura, se deve a poemas muito longos; e como poetas maio- Um caso muito interessante é o de George Herbert. 2 0 Todos
res, aqueles q u e escreveram somente poemas curtos. nós conhecemos alguns de seus poemas, que aparecem cada vez
Pareceria mais simples à primeira vista considerar os auto- mais em antologias, mas q u a n d o percorremos seus poemas reu-
res menores de epopéias como secundários. ou ainda, mais rigo- nidos, surpreendemo-nos ao descobrir que esses poemas nos
rosamente, como grandes poetas malogrados. Eles fracassaram, comovem tanto q u a n t o aqueles que encontramos nas antologias.
sem dúvida, no sentido em q u e n i n g u é m mais lê seus poemas Mas The temple é algo mais do que um acervo de poemas reli-
longos; são eles secundários na m e d i d a em q u e julgamos os giosos escritos por um autor: ele é, como o título nos leva a
poemas longos de acordo com padrões m u i t o elevados. Não sen- supor, um livro construído segundo um plano; e q u a n d o come-
timos que um poema longo valha o esforço de ser lido a menos çamos a conhecer melhor os poemas de Herbert, chegamos à
q u e seja, em seu gênero, tão bom q u a n t o The faery queen, O conclusão de que há algo que extraímos do livro como um todo,
que é mais do que a soma de suas partes. Aquilo q u e , à pri-
Paraíso perdido,13 Prelude, Don JuanM ou Hyperion.1 além
meira vista, tem a aparência de uma sucessão de belos mas isola-
de outros poemas longos do mesmo nível. Todavia, considera-
dos poemas líricos acaba por manifestar-se como u m a contínua
mos que alguns desses poemas secundários sejam capazes de
ser lidos por certas pessoas. Ademais, advertimos q u e não
16. Este longo p o e m a descritivo, escrito entre 1726 e 1730. é da autoria do poera
podemos simplesmente dividir os poemas longos em um pequeno inglês J a m e s T h o m s o n ( E d n a m . Roxburgh. 1700 — Kew, perro de Londres, 1748).
número de obras-primas e um grande n ú m e r o daqueles com um dos discípulos de Alexander Pope. A obra pertence à literatura pré-romântica
os quais não precisamos nos aborrecer. Entre esses poemas aos e toi traduzida na época em quase toda a Europa. (Ν T.)
17 Trata-se da mais conhecida dentre todas as obras do poeta inglês William Cow-
quais acabo de me referir, e u m a estimável obra menor como
pcr (Great Bcrkhampstead, Hertfordshire. 1731 — Eats D e r e h a m , Norfolk. 1800).
The light of Asia, há toda sorte de poemas longos de gêneros É um poema descritivo em estilo classicista, com versos de acentuada eloqüência. (N.T.)
diferentes c de vários graus de importância, de m o d o q u e não 18. Longo poema da poetisa e ficcionista inglesa Elizabeth Barret Browning (Coxhoc
podemos traçar n e n h u m a linha definitiva entre o maior e o Hall, D u r h a m . 1806 Florença. 1861). casada com Robert Browning. A obra foi
publicada em 1857 (N.T.)
19. Muito provavelmente. Eliot alude aqui a The legend of Jubat (1874), da roman-
13. A obra-prima do poeta inglcs J o h n Milton (Londres, 1608 id. 1674), publi- cista inglesa George Eliot (Arbury Farm. 1819 — Londres, 1880), p s e u d ó n i m o de
cada em 1667 e à qual se segue, q u a t r o anos depois, Paraíso reconquistado Trata- Mary Evans. ( N . T . )
se do maior poema épico da literatura inglesa. (N 1 ) 20. Herbert, George. Poeta inglês (Castelo de Montgomery, 1593 — Bemerton,
14. Poema do poeta inglês George G o r d o n Byron (Londres, 1788 - Missolonghi, perto de Salisbury, 1633). Embora tenha pertencido ao g r u p o dos " p o e t a s metafí-
1824), publicado em 1819. ( N . T . ) sicos' , jamais sacrificou sua poesia aos abusos metafóricos do barroco. O p o e m a
The temple (1633) é considerado u m a das obras-primas da poesia inglesa. Deve-
15. Poema do poeta inglês J o h n Keats (Londres. 1795 Roma. 1821). publicado
se sua reabilitação, assim como a dos demais " m e t a f í s i c o s " , a T. S. Eliot. ( N . T . )
cm 1820. ( N . T . )
66 T. S. ELIO T
O Q U E E POESIA M E N O R ? 67

meditação religiosa dentro de uma estrutura intelectual; e o livro temperamento muito diferente, extraímos t a m b é m o sentimento
como um todo nos revela o espírito devoto anglicano da pri- de uma personalidade uniforme, e acabamos por conhecer
meira metade do século XVII. E mais: começamos a compreen- melhor essa personalidade graças à leitura de todos os seus poe-
der melhor Herbert, e sentimo-nos recompensados pelo esforço, mas — e ao lermos todos os seus poemas deleitamo-nos sobre-
se conhecermos algo sobre os escritores teológicos ingleses dessa t u d o com aqueles de q u e mais gostamos. Mas, cm primeiro
época; e alguma coisa sobre os escritores místicos ingleses do lugar, não há semelhante propósito consciente contínuo nos
século XIV; e qualquer coisa de alguns outros poetas q u e lhe poemas de Herrick; trata-se de um h o m e m mais estritamente
foram contemporâneos — D o n n e , 2 1 Vaughan, 2 2 Trahcrne J —, espomâneo e inconsciente, q u e escreve seus poemas q u a n d o a
e se viermos a perceber algo em c o m u m entre eles e sua origem e imaginação dele se apodera; e, em segundo lugar, a personali-
formação galesa; e, finalmente, se conhecermos alguma coisa dade que neles se manifesta é menos i n c o m u m : na verdade,
sobre Herbert cm comparação com a típica devoção anglicana seu encanto reside cm sua mediania. Relativamente, gostamos
que ele expressa, com o mais continental, e romano, sentimento muito mais dele a partir de um poema do que de Herbert, se
religioso de seu contemporâneo Richard Crashaw. 2 4 Assim, ao nos restringirmos t a m b é m à leitura de um único poema deste;
final, não posso, de minha parte, admitir q u e Herbert seja cha- e mais: há algo mais no conjunto do q u e nas partes q u e o cons-
mado de " p o e t a m e n o r " , pois não é de alguns poemas predile- tituem. Consideremos em seguida Thomas C a m p i o n , o autor
tos que me recordo ao pensar nele, mas de toda a sua obra. elisabetano de canções. Caberia dizer que, dentro de seus limi-
Ora, compare-se Herbert a dois outros poetas, um algo tes, não existe artesão mais competente do q u e C a m p i o n em
mais velho do que ele e outro de u m a geração anterior, mas toda a poesia inglesa. Admito que, para compreender integral-
ambos ilustríssimos autores de poemas líricos. Dos poemas de mente seus poemas, há certas coisas q u e se deveriam saber:
Robert Herrick,^ ainda um clérigo anglicano, mas h o m e m de Campion foi um músico e escreveu suas canções para serem can-
tadas. Apreciamos melhor seus poemas se possuirmos algum
21. D o n n e . J o h n Poeta e orador sacro inglês (Londres. 15^2 id. 1631 ), conside-
rado o maior de todos os " p o e t a s metafísico* e reconhecido por Ben J o h n s o n conhecimento da música da época dos Tudor e dos instrumen-
c o m o "o primeiro poeta do m u n d o em certos aspectos Pregador favorito das cor- tos para os quais ela foi composta; gostamos mais deles se gos-
tes dos reis J a i m e I e Carlos I, D o n n e foi um notável inovador q u e se rebelou con-
tarmos dessa música; e não desejamos apenas lê-los, mas ouvir-
tra as convenções poéticas do renascimento petrarqui^ta D e n t r e suas m u i t a s obras,
lembrem-se Elegia, songs and soneti. Poems e Divine poems, todas reeditadas mos alguns deles cantados, e cantados com a própria música
no século X X . ( N . T . ) de Campion. Mas não precisamos igualmente conhecer algu-
22 Vaughan. Henry Poeta inglês ( N e w t o n Saint Briget. Bretknochshire. 1622 mas das coisas que, no caso de George Herbert, nos a j u d e m a
— Seethrog. 1695) Sob influência de Herbert, escreveu p o e m a s de f u n d a inspira-
compreende-lo c estimá-lo melhor; não precisamos nos preocu-
ção religiosa e acentuados traços "metafísicos , c o m o se pode ver em Sílex suntil
lans (1650 e 1655). ( N . T . ) par com o que ele pensa, ou com os livros q u e leu, ou com
23. Trahcrne. Thomas. Poeta inglês (Herefordshire. 1637? T e d d m g t o n , Middle- suas raízes étnicas ou sua personalidade. O q u e sentimos, ao
sex, 1674), pertencente ao g r u p o dos 'metafísicos' . Publicou Roman forgeries transitarmos daqueles seus poemas que lemos nas antologias
(1673) e Christian ethics (1675). ( N . T . )
para suas obras completas, é um prazer repetido, um júbilo
24. Crashaw. Richard Poeta inglês (Londres, c. 1613 Loretto. Itália, 1649).
Após converter-se ao catolicismo, passou a viver na Itália, o n d e publicou poemas diante de novas belezas e novas variações técnicas, mas não
religiosos que se incluem entre os melhores da poesia "metafísica . em estilo bar- uma impressão global. Não podemos dizer, em seu caso, que
roco extremamente o r n a m e n t a d o e e l o q ü e n t e , c o m o é o caso do p o e m a " l h e fla-
o conjunto é mais do que a soma das partes.
ming h e a r t " . Seus poemas a b r a n g e m duas edições: Steps to the temple e Carmen
Deo nostro. A edição definitiva, sob o título de Poems, é de 1957. ( Ν . Τ )
Não digo que até mesmo esse teste — que, de qualquer
25. Herrick, Robert. Poeta inglês (Londres, 1591 Dean Prior, Devonshire, 1674), modo, alguém deve aplicar a si próprio, com resultados diver-
pertencente ao g r u p o dos "metafísicos e considerado o maior anacreóntico da poe-
sia inglesa. Seus poemas estão reunidos em Hespendes (1648), c arac ter izando-se sos , caso o conjunto constitua mais do que a soma das par-
pela perfeição da forma e do estilo, bem como por sua extrema musicalidade. ( N . T . ) tes, seja em si um critério satisfatório para distinguir entre um
64 T. S. ELIOT O QUE É POESIA MENOR? 69

poeta maior e um poeta m e n o r . Nada é tão simples assim; e alguém pode fazer semelhante reivindicação são m u i t o poucos.
embora não percebamos, após a leitura de C a m p i o n , q u e com- Alguém pode subir na vida sem ter lido todos os últimos poe-
preendemos o h o m e m C a m p i o n , como o sentimos após 1er Her- mas de Browning ou Swinburne; não me caberia afirmar com
rick, ainda que em outros níveis, porque ele é acima de t u d o segurança que alguém devesse 1er t u d o de Dryden ou de Pope;
o mais notável artesão, eu, de m i n h a parte, julgaria C a m p i o n e certamente não compete a mim dizer q u e não haja partes
como um poeta mais importante do q u e Herrick, embora m u i t o de Prelude ou de The excursion que não possam admitir um
abaixo de Herbert. T u d o o q u e afirmei é q u e uma obra q u e salto. Muito pouca gente se dispõe a conceder seu t e m p o aos
consiste em um acervo de poemas curtos — mesmo em se tra- primeiros poemas longos de Shelley, The revolt o} Islam e
tando de poemas q u e , considerados isoladamente, seriam capa- Queen Mab, embora as notas a este último p o e m a mereçam
zes de parecer algo ligeiros — poderia, se tivesse u m a u n i d a d e ser lidas. De m o d o q u e seremos obrigados a dizer q u e um
de modelo f u n d a m e n t a l , constituir o equivalente de um p o e m a poeta maior é aquele de cuja obra temos de 1er u m a boa parte,
longo de primeira ordem ao estabelecer a pretensão de um mas não necessariamente toda a obra. E além de f o r m u l a r a
autor a ser um poeta " m a i o r " . Essa pretensão poderia ser, é pergunta De q u e poetas vale a pena 1er t u d o ? " , devemos
claro, estabelecida por um único p o e m a longo, e q u a n d o esse t a m b é m perguntar: " Q u e poeta vale para mim o esforço de
p o e m a longo é suficientemente b o m , q u a n d o inclui em si a 1er toda a sua o b r a ? " . A primeira p e r g u n t a significa q u e deve-
u n i d a d e e a variedade adequadas, não precisamos conhecer mos sempre tentar aprimorar nosso gosto; a s e g u n d a , q u e
— ou, se conhecemos, não precisamos valorizar intensamen- devemos ser sinceros com relação ao gosto q u e temos. Assim,
te — as demais obras do poeta. De m i n h a parte, eu definiria de um lado, não é praxe percorrer com atenção tanto Shakespe-
Samuel Johnson como um poeta maior graças ao simples teste- are q u a n t o Milton da primeira à última página, a menos q u e
munho de The vanity of human wishes, e Goldsmith pelo de alguém ali se depare com algo de q u e goste i m e d i a t a m e n t e :
The deserted village. é apenas esse prazer imediato que pode dar a alguém seja a
força motriz para 1er tudo, seja a expectativa de algum proveito
Até aqui, parece termos chegado à conclusão provisória de
assim pretendido. E ali poderiam existir, ou na verdade deve-
que, qualquer que fosse um poeta menor, um poeta maior é
riam existir — como eu já disse — alguns poetas q u e lhes falas-
aquele cuja obra devemos 1er em sua totalidade, a fim de q u e
sem tão de perto a ponto de levá-los a 1er toda a sua obra,
apreciemos plenamente cada u m a de suas partes; mas já modi-
embora não tivessem eles o mesmo valor para a maioria das
ficamos um pouco essa afirmação extrema ao admitir qualquer
outras pessoas. E essa espécie de vínculo não se refere apenas
poeta que haja escrito equilibradamente um poema longo q u e
a um estágio em seu desenvolvimento de gosto q u e vocês ultra-
combine suficiente variedade e unidade. Mas há decerto m u i t o
passarão, mas poderia indicar t a m b é m alguma afinidade entre
poucos poetas na Inglaterra de cuja obra alguém pode dizer
vocês mesmos e um determinado autor q u e persistirá pela vida
que deva ser lida em sua totalidade. Shakespeare, é claro, e
afora; poderia até ocorrer que vocês estivessem peculiarmente
Milton; e como no caso de Milton alguém pode advertir para
habilitados a apreciar um poeta de q u e m pouquíssimas outras
o fato de q u e seus diversos poemas longos — O Paraíso per-
pessoas fossem capazes de gostar.
dido, O Paraíso reconquistado e Sansão Agonista — deveriam
ser lidos inteiros devido a sua própria finalidade, necessitamos Eu diria então que há u m a espécie de ortodoxia q u a n t o à
lê-los todos, assim como precisamos 1er todas as peças de Sha- relativa grandeza e importância de nossos poetas, embora haja
kespeare, a fim de compreendermos plenamente cada uma delas; muito poucas reputações que permanecem inteiramente inalte-
e a menos que leiamos t a m b é m os sonetos de Shakespeare e radas de u m a geração para outra. N e n h u m a reputação poética
os poemas menores de Milton, há algo do q u e lemos q u e se jamais permanece exatamente no mesmo lugar: trata-se de u m a
perde em nossa apreciação. Mas os poetas em relação aos quais bolsa de valores em constante flutuação. Há os nomes consagra-
64 71
T. S. ELIOT O Q U E É POESIA M E N O R ?

dos que só f l u t u a m , por assim dizer, d e n t r o de u m a estreita tudo, constituem admiráveis janelas. Acho q u e George Crab-
faixa de pontos: se Milton sobe hoje para 104 e cai a m a n h ã be 26 foi um excelente poeta, mas ninguém dele se aproxima
para 97 1/4, não importa. Há outras reputações, como as de pela mágica: se alguém gosta de relatos realistas sobre a vida
D o n n e ou Tennyson, q u e variam m u i t o mais intensamente, de aldeia em Suffolk há cento c vinte anos, em versos tão bem
de m o d o q u e alguém tem de julgar seu mérito por u m a média escritos que nos convencem de q u e o mesmo não poderia ser
tomada durante um longo t e m p o ; há ainda autores que perma- dito em prosa, é possível então que goste de Crabbe. Crabbe
necem muito estáveis em sua extensa trajetória abaixo daquele c um poeta que tem de ser lido em grandes porções, se é q u e
par e que persistem como bons investimentos graças àquele se deve lê-lo; dc m o d o que se alguém o considerar tedioso,
preço. E há certos poetas q u e constituem bons investimentos deve apenas dar-lhe uma olhadela e seguir em frente. Mas vale
para algumas pessoas, embora sem preço algum de cotação no a pena conhecer-lhe a existência, caso ela possa ser de seu agrado,
mercado, e a mercadoria poderia não ser convidativa ( t e n h o c t a m b é m porque lhe contará algo sobre as pessoas q u e o apre-
m e d o de que a comparação com a bolsa de valores provavel- ciaram.
mente se dilua nesse ponto). Mas eu diria q u e . c o n q u a n t o haja As principais questões que até aqui tenho tentado situar
um objetivo ideal de gosto ortodoxo em poesia, n e n h u m leitor são, creio eu, as seguintes: a diferença entre poetas maiores e
pode ser, ou deveria tentar ser, inteiramente ortodoxo. Há menores nada tem a ver com o fato dc terem eles escrito poe-
decerto alguns poetas, q u e muitas gerações de pessoas inteligen- mas longos ou poemas curtos, embora os verdadeiros grandes
tes, sensíveis e de considerável leitura apreciaram, q u e (se gos- poetas, que são numericamente poucos, hajam tido todos algo
tarmos de qualquer poesia) mereceram de nossa parte um esforço a dizer que só poderia ser dito n u m poema longo. A diferença
importante é se um conhecimento da totalidade, ou pelo menos
no sentido de tentar descobrir por q u e tais pessoas os aprecia-
de uma parte m u i t o extensa, da obra de um poeta faz com
ram, e se t a m b é m não é o caso de podermos apreciá-los. D e n -
que alguém desfrute mais intensamente, porque o leva a com-
tre os poetas de menor estatura, há certamente alguns sobre
preender melhor qualquer um de seus poemas. Isso implica
os quais, após u m a amostragem, p o d e m o s agradavelmente e
uma significativa unidade em toda a sua obra. N i n g u é m pode
sem risco considerar a opinião costumeira de q u e estão de todo
pór inteiramente em palavras essa compreensão ampliada: cu
a d e q u a d a m e n t e representados por dois ou três poemas, pois,
não poderia dizer com exatidão por que penso q u e compre-
como já disse, ninguém dispõe de t e m p o para descobrir t u d o
e n d o c me deleito mais intensamente com Com us 2 por haver
por si mesmo, e devemos aceitar algumas coisas sobre a convic-
lido O Paraíso perdido, ou mais intensamente com este por
ção dos outros.
haver lido Sar/são Agonista, mas estou convencido de q u e é
A maioria dos poetas menores, entretanto — daqueles q u e assim. Nem sempre posso dizer por q u e , graças ao conheci-
não preservam em absoluto n e n h u m a reputação —, está consti- mento de uma pessoa cm situações distintas, c observando seu
tuída de poetas dos quais todo leitor de poesia deveria conhe- comportamento n u m a diversidade dc situações, sinto q u e com-
cer algo, mas apenas alguns deles chegam a ser bem conheci- preendo melhor seu c o m p o r t a m e n t o ou sua conduta n u m a
dos por raros leitores. Alguns nos atraem graças a u m a conge- determinada ocasião; mas nos esquecemos dc q u e essa pessoa
nialidade peculiar de caráter; outros devido à sua temática; é uma unidade, apesar de sua conduta inconsistente, e de q u e
outros, ainda, em razão de u m a qualidade particular, de espí-
rito ou compaixão, por exemplo. Q u a n d o falamos sobre Poesia, 26 Crabbe, George Poeta inglês ( A l d e b u r g h , Suffolk, 1754 Trowbridge, 1832).
com maiúscula, podemos julgar apenas a mais intensa emoção Suas obras crii rigoroso estilo clássico, descrevem com simpatia e realismo a vida
ou a mais fantástica expressão; todavia, há muitos e grandes miserável dos pescadores e camponeses, como em The village, o n d e d e n u n c i a a
falsa concepção idílica da vida campesina. ( N . T . )
caixilhos em poesia q u e nada têm de mágicos e q u e não se
2 Peça pastoril de J o h n Milton, escrita em 1634. ( N . T . )
abrem sobre a espuma de mares perigosos, mas q u e , apesar de
72 T. S. ELIOT
O QUE É POESIA MENOR? 73

essa comunicação com ela d u r a n t e um lapso de t e m p o a torna


m o m e n t â n e o sentimento de alívio com o reconhecimento de
mais inteligível. Finalmente, condicionei essa discriminação obje-
que se trata de algum notável talento. Muitas pessoas ou se
tiva entre os poetas maiores e menores ao atribuí-la anterior-
satisfazem com o que encontram em antologias — e, m e s m o
mente a cada leitor em particular. N e n h u m grande poeta terá
q u a n d o são atraídas por um poema, p o d e m não se dar conta
talvez inteiramente a mesma significação para dois leitores, não
do fato ou, se isso ocorre, p o d e m não reparar no n o m e do
importa q u a n t o estejam eles de acordo no q u e respeita à sua autor —, ou aguardam até que se torne evidente q u e determi-
estatura: é mais provável, portanto, q u e o modelo de poesia nado poeta, após escrever diversos livros (c isso em si m e s m o
inglesa jamais seja exatamente o m e s m o para duas pessoas, de revela certa garantia), haja sido aceito pelos resenhadores (e o
m o d o que, no caso de dois leitores igualmente capazes, deter- q u e mais nos impressiona não é o que estes dizem ao escrever
minado poeta poderia ser, para um deles, de maior importân- sobre um poeta, mas suas alusões àquele poeta q u a n d o escre-
cia e, para o outro, de menor envergadura. vem sobre algum outro poeta).
Há u m a reflexão final a ser feita, q u a n d o passamos a consi- O primeiro m é t o d o não nos leva m u i t o longe; o s e g u n d o
derar a poesia contemporânea. Encontramos às vezes críticas não é muito seguro. Em primeiro lugar, somos todos propen-
presunçosamente sentenciosas em seu primeiro contato com a sos a ficar na defensiva de nossa própria época. Agrada-nos per-
obra de um novo poeta, da qual afirmam ser poesia " m a i o r " ceber que ela pode produzir uma grande arte, sobretudo por-
ou " m e n o r " . Ignorando a possibilidade de q u e aquilo q u e o que queríamos ter uma velada suspeita de q u e não o possa; e
crítico está louvando ou reconhecendo possa ou não ser efetiva- percebemos em parte que, se pudéssemos acreditar q u e dispo-
mente poesia (pois às vezes alguém p o d e dizer: liSe isso fosse mos de um grande poeta, isso de algum m o d o nos tranqüiliza-
poesia, seria poesia maior, mas não é .), não julgo aconselhá- ria e nos daria autoconfiança. Trata-se de um desejo patético,
vel tomar u m a decisão tão r a p i d a m e n t e . O máximo a q u e eu mas que t a m b é m perturba o julgamento crítico, pois podería-
me arriscaria, do p o n t o de vista do compromisso crítico, sobre mos chegar à conclusão de que alguém é um grande poeta sem
a obra de um poeta vivo, ao deparar-me com ela pela primeira sê-lo; ou poderíamos, com absoluta injustiça, menosprezar um
vez, seria averiguar se se trata de poesia autêntica ou não. Esse bom poeta por não ser este um grande poeta. E no caso de nos-
poeta tem algo a dizer, pouco diferente do q u e um outro disse sos contemporâneos, não devemos estar tão interessados no fato
antes, e descobriu, não apenas uma maneira diferente de dize- de que sejam grandes ou não; devemos insistir na pergunta:
lo, mas a maneira diferente de dizé-lo q u e expressa a diferença " S ã o eles autênticos"*". E deixar a questão de q u e sejam gran-
no que está dizendo? Mesmo q u a n d o me c o m p r o m e t o até esse des para o único tribunal capaz de decidir: o tempo.
ponto, sei que poderia estar correndo um risco especulativo. Em nossa própria época há, na verdade, um considerável
Eu poderia estar impressionado por aquilo q u e esse poeta está público para a poesia contemporânea; há, talvez, mais curiosi-
tentando dizer c negligenciar o fato de q u e ele não descobriu dade e mais expectativa com relação à poesia contemporânea
a nova maneira de dizê-lo, ou de q u e a forma peculiar da lin- do que havia uma geração antes. Por outro lado, há o perigo
guagem, que de início dá a impressão de q u e o autor tem algo de formar um público leitor que nada saiba sobre qualquer
de próprio a dizer, poderia constituir apenas um artifício ou poeta mais antigo do que, digamos, Gerard Manley Hopkins,
um maneirismo que dissimula u m a visão inteiramente conven- e que não disponha de uma cultura necessária à apreciação crí-
cional. Para q u e m lê, como cu, um bom n ú m e r o de manuscri- tica. Há t a m b é m o perigo de que as pessoas esperem para 1er
tos, c manuscritos de escritores dos quais se pode não ter visto um poeta até que sua reputação contemporânea esteja estabele-
antes obra alguma, as armadilhas são ainda mais perigosas: se cida; e a angústia, para aqueles dentre nós que estão no negó-
um conjunto de poemas for muito melhor do q u e quaisquer cio, de. após outra geração ter escolhido seus poetas, nós, que
outros que acabo de 1er, posso enganar-me e confundir meu lhes somos ainda contemporâneos, não mais sermos lidos. O
64 T. S. ELIOT O QUE É POESIA MENOR? 75

perigo para o leitor e d u p l o : o de q u e ele jamais disporá de de fato interessados em saber se é um poeta " m a i o r " ou " m e -
nada totalmente fresco e o de q u e jamais voltará a 1er o q u e n o r " . Mas se lermos um poema, c se reagirmos a ele, devere-
sempre permanece fresco. mos querer 1er mais do mesmo autor, e q u a n d o houvermos
Há, por conseguinte, u m a proporção a ser observada entre lido o bastante, deveremos estar aptos a responder a pergunta:
nossa leitura da poesia antiga e da poesia moderna. Eu não con- "É somente algo mais da mesma coisa?" — é, em outras pala-
fiaria no gosto de n i n g u é m q u e jamais leu alguma poesia con- vras, apenas a mesma coisa, ou algo diferente, sem q u e nada
temporânea, e certamente não confiaria no gosto de alguém haja sido acrescentado, ou é uma relação entre os poemas q u e
que não leu nada além disso. Mas até m e s m o muita gente q u e nos leva a ver um pouco mais em cada um deles? Isso ocorre
lê poesia contemporânea não desfruta o prazer, e o benefício, porque, com a mesma reserva que observamos em relação à
de descobrir de algum m o d o algo para si. Q u a n d o vocês lêem obra de poetas mortos, devemos 1er não apenas poemas isola-
poesia nova, poesia de alguém cujo n o m e ainda não é ampla- dos, como o fazemos em antologias, mas a obra inteira de um
mente conhecido, alguém a q u e m os resenhadores ainda não poeta.
criticaram, vocês estão exercendo, ou deveriam tazê-lo, seu pró-
prio gosto. Não há outro no qual se fiar. O problema não é,
como parece para muitos leitores, o de tentar gostar de alguma
coisa de que vocês não gostam, mas de deixar sua sensibilidade
livre para reagir naturalmente. De m i n h a parte considero isso
bastante difícil, pois q u a n d o vocês estão lendo um poeta novo
com o deliberado propósito de vir a fazer u m a escolha, esse pro-
pósito pode interferir e obscurecer a consciência d a q u i l o q u e
vocês sentem. É difícil responder ao m e s m o t e m p o a duas per-
guntas: "É b o m , quer eu goste ou não? e " E u gosto d i s s o ? " .
E amiúde descubro q u e o melhor teste é q u a n d o alguma frase,
ou imagem, ou verso fora de um poema novo, acorre à m i n h a
m e n t e sem q u e o tenha desejado. Acho t a m b é m proveitoso
para mim dar uma espiada em poemas novos publicados em
revistas de poesia e em seletas de autores novos nas antologias
contemporâneas, pois, ao lê-los, não me preocupo em pergun-
tar: " D e v o me esforçar para que tais poemas sejam publica-
d o s ? " . Julgo que ocorra aí algo semelhante à m i n h a experiên-
cia: q u a n d o ouço pela primeira vez u m a nova composição musi-
cal, ou q u a n d o vejo u m a nova exposição de quadros, prefiro
fazê-lo sozinho. Pois, se estou sozinho, não há ninguém a q u e m
eu esteja obrigado a formular imediatamente u m a opinião.
Não é que eu precise de t e m p o para articular a m i n h a m e n t e :
preciso de t e m p o para saber o que realmente senti naquele
m o m e n t o . E esse sentimento não constitui u m a avaliação de
grandeza ou de importância — é u m a percepção de autentici-
dade. Assim, ao lermos um poeta contemporâneo, não estamos
O Q U E É UM CLASSICO? 77

empregando-a simplesmente como indicação da m a g n i t u d e ,


ou da permanência e da importância, de um escritor em seu
próprio campo de atividade, como q u a n d o falamos de The f i f t h
form at St. Dominic's como um clássico da ficção entre os estu-
dantes, ou do Handley cross como um clássico no c a m p o da
caça —, ninguém deverá esperar que o esteja elogiando. E há
O QUE É UM CLÁSSICO?' um livro muito interessante intitulado A guide ίο the classics,
q u e ensina como ganhar a disputa do Derby. Em outras oca-
siões, permitir-me-ei considerar " o s clássicos" — quer os das
literaturas grega e latina in toto, quer os maiores autores q u e
se expressaram nessas línguas — conforme o contexto. E, final-
mente, julgo q u e a avaliação do clássico q u e me p r o p o n h o a
fornecer aqui possa deslocá-la daquele terreno antitètico entre
"clássico" e " r o m â n t i c o " — u m a d u p l a de termos q u e per-
tence à política literária e que, por essa razão, insufla os ventos
da paixão, os quais peço a Eolo, 2 nessa o p o r t u n i d a d e , q u e
guarde na sacola.
O assunto do qual me dispus a falar resume-se apenas a
esta pergunta: "O q u e é um clássico? . Não é u m a pergunta Isso me conduz à próxima consideração. Segundo os ter-
nova. Há, por exemplo, um célebre ensaio de Sainte-Beuve com mos da controvérsia classico-romàntica, considerar qualquer
esse mesmo título. A pertinência de fazer essa pergunta, t e n d o obra de arte "clássica implica ou o mais alto elogio, ou o
em vista particularmente Virgílio, é óbvia: qualquer q u e seja mais desdenhoso abuso, conforme a parte a que pertença. Isso
a definição a q u e cheguemos, ela não p o d e excluir Virgílio — implica certos méritos ou defeitos particulares: seja a perfeição
poderíamos dizer com toda a segurança q u e ela deve ser u m a da forma, seja o zero absoluto da frigidez. Mas desejo definir
das q u e expressamente o levarão em conta. Mas, antes de pros- u m a espécie de arte, e não me interessa que cia seja absoluta-
seguir, gostaria de descartar alguns preconceitos e antecipar cer- m e n t e e em cada aspecto melhor ou pior do q u e qualquer
tos equívocos. Não pretendo substituir, ou proscrever, qual- outra. Enumerarei certas qualidades q u e presumiria fosse o clás-
quer uso da palavra "clássico' que u m a utilização anterior sico capaz de manifestar. Mas não afirmo q u e , se u m a litera-
haja tornado permissível. A palavra tem, e continuará a ter, tura for u m a grande literatura, deva ter algum autor, ou algum
período, em que todas essas qualidades se manifestem. Se,
diversos significados em diversos contextos: interesso-me por
como suponho, todas elas se encontram em Virgílio, com rela-
um unico significado em um único contexto. Ao definir o termo
ção ao qual não cabe assegurar que seja o maior poeta de todos
nesse sentido, não me comprometo, daqui cm diante, a não
os tempos — tal afirmação acerca de qualquer poeta me parece
utilizar o termo em n e n h u m dos outros sentidos em q u e ele
espatafúrdia —, não é decerto correto afirmar que a literatura
tem sido empregado. Se, por exemplo, eu concluir q u e , em
latina seja maior do que qualquer outra. Não devemos conside-
alguma f u t u r a ocasião, ao escrever, em discurso público ou
rar como defeito de n e n h u m a literatura se n e n h u m autor, ou
n u m a palestra, que devo utilizar a palavra "clássico' apenas
n e n h u m período, for rigorosamente clássico; ou se, como ocorre
para reconhecer um " a u t o r modelar " em qualquer língua —
na literatura inglesa, o período que mais se ajusta à definição

1. Discurso presidencial à Virgil Society em 1944. Publicado pela Faber & Faber
2. Do gr. Aiolos, pelo lat. Aeolus. Na mitologia grega, o deus dos ventos. ( N . T . )
em 1945. ( Ν . A . )
78 T. S. ELIOT
O QVE É UM CLÁSSICO? 79

clássica não é o maior. Penso q u e essas literaturas, das quais a


o significado da maturidade realmente compreensível — na ver-
inglesa é uma das mais ilustres, na qual as virtudes clássicas se
dade, até mesmo torná-lo aceitável — para o imaturo é talvez
acham dispersas entre vários autores e diversos períodos, pode- impossível. Mas se formos maduros, reconheceremos de ime-
riam ser perfeitamente as mais ricas. Cada língua tem seus pró- diato a maturidade, ou viremos a reconhecê-la graças a um rela-
prios recursos e suas próprias limitações. As condições de u m a cionamento mais íntimo. N e n h u m leitor de Shakespeare, por
língua e as condições da história do povo q u e a fala poderiam exemplo, pode se enganar ao reconhecer, progressivamente
colocar fora de questão a expectativa de um período clássico, e n q u a n t o ele próprio cresce, o gradual a m a d u r e c i m e n t o da
ou de um autor clássico. Esse não é em si m e s m o senão um mente shakespeariana: até mesmo o mais medíocre leitor p o d e
assunto mais para tristeza do q u e para congratulação. Ocorre perceber o rápido desenvolvimento da literatura c do drama eli-
que a história de Roma foi tão grande, o caráter da língua latina sabetanos como um todo, da primitiva crueza Tudor às peças
tão poderoso, q u e , em d e t e r m i n a d o m o m e n t o , um único poeta de Shakespeare, e captar um declínio na obra dos sucessores
estritamente clássico tornou-se possível, embora devêssemos nos deste último. Podemos t a m b é m observar, a partir de uma epi-
lembrar de que isso exigiu que tal poeta, e toda u m a vida de dérmica familiaridade, que as peças de Christopher Marlowe
trabalho da parte desse poeta, extraísse a obra clássica a partir revelam uma maturidade mental e estilística superior à das
da matéria de q u e d i s p u n h a . E, n a t u r a l m e n t e , Virgílio não peças que Shakespeare escreveu na mesma época: é i m p o r t a n t e
pôde saber q u e aquilo era o q u e ele estava fazendo. Ele foi, especular que, se Marlowe tivesse vivido tanto q u a n t o Shakespe-
se algum poeta chegou a sê-lo um dia, a g u d a m e n t e consciente are, seu desenvolvimento poderia ter continuado no m e s m o
do que estava t e n t a n d o fazer; a única coisa q u e não p ô d e alme- ritmo. Mas não o creio, pois observamos que certas mentes
jar, ou não sabia q u e estava fazendo, toi escrever u m a obra clás- amadurecem antes de outras, da mesma forma como verifica-
sica, pois é somente graças a u m a compreensão tardia, e em mos que aquelas que amadurecem muito cedo nem sempre vão
perspectiva histórica, que um clássico p o d e ser reconhecido muito longe. Suscito essa questão como um lembrete: primeiro,
como tal. porque o mérito da maturidade d e p e n d e do mérito daquele
Se houvesse u m a palavra cm q u e pudéssemos nos fixar, que amadurece; segundo, porque saberíamos q u a n d o estivésse-
capaz de sugerir o máximo do que pretendo dizer com a expres- mos preocupados com a maturidade de determinados escritores
são " u m clássico esta seria maturidade. Distinguirei entre o e com a relativa maturidade de períodos literários. Um escritor
clássico universal, como Virgílio, e o clássico que permanece que tenha individualmente um espírito mais maduro poderá
como tal apenas em relação à literatura de sua própria língua, pertencer a um período menos maduro de que outro, de m o d o
de acordo com a concepção de vida de um determinado período. que, desse ponto de vista, sua obra será menos madura. A matu-
Um clássico só pode aparecer q u a n d o u m a civilização estiver ridade de uma literatura é um reflexo da sociedade dentro da
madura, q u a n d o u m a língua e u m a literatura estiverem m a d u - qual ela se manifesta: um autor individual — especialmente
ras; e deve constituir a obra de u m a m e n t e m a d u r a . E a impor- Shakespeare e Virgílio — pode fazer m u i t o para desenvolver
sua língua, mas não pode conduzir essa língua à maturidade a
tância dessa civilização e dessa língua, bem como a abrangência
menos que a obra de seus antecessores a tenha preparado para
da mente do poeta individual, q u e proporcionam a universali-
seu retoque final. Por conseguinte, uma literatura amadurecida
dade. Definir maturidade sem admitir que o ouvinte já saiba
tem u m a história atrás de si uma história que não é apenas
o q u e isso significa é quase impossível. Permitam-nos dizer,
uma crònica, um acúmulo de manuscritos e textos dessa espécie,
portanto, que, se estivermos a d e q u a d a m e n t e maduros e formos
mas uma ordenada, embora inconsciente, evolução de u m a lín-
pessoas educadas, poderemos reconhecer a maturidade n u m a
gua capaz de realizar suas próprias potencialidades dentro de
civilização e n u m a literatura, do mesmo m o d o como fazemos
suas próprias limitações.
em relação aos outros seres h u m a n o s q u e encontramos. Tornar
80 T. S. ELIOT
84 O Q U E É UM CLÁSSICO > 81

C u m p r e observar q u e u m a sociedade e u m a literatura, do tura fraseologica c o m u m — na verdade, é a prosa q u e , com


mesmo m o d o que um ser h u m a n o como indivíduo, não a m a d u - maior freqüência, se distancia mais desses padrões comuns, q u e
recem necessariamente de maneira idèntica e corrente em cada é individual ao extremo, dc m o d o q u e somos capazes de admi-
um de seus aspectos. A criança precoce é quase sempre, em tir uma "prosa poetica". N u m a época em q u e a Inglaterra já
alguns óbvios sentidos, tola para a sua idade cm comparação realizara milagres em poesia, sua prosa era relativamente ima-
com as crianças comuns. Há algum, período da literatura inglesa tura, desenvolvida o bastante para certos propósitos, mas não
que possamos qualificar de p l e n a m e n t e m a d u r o em sua abran- para outros: nessa mesma época, q u a n d o a língua francesa já
gência e em equilíbrio? Não penso assim — e, c o m o repetirei oferecera pequenas promessas de poesia tão grandes q u a n t o as
mais tarde, espero q u e não seja assim. N ã o posso dizer q u e que se descortinavam em inglês, a prosa francesa era m u i t o
algum poeta na língua inglesa haja se tornado, no curso de sua mais madura do q u e a inglesa. Só dispomos de um ou outro
vida, um h o m e m mais m a d u r o do q u e Shakespeare; não pode- escritor Tudor para compará-los a Montaigne — e o próprio
mos sequer dizer q u e algum poeta tenha feito tanto para tor- Montaigne, como estilista, é apenas um precursor, e seu estilo
nar a língua inglesa capaz de exprimir o mais sutil p e n s a m e n t o não amadureceu o bastante para atender às exigências francesas
ou as mais refinadas nuanças de s e n t i m e n t o . Todavia, não do q u e fosse um clássico. Nossa prosa estava pronta para algu-
podemos senão sentir q u e u m a peça como Way of the world, mas tarefas antes que pudesse competir com outras: um Malory
de Congreve,· é, em certo sentido, mais m a d u r a do q u e qual- poderia aparcccr m u i t o antes de um Hooker, 4 e um Hooker
quer das peças de Shakespeare, mas apenas q u a n t o a esse antes de um Hobbes, e um Hobbes antes de um Addison.
aspecto, já q u e ela reflete u m a sociedade mais m a d u r a , ou seja, Quaisquer que sejam as dificuldades que tenhamos ao aplicar
u m a maior m a t u r i d a d e de costumes. A sociedade para a qual tais padrões à poesia, é possível observar que o desenvolvimento
Congreve escreveu era, do nosso p o n t o de vista, vulgar e bas- dc u m a prosa clássica é o desenvolvimento em direção a um
tante grosseira; no entanto, ela está mais próxima de nós do estilo comum. Por isso, não pretendo dizer q u e os melhores
que a sociedade dos Tudor; talvez por essa razão a julguemos escritores sejam indistinguíveis entre si. As diferenças c caracte-
com maior severidade. Não obstante, era u m a sociedade mais rísticas essenciais permanecem: não é que as diferenças sejam
polida e menos provinciana: sua m e n t a l i d a d e era mais superfi- menores, mas se tornam mais sutis e refinadas. Para um pala-
cial, sua sensibilidade mais tacanha; descumpriu algumas pro- dar sensível, a diferença entre a prosa dc Addison e a de Swift
messas de maturidade, mas realizou outras. Assim, à maturi- será registrada como a diferença entre duas safras de vinho por
dade da mente devemos acrescentar a m a t u r i d a d e dos costumes. um connoisseur. N u m período de prosa clássica, o q u e encon-
O avanço em direção à m a t u r i d a d e da língua é, creio cu, tramos não é uma simples convenção c o m u m de escrita, como
mais facilmente reconhecido e mais r a p i d a m e n t e apreciado no o estilo c o m u m dos que redigem os artigos dc f u n d o dos jor-
desenvolvimento da prosa do q u e no da poesia. Ao considerar- nais, mas uma c o m u n i d a d c do gosto. A época que precede
mos a prosa, perturbam-nos menos as diferenças individuais uma época clássica poderá revelar tanto a excentricidade q u a n t o
de grandeza, e inclinamo-nos antes a buscar u m a aproximação a monotonia: monotonia porque os recursos da língua não foram
com um padrão c o m u m , um vocabulário c o m u m e u m a estru- ainda explorados, e excentricidade porque ainda não há n e n h u m
padrão genericamente aceito, caso seja verdade que se possa
3. Congreve. William. D r a m a t u r g o inglês (Bardsley, perto de Leeds, 1670 — Lon-
dres, 1729), considerado por Voltaire o Molière da Inglaterra. É o m e l h o r c o m e d i ó -
grafo da época da Restauração, destacando-se pela habilidade técnica. a graça dos 4 Hooker, Richard. Teòlogo e jurista inglês (Heaviiree, perto dc Exeter, 1554 —
diálogos e, sobretudo, por um cinismo epigramático e c o m e d i d o , e m b o r a às vezes Bishopsbourne, 1600) Processado como herege por suas idéias contrárias ao purita-
obsceno. Além de Way of the world, escrita em 1700, deixou The old bachelor nismo, escreveu uma obra m o n u m e n t a l , em cinco volumes, sob o título de Of the
(1693), The double dealer (1694) e Love for love (1695) (Ν T.) laws of ecclesiastical policy (1594-1597), notável por sua elegância estilística. ( N . T . )
82 T. S. ELIOT O QUE E UM CLASSICO? 83

chamar de excêntrico aquilo q u e não está no centro. Seus tex- tas dessa estirpe no final de qualquer época, poetas com u m a no-
tos poderão ser, ao mesmo t e m p o , pedantes e licenciosos. A ção apenas do passado ou, alternativamente, poetas cuja espe-
época q u e se segue a u m a época clássica p o d e t a m b é m revelar rança no f u t u r o repousa na tentativa de renunciar ao passado.
excentricidade e monotonia porque os recursos da língua, pelo A persistência da criatividade em qualquer povo consiste, con-
menos para aquele t e m p o , foram esgotados, e excentricidade seqüentemente, na manutenção de um equilíbrio coletivo entre
porque a originalidade se torna mais valorizada do q u e a corre- a tradição no sentido mais amplo — a personalidade coletiva,
ção. Mas a época na qual encontramos um estilo c o m u m será por assim dizer, consubstanciada na literatura do passado
uma época em q u e a sociedade já cristalizou um m o m e n t o de e a originalidade da geração que se encontra viva.
ordem c de estabilidade, de equilíbrio e de h a r m o n i a , assim Não podemos considerar a literatura da era elisabetana,
como a época que manifesta os maiores extremos de estilo indi- em q u e pese a sua grandeza, inteiramente m a d u r a ; não pode-
vidual será uma época de imaturidade ou de senilidade. mos considerá-la clássica. N e n h u m íntimo paralelismo pode ser
Pode-se presumir q u e a m a t u r i d a d e da língua a c o m p a n h e traçado entre o desenvolvimento das literaturas grega e latina,
a maturidade da m e n t e e dos costumes. Podemos admitir q u e a pois esta tinha aquela atrás de si; tampouco podemos esboçar
língua tangencia a m a t u r i d a d e no m o m e n t o em q u e os ho- um paralelismo entre ambas e qualquer literatura m o d e r n a ,
mens adquiram um sentido crítico do passado, u m a confiança pois as literaturas modernas têm tanto a latina q u a n t o a grega
no presente e n e n h u m a dúvida q u a n t o ao f u t u r o . Em literatura, em suas origens. Na Renascença há uma precoce aparência de
isso significa que o poeta está consciente de seus antecessores, maturidade que foi herdada da Antigüidade. Estamos cônscios
c que estamos conscientes dos antecessores q u e pulsam por de u m a aproximação mais íntima da maturidade com Milton.
detrás de sua obra, assim como p o d e m o s estar conscientes dos Milton se encontrava n u m a posição mais favorável para desen-
traços ancestrais n u m a pessoa q u e é, ao m e s m o t e m p o , única c volver um sentido crítico do passado — do passado na litera-
individual. Os antecessores deveriam ser eles próprios grandes tura inglesa - do que seus grandes antecessores. Ler Milton é
confirmar o respeito pelo gênio de Spenser, e a gratidão a Spen-
e dignos, mas suas realizações devem ser de tal ordem q u e sugi-
ser por haver contribuído para que o verso de Milton se tornasse
ram recursos ainda não desenvolvidos da língua, não de m o d o
possível. Todavia, o estilo de Milton não é um estilo clássico: é
a intimidar os escritores mais jovens com o temor de q u e t u d o
o estilo de uma língua ainda cm formação, o estilo de um escri-
o que possa ser feito já foi feito em sua língua. O poeta, é claro,
tor cujos mestres não foram ingleses, mas latinos e, em menor
n u m a época madura, pode ainda obter estímulo a partir da
escala, gregos. Isso, creio eu, parafraseando o que disseram J o h n -
esperança de que esteja fazendo algo q u e seus antecessores não
son e depois Landor q u a n d o se queixaram de que o estilo de
fizeram; pode até mesmo rebelar-se contra estes, como um ado-
Milton não era inteiramente inglês. Permitam-nos modificar
lescente promissor pode insurgir-se contra as cienças, os hábitos
esse julgamento dizendo desde já que Milton fez muito para
e as maneiras de seus pais, mas, retrospectivamente, p o d e m o s
desenvolver a língua. Um dos indícios do avanço em direção
observar que ele é o herdeiro de suas tradições, o q u e preserva
a um estilo clássico é um desenvolvimento q u e tem cm mira a
as características familiares, c que sua diferença de comporta-
maior complexidade da frase e da estrutura da oração. Tal
m e n t o é u m a diferença dentro das circunstâncias de u m a outra
desenvolvimento é visível em uma única obra de Shakespeare,
época. E, por outro lado, assim como observamos às vezes cer-
q u a n d o rastreamos seu estilo das primeiras às últimas peças:
tos homens cujas vidas foram eclipsadas pela fama dos pais ou podemos mesmo dizer que, em suas derradeiras peças, ele vai
dos avós, homens dos quais qualquer realização de q u e foram tão longe quanto possível rumo à complexidade dentro dos limi-
capazes parecem comparativamente insignificantes, t a m b é m tes do verso dramático, os quais são mais restritos do que os
uma época tardia da poesia pode ser conscientemente incapaz de outros gêneros. Mas a complexidade, para seu próprio bem,
de competir com sua ilustre ancestralidade. Encontramos poe-
84 T. S. ELIOT
O QUE É UM CLÁSSICO > 85

não constitui um objetivo a d e q u a d o ; seu propósito deve ser, tido outras coisas a fazer do que realizá-lo, não podemos nos
antes de mais nada, a expressão concisa das mais delicadas nuan- dar o luxo nem de rejeitar nem de superestimar a época de
ças da emoção e do pensamento; e, em s e g u n d o lugar, a intro- Pope; não podemos encarar a literatura inglesa como um todo,
dução de maior apuro e variedade musicais. Q u a n d o um autor ou visar corretamente o f u t u r o , sem uma apreciação crítica do
parece haver perdido, em seu amor à estrutura elaborada, a capa- nível cm que as virtudes clássicas estão exemplificadas na obra
cidade de dizer q u a l q u e r coisa de m o d o simples, q u a n d o seu de Pope; e isso significa que, a menos que estejamos aptos a
apego ao modelo torna-se tal q u e ele diz coisas a f e t a d a m e n t e desfrutar a obra de Pope, não podemos chegar a compreender
no m o m e n t o em que o melhor seria dizê-las com simplicidade, plenamente a poesia inglesa.
limitando assim seu espectro de expressão, o processo de com-
E absolutamente óbvio que a cristalização das virtudes clás-
plexidade deixa de ser inteiramente b e n i g n o , e o escritor
sicas em Pope só foi obtida por alto preço, ou seja, m e d i a n t e
começa a perder o contato com a linguagem falada. N ã o obs-
a exclusão de algumas das maiores potencialidades do verso
tante, como o verso se desenvolve, nas mãos de um poeta após
inglês. Mas, cm certa medida, o sacrifício de algumas potencia-
outro, ele transita da m o n o t o n i a à variedade, da simplicidade
lidades para consubstanciar outras é u m a condição da criação
à complexidade; e, q u a n d o declina, caminha outra vez em dire-
artística, como é uma condição da vida em geral. O h o m e m
ção à monotonia, embora possa p e r p e t u a r a estrutura formal à
que em vida se recusa a sacrificar algo para ganhar outra coisa
qual o gênio dá vida e significado. Vocês julgarão por si mes-
em troca, acaba na mediocridade ou no fracasso, e m b o r a , por
mos até q u e p o n t o essa generalização é aplicável aos antecesso-
outro lado, haja o especialista que sacrificou muito por quase
res e seguidores de Virgílio: p o d e m o s todos observar essa m o n o -
nada, ou aquele que tem tolerado a tal ponto o especialista
tonia secundária nos imitadores de Milton d u r a n t e o século
q u e nada tem a sacrificar. Mas na Inglaterra do século XVIII
XVIII ele mesmo nunca é m o n ó t o n o . E aí chega um t e m p o
temos motivo para perceber que m u i t o mais se perdeu. Criou-
em que u m a nova simplicidade, até m e s m o u m a relativa crueza,
poderá ser a única alternativa. se uma mentalidade madura, mas estreita. A sociedade e as
letras inglesas não foram provincianas no sentido de q u e não
Vocês anteciparão a conclusão em direção à qual estou
se encontravam isoladas das melhores sociedades e letras euro-
caminhando: que as virtudes do clássico q u e até agora mencio-
péias, nem tampouco na retaguarda delas, ainda q u e a própria
nei — maturidade mental, de costumes, de língua e perfeição
época fosse, por assim dizer, u m a época provinciana. Q u a n d o
do estilo c o m u m — são mais fáceis de serem comprovadas na
alguém pensa num Shakespeare, n u m Jeremy Taylor 5 ou n u m
literatura inglesa do século XVIII; e, na poesia, mais na poesia
Milton, na Inglaterra — ou num Racine, num Molière, num Pas-
de Pope. Se isso fosse t u d o o q u e eu tivesse a dizer sobre o
cal, na França —, durante o século XVII, mostra-se inclinado
assunto, decerto não seria novo, e nem valeria a pena dizê-lo.
a dizer que o século XVIII manteve perfeito o seu jardim con-
Consistiria apenas em propor u m a escolha entre dois erros à
vencional, restringindo apenas a área cultivada. Concluímos
qual os homens já chegaram: u m , o de q u e o século XVIII é
que, se o clássico e dc fato um ideal digno, deve ser ele capaz
o mais refinado período da literatura inglesa; outro, o de q u e
de revelar u m a amplitude, uma catolicidade, as quais o século
a idéia clássica deveria estar inteiramente desacreditada. Minha
opinião pessoal é a de q u e não possuímos, na língua inglesa, XVIII não pode reivindicar para si; qualidades que estão visi-
n e n h u m a época clássica nem qualquer poeta clássico; de q u e ,
q u a n d o observamos por q u e a situação é essa, não temos a 5. Taylor, Jeremy. Teólogo e religioso inglês ( C a m b r i d g e , 1613 — Lisburn, 1667),
um dos maiores representantes da Igreja anglicana no período da guerra civil.
mais leve razão para nos aborrecermos; mas q u e , apesar disso, G r a n d e poeta em prosa e mestre da retórica, foi o maior orador sacro inglês depois
devemos manter o ideal clássico diante de nossos olhos. Porque de J o h n D o n n e . Deixou, entre outros, The liberty of prophesyng (1647) e The
minister's duty in life and doctrine ( 1661 ). ( N . T . )
nos cumpre mantê-lo, e porque o gênio inglês da língua tem
T. S. ELIOT
86
Ο Q U E É UM CLÁSSICO? 87

veis em alguns grandes autores, como Chaucer, 6 que não p o d e m ,


povo do poeta; precisamos disso para ver nosso próprio lugar
a meu ver, ser olhados como clássicos da literatura inglesa, e
na história. Devemos conhecer a história de pelo menos outro
que se encontram presentes de corpo e alma na m e n t e medie-
povo altamente civilizado, e a de um povo cuja civilização é
val de Dante. Pois cm A divina comedia, possivelmente em
suficientemente aparentada para ter influenciado e penetrado
qualquer de suas passagens, encontramos o clássico n u m a lín-
a nossa própria história. Essa foi u m a consciência q u e os roma-
gua europeia moderna. D u r a n t e o século XV11I estamos sufoca-
nos tiveram, e que os gregos, por mais q u e possamos estimar
dos por um espectro restrito da sensibilidade, especialmente
cm alto grau sua proeza — e, na verdade, c u m p r e respeitá-los
no plano do sentimento religioso. N ã o é q u e a poesia, pelo
acima de t u d o por isso —, não possuíram. Foi u m a consciência
menos na Inglaterra, não fosse cristã, como tampouco até mesmo
que certamente o próprio Virgílio se e m p e n h o u bastante em
os poetas não fossem cristãos devotos, pois um m o d e l o de orto-
desenvolver. Desde o começo, Virgílio, como seus contemporâ-
doxia de princípios, c dc sincera religiosidade de sentimentos,
neos e antecessores imediatos, foi c o n t i n u a m e n t e a d a p t a n d o e
poderão ser vislumbrados m u i t o antes q u e nos deparemos com utilizando as descobertas, as tradições e as invenções da poesia
um poeta mais autêntico do q u e Samuel J o h n s o n . Todavia, grega; utilizar uma literatura estrangeira nesse sentido assinala
há evidências de u m a sensibilidade religiosa mais p r o f u n d a na um estágio ulterior de civilização que suplanta aquele em q u e
poesia de Shakespeare, cuja fé e prática p o d e m ser apenas u m a apenas se utilizam os primitivos estágios da sua própria, embora
questão dc conjectura, E essa limitação da sensibilidade religiosa eu julgue ser possível dizermos que n e n h u m poeta jamais reve-
produz ela mesma u m a espécie de regionalismo (embora deva- lou um senso de proporção mais aguçado que o de Virgílio
mos acrescentar q u e , nesse sentido, o século XIX foi ainda q u a n t o à utilização que ele faz dos poetas gregos e da primi-
mais provinciano): o regionalismo q u e indica a desintegração tiva poesia latina. E esse desenvolvimento de u m a literatura,
da cristandade, a decadência da crença e da cultura c o m u n s . ou de u m a civilização, relativamente à outra, q u e confere u m a
Pareceria, portanto, que o nosso século XVIII, apesar de sua significação peculiar à temática da épica virgiliana. Em Homero,
proeza clássica — u m a proeza, creio e u . q u e tem ainda grande o conflito entre gregos e troianos é acentuadamente mais a m p l o
importância como um exemplo para o f u t u r o —, estava per- em alcance do que u m a disputa entre uma cidade-estado grega
dendo ccrta condição q u e possibilita a criação de um verdadeiro e u m a coalizão de outras cidades-cstados: atrás da história de
clássico. Para descobrir o q u e seja tal condição, devemos voltar Enéias^ está a consciência da mais radical distinção, u m a distin-
a Virgílio. ção que é, ao mesmo tempo, u m a declaração de parentesco
Em primeiro lugar, gostaria de insistir sobre as característi- entre duas grandes culturas e, afinal, de sua reconciliação sob
um destino totalmente entrelaçado.
cas que já atribui ao clássico, aplicando-as especialmente a Vir-
gílio, à sua língua, à sua civilização e ao m o m e n t o particular A maturidade da mente de Virgílio, e a m a t u r i d a d e de sua
da história dessa língua e dessa civilização a q u e ele chegou. época, estão manifestas nessa consciência da história. Relacio-
Maturidade da mente: isso implica a história, e a consciência nei a maturidade da mente à maturidade das maneiras e à
da história. Essa consciência não pode estar plenamente desperta, ausência de provincianismo. S u p o n h o que, para um europeu
a não ser que haja outra história além da história do próprio moderno subitamente imerso no passado, o c o m p o r t a m e n t o
social dos romanos e dos atenienses poderia parecer indiferente-
6. Chauccr, Geoffrey Poeta e ficcionista inglês (Londres? c 1340 id. 14(H)). mente grosseiro, bárbaro e agressivo. Mas se o poeta puder retra-
estudioso das obras de Ovídio, Virgílio e Boécio, de q u e m traduziu De comolatione
philosophie ($23-524). Influenciado por D a n t e . Peitaria e a literatura francesa, tra- 7. Eni lai. Aeneas, cm gr. Aíneias. Príncipe troiano, herói de u m a lenda grega
duziu L· roman dt' la rose, de G u i l l a u m e de Loris e J e a n de Meung O b r a s princi- retomada e ampliada por Virgílio na Eneida Essa lenda supõe a origem asiática
pais: The hook of the duchess (1369). Troylus and Cnseyd (c. 1385) c. acima de de certos povos italianos, provavelmente os etruscos. De acordo com a lenda,
todas, os Canterbury tales. (Ν T.) Roma teria sido f u n d a d a pelos descendentes de Enéias. ( N . T . )
T. S. ELIOT 84 O QUE É UM CLÁSSICO > 89
88

O comportamento de Dido nos dá a impressão de ser quase


tar algo superior à prática contemporânea, não o fará no sen-
uma projeção da própria consciência de Enéias, e percebemos
tido de antecipar algum tardio, e absolutamente distinto, código
que es se é o meio através do qual a consciência de Enéias pode-
de conduta, mas por meio de u m a percepção (insight) na qual
ria esperar que Dido se comportasse em relação a ele. A ques-
a conduta de seu próprio povo em sua própria epoca poderia
tão, me parece, não é a de que Dido se mostre inexorável,
ser o melhor de t u d o isso. As reuniões festivas das classes abas-
embora seja importante que, cm vez de zangar-se com ele, cia
tadas na Inglaterra eduardiana não foram exatamente o q u e
simplesmente o censura — talvez a mais eficiente censura em
lemos nas páginas de Henry J a m e s ; 8 a sociedade de J a m e s foi
toda a poesia; o que importa sobretudo é que Enéias não se
u m a idealização (de qualidade inferior) dessa sociedade, e não esqueça de si mesmo — e isso, significativamente, a despeito
a antecipação de n e n h u m a outra. S u p o n h o q u e estejamos cons- do (ato de que ele esteja bastante consciente dc q u e t u d o
cientes, mais em Virgílio do q u e em qualquer outro poeta latino aquilo que fez, o fez de acordo com o destino, ou em conse-
— pois, se comparados a ele, Catulo 9 e Propércio 1 0 parecem qüência das intrigas dos deuses que são eles próprios, perce-
rufiões, e Horácio um tanto plebeu —, de um r e f i n a m e n t o de bemo-lo, apenas instrumentos de um poder inescrutável supe-
maneiras que brota de u m a sensibilidade delicada, e particular- rior. Aqui, o que seleciono como um exemplo de maneiras civi-
mente nesse teste de maneiras, u m a c o n d u t a pública e privada lizadas continua a testemunhar uma consciência e u m a percep-
entre os sexos. Não me c o m p e t e , n u m a reunião de pessoas, as ção civilizadas, mas todos os níveis em q u e podemos considerar
quais todas p o d e m ser mais eruditas do q u e eu, recapitular a um episódio isolado pcrtencem a um conjunto. Podcr-se-á
história de Enéias e Dido. 1 1 Mas sempre imaginei o encontro observar, finalmente, que o comportamento das personagens
entre Enéias e a sombra de D i d o , no livro IV da Eneida, não de Virgílio (eu poderia excetuar Turnus, o h o m e m sem desti-
apenas u m a das mais pungentes, mas t a m b é m u m a das mais no) jamais parece estar de acordo com algum código de con-
civilizadas passagens em verso. Ela é complexa q u a n t o ao signi- duta estritamente local ou tribal: ele pertence a seu t e m p o ,
ficado e económica do ponto de vista da expressão, pois não tanto romano q u a n t o europeu. No plano dos costumes, Virgí-
nos informa apenas sobre a atitude de D i d o , mas t a m b é m — lio não é decerto um provinciano.
o que é ainda mais importante — sobre a atitude de Enéias. Tentar demonstrar a maturidade da língua e do estilo virgi-
lianos é, na presente ocasião, uma tarefa supérflua: muitos dc
8. James, Henry. Romancista e contista norte-americano (Nova York, 1843 — Lon- vocês poderiam se portar melhor do que cu, e imagino q u e to-
dres, 1916), irmào do filósofo pragmatista William J a m e s Passou a maior parte
da vida na Europa e naturalizou-se cidadão inglês em 1916. Seu tema quase obses-
dos deveríamos estar de acordo. Mas vale a pena repetir q u e o
sivo é o conflito moral entre a m e n t a l i d a d e norte-americana e a européia, c o m o estilo dc Virgílio não teria sido possível sem que houvesse uma
se pode ver em The Bostonian (1886), The turn of the screw (1898) ( n o Brasil. A literatura a sua retaguarda, e sem que houvesse de sua parte
outra volta do parafuso ou Os inocentes). The wings of the dove (1902) e The gol
den howl( 1914). (N.T.)
um conhecimento muito íntimo dessa literatura, de m o d o que,
9. Catulo, Caio Valério (em lat. Caius Valerius Catullus) Poeta latino (Verona, c.
cm certo sentido, ele estava reescrevendo a poesia latina, como
87 — Roma, c. 54 a . C . ) . cuja breve existência foi preenchida pelos prazeres m u n - nos casos cm que toma dc empréstimo uma frase ou uma inven-
danos e pela paixão por Lésbia. Dele sobrevivem cento e dezesseis p o e m a s , imita- ção de um antecessor e as aperfeiçoa. Virgílio foi um autor culto,
dos dos poetas alexandrinos. ( N . T . )
para o qual toda a erudição era relevante à sua tarefa; e teve à
10. Em lat. Sextus Aurelius Propertius. Poeta latino (Umbria, c 47 ? c. 15
a . C . ) que dedicou seus poemas à m u l h e r q u e celebrizou sob o n o m e de Cíntia. sua disposição, em termos de literatura, apenas o bastante atrás
Suas elegias se inspiram nas dos alexandrinos, mas distinguem-se de simples imita- de si, e não mais do que isso. Q u a n t o à maturidade dc estilo,
ções pela autêntica paixão erótica. Foram m u i t o traduzidas na Renascença. ( N . T . )
não creio que n e n h u m poeta tenha jamais desenvolvido um
11. Segundo a lenda, após várias peregrinações, Enéias, q u e escapara de Tróia
domínio maior da complexa estrutura tanto de sentido q u a n t o
q u a n d o da t o m a d a da cidade pelos gregos, foi a m a d o em Cartago pela rainha
Dido, chegando depois à Itália, o n d e o rei do Lácio lhe deu a filha Lavinia em casa- de som, sem perder o recurso da simplicidade direta, concisa e
mento. Os amores de Enéias e D i d o foram eternizados por Virgílio na Eneida. ( N . T . )
90 T. S. ELIOT
O QUE É UM CLÁSSICO? 91

surpreendente q u a n d o a ocasião o exigia. Desnecessário alon-


lembrança agradavelmente vaga do distante original. Mas a poe-
gar-me sobre isso, mas imagino q u e valha a pena dizer u m a
sia inglesa c t a m b é m a francesa podem ser consideradas b e m -
palavra mais sobre o estilo comum, pois se trata de algo q u e
sucedidas sob este aspecto: o de que os maiores poetas esgota-
não podemos ilustrar p e r f e i t a m e n t e a partir da poesia inglesa
ram apenas determinadas áreas. Não podemos dizer q u e , desde
e para o qual somos capazes de tributar menos respeito do q u e
a época de Shakespeare, e respectivamente desde os tempos
o suficiente. Na m o d e r n a literatura européia, as mais íntimas
de Racine, tenha-se escrito algum drama poético realmente de
aproximações com o ideal de um estilo c o m u m são provavel-
primeira grandeza na Inglaterra ou na França; desde Milton
mente encontradas em Dante e Racine; q u e m dele mais se apro-
não tivemos n e n h u m grande poema épico, embora t e n h a m
xima na poesia inglesa é Pope, e o estilo c o m u m de Pope é
sido estritos poemas longos de grande qualidade. E verdade
um estilo que, em comparação, revela um alcance m u i t o estreito. que cada supremo poeta, clássico ou não, tende a esgotar o
O estilo c o m u m é aquele q u e nos leva a exclamar, não este solo que cultiva, de modo que este, após a produção dc u m a
é um h o m e m de gênio no uso da l í n g u a " , mas este realiza colheita reduzida, deve afinal ser deixado sem cultivo por algu-
o gênio da l í n g u a " . Não afirmamos isso ao 1er Pope, p o r q u e mas gerações.
conhecemos muito bem todos os recursos da língua inglesa dos
Pode-se aqui objetar que o efeito sobre a literatura por mim
quais ele se serviu; p o d e m o s no m á x i m o dizer este realiza o
atribuído ao clássico resulte não no caráter clássico dessa obra,
gênio da língua inglesa n u m a d e t e r m i n a d a é p o c a " . Não afir-
mas simplesmente de sua grandeza, pois tenho negado a Sha-
mamos isso ao 1er Shakespeare e Milton, p o r q u e estamos sem- kespeare e a Milton a condição de clássicos no sentido em q u e
pre conscientes da grandeza do h o m e m e dos milagres q u e ele estou utilizando o termo de forma cabal, c ainda q u e não haja
está realizando com a língua; estamos mais próximos talvez de admitido que n e n h u m a poesia superlativamente grande do
Chaucer, mas é q u e Chaucer está utilizando, do nosso p o n t o mesmo gênero tenha sido desde então escrita. E incontestável
de vista, u m a língua diferente e mais grosseira. Shakespeare e o fato de que cada grande obra de poesia tende a tornar impos-
Milton, como demonstra a história mais recente, deixaram aber- sível a produção de obras igualmente expressivas da mesma espé-
tas muitas possibilidades para outros empregos do inglês na cie. A razão para isso pode ser parcialmente exposta em termos
poesia, ao passo q u e , após Virgílio, é mais verdadeiro dizer de propósito consciente: n e n h u m poeta de primeira ordem ten-
que não se registrou n e n h u m desenvolvimento até a língua taria fazer novamente o que já foi feito tão bem q u a n t o p ô d e
latina tornar-se algo diferente. tê-lo sido em sua língua. Somente após ter sido a língua
A esta altura, gostaria de voltar à questão q u e anterior- mais ainda a sua cadência do q u e o vocabulário e a sintaxe —
mente propus, isto é: se o aparecimento de um clássico, no sen- modificada o bastante, com o correr do tempo e das transforma-
tido em que tenho utilizado o termo em todos os aspectos, cons- ções sociais, é que outro poeta dramático tão grande q u a n t o
titui inteiramente, para o povo e a língua de sua origem, u m a Shakespeare, ou outro poeta épico tão grande q u a n t o Milton,
pura bênção — ainda que isso seja indiscutivelmente um motivo pode torná-lo possível. Não unicamente todo grande poeta,
de orgulho. Suscitar essa questão na m e n t e de alguém é quase mas todo poeta autêntico, mesmo que poeta menor, satisfaz
tão simples q u a n t o meditar sobre a poesia latina depois de Vir- alguma possibilidade da língua, deixando então u m a possibili-
gílio e considerar cm que extensão os poetas q u e se lhe segui- dade a menos para seus sucessores. O veio q u e ele esgotou
ram viveram e trabalharam à sombra de sua grandeza, de pode ser muito p e q u e n o , ou pode representar alguma forma
m o d o que os louvamos ou não, dc acordo com os padrões q u e maior dc poesia, épica ou dramática. Mas o que o grande poeta
ele estabeleceu, ou os admiramos, às vezes, pela descoberta dc esgotou foi apenas uma forma, c não a totalidade da língua.
alguma variação que era nova, ou mesmo apenas pela recombi- Q u a n d o o grande poeta é t a m b é m um grande clássico, ele
nação de modelos vocabulares destinados a proporcionar uma esgota não apenas uma forma, mas t a m b é m a língua de sua
96 T. S. ELIOT
O QUE í : : UM CLÁSSICO? 93

época; e a língua de sua época, como ele a utilizou, será a lín- paração com aquela que produziu um clássico. Se a literatura
gua em sua perfeição. De m o d o q u e não é o poeta sozinho culminasse n u m clássico, isso seria uma questão de sorte. Trata-
que temos de levar em conta, mas a língua em q u e ele escreveu: se a m p l a m e n t e , suponho, de uma questão relativa ao grau de
não se trata simplesmente do fato de q u e um poeta clássico fusão dos elementos dentro dessa língua, de m o d o que as lín-
esgota a língua, mas de q u e u m a língua esgotável constitui a guas laiinas podem se aproximar mais i n t i m a m e n t e do clássico,
variedade lingüística q u e produz um poeta clássico. não apenas porque são latinas, mas porque são mais homogê-
Podemos estar propensos a perguntar, p o r t a n t o , se não neas do que o inglês e, por conseguinte, t e n d e m mais natural-
somos afortunados por dispor de u m a língua q u e , em vez de mente ao esti/o comum, enquanto o inglês, por ser a mais diver-
ter produzido um clássico, pode orgulhar-se de u m a rica varie- sificada das grandes línguas no que se refere a seus elementos
dade no passado e, além disso, da possibilidade de algo novo constitutivos, tende mais à variedade do que à perfeição, carece
no f u t u r o . Mas e n q u a n t o estivermos dentro de u m a literatura, de um t e m p o maior para cristalizar sua potencialidade e contém
e n q u a n t o falarmos a mesma língua e tivermos f u n d a m e n t a l - ainda, talvez, possibilidades mais inexploradas. Ele tem, prova-
mente a mesma cultura q u e produziu a literatura do passado, velmente, a maior capacidade para m u d a r e, não obstante, per-
desejaremos conservar duas coisas: o o r g u l h o de q u e nossa lite- manecer a mesma língua.
ratura já se cumpriu e a crença de q u e p o d e ainda cumprir-se Abordarei agora a distinção entre o clássico relativo e o clás-
no futuro. Se deixássemos de acreditar no f u t u r o , o passado sico absoluto, a distinção entre a literatura q u e podemos cha-
deixaria de ser p l e n a m e n t e o nosso passado: tornar-se-ia o pas- mar de clássica em relação a sua própria língua e aquela q u e é
sado de uma civilização morta. E essa consideração deve atuar clássica em relação a u m a série de outras línguas. Antes de
de forma particularmente irrefutável sobre a m e n t e daqueles mais nada, porém, desejo registrar mais u m a característica do
que se comprometeram com a tentativa de contribuir para clássico, alénrdas q u e já enumerei, a qual nos ajudará a estabe-
ampliar o repertório da literatura inglesa. Não há n e n h u m clás- lecer essa distinção e sublinhar a diferença entre um clássico
sico na língua inglesa; por conseguinte, n e n h u m poeta vivo como Pope e outro como Virgílio. Convém aqui recapitular cer-
pode dizer q u e não resta ainda a esperança de q u e eu — e os tas afirmações que fiz anteriormente.
que vierem depois de m i m , pois n i n g u é m p o d e encarar com Logo de início sugeri que uma freqüente, senão universal,
serenidade, u m a vez q u e c o m p r e e n d e o q u e está implícito, a característica do amadurecimento dos indivíduos pode ser um
idéia de ser o derradeiro poeta — possa ser capaz de escrever processo de seleção (não de todo consciente), de desenvolvi-
algo que valerá a pena preservar. Mas do p o n t o de vista da eter- m e n t o de algumas potencialidades em detrimento de outras; e
nidade, esse interesse pelo f u t u r o nada significa: q u a n d o duas que a semelhança pode ser encontrada no desenvolvimento da
línguas são ambas línguas mortas, não p o d e m o s dizer q u e u m a língua e da literatura. Sc assim fosse, deveríamos esperar ser
delas seja maior devido ao n ú m e r o e à diversidade de seus poe- possível que n u m a literatura clássica menor, tal como a nossa
tas, ou que a outra possa sê-lo p o r q u e seu gênio está mais no fim do século XVII e no século XVIII, os elementos excluí-
cabalmente expresso na obra de um poeta. O q u e desejo afir- dos, para atingir a maturidade, fossem mais numerosos e mais
mar, a um só e mesmo t e m p o , é isto: q u e , pelo fato de ser o sérios, c que a satisfação diante do resultado fosse sempre qua-
inglês u m a língua viva e a língua na qual vivemos, p o d e m o s lificada por nossa consciência q u a n t o às possibilidades da lín-
nos dar por satisfeitos de que ela jamais se realizou inteiramente gua, reveladas nas obras dc autores mais antigos, q u e haviam
em si na obra de um poeta clássico, mas q u e , por outro lado, sido ignorados. A era clássica da literatura inglesa não é repre-
o critério clássico é de importância vital para nós. Ele é indis- sentativa do gênio total da raça; como insinuei, não podemos
pensável para julgarmos nossos poetas em separado, embora dizer que esse gênio esteja cabalmente consumado em n e n h u m
nos recusemos a julgar nossa literatura como um todo em com- período, resultando daí que podemos ainda, com referência a
94 T. S. ELIOT 96 O QUE í : : UM CLÁSSICO? 95

um ou outro período do passado, imaginar possibilidades para ção, pretender encontrar a semelhança aproximada com o clás-
o futuro. A língua inglesa oferece um a m p l o espectro para legí- sico cm nenhuma língua moderna. E necessário remontar às
timas divergências de estilo, q u e parece ser tal q u e n e n h u m a duas línguas mortas; é importante que elas estejam mortas,
época, c certamente n e n h u m escritor, p u d e r a m estabelecer pois graças à sua morte é que podemos penetrar cm sua herança
u m a norma. A língua francesa parece ter permanecido mais (o fato de que estejam mortas não lhes daria n e n h u m mérito,
intimamente apegada a um estilo normal; todavia, mesmo em a não ser a circunstância de que todos os povos da Europa são
francês, embora a língua dê a impressão de q u e sc estabeleceu, seus beneficiários). E de todos os grandes poetas gregos e roma-
definitivamente, no século XVII, hâ um sprit gaulois, um ele- nos, julgo ser a Virgílio aquele a quem mais devemos pelo esta-
mento de riqueza presente em Rabelais e em Villon, a consciên- belecimento de nosso padrão do que seja um clássico, o q u e ,
cia de que ele pode alterar nosso j u l g a m e n t o q u a n t o à totali- volto a insistir, não é o mesmo que pretendê-lo como o maior
dade de Racine ou Molière, pois sentimos q u e esta se acha não de todos, ou aquele com o qual, de qualquer m o d o , mais esta-
apenas irretratada, mas t a m b é m irrcconciliada. Podemos con- mos em dívida — é de uma dívida particular que falo. Sua com-
cluir, portanto, q u e o perfeito clássico deve ser aquele cm q u e pletude, sua singular espécic de completude, é devida à situa-
todo o gênio de um povo esteja latente, senão de todo revelado; ção única, em nossa história, do Império Romano c da língua
latina — uma situação com cujo destino se p o d e dizer estar
e que ele só pode se manifestar n u m a língua se t o d o o seu
de acordo. Esse sentido de destino vem à consciência na Enei-
gênio puder estar presente de u m a vez. Devemos assim acres-
da. Enéias é cm si, do princípio ao fim, um " h o m e m com des-
centar, à nossa lista de características do clássico, a da comp le-
tino' , um h o m e m que não é nem um aventureiro nem um in-
tude. Dentro de suas limitações formais, o clássico deve expres-
trigante, nem um vagabundo nem um carreirista, mas um
sar o máximo possível da gama total de s e n t i m e n t o q u e repre-
homem obediente ao seu destino, não por compulsão ou decreto
senta o caráter do povo q u e fala essa língua. Representá-lo-á o
arbitrário, e não certamente por qualquer desejo dc glória, por
melhor que puder, e exercerá t a m b é m o mais a m p l o fascínio:
submeter sua vontade a um poder superior ao dos deuses q u e
junto ao povo a q u e pertence encontrará sua resposta entre
o frustrariam ou o dirigiriam. Ele teria preferido ficar em Tróia,
todas as classes e condições h u m a n a s .
mas optou pelo exílio, e por algo maior e mais significativo
Q u a n d o u m a obra literária, além dessa c o m p l e t u d e relati- do que qualquer exílio: exilou-se por um propósito maior do
vamente a sua própria língua, revela idêntica significância em que poderia imaginar, mas que reconhecia; c não é, n u m sen-
relação a várias outras literaturas, p o d e m o s dizer q u e possui tido h u m a n o , um homem feliz ou bem-sucedido. Mas é o sím-
t a m b é m universalidade. Podemos falar, por exemplo, mereci- bolo de Roma; e assim como Enéias está para Roma, a antiga
d a m e n t e o bastante da poesia dc G o e t h e como constituindo Roma está para a Europa. Assim, Virgílio adquire a centrali-
um clássico, devido ao lugar q u e ela ocupa em sua própria lín- dade do único clássico; ele está. no centro da civilização euro-
gua e literatura. Mas, devido, ainda, a sua parcialidade, à péia, n u m a situação que n e n h u m outro poeta pode usurpar-lhe
impermanência de alguns de seus conteúdos, e ao germanismo ou dividir com ele. O Império Romano e a língua latina não
da sensibilidade, por G o e t h e se revelar, para um olhar estran- constituíram um império qualquer nem uma língua qualquer,
geiro, limitado por sua época, por sua língua e por sua cultura, mas um império e uma língua com um destino único em rela-
de m o d o a não ser representativo de u m a tradição européia glo- ção a nós mesmos; e o poeta em cuja consciência e expressão
bal — e, como nossos autores do século XIX, um pouco provin- cs se império e essa língua vieram à tona é um poeta de destino
ciano — „ n ã o podemos considerá-lo um clássico universal. É ele único.
um autor universal no sentido de que é um autor com cujas Se Virgílio é, pois, a consciência de Roma e a suprema voz
obras todo europeu viu-se obrigado a se familiarizar, mas isso de sua língua, deve ter uma significação para nós que não
é outra coisa. Não podemos tampouco, n u m a ou noutra avalia-
96 T. S. ELIOT
O QUE í:: UM CLÁSSICO? 97

pode ser expressa inteiramente em termos de apreciação literá- fica, mas da aplicação de padrões adquiridos dentro de u m a
ria e de crítica. Todavia, m a n t e n d o - n o s fiéis aos problemas de área restrita, para a totalidade da experiência h u m a n a , q u e con-
literatura, ou aos termos literários q u a n d o a b o r d a m o s a vida, f u n d e m o contingente com o essencial, o efêmero com o perma-
podemos nos permitir ir além do q u e afirmamos. Em termos nente. Em nossa época, q u a n d o os homens parecem mais do
literários, o mérito de Virgílio reside para nós no fato de q u e que propensos a confundir sabedoria com conhecimento, e
ele nos proporciona um critério. Podemos, c o m o já disse, ter conhecimento com informação, e a tentar resolver problemas
motivos para nos alegrar com a circunstância de q u e esse crité- da vida em termos de engenharia, começa a emergir na existên-
rio é fornecido por um poeta q u e escreve n u m a língua diferente cia uma nova espécie de provincianismo que talvez mereça um
da nossa, mas esta não constitui u m a razão para rejeitar o crité- novo nome. E um provincianismo, não de espaço, mas de
rio. Preservar o padrão clássico, e avaliar por meio dele cada tempo, aquele para o qual a história é simplesmente a crónica
obra literária individual, é comprovar q u e , e n q u a n t o nossa lite- dos projetos humanos que têm estado a serviço de suas revira-
ratura em c o n j u n t o pode abarcar t u d o , cada u m a de suas obras voltas e q u e foram reduzidos à sucata, aquele para o qual o
pode ser imperfeita em algum p o r m e n o r . Pode se tratar de m u n d o constitui a propriedade exclusiva dos vivos, a proprie-
uma imperfeição necessária, de u m a imperfeição sem a qual dade da qual os mortos não partilham. A ameaça dessa espécie
certa qualidade nela presente se perderia, mas devemos vê-la de provincianismo é que podemos todos, todos os povos do
como u m a imperfeição e ao m e s m o t e m p o c o m o u m a necessi- m u n d o , ser provincianos juntos; e aqueles que não estiverem
dade. À falta desse padrão a q u e me refiro, um padrão q u e . satisfeitos em ser provincianos podem apenas tornar-se eremitas.
podemos manter claramente diante de nós se confiarmos ape- Se essa espécie de provincianismo conduzir a uma tolerância
nas em nossa própria literatura, nos inclinaremos, acima de maior, n u m sentido de indulgência, poderia haver mais a ser
tudo, a admirar obras de génios por motivos erróneos, como lou- dito sobre ela; parece mais provável, contudo, que ela nos leve
vamos Blake por sua filosofia e Hopkins por seu estilo, e daí a nos tornar indiferentes a assuntos cm relação aos quais somos
caminharemos para um erro maior, ao nivelarmos u m a catego- obrigados a manter um dogma ou um padrão característico, e
ria de primeira grandeza a u m a de segunda o r d e m . Em suma, a nos tornar intolerantes em assuntos que poderiam ser deixa-
sem a contínua aplicação da medida clássica, q u e devemos mais dos à preferência local ou pessoal. Podemos ter quantas varieda-
a Virgílio do que a qualquer outro poeta, tenderemos a nos tor- des de religião nos aprouver, desde que todos enviemos nossas
nar provincianos. crianças às mesmas escolas. Mas minha preocupação aqui é ape-
nas com o corretivo para o provincianismo em literatura. Preci-
Por "provinciano' e n t e n d o aqui algo mais do q u e encon-
samos lembrar a nós mesmos q u e , como a Europa é um todo
tro nas acepções dicionárias. Pretendo dizer mais, por exemplo,
(c mais: cm sua gradual mutilação c desfiguração, o organismo
do que " n ã o possuir a cultura ou o requinte da capital·',
fora do qual n e n h u m a harmonia mundial superior deve se
embora, é claro, Virgílio fosse da capital, n u m a escala q u e torna
desenvolver), assim também a literatura européia é um todo,
qualquer poeta mais recente de igual estatura semelhante a
cujos diversos membros não podem florescer se a mesma cor-
um p e q u e n o regionalista; e p r e t e n d o dizer mais do q u e es-
rente sangüínea não circular por todas as partes do corpo. A
treito no pensamento, na cultura, no c r e d o " — u m a definição corrente sangüínea da literatura européia é latina e grega, não
traiçoeira, aliás, pois, de um ponto de vista liberal m o d e r n o , como dois sisicmas dc circulação, mas um só, pois c através de
Dante foi " l i m i t a d o no p e n s a m e n t o , na cultura, no c r e d o " , Roma que nosso parentesco deve ser delineado na Grécia. Q u e
embora, como m e m b r o da Igreja, fosse mais liberal do q u e con- unidade comum dc excelência temos nós na literatura, entre
servador, q u e é o mais provinciano. Refiro-me t a m b é m a u m a nossas várias línguas, senão a unidade clássica? Q u e inteligibi-
distorção de valores, à exclusão de alguns, ao exagero de outros, lidade recíproca podemos pretender preservar, a não ser a de
que resultam, não de u m a falta de ampla circunscrição geográ-
98 T. S. ELIOT
O Q U E É UM CLASSICO? 99

nossa herança c o m u m de p e n s a m e n t o e de sensibilidade naque-


las duas línguas, para a compreensão de q u e n e n h u m povo desfrutar, conduziu a Europa para a civilização cristã q u e ele
nunca poderia conhecer; e aquele que, ao pronunciar suas der-
europeu está em situação de vantagem com relação a q u a l q u e r
radeiras palavras na nova língua italiana, disse ao se despedir:
outro? N e n h u m a língua moderna poderia aspirar à universali-
dade do latim, ainda q u e viesse a ser falada por milhões de
il temporal foco e l'eterno
pessoas a mais do q u e aquelas q u e talaram o latim e m e s m o
veduto hai, figlio, e sei venuto in parte
que se tornasse o veículo de comunicação para os povos de todas dov Ίο per me più oltre non di scemo.1 s
as línguas e culturas. N e n h u m a língua m o d e r n a p o d e preten-
der produzir um clássico no sentido em q u e considero Virgílio Meu filho, ο fogo eterno e o temporal
um clássico. O nosso clássico, o clássico de toda a Europa, é já contemplaste, e eis-me chegado à parte
Virgílio. que ultrapassar não posso, por rneu mal.14
Em nossas diversas literaturas temos m u i t a opulência da
qual nos gabar para q u e a literatura latina seja c o m p a r a d a a
quaisquer delas; mas toda literatura tem sua grandeza, não iso-
ladamente, c sim graças ao lugar q u e ocupa n u m m o d e l o mais
vasto, um modelo q u e se estabelece em Roma. Já talei da nova
seriedade — poderia dizer gravidade , da nova percepção his-
tórica, ilustrada pela devoção de Eneias a Roma, a um f u t u r o
muito alem de sua realização viva. Sua recompensa foi pouco
mais do q u e u m a estreita cabeça-de-praia e um casamento polí-
tico n u m a extenuada meia-idade: sua j u v e n t u d e foi sepultada,
a sombra dela se m o v e n d o com as trevas do o u t r o lado de
Cumae. 1 2 De fato, disse e u , alguém intuiu o destino da Roma
antiga. Assim podemos imaginar a literatura romana: à primeira
vista, u m a literatura de alcance limitado, com um modesto
repertório dc grandes nomes, ainda q u e tão universal q u a n t o
n e n h u m a outra literatura conseguiu sê-lo; u m a literatura incons-
cientemente sacrificial, de acordo com seu destino na Europa,
com a opulência e a variedade das línguas mais recentes, desti-
nada a produzir, para nós, o clássico. Bastaria q u e esse p a d r ã o
fosse estabelecido em definitivo; não cabe realizar n o v a m e n t e
a tarefa. Mas a m a n u t e n ç ã o do padrão é o preço de nossa liber-
dade, a defesa da liberdade contra o caos. Podemos nos recor-
dar dessa obrigação através de nossa prática anual de compaixão
para com o grande espectro que guiou a peregrinação de Dan-
te: aquele q u e , qualquer q u e fosse sua f u n ç ã o ao conduzir
Dante rumo a u m a visão da qual jamais ele próprio poderia
13. Dante Alighieri. L· divina comme Ju, Purgatorio, Canto XXVII, 127-129. ( N . T . )
1·ί. Ί rad. dc Cristiano Martins, A divina comedia. vol. 2, Itatiaia, Belo Horizon-
12. Segundo Estrabão, a mais antiga (721 a . C . ) das colônias gregas no c o n t i n e n t e . te. Editora da USP, São Paulo, 1979. ( N . T . )
POESIA E DRAMA 101

para outras pessoas, se for o caso, por que o drama poético tem
potencialmente algo a oferecer aos que freqüentam teatro q u e
o drama em prosa não tem. Sc partirmos do pressuposto de
que a poesia é apenas um ornamento, um enfeite q u e se acres-
centa, que simplesmente proporciona às pessoas de gosto literá-
POESIA E DRAMA 1 rio o prazer de ouvir poesia ao mesmo t e m p o cm que assistem
a uma peça, então ela é supérflua. A poesia deve justificar a si
mesma dramaticamente, e não apenas apresentar-se como
esplêndida poesia adaptada a uma forma dramática. Conclui-
se daí que n e n h u m a peça para a qual a prosa é dramaticamente
adequada deveria ser escrita em verso. E daí sc conclui, nova-
mente, que o público, com seu interesse mobilizado pela ação
dramática, com suas emoções excitadas pela tensão entre as per-
sonagens, deveria permanecer p r o f u n d a m e n t e atento à peça
ι para adquirir plena consciência dos recursos utilizados.
Se usarmos no palco a prosa ou o verso, ambos constituirão
Revendo minha produção crítica destes últimos estranhos apenas meios destinados a um fim. De certo ponto de vista, a
trinta anos, surpreendi-me ao perceber q u a n t o voltei insistente- diferença não é tão grande q u a n t o possamos imaginar. Nas
mente ao drama, quer por meio da análise da obra dos c o n t e m - peças em prosa que ainda sobrevivem, e que são lidas e encena-
porâneos de Shakespeare, quer m e d i a n t e a reflexão sobre as das por gerações mais recentes, a prosa que as personagens talam
possibilidades do f u t u r o . E possível até q u e as pessoas estejam está tão distante, no melhor dos casos, do vocabulário, da sin-
cansadas de me ouvir falar sobre o assunto. Mas, do m e s m o taxe e do ritmo de uma linguagem c o m u m — com suas hesita-
modo como descubro q u e t e n h o escrito variações sobre o t e m a ções vocabulares, seus constantes recursos de aproximação, sua
durante toda a minha vida, minhas concepções tem sido conti- desordem e suas frases intermináveis — q u a n t o está o verso.
nuamente modificadas e renovadas pelo a c ú m u l o de experiên- Assim como o verso, essa prosa tem sido escrita e reescrita. Nos-
cias, de maneira q u e sou levado a fazer um novo balanço da sos dois maiores estilistas da prosa dramática — além de Sha-
situação a cada etapa de minha própria experimentação. kespeare e de outros elisabetanos que misturaram prosa c verso
C o m o tenho gradualmente a p r e n d i d o mais sobre os pro- na mesma peça — são, creio eu. Congreve c Bernard Shaw. A
blemas do drama poético e sobre as exigências q u e ele deve fala dc uma personagem de Congreve ou de Shaw tem
satisfazer para se justificar, passei a me esclarecer um pouco embora as personagens possam estar claramente diferenciadas
aquele inequívoco ritmo pessoal que constitui a marca de
não apenas no q u e se refere às m i n h a s próprias razões q u a n t o
um estilo em prosa, do qual somente os mais consumados con-
à ambição de escrever nessa forma, mas t a m b é m no q u e res-
versadores que, no que diz respeito ao assunto, são habitual-
peita às razões gerais que me levam a pretender vê-lo recolo-
mente criadores de monólogos — revelam algum indício em
cado em seu lugar. E considero q u e , q u a n d o digo alguma coisa
sua linguagem. Todos já ouvimos (e quão amiúde!) a persona-
sobre tais problemas e condições, isso deveria tornar mais claro
gem de Molière que exprime surpresa ao declarar que ele fala
em prosa. Mas monsieur Jourdain é que estava certo, e não seu
1. Primeira das conferencias à memória de T h e o d o r Spencer, p r o n u n c i a d a na Uni- mentor ou seu criador: ele não falou em prosa, apenas conver-
versidade de Harvard e publicada pela Fáber & Faber e pela Harvard University
Press em 1951. ( N . A . ) sou. E por isso que pretendo esboçar uma tripla distinção: entre
POESIA E DRAMA 103
102 T. S. ELIOT

vessem lhe proporcionando uma peça de crónica social costu-


a prosa e o verso e nossa linguagem c o m u m q u e está mais abaixo
meira com cenas divertidas da vida pobre; todavia, as cenas
do nível tanto do verso q u a n t o da prosa. Assim, se vocês a enca-
em prosa tanto da primeira parte q u a n t o da segunda desferem
rarem nesse sentido, parecerá q u e a prosa, no palco, é tão artifi-
uma crítica sardónica às ruidosas ambições dos líderes dos parti-
cial q u a n t o o verso; ou, a l t e r n a d a m e n t e , q u e o verso pode ser
dos que se envolveram na insurreição dos Percy. 2
tão natural q u a n t o a prosa.
Hoje, todavia, devido às dificuldades q u e enfrenta o drama
Mas e n q u a n t o o espectador sensível da plateia percebe, ao
em verso, creio que o drama cm prosa deveria a rigor ser utili-
ouvir uma excelente prosa falada n u m a peça, q u e ela é algo
zado mais parcimoniosamente, que deveríamos almejar u m a
melhor do q u e u m a conversa c o m u m , ele não a considera c o m o
forma de verso na qual tudo pudesse ser dito e q u e , q u a n d o
uma língua inteiramente distinta d a q u e l a q u e ele próprio fala,
encontrássemos alguma situação à qual o verso não se adaptasse,
pois isso ergueria u m a barreira entre ele e as personagens ima-
isso ocorreria apenas porque nossa forma de verso seria inelás-
ginárias no palco. Por outro lado. muitíssimas pessoas aproxi-
tica. E se f icasse provado haver cenas que não pudéssemos colo-
mam-se de u m a peça q u e sabem estar escrita em verso conscien-
car em verso, deveríamos ou aprimorar nosso verso, ou evitar
tes da diferença. E u m a lástima q u a n d o são repelidas pelo verso,
introduzir tais cenas, pois temos que acostumar nossas platéias
mas pode ser t a m b é m deplorável q u a n d o são atraídas por ele,
ao verso até o ponto em q u e estas deixem de perceber que ele
caso isso signifique q u e estejam preparadas para desfrutar da
existe; e introduzir diálogos em prosa equivaleria apenas a des-
peça e sua linguagem como duas coisas distintas. O principal
viar sua atenção da própria peça para o veículo por meio do
efeito do estilo e do ritmo na linguagem dramática, quer em
qual ela se exprime. Mas se nosso verso for tão distenso a ponto
prosa, quer em verso, deveria ser inconsciente.
de tornar-se incapaz de dizer o que hã para ser dito, conclui-
Conclui-se daí que a mistura da prosa e do verso na m e s m a se que não será poesia" durante todo o tempo. Só será " p o e -
peça deve ser evitada, pois cada transição torna o espectador sia' q u a n d o a situação dramática atingir tal ponto de intensi-
consciente, através de um sobressalto, do recurso utilizado. dade que a poesia se torne elocução natural, porque então é a
Podemos dizer q u e isso é justificável q u a n d o o autor deseja pro- única linguagem na qual as emoções podem ser cabalmente
duzir tal sobressalto, isto é, q u a n d o p r e t e n d e deslocar violenta- expressas.
mente a platéia de um plano da realidade para outro. Suspeito E de fato necessário para qualquer poema longo, se dese-
que essa espécie de transição fosse facilmente aceita por u m a jarmos escapar à monotonia, ser capaz de exprimir coisas sim-
platéia elisabetana, a cujos ouvidos t a n t o a prosa q u a n t o o verso ples sem efeitos patéticos, bem como empreender os mais altos
chegavam naturalmente; por q u e m apreciava a comédia rasteira vôos sem abusiva sonoridade. E isso é ainda mais importante
e bombástica na mesma peça; e a q u e m parecia talvez apro- n u m a peça, especialmente se ela aborda a vida contemporânea.
priado que as mais humildes e rústicas personagens devessem A razão para escrever até as partes mais prosaicas de uma peça
falar u m a linguagem chula, e n q u a n t o as de nível mais elevado em verso utilizando o verso em lugar da prosa, não é, todavia,
deveriam se expressar em verso. Mas m e s m o nas peças de Sha- apenas evitar chamar a atenção da platéia para o fato de que,
kespeare algumas das passagens em prosa parecem ter sido esbo- em outros momentos, ela está ouvindo poesia. E que o verso
çadas para produzir um efeito de contraste q u e , q u a n d o o b t i d o , rítmico t a m b é m deveria produzir seus efeitos nos ouvintes, sem
é algo que jamais se torna anacrónico. As batidas no portão que estes estivessem conscientes disso. Uma rápida análise de
em Mache//? são um exemplo q u e vem à m e n t e de q u a l q u e r
u m ; mas por muito t e m p o me pareceu q u e a alternância das 2. Sene de revoltas ocorridas entre 1-103 e 1108. d u r a n t e o reinado de Henrique
cenas cm prosa e em verso de Hennc/ue IV indicava um con- IV, inspiradas pela família Percy, n o t a d a m e n t e Henry Percy (1364-1403). c h a m a d o
traste irónico entre o m u n d o da alta política e o m u n d o da Hotspur, e seu tio T h o m a s Percy (13 11-1103). ( N . T . )

vida c o m u m . A platéia provavelmente imaginou que estes esti-


104 105 T. S. ELIOT 103
POESIA E DRAMA

uma peça de Shakespeare pode ilustrar esse aspecto. A cena mais caráter do que o exige sua função na peça —, o verso des-
de abertura de Hamlet — tâo bem construída quanto jamais liza num movimento mais vagaroso ante a chegada dos corte-
o foi uma cena dc abertura dc qualquer peça já escrita até hoje sãos Horácio e Marcelo.
— tem a vantagem de ser uma daquelas que todos conhecem.
O que não percebemos, quando assistimos a essa cena no Hora t io says 'tis but our fantasy.
teatro, é a grande variação de estilo. Nada é supérfluo, e não
c o movimento m u d a novamente diante da aparição dc Majes-
há um único verso que não se justifique por seu mérito dramá-
tade, o espectro do rei, com o solene e sonoro
tico. Os primeiros vinte e dois versos estão construídos com as
mais simples palavras na linguagem mais trivial. Shakespeare What art thou, that usurp'st this time of night. (...)4
trabalhou por longo tempo no teatro e escreveu um bom
número dc peças antes dc atingir o ponto em que conscguiu (e observem, a propósito, essa antecipação da intriga transmi-
escrever aqueles vinte e dois versos. Nada existe de absoluta- tida pelo emprego do verbo usurpar)\ e a majestade é sugerida
mente tão simples e seguro em seu trabalho anterior. Ele desen- n u m a alusão q u e nos recorda q u e o fantasma é este:
volveu de início o verso familiar, coloquial, no monólogo da
So frowndd he once. when, in an angry parle,
parte que pertence à personagem: Faulconbridgc, no Ret João,
He smote the sle de d Polac ks on the ice
e posteriormente a ama em Romeu e Julieta Trata-se de um
passo adiante para conduzi-lo discretamente ao diálogo de res- Há u m a mudança abrupta para stacatto nas palavras q u e Horá-
postas curtas. N e n h u m poeta pode tornar-se um mestre do verso cio dirige ao Espectro em sua segunda aparição; esse ritmo
dramático até que consiga escrever versos que, como estes de m u d a novamente com as palavras
Hamlet, sejam transparentes. Vocês estão conscientemente à
espera, não da poesia, mas do significado da poesia. Se ouvirem We do it wrong, being so majestic il,
Hamlet pela primeira vez, sem conhecerem nada da peça, não To offer it the show of violence:
For it is, as the air, invulnerable,
julgo que possa ocorrer a vocês perguntar se os interlocutores
And our vain blows malicious mockery}
estão falando em verso ou em prosa. O verso destina-se a exer-
cer sobre nós um efeito diferente da prosa, mas, no m o m e n t o , A cena chega a uma decisão com as palavras de Marcelo:
o que temos é a consciência da noite gelada, dos soldados q u e
estão de guarda nas ameias e do presságio de uma ação trágica. It faded on the crowing of the cock.
Não digo que não haja nenhum lugar destinado à situação em Some say that ever gainst that season comes
Wrhe re in our Saviour's birth is celebrated,
que parte do prazer de alguém consista no regozijo de ouvir
The bird oj dawning singe t h all night long; (...)'
bela poesia, contanto que o autor proporcione, naquele lugar,
a fatalidade dramática. E, naturalmente, quando não só assisti- \ " D i / Horácio q u e t u d o não passa de nossa imaginação.' Hamlet, Ato I, Cena
I. ( N . T . )
mos por diversas vezes a uma peça, mas também a lemos entre
ι " Q u e m és tu, q u e usurpas esta hora da noite. Hjm/et, Ato I. Cena I. ( N . T . )
as encenações, começamos a analisar os recursos graças aos quais
V "Ele franzia os sobrolhos do m e s m o m o d o , q u a n d o , n u m a entrevista confusa,
o autor produziu seus efeitos. Mas no instante do impacto ime- / Derrubou de seus trenós os poloneses sobre o gelo.' Hamlet. Ato I, Cena I ( N . T . )
diato dessa cena ignoramos os meios de que ele se valeu para 6. "Fizemos mal, perante tanta majestade. / Oferecendo-lhe um espetáculo de
expressar-se. violência, ' Porque e. c o m o o ar, invulnerável, / E nossos golpes vãos, u m a brinca-
deira c r u e l ! " Hamlet, Aro I, Cena I. ( N . T . )
Das curtas e bruscas exclamações no princípio, adequadas 7. "Dissipou-se com o canto do galo. / Dizem q u e . q u a n d o está próximo o t e m p o
a situação e â índole dos guardas - mas que não expressam / Da celebração do nascimento de nosso Salvador. / A ave da alvorada canta d u r a n t e
a noite inteira. Hamlet, Ato I, Cena I. ( N . T . )
POESIA E DRAMA 107
106 T. S. F.I.IOT

dessa única cena baste para nos mostrar que o verso não consti-
e com a resposta de Horácio: tui simplesmente uma formalização, ou um enfeite que se acres-
centa, mas algo que intensifica o drama. Isso indicaria t a m b é m
have I heard and do in part believe it.
a importância do efeito inconsciente do verso sobre nós. E,
But, look, the morn, in russet mantle clad\
finalmente, não julgo que esse efeito seja sentido apenas pelos
Walks o 'er the dew of yon high eastern bill.
Break we our watch up.s integrantes de uma platéia que "gosta de poesia", mas t a m b é m
por aqueles que desfrutam de uma peça sozinhos. Por pessoas
Isso é grande poesia, e é dramático; mas, além de poético e que não gostam de poesia e n t e n d o aquelas que não conseguem
dramático, é algo mais. Ai allora, quando analisamos, uma espe- se sentar com um livro de poesia e se satisfazer com sua leitura;
cie de esboço também musical que reforça o movimento dramá- t a m b é m essas pessoas, q u a n d o assistem a uma peça em verso,
tico e a ele se ajusta, retardando e acelerando o pulso de nossa deveriam ser tocadas pela poesia. E são elas q u e constituem a
emoção sem que disso nos apercebamos. Observem q u e nestas plateia que o escritor de tais peças deve ter em m e n t e .
ultimas palavras de Marcelo há uma breve aparição do poético
A esta altura, eu poderia dizer u m a palavra sobre aquelas
na consciência. Q u a n d o ouvimos os versos
peças que t h a m a m o s de poéticas, embora estejam escritas em
But, look, the morn, is russet mantle clad. prosa. As peças de J o h n Millington Synge 12 são antes um caso
Walks o *er the dew of yon high eastern hill especial, pois se baseiam no idioma de uma população rural
cuja linguagem é naturalmente poética tanto no q u e se refere
somos afastados por um m o m e n t o para além da personagem, às imagens q u a n t o no que concerne ao ritmo. Creio q u e o autor
mas não com o sentido de inadequação das palavras q u e nos chegou mesmo a incorporar frases que ouviu dessa população
chegam, precisamente nesse m o m e n t o , dos lábios de Horácio. interiorana da Irlanda. A linguagem de Synge não é compreen-
As transições cênicas obedecem às leis da música da poesia dra- sível senão nas peças encenadas para essa mesma platéia. Pode-
mática. Reparem que os dois versos da fala de Horácio q u e citei mos tirar conclusões mais genéricas a partir das peças em prosa
por duas vezes estão precedidos por um verso de linguagem (tão estimadas cm minha juventude, mas q u e agora dificil-
mais simples e que poderia estar tanto cm verso quanto em prosa: mente são lidas) de Maeterlinck, l a i s peças estão, n u m sentido
So have I heard and do in part believe it.10 distinto, limitadas por sua temática; e dizer q u e nelas a caracte-
rização é obscura constitui u m a interpretação incompleta. Não
e que ele os conclui de forma abrupta com um semiverso q u e nego que elas tenham certa qualidade poética. Mas para ser
provavelmente nada mais é que uma rubrica: poético cm prosa, um dramaturgo tem dc ser tão consistente-
mente poético que seu alcance se torna muito restrito. Synge
Break we our watch up.u
escreveu peças sobre personagens cujas réplicas vivas conversa-
Seria interessante rastrear, por meio de uma análise semelhante, vam poeticamente, dc m o d o que pôde fazê-las dialogar em
esse problema de duplo modelo no grande drama poético verso e permanecer como pessoas reais. O dramaturgo que escreve
o modelo que pode ser examinado do ponto de vista da monta- em prosa poética sem dispor desse privilégio tende a ser extre-
gem de peças teatrais ou da música. Mas imagino que o exame mamente poético. O drama poético cm prosa está mais limi-

8. "Ε o que tenho ouvido e em que acredito em parte. / Mas, vede. a aurora,
12. Synge, J o h n Millington. D r a m a t u r g o irlandês ( R a t h f a r n h a m , 1871 — D u b l i n .
num manto avermelhado. / Caminha sobre o orvalho daquela alta colina ao Oriente.
/ Rendamos nossa g u a r d a . " Hamlet, Ato 1, C ena 1. ( N . T ) 1909), autor de peças "célticas" e altamente poéticas, como Ridden to the sea
( 1901) e The well o) the saints (1905), mas sua obra-prima é. sem dúvida, The play-
9. Trata-se do segundo e terceiro versos traduzidos na nota 8. boy of the U estern world (1907). Escreveu t a m b é m a tragedia sombria Dei rd re.
10. 1 rata-se do primeiro verso traduzido na nota 8 que ficou inacabada ( N . T . )
11. Trata-se do último verso traduzido na nota 8.
T. S. ELIOT POESIA E DRAMA 103
108

tado pela convenção poética ou por nossas convenções, q u a n d o comunicação, daquilo que o leitor dela irá receber, não é o pri-
sua temática é poética, do que o drama poético em verso. Lm mordial: se seu poema estiver correto para vocês, vocês só podem
autêntico verso dramático pode ser utilizado, como o laz Sha- esperar q u e os leitores venham eventualmente a aceitá-lo. O
kespeare, para dizer as coisas mais corriqueiras. poema pode aguardar um pouco; a aprovação dc alguns críti-
Yeats é um caso muito distinto dos de Maeterlinck ou cos simpáticos e criteriosos é o bastante para começar; e serve
Synge. Um estudo de sua evolução como dramaturgo revelaria, para que os futuros leitores entrem em contato com o poeta
creio eu, a grande distância que os separa e o êxito de suas ulti- além da metade do caminho. Mas no teatro o problema da
mas peças. Em seu primeiro período, ele escreveu peças em comunicação se apresenta de imediato. Vocês estão intencional-
verso sobre temas convencionalmente adaptados como o exigia mente escrevendo verso para outras vozes, não para a sua, e
o verso, numa métrica que — embora denuncie, nesse primeiro não sabem que vozes serão essas. Vocês estão planejando escre-
estágio, o ritmo pessoal dc Yeats - não constitui a rigor u m a ver versos que tenham um efeito imediato sobre u m a platéia
forma de linguagem inteiramente adequada a ninguém, à exce- desconhecida e despreparada, a serem interpretados para essa
ção de reis e rainhas míticos. As Plays for dancers do período platéia por atores desconhecidos ensaiados por um diretor des-
conhecido. E não cabe esperar que essa platéia desconhecida
intermediário são muito bonitas, mas não solucionam n e n h u m
demonstre qualquer indulgência para com o poeta. O poeta
problema do dramaturgo com o verso: são peças em prosa poé-
não pode se permitir escrever sua peça simplesmente para seus
tica com expressivos intcrlúdios em verso. Apenas em sua última
admiradores, para aqueles que conhecem sua obra não-dramá-
peça. Purgatory, é que ele resolveu seu problema com a lingua-
tica e estão dispostos a receber favoravelmente t u d o aquilo em
gem em verso, legando a todos os seus sucessores uma dívida
que puser seu nome. Ele deve escrever tendo em vista u m a pla-
para com ele.
téia que tudo ignora e que não está absolutamente interessada
cm qualquer antecipado sucesso que possa ter alcançado antes
dc se aventurar ao teatro. Conseqüentemente, conclui-se q u e
II
muitas das coisas que se gosta de fazer, c que se sabe como
fazer, são inoportunas; e que qualquer verso deve ser julgado
Arriscar-me-ia a fazer agora algumas observações baseadas por uma nova lei, a da relevância dramática.
em minha própria experiência, o que me levará a comentar
Q u a n d o escrevi Murder m the cathedral13 eu tinha a vanta-
minhas intenções, malogros e êxitos parciais. Faço isso na supo-
gem, para um principiante, de uma ocasião que requeria um
sição de que qualquer explorador ou experimentador em novo
assunto geralmente admitido como apropriado ao verso. As
território pode, com base nos registros de uma espécie de diário
peças em verso, como se havia em geral sustentado, deveriam
de suas explorações, dizer algo de útil àqueles que o acompa-
tirar sua temática ou de alguma mitologia, ou, do contrário,
nham a certas regiões e àqueles que talvez possam ir mais longe.
de algum distante período histórico, afastado o bastante do pre-
A primeira coisa de alguma importância que descobri foi
sente para que as personagens não precisassem ser rcconhccíveis
que um escritor que trabalhou por muitos anos, e adquiriu como seres humanos e, por conseguinte, estivessem autorizadas
certo sucesso ao escrever outros tipos de verso, tem que se apro- a dialogar em verso. Períodos pitorescos costumam tornar o
ximar do texto de uma peça em verso com uma estrutura men- verso muito mais aceitável. Alem disso, minha peça foi escrita
ta! diferente daquela a que se habituou cm seu trabalho ante- com o objetivo de ser encenada para um tipo de platéia algo
rior. Ao escrever outro tipo de verso, julgo que se esteja escre-
vendo, por assim dizer, nas condições da própria voz: a maneira
13. É a primeira tias cinco peças escritas por Eliot, publicada em 1933. Alguns de
como ela soa quando vocês o lêem para si mesmos é o teste, seus fragmentos toram aprovei ι ados pelo autor em burnt Norton. o primeiro dos
porque são vocês mesmos que estão falando. O problema da Four quartets, sob a forma de temas recorrentes. (Ν Γ )
110 T. S. ELIOT POESIA E DRAMA 103

especial - uma platéia constituída por essas pessoas serias que m e n t e era a versificação de Everyman," na esperança de q u e
freqüentam "festivais" e esperam edificar-se pela poesia qualquer raridade fonica aí incluída pudesse ser, no c o n j u n t o ,
embora talvez, nessa ocasião, algumas delas não estivessem proveitosa. Uma fuga do verso excessivamente iâmbico, certo
em absoluto preparadas para aquilo a que iam assistir, h ati- emprego da aliteração e ocasionais rimas inesperadas ajudaram
nai era uma peça religiosa, e as pessoas que deliberadamente a distinguir a versificação daquela que se utilizou no século XIX.
assistem a uma peça religiosa num festival religioso esperam A versificação do diálogo em Murder in the cathedral tem,
ser pacientemente toleradas e se satisfazer com o sentimento por isso mesmo, em minha opinião, apenas um p o n t o negati-
de que cumpriram algo meritório. Assim, o c a m i n h o foi per- vo: ela foi bem-sucedida ao evitar o que tinha de ser evitado,
corrido facilmente. mas isso não levou a n e n h u m a novidade positiva; em suma,
Só q u a n d o pus minha cabeça para pensar no tipo de peça na medida em q u e isso resolveu o problema da linguagem em
que pretendia escrever em seguida é que cheguei à conclusão verso para um texto de hoje, somente o resolveu para essa peça,
de que, em Murder in the cathedral, eu não resolvera n e n h u m não me fornecendo n e n h u m a chave para o verso que eu utiliza-
problema geral, mas, do meu ponto de vista, a peça não tinha ria em outro gênero de peça. Aqui, portanto, dois problemas
saída. Em primeiro lugar, o problema de linguagem que essa ficaram sem solução: o da língua e o da métrica (na verdade
peça me criou era especial. Felizmente, não tive de escrevê-la são um mesmo problema), para uso geral em qualquer peça
na língua do século XII, pois essa língua, ainda que eu conhe- que eu desejasse escrever no futuro. Tornei-me em seguida cons-
cesse o francês normando e o anglo-saxão, teria sido ininteligí- cio de minhas razões por ter permanecido, nessa peça, tão inten-
vel. Mas o vocabulário e o estilo não podiam ser exatamente samente subordinado à ajuda do coro. Havia dois motivos para
os da conversação moderna — como em algumas peças moder- isso que, circunstancialmente, o justificavam. O primeiro era
nas francesas que recorrem à intriga e às personagens do drama 0 de que a ação essencial da peça — tanto os fatos históricos
grego — porque eu não havia considerado minha platéia vol- q u a n t o o assunto que inventei — fosse algo limitada. Um
tada para um acontecimento histórico; o fato, porém, é que h o m e m chega em casa prevendo que será assassinado, e o crime
eles não podiam dar-se o luxo de serem arcaicos: primeiro, por- se consuma. Não pretendi aumentar o n ú m e r o de personagens
que o arcaísmo teria apenas sugerido o período errôneo; segundo, nem escrever uma crônica sobre a política do século XII, como
porque eu queria colocar a platéia a par da relevância contem- tampouco adulterar inescrupulosamente a situação com escassos
porânea da situação. Por isso. o estilo tinha de ser neutro, não registros históricos, como o fez Tennyson ao introduzir a bela
comprometido nem com o presente nem com o passado. Rosamunda e ao sugerir que Becket tenha sido infeliz no amor
Q u a n t o à versificação, eu só estava consciente àquela época de durante a primeira juventude. 1 5 Preferi fixar-me na morte e
que o essencial era evitar qualquer imitação de Shakespeare, no martírio. A introdução de um coro de mulheres excitadas e
pois me convencera de que o malogro fundamental dos poetas algo histéricas, refletindo em sua emoção a relevância da ação,
do século XIX ao escreverem para o teatro (e a maioria dos ajudou maravilhosamente. O segundo motivo foi este: o de
maiores poetas ingleses se aventurou ao drama) não pode ser que um poeta, ao escrever pela primeira vez para o palco, está
atribuído à sua técnica teatral, mas à sua linguagem dramática;
1 » Truta st* talvez do mais consumado exemplo entre as antigas moralidades ingle-
e de que isso se devia em grande parte à sua limitação a um
sas (c 1529), coni passagens decerto destinadas a revitalizar o ensino específico de
estrito verso branco que, após um abusivo emprego na poesia Roma. Escritas d u r a n t e os reinados de H e n r i q u e VI e H e n r i q u e VII, essas moralida-
não-dramática, perdera a flexibilidade que o verso branco deve- des h a b i t u a l m e n t e alegorizam o conflito entre o bem e o mal, sem n e n h u m propó-
sito de controvérsia religiosa. ( N . T . )
ter caso pretenda proporcionar o efeito da conversação. O ritmo
η Eliot alude aqui à tragédia Bei kel, q u e I cniivson escreveu em 188 i e q u e ,
do verso branco regular tornara-se muito distante do movimento após a morte do autor, alcançou extraordinário sucesso em quase todos os palcos
da linguagem moderna. Por conseguinte, o que eu tinha em ingleso. ( N . T . )
POESIA E DRAMA 113
T. s ELIOT
112

muito mais à vontade no verso coral do que no diálogo dramá- como os nossos, e que usam telefones, automóveis c aparelhos
tico. Isso, sinto-o seguramente, era algo que eu podia lazer, e de rádio. As platéias estão dispostas a aceitar a poesia recitada
talvez a fragilidade dramática fosse um pouco neutralizada pelos por um coro, porque se trata de uma espécie de recital de poe-
sia que as leva a crer que se divertirão. E as platéias (aquelas
gritos das mulheres. O emprego de um coro fortaleceu o poder
constituídas de pessoas que se dispõem a assistir a uma peça
e dissimulou as falhas de minha tecnica teatral. Por essa razão
em verso porque ela está escrita em verso) esperam que a poe-
decidi que da próxima vez tentaria fazer com que o COTO se inte-
sia esteja composta em ritmos que perderam contato com a lin-
grasse mais intimamente à peça.
guagem coloquial. O cjue temos de fazer é levar a poesia ao
Pretendi descobrir também se aprenderia a dispensar intei- m u n d o em que essa platéia vive c ao qual retorna q u a n d o sai
ramente o uso da prosa. As duas passagens cm prosa de Mur do teatro; mas não transportar a platéia para algum universo
der in the cathedral não podiam ter sido escritas em verso. E imaginário inteiramente alheio ao seu, um m u n d o irreal em
claro que, devido ao tipo de diálogo em verso que utilizei nessa que a poesia é tolerada. O que espero que possa ser realizado,
peça, a platéia ficaria desconfortavclmente conscia de que era por uma geração de dramaturgos que têm o privilégio de nossa
verso o que estava ouvindo. Um sermão protendo em verso cons- experiência, é fazer a platéia descobrir, no instante em que se
titui uma experiência bastante incomum até mesmo para o conscientiza de que está ouvindo poesia, que está dizendo para
mais assíduo fiel: ninguém poderia em absoluto reagir a ele si mesma: Eu também poderia conversar em verso!". Logo,
como a um sermão. E nas falas dos cavaleiros, que estão absolu- não deveríamos ser transportados para um m u n d o artificial;
tamente cônscios de que se dirigem a uma platéia surda, o uso pelo contrário, nosso próprio m u n d o sórdido, cotidianamcnte
da prosa tribunícia destinou-se, é claro, a produzir um efeito sombrio, poderia ser de súbito iluminado e transfigurado.
especial: o de arrancar a platéia dc sua satisfação. Mas isso é
Por essa razão, em minha peça seguinte resolvi abordar
uma espécie de truque, ou seja, um artifício cabível apenas um tema da vida contemporânea, com personagens do nosso
em uma peça e inútil cm qualquer outra. Que eu saiba, admito tempo vivendo cm nosso m u n d o . O resultado foi The family
ter sido ligeiramente influenciado por Saint Joan.16 reunion.1 Aqui, meu primeiro interesse foi com o problema
Não desejo dar-lhes a impressão de que eu expurgaria da da versificação, no sentido de encontrar o ritmo adequado à lin-
poesia dramática estas três coisas: a temática histórica ou mito- guagem contemporânea, no qual aò sílabas tónicas podiam ser
lógica, o coro e o tradicional verso branco. Não desejo formu- distribuídas de modo a descobrirmos onde naturalmente deve-
lar nenhuma lei segundo a qual as personagens e as situações ríamos colocá-las ao articularmos a frase particular na situação
da vida moderna são as únicas adequadas, ou de acordo com particular. O que decidi foi substancialmente o que já vinha
a qual a peça cm verso consistisse apenas de diálogos, ou con- utilizando: um verso de duração flutuante e de variado número
forme a qual a versificação inteiramente nova fosse necessária. de sílabas, com uma cesura e três acentos tônicos. A cesura e
Estou apenas esboçando o roteiro de investigação de um escri- as sílabas tônicas podem ser dispostas em pontos diferentes, pra-
tor, e o meu. Se o drama poético quiser reconquistar seu lugar, ticamente em qualquer lugar no verso; as sílabas tônicas podem
deve, em minha opinião, entrar em franca competição com o estar muito próximas ou bastante afastadas por sílabas leves; a
drama em prosa. Como já disse, as pessoas estão dispostas a única regra é a de que uma sílaba tônica deve estar dc um lado
edificar-se com o verso que sai dos lábios de personagens vesti- da cesura e duas do outro. Em resumo, logo percebi que havia
das com os figurinos de alguma época distante; conseqüente- dirigido minha atenção para a versificação à custa da intriga e
mente, deveriam elas estar preparadas para ouvi-lo das pessoas da personagem. Na verdade, eu conseguira algum progresso
que se vestem como nós, que vivem em casas e apartamentos
1 " É a segunda peça de Eliot, publicada em 1939. C o m o a anterior, esta t a m b é m
16. Uma das mais conhecidas peças de George Bernard Shaw, escrita em 1923 (N T ) antecipa alguns dos temas recorrentes que iremos encontrar nos Four quartets. ( N . T . )
POESIA E DRAMA 115
114 T. S. ELIOT 1 3H

9H não percebemos que Shakespeare haja concebido versos que


ao prescindir do coro, mas o artifício de utilizar quatro das S expressam bela poesia e deseje ajustá-los de algum m o d o , ou
personagens secundárias para representar a Família, às vezes Μ I que haja, por um instante, chegado ao fim de sua inspiração
como partes da personagem individual e às vezes coletivamen- W dramática e retornado à poesia para com ela preencher o vazio.
t e como coro, não m e pareceu muito satisfatório. E m primeiro j· Os versos são inesperados e, no entanto, se a d a p t a m à persona-
lugar, a transição imediata da parte individual, caracterizada, gem; ou então somos levados a ajustar nossa concepção da per-
para a do integrante de um coro é exigir demais dos atores: ^B sonagem de tal m o d o que os versos se tornam a d e q u a d o s a
trata-se de uma transição muito difícil de realizar. Segundo, fll esta. Os versos ditos por Macbeth revelam a fadiga do h o m e m
isso me pareceu um outro truque, aquele que, embora bem- fraco que foi obrigado por sua esposa a realizar seus próprios
sucedido, poderia não ser aplicável em outra peça. Além disso, desejos timoratos e suas ambições e que, com sua morte, perde
eu utilizara em duas passagens o artifício de um d u e t o lírico a razão para continuar. O verso de Otelo expressa ironia, dig-
posteriormente retirado do resto do diálogo por estar escrito nidade e destemor; e incidentalmente nos recorda a noite em
em versos mais curtos com apenas duas sílabas tônicas. Em certo q u e a cena se desenrola. Somente a poesia poderia fazê-lo,
sentido, tais passagens estão "além da personagem' e os inter- mas é poesia dramática, ou seja, não interrompe, mas intensi-
locutores têm que ser apresentados como se estivessem mergu- fica, a situação dramática.
lhados num estado semelhante ao transe para talar de si mes-
Não foi apenas graças à introdução de passagens q u e des-
mos. Mas elas estão de tal modo distantes da necessidade da
pertaram a atenção como poesia, e que não podiam se justifi-
ação que dificilmente constituem mais do q u e trechos poéticos
car dramaticamente, que considerei The family reunion defei-
que não poderiam ser falados por ninguém; essas passagens se
tuosa: havia duas fraquezas que viriam a me afligir como ainda
assemelham muito mais a árias operísticas. O espectador da pla-
mais graves. A primeira era que eu ultrapassara em muito o
téia, se gosta desse tipo de coisa, entra em êxtase com a inter-
t e m p o estritamente limitado que se concede a um d r a m a t u r g o
rupção da ação dramática e passa a fruir de u m a fantasia poé-
para q u e exponha uma situação, e não me concedi o t e m p o
tica; tais passagens estão a rigor menos associadas à ação do
suficiente, ou não me abasteci com material bastante, para
que os coros em Murder in the cathedral. desenvolvê-la na ação. Eu havia escrito o que constituía, cm
Observei que, quando Shakespeare, em uma dc suas peças conjunto, um bom primeiro ato, muito embora ele fosse, para
maduras, introduz o que poderia parecer um verso ou trecho um primeiro ato, demasiado longo. Q u a n d o o pano subiu
puramente poético, ele nunca interrompe a ação ou revela-se novamente, a platéia estava aguardando, como lhe compete
alheio à personagem, mas, pelo contrário, de algum m o d o mis- aguardar, que algo fosse acontecer. Na verdade, ela se consi-
terioso fortalece tanto a ação quanto a personagem. Q u a n d o dera convidada a uma exploração que a conduza para além do
Macbeth diz suas tão freqüentemente citadas palavras f u n d o de cena: em outras palavras, àquilo que lhe deveria ter
sido anunciado muito antes, se é que o foi. O início do segundo
To-morrow and to morrow and to morrow,18
ato apresenta, na maioria das vezes, o mais difícil desafio para
ou quando Otelo, confrontado à noite com o sogro e os ami- Ë o diretor e o elenco, pois a atenção da platéia começa a se
go s indignados, pronuncia o belo verso diluir. E então, após o que parece a essa platéia um interminá-
vel t e m p o de preparação, o desfecho chega tão a b r u p t a m e n t e
Keep up your bright swords, for the dew will rust them. q u e nos encontramos, afinal de contas, «despreparados para ele.
Essa foi uma falha elementar na estrutura mecânica da peça.
18. " A m a n h ã c amanhã c a m a n h ã . ' Macbeth. Aio V. Cena V. (Ν T . ) A mais aguda de todas as talhas, porém, ocorreu devido a
19 " G u a r d a i vossas brilhantes espadas, pois o orvalho as e n f e r r u j a r á . " Otello. um malogro na adaptação do episódio grego à situação moderna.
Ato I. Cena II. ( N . T . )
POESIA E DRAMA 117
l l 6 T . S . ELIOT

por evitar no projeto de The cocktail party.11 Para começar, nem


Eu deveria, ou ter me apegado mais intimamente a Esquilo, " coro nem fantasmas. Eu estava ainda inclinado a recorrer a
ou então tomado em boa parte mais liberdade com seu mito. um dramaturgo grego para urdir o meu tema, mas decidi fazê-
Prova disso é a aparição daquelas desgraçadas figuras, as Fúrias. 21 lo apenas como um p o m o de partida e para dissimular tão bem
Elas devem, no futuro, ser omitidas do elenco e se tornar visí- as origens de modo que ninguém pudesse identificá-las até q u e
veis apenas para algumas de minhas personagens, e não para eu as revelasse por mim mesmo. Nisso, pelo menos, fui bem-
o público. Tentamos todas as maneiras possíveis de representá- succdido, pois ninguém de minhas relações (e n e n h u m crítico
las. Pusemo-las no palco, e elas se assemelhavam a hóspedes teatral) reconheceu que a matriz de minha história era Alceste
indesejados que perambulavam num baile à fantasia. Ocultamo- de Eurípedes. 2 3 Na verdade, tive dc descer a uma explicação
las sob gazes, e elas nos deram a impressão de que haviam saído detalhada para convencê-los — refiro-me, é claro, àqueles q u e
de um filme de Walt Disney. Tornamo-las mais sombrias, e estavam familiarizados com a trama dessa peça — da autentici-
elas pareciam moitas que se moviam do lado de tora da janela. dade da inspiração. Mas os que estavam inicialmente perturba-
Vi outros expedientes serem tentados: percebi-as fazendo sinais dos com o comportamento excêntrico de meu convidado desco-
atrave's do jardim, ou enxameando no palco como um time de nhecido, ou com seus hábitos aparentemente destemperados e
futebol, e jamais estavam corretas. Jamais funcionaram quer sua tendência a explodir n u m a canção, encontraram certo con-
como deusas gregas, quer como fantamasgorias modernas. Mas solo ao ter sua atenção despertada para o c o m p o r t a m e n t o de
seu malogro foi simplesmente um sintoma do fracasso em adap- Heracles na peça de Eurípedes.
tar o antigo ao moderno. Em segundo lugar, impus-mc a regra ascética dc evitar
Uma evidência mais grave é a de que somos a b a n d o n a d o s qualquer poesia q u e não pudesse resistir ao teste da estrita uti-
numa estrutura mental dividida, ignorando se consideramos a lidade dramática: com tamanho êxito, aliás, que talvez seja
peça como a tragédia da mãe ou como a salvação do filho. As uma questão aberta não haver em absoluto qualquer poesia
duas situações não se reconciliam. Encontrei a confirmação disso na peça. E, afinal, busquei ter em m e n t e q u e n u m a peça, de
no fato de que minhas simpatias se dirigem agora todas para vez em quando, algo deveria acontecer, que a platéia deveria
a mãe, que me parece, não fosse talvez pelo motorista, o único manter-se na constante expectativa de que algo vai acontecer e
ser humano completo na peça; e meu herói assalta-me agora que, q u a n d o acontece, deveria ser diferente, mas não muito
como um intolerável gatuno. diferente, daquilo que o público fora induzido a esperar.
Bem, eu fizera algum progresso aprendendo como escrever Ainda não cheguei ao fim dc minha investigação q u a n t o
o primeiro ato de uma peça, e — a unica coisa de q u e me sen- às fraquezas dessa peça, mas espero e presumo descobrir mais
tia seguro — boa parte desse progresso fora obtida q u a n d o do que aquelas de que já estou consciente. Digo espero" por-
encontrei a forma de versificação e a linguagem q u e atenderiam que, assim como ninguém jamais repete um sucesso — e, por
a todos os meus propósitos, sem recorrer à prosa ou a transi- conseguinte, deve sempre tentar descobrir algo de diferente,
ções descontínuas entre a mais intensa das falas e o mais frouxo ainda que menos popular, para fazer —, t a m b é m o desejo de
diálogo. Vocês poderão compreender, após essas críticas q u e escrever alguma coisa que esteja livre das falhas da última obra
faço a The family reunion, alguns dos erros que me esforcei
22. É a terceira das peças de Eliot, publicada em 1949. ( N . T . )
20. Em gr. Aiskhylos. Poeta tràgico grego (Eleusis, perto de Atenas, c. 525 a . C . 23 Em gr. Euripídés Poeta trágico grego (Salamina, c »85 a.C. Pela. Mace-
Gela, Sicília, 426 a.C.). pertencente a uma família da antiga nobreza ateniense. dònia. 406 a.C ). considerado por Aristóteles o mais trágico d e n t r e todos os trage-
Escreveu mais de noventa tragédias, das quais sete chegaram completas até nossos diógrafos de seu t e m p o . A obra a que Eliot se refere data de -1.38 a.C. Além dessa,
dias. entre elas As suplicantes, Os sete contra Tebas, Prometeu acorrentado e a c u m p r e lembrar A\ bacantes. Medeia, As troianas, Electra, Andrômaca, Efigênia
trilogia Ores tia Segundo Aristóteles, foi o criador da tragédia grega. ( N T ) em Tá uri da, lie/ena e Orestes. ( Ν . Τ )
21. Na mitologia grega, divindades infernais. ( N . T . )
118 T. S. ELIOT
POESIA E DRAMA 103

de alguém constitui um poderosíssimo e proveitoso incentivo. eis por q u e ele me interessa, porque fornece um estímulo às
Estou ciente de que o último ato de minha peça somente escapa, futuras experiências e explorações a partir de qualquer objetivo
se de fato escapa, à acusação de que não é um último ato, e sim que alimente a expectativa de atingi-lo. E atributo de toda
um epílogo; e decidi fazer algo diferente, se o p u d e r , a esse arte nos proporcionar certa percepção de u m a ordem na vida
respeito. E creio também que, assim como a auto-educação de ao impor u m a ordem sobre ela. O pintor trabalha por meio
um poeta que tenta escrever para o teatro parece exigir um da seleção, da combinação e da ênfase entre os elementos do
longo período destinado a disciplinar sua poesia — e a sub- m u n d o visível; o músico, no m u n d o do som. Parece-me q u e ,
metê-la, por assim dizer, a uma severa dieta para adaptá-la às para além das emoções e motivos reconhecíveis e classificáveis
necessidades do palco —, ele pode, por outro lado, descobrir de nossa vida consciente q u a n d o orientada para a ação — a
que mais tarde, quando (e se) o conhecimento da técnica tea- parte da vida que o drama em prosa é cabalmente capaz de
tral se tornar uma segunda natureza, será capaz de atrever-se a expressar —, há uma franja de extensão indefinida, de senti-
fazer um uso mais liberal da poesia e tomar maiores liberdades m e n t o que só podemos vislumbrar, por assim dizer, com o
no que se refere à linguagem coloquial ordinária. F u n d a m e n t o canto do olho e q u e jamais podemos focalizar c o m p l e t a m e n t e ;
essa crença na evolução de Shakespeare e em algum estudo da de sentimento do qual só nos tornamos conscientes graças a
u m a espécie de distanciamento da ação. Há grandes d r a m a t u r -
linguagem de suas últimas peças.
gos em prosa — como Ibsen e Tchékhov — q u e realizaram às
Ao dedicar tanto tempo ao exame de minhas próprias peças,
vezes coisas das quais eu não imaginaria que a prosa fosse capaz,
fui movido a fazê-lo, suponho, por um motivo maior do q u e
mas que me parecem, apesar de seu sucesso, ter sido prejudica-
o egoísmo. Parece-me que, se nos cabe ter um d r a m a poético,
dos no q u e se refere à expressão por escreverem em prosa. Esse
é mais provável que ele nos venha de poetas q u e a p r e n d e r a m
alcance peculiar da sensibilidade pode ser expresso pela poesia
como escrever peças do que de talentosos dramaturgos em prosa dramática em seus momentos de maior intensidade. Nesses
que aprenderam a escrever poesia. Q u e certos poetas sejam capa- momentos tangenciamos a fímbria daqueles sentimentos q u e
zes de aprender como escrever peças, e boas peças, p o d e ser apenas a música pode exprimir. Não podemos jamais competir
apenas uma esperança, mas não creio q u e se trate de u m a espe- com a música, pois chegar à condição de música equivaleria à
rança absurda; mas que alguém que começou escrevendo peças extinção da poesia, especialmente da poesia dramática. Não
em prosa de sucesso seja capaz de aprender como escrever boa obstante, t e n h o diante dos olhos u m a espécie de miragem da
poesia parece-me extremamente improvável. E, nas presentes ação h u m a n a e das palavras, tal como apresentar de imediato
condições, e até que a peça em verso seja reconhecida por um os dois aspectos da ordem dramática e da ordem musical.
público mais numeroso como possível fonte de e n t r e t e n i m e n t o , Parece-me que Shakespeare a materializou pelo menos em
o poeta provavelmente só terá sua o p o r t u n i d a d e de trabalhar algumas cenas — inclusive algo p r e m a t u r a m e n t e , pois há a
para o palco após adquirir alguma espécie de notoriedade para cena do balcão de Romeu e Julieta —, e isso era o q u e ele
si mesmo como autor de outros tipos de verso. Por isso foi m e u estava se esforçando por obter em suas últimas peças. Ir tão
desejo registrar, já que pode ser valioso para outros, certa avalia- longe q u a n t o possível nessa direção, sem perder aquele contato
ção das dificuldades que tenho encontrado, dos equívocos em com o m u n d o ordinário cotidiano ao qual o drama deve se
que tenho incorrido e das fraquezas que me sinto i n d u z i d o a adaptar, parece-me o objetivo a d e q u a d o da poesia dramática.
tentar superar. Por isso, afinal de contas, é função da arte, ao impor u m a
Eu não gostaria de concluir sem tentar estabelecer para ordem digna de crédito sobre a realidade ordinária — e, desse
vocês, embora apenas em vagas linhas gerais, o ideal pelo modo, trazer à superfície certa percepção de u m a ordem na
qual o drama poético deveria pugnar. É um ideal inatingível: realidade —, nos proporcionar uma condição de serenidade,
POESIA E DRAMA 121
Τ S E U 0 T
120 ·
E à Julieta cabe t a m b é m a palavra-chave " r e l â m p a g o " , q u e
de repouso e de reconciliação; e então nos deixar, como Virgí- ocorre novamente na peça e que é sintomática da súbita e desas-
lio deixou Dante, seguir para uma região cm que esse guia trosa intensidade de sua paixão, q u a n d o ela diz
não poderá mais nos ser útil.
Tis like the lightning, which doth cease to be
Ere one can say Ίί lightens '.1
NOTA A "POESIA E DRAMA"

Como expliquei em meu Prefácio, a passagem nesse ensaio 1 Nessa cena, Shakespeare realiza uma perfeição dc verso
que analisa a primeira cena de Hamlet foi extraída de uma con- que. sendo perfeição, nem ele nem ninguém mais pôde superá-
ferência pronunciada alguns anos antes na Universidade de lo no que se refere a esse propósito particular. A dureza, o arti-
Edimburgo. Dessa mesma conferência de Edimburgo extraí a fitialismo, a ornamentação de seu verso inicial cede lugar, ati-
seguinte nota sobre a cena do balcão em Romeu e Julieta: nai, a uma simplificação da linguagem da fala natural, e essa
Na primeira fala de Romeu ainda há certo artificialismo: linguagem de conversação ascende outra vez à grande poesia,
à grande poesia que é essencialmente dramática, pois a cena
Two of the fairest stars in all the heaven, possui u m a estrutura da qual cada verso é uma parte essencial.
Having some business, do intreat her eyes
To twinkle in their sphers till they return.
Pois parece improvável que alguém situado abaixo, no nível do
jardim, mesmo sob o intenso brilho do luar, pudesse perceber
os olhos da amada cintilando tão luminosamente q u e fosse capaz
de justificar tal comparação. Todavia, tem-se consciência dc q u e ,
desde o início dessa cena, há um modelo musical q u e se apro-
xima, tão inesperado cm seu gênero quanto aquele que se encon-
tra nas primeiras obras de Beethoven. O arranjo de vozes — a
Julieta cabem três únicos versos, seguidos por três, quatro e cinco
de Romeu, aos quais se segue a mais longa das falas da heroína
— é de fato notável. Nesse modelo percebe-se que cabe à voz
de Julieta a parte principal; atribui-se à sua voz a frase domi-
nante de todo o dueto:

My bounty is as boundless as the sea,


My love as deep: the more I give to thee
The more I have, for both are infinite.26

24 Esse ensaio apareceu em sua forma primitiva como prefácio à tradução de


The cocktail party, Aux Éditions du Seuil, Paris, 1952. ( N I )
25. " D u a s das mais luminosas estrelas de todo o céu. / l e n d o alguma ocupação,
suplicaram aos olhos dela / Q u e brilhassem em suas esferas até que elas voltas-
s e m . " Romeu e Julieta, Ato II Cena II ( N T )
26. " M i n h a bondade é tão ilimitada q u a n t o o mar, / E tão p r o f u n d o q u a n t o " M u i t o semelhante ao relâmpago que sc extingue / Antes q u e possamos d i z e r
este é o meu amor: q u a n t o mais te dou / Mais tenho para dar-te, pois são ambos Esta r e l a m p e j a n d o ! ' " Idem. ibidem. (N T )
infinitos. Idem, ibidem. ( N . T . )
AS TRÊS VOZES DA POESIA 123

Há pelo menos duas pessoas que poderiam ter discordado


de mim nesse ponto: o Sr. e a Sra. Robert Browning. No poema
O n e word m o r e " , escrito como epílogo a Men and women2
dirigido à Sra. Browning, o marido faz um surpreendente jul-
gamento de valor:
AS TRÊS VOZES DA POESIA' Rafael made a century of sonnets,
Wade and wrote them in a certain volume,
Dr η ted with the silver-pointed pencil
Else he only used to draw Madonnas:
These, the world might view but one. the volume.
Who that one, you ask? Your heart instructs you...
You and I would rather read that volume...
Would we not? than wonder at Madonnas...
Dante once prepared to paint an angel:
Whom to please? You whisper 'Beatrice'...
You and I would rather see that angel,
A primeira voz é a voz do poeta que fala consigo mesmo Pat η ted by the tenderness of Dante.
— ou com ninguém. A segunda voz é a voz do poeta ao diri- Would we not ? — than read a fresh Inferno.3
gir-se a uma platéia, seja grande, seja p e q u e n a . A terceira é a
voz do poeta quando tenta criar uma personagem dramática Concordo que um Inferno. ainda que escrito por D a n t e , é o
que fala em verso, quanto está dizendo, não o q u e diria à sua que basta; e talvez não precisemos lamentar muito q u e Rafael
própria pessoa, mas apenas o que pode dizer dentro dos limi- não multiplicasse suas Madonas, mas só posso dizer q u e não
tes de uma personagem imaginária que se dirige a u m a outra sinto n e n h u m a curiosidade por quaisquer dos sonetos de Rafael
personagem imaginária. A distinção entre a primeira e a segunda ou dos anjos de Dante. Se Rafael escrevesse, e D a n t e pintasse,
voz, entre o poeta que fala consigo mesmo e o poeta q u e fala para os olhos de uma única pessoa, que sua privacidade fosse
com outra pessoa, conduz ao problema da comunicação poética; respeitada! Sabemos que o Sr. e a Sra. Browning gostavam de
a distinção entre o poeta que se dirige a outra pessoa seja com escrever poemas um para o outro porque os publicavam, e
sua própria voz, seja com uma voz hipotética, e o poeta q u e alguns deles eram bons. Sabemos que Rossetti 4 s u p u n h a estar
cria uma linguagem na qual personagens imaginárias falam
entre si, aponta para o problema da diferença entre os versos 2 Coletânea publicada em 1855. ( N . T . )
3. "Rafael fez uma teniúria de sonetos, / Fê-los e escreveu-os n u m certo volume.
dramático, quase dramático e nào-dramático.
/ Gravados com o lápis de ponta de prata / Q u e usava apenas para desenhar Mado-
Desejo antecipar uma questão que alguns de vocês pode- nas: II Esi .is, ofertas ao m u n d o mas o volume, a uma só pessoa. ! Q u e m , per-
riam perfeitamente suscitar. Não pode um poema ser escrito guntaria você? Seu coração lhe diz. . . / Você e eu bem q u e gostaríamos de 1er esse
volume... / Não poderíamos? mais do q u e admirar Madonas... // D a n t e se prepa-
para o ouvido, ou para o olho, de uma única pessoa? Poderiam
rou outrora para pintar um anjo: I Para agradar a q u e m ? A Beatriz, sussurrou
vocês dizer simplesmente: " N ã o será a poesia de amor, às você... / Você e eu bem q u e poderíamos ver esse anjo, I Pintado pela ternura de
vezes, uma forma de comunicação entre uma pessoa e outra, D a n t e , / Não poderíamos? em vez de 1er um novo I n f e r n o . " ( N . T . )
sem nenhuma possibilidade de uma outra platéia?". •1 Rossetti, Dante Gabriel Poeta e pintor inglês (Londres. I82H - Birchington,
Kent. 1882), f u n d a d o r da Confraria Pre-Rafaelita q u e . cm 1847, se insurgiu contra
1. Decima primeira conferênua anual da Liga National do Livro, pronunciada a arte oficial Herdeira do csteticismo de Keats e Poe, sua poesia antecipa de certa
em 1953 e publicada para essa instituirão pela Cambridge University Press. (N A ) forma o simbolismo. A obra citada por Eliot constitui um ciclo de sonetos, alguns
dos quais figuram entre os mais belos da língua inglesa. ( N . T . )
AS TRÊS VOZES Í)A POESIA 125
T. S. ELIOT
124
m o m e n t o em que me pareciam esgotados meus escassos dons
escrevendo os sonetos de sua House of life para uma única pes-
poéticos c q u a n d o eu nada mais tinha a dizer. Ser incumbido,
soa e que somente os exumou q u a n d o persuadido por seus ami-
n u m m o m e n t o desses, de escrever algo que, bom ou m a u ,
gos. Ora, não nego que um poema possa ser dirigido a u m a
deve estar concluído em dcierrninada data, pode ter às vezes o
pessoa: há u m a forma conhecidíssima, nem sempre erótica no
mesmo efeito que tem um violento giro de manivela sobre
conteúdo, chamada A Epístola. Não teremos jamais u m a evi-
um motor de automóvel q u a n d o a bateria está descarregada.
dência conclusiva, pois o testemunho dc poetas sobre o q u e jul-
A tarefa estava nitidamente delineada: eu tinha apenas de escre-
gavam estar fazendo q u a n d o escreviam um poema não pode
ver as palavras do diálogo em prosa para as cenas do modelo
ser tomado em absoluto por moeda corrente. Mas m i n h a opi-
habitual de pageant histórico, para o qual me haviam forne-
nião é a de que um bom poema de amor, ainda que seja diri-
cido o cenário. Tinha também de providenciar um certo número
gido a uma pessoa, está sempre destinado a ser ouvido secreta-
de passagens corais em verso, cujo conteúdo foi deixado à minha
mente por outra. Seguramente, a linguagem a d e q u a d a do
própria imaginação, exceto q u a n t o à razoável determinação de
a m o r _ ou seja, da comunicação do ser a m a d o com q u e m
que todos os coros mantivessem alguma relação com o objeto
quer que seja — é a prosa. do pageant c de que cada coro ocupasse um certo n ú m e r o dc
Após rejeitar como ilusória a voz do poeta que fala apenas minutos do tempo de duração do espetáculo. Mas, ao realizar
para uma pessoa, julgo que a melhor maneira para m i m , no essa segunda parte de minha incumbência, nada havia q u e
que se refere à tentativa de tornar minhas três vozes audíveis, me despertasse a atenção para a terceira, ou voz dramática: era
é delinear a gênese da distinção em minha própria m e n t e . O a segunda voz, a do poeta que se dirige a uma platéia — ou, a
escritor em cujo espírito mais provavelmente ocorre a distinção rigor, que arenga com ela —, a que mais distintamente se
é, sem dúvida, um escritor como eu. q u e passou um bom ouvia. Afora o óbvio fato de que escrever sob encomenda não
número de anos escrevendo poesia antes de tentar escrever para significa o mesmo que fazê-lo para satisfazer-se a si próprio,
o palco. E possível, como tenho lido, que haja um e l e m e n t o aprendi apenas que o verso a ser dito por um coro deveria ser
dramático em muitas de minhas primeiras obras. E possível diferente do verso a ser dito por uma única pessoa; e q u e
que, desde o início, eu aspirasse ao teatro — ou, como pode- q u a n t o mais vozes houver num coro, mais simples e diretos
riam dizer alguns críticos hostis —, à Shaftesbury Avenue c à devem ser o vocabulário, a sintaxe e o conteúdo dos versos.
Broadway.' Todavia, cheguei aos poucos a conclusão de q u e , Esse coro de The rock não era uma voz dramática; embora mui-
ao escrever versos para o palco, tanto o processo q u a n t o o resul- tos versos fossem distribuídos, as personagens não estavam indi-
tado foram muito distintos do que o são q u a n d o se escrevem vidualizadas. Seus integrantes estavam falando para mim, c
versos para serem lidos ou declamados. Há vinte anos fui encar- não articulando palavras que, na verdade, representassem qual-
regado de escrever uma peça pageant6 que deveria intitular-se quer personagem que eles s u p u n h a m ser.
The rock? O convite para escrever as palavras desse espetáculo
O coro em Murder in the cathedral representa, creio cu,
— à epoca de um apelo destinado a angariar fundos para a cons-
algum avanço no desenvolvimento dramático, o que vale dizer:
trução de igrejas em novas áreas residenciais — chegou n u m
atribuí a mim mesmo a tarefa de escrever versos, não para um
V Equivalentes ingleses do teatro de bulevar. ( N . T . )
coro anónimo, mas para um coro de mulheres de Cantuária (al-
6. Representação teatral de grandes proporções. de caráter alegórico, religioso ou guém poderia quase dizer, faxineiras de Cantuária). Eu tinha
lendário, q u e remonta às próprias origens do teatro inglês e q u e permaneceu em de fazer algum esforço para me identificar com tais mulheres,
voga ate' o fim do século XVI. ( N . T . )
cm vez dc simplesmente identificá-las comigo. Mas q u a n t o ao
7. Publicado em 1934. Nos Collected poems 1909-1933 (1936) aparece com o
m u l o dc Choruses from "The rock ' Eliot recorre aqu, as matrizes da herança
diálogo da peça, a intriga tinha o inconveniente (do ponto de
biblica do Livro de Neemias. mais precisamente à construção do s e g u n d o T e m p l o vista de minha própria formação dramática) de apresentar ape-
de Nc.cmias. (Ν. Γ.)
AS TRÊS VOZES Í)A POESIA 125

T. S. ELIOT
126 N u m a peça em verso, vocês provavelmente terão de encon-
nas uma personagem dominante; e o conflito ocorria dentro trar palavras para diversas personagens que diferem imensa-
do espírito dessa personagem. A terceira voz, ou voz dramática, mente umas das outras q u a n t o ao substrato h u m a n o , ao tempe-
não se tornou audível para mim senão q u a n d o abordei o pro- ramento, à educação e à inteligência. Vocês não p o d e m se per-
blema de apresentar duas (ou mais) personagens envolvidas mitir identificar n e n h u m a dessas personagens com vocês mes-
mos e atribuir-lhe (a ela ou a ele) toda a " p o e s i a " a ser dita.
em alguma espécie de conflito, vítimas de um mal-entendido,
A poesia (ou seja, a linguagem nesses momentos dramáticos
ou que se empenhavam cm compreender-se m u t u a m e n t e , per-
em q u e ela atinge sua intensidade) deve estar tão d i f u s a m e n t e
sonagens com cada uma das quais eu tentava me identificar
distribuída q u a n t o o permita a natureza das personagens; e
enquanto escrevia as palavras que eu ou elas deveríamos pro-
cada u m a das personagens — q u a n d o há falas a dizer que são
nunciar. Vocês poderão se lembrar de que a Sra. Cluppins, no
poesia, e não simplesmente versos —, deve ser contemplada
processo que opôs Bardei! a Pickwick, testemunhou q u e ' as
com versos adequados a si própria. Q u a n d o a poesia aflora, a
vozes eram muito estridentes, senhor, e ecoavam em meu ouvi-
personagem no palco não deve dar a impressão de que é ape-
d o " . 44 Bem, Sra. C l u p p i n s " , disse o sargento Buzfuz, 'você
nas um porta-voz do autor. Conseqüentemente, o autor está
não escutava, mas ouviu as vozes. 8 Foi em 1938, portanto,
limitado pelo gênero de poesia e pelo grau de intensidade nesse
que a terceira voz começou a ecoar em meu ouvido. gênero, que pode ser plausivelmente atribuído a cada persona-
A esta altura posso imaginar o leitor m u r m u r a n d o : Estou gem de sua peça. E essas passagens poéticas em verso devem
certo de que ele já disse tudo isso \ Recorrerei à memória t a m b é m justificar-se pela maneira como fazem evoluir a situa-
suprindo a referência. Na conferência 4 Poesia e drama profe- ção cm que são elas pronunciadas. Mesmo que uma explosão
rida exatamente há três anos e posteriormente publicada, eu disse: de esplêndida poesia esteja adequada o bastante à personagem
Ao escrever outro tipo de verso (isto é, o verso não-dramá- à qual se destina, ainda assim é preciso que ela nos convença
tico), julgo que se esteja escrevendo, por assim dizer, nas con- de que é necessária à ação dramática, que ajude a extrair a
dições da própria voz: a maneira como ela soa q u a n d o vocês o máxima intensidade emocional da situação. O poeta que escreve
lêem para si mesmos é o teste, porque são vocês mesmos q u e para o teatro pode, como o percebi, cometer dois erros: o de
estão falando. O problema da comunicação, daquilo q u e o lei- atribuir a u m a personagem passagens poéticas em verso impró-
tor dela irá receber, não é primordial ( . . . ) " . prias a serem ditas por essa personagem, e o de atribuir versos
Há certa contusão de pronomes nessa passagem, mas creio que, embora adequados à personagem, não conseguem fazer
que o significado é claro, tão claro que ilumina o óbvio. Nesse progredir a ação da peça. Em alguns dos dramaturgos clisabeta-
ponto percebi apenas a diferença entre falar para si próprio e nos menores há passagens de magnífica poesia que estão cm
falar para uma personagem imaginária; e passei a outras consi- ambos os aspectos fora de lugar, passagens suficientemente
derações sobre a natureza do drama poético. Comecei por tomar belas para que a peça sobreviva para sempre como obra literária,
consciência da diferença entre a primeira e a terceira voz, mas mas ainda assim incapazes dc fazer com que a peça se torne
negligenciei a segunda voz, sobre a qual me alongarei mais uma obra-prima dramática. Os exemplos mais conhecidos estão
em breve. Tentarei agora penetrar um pouco mais no â m a g o no 'Γα τη burlarne de Marlowe."
da questão. Assim, antes de começar a refletir sobre as outras
vozes, quero alinhavar algumas palavras sobre as complexida- 9 Marlowe, Christopher. Poeta e d r a m a t u r g o inglês (Canterbury. 1564 Dept-
ford, perto de Londres, 159^). A tragèdia Tamburinine the Great está dividida
des da terceira voz. em duas partes, respectivamente publicadas em 1590 e 1593. Alem desta, Marlowe
escreveu, entre outras, a hamous tragedy o) the neh jew of Malta (c. 1592, impressa
8 Esse diálogo pertence ao romance burlesco Pickwick papers (1836-1837) do e s m -
em 163 5) e The tragical history of doctor Pausi us (public. 1604), que Eliot define
tor ingles Charles Dickens ( L a n d p o n , Portsmouth, 1812 Gadshill Rochester ι omo u m a "farsa trágica". ( Ν . Τ )
1870). O episódio da injusta condenação imposta a Pickwick satiriza o sistema judi-
ciário ingles. (N I )
AS TRÊS VOZES DA POESIA 129
T. S. ELIOT

temperamento, da mesma idade e, menos ainda, do m e s m o


Como os maiores poetas dramáticos — Sófoclcs, 1 Shakespe-
sexo. Cada parcela de si q u e o autor concede a uma persona-
are ou Racine — enfrentaram essa dificuldade? Esse é, natural-
gem pode constituir o germe a partir do qual a vida dessa per-
mente, um problema que interessa a toda a ficção imaginativa
sonagem se desenvolve. Por outro lado, u m a personagem q u e
— romances e peças em prosa — na qual se pode dizer que as
consegue interessar o autor pode fazer aflorar potencialidades
personagens estão vivas. No que me concerne, não vejo como
fazer uma personagem ganhar vida se não se nutre por ela u m a latentes que nele se encontravam adormecidas. Creio q u e o
profunda simpatia. Idealmente, um dramaturgo, que tem habi- autor transmite algo em si às suas personagens, mas creio tam-
tualmente de manipular muito menos personagens do que bém que ele é influenciado pelas personagens q u e cria. Seria
um romancista — e que dispõe apenas de duas horas dc vida, muito fácil perder-se num labirinto de especulações sobre o
ou pouco mais, para lhes conceder —, deveria simpatizar pro- processo pelo qual uma personagem imaginária pode tornar-
f u n d a m e n t e com todas as suas personagens; mas isso é como se tão real para nós q u a n t o alguém q u e conhecemos. Só pene-
aconselhar a perfeição, pois a intriga de uma peça até mesmo trei tão a f u n d o nesse labirinto para indicar as dificuldades,
com um modestíssimo elenco pode exigir a presença de uma as limitações e o fascínio, para um poeta que se acostumou a
ou mais personagens cuja realidade, caso desconsideremos sua escrever poesia em seu próprio nome, do problema q u e é fazer
contribuição à ação dramática, não nos interessa. Pergunto-me, com q u e as personagens imaginárias falem em termos de poe-
todavia, se é possível tornar inteiramente real uma personagem sia; e para caracterizar a diferença abismal q u e existe entre
de todo abominável — dessas pelas quais nem o autor nem nin- escrever para a primeira e a terceira vozes.
guém pode sentir senão antipatia. Precisamos misturar fraqueza A singularidade de minha terceira voz, a voz do drama poé-
espiritual com virtude heróica ou vilania satânica para tornar tico, manifesta-se de uma outra maneira pela comparação dela
plausível a personagem. Iago me assusta mais do que Ricardo com a voz do poeta na poesia não-dramática que tem em si
III; tenho dúvidas de que Parolles, em All's well that ends um elemento dramático — e, acima de tudo, no monólogo
well, me perturbe mais do que Iago. (E estou absolutamente dramático. N u m m o m e n t o de distração crítica. Browning diri-
certo de que Rosamund Vincy, em Middle march,11 me atemo- gia-se a si mesmo nos seguintes termos: 4 Robert Browning, tu,
riza muito mais do que Goneril ou Regan. 12 ) Parecc-me que o escritor de peças . Quantos dentre nós leram u m a peça de-
que ocorre, quando um autor cria uma personagem vital, é Browning mais de uma vez? E, se chegaram a fazê-lo, teriam
uma espécie de intercâmbio. O autor pode colocar nessa perso- sido contemplados com o prazer que esperavam? Q u e persona-
nagem, além de outros atributos, algum traço que lhe pertence, gem, n u m a peça de Browning, permanece viva em nossa mente?
alguma força ou fraqueza, alguma tendência à brutalidade ou Por outro lado, quem pode esquecer Fra Lippo Lippi, ou
à indecisão, ou mesmo alguma excentricidade que descobriu Andrea del Sarto, ou o bispo Blougram, ou aquele outro bispo
em si próprio. Algo que talvez jamais realizou em sua própria que encomenda um túmulo? 1 3 Pareceria, sem precisar ir mais
vida, algo que aqueles que melhor o conhecem podem ignorar, longe, que, a partir da mestria de Browning no trato com o
algo cuja transmissão não se restringe às personagens do mesmo monólogo dramático, e de sua contribuição mais modesta ao
drama, as duas formas devem ser essencialmente distintas. Há,
10. Em gr. Sophokles. Dramaturgo grego (Atenas, c. 495 a.C. — id. 406 a . C . ) .
Segundo a tradição, escreveu cerca de cento e vinte peças, sete das quais se preser- talvez, uma outra voz que não foi possível escutar, a voz do
varam até nossos dias, entre elas Antífona, Édipo rei, Electra. As Iraq ut mas e Édipo poeta dramático cujas virtudes dramáticas são mais bem cxerci-
em Colonos. Foi homenageado e festejado, a part.r de 468 a . C . , como o maior
poeta trágico da Grécia. ( N . l )
11. M iddlemarch a ttudy of provincial life (1871-1872) é a obra-prima da roman-
13 Todas essas personagens pertencem à coletânea de poemas Men and women.
cista inglesa George Eliot. ( N . T . )
de Browning, já mencionada na nota 2. ( N . T . )
12. Os dois filhos ingratos do Rei Lear, de Shakespeare. ( N . T . )
AS TRÊS VOZES Í)A POESIA 131
126 T. S. ELIOT

é sem razão que, q u a n d o o monólogo dramático não é colo-


das fora do teatro. E, certamente, se alguma poesia, não esenta
cado na boca dc alguma personagem já conhecida do leitor —
para o palco, merece ser caracterizada como "dramática , esta
da história ou da ficção —, provavelmente façamos a pergunta:
seria a de Browning. " Q u e m era o original?". Com relação ao bispo Blougram, as
N u m a peça, como já disse, um autor deve estar dividido
pessoas se mostram sempre inclinadas a perguntar: em q u e
entre lealdades; deve simpatizar com personagens q u e p o d e m
medida se pretendia um retrato do cardeal Manning ou de algum
de algum modo não ser simpáticas umas às outras. E deve dis-
outro religioso? Q u a n d o , como o faz Browning, o poeta fala
tribuir a " p o e s i a " tão largamente quanto o permitam as limita-
com sua própria voz, ele não pode dar vida a uma personagem;
ções de cada personagem imaginária. Essa necessidade de divi-
pode apenas imitar uma personagem de algum m o d o por nós
dir a poesia implica certa variação do estilo poético de acordo
conhecida. Mas a essência da imitação não reside no fato de
com a personagem à qual ela é atribuída. O fato de q u e certo
número de personagens numa peça tenha direitos sobre o autor que reconhecemos a pessoa imitada e no relativo malogro da
quanto à distribuição de falas poéticas obriga-o a tentar extrair ilusão? Devemos estar conscientes de q u e a imitação e a pessoa
a poesia da personagem em vez de impor-lhe sua poesia. Ora, imitada são pessoas distintas: se formos dc fato iludidos, a imi-
n u m monólogo dramático não enfrentamos tal obstáculo. O tação se torna uma impostura. Q u a n d o ouvimos u m a peça de
autor pode tanto identificar perfeitamente a personagem con- Shakespeare, não ouvimos Shakespeare, mas suas personagens;
sigo mesmo quanto identificar-se t o m ela, pois o obstáculo q u a n d o lemos um monólogo dramático de Browning, não
que o impediria de ir adiante não existe mais — e esse obstá- podemos supor que estejamos ouvindo qualquer outra voz que
culo é a necessidade de se identificar com qualquer outra perso- não seja a dele.
nagem que responda em primeiro. Na verdade, o q u e normal- No monólogo dramático, portanto, é seguramente a segunda
mente ouvimos num monólogo dramático é a voz do poeta, voz, a voz do poeta que fala com outra pessoa, que predomina.
q u e passa a usar o traje e a máscara, seja de alguma persona- O simples fato de que ele assume um papel, de que está falan-
gem histórica, seja de outra que não pertença à ficção. Sua do por meio de uma máscara, implica a presença de u m a pla-
personagem deve estar identificada para nós — t a n t o como téia: por que deveria alguém usar máscara e fantasia para falar
indivíduo quanto, pelo menos, como tipo — antes q u e comece consigo mesmo? A segunda voz é, na verdade, a voz mais fre-
a falar. Se, como freqüentemente ocorre em Browning, o poeta qüente c claramente ouvida na poesia que não pertence ao tea-
estiver falando no papel de uma personagem histórica, c o m o tro; cm toda poesia, é claro, há um propósito social consciente
Lippo Lippi, ou no papel de uma personagem conhecida da — poesia que pretende divertir ou instruir, poesia que conta
ficção, como Caliban, ele se apodera dessa personagem. E a uma história, poesia que prega ou sugere uma moral, ou u m a
diferença é mais evidente em seu "Caliban upon S e t e b o s " . sátira que é uma forma dc doutrinação. Pois onde estaria o sen-
Em The tempest é Caliban q u e m fala; em " C a l i b a n u p o n tido de uma história sem uma platéia, ou de um sermão sem
Setebos" é a voz de Browning que ouvimos. Browning falando u m a congregação? A voz do poeta que se dirige a outra pessoa
em voz alta pela boca de Caliban. Foi o maior discípulo de é a voz dominante da poesia épica, embora não a única voz.
Browning, o Sr. Ezra Pound, que adotou o termo persona para Em Homero, por exemplo, ouve-se t a m b é m , vez por outra, a
indicar as diversas personagens históricas por meio das quais voz dramática: há momentos em que ouvimos, não Homero
ele fala. E o termo é correto. a nos contar o que disse um herói, mas a voz do próprio herói.
Arrisco-me também à generalização — que pode, a rigor, A divina comedia não é, no sentido estrito, uma poema épico,
ser muito vasta — de que o monólogo dramático não pode criar mas nela também ouvimos homens e mulheres que falam
uma personagem, pois esta é concebida e materializada somente conosco. E não temos n e n h u m a razão para supor que a simpa-
numa ação, numa comunicação entre pessoas imaginárias. Não
132 T. S. ELIOT AS TRÊS VOZES DA POESIA 133

tia de Milton por Satã fosse tão exclusiva que ele tivesse parte these yellow s a n d s " , 1 7 ou " H a r k ! Hark! the lark!" I H são versos
com o Demônio. Mas o poema epico é essencialmente uma his- líricos não é mesmo? , mas que sentido existe em dizer
tória que se conta para um público, enquanto o drama é essen- que eles expressam diretamente os pensamentos e as emoções
cialmente uma ação que se expõe diante de uma platéia. do poeta? London, The vanity of human wishes,19 The deserted
Ora, o que dizer da poesia da primeira voz — aquela que village20 são poemas que parecem expressar os pensamentos c
não é primordialmente uma tentativa cabal para nos comuni- as emoções do poeta, mas será que porventura consideramos
tais poemas como líricos"? Eles decerto não são curtos. Todos
carmos com alguém?
os poemas que acabo de mencionar parecem não poder ser qua-
Devo salientar que essa poesia não é, a rigor, o que chama-
lificados como líricos, bem como os Srs. Daddy Longless e
mos vagamente de "poesia lírica". O termo lírico é em si insa-
Floppy Fly21 não puderam ser considerados palacianos:
tisfatório. Consideramos inicialmente o verso escrito para ser
cantado — das canções de Campion, Shakespeare e Burns 1 1 às
One never more can go to court.
árias dc W. S. Gilbert, 1 5 ou às palavras dos últimos números Because his legs have grown too short;
de music-hall. Mas o aplicamos também à poesia que jamais The other cannot sing a song,
foi composta para um quadro musical, ou que dissociamos dc Because his legs have grown too long!22
sua música; falamos do "verso lírico' dos poetas metafísicos,
de Vaughan e Marvell, 16 assim como de D o n n e e Herbert. A E obviamente lírico no sentido de um poema q u e "expressa
verdadeira definição de "lírico" no Dicionário de Oxford revela os pensamentos e as emoções do p o e t a " , e não no sentido des-
que a palavra não pode ser satisfatoriamente definida: conexo de um poema curto destinado a ser posto em música,
que se relaciona à minha primeira voz — a voz do poeta q u e
Lírico: Palavra que designa atualmente poemas curtos, geralmente
fala consigo mesmo, ou com ninguém. É nesse sentido q u e o
divididos em estâncias ou estrofes, e que exprimem direta-
poeta alemão Gottfried Benn, 2 3 n u m a conferência dc fato inte-
mente os pensamentos e as emoções do poeta.
ressante intitulada " P r o b l e m e der Lyrik" ( " O problema do
Quão curto deve ser um poema para ser chamado de lírico"? poema lírico"), considera o poema lírico como a poesia da pri-
A ênfase sobre a brevidade e a sugestão da divisão em estâncias meira voz: ele inclui aí, estou certo, poemas como as Elegias
parecem ser tudo o que resta da associação da voz com a música.
17. " V e m para essas areias amarelas. Primeiro verso de uma canção de Ariel em
Mas não há necessariamente uma relação entre a brevidade e a A tempestade, Ato 1, Cena II. de Shakespeare. ( N . T . )
expressão dos pensamentos e emoções do poeta. " C o m e u n t o 18. "Escuta! Escuta! A cotovia!" (N T.)
19. Dois poemas de Samuel J o h n s o n . ( N . T . )
14. Burns. Robert Poeta escocês (Allowcy, Ayrshire. 1759 - Dumfries, 1796), 20. Poema de Oliver Goldsmith, poeta, romancista e d r a m a t u r g o inglês (Pallsmore,
segundo o qual a poesia e a música eram a linguagem do amor Considerado o Longford, Irlanda, c 1730 Londres, 17 7 4). Além do poema citado por Eliot,
poeta nacional da Escócia, escreveu Poems, chiefly m the Scottish dialect (1786) e que data de 1~*70. c u m p r e lembrar The traveller {MM), bem como o romance The
resgatou as canções do folclore escocês nos cinco volumes de The Scotch musical vicar of Wakefield (1766) e a comedia The stoops to conquer (1771). (N.T.)
museum (1787-1797). ( N . T . ) 21 Personagens de Edward Lear que se encontram n u m livro para crianças america-
15. Gilbert, William Schwenck. Poeta e dramaturgo inglês (1836-1911). famoso nas. ( N . T . )
por sua colaboração com o compositor Sir Arthur Sullivan particularmente no que 22. " U m jamais poderá ir à corte, / Porque suas pernas cresceram m u i t o pouco; /
se refere à produção de numerosas óperas cômicas. ( N . T . ) O outro não pode cantar uma canção. / Porque suas pernas cresceram demais!" ( N . T . )
16. Marvell. Andrew. Poeta e pregador inglês (Winestead. 1621 Londres, 23. Benn. Gottfried. Poeta alemão (Mansfeld. 1886 Berlim. 1956). Foi sempre
1678). Amigo de Milton e D o n n e , seus textos estão impregnados de um classicismo um anarquista e, por desespero, mergulhou no niilismo. Sua obra está repleta de
obscuro, à exceção do extraordinário e transparente " T o his coy mistress", em que metáforas violentas e brutais, como em Morgue (1912). Fleisch (Carne, 1917),
renova o tema do carpe diem horaciano. Suas obras poéticas foram publicadas sob Schutt (Escombros, 1919), Statische Gedichte (Poemai estáticos, 1948) ou Der Pto-
o título d t Miscelaneous poems (1681). ( N . T . ) iernaer (O Ptolomeu, 1949). (N.T.)
132 T. S. ELIOT AS TRÊS VOZES DA POESIA 135

de Duino, de Rilke, e La jeune Parque (A jovem Parca), de as que são as menos impróprias. Não está interessado em saber
Valéry. O n d e ele fala de "poesia lírica", portanto, eu preferi- se alguém mais as ouvirá ou não, ou se alguém mais as compre-
ria dizer "verso meditativo". enderá, se ele as compreende. Está sob o peso de um fardo do
Pelo quê, pergunta Herr Benn nessa conferência, começa o qual precisa se livrar para obter algum alívio. O u , para recorrer
escritor de um poema " q u e não se dirige a n i n g u é m " ? Antes a uma outra imagem, está acossado por um demónio, um
de mais nada, diz ele, há um embrião inerte ou " g e r m e criati- demónio contra o qual ele se julga impotente, pois em sua pri-
vo" (ein dumpfer schöpferischer Keim24) e, por outro lado, a meira manifestação este não tem face, nem nome, nem nada;
linguagem, os recursos verbais à disposição do poeta. Há alguma e as palavras, o poema que ele concebc, são u m a espécie de
coisa que nele germina para a qual ele precisa encontrar pala- exorcismo desse demônio. Em outras palavras ainda, ele se con-
vras, mas ele não sabe de que palavras necessita até q u e as des- cede todo esse cuidado, não para se comunicar com alguém,
cubra; não sabe identificar esse embrião até que este seja trans- mas para obter alívio de um agudo mal-estar; e q u a n d o as pala-
formado numa combinação de palavras justas n u m a ordem cor- vras afinal se arrumam de m o d o correto — ou de acordo com
reta. Quando vocês encontram as palavras, a coisa" para a aquilo que ele chega a admitir como o melhor arranjo dc q u e
qual estas têm de ser encontradas desapareceu, e eis que um foi capaz —, pode o poeta experimentar um instante dc exaus-
poema as substituiu. O ponto do qual vocês partiram não tem tão, de apaziguamento, de absolvição e de algo m u i t o próximo
sequer a clareza de uma emoção, em qualquer sentido ordinário do aniquilamento, que é em si indescritível. E enrão ele pode
do termo; é decerto algo menos que uma idéia; é — para adap- dizer ao poema: Vai! Encontra para ti um lugar em um livro
tar dois versos de Beddoes 2<i a um significado diferente — u m a — e não espera de mim que eu tenha algum f u t u r o interesse
por t i ! " . ^ t
bodiless childful of life in the gloom Não creio q u e a relação de um poema com suas origens
Crying with frog voice, 'what shall 1 be? 20 possa ser mais claramente delineada. Vocês podem 1er os ensaios
de Paul Valéry, que estudou as funções de sua própria m e n t e
Concordo com Gottfried Benn, e poderia até ir um pouco além. na composição de um poema com mais obstinação do q u e
N u m poema que não é nem didático nem narrativo, e q u e não qualquer outro poeta. Mas sc, que^ com base naquilo q u e os
está animado por n e n h u m outro propósito social, o poeta pode poetas tentam dizer a vocês, quer por meio de pesquisas bio-
estar apenas preocupado em exprimir cm verso — utilizando gráficas, com ou sem o instrumental do psicólogo, vocês tenta-
todos os seus recursos verbais, com sua história, suas conotações, rem explicar um poema, provavelmente dele se distanciarão
sua música — esse obscuro impulso. Ele não sabe o q u e tem cada vez mais, sem chegar a n e n h u m outro destino. A tenta-
a dizer até que o diga; e no esforço para dizê-lo não está inte- tiva de explicar o poema remontando a suas origens desviará
ressado no fato dc que outra pessoa não entenda coisa alguma. a atenção do poema para dirigi-la a qualquer outra coisa q u e ,
Ele não está, nesse momento, absolutamente interessado em na forma em que pode ser apreendida pelo crítico ou por seus
ninguém, a não ser em descobrir as palavras certas, ou então leitores, não tem n e n h u m a relação com o poema e absoluta-
mente não o esclarece. Não gostaria que vocês imaginassem
24. " U m germe mais apático c criativo." ( N . T . )
25. Beddoes, Thomas Lovci 1. Poeta ingles (Clifton, Somerset. 1803 Basiléia.
que estou tentando tornar o texto de um poema mais miste-
1849). Avido leitor de romances góticos, manifestou desde seu primeiro livro, The rioso do que ele já é. O que sustento c que o primeiro esforço
bride'i tragedy (1821), uma aguda obsessão pela morte Deixou t a m b é m um estra- do poeta deveria ser no sentido de adquirir clareza para si
nho poema dramático, Death \ jest hook, or the fool's revenge tragedy, só publi-
cado após sua morte, assim como os Poems. ( N . T . )
mesmo, dc assegurar para si que o poema constitui o resultado
26. "Criança sem corpo que aspira à vida nas trevas / G r i t a n d o com u m a voz coa- correto do processo que foi desenvolvido. A mais desastrada
xante: Ό que serei e u ? ' . " ( N . T . ) forma dc obscuridade é aquela do poeta que não foi capaz dc
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T. S. ELIOT
AS TRÊS VOZES DA POESIA

se expressar para si mesmo; a mais pretensiosa das formas voz a ser ouvida. Se o autor jamais falasse consigo mesmo, o
ocorre q u a n d o o poeta tenta persuadir a si mesmo de q u e tem resultado nunca poderia ser poesia, embora pudesse ser esplên-
algo a dizer q u a n d o não o tem. dida retórica; e uma parte dc nosso prazer com a grande poesia
Até agora falei, por amor à simplicidade, das três vozes consiste no prazer de ouvir ao acaso palavras que não nos foram
como se elas reciprocamente se excluíssem; como se o poeta, destinadas. Mas se o poema fosse escrito exclusivamente para
cm qualquer poema particular, falasse fosse consigo mesmo, o autor, seria ele um poema concebido n u m a língua secreta e
fosse com os outros, c como se n e n h u m a nem outra das duas desconhecida; e um poema que estivesse reservado apenas para
primeiras vozes fossem audíveis na hora da boa poesia dramá- o autor não seria em absoluto um poema. Q u a n t o ao drama
tica. E essa, na verdade, é a conclusão à qual a argumentação
poético, estou inclinado a acreditar que nele todas as vozes sejam
de Herr Benn parece conduzi-lo, pois ele fala como se a poesia
audíveis. Primeiro, a voz de cada personagem — u m a voz indi-
da primeira voz — que considera, aliás ser afinal um desenvol-
vidual distinta daquela de qualquer outra personagem, de
vimento de nossa própria época — constituísse u m a espécie
modo que podemos dizer dc cada elocução q u e ela só pode ter
totalmente distinta de poesia daquela do poeta q u e se dirige a
sido articulada por aquela personagem. Podem ser ouvidas aí,
uma platéia. Mas, para mim, as voze< são a m i ú d e encontradas
vez por outra, c talvez q u a n d o menos o percebamos, as vozes
juntas: a primeira c a segunda, como penso, na poesia não-dra-
do autor e da personagem cm uníssono, dizendo algo a d e q u a d o
mática; e associadas à terceira também na poesia dramática.
à personagem, mas algo que o autor também poderia dizer a
Mesmo que, como tenho sustentado, o autor dc um poema
si próprio, embora as palavras pudessem não ter em absoluto
possa tê-lo escrito inicialmente sem pensar n u m a platéia, ele
o mesmo significado para ambos. Tal ocorrência pode ser algo
desejará também saber o que o poema q u e o satisfez terá a
dc muito distinto do ventriloquismo que faz da personagem
dizer a outra pessoa. Antes dc mais nada, existem aqueles pou-
apenas um porta-voz das idéias ou dos sentimentos do autor.
cos amigos à apreciação dos quais ele pode desejar submetê-lo
antes de o considerar concluído. Eles podem ser de muita utili- A manhã e amanhã e amanhã (...)
dade, sugerindo uma palavra ou uma frase q u e o autor não foi
capaz de encontrar por si mesmo, embora a maior contribuição Não seriam o impacto e a surpresa desses versos triviais a prova
que possam dar seja talvez a de dizer apenas: "Essa passagem de que Shakespeare e Macbeth estivessem pronunciando as pala-
não está b o a " , confirmando assim uma suspeita que o autor vras em uníssono, embora talvez com um significado diferente?
suprimiu de sua própria consciência. Mas não penso essencial- E afinal há os versos, nas peças do maior dentre todos os poe-
mente naqueles poucos amigos criteriosos cuja opinião o autor tas dramáticos, nos quais ouvimos uma voz ainda mais impes-
preza, e sim num público leitor mais numeroso e desconhecido soal do que a da personagem ou do autor:
— pessoas para as quais o nome do autor não significa mais
do que o poema de seu p u n h o que acabaram de 1er. A entrega Ripeness is all27
definitiva, por assim dizer, do poema a um público desconhe- ou
cido, à revelia do que esse público possa fazer do poema,
parece-me o epílogo do processo iniciado na solidão e sem que Simply the thing I am
se cogitasse do público, esse longo processo de gestação do Shall make me live.2H
poema, pois ele assinala a separação final entre o poema c o
autor. Deixemos o autor, a essa altura, descansar em paz. 27. "A maturidade e' tudo " Aforismo largado por Edgar a seu pai Gloucester (Sha-
Por ora é o bastante do poema que é, acima de tudo, um kespeare. Rei Lear, Ato V. Cena II). que significa que se morre na sua hora, e nâo
antes. ( N . T . )
poema da primeira voz. Julgo que em todo poema, da medita- 28. " S i m p l e s m e n t e aquilo que sou / Me fará vivo. ' Shakespeare, All's well lhat
ção pessoal ao poema épico ou ao drama, há mais do que uma ends well. Ato IV. Cena III. (N T )
132
T. S. ELIOT AS TRÊS VOZES DA POESIA 138

Gostaria agora de voltar por um m o m e n t o a Gottfried A esta altura, o leitor pode muito bem estar se perguntando
Renn e à sua desconhecida e obscura materia psíquica — pode- aonde pretendo chegar com todas essas especulações. Estaria
ríamos dizer, o polvo ou o anjo com os quais o poeta luta. eu me d a n d o o trabalho de tecer uma trama requintada dc inú-
Sugiro que entre as très espécies de poesia às quais correspon- til ingenuidade? Bem, estou tentando falar, não para mim
dem minhas très vozes haja uma certa diferença processual.
mesmo — como vocês podem ter tentado imaginar —, mas
No poema em que predomina a primeira voz — a do poeta
para o leitor de poesia. Eu gostaria dc pensar que esse a m a n t e
que fala consigo mesmo —, a "matéria psíquica tende a criar
dc poesia pudesse estar interessado em averiguar minhas afirma-
sua própria voz: a forma eventual será, em maior ou menor
ções ao longo de suas próprias leituras. Poderiam vocês distin-
grau, aquela que convém a um único poema, e não a outro.
guir essas vozes na poesia que lêem, ou ouvem declamada, ou
E errôneo, decerto, falar da matéria como algo que cria ou
escutam no teatro? Se vocês se queixam de que um poeta é
impõe sua própria forma: o que ocorre é um desenvolvimento
obscuro, e aparentemente os ignora, a vocês, leitores, ou de
simultâneo da forma e da matéria, pois a forma afeta a matéria
que está falando apenas para um restrito círculo de iniciados
cm todas as etapas, e talvez tudo o que caiba à matéria seja repe-
do qual vocês estão excluídos, lembrem-se dc que aquilo q u e
tir "isso, não! isso, n ã o ! " , diante de cada tentativa malograda
ele pode ter tentado fazer foi colocar algo nas palavras que não
que vise a organização formal; e, finalmente, a matéria é iden-
poderia ser dito de outro modo c, conseqüentemente, n u m a
tificada com sua forma. Mas na poesia da segunda e da terceira
linguagem que talvez valesse a pena aprender. Se vocês lamen-
vozes a forma se acha pronta até certo ponto. Entretanto, por
mais que essa forma possa ser / r j ^ j f o r m a d a antes que o poema tam que um poeta é demasiado retórico, e que se dirige a vocês
esteja concluído, ela pode ser representada desde o início por como se todos estivessem n u m a reunião pública, tentem pres-
um esboço ou um cenário. Se eu preferir contar uma história, tar atenção aos momentos em que ele não está se dirigindo a
preciso ter alguma noção do enredo da história que me dispo- vocês, mas apenas deixando-se ser ouvido ao acaso: ele pode
nho a contar; se optar pela sátira, a de f u n d o moral ou a inven- ser um Dryden, um Pope ou um Byron. E se vocês forem escu-
tiva, já há algo dado que posso reconhecer e que existe tanto tar uma peça em verso, considerem-na antes de mais nada pelo
para os outros quanto para mim. E se me p o n h o a escrever que ela vale como entretenimento, pelas personagens que falam
uma peça, começo por um ato de escolha: decido-me por u m a cada uma por si, qualquer que seja o grau de realidade que seu
determinada situação emocional, da qual as personagens e a autor lhes pôde atribuir. Talvez, caso se trate de uma grande
intriga irão emergir, e posso antecipadamente elaborar um plano peça, e se vocês não tentarem se empenhar ao máximo para
sumário cm prosa da peça, quaisquer que sejam as alterações ouvi-las poderão t a m b é m discernir as outras vozes. Pois a obra
a que ele possa ser submetido antes que a peça esteja concluída, de um grande poeta dramático, como Shakespeare, constitui
de acordo com a maneira como as personagens se desenvolvem! um universo. Cada personagem fala por si, mas n e n h u m outro
E provável, naturalmente, que ocorra no início a pressão de poeta teria encontrado as mesmas palavras para que elã as dis-
alguma matéria psíquica grosseira e desconhecida capaz de indu- sesse. Se vocês procurarem por Shakespeare, somente o encon-
zir o poeta a contar aquela determinada história, a desenvolver trarão nas personagens que ele criou, pois a única coisa em
aquela determinada situação. E, por outro lado, o q u a d r o , já comum entre tais personagens é que ninguém, a não ser Sha-
escolhido, dentro do qual o autor decidiu trabalhar, pode evo- kespeare, poderia ter criado qualquer uma delas. O m u n d o de
car outra matéria psíquica; e então os versos podem nascer um grande poeta dramático é um m u n d o no qual o criador
nao do inipulso original, mas a partir de um estímulo secundá- está presente em toda parte, e em toda parte oculto.
rio do subconsciente. Tudo o que importa é que, ao f i m , as
vozes sejam ouvidas em harmonia; e, como já disse, duvido
que cm qualquer verdadeiro poema apenas uma voz seja audível
AS FRONTEIRAS DA CRITICA 141

e considerável entusiasmo; e poderia parecer que eu estivesse


pensando cm um ou mais críticos de reputação solidamente
estabelecida e mais antigos do que cu no ofício, cujos textos
não atendiam às minhas exigências do que deveria ser a crítica
literária. Mas não consigo me lembrar de um livro de ensaios,
ou do nome de um só crítico, como representante da espécie
AS FRONTEIRAS DA CRÍTICA' dc crítico impressionista que despertou a minha ira trinta e três
anos atrás.
A única razão que tenho agora para mencionar esse ensaio
é advertir até que ponto o que escrevi sobre esse assunto cm
1923 está "datado". Os Principles of literary criticism, de
Richards, 4 foram publicados cm 1925. Muitas coisas acontece-
ram na crítica literária desde que esse influente livro foi edi-
tado, c meu ensaio foi escrito dois anos antes. A crítica se desen-
volveu e se esgalhou em diversas direções. A expressão " T h e
New Criticism ( " A Nova Crítica") é amiúde utilizada por
A tese que sustento neste ensaio é a de que há limites além pessoas que não supõem a diversidade que cia comporta, mas
dos quais, numa certa direção, a crítica literária deixa de ser lite- seu uso corrente, creio cu, reconhece o fato de que os mais ilus-
rária e, numa outra, deixa de ser crítica. tres críticos de hoje, por maiores que sejam suas divergências,
Em 1923 escrevi um artigo intitulado " T h e function of cri- diferem todos, de algum modo significativo, dos críticos da gera-
ticism".· 1 Devo ter esse ensaio em alta estima, tanto assim q u e , ção anterior.
dez anos depois, o incluí em meus Selected essays, nos quais Há muitos anos salientei que toda geração deve produzir
ele pode ainda hoje ser encontrado. Ao reler recentemente esse sua própria crítica literária, pois, como disse, "cada geração
ensaio, fiquei talvez algo confuso, surpreso com todo o estarda- traz à contemplação da arte suas próprias categorias dc julga-
lhaço que se criou em torno dele, embora me sentisse contente mento, faz suas próprias exigências artísticas e desenvolve seus
por nada encontrar aí que na verdade contrariasse minhas pre- próprios usos da a r t e " . Q u a n d o fiz essas afirmações, estava certo
sentes opiniões. E que, deixando de lado u m a querela com o de ter em mente que isso significava mais para mim do que as
Sr. Middleton Murry* sobre "a voz interior'' — disputa na mudanças de gosto e de moda: cu tinha em mente, pelo menos,
qual reconheço a antiga aporia Autoridade versus J u l g a m e n t o o fato de que cada geração, ao examinar uma obra-prima do
Individual —, concluí ser impossível relembrar as razões de passado a partir de uma perspectiva diferente, é prejudicada
meu destempero. Fiz uma série de afirmações com segurança cm sua atitude por um número dc influências maior do" que
aquele que se exerce sobre a geração precedente. Mas duvido
1. Conferência da Fundação Gideon Seymour, pronunciada na Universidade de
Minnesota em 1956 e publicada por essa universidade. (N A.)
2. A tradução desse ensaio foi recentemente publicada no Brasil em Ensaios, de
4 Richards. Ivor Armstrong. Crítico literário inglês (Sandbach, 1893 — Cambridge.
T. S. Eliot, tradução, introdução e notas de Ivan J u n q u e i r a , Art Editora São Paulo
1979), cujas idéias sobre os valores racionais e emocionais da língua foram desen-
1989. ( N . T . )
volvidas nos Estados Unidos pelos f u n d a d o r e s do New Criticism. Toda a sua crítica
3. Murry. J o h n Middleton. Escritor inglês (Pcckham, perto de Londres 1889 — literária se apoia em bases semânticas. "A obra citada por Eliot é hoje um clássico
Londres. 1957) amigo pessoal de Eliot, de q u e m publicou poemas e ensaios na da crítica contemporânea. Deixou, ainda, entre outros, lhe meaning of meaning
revista The Athenaeum, por ele dirigida. Casou-se com Katherine Mansfield e foi (1923), Science aru/poetry (1926). Practical criticism (1929) e Coleridge on imagi
amigo de D. H. Lawrence e Aldous Huxley. ( N . T . ) nation (1934). ( N . T . )
149
143 AS I RONTHIRAS DA CRITICA
T. S. ELIOT

que eu tivesse em mente o fato de que uma importante obra a crítica dc nossos dias descende em linha direta de Coleridge,
de crítica literária pudesse alterar e expandir o conteúdo da que, estou certo, se ainda estivesse vivo, teria pelas ciências
expressão "crítica literária" em si. Alguns anos depois, dirigi sociais e pelo estudo da língua e da semântica o mesmo inte-
a atenção para as constantes variações no significado da palavra resse que as ciências de sua época lhe proporcionaram.
educação desde o século XVI até os dias de hoje, uma mudança A consideração da literatura à luz de um ou mais desses
que se produziu graças ao fato de que a educação não apenas estudos é u m a das duas causas principais da transformação da
englobava cada vez mais assuntos, mas também vinha sendo crítica literária cm nosso tempo. A outra causa não foi tão ple-
ministrada ou imposta a um número cada vez maior de pessoas. namente reconhecida. A crescente atenção dada ao estudo das
Se decidíssemos acompanhar os desdobramentos da expressão literaturas inglesa c americana em nossas universidades e, na
"crítica literária" da mesma maneira, concluiríamos q u e algo verdade, em nossas escolas levou a uma situação em que mui-
análogo estaria ocorrendo. Compare-se uma obra-prima como tos críticos sc tornaram professores e muitos professores passaram
a ser críticos. Longe de mim lamentar essa situação: a maior
Lives of the poets, de Johnson, 5 com a grande obra crítica q u e
parte da crítica que hoje de fato nos interessa é obra de homens
se lhe seguiu, a Biographia literaria, de Coleridge. 6 Não se trata
de letras que encontraram seu caminho nas universidades e de
simplesmente do fato de Johnson representar uma tradição lite-
eruditos cuja atividade crítica começou a ser exercida na sala
rária ao fim da qual ele próprio pertence, e n q u a n t o Coleridge
de aula. E nos dias que correm, q u a n d o um jornalismo literário
defende os méritos e critica as fragilidades de um novo estilo.
sério constitui um veículo inadequado, assim como um precário
A diferença mais pertinente com relação àquilo q u e cu disse
meio de sustento para todos à exceção de uns pouco privilegia-
deve-se ao alcance e à variedade dos interesses que Coleridge
dos, é assim que deve ser. Isso significa apenas q u e o crítico
fez pesar em sua discussão sobre a poesia. Estabeleceu a impor-
de hoje pode ter um contato algo diferente com o m u n d o e
tância da filosofia, da estética e da psicologia; e a partir do
estar escrevendo para um público algo distinto daquele em que
momento em que introduziu tais disciplinas na crítica literária,
viveram seus antecessores. Tenho a impressão de que u m a crí-
os futuros críticos não puderam mais ignorá-las senão sob seus
tica séria está sendo agora escrita para um público diferente,
próprios riscos. É necessário um esforço de imaginação histórica
mais limitado, ainda que não necessariamente menos numeroso,
para apreciar Johnson; um crítico moderno terá decerto muito
do que aquele do século XIX.
mais em comum com Coleridge. Na verdade, pode-se dizer q u e
Não faz muito tempo impressionei-me com uma observa-
5. Johnson, Samuel. Poeta e crítico literário inglês (Lichfield, Stratrfordshire. 1709 ção do Sr. Aldous Huxley em seu prefácio à tradução inglesa
— Londres, 1784). cuja autoridade intelectual d o m i n o u as letras inglesas d u r a n t e de The supreme wisdom (A sabedoria suprema), livro do psi-
toda a segunda metade do século XVIII. Embora reabilitado por Eliot como p o e t a ,
quiatra francês Dr. Hubert Benoit sobre a psicologia do zen-
foi o responsável pelo esquecimento, por mais de um século e meio, de D o n n e e
de toda a poesia metafísica. A obra citada por Eliot, cujo título c o m p l e t o é The budismo. A observação do Sr. Huxley corresponde à impressão
T L , / E n g l t s h poets
> data dc 1791
· Escreveu, ainda, entre outros. Account que recebi dessa notável obra q u a n d o a li cm francês. Huxley
of the life of Mr. Richard Savage (1744) e o Dictionary of the English language compara a psiquiatria ocidental à disciplina do Leste tal como
Λ
(1755). ( N . T . ) *
Coleridge, Samuel Taylor. Poeta e ensaísta inglês (Ottery, Saint-Mary, Devon-
ela é encontrada cm Tao e Zen:
shire. 1772 — Londres. 1834). Suas principais obras poéticas estão reunidas em "A meta da psiquiatria ocidental", diz ele, "é ajudar o
Poems on various subjects (1796) e nas Lyrical ballads (1798). de parceria com indivíduo perturbado a se ajustar à sociedade dc indivíduos
Wordsworth. A obra a que Eliot se refere foi publicada em 1817 e é sem dúvida
uma das maiores de toda a crítica literária inglesa. Nela, o autor estabelece as dis-
menos perturbados — indivíduos que a observação nos revela
tinções fundamentais entre a imagination e a fancy. bem como o revolucionário estarem bem adaptados uns aos outros e às instituições locais,
conceito da suspension of disbelief, que influenciou toda a moderna crítica literá-
D C , X 0 U a m d a A i d s t o Te ecti
sem que nos preocupemos, porém, em saber se eles estão ajus-
fl <>» (1825) e Lectures o n Shakespeare
(1856). ( N . T . ) tados à Ordem Fundamental das Coisas (...) Mas há uma outra
144 T. S. ELIOT AS I RONTHIRAS DA CRITICA 149

espécie de normalidade — uma normalidade q u e funciona per- autor me isolaria tão radicalmente dos críticos americanos, mas,
feitamente (...) Até mesmo alguém que esreja perfeitamente por outro lado, não consigo perceber n e n h u m movimento crí-
ajustado a uma sociedade desequilibrada pode se preparar, se tico do qual se possa dizer que haja derivado de m i m , embora
assim o quiser, para tornar-se ajustado à Natureza das Coisas". eu espere que, como editor de The Criterion, haja dado ao
A aplicabilidade disso ao assunto de que estou me ocupando New Criticism algum estímulo e certo campo para experiências.
não é imediatamente óbvia. Mas assim como a psiquiatria oci- Entretanto, julgo que, para justificar essa aparente modéstia,
dental, do ponto de vista do zen-budismo, é confusa ou equivo- eu deveria indicar o que considero ter sido minha própria con-
cada quanto à finalidade da cura a ponto de tornar-se necessá- tribuição à crítica literária e quais são as suas limitações. O
rio que sua atitude deva a rigor retroceder, da mesma forma melhor de minha crítica literária - à parte algumas expressões
me pergunto se a fragilidade da crítica moderna não advém famosas que obtiveram um sucesso realmente embaraçoso pelo
de uma incerteza q u a n t o à finalidade da crítica. Q u e benefício m u n d o afora abrange ensaios sobre poetas e dramaturgos
ela traz, e a quem? Sua verdadeira riqueza e variedade talvez do verso que me influenciaram. Trata-se de um p r o d u t o deri-
estejam obscurecidas por seu propósito final. Q u a l q u e r crítico vado de minha oficina poética particular, ou um prolongamento
pode ter em vista um objetivo definido, pode estar comprome- da reflexão que levou à elaboração de meu próprio verso. Se
tido com uma tarefa que dispense justificativas, e no e n t a n t o olho para trás, vejo que escrevi melhor sobre poetas cujas obras
a crítica em si pode estar em dúvida q u a n t o a seus objetivos. me influenciaram e com cuja poesia me familiarizei muito antes
Se assim o for, não chega a surpreender: pois não é agora lugar- de escrever sobre eles, ou de ter encontrado a ocasião de fazê-
comum dizer que as ciências e até mesmo as h u m a n i d a d e s lo. Minha crítica tem isso em comum com a de Ezra P o u n d ,
alcançaram um ponto de desenvolvimento no qual há tanto a de m o d o q u e seus méritos e limitações só podem ser plena-
saber sobre qualquer especialidade que n e n h u m estudante dis- m e n t e apreciados q u a n d o considerados em relação à poesia que
põe de tempo para aprender grande coisa sobre todo o resto? eu mesmo escrevi. Na crítica de Pound há um elemento mais
E a procura de um programa que associasse o estudo especiali- didático: o leitor que ele tem em vista, suponho, é primordial-
zado a alguma educação geral foi seguramente um dos proble- mente o poeta jovem cujo estilo ainda não amadureceu. Mas
mas mais discutidos em nossas universidades. foi o amor de certos poetas que o influenciou, e (como digo
Não podemos, é claro, voltar à universidade de Aristóteles de mim mesmo) um prolongamento de sua meditação sobre
ou à de Santo Tomas de Aquino; e não podemos voltar ao está- sua obra pessoal que inspira um antigo livro que permanece
gio da crítica literária anterior a Coleridge. Mas talvez nos caiba como um dos melhores do ensaísmo literário p o u n d i a n o , The
fazer algo para evitar que sejamos subjugados por nossa própria spirit of romance.
atividade crítica, por continuamente estarmos fazendo pergun- Esse género de crítica da poesia feita por um poeta, ou o
tas como esta: a partir de que m o m e n t o a crítica não é mais crí- q u e chamo de crítica de oficina, tem uma óbvia limitação.
tica literária, mas algo diferente? O que não tem n e n h u m a relação com a própria obra do poeta,
Tenho me surpreendido um pouco ao constatar q u e , de ou o que lhe é desfavorável, está fora do alcance de sua compe-
vez em quando, consideram-me como um dos ancestrais da crí- tência. Outra limitação da crítica de oficina é que o julgamento
tica moderna, ainda que eu fosse muito velho para ser um crí- crítico pode revelar-se pouco confiável fora de sua arte. Minhas
tico moderno. Assim, num livro que li recentemente escrito avaliações de poetas permaneceram razoavelmente as mesmas
por um autor que decerto é um crítico moderno, encontrei durante toda a minha vida; em particular, minhas opiniões
uma referência ao New Criticism, segundo a qual, diz ele, " d e - sobre um certo número de poetas vivos continuaram inaltera-
signo não apenas os críticos americanos, mas todo movimento
crítico que deriva de T. S. Eliot". Não compreendo por que o 7. Publicação de glande prestígio literário que Eliot dirigiu de 1922 a 1939. ( N . T . )
146 T. S. ELIOT AS I RONTHIRAS DA CRITICA 149

das. Não é por essa razão, entretanto, q u e aquilo q u e t e n h o pertence à categoria dos quais se pode dizer que são monumen-
em mente, ao falar sobre crítica, é o q u e a maioria dos críticos tais. Mas o único e óbvio traço comum entre The road to Xanadu
tinha em mira ao generalizar sobre literatura. A crítica da e Finnegans wake é que podemos dizer de cada um deles: um
prosa de ficção é de criação relativamente recente, e não estou livro como este é o que basta
qualificado para discuti-la; mas parece-me q u e ela exige um Explicarei àqueles que nunca leram The road to Xanadu,
sistema de pesos e medidas algo diferente do q u e aquele que que se trata de um fascinante trabalho detetivesco. Lowes inves-
se aplica à poesia. O exame das diferenças entre as maneiras tigou todos os livros que Coleridge leu (e Coleridge foi um lei-
mediante as quais o crítico deve abordar os vários genres de lite- tor onívoro e insaciável) e dos quais tomou por empréstimo ima-
ratura, bem como entre as espécies de aparato mental requeri- gens ou expressões que podem ser encontradas em Kubla Khan
das, poderia, na verdade, fornecer um interessante assunto e em The ancient marinerà Muitos dos livros que Coleridge leu
para algum crítico da crítica, alguém que não fosse nem poeta são obscuros e esquecidos — ele leu, por exemplo, todos os
nem romancista. Mas a poesia é o assunto mais a d e q u a d o de livros de viagem que lhe caíram às mãos. E Lowes demonstrou,
crítica para se ter em mente q u a n d o se fala sobre crítica, pela de uma vez por todas, que a originalidade poética consiste,
simples razão de que suas qualidades formais se prestam mais em grande parte, n u m a forma original de reunir os mais dispa-
facilmente a uma generalização. Na poesia poderia parecer ratados e inverossímeis materiais para constituir um novo con-
que o estilo é tudo, o que está longe de ser verdadeiro; mas junto. A demonstração é de todo convincente e atesta q u a n t o
a ilusão de que, na poesia, estamos mais próximos de u m a expe- o material é digerido e transformado pelo gênio poético. Nin-
riência estritamente estética torna a poesia o mais apropriado guém que haja lido esse livro poderia supor que compreendeu
genre de literatura que devemos ter em m e n t e ao discutirmos melhor The ancient manner, nem que o Dr. Lowes haja tido a
a crítica literária em si. menor intenção de tornar o poema mais inteligível como poe-
Uma boa parte da crítica contemporânea, que tem sua ori- sia. Ele estava envolvido na investigação de um processo, u m a
gem no ponto em que a crítica se confunde com a erudição e investigação que se desenvolvia, stneto sensu, além das frontei-
em que a erudição se dissolve na crítica, pode ser caracterizada ras da crítica literária. Mas permanece um mistério tão denso
como a crítica de explicação por meio das origens. Para tornar quanto antes a maneira como a matéria constituída por essas
claro o que pretendo dizer, citarei dois livros q u e exerceram, migalhas das leituras de Coleridge se transformou em grande
nesse contexto, uma influência antes maléfica. Não quero dizer poesia. Alguns eruditos otimistas, todavia, se apoderaram do
que sejam maus livros; pelo contrário: são ambos livros que método de Lowes para oferecer a chave da compreensão de qual-
todos deveriam conhecer. O primeiro é The road to Xanadu, quer poema escrito por qualquer poeta que evidencie haver lido
de John Livingstone Lowes,8 e que recomendo a todo estudante de o que quer que seja. " P e r g u n t o - m e " , escreveu-me há um ou
poesia que ainda não o tenha lido. O outro é Finnegans wake dois anos um senhor de Indiana, "— é possível que eu esteja
de James Joyce, cuja leitura, pelo menos a de algumas páginas, louco, naturalmente —" (era uma interjeição dele, não minha;
aconselho a todo estudante de poesia. Livingstone Lowes foi é claro que ele não estava louco de todo, mas apenas ligeira-
um notável erudito, um bom professor, um h o m e m louvável e mente perturbado ao terminar a leitura de The road to Xana-
com relação ao qual tenho razões pessoais para me sentir profun- du)y 4, se 4os gatos cadavéricos da civilização', hipopótamo apo-
damente grato. James Joyce foi um homem de gênio, um amigo drecido' e o Sr. Kurtz têm alguma vaga relação com aquele
pessoal, e a referência que faço aqui ao Ftnnegans wake não é cadáver que você plantou no ano passado em seu jardim ?" Isso
nem para louvar nem para reprovar um livro que certamente
9. São talvez os dois mais conhecidos poemas de Coleridge. O título completo do
8. Publicado em Boston, em 1927. A segunda ediçào é de 1930 (N T ) primeiro c Kubla Khan. a vision. ( N . T . )
148 T. S. ELIOT AS I RONTHIRAS DA CRITICA 149

nos leva a pensar em algo que se assemelha ao delírio, a menos a montagem de minha peça The cocktail party, minha corres-
que vocês identifiquem as alusões: trata-se apenas dc um pes- pondência se avolumou durante meses com cartas que me ofere-
quisador honesto que tenta estabelecer certo vínculo entre lhe ciam soluções surpreendentes para aquilo que os missivistas jul-
waste lande o Heart of darkness, de Joseph Conrad. 10 gavam ser o enigma do significado da peça. E era evidente q u e
Ora, enquanto o Dr. Lowes excitava tais adeptos da herme- tais missivistas não se mostravam agastados com o quebra-cabeça
nêutica com um zelo instigativo, o Fmnegans wake lhes forne- que, como s u p u n h a m , eu lhes havia proposto — pelo contrário,
cia um modelo segundo o qual gostariam eles que fossem escri- isso os encantava. Na verdade, embora estivessem inconscientes
tas todas as obras literárias. Apresso-me em explicar que não do fato, eles inventaram a charada pelo prazer de encontrar a
estou nem ridicularizando nem denegrindo o trabalho desses solução.
exegetas que se dedicam a desemaranhar todos os tios e rastrear Devo admitir aqui que, n u m a ocasião memorável, não con-
todas as pistas nesse livro. Se o Fmnegans wake deve ser cabal- segui furtar-me à culpa dc haver induzido os críticos em tenta-
mente compreendido — e não podemos julgá-lo sem esse estorço ção. As notas a The waste landi Eu pretendia de início forne-
— cumpre perseverar nessa espécie de investigação; e os Srs. cer apenas todas as referências de minhas citações, com o obje-
Campbell e Robinson 11 (para mencionar os autores desse gênero tivo dc frustrar as intenções dos críticos de meus primeiros poe-
de trabalho) realizaram um esplêndido estudo. Minha queixa, mas, os quais me acusaram de plágio. Mais tarde, na época
se há alguma, é contra James Joyce, o autor dessa monstruosa cm que se acabou de imprimir The waste land sob a forma dc
obra-prima, por haver escrito um livro tal cujas vastas extensões um livrinho — pois o poema, q u a n d o de sua primeira publica-
constituem, caso não haja uma requintada explicação, apenas ção em The Dial12 e em The Criterion, não incluía notas dc
um belo absurdo (belíssimo, aliás, q u a n d o declamado por u m a espécie alguma —, descobriu-se que o texto era infelizmente
voz irlandesa tão encantadora quanto a do autor — poderia ele curto, de m o d o que me entreguei à tarefa de ampliar as notas
tê-la gravado mais vezes!). É possível que Joyce não imaginasse para conseguir algumas páginas a mais de matéria impressa,
quão obscuro é seu livro. Qualquer que seja o julgamento (c com o propósito de que elas se tornassem uma exibição de falsa
não me arrisco a fazê-lo) quanto ao lugar que o Fmnegans erudição que se pode ainda ver hoje em dia. Tenho às vezes
wake possa ter na literatura, não creio que a maior parte da pensado em me livrar dessas notas, mas agora elas jamais pode-
poesia (pois o livro de Joyce constitui u m a espécie de vasto rão ser removidas da obra, pois alcançaram uma popularidade
poema em prosa) seja escrita desse m o d o ou que exija essa espé- quase tão grande q u a n t o a do próprio poema — todos os que
cie dc dissecção para q u e possa ser fruída ou entendida. Mas compravam meu livro de poemas, e lá não encontravam as
suspeito que os enigmas que encontramos no Fmnegans wake notas a The waste land, pediam o dinheiro dc volta. Mas não
tenham dado crédito ao erro, predominante hoje em dia, de creio que elas tragam n e n h u m prejuízo a outros poetas: certa-
uma interpretação equívoca quando à sua compreensão. Após mente não conheço n e n h u m bom poeta contemporâneo que
haja abusado dessa mesma prática. (Quanto à Srta. Marianne
10. Cabe aqui um breve esclarecimento ao leitor: as últimas linhas da carta do
Moore, 1 ' suas notas aos poemas que escreve são sempre perti-
senhor de Indiana transcritas por Eliot aludem a dois versos pertencentes à primeira
seçào. "O enterro dos mortos ', 71-72, de The waste land (V)2iy " T h a t corpse
you planted last year in your garden, / Has it begun to sprout? Will it bloom this 12. Importante publicação literária londrina em que Efíot publicou alguns de seus
year?" ( " O cadaver que plantaste ano passado cm teu jardim / Já começou a bro- poemas, como The waste land e The hollow men. (N.T.)
tar? Dará flores este a n o ? " ) ; e ao Sr. Kurtz, personagem de Heart of darkness, 13 Moore. Marianne Poetisa norte-americana (Saint-Louis, Missouri, 1887 —
romance q u e Conrad publicou em 1902 e do qual Eliot extraiu a frase "Mistah Nova York, 1972). Sua poesia apela mais à inteligência do que a emoção, sem obe-
Kurtz — he d e a d " . ( " O Sr. Kurtz ele está m o n o . " ) , que serve de epígrafe ao diência aos esquemas tradicionais e com absoluta liberdade metrica e decomposição
seu poema The hollow men, publicado em 1925. ( N . T . ) sintática. Obras principais: Poems (1941), Observations (1941), What are years?
11. Joseph Campbell e Η. M. Robinson. A skeleton key, 1947. ( N . T . ) ( 194 1 ). To be a dragun (1959) e Tell me. tell me (1966). ( N T )
AS FRONTEIRAS DA CRÍTICA 151
T. S. ELIOT
150

esforcemos por captar aquilo que a poesia pretende ser; poder-


ncntes, curiosas, conclusivas, deliciosas e absolutamente não en-
se-ia dizer embora há muito t e m p o eu utilize esses termos
corajam n e n h u m pesquisador a descer às origens.) Não, não é
com absoluta segurança que nos esforcemos por captar sua
por causa do mau exemplo que dei a outros poetas que me peni-
enteléquia.
tencio: é porque minhas notas estimularam u m a espécie de
A forma de crítica em que talvez mais se manifeste o perigo
equívoco de interesse junto aos pesquisadores de fontes. Sena
de confiança excessiva sobre a explicação causal é a da biografia
justo, sem dúvida, que eu pagasse tributo à obra da Srta. Jessie
crítica, especialmente q u a n d o o biógrafo complementa seu
Weston, 1 4 mas lamento ter feito tantos inquisidores correrem
conhecimento de fatos externos com suposições psicológicas
à toa em busca das cartas do Taro e do Santo Graal.
sobre a experiência interior. Não sugiro que a personalidade e
E n q u a n t o refletia sobre essa questão de tentar c o m p r e e n -
a vida privada de um poeta morto constituam um solo sagrado
der um poema por meio da explicação de suas origens, depa-
que o psicólogo não deva palmilhar. O cientista deve estar livre
rei-me com uma citação de C. G. J u n g , q u e me pareceu ser
para estudar esse material do m o d o como sua curiosidade lhe
de alguma relevância. A passagem foi transcrita por trei Vic- determine investigar, contanto que a vítima esteja morta c não
tor White, O. P., em seu livro God and the unconscious. se possam invocar as leis sobre difamação para detê-lo. N e m
Frei W h i t e menciona durante sua exposição u m a radical dife- há qualquer razão para que não se devam escrcver biografias
rença entre os métodos de Freud e de l u n g . dc poetas. Além disso, o biógrafo dc um autor deve possuir
"Aceita-se geralmente como verdade , diz J u n g , ' q u e os certa capacidadc crítica: deve ser alguém de gosto c dc julga-
acontecimentos físicos podem ser encarados de duas maneiras: mento, apreciador da obra do homem de cuja biografia se encar-
do ponto de vista mecanicista e do ponto dc vista energético. regou. E, por outro lado, deve-se esperar de qualquer crítico
O ponto de vista mecanicista é puramente causal: desse ponto seriamente interessado na obra de um homem q u e conheça
de vista, um acontecimento é concebido como o resultado de algo sobre a vida desse h o m e m . Mas a biografia crítica de um
uma causa (...) Por outro lado, o ponto de vista energético é, escritor constitui em si uma tarefa delicada; e o crítico ou o bió-
em essência. Finalista; o acontecimento é acompanhado desde grafo que não seja um psicólogo treinado c experiente, e que
o efeito até a causa, na suposição de q u e a energia constitui a conduza o seu assunto com a perícia analítica que adquiriu ape-
base essencial de mudanças no fenómeno (...). ' nas graças à leitura de livros escritos por psicólogos, corre o risco
A citação pertence ao primeiro ensaio do volume Contribu- dc tornar as questões mais confusas do que já são.
tions to analytical psychology. Acrescento uma outra frase, não O problema de saber até que ponto a informação sobre o
citada por frei White, que inicia o parágrafo seguinte: " A m - poeta nos ajuda a compreender sua poesia não é tão simples
bos os pontos de vista são indispensáveis à compreensão do quanto se imagina. Cada leitor deve responder a ele por si
fenômeno físico". mesmo, e deve faze-lo não de modo genérico, mas cm circuns-
Tomo isso simplesmente como u m a analogia sugestiva. tâncias particulares, pois isso pode ser mais importante no caso
Alguém pode explicar um poema ao investigar aquilo de que- de determinado poeta e menos importante no caso de outro.
de é feito e as causas que o produziram; e a explicação pode E que o prazer que se extrai da poesia pode constituir uma expe-
ser uma preparação necessária à sua compreensão. Mas para riência complexa em que diversas formas de fruição se acham
compreender um poema é t a m b é m necessário — e cu diria misturadas, e elas podem estar misturadas cm diferentes pro-
que, na maioria dos casos, é ainda mais necessário — q u e nos porções para diferentes leitores. Darei um exemplo. Aceita-se
geralmente que a maior parte da melhor poesia dc Wordsworth
14. Nas notas a The waste land, Eliot t ita algumas passagens do livro dc Jessie haja sido escrita num curto espaço de tempo — curto em si, e
Weston. From ntual to romance (1920), particularmente no q u e se refere ao m i t o curto se o compararmos à duração da vida dc Wordsworth.
do rei-pescador e à "capcla perigosa". ( N . T . )
152 T. S. ELIOT AS I RONTHIRAS DA CRITICA 149

Diversos especialistas em Wordsworth propuseram interpreta- não é diretamente relevante para a nossa compreensão dc sua
ções destinadas a explicar a mediocridade de suas obras ulterio- poesia. Ou melhor, não importa para a nossa compreensão
res. Há alguns anos, Sir Herbert Read 15 escreveu um livro sobre da poesia enquanto poesia. Estou mesmo disposto a sugerir
Wordsworth — um livro interessante, embora eu considere que que há, em toda grande poesia, algo que deve permanecer
sua melhor análise sobre Wordsworth esteja cm um ensaio poste- inexplicável, por mais completo que possa ser nosso conheci-
rior, incluído num livro intitulado A coat of many colours —, mento do poeta, c que é o que mais importa. Q u a n d o o poema
em que explicou a ascensão e a queda do gênio de Wordsworth é escrito, algo de novo acontece, algo que não pode ser expli-
devido às conseqüências do caso amoroso q u e o poeta manteve cado por nada do que se passou antes. Isso, creio eu, é o que
com Annette Valon, sobre o qual se haviam descoberto àquela e n t e n d e m o s por " c r i a ç ã o " .
época alguns documentos. Mais recentemente, o Sr. F. W. Batc- A explicação da poesia mediante o exame dc suas fontes
son 16 escreveu um livro sobre Wordsworth t a m b é m de conside- não constitui cm absoluto o método de toda a crítica contempo-
rável interesse (o capítulo sobre As duas vozes' nos a j u d a a rânea, mas é um método que atende às exigências de um bom
compreender o estilo de Wordsworth). Nesse livro, ele sustenta número de leitores desejosos de que a poesia lhes seja explicada
que Annette não e' a personagem tão importante q u a n t o Sir em termos de algo mais: a maioria das cartas que recebo de
Herbert Read imaginou, e que o verdadeiro segredo de Word- pessoas desconhecidas para mim, relativas a meus próprios poe-
sworth foi que cie se enamorou de sua irmã Dorothy; isso mas, consiste dc pedidos para uma espécie de explicação que
explica, particularmente, os poemas dedicados a Lucy, e tam- possivelmente não posso oferecer. Há outras tendências, como
bém por que, após o casamento do poeta, sua inspiração se as que foram relatadas pelas investigações do professor Richards
esgotou. Bem, ele pode estar certo: sua argumentação é de fato sobre o problema dc como se pode ensinar a gostar de poesia,
plausível. Mas a verdadeira questão, aquela à qual cada leitor ou pelas sutilezas verbais de seu ilustre discípulo, o professor
deve responder por si mesmo, é: tem isso algum interesse? isso E m p s o n . r Observei recentemente um desenvolvimento que
me ajuda a compreender os poemas dedicados a Lucy melhor suspeito ter origem nos métodos pedagógicos do professor
do que antes? Q u a n t o a mim, só posso dizer q u e o conheci- Richards e que constitui, à sua maneira, uma saudável reação
mento das fontes das quais emana um poema não constitui à transferência, em favor do poeta, do interesse atiibuído à poe-
necessariamente uma ajuda que nos leve a compreendê-lo: sia. Podemos encontrá-la num livro publicado não faz muito
muito mais informação sobre as origens do poema pode até tempo sob o título dc Interpretations, uma série de ensaios assi-
romper meu contato com ele. Não sinto necessidade dc n e n h u m a nados por doze dentre os mais jovens críticos ingleses na qual
luz sobre os poemas dedicados a Lucy além da fulguração que cada um analisa um poema de sua própria escolha. O mé odo
se irradia dos próprios poemas. consiste em tomar um poema bastante conhecido — cada poema
Não estou sustentando que não haja nenhum contexto analisado nesse livro é bom cm seu gênero - , sem referência
no qual essa informação ou essa conjetura, como as de Sir Her- ao autor ou a outra obra de sua autoria, em analisá-lo estrofe
bert Read ou do Sr. Bateson, possa ser relevante. É relevante por estrofe e verso por verso, e dele extrair, espremer, destrin-
na medida em que desejamos compreender Wordsworth, mas çar, sugar cada gota dc significado de que se é capaz. Podería-

LJ c E d m u n d . Ensaísta c poeta inglês (K,rhvrnoors.de. Yorkshire, 17. Empson, William. Crítico literário e poeta inglês (Yorkshire, 1906 Londres,
1893 - Stonegravc, 1968), autor de obra numerosa e variada que se impõe por seu 1981). Influenciado por Richards, abandonou a matemática para dedicar-se às letras.
espirito humanístico não apenas no campo da estética, mas t a m b é m nos da pedago- Seu livro Seven types of ambiguity (1930) constitui a base para o movimento q u e .
gia, da sociologia e da filosofia política. A obra a que Eliot se refere intitula-se Word nos Estados Unidos, passou a ser conhecido como New Criticism. Deixou ainda,
sworth ( 1930). A que o autor cita logo adiante foi publicada em 1945. ( N . T . ) entre outros, English pastoral poetry ( 1935 ), The structure of complex words (1951 ),
16. Bateson, Frederick Wilse. Wordsworth, a re interpretation, Londres, 1954. ( N . T . ) The gathering storm ( 1940). Collected poems (1949) e Milton 's God (1961). ( N . T . )
AS FRONTEIRAS DA CRÍTICA 155
154 T. S. ELIOT

a leitores de diferentes sensibilidades. O segundo perigo


mos chamá-lo dc escola de espremer limão da crítica. Como
perigo em que não creio que n e n h u m dos críticos incluídos no
os poemas pertencem ao período compreendido entre o século
volume acima citado haja incorrido, mas ao qual o leitor está
XVI e a época contemporânea, como diferem consideravelmente
exposto —, é o dc admitir que a interpretação de um poema,
uns dos outros — o livro começa com The Phoenix and the
supondo-se que cia seja válida, é necessariamente u m a descri-
t u r t l e " 1 8 e termina com " P r u f r o c k " 19 e " A m o n g school chil-
ção daquilo que o autor, consciente ou inconscientemente, está
d r e n " , de Yeats —, e como cada crítico tem seus próprios pro-
tentando fazer. Pois a tendência a crer que compreendemos
cedimentos, o resultado é interessante c algo confuso, convindo
um poema q u a n d o identificamos suas fontes e delineamos o
admitir que estudar doze poetas, os quais todos são laboriosa-
processo a que o poeta submeteu sua matéria é tão geral que
mente analisados, é uma forma exaustiva de passar o tempo.
podemos facilmente acreditar no oposto, ou seja, que qualquer
Imagino que alguns dos poetas (estão todos mortos, exceto eu)
explicação do poema seja também capaz dc proporcionar u m a
ficariam surpresos ao saber o que significam seus poemas. Eu
descrição de como ele foi escrito. A análise do " P r u f r o c k " a
mesmo experimentei uma ou duas surpresas sem maior impor-
que me referi interessou a mim porque me ajudou a ver o poema
tância ao saber que a neblina, mencionada no início do " P r u f - com os olhos de um leitor inteligente, sensível e aplicado. Isso
rock", estava se insinuando, sem que se soubesse como, no não é dizer, em absoluto, que ele tenha visto o poema através
salão. Mas a análise do "Prufrock' não se destinava a desco- de meus olhos, ou que sua descrição tenha algo a ver com as
brir suas fontes, quer na literatura, quer nos recessos mais recôn- experiências que me levaram a escrcvc-lo, ou com alguma coisa
ditos dc minha vida privada; era uma tentativa para descobrir que eu sentisse e n q u a n t o o escrevia. E minha terceira observa-
o que de fato o poema queria dizer — se era ou não o que pre- ção é a dc que gostaria, como um teste, de ver o método apli-
tendi que ele significasse. E sou grato por isso. Havia diversos cado a algum novo poema, um poema muito bom e q u e não
ensaios que me surpreenderam por sua categoria. Mas como fosse de meu prévio conhecimento, pois me agradaria descobrir
todo método tem suas próprias limitações e perigos, seria razoá- se, após percorrer a análise, seria cu capaz de gostar do poema.
vel mencionar apenas o que me parecem ser as limitações e os E que quase todos os poemas do volume eram poemas que eu
perigos desse método, perigos contra os quais, se o aplicarmos conhecia e dos quais já gostava há muitos anos; c após 1er as
àquilo que desconfio deva ser sua principal utilização, isto é, análises percebi que seria necessario algum t e m p o para que eu
um exercício para alunos, caberia ao professor prevenir seus alunos. resgatasse o que anteriormente havia sentido com a leitura des-
O primeiro perigo é o de admitir que não há senão u m a ses poemas. Era como se alguém houvesse desmontado as peças
única interpretação do poema como um todo que seja correta. de uma m á q u i n a e me encarregado da tarefa dc reajustá-las.
Haverá detalhes de explicação, especialmente no caso dc poe- Na verdade, suspeito de que boa parte do mérito de u m a in-
mas escritos cm outra época que não seja a nossa, de fatos, dc terpretação reside no fato de que ela deve ser m i n h a própria
alusões históricas, do significado de determinada palavra n u m a interpretação. Há talvez muitas coisas a saber sobre esse poema,
certa época, que podem estar estabelecidos, e ao professor cabe ou seja, muitos fatos sobre os quais os eruditos podem me ins-
impedir que seus alunos incorram em erro. Mas q u a n t o ao sig- truir e que me ajudarão a evitar ///^/-entendidos já comprova-
nificado do poema como um todo, n e n h u m a explicação pode dos; mas creio que uma interpretação válida deva ser, ao mesmo
esgotá-lo, pois o significado é aquilo que o poema quer dizer t e m p o , uma interpretação de meus próprios sentimentos
q u a n d o o li.
18. Poema atribuído a Shakespeare, que o teria estrito provavelmente entre 1599 Não fazia parte de meu propósito apresentar um panorama
e 1600. ( N . T . )
abrangente dc todos os tipos dc crítica literária praticados em
19. Poema de T. S. Eliot cujo título completo e' " T h e love song of J. Alfred Pru-
nossa época. Em primeiro lugar, queria alertar para a transfor-
trock", incluído em Prufrock and other observations (1917). ( N . T . )
157 149
T. S. ELIOT AS I RONTHIRAS DA CRITICA

mação da crítica literária da qual se pode dizer q u e começou fazendo o exemplo retroceder ainda mais, poderia estar muito
com Coleridge, mas que alcançou maior aceleração durante os bem informado sobre a época de Chaucer, sobre seus hábitos
últimos vinte e cinco anos. Creio que essa aceleração tenha se sociais, suas crenças, sua cultura e sua ignorância — e, todavia,
devido à importância que as ciências sociais passaram a ter para não compreender sua poesia. Compreender um poema vem a
a crítica, e ao ensino da literatura (inclusive a literatura contem- ser a mesma coisa que apreciá-lo por boas razões. Poder-se-ia
porânea) nos colégios e universidades. Não lamento a transfor- dizer que isso significa extrair do poema todo o prazer que ele
mação, pois me parece que ela era inevitável. N u m a época de é capaz de proporcionar: gostar de um poema equivocando-sc
incerteza, uma época em que os homens estão desnorteados em relação àquilo que ele é equivale a gostar do que constitui
diante das novas ciências, uma época cm que tão pouco pode simplesmente uma projeção de nossa própria mente. A lingua-
ser aceito como verdadeiro no que se refere às crenças comuns, gem é um instrumento de manuseio tão difícil que " g o s t a r "
às hipóteses e ao conhecimento de todos os leitores, n e n h u m a e "extrair prazer d c " não parecem significar em absoluto a
área de exploração pode se tornar solo interdito. Mas, em meio mesma coisa, e dizer que "se recebc prazer d a " poesia não soa
a toda essa variedade, cabe-nos perguntar o q u e há, se é q u e exatamente como dizer que "se gosta de poesia". E, a rigor,
existe algo, que deveria ser comum a toda a crítica literária. o próprio significado de " p r a z e r " varia de acordo com o objeto
Trinta anos atrás afirmei que a função essencial da crítica literá- que o inspirou; diferentes poemas, inclusive, nos proporcionam
ria era "a elucidação das obras de arte e a correção do g o s t o " . 2 0 diferentes satisfações. E certo que não gostamos inteiramente
A frase pode soar algo pomposa aos nossos ouvidos em 1956. de um poema a menos que o compreendamos; e, por outro
Talvez eu pudesse expressá-lo de modo mais simples e mais acei- lado, é t a m b é m verdadeiro que não compreendemos plena-
tável à época atual se dissesse que seu objetivo é o de " p r o m o - mente um poema a não ser que gostemos dele. E isso significa
ver a compreensão da literatura e o prazer q u e dela se o b t é m " . apreciá-lo em sua justa medida e da maneira correta relativa-
Eu acrescentaria que está implícita aqui t a m b é m a tarefa nega- mente a outros poemas (é na relação do prazer que um poema
tiva de sublinhar o que não deveria constituir fonte de prazer. nos proporciona com aquele que nos proporcionam outros poe-
Pois o crítico pode às vezes ser obrigado a condenar a mediocri- mas que se define o gosto). Seria apenas necessário acrescentar
dade e a denunciar a fraude, embora esse dever seja acessório que isso implica que não se devena gostar de maus poemas, a
ao dever de louvar discriminadamente o q u e é digno de louvor. menos que sua mediocridade fosse capaz de excitar nosso senso
E devo insistir no fato de que não considero o prazer e a com- de humor.
preensão como atividades distintas — uma emocional e outra Eu disse q u e a explicação pode ser uma operação prelimi-
intelectual. Por compreensão não pretendo dizer explicação, nar necessária à compreensão. Todavia, parece-me que compre-
embora a explicação do que cabe ser explicado possa constituir endo certa poesia sem necessidade de explicações, como, por
amiúde uma operação preliminar necessária à compreensão. exemplo, estes versos de Shakespeare:
Para dar um exemplo muito simples: ensinar palavras pouco
familiares e formas verbais incomuns é u m a operação prelimi- Full fathom five thy father lies,11
nar necessária à compreensão de Chaucer; é uma explicação,
ou estes de Shelley:
mas alguém poderia tornar-se mestre do vocabulário, da orto-
grafia, da gramática e da sintaxe de Chaucer — ou, na verdade, Art thou pale for weariness
Of climbing heaven and gazing on the earth."

20 Essa passagem pertence ao ensaio "A f u n ç ã o da crítica", escrito em 1923 e 21. "A cinco braças dc p r o f u n d i d a d e jaz teu pai.' Canção dc Anel, A tempesta-
incluído nos Selected essays 1917-1912 cit A tradução brasileira é de Ivan J u n - de, Ato I, Cena II. ( N . T . )
queira. Ensaios, de T. S. Eliot, Art Editora, São Paulo, 1989 (Ν Τ ) 22 "Estás pálida dc cansaço / Por te ergueres ao céu e contemplares a Terra." (N.T.)
158 T. S. ELIOT AS I RONTHIRAS DA CRITICA 149

pois aqui, e n u m a boa parie da poesia, não vejo nada para ser ulterior, embora também possa, ao dirigir nossa atenção para
explicado, isto e', nada que me ajude a compreendê-la melhor o poeta, nos afastar da poesia. Não devemos confundir o conhe-
e, conseqüentemente, a gostar mais dela. E às vezes a explica- cimento — informação fatual relativa ao período cm que o
ção, como já insinuei, pode nos afastar por completo do poema poeta produziu, às condições sociais em que viveu, às idéias
enquanto poesia, em vez de nos conduzir à compreensão. Minha correntes em sua época c que estão implícitas nas obras que
razão mais forte, talvez, para acreditar que não me enganei ao escreveu, ao estágio da língua em seu tempo — com a compre-
julgar que comprccndo tais fragmentos líricos de Shakespeare ensão de sua poesia. Esse conhecimento, como já disse, pode
e dc Shelley, é que esse s dois poemas me causam um frêmito ser uma preparação necessária à compreensão da poesia; além
tão intenso q u a n d o os repito hoje q u a n t o o que eles me causa- disso, tem ele um valor intrínseco e n q u a n t o história, mas para
ram há cinqüenta anos. a avaliação da poesia isso só nos pode conduzir até a porta:
Portanto, a diferença entre o crítico literário e o crítico q u e cabe-nos descobrir a maneira de abri-la. E que as razões para
ultrapassou a fronteira da crítica literária não é a de q u e aquele adquirir esse conhecimento, do ponto de vista que sustentamos
primeiro seja " p u r a m e n t e " literário, ou q u e não tenha outros neste estudo, não são primordialmente as de que devêssemos
interesses. Um crítico que não estivesse interessado em nada a ser capazes de pensar e sentir, q u a n d o lemos o poema, como
não ser em 4 'literatura" não teria quase nada a nos dizer, pois um contemporâneo do poeta poderia ter pensado e sentido,
sua literatura seria apenas abstração. Os poetas têm outros inte- embora essa experiência tenha seu próprio valor; tentamos obtê-
resses além da poesia — do contrário, sua poesia seria extrema- lo, antes de mais nada, para nos descartarmos das limitações
mente oca; eles são poetas porque sua principal preocupação de nossa própria vida, e para livrar o poeta, cuja obra estamos
foi a de transformar sua experiência e seu pensamento (e expe- lendo, das limitações dc sua época, a fim de adquirirmos a expe-
rimentar e pensar significa ter interesses além da poesia), a de riência direta, o contato imediato com sua poesia. O que mais
transmutar, digo, sua experiência e seu pensamento em poesia. importa, permitam-nos dizer, ao 1er uma ode de Safo, não é
Em conseqüência, o crítico é um crítico literário se o seu obje- imaginar que eu estivesse cm uma ilha grega há cerca de vinte
tivo primordial, ao escrever crítica, for o de ajudar seus leito- e cinco séculos; o q u e importa é a experiência que é a mesma
res a compreender e a sentir prazer. Mas ele deve ter outras para todos os seres humanos de diferentes séculos e idiomas
preocupações, exatamente como o próprio poeta, pois o crítico capazes de gostar de poesia, a faísca que pôde atravessar esses
literário não é apenas um especialista técnico q u e aprendeu dois mil e quinhentos anos. Assim, o crítico ao qual sou mais
as regras a serem observadas pelos escritores q u e critica; o crí- grato é aquele que conseguiu fazer com que cu visse algo que
tico deve ser um h o m e m na plena acepção da palavra, um jamais vira, ou vira apenas com os olhos enevoados pelo precon-
h o m e m de convicções e de princípios, de conhecimento c expe- ceito, aquele q u e me colocou face a face com essa nova reali-
riência de vida. dade c, desse modo, deixou-me sozinho com ela. A partir desse
Caberia, pois, perguntarmos, a respeito de qualquer texto m o m e n t o , cumpre que cu conile em minha própria sensibili-
que nos seja apresentado como crítica literária, se ele visa à com- dade, em minha inteligência e em minha capacidade para a
preensão e ao prazer. Caso contrário, estaríamos ainda diante sabedoria.
de uma legítima e proveitosa atividade, mas que deveria ser Se, em matéria dc crítica literária, colocarmos toda a ênfase
julgada como contribuição à psicologia, à sociologia, à lógica, na compreensão, correremos o risco de escorregar da compreen-
à pedagogia ou a qualquer ciência — c ser julgada por especia- são para a explicação pura e simples. Correremos até o perigo
listas, não por homens de letras. Não devemos identificar a bio- de pretender a crítica como ciência, o que ela jamais pode ser.
grafia com a crítica: a biografia é geralmente útil por fornecer Se, por outro lado, supervalorizarmos o prazer, tenderemos a
uma explicação que pode abrir caminho a uma compreensão cair no subjetivo e no impressionistico, e nosso prazer não terá
160 Τ S ELIOT

outro proveito senão o do entretenimento e do simples passa-


tempo. Há trinta e três anos pareceu-me que este fosse o segundo
tipo de crítica, o impressionistico, responsável pelo tédio q u e
experimentei q u a n d o escrevi sobre "a função da crítica". Hoje
parece-me que precisamos estar mais alertas contra o q u e é
puramente explicativo. Mas não quero deixar vocês com a
impressão de que pretendo condenar a crítica de nossa época.
Estes últimos trinta anos têm sido, suponho, um brilhante
período da crítica literária tanto na Inglaterra q u a n t o nos Esta-
dos Unidos. Retrospectivamente, ele pode até chegar a parecer
muito brilhante. Quem sabe?
II

DE POETAS
VIRGILIO E O MUNDO CRISTÃO 1

Pode-se facilmente demonstrar que a estima de q u e Virgí-


lio tem sido objeto ao longo de toda a história cristã é devida
em grande parte, na perspectiva histórica sob a qual a conside-
ramos, a acidentes, irrelevâncias, mal-entendidos c superstições.
Sob tal perspectiva, poder-se-ia dizer por que os poemas de
Virgílio foram tão entusiasticamente louvados, mas não se encon-
traria talvez n e n h u m a razão para justificar por que ele merece
um lugar de tamanho destaque, e menos ainda para nos persua-
dir de que sua obra tenha qualquer valor para o m u n d o de
hoje, de amanhã ou de sempre. O que me interessa aqui são
aquelas características de Virgílio que o tornaram singularmente
simpático à mentalidade cristã. Afirmar isso não significa atri-
buir-lhe qualquer merito exagerado como poeta, ou mesmo
como moralista, capaz de situá-lo em nível superior a todos os
demais poetas gregos e romanos.
Há, entretanto, um " a c i d e n t e " , ou um m a l - e n t e n d i d o " ,
que desempenhou tal papel na história que ignorá-lo pareceria
uma fuga. Trata-se, 6 claro, da quarta Écloga, na qual Virgílio,
por ocasião do nascimento — ou do próximo nascimento —

1. Palestra radiofônica p r o n u n c i a d a na BBC de Londres em 1951 e publicada em


The Listener. A tradução citada e a da Biblioteca Locb. A tradução dc D a n t e citada
aqui c mais a d i a n t e c a dos Clássicos T e m p l e . ( Ν . A . )
T. S. ELIOT VIRGÍLIO Ε O M U N D O CRISTÃO 165
176

descendente de Júpiter 1 —, poderia apenas ser o próprio


de um filho de seu amigo Poilio, recém-nomeado cônsul, ex-
Cristo, cuja vinda foi prevista por Virgílio para o ano 40 a.C.
pressa, numa linguagem bombástica, o que nada mais c do
Lactâncio* e Santo Agostinho acreditavam nisso, assim como
que uma simples carta de congratulações endereçada ao ventu- toda a Igreja medieval e Dante, c até mesmo, à sua maneira,
roso pai. Victor Hugo. 6
Eis que e chegada a última epoca da profecia de Cumae; Cabe supor ainda q u e possam ser encontradas outras expli-
a grande linhagem dos séculos recomeça novamente. Agora a cações, e já sabemos mais sobre essas possibilidades do que o
Virgem regressa, e retoma o reino de Saturno (...) sabiam os Padres da Igreja. Sabemos também que Virgílio —
que foi um h o m e m dc grande cultura para a sua época e,
Ele receberá o dom da vida divina, verá os heróis mistura-
como nos revela o Sr. Jackson K n i g h t / bem informado em
dos aos deuses, e ver-se-á a si próprio entre eles. e dominará
matéria de folclore e dc antigüidades —, teve pelo menos conhe-
um mundo pacificado pelas virtudes de seu pai (...)
cimento das religiões e da linguagem figuradaldo Oriente, o
Sucumbirá a serpente, e a perfida planta venenosa morrerá; que seria em si o bastante para explicar qualquer sugestão de
e a fragrância assina brotará sobre toda a terra (...)2 profecia hebraica. Sc considerarmos a predição da Encarnação
apenas uma coincidência, isso irá depender do que entende-
Tais expressões sempre pareceram excessivas, e a criança q u e
mos por coincidência; sc considerarmos Virgílio um poeta cris-
as inspirou jamais obteve n e n h u m a notoriedade no m u n d o .
tão, isso irá depender da interpretação que dermos à palavra
Chegou-se mesmo a sugerir q u e Virgílio estivesse f a z e n d o seu
p r o f e r i a " . De que o próprio Virgílio estivesse conscientemente
amigo de b o b o ao utilizar essa parábola à maneira oriental.
interessado apenas nos assuntos internos ou na política de
Alguns eruditos chegaram a pensar q u e ele estivesse i m i t a n d o ,
Roma estou ccrto: creio que ele teria ficado muito mais surpreso
ou mesmo macaqueando, o estilo dos oráculos da Sibila. com a carreira q u e sua quarta Écloga iria ter. Se o profeta fosse
Outros conjeturaram q u e o poema pudesse estar secretamente por definição um h o m e m que compreendesse o pleno signifi-
dirigido a Otávio, ou ate mesmo q u e estivesse relacionado à cado do q u e estivesse dizendo, isso para mim encerraria o
progenie de Antônio e Cleópatra. Um erudito francês, Carco- assunto. Mas se a palavra "inspiração" tem algum significado,
pino / dá boas razões para que se acredite q u e o p o e m a inclui ela quer dizer simplesmente isto: aquele q u e fala ou escreve
alusões à doutrina pitagòrica. O mistério do poema não parece não compreende inteiramente o que está enunciando, ou pode
ter despertado n e n h u m a atenção particular até q u e os Padres até se enganar q u a n d o a inspiração o abandona. Isso é verdade
da Igreja dele se apoderassem. A Virgem, a Idade de O u r o , o no que concerne à inspiração poética, e há razões mais óbvias
G r a n d e Ano, o paralelo com as profecias de Isaías, a criança
cara deum suholes — querido rebento dos deuses, grande 4. Cara d e u m subolcs. m a g n u m lovis i n c r e m e n t u m ! " Trata-se do verso 49 da
Écloga IV. ( N . T . )
5 Em lat. Ucius Caeltus (ou Caecilius) Etrmianus Lactantius. Escritor cristão (Nu-
2. Essa tradução cm prosa corresponde aos versos de n ú m e r o s 4-6. 15-17 e 24 25
mídia. Africa, c. 250 Trier, c 320). autor de trabalhos apologéticos, entre os
da Écloga IV, cujo texto em latim é o seguinte: " U l t i m a C u m a e i venu jam carmi-
quais De mortibuspersecutorum (Sobre a morte dos perseguidores). ( N . T . )
nis acras; / Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo. ! J a m redit et Virgo,
6. F.in Les voix intérieures (18^7). XVIII. Victor H u g o acrescenta uma vaga força
redeunt Saturnia regna ( . . . ) // Ille d e u m vita accipiet divisque videbit / Permixtos
heroes et ipse videbitur illis / Pacatumquc reget patriis virtutibus o r b e m . / / ( . . ) lírica ã interpretarão da Bucólica IV, q u a n d o escreve: " D a n s Virgile, parfois, dieu
Occidct et serpens, et fallax herba vencni / Occidct Assyrium volgo nascctur amo- tout près d ' ê t r e un ange, / Le vers porte à sa ι ime un lueur étrange. / C'est que.
m u m " . (N.T.) rêvant déjà ce q u ' à présent on sait, / Il chantait presqu'a l'heure où Jesu s vagis-
sait". (N.T.)
3. Carcopino, Jérôme. Historiador francês (Vcrncuil-sur-Avre. 1881). especialista
cm história romana. A obra a que Eliot se refere é Virgile et le mystère de la W William Francis Jackson K n i g h t , ex-professor da Universidade de Exeter, autor
Eclogue. Paris, 1930. ( N . T . ) de várias obras sobre Virgílio, entre as quais Roman Virgil. Londres. 1944. ( N . T . )
VIRGILIO Ε O M U N D O C RISTÃO 167
T S. ELIOT
166
Écloga como símbolo dessa posição peculiar. Sob que aspectos,
para admirarmos Isaías como poeta do que reivindicar para Vir- portanto, os maiores dentre os poetas romanos anteciparam o
gílio a condição de profeta. Um poeta pode acreditar q u e esteja m u n d o cristão de u m a forma que os poetas gregos não o fize-
exprimindo apenas sua experiência pessoal; seus versos p o d e m ram? A melhor resposta a essa pergunta foi dada por Theodor
ser para ele apenas um meio de falar sobre si mesmo sem se llaeckcr n u m livro, publicado alguns anos depois n u m a tradu-
libertar inteiramente. Todavia, para seus leitores, o q u e ele ção inglesa, sob o título de Virgil the father o f the West. Colo-
escreveu pode tornar-se a expressão tanto de seus próprios senti- carei em prática o método de Haecker.
mentos q u a n d o da exultação ou do desespero de uma geração. Farci aqui uma breve e talvez banal digressão. Ainda nos
Ele não precisa saber o q u e sua poesia irá significar para os tempos de escola quis o destino que cu fosse iniciado na Ilíada
outros, e n q u a n t o o profeta não precisa compreender o signifi- c na Eneida no mesmo ano. Até então, eu considerava o grego
cado do que propõe a sua profecia. uma língua muito mais atraente do que o latim. Considero-a
Temos um hábito mental que torna m u i t o mais fácil para ainda uma língua bem superior, uma língua que jamais foi
nós explicar o miraculoso cm termos naturais do q u e explicar superada como veículo para exprimir o mais amplo espectro c
o natural em termos miraculosos: todavia, este é tão necessàrio as mais delicadas nuanças do pensamento e da emoção. Toda-
quanto aquele. Um milagre que todos aceitassem e no qual via, sinto-me mais à vontade com Virgílio do que com Homero.
todos acreditassem sem n e n h u m a dificuldade seria, na verdade, Poderia ter sido diferente se tivéssemos começado com a Odis-
um estranho milagre, pois o q u e fosse miraculoso para todos séia, cm vez da Ilíada, pois q u a n d o chegamos a 1er cm sepa-
também pareceria natural para todos. Julgo que se possa acei- rado certos livros da Odisséia — c nunca li da Odisséia em grego
tar não importa que explicação da quarta Écloga por um eru- senão esses livros isolados —, sentimo-nos muito mais felizes.
dito ou um historiador, que é o mais plausível, pois os erudi- Minha preferência decerto não significava, apraz-me dizê-lo,
tos e os historiadores não podem levar cm conta senão o que que eu julgasse Virgílio o maior dos dois. Eis uma espécie de erro
Virgílio imaginava estar fazendo. Mas, ao m e s m o t e m p o , se do qual nos preserva a juventude, pela simples razão dc que
existe algo que se assemelhe à inspiração — e continuamos a estamos muito naturalmente à vontade para propor uma ques-
empregar a palavra —, então é algo que escapa à pesquisa his- tão artificial artificial porque, sejam lá quais tenham sido
tórica. as maneiras de q u e Virgílio se utilizou para seguir os procedi-
f ui levado a considerar a quarta Écloga porque cia é tão mentos de Homero, não estava ele tentando fazer a mesma
importante q u a n d o se fala da história do lugar de Virgílio na coisa. Poder-se-ia, com bastante razão, tentar medir comparati-
tradição cristã q u e o fato dc omiti-la poderia levar a um mal- vamente a "grandeza da Odisséia c do Ulysses, dc James Joyce,
entendido. E é quase impossível referir-se a ela sem indicar dc simplesmente porque Joyce, para fins absolutamente distintos,
que maneira se aceita ou se recusa a concepção de q u e ela pro- utilizou a estrutura da Odisséia. O que me impedia de gostar
fetiza o advento de Cristo. Eu queria apenas esclarecer q u e a da ilíada naquela época era o comportamento das personagens
aceitação literal dessa Écloga como profecia tem muito a ver sobre as quais Homero escreveu. Os deuses eram tão irresponsá-
com a precoce acolhida da obra de Virgílio entre os cristãos e, veis, tão escravos de suas paixões, tão despidos de espírito
por conseguinte, com a abertura do caminho de sua influência público e da noção dc jogo aberto, q u a n t o os heróis. Isso era
no m u n d o cristão. Não vejo isso como um mero acidente, ou chocante. Além do mais, seu senso de humor atendia apenas
uma simples curiosidade literária. Mas o q u e dc fato me inte-
ressa é o elemento que, em Virgílio, lhe concede um lugar
8. Haeckcr, T h e o d o r . Filósofo católico alemão (Eberback. W ü r t t e m b e r g . 1879
único e significativo no final da era pré-cristã e nas origens do Usterbach. perto de Augsburg, 1945). O título do original alemão a que Eliot se
m u n d o cristão. Ele os divisa a ambos, promovendo u m a ligação refere é Vergi/, Valer dei Abendlander (1932). ( N . T . )
entre o m u n d o antigo e o novo, c podemos tomar a quarta
168 176 T. S. ELIOT
VIRGÍLIO Ε O M U N D O CRISTÃO 169

às exigências das mais grosseiras formas de farsa. Aquiles era


um rufião, e o único herói q u e se poderia recomendar quer o significado de certas palavras-chave. Palavras como labor, pie-
pela conduta, quer pelo julgamento, era Heitor; e me parecia tas e fatum. As GeórgicasU) são, creio eu, indispensáveis à com-
que essa era também a opinião de Shakespeare: preensão da filosofia de Virgílio, mas convém lembrar que, ao
empregarmos essa palavra, não pretendemos dizer em absoluto
a mesma coisa do que q u a n d o falamos da filosofia de um poeta,
If Helen then be wife to Sparta's king,
do que q u a n d o falamos da filosofia de um pensador abstrato.
As it is known she is, these moral laws
Of nature and of nations speak aloud As Geòrgie as, e n q u a n t o tratado técnico sobre agricultura, são
To have her back returned (...f1 difíceis e tediosas. A maioria de nós não tem o necessário domí-
nio do latim para lê-las com prazer, como tampouco o desejo
T u d o isso pode dar a impressão de ter sido apenas o capricho de reviver nossos martírios dos tempos de escola. Somente as
de um garotinho pedante. Modifiquei minhas opiniões anterio- recomendo na tradução do Sr. Day Lewis,11 que as verteu em
res — a explicação que eu daria agora seria a de q u e instintiva- versos modernos. Mas são elas uma obra à qual o autor consa-
mente preferiria o mundo de Virgílio ao mundo de Homero, grou boa parte de seu tempo. E por que as escreveu? Não cabe
porque era um m u n d o mais civilizado em termos de dignidade, supor que ele se haja e m p e n h a d o na tarefa de ensinar seu
de razão e de ordem. Q u a n d o digo "o m u n d o de Virgílio", assunto aos agricultores de sua terra natal, ou que pretendesse
quero dizer o que o próprio Virgílio fez do m u n d o em que apenas produzir um manual proveitoso para os citadinos desejo-
vivia. A Roma do período imperial era bastante rude e bestial sos de adquirir terras e de se estabelecer como agricultores. E
e, sob certos aspectos, muito menos civilizada do q u e Atenas nem é provável q u e estivesse apenas preocupado em arquivar
registros para a curiosidade das gerações vindouras sobre os
em seu apogeu. Os romanos eram menos dotados do q u e os
métodos de agricultura de sua época. E mais provável que ele
atenienses para as artes, a filosofia e a ciência pura; e sua lín-
tivesse em mira lembrar aos proprietários absenteístas, alheios
gua era menos flexível para exprimir tanto a poesia q u a n t o o
às suas responsabilidades e atraídos pelo amor ao prazer ou à
pensamento abstrato. Com sua poesia, Virgílio fez da civiliza-
política da metrópole, seu dever fundamental de cuidar da terra.
ção romana algo melhor do que ela realmente o era. Sua sensi-
Qualquer que fosse seu motivo consciente, parece-me claro que
bilidade está mais próxima da sensibilidade cristã do q u e a de
Virgílio desejava afirmar a dignidade do trabalho agrícola e a
qualquer outro poeta romano ou grego: não do q u e a de um
importância do bom cultivo da terra para o bem-estar tanto
cristão primitivo, talvez, mas daquela de um cristianismo à
material q u a n t o espiritual do Estado.
época em que podemos dizer que a civilização cristã se instau-
rou. Não podemos comparar Homero e Virgílio, mas podemos O fato de q u e cada forma da poética maior tenha algum
precedente no verso grego não deve permitir que se iclegue à
comparar a civilização que Homero aceitou à de Roma, já refi-
sombra a originalidade com que ele recriou cada uma das for-
nada pela sensibilidade de Virgílio.
mas de que se serviu. Não há, penso eu, nenhum precedente
Quais são, portanto, as principais características de Virgílio
para o espiato das Geòrgie as; e a atitude para com a terra, que
que o tornaram simpático à mentalidade cristã? Considero q u e
a maneira mais promissora para fornecer algumas breves indica-
ções é adotar o procedimento de Haecker e tentar desenvolver 10. As Geórgicas foram escritas entre 37 e SO a.C. Trata-se »le um grande hino ù
terra italua. uma obra de propaganda cm favor da reagrarizaçào empreendida pelo
imperador Augusto. ( N . T . )

9- " S c Helena r, pois, a mulher do rei de Esparta. / C o m o é fato notório, essas U. Lewis, Cecil Day Poeta inglês (1904). catedrático de poesia na Universidade
leis morais / da natureza e das nações gritam em voz alta / Q u e devemos devolvê- de Oxford Alem das Georgias, traduziu t a m b é m a Eneida. Entre suas obras, cum-
la ( . . . ) . " Trotto e Cr e s si da, Ato II. Cena II. ( N T ) pre lembrar Transitional poem (1929), Magnetic mountains (1933), Λ time to
dance (1955). Ouvertures to death (19*8) e Word over all ( 19-13). ( N . T . )
VIRGÍLIO E O M U N D O CRISTÃO 171
T. S. ELIOT
170
Chegamos à segunda palavra. É um lugar-comum dizer
ali está expressa, e algo que deveríamos considerar particular- que a palavra piedade constitui apenas uma tradução reduzida,
mente inteligível agora, q u a n d o a concentração urbana, o êxodo modificada e especializada de pietas. Usamo-la cm dois senti-
rural, a pilhagem da terra e o desperdício dos recursos naturais dos: em geral, ela sugere uma assiduidade devota à Igreja, ou
começam a despertar a atenção de todos. Foram os gregos q u e pelo menos u m a assiduidade aparentemente devota. Em outro
nos ensinaram a dignidade do lazer; foi deles que herdamos a sentido, está sempre precedida pelo adjetivo " f i l i a l " , signifi-
percepção de que a vida mais elevada é a vida de contemplação. cando um comportamento correto para com os pais. Q u a n d o
Mas esse respeito ao lazer, entre os gregos, se fazia acompanhar Virgílio fala, como o faz, do pius Aeneas, podemos pensar em
por um desprezo às ocupações manuais. Virgílio percebeu q u e seu cuidado para com o pai, na devoção à memória do pai e
a agricultura é fundamental à civilização, e afirmou a digni- no tocante reencontro do pai com o filho em sua descida às
dade do trabalho manual. Q u a n d o foram criadas as ordens regiões infernais. Mas a palavra pietas usada por Virgílio tem
monásticas cristãs, a vida contemplativa e a vida dos trabalhos conotações bem mais amplas: ela implica uma atitude com rela-
manuais estavam de início associadas. Estas não eram mais ocu- ção ao indivíduo, à família, à região e ao destino imperial de
pações para as diferentes classes de pessoas, u m a nobre, outra Roma. E afinal Enéias é piedoso" também em seu respeito
inferior e adequada apenas aos escravos ou scmi-escravos. Boa para com os deuses e em sua escrupulosa observância dos ritos
parte do m u n d o medieval não era cristã, e as práticas do m u n d o c oferendas. E uma atitude para com todas essas coisas e que,
laico eram muito diferentes daquelas das ordens religiosas no por conseguinte, implica uma unidade e uma ordem entre elas:
que tinham estas de melhor; mas pelo menos o cristianismo é, na verdade, u m a atitude para com a vida.
estabeleceu o princípio de q u e aςão e contemplação, trabalho Enéias não é, assim, somente um homem dotado de uma
e oração, são essenciais à vida do h o m e m completo. E possível série de virtudes, cada u m a das quais constitui uma espécie de
que a intuição dc Virgílio fosse reconhecida pelos monges q u e piedade; de m o d o que chamá-lo de piedoso equivale apenas,
liam suas obras em seus retiros religiosos. em geral, a utilizar um termo coletivo conveniente. A piedade
é una. Aqueles são aspectos da piedade em diferentes contex-
Além disso, precisamos nos lembrar dessa afirmação das
tos, e todos eles guardam relação entre si. Em sua devoção ao
Geórgicas quando lemos a Eneida. Aí, Virgílio está preocupado
pai, ele não está sendo apenas um filho admirável. Há uma afei-
com o Imperium romanu m, com a extensão e a justificação da
ção pessoal, sem a qual a piedade filial seria imperfeita, mas a
norma imperiai. Eie formula um ideal para Roma, e para o
afeição filial não é piedade. Há também devoção ao pai en-
império em geral, que jamais foi realizado na história, mas esse
quanto pai, e n q u a n t o progenitor: trata-se da piedade e n q u a n t o
ideal como Virgílio o entende não carece de nobreza. Sua devo- aceitação de um vínculo que não se escolheu. A qualidade da
ção a Roma estava baseada n u m a devoção à terra, a determi- afeição está alterada, e sua importância sc aprofunda quando
nada região, a determinada cidade e a determinada família se torna amor devido ao objeto. Mas essa piedade filial é tam-
nessa cidade. Para um leitor de história, essa f u n d a m e n t a ç ã o bém o reconhecimento de um vínculo a mais, o que se mantém
do geral no particular pode parecer quimérica, assim como a com os deuses, aos quais essa atitude agrada: falhar com rela-
união da vida contemplativa e da vida ativa pode parecer qui- ção a isso equivaleria a tornar-se culpado de impiedade para
mérica à maioria das pessoas. É q u e tais objetivos são a m i ú d e com os deuses. Os deuses devem assim ser dignos desse respeito;
encarados como alternativas: exaltamos a vida contemplativa e e sem deuses, ou um deus, se podemos considerá-lo dessa
menosprezamos a vida ativa, ou exaltamos esta e olhamos maneira, a piedade filial está ameaçada, pois deixa dc ser então
aquela com divertido desprezo, se não mesmo com desaprova- um dever, seus sentimentos para com o pai serão devidos ape-
ção moral. E, todavia, pode ser que o h o m e m q u e afirma nas a um feliz acidente de congenialidade ou reduzidos a um
aquilo que é aparentemente incompatível esteja certo.
176 T. S. ELIOT VIRGÍLIO Ε O M U N D O CRISTÃO 173

sentimento dc gratidão pelos cuidados e consideração recebi- h o m e m de destino, pois sobre cie repousa o futuro do m u n d o
dos. Enéias é piedoso para com os deuses, e jamais sua piedade ocidental. Mas essa é uma eleição que não pode ser explicada,
aflora mais claramente de que q u a n d o os deuses o afligem. um fardo e uma responsabilidade mais do que uma razão de
Teve ele não poucos aborrecimentos com J u n o , e até mesmo que alguém se glorifique. Toca simplesmente a um h o m e m , e
sua mãe Vénus, instrumento benévolo de seu destino, colocou-o não a outros, ter os dons necessários num m o m e n t o de crise
n u m a situação muito embaraçosa. Há em Enéias uma virtude p r o f u n d a , mas ele não pode se atribuir n e n h u m crédito pelos
— ingrediente essencial em sua piedade — que consiste n u m a dons e pela responsabilidade que lhe couberam. Certos homens
analogia com a humildade cristã e que a prefigura. Sob impor- tiveram uma f u n d a convicção de seu destino, e prosperaram
tantes aspectos, Enéias é a antítese quer de Aquiles, quer de com essa convicção; mas q u a n d o deixam de agir como um ins-
Odisseu. Na medida em que ele é heróico, o é como a Pessoa t r u m e n t o e passam a considerar-se como fonte ativa do que
Deslocada original, como o fugitivo da cidade arruinada e de fazem, seu orgulho é punido com o desastre. Enéias é um ho-
uma sociedade destruída, da qual alguns raros sobreviventes, à m e m guiado pela convicção profunda do destino, mas é um
exceção dos de seu grupo, definham como escravos dos gregos. h o m e m h u m i l d e que sabe que seu destino não constitui algo
Não lhe couberam, como a Ulisses, maravilhosas e excitantes para ser desejado nem evitado. De que potência é ele o servi-
aventuras, entremeadas de ocasionais episódios eróticos, q u e dor? Não a dos deuses, q u e são apenas instrumentos, e às vezes
não deixaram n e n h u m a úlcera na consciência daquele viajante. instrumentos rebeldes. O conceito de destino nos lega um mis-
Ele não devia afinal regressar à saudosa lareira, a u m a esposa tério, mas um mistério não contrário à razão, pois implica que
exemplar que o aguardava, e ali reunir-se a seu filho, a seu cão o m u n d o , e o curso da história humana, tenham um significado.
e a seus serviçais. O fim dc Enéias é apenas um novo começo, e Ε o destino não livra a humanidade de responsabilidade mo-
o objetivo de sua peregrinação é algo q u e só virá a ser alcan- ral. É esse, pelo menos, o sentido que atribuo ao episódio de
çado por futuras gerações. Sua réplica mais próxima é J ó , mas Dido. O caso amoroso de Enéias e Dido foi tramado por Vénus:
sua recompensa não foi a que Jó obteve, e sim estritamente o nenhum dos amantes poderia abster-se. Ora, a própria Vénus não
cumprimento de seu destino. Ele sofre para si mesmo, e só age agiu por capricho ou por maldade. Ela estava decerto orgulhosa
para obedecer. Ele é, na verdade, o protótipo do herói cristão; do destino de seu filho, mas seu comportamento não é o de
é, humildemente, um homem com uma missão, e a missão é u m a mãe insensata: ela é em si um instrumento para a realiza-
tudo. ção do destino de seu filho. Enéias e Dido deviam ser unidos,
A pietas não se explica assim senão em termos de fatum. e deviam ser separados. Enéias não se opôs, obedeceu a seu des-
Eis uma palavra que aparece constantemente na Eneida, uma tino. Mas estava decerto muito infeliz por isso, e julgo que sen-
palavra carregada de significado e talvez com mais significado tiu ter se comportado vergonhosamente. Pois, do contrário,
do q u e aquele que o próprio Virgílio conhecia. Nossa palavra por que teria Virgílio arranjado seu encontro com a sombra dc
mais próxima é destino \ e esta é uma palavra que signifi- Dido no Hades? Ao ver Dido, ele tenta desculpar-se de sua trai-
ca mais do que quaisquer definições que lhe possamos atribuir. ção. Se d me iussa deum — mas eu estava sob as ordens dos
Trata-se de uma palavra que não pode ter n e n h u m significado deuses; era u m a decisão muito desagradável que eles me impu-
num universo mecânico: se o que se eleva deve decair, o n d e seram, e lamento que você a tenha compreendido tão mal. Ela
fica o destino nisso tudo? O destino não é um fatalismo! como evita seu olhar e se volta, o rosto tão imóvel como se houvesse
tampouco um capricho: é algo que essencialmente tem um sig- sido talhado n u m a rocha ou num mármore de Paros. , : Não
nificado. Cada h o m e m tem seu destino, embora alguns sejam
indubitavelmente " h o m e n s de destino" n u m sentido em que
12. Em gr. P J ros, ilha grega do grupo das Cidades, outrora celebre pelos mármo-
a maioria dos homens não o é; e Enéias é eminentemente um res brancos e brilhantes que produzia. ( N . T . )
174 T. S. ELIOT
VIRGÍLIO E O M U N D O CRISTÃO 175
1
tenho dúvida de que Virgílio, ao escrever estes versos, * assu-
mira o papel de Enéias e se sentira decididamente um verme. ideal mesmo para um sacrílego Império Romano, bem como
Não, um destino como o de Enéias não torna a vida de n e n h u m para qualquer império que fosse simplesmente temporal. Somos
homem mais fácil: é uma pesadíssima cruz a ser carregada. E todos ainda, na medida em que herdamos a civilização euro-
não imagino que n e n h u m herói da Antigüidade se haja encon- péia, cidadãos do Império Romano, e o tempo ainda não des-
trado numa situação tão inexorável e deplorável. Creio q u e o mentiu Virgílio q u a n d o escreveu nec tempora pono: impenum
poeta que melhor teria podido rivalizar com Virgílio ao tratar sine fine dedi. Mas, naturalmente, o Império Romano que Vir-
uma situação como essa seria Racine: certamente o poeta cristão gílio imaginou e através do qual Enéias cumpriu seu destino
que pôs nos lábios da furiosa Roxane o explosivo verso Rentre não era exatamente o mesmo que o Império Romano dos legio-
dans le Néant d ' o ù je t'ai fait sortir 14 teria podido, se fosse nários, dos pró-cônsules e dos governadores, dos negociantes e
o caso, encontrar as palavras que caberiam a Dido nessa ocasião. dos especuladores, dos demagogos e dos generais. Ele foi algo
O que significa, pois, esse destino, que n e n h u m herói ho- maior, mas algo que existe porque Virgílio o imaginou. E per-
mérico compartilha com o de Enéias ? Para o espírito consciente manece como um ideal, mas um ideal que Virgílio transmitiu
de Virgílio, significa o impenum romanum. Isso em si, como ao cristianismo para q u e fosse desenvolvido e estimado.
Em suma, parece-me que o lugar que Dante destinou a
Virgílio o viu, era uma digna justificativa da história. Creio q u e
Virgílio na vida futura, bem como o papel de guia e professor
ele teve algumas ilusões e que via claramente ambos os lados
que lhe atribuiu até a fronteira que Virgílio não foi autorizado
da questão: tanto o do que perde quanto o do que ganha. Toda-
a cruzar, constitui uma exata confirmação das relações entre
via, mesmo aqueles que sabem tão pouco latim quanto eu devem
Virgílio e o m u n d o cristão. Comparado ao m u n d o de Homero,
recordar estes versos e arrepiar-se à sua lembrança:
chegamos à conclusão de que o de Virgílio nos parece próximo
do m u n d o cristão na escolha, na ordem e no relacionamento
His ego nec metas rerum, nec tempora pono:
entre seus valores. Eu disse que isso não implica n e n h u m a com-
Imp en um sine tine dedi (...J1
Tu regere impeno populos, Romane. memento paração entre Homero poeta e Virgílio poeta. E nem imagino
(hae tibi erunt artes) pacique imponere morem, que essa seja exatamente uma comparação entre os mundos
parcere subiectis et debellare superbos(...) 16 nos quais eles viviam, considerados à parte da interpretação des-
ses m u n d o s que os poetas nos deram. E possível que conheça-
Eis aí todo o fim da história ao qual se podia pedir a Virgílio mos mais o m u n d o de Virgílio e que o compreendamos melhor;
que chegasse, e era um fim digno. E de fato julgam vocês q u e e, por conseguinte, que vejamos mais claramente quanto, na
idéia romana segundo Virgílio, é devido ao poder criador c ao
Virgílio se enganou? Vocês devem se lembrar de q u e o Império
espírito filosófico do próprio Virgílio. Pois, no sentido em que
Romano foi transformado no Sacro Império Romano. O q u e
um poeta é um filósofo (distinto do sentido em que um grande
Virgílio propôs aos seus contemporâneos foi o mais elevado
poeta pode dar corpo a uma grande filosofia numa grande poe-
13 Os versos são os seguintes: "Illa solo fixos oculos anversa tenebat / nec magis
sia), Virgílio é o maior filósofo da Roma antiga. Isso não signi-
incepto vohuni sermone moveiur / q u a m si dura silex aut stet Marpesia c a u r e s " fica, portanto, simplesmente que a civilização na qual Virgílio
Eneida, VI, 469-471. ( N . T . )
viveu esteja mais próxima da civilização cristã do que a de
14. Regressa ao Nada de o n d e te fiz s a i r . " Ba/azet, Ato II, Cena I. (N T ) Homero; podemos dizer que Virgílio, entre os poetas ou prosa-
15. " N ã o fixo n e n h u m limite ao seu poder nem à sua durarão: / dei-lhes um impe-
rio sem fim ( . . . ) . " Eneida. I, 278-279. ( N . T . ) dores clássicos latinos, tangencia o cristianismo de uma maneira
única. Há uma frase que tentei evitar, mas que agora me sinto
16. "Lembra-te, romano, de impor aos povos teu impe'rio / (lá estarão tuas artes),
de impor as leis da paz, / de poupar os vencidos e de subjugar os orgulhosos ( ) " na obrigação de utilizar: anima naturaliter Christiana.r Aplicá-la
Eneida, VI. 851-853. ( N . T . )
17. "Alma por natureza cristã." ( N . T . )
176 T. S. ELIOT VIRGÍLIO Ε O M U N D O CRISTÃO 177

a Virgílio é uma questão de escolha pessoal, mas estou propen- a história tinha urn significado. Mas foi-lhe negada a visão
so a pensar que ele justamente não alcança o objetivo, eis por daquele que podia dizer:
que eu disse ainda agora acreditar que Dante colocou Virgílio " E m suas profundezas vi reunidas, atadas pelo amor em
no lugar certo. Tentarei justificar-me. um volume, as folhas dispersas de todo o universo".
Penso cm outra palavra-chave, além de labor, pietas t fatum,
que cu desejaria pudesse servir de exemplo, segundo Virgílio, Legato con amor in un volume.10
da mesma forma que as outras. Que palavra-chave se pode
encontrar em A divina cornédia que já não esteja na Eneida?
Uma delas, naturalmente, é lume, e todas as palavras exprimem
a significação espiritual da luz. Mas essa palavra, creio eu, da
maneira como Dante a emprega, tem um significado que per-
tence apenas ao cristianismo explícito, associado a um sentido
que pertence à experiência mística. E V irgílio não é um místico.
O termo cuja ausência se pode justificadamente lamentar em
Virgílio é amor. Ele é, acima de quaisquer outros, a palavra-
chave em Dante. Não quero dizer que Virgílio jamais a utili-
zou. A palavra amor ocorre nas Éclogas (amor vincit omniax
Mas os amores dos pastores só a custo simbolizam mais do q u e
uma convenção poética. O uso da palavra amor nas Éclogas não
está iluminado por significados que ela adquire na Eneida da
maneira como, por exemplo, nos voltamos para Paolo e Fran-
cesca com maior compreensão de sua paixão após termos atra-
vessado os círculos do amor no Paraíso. É claro que o amor de
Enéias e Dido tem maior força trágica. Há ternura e pathos sufi-
cientes na Eneida. Mas o Amor jamais recebe, segundo penso,
a mesma significação como um princípio de ordem na alma
h u m a n a , na sociedade e no universo que recebe a pietas\ e não
é o Amor que determina o fatum, ou move o sol e as estrelas.
Mesmo no que se refere à paixão física. Virgílio é menos intenso
do que alguns outros poetas latinos, situando-se bem abaixo do
nível de Catulo. Se não formos gelados, teremos pelo menos a
impressão de que, em Virgílio, nos movemos n u m a espécie de
crepúsculo emocional. Dentre todos os autores da Antigüidade
clássica, Virgílio foi aquele para quem o m u n d o tinha um sen-
tido, para quem ele tinha ordem e dignidade c para q u e m
como para n e n h u m outro, à exceção dos profetas hebraicos —,
19. Os versos citados por Eliot na tradução inglesa dos Clássicos Tempie e o verso
em italiano pertencem a A divina comedia. Parano, C a n t o XXX, 85-87: " N e l suo
p r o f o n d o vidi che s'interna. / legato con amore in un volume. / ciò che per I uni-
18. "O amor vence t u d o . " (N T.)
verso si s q u a d e r n a ; " . ( N . T . )
SIR J O H N DAVIES 179

a maioria dos leitores conhece de Davies esteja representado


pelas duas estrofes compiladas no Oxford hook of English verse:

I know my soul hath power to know all things,


Yet she is blind and ignorant m all:
I know I'm one of Nature 's little kings,
SIR JOHN DAVIES1 Yet to the least and vilest things am thrall
I know my life 's a pain and but a span;
I know my sense is mock 'd in everything:
And\ to conclude, I know myself a Man
Which is a proud and yet a wretched thing.3

Embora belas e completas tanto quanto podem sê-lo, essas


duas estrofes não representam o poema, e n e n h u m a seleção
estrófica pode representá-lo. Davies é autor de belos versos,
mas é mais do que isso. Não é um desses que se podem incluir
naquele segundo escalão de poetas dos quais, aqui e ali, ecoam
O juiz da Suprema Corte John Davies : morreu em 7 de notas do que é importante. Se há, em Orchestra, indícios da
dezembro de 1626. Deixou uma série de poemas, um tratado influência de Spenser, isso não constitui senão o débito que
filosófico. Reason's academy, alguns textos jurídicos e vários muitos elisabetanos pagam a esse mestre da versificação. Ε o
alentados documentos oficiais sobre a Irlanda. Fez uma bri- esquema, a versificação e o conteúdo de Nosce teipsum são,
lhante carreira como servidor público, mas muito provavelmente nessa época, decididamente originais.
o poema que preservou sua memória. Kosce teipsum, foi o que O poema do Nosce teipsum é uma longa discussão sobre
lhe recomendou ao rei Jaime. Possivelmente, Jaime apreciava a natureza da alma e sua relação com o corpo. As teorias de
mais a erudição do que o mérito poético, mas, de qualquer Davies não são as dos filósofos do final do século XVII, nem
modo, reconheceu o valor de um poeta que estava, sob certos constituem muito bom aristotelismo. Davies está mais preocu-
aspectos, tão deslocado em sua época quanto na nossa. pado em provar que a alma é distinta do corpo do que em
Os poemas curtos de Davies são de modo geral graciosos e explicar como tais entidades distintas podem estar unidas. A
ocasionalmente encantadores, mas estão a tal ponto eclipsados alma é um espírito e, como tal, tem inteligência, vontade, razão
até mesmo pela modesta reputação de Nosce teipsum e de e capacidade de julgamento. Ela não se assemelha à torma do
Orchestra que jamais foram compilados como peças antológicas. corpo, e a palavra " f o r m a " aparece no poema mais no sentido
Por sua enunciação gnomica e seus quartetos indevassáveis, de "representação" {similitude). A alma está no corpo como
Nosce teipsum presta-se à mutilação, mas uma ou duas estrofes a luz no ar, o que está de acordo com a questão escolástica rela-
é rudo o que figura nas antologias. Provavelmente, tudo o q u e tiva ao fato de que a alma esteja mais cm uma parte do corpo

1. Publicado cm The Times literary Supplement cm ΐυ26 (Ν. A )


"Sei q u e m i n h a alma tem o poder dc saber tudo, / E todavia e' dc todo cega
2. Davies, Sir J o h n . Poeta e jurista inglês (Tisbury. W i l t s h i r e 1569 -
e ignorante: ! Sei q u e sou um dos pequenos reis da*Natureza, / E contudo escra-
Newcastle-on-Lyme, 1626). Os poemas Nosce teipsum e Orchestra d a t a m r e s p e t i -
vizo me às coisas mais íntimas e vis. // Sei que minha vitla dói e dura apenas um
vamente, de 1599 e 1596. Dav.es deixou ainda, entre outras obras, vinte e seis
instante; / Sei que em tudo meu juízo é escarnecido; / E. para concluir, reconheço-
acrosticos sobre as palavras TJisabetha Regina, sob o título dc Hymns to Astrea
publicados em 1599. ( N . T . ) me como um h o m e m / Q u e ao mesmo t e m p o c miserável e orgulhoso." (N. I.)
180 T. S. ELIOT SIK J O H N DAVIES 181

do que em outra. N e m mesmo os problemas do sentido de per- (um símile que Alexander toma de empréstimo para o seu
cepção parecem difíceis de resolver: Davies não está perturbado Julius Caesar), ou
pela "recepção de formas imateriais". Sua contribuição à ciên-
cia da acústica consiste na explicação de que os sons devem per- And if thou, like a child'. didst feare before,
correr os "canais e labirintos" do ouvido: Being in the darke, where thou didst nothing see:
Now I have brought thee torch-light, fear no more;
For should the voice directly sinke the brain, Now when thou diesi, thou canst not hud winkt be*
It would astonish and confuse it much.4
Davies não deve ser louvado pela grande felicidade na constru-
Se Davies tomou ou não de empréstimo suas teorias — se é
que cabe chamá-las assim — a Nemésio' ou a qualquer outro ção da frase, mas pode-sc observar que, sempre que outros poe-
autor primitivo cristão, ou se as recebeu diretamente ou de tas dele furtaram algo ou chegaram independentemente à mesma
segunda mão, é evidente que não podemos levá-las m u i t o a imagem, é geralmente Davies quem melhor a expressa. Grosart 9
sério. Mas o final do século XVI não foi um período de refina- compara as duas passagens seguintes, mostrando um símile uti-
mento filosófico na Inglaterra nessa época, a rigor, a filoso- lizado por Davies e por Pope:
fia nada mais era que a vítima de um d e f i n h a m e n t o q u e se
Much like a subtill spider, which doth sit
estendera por um século ou mais. Considerando-se o lugar e a
In middle of her web. which spreadelh wide:
época, esse poema filosófico de um eminente jurista não consti-
If aught do touch the utmost thread of it.
tui de modo algum uma realização desprezível. N u m a época
She feels it instantly on every side.10
em que a filosofia, se não considerarmos a teologia, reduzia-se
habitualmente (e em especial em verso) a u m a compilação dos Pope:
lugares-comuns de Séneca, a de Davies corresponde à de um
espírito independente. The spider's touch, how exquisitely fine.
O mérito e a estranheza do poema, todavia, residem na Feels at each thread, and lives along the line.11
pcrleição dos meios para se alcançar um fim. N u m a linguagem
de clareza e austeridade notáveis, Davies atinge seus objetivos A aranha de Davies está mais viva, embora o autor lhe destine
ao manter o poema consistentemente no nível da poesia; ele mais dois versos. Outro exemplo é o da conhecidíssima imagem
jamais descamba para a hipérbole ou a linguagem bombástica, de lhe ancient manner.
e jamais cscorrcga, como facilmente poderia fazê-lo, para o pro-
saico e o burlesco. Certos versos e quartetos estranhos persistem 7. Alexander. William Dramaturgo inglês (1567-1640). autor dos four monarchi
na memória, como: que tragedies Crœsut, Danus, The Alexandraen e Julius Caesar (1604-1607). nas
quais consegue anglicizar a filosofìa estóica ( N . T . )
But sith our life so fast away doth slide, 8 "E se tu. qual uma criança, temeste antes, / Estando no escuro, onde nada
As doth a hungry eagle through the wind,6 podias ver; / Agora q u e eu te trouxe a luz dc u m a tocha, não temas mais; / Agora,
q u a n d o morreres, não mais poderás pestanejar. ( N . T )
4. Pois sc a voz atingisse diretamente o ce'rcbro, / Haveria de deixá-lo bastante 9. Grosart, Alexander Balloch. Sacerdote e editor escocês (Stirling, 1827 — Dublin.
maravilhado e c o n f u s o . " ( N . T . ) 1899), responsável pela publicação de obras de numerosos puritanos e de vários
outros trabalhos, além de livros raros considerados inacessíveis. Editou as obras de
Nemésio. Filósofo cristão (final do século IV), autoi do tratado Da natureza
humana. que constitui u m a tentativa destinada a compilar um sistema de antropo- Davies em 1869-1876. a c o m p a n h a d a s dc u m a extensa biografìa. ( N . T . )
logia do p o n t o dc vista do p e n s a m e n t o cristão no qual estavam presentes as doutri- 10. "À semelhança de urna aranha sutil, que se instala / No meio dc sua teia.
nas platônicas da preexistência e da metempsicose (N. I ) que toda se esparrama; / Se alguém lhe toca o menor fio, / Ela dc pronto o per-
6. Mas visto que nossa vida velozmente desliza para longe. / C o m o o faz u m a cebe em todos os l a d o s . " ( N . T . )
águia faminta pelos a r e s . " ( N . T . ) 11. "O t o q u e da aranha, q u ã o belo e delicado. / Vibra em cada fio, e vive em
toda a t e i a . " ( N . T . )
182 T S ELIOT
SIR J O H N DAVIES 183

Still as a slave before his lord.


cia da alta qualidade, mas alguns incorreram no erro de supor
The ocean hath no blast;
que o mérito de Davies estivesse na prosa. Hallam, 1 4 após lou-
His great bright eye most silently
Up to the Moon is cast — var o poema, diz:
" S e ele atinge em cheio o coração, é por meio da razão.
onde most é uma nódoa. Davies escreve (em Orchestra)'. Mas visto que o poderoso e conciso argumento e o estilo correto
não conseguem nos proporcionar prazer em prosa, parece estra-
For loe the Sea that fleets about the Land\ nho q u e eles percam o efeito q u a n d o obtêm a ajuda do metro
And like a girdle clips her solide waist. regular para gratificar o ouvido e socorrer a m e m ó r i a " .
Mustcke and measure both doth understand: A crítica de Hallam é confusa. O coração de Hallam deve
For his great chrystall eye is always cast ter se revelado singularmente inacessível, ou sua razão muito
Up to the Moone, and on her fixed fast: facilmente impressionada. O argumento não é poderoso; se
And as she daunceth in her pallid spbeere Davies subisse ao ringue da argumentação filosófica, seu contem-
So daunceth he about his center heere.1 * porâneo, o cardeal Bellarmine, o teria nocauteado no primeiro
assalto. Davies não tinha um espírito filosófico; era primordial-
Mas a mestria do artesanato de Nosce teipsum e sua beleza não mente um poeta, mas com o dom da exposição filosófica. Seu
devem ser apreciadas por meio de citações dispersas. Seu efeito apelo, na verdade, se dirige àquilo que Hallam chama de cora-
é cumulativo. Davies escolhe uma estrofe difícil, dessas em que é ção, embora não devamos de m o d o algum empregar esse único
quase impossível evitar a monotonia. Ele não a enfeita com órgão como o veículo de toda a emoção poética. Entretanto, a
n e n h u m a das flores do conceito de sua própria época ou da excelência da teoria sobre o corpo e a alma que Davies expôs é
seguinte, e não recorre a n e n h u m a das antíteses ou engenhos irrelevante. Se alguém o tivesse provido de uma teoria melhor,
verbais com que os agostinianos sustentam seus períodos grama- o poema poderia ter sido, em certo aspecto, melhor do que é;
ticais. Seu vocabulário é claro; a escolha, precisa. Seu pensa- em outro aspecto, isso absolutamente não interessa. O espan-
mento, para um poeta elisabetano, é surpreendentemente coeso; toso é q u e Davies, em seu país e em sua época, pudesse elabo-
não há nada que seja irrelevante em seu principal a r g u m e n t o , rar, como o fez, u m a teoria tão coerente e respeitável. Ninguém,
n e n h u m a digressão ou vôo. E, embora cada quarteto seja com- nem mesmo Gray, 1 5 superou Davies no uso do quarteto que
pleto em si mesmo, a seqüência não constitui jamais um "co- ele utilizou em Nosce teipsum\ e n e n h u m poema em qualquer
lar de pérolas ' (como foi moda na época seguinte, tal como metro semelhante (compare-se-lhe The witch of Atlas) é metri-
em The weeper, de Crashaw); o pensamento é contínuo. Toda- camente superior a Orchestra. Até mesmo seus acrósticos sobre
via, n e n h u m a estrofe é ritmicamente idêntica à outra. O estilo o nome da rainha Elisabeth são admiráveis em graça e melodia.
E com seu gênio para a versificação, com um gosto pela língua
parece singelo, até mesmo pobre, embora a cadência pessoal
notavelmente puro para sua época, Davies teve esse estranho
de Davies esteja sempre presente. Muitos críticos observaram a
dom, tão raramente conferido, de transformar o pensamento
condensação das idéias, a economia da linguagem e a consistên-
em emoção.

12. " Q u i e t o como um escravo diante dc seu dono, I O oceano jamais ondula, /
Seu grande olhar brilhante, silenciosamente. / Se ergue cm direção à Lua — ." ( N . T . ) 14. Hallam. Henry. Historiador inglês (Windsor. 1777 — Penshurst. Kent, 1859),
especialista na história da França, Itália, Espanha. Alemanha c impérios grego e
13. "Pois, ai, o Mar q u e se move em torno da Terra. / E como um cinto enfeita sarraceno. A passagem transcrita por Eliot pertence, porem, à sua Introduction to
sua sólida cintura. / De música e medida ambos e n t e n d e m . I Pois seu grande the literature of Europe during the 16" and 17th centuries (1837-1839). (N.T.)
olho de cristal sempre se volta / Para,a Lua, e sobre sua fixa amarra; / E e n q u a n t o
15. Gray, Thomas. Poeta inglês (Londres, 1716 — Cambridge, 1771). precursor
ela dança em sua pálida esfera, / Dança ele t a m b é m em redor de seu centro terres-
do romantismo em seu país. Escreveu puuco c tornou-se celebre graças a um Unico
tre." (N.T.)
poema. Elegy written m a country churchyard (1751). ( N . l . )
SIK J O H N DAVIES 185
184 T. S. ELIOT

Em sua tentativa de " s i t u a r " Davies, que parece anòmalo, tar sua estranheza, a explorar-lhe todas as possibilidades capa-
os críticos o compararam, de um lado, aos herdeiros de Séneca, zes de afetar sua sensibilidade. Davies é muito mais medieval;
a C h a p m a n , 1 6 a Daniel 1 7 e a Greville 18 e, de outro, a D o n n e sua capacidade de crer é maior. Ele não tem senão uma única
e os metafísicos. N e n h u m a dessas classificações c absolutamente idéia, q u e persegue com toda a seriedade uma espécie de
exata. A única dívida direta de Davies como poeta parece ser seriedade rara em sua época. O pensamento não é explorado
a que ele tributa a Spenser, o mestre de todos. Seu tipo de por amor à emoção, mas perseguido apenas por amor ao pró-
pensamento, e conseqüentemente o tom de sua expressão, afas- prio pensamento; c o sentimento é uma espécie dc subproduto,
ta-o dos herdeiros de Séneca. Seu pensamento, como dissemos, embora um s u b p r o d u t o cujo valor é muito maior do que o
é inferior como filosofia, mas é coerente e isento de excentrici- do pensamento. O efeito da seqüência poemática não sc des-
dade ou pose. Ele pensa como um escolástico, embora a qua- tina a diversificar ou ornamentar o sentimento, mas estrita-
lidade de seu pensamento possa chocar um escolástico. Chap- mente a intensificá-lo. A variação está na métrica.
man, Daniel e Greville, até onde se pode dizer q u e de algum Há apenas um único paralelo cm relação a Nosce teipsum,
modo pensaram, pensavam como retóricos latinos. C o m o os c, conquanto seja ele temerário, não se mostra incorreto no caso
demais dramaturgos, eles absorveram de Séneca u m a filosofia de Davies. Trata-se de diversas passagens sobre a exposição da
q u e é indispensável à pose teatral. Por isso, sua linguagem, natureza da alma que ocorrem no meio do Purgatório. Compa-
mesmo q u a n d o pura e contida — e a de Daniel é surpreenden- rar Davies a Dante pode parecer fantástico. Mas, afinal de con-
temente pura e contida —, é sempre bombástica e oratória; tas, foram muito poucas as pessoas que leram esses trechos de
seu verso é como que falado em público, e seus sentimentos Dante, e menos ainda as que obtiveram qualquer prazer com
como que sentidos em público. O de Davies tem a linguagem sua leitura; em suma, tais passagens são tão pouco lidas ou apre-
e o tom da meditação solitária; ele fala como alguém q u e ciadas q u a n t o o próprio Nosce teipsum. E claro que elas são
pensa consigo mesmo na solidão, e jamais eleva sua voz. muitíssimo mais belas por duas razões inteiramente distintas:
Dante era um poeta incomensuravelmente maior, e a filosofia
Do mesmo modo, pode-se dizer q u e Davies tem algo em
que expõe é infinitamente mais sutil e substancial:
c o m u m com Donne, e não se trata apenas de sua moderação
no emprego do símile e da metáfora. O conceito verbal, como
Esce di mano a lui, che la vagheggia
foi utilizado por D o n n e , implica uma atitude bem mais dife-
prima che sta, a guisa di fanciulla
rente para com as idéias do que a dc Davies, sendo a deste tal-
che piangendo e ridendo pargoleggia,
vez muito mais conscienciosa. D o n n e era propenso a se diver-
tir praticamente com qualquer idéia, a brincar com ela, a esgo- L 'anima semplicetta, che sa nulla,
salvo che, mossa da lieto fattore,
16. C h a p m a n . George. Poeta e dramaturgo inglês (Hicchin, Harrfordshire, c. 1559 volentier toma a ciò che la trastulla.
— Londres. 1634). Tradutor da ilíada (1598) e da Odisseu ( 1614). deixou as c o m i
dias Ml fools e The widdowes teares (1612) e as tragédias Bus sy d'Amhois (1607) Dt ptcciol bene in pria sente sapore;
e The revenge of Bussy d'Ambois (1613). entre ouïras (Ν Τ ) quivi s 'inganna, e retro ad esso corre,
17. Daniel, Samuel. Poeta e dramaturgo inglês ( T a u n t o n . Somerset, c. 1562 — se guida o fren non torce suo amore.!<>
Beckington. Somerset, 1619). C o m p ô s para a rainha Ana diversas peças, entre as
quais The vision of twelve goddesses (1604) e The queenes Arcadia (1606). Eoi
mais tarde apreciado por Coleridge e Wordsworth. ( N . T . ) 19 Divina cor/tedia. Purgatòrio, 85-93: "A alma, daquela mão que à vida a deita.
/ e com carinho a afaga, c o m o o infante / que em pranto e riso a um t e m p o se
18. Greville, Fulke (Primeiro barão Brooke). Poeta e dramaturgo inglês (Beauchamp
Court, Warwickshire, 1554 — castelo de Warwick, 1628). É o mais barroco de deleita. // emerge, ingênua e simples, ignorante / de tudo em torno, salvo do
todos os dramaturgos da época em suas tragédias de v i n g a d a , sempre marcadas pendor / que a leva a se expandir, irradiante. // Logo de um falso bem prova o
pelo estoicismo e a religiosidade angustiada, como em Alaham e a Tragedy of sabor; / e assim se engana, e o persegue, e corre, / se um freio, presto, não lhe
Mustapha (1609), ambas fiéis ao modelo de Séneca. ( N . T . ) amaina o a r d o r " . Trad, de Cristiano Martins, cit. (Ν. Γ.)
93
T. S. ELIOT

Colocar Davies no mesmo nível de Dante não corresponde em


absoluto a dizer q u e alguém que possa apreciar a beleza de ver-
sos como esses deva ser capaz de extrair um considerável prazer
da leitura de Nosce teipsum.

MILTON I 1

Conquanto.se deva admitir que Milton é de fato um altís-


simo poeta, decidir em que consiste a sua grandeza tem algo
de um quebra-cabeça. Sob o aspecto da análise literária, as
observações contra ele parecem mais numerosas e significativas
do q u e as observações a seu favor. Como homem, ele é antipá-
tico. Seja do ponto de vista do moralista, do teólogo, do psicó-
logo ou do filósofo político, seja se o julgarmos pelos padrões
comuns da qualidade que torna os seres humanos dignos de
estima, Milton é insatisfatório. As dívidas que devo reconhecer
com relação a ele são mais sérias do que tais objeções. Sua gran-
deza como poeta foi suficientemente celebrada, embora eu jul-
gue que em grande parte por razões equívocas, e sem as reser-
vas adequadas. Seus delitos como poeta foram denunciados —
como, entre outros, pelo Sr. Ezra Pound —, mas normalmente
de passagem. O que me parece necessário é afirmar ao mesmo
tempo sua grandeza — no que podia fazer bem, ele o fez
melhor do que qualquer outro jamais o faria — e as sérias acu-
sações que devem ser movidas contra ele no que se refere à dete-
rioração — a singular espécie de deterioração — a que ele sub-
meteu a língua.

1. Contribuição aos Essays and studies da Assoc iação Inglesa, Oxford University
Press, 1936. (N A.)
200 MILTON II 189
T. S. ELIOT

talento na arte da música. Se Milton tivesse sido uin homem


Muitos concordarão cm que um homem pode ser um grande
com sentidos aguçados quero dizer com todos os cinco senti-
artista e, não obstante, exercer uma má influência. A influên-
dos —, sua cegueira não teria importado tanto. Mas para um
cia de Milton sobre a mediocridade do mau verso do século
homem cuja sensibilidade, tal como era, tivesse murchado cedo
XVIII é maior do que a de qualquer outro: ele certamente cau-
devido à leitura de livros, e cujos dons fossem naturalmente
sou mais prejuízos do que Dryden e Pope, e talvez boa parte
auriculares, isso importava de modo considerável. Caberia supor,
da difamação de que foram vítimas esses dois poetas, especial-
na verdade, q u e isso o ajudou a se concentrar sobre o que ele
mente o último, devido a sua influência, deva ser atribuída a
podia fazer melhor.
Milton. Mas colocar o assunto simplesmente em termos de
" m á influência" não é necessariamente fazer u m a acusação Em n e n h u m período a imaginação visual é conspícua na
séria, pois boa parte da responsabilidade, q u a n d o colocamos o poesia de Milton. Seria aconselhável dar alguns exemplos do
problema nesses termos, pode ser transferida aos próprios poe- que e n t e n d o por imaginação visual. Em Macbeth'.
tas do século XVIII, por serem tão maus poetas q u e se revela-
This guest o] summer,
ram incapazes de ser influenciados por outra coisa q u e não o
lhe temple-haunting martlet, does approve
mal. Há muito mais do que isso a ser acrescentado à acusação
By his loved mansionry that the heaven s breath
contra Milton: parece que tudo se torna consideravelmente Smells wootngly here: no jutty, frieze,
mais grave se afirmarmos que a poesia de Milton poderia exer- Buttress, nor coign of vantage, but this bird
cer uma influência apenas sobre o pior dentre quaisquer poetas. Hath made his pendent bed and procréant cradle:
E mais grave ainda se afirmarmos que a má influência de Mil- Where they most breed and haunt. I have observed
ton poderia ser rastreada para bem além do século XVIII, e The air is delicate.1
para bem além dos maus poetas — se dissermos que foi u m a
influência contra a qual ainda lutamos. Pode-se observar que essa imagem, bem como outra citação fami-
liar pouco adiante na mesma peça,
Há uma numerosa classe de pessoas, incluindo algumas
que aparecem sob a forma de críticos, q u e encaram q u a l q u e r Light thickens, and the crow
censura a um 'grande poeta como u m a violação da paz, Makes wing to the rooky wood.3
como um ato de temerária iconoclastia, ou mesmo de baderna.
A espécie de crítica desfavorável que me cabe fazer a Milton proporciona não apenas alguma coisa à vista, mas, por assim
jamais é cogitada por pessoas como essas, q u e são incapazes dizer, ao senso c o m u m . Quero dizer que elas transmitem a sen-
de compreender que é mais importante — e, sob certos aspec- sação de que se encontram em determinado lugar num deter-
tos, vital — ser um bom poeta do q u e um grande poeta; e com minado tempo. A comparação com Shakespeare oferece outra
relação ao que tenho a dizer considero q u e o único júri é indicação da singularidade de Milton. Com Shakespeare, muito
aquele que está formado pelos mais competentes usuários da mais do que com qualquer outro poeta inglês, as combinações
poesia de minha própria época. verbais proporcionam uma permanente novidade; elas ampliam
A mais importante ocorrência na vida de Milton, com rela-
ção àquilo a que me proponho, é a sua cegueira. Não quero 2 A fala e dc Banquo, Ato I. Cena VI: "Este hospede do verão, I O martincte
dizer que ficar cego na meia-idade seja em si o suficiente para de- familiar dos templos, prova / Por seus adorados abrigos, que o hálito dos céus
Embalsama aqui o a m b i e n t e . Não há saliência, friso. / Contraforte, canto íavorá-
terminar toda a natureza da poesia de alguém. Essa cegueira vel, o n d e esse pássaro / Não haja erguido o leito e o berço fecundo: / Observei
deve ser considerada em relação à personalidade e ao caráter q u e . o n d e ele habita c de preferência procria, / O ar c d e l i c a d o " . (N T )
de Milton, e à singular educação que ele recebeu. Deve-se tam- 3. A fala é de Macbeth. Ato III. Cena II: "A luz agoniza, c o corvo / distende
suas asas r u m o ao bosque s o m b r i o " . ( N . T . )
bém considerá-la paralelamente à sua devoção religiosa e ao seu
MILTON I 191
190 T S. ELIOT

The sun to me is dark


o significado das palavras particulares associadas: assim, procré- And silent as the moon,
ant cradle ("berço f e c u n d o " ) , rooky wood ( " b o s q u e s o m b r i o " ) . When she deserts the night
Liid in her vacant interlunar cave.
Em comparação, as imagens de Milton não oferecem esse sen-
tido de particularidade, como tampouco as palavras isoladas são Aqui, a palavra interlunar é um achado de gênio, mas, a rigor,
desenvolvidas cm sua significação. Sua linguagem é, se pode- está mais associada a vacant ( " v a z i a " ) e a cave ( " c a v e r n a " )
mos utilizar o termo sem n e n h u m menosprezo, artificial c con- do que propriamente lhes d a n d o vida e delas recebendo vida.
vencional. Assim, não é incorreto, como pareceria à primeira vista, dizer
que Milton escreve o inglês como u m a língua morta. A crítica
O'er the smooth enamel d green (...)
foi feita em relação à sua sintaxe arrevesada. Mas um estilo tor-
(...)paths of this drear wood tuoso, q u a n d o sua singularidade visa à precisão — como no
The nodding horror of whose shady brows caso de Henry James —, não é necessariamente um estilo morto,
Threats the forlorn and wandering passenger.4 a menos que a dificuldade seja determinada por uma exigência
de música verbal, c não por qualquer imposição de sentido.
Shady brows ("frontes sombrias ') equivale aqui a u m a dimi-
nuição do valor das palavras a partir de seu e m p r e g o n u m verso Thrones, dominations, princedoms, virtues, powers,
do Dr. Faustus: If these magnifie titles yet remain
Not merely titular, since by decree
Shadowing more beauty m their airy brows. * Another now hath to himself engrossed
All power, and us eclipsed under the name
As imagens em L 'allegro e LIpenseroso são todas genéricas: Of King anointed, for whom all this haste
Oj midnight march, and humed meeting here,
While the ploughman near at hand. This only to consult how we may best
Whistles o er the furrowed land With what may be devised of honours new
And the milkmaid singe t h blithe. Receive him coming to receive from us
And the mower whets his scythe, Knee-tribute yet unpaid, prostration vile,
And every shepherd tells his tale, Too much to one, but double how endured.
Under the hawthorn in the dale.0 To one and to his image now proclaimed?*

Não é um lavrador, uma ordenhadora e um pastor particulares Compare-se-ihe a isto:


o que Milton vê (como Wordsworth poderia vê-los); o efeito
However, he didn Ί mind thinking that if Cissy should
sensual desses versos atinge plenamente o ouvido, e está asso-
prove all that was likely enough their having a subject in com-
ciado aos conceitos de lavrador, de ordenhadora e de pastor.
Até mesmo em sua obra mais madura, Milton não i n f u n d e 7. "O sol é para m i m escuro / E silencioso como a lua. / Q u a n d o ela deixa a noite,
vida nova à palavra, como Shakespeare o fez. / Oculta em sua vazia caverna i n t e r l u n a r . " ( N . T . )
Κ " T r o n o s , dominações, principados, virtude*, poderes. / Se tais esplêndidos títu-
los ainda p e r d u r a m / N ã o simplesmente titulares, desde que por decreto / Um
4. "Sobre o macio verde esmaltado (...) II (...) trilhas dessa mata sinistra / C u j o outro agora arrebatou para si / Todo o poder, e nos eclipsou sob o nome / Do rei
horrível meneio de suas frontes sombrias / Ameaça o erradio e d e s a m p a r a d o passan- ungido, para q u e m toda essa pressa / De marcha da meia-noite, e improvisada reu-
t e . " (N.T.) nião aqui, / Somente para saber de que maneira poderemos melhor / Com o que
" S o m b r e a n d o mais beleza em suas frontes altaneiras." (N T ) possa ser divisado como nossas honrarias / Recebê-lo para receber de nós / Tributo
ajoelhado ainda não prestado, vil prostração / Excessiva para alguém, mas como
6. " E n q u a n t o o lavrador nas cercanias / Assobia sobre a terra semeada / E a orde-
nhadora canta suavemente, / Ε o ceifeiro afia sua foice, / E cada pastor conta a suportar cm dobro, / Poi alguém e por sua imagem agora proclamada?" (N.T.)
sua história, / Sob o espinheiro no vale." ( N . T . )
200 T. S. ELIOT MILTON II 193

mon couldn't but practically conduce; though the moral of it é preciso que, a rigor, não leiamos analiticamente uma passa-
all amounted rather to a portent. the one that Haughty, by gem dessas. Não estou sugerindo que Milton não tenha nenhum
the same token. had done least to reassure him against, of the proposito dc transmitir o que entende como importante, mas
extent to which the native jungle harboured the female speci- apenas q u e a sintaxe está determinada pelo sentido musical,
men and to which its ostensible cover. the vast level of mixed pela imaginação auditiva, mais do que por uma tentativa de
growths stirred wavingly in whatever breeze. was apt to be iden- acompanhar a linguagem ou o pensamento reais. É pelo menos
tifiable but as an agitation of the latest redundant thing in mais tangivelmente possível distinguir o prazer que provém
ladies ' hats.9 do barulho, do prazer devido a outros elementos, daquele que
se irradia de um verso de Shakespeare, no qual a imaginação
A citação desse trecho, tornado quase ao acaso de The ivory auditiva e a imaginação dos outros sentidos estão mais intima-
tower, não pretende apresentar Henry James no q u e hipotetica- mente fundidas, e fundidas com o pensamento. No caso de
mente ele tem de " m e l h o r ' , do mesmo m o d o q u e a nobre Milton, o resultado é, em certo sentido da palavra, retórico.
passagem de O paraíso perdido não se destina a revelar Milton Esse termo não deve ser entendido como pejorativo. Essa espécie
no que hipoteticamente ele tem de pior. O problema é a dife- de "retórica não exerce necessariamente uma má influência,
rença de intenções na elaboração de dois estilos q u e se afastam mas pode-se considerá-la má em relação à vida histórica de
da lúcida simplicidade. O som, naturalmente, não é jamais irre- uma língua como um todo. Eu disse alhures que o inglês vivo,
levante, e o estilo de James decerto d e p e n d e em boa parte, no como era o de Shakespeare, se dividia em dois componentes,
que se refere a seu efeito, do som de u m a voz, a do próprio um dos quais foi explorado por Milton e outro por Dryden.
James, dolorosamente explicativa. Mas a dificuldade, no caso Dos dois, considero ainda o desenvolvimento de Dryden mais
de James, é devida a uma determinação de não simplificar, e saudável, pois foi Dryden q u e m preservou, na medida em que
nisso a simplificação não perde n e n h u m a das complexidades cabalmente a preservou, a tradição da linguagem coloquial na
reais nem as veredas do movimento mental, já q u e a dificul- poesia, e eu poderia acrescentar que me parece mais fácil resga-
dade de uma oração miltoniana é uma dificuldade ativa, u m a tar a saúde da linguagem a partir de Dryden do que fazê-lo a
dificuldade intencionalmente introduzida naquilo q u e era um partir de Milton; pois se cabe aqui recorrer a essa generalização,
pensamento previamente simplificado e abstrato. O a n j o negro a influência de Milton sobre o século XVIII foi muito mais
não está aqui pensando ou conversando, mas elaborando uma deplorável do q u e a de Dryden.
fala cuidadosamente preparada para ele; e o arranjo foi feito Se várias e importantíssimas reservas e objeções cabem ser
por apego ao valor musical, e não ao significado. A enunciação feitas, creio que não seja inútil comparar o desenvolvimento
direta, como a de uma personagem homérica ou dantesca, tor- de Milton com o de James Joyce. As semelhanças iniciais são o
naria o interlocutor muito mais real para nós, mas a realidade gosto musical e as habilidades, seguidas pelo aprendizado musi-
não faz parte da intenção. Para colhermos a impressão poética, cal, o amplo e precioso conhecimento, o dom para línguas e
os extraordinários poderes da memória, talvez fortalecidos pelo
9. Entretanto, ele não se importava d e f e n s a r q u e se Cissy houvesse de provar defeito da visão. A diferença é que a imaginação de Joyce não
que eles tinham um assunto em c o m u m , o q u e era bastante crível, isso não seria
é decerto de um tipo tão estritamente auditivo quanto a de
senão uma conclusão lógica, embora a moral de t u d o isso chegasse a ser antes um
prodígio, aquele mesmo que Haughty, a partir de identità evidência, fizera o Milton. Em suas primeiras obras, e pelo menos em partes do
menos possível para convencê-lo do contrário, na medida em q u e a floresta nativa Ulysses, há uma imaginação visual e outra imaginação da mais
abrigara o espécime feminino e para o qual sua cobertura ostensiva, a vasta superfí-
alta espécie; e posso estar enganado ao julgar que a última
cie de variadas plantações agitadas por ondulações graças a u m a brisa q u a l q u e r , era
capaz de ser identificada como não mais do q u e uma agitação da mais recente parte do Ulysses revele um retorno do m u n d o visível para que
redundância do chapéu das senhoras." ( N . T . ) o autor estimule, preferivelmente, os recursos da fantasmagoria.
T. S. ELIOT
MILTON I 195

De qualquer modo, pode-se supor que o recrudescimento das


meras leituras, mas a cada uma delas todos os elementos da
imagens visuais durante os últimos anos tenha sido insuficiente,
a p r e c i a ç ã o podem estar presentes. Não há intervalo entre a casca
de modo que aquilo que encontramos em Work in progress10
que esses poetas exibem a vocês e o miolo. Conseqüentemente,
é uma imaginação auditiva a n o r m a l m e n t e estimulada à custa
na medida em que não posso pretender ter penetrado em qual-
do elemento visual. Há ainda um pouco a ser visto, e o q u e
quer " s e g r e d o " desses poetas, sinto que essa apreciação de sua
há para ver merece ser visto. E eu insistiria em q u e , no caso
obra do m o d o como sou capaz de fazê-lo aponta para a direção
de Joyce, esse desenvolvimento me parece devido em g r a n d e
parte a certas circunstâncias, u m a vez q u e se p o d e dizer dc correta, visto que não posso sentir que minha apreciação de
Milton que ele nunca viu nada. Para Milton, conseqüente- Milton conduza a algum lugar que esteja fora dos labirintos
mente, a concentração no som era de todo benéfica. Na ver- do som. Este, suponho, seria assunto para um estudo isolado,
dade, ao 1er O paraíso perdido, percebo q u e me sinto mais como o dos livros proféticos de Blake; bem que o esforço vale-
feliz nas passagens em que há menos o q u e visualizar. A visão ria a pena, mas pouco teria a ver com meu interesse pela poe-
não se horroriza diante de seu Inferno crepuscular como ocorre sia. Pelo q u e dc algum m o d o percebo, trata-se de uma visão
no Jardim do Eden, o n d e , no que Tne concerne, só consigo de relance de u m a teologia que considero em boa parte repug-
extrair prazer do verso graças a um esforço para não visualizar nante, expressa através de uma mitologia que teria sido melhor
Adão e Eva e aquilo que os rodeia. deixar com relação ao Livro do Gênese, que Milton não aperfei-
Não estou sugerindo n e n h u m íntimo paralelo entre a "retó- çoou. Parecc-me q u e ocorre em Milton uma divisão entre o filó-
rica' de Milton e o estilo das últimas obras de Joyce. Trata-se sofo ou o teólogo e o poeta; e, no caso deste último, suspeito
de uma música diferente; e Joyce sempre m a n t é m algum con- também q u e essa concentração sobre a imaginação auditiva con-
tato com o tom coloquial. Mas pode-se provar q u e se trata tam- duza a u m a ocasional leviandade. Posso apreciar a cadência de
bém de um beco sem saída para o f u t u r o desenvolvimento da
língua. (...) Cambula, seat of Cathaian Can
A desvantagem do estilo retórico parece ser a de q u e ocorre And Samare hand by Oxus, Tern ir's throne,
um deslocamento, por meio da hipertrofia da imaginação audi- To Faquin of Sinaean kings, and thence
tiva à custa dos elementos visuais e táteis, de m o d o q u e o signi- To Agra and Uhor of great Mogul
ficado interno está separado da superfície e t e n d e a tornar-se Down to the golden Chersonese, or where
algo oculto, ou pelo menos sem efeito, sobre o leitor até q u e The Persian in Ecbatan sate, or since
In HIspahan, or where the Russian Ksar
seja plenamente compreendido. Para extrair t u d o o q u e é possí-
On Mosco, or the Sultan in Bizance,
vel dc O paraíso perdido parece-me q u e seria necessário lê-lo
Turchestan born (,..).11
de duas maneiras diferentes, primeiro apenas pelo som, e
segundo, pelo sentido. A beleza integral de seus longos perío- e sua continuação, mas sinto que não se trata de poesia séria,
dos só dificilmente pode ser apreciada e n q u a n t o estivermos
de poesia integralmente preocupada com seu objetivo precípuo,
também em luta com o significado; e para o deleite do ouvido
mas antes de um jogo solene. Mais freqüentemente, e de modo
o significado só a custo é imprescindível, exceto na medida
confesso, Milton utiliza nomes próprios com parcimônia para,
em que certas palavras-chaves indiquem o tom emocional da
por meio deles, obter o mesmo efeito de magnificência como
passagem. Ora, Shakespeare ou Dante poderão comportar inú-
U. " C a m b u l a , sede de Cataia Can I E Samarcanda em Oxus. trono de Temir, /
10. Obra dc Joycc pouco conhecida entre nós, publicada em cinco partes entre A F a q u m dos reis sín.cos, e daí I A Agra e Lahor do Grào-Mogol. / Descendo ate
1927 c 1930. abrangendo alguns fragmentos que seriam depois utilizados no Finne o dourado Chersonese, ou o n d e / Em Ecbátana os persas tinham sede, ou desde
%an\ wake. ( N . T . ) / Hisfahan. ou o n d e o czar russo / Em Moscou, ou o sultão em Bizâncio. / Nas-
cido no Turquestào ( . . . ) . " ( N . T . )
98
T. S. ELIOT

ο fez Marlowe — cm n e n h u m lugar, talvez, melhor do q u e


nesta passagem do Lycidas:
Whether beyond the stormy Hebrides,
Where thou perhaps under the whelming tide
Visit 'st the bottom of the monstrous world:
Or whether thou to our moist vows deny'd MILTON II'
Sleep 'st by the fable of Bellerus old,
Where the great vision of the guarded Mount
:
Looks toward Namancos and Bayona '$ hold

em relação à qual, para o estrito efeito de grandeza de som,


nada existe de mais belo em poesia.
Não faço n e n h u m a tentativa para louvar a g r a n d e z a " de
Milton em relação a poetas que me parecem mais abrangentes
e mais bem equilibrados; pareceu-me mais proveitoso por ora
enfatizar o paralelo entre O paraíso perdido e Work in progress;
e tanto Milton quanto Joyce são tão sublimes em seus respecti- Samuel J o h n s o n , que se encarregou de analisar a versifica-
vos gêneros, no conjunto da literatura, q u e os únicos escritores ção de Milton no The Rambler, em sua edição de sábado, dia
com os quais se pode compará-los são escritores q u e tentaram 12 de janeiro de 1751, julgou necessário desculpar-se de sua
algo muito diferente. De qualquer modo, nossos conceitos sobre temeridade ao escrever sobre um assunto já tão amplamente
Joyce devem, no momento, permanecer provisórios. Mas há duas discutido. Para justificar seu ensaio, o grande crítico e poeta
atitudes, ambas necessárias e corretas, a serem adotadas q u a n d o observou: " F m cada época há novos erros a serem corrigidos e
se considera a obra de qualquer poeta. Uma é a de isolá-lo, novos preconceitos aos quais se o p o r " . Vejo-me obrigado a
quando tentamos compreender as regras de seu próprio jogo ou expressar m i n h a própria apologia de maneira algo distinta. Os
adotar o seu próprio ponto de vista; a outra, talvez menos erros de nossa própria época tem sido corrigidos por mãos vigo-
comum, é a de avaliá-lo à luz de padrões externos, mais perti- rosas, e os preconceitos, obstados por vozes imponentes. Alguns
nentemente por padrões de língua e daquilo a q u e chamamos dos erros e preconceitos estão associados a meu próprio nome,
poesia, em nossa própria língua e em toda a história da litera- e sobre estes, particularmente, sinto-me compelido a lalar;
tura européia. E a partir do segundo ponto de vista q u e faço espero q u e eles sejam atribuídos a mim mais por modéstia do
minhas objeções a Milton: é por esse prisma que podemos che- que por vaidade, ainda que eu sustente que ninguém pode cor-
gar ao ponto de afirmar que, conquanto suas obras realizem rigir um erro com maior autoridade do que a pessoa conside-
admiravelmente um importante elemento da poesia, ele pode, rada responsável por ele. E há, suponho, uma outra justifica-
não obstante, ser considerado como o responsável por um pre- tiva para falar sobre Milton, além daquela que acabo de dar.
juízo à língua inglesa do qual ela jamais se recuperou inteiramente. Os paladinos de Milton em nossa época, com uma notável exce-
ção, foram eruditos e professores. Não pretendo que seja de
12. " S e além das tormentosas H í b r i d a s , / O n d e tu talvez e n g o l f a d o pela maré / outro modo: estou cônscio de que minha única pretensão
Visitaste o t u n d o do monstruoso universo; / Ou sc t u . diante de nossos ú m i d o s
rostos renegados, i Dormiste e m b a l a d o pela fábula do velho BdJerus, / O n d e a
grande visão do monte vigiado / Descortina-se na direção de N a m a n c o s e dos domí- 1. Conferência na Fundação Henrietta Hertz, pronunciada para a Academia Britâ-
nios de Bayona (...). Ver nota 13 a " J o h n s o n como crítico e p o e t a " (N T ) nica em 1917 e, posteriormente, no Museu Frick, de Nova York. (N A.)
198 T. S. ELIOT
MILTON II 199

quanto ao interesse de vocês, ao falar de Milton ou de qual- de Williams) é a vivacidade do sentimento do autor e seu êxito
quer outro grande poeta, é a de aguçar-lhes a curiosidade na em transmiti-la ao leitor. Nesse particular, até onde me consi-
esperança de que vocês possam se preocupar em saber o q u e dero lúcido, o ensaio de Williams é um exemplo único.
um poeta contemporâneo pensa de um de seus antecessores. Julgo ser proveitoso, nesse exame a que me proponho fazer,
Creio que o erudito e o poeta que a t u a m no c a m p o da crí- ter em m e n t e algum crítico do passado, alguém do nosso pró-
tica literária deveriam suplementar cada um o trabalho do outro. prio tipo, através de cujos conceitos possamos avaliar nossas
A crítica do poeta será tanto melhor, é claro, na m e d i d a em opiniões um crítico afastado o bastante no tempo, cujos
que ele não esteja inteiramente destituído de erudição; e a crí- equívocos e preconceitos não sejam idênticos aos nossos. Eis
tica do erudito será tanto melhor na m e d i d a em q u e ele tenha por q u e comecei com u m a citação de Samuel Johnson. Será
alguma experiência das dificuldades de escrever em verso. Mas difícil contestar que, e n q u a n t o crítico de poesia, Johnson es-
a orientação das duas espccies de crítica é distinta. O erudito creveu como poeta, e não como erudito, pois foi ele um poeta,
está mais preocupado em compreender a obra-prima no ambiente e um bom poeta, e o q u e escreveu sobre poesia deve ser lido
de seu autor, o m u n d o em q u e este viveu, as condições de sua com respeito. E a menos que conheçamos e apreciemos a poe-
época, sua formação intelectual, os livros q u e porventura haja sia de J o h n s o n , não poderemos julgar nem os méritos nem as
lido c as influências q u e sobre ele exerceram. Ao poeta interessa limitaçõesde sua crítica. E pena que aquilo que o leitor comum
mais o poema do que o autor, e o poema em relação à sua pró- de nossos dias leu, ou aquilo dc que ainda se lembra, ou viu
pria época. Ele pergunta: de q u e serve a poesia desse autor citado, seja em sua maioria aquelas poucas afirmações de John-
para os poetas que escrevem hoje? Seria ela, ou viria a ser, u m a son das quais os críticos mais recentes discordam com veemên-
força viva na poesia inglesa q u e ainda não foi escrita? Podemos cia. Mas q u a n d o Johnson sustenta uma opinião que nos parece
dizer, portanto, q u e o interesse do erudito está naquilo q u e errada, jamais tomamos as devidas precauções quando a rejei-
permanece, e n q u a n t o o do poeta reside no imediato. O erudito tamos sem averiguar por que ele estava errado; é claro que ele
pode nos ensinar onde deveríamos focalizar nossa admiração e teve seus próprios "equívocos e preconceitos", mas, por dei-
nosso respeito; o poeta deveria ser capaz, q u a n d o se trata do xarmos dc examiná-los com simpatia, corremos sempre o risco
poeta certo ao falar do poeta certo, de tornar atual u m a antiga de confrontar equívoco com equívoco e preconceito com pre-
obra-prima, de dar-lhe significação contemporânea e de persua- conceito. Ora, Johnson foi, em seus dias, um crítico modernís-
dir o seu público de que ela é instigante, perturbadora, agradá- simo, e interessou-se por toda a poesia que porventura haja
vel e ativa. Posso dar apenas um exemplo da crítica c o n t e m p o - sido escrita em sua própria época. O fato de que ele se voltou
rânea sobre Milton feita por um crítico do tipo a q u e eu perten- mais para o aspecto final do q u e para as origens de um estilo,
ceria se tivesse em absoluto quaisquer pretensões críticas: é o o fato de q u e seu t e m p o rapidamente passou e de que os câno-
da introdução aos English poems de Milton, da série "Clássicos nes de gosto aos quais ele se apegou estivessem a ponto dc
cair em desuso, não d i m i n u e m o interesse de sua crítica. Nem
do M u n d o " , do recém-falecido Charles Williams. 2 N ã o se trata
mesmo a probabilidade dc que o desenvolvimento da poesia
de um ensaio abrangente, mas é notável, acima de t u d o , por-
nos cinqüenta anos seguintes iria tomar direções inteiramente
que nos brinda com o melhor preâmbulo a Comus de q u e
distintas daquelas que me pareciam desejáveis explorar me
qualquer leitor moderno poderia dispor; mas o q u e s o b r e m o d o
impede de fazer as perguntas que Johnson comporta: Como
o distingue (e o mesmo se aplica à maioria dos textos críticos
deveria a poesia ser escrita agora? E que lugar caberia a Milton
2. Williams, Charles. Poeta, crítico e d r a m a t u r g o inglês (1886-1945). autor de. na resposta a essa pergunta? E considero que as respostas a tais
entre outras obras. Poetry and present, Essays on 15 poets (1930), Three plays perguntas possam ser agora diferentes das respostas que esta-
(1931). The English poetic mmd{\902), Reason and beauty m poetic mind(1933)
c The figure of Be a t nee; a study m Dante (1943) (N.T.)
vam corretas vinte e cinco anos atrás.
200 T. S. ELIOT MILTON II 201

Há um preconceito contra Milton, visível em quase todas e não, em qualquer sentido moderno, um " d e m o c r a t a " , e o
as páginas da Life of Milton, de Johnson, q u e s u p o n h o ser ainda professor Saurar* deu provas, ao mostrar que a teologia de Mil-
geral; todavia, como dispomos de u m a perspectiva histórica ton era altamente excêntrica — e tão escandalosa para os pro-
mais ampla, estamos n u m a posição melhor q u e a de J o h n s o n testantes q u a n t o para os católicos —, que ele era, na verdade,
para reconhecê-lo e levá-lo em conta. Trata-se de um precon- uma espécie de cristão oracular, e talvez nem mesmo assim
ceito do qual compartilho: uma antipatia para com o h o m e m um autêntico cristão oracular; por outro lado, entretanto, o Sr.
Milton. Sobre isso em si nada tenho a acrescentar: t u d o o q u e C. S. Lewis' contestou habilmente o professor Saurat argüindo
cabe č registrar o conhecimento q u e dele tinha J o h n s o n . Mas que Milton, pelo menos cm O paraíso perdido, pode ser absol-
tal preconceito está sempre envolvido com um outro, mais obs- vido da acusação de heresia até mesmo de um ponto de vista
curo, e não creio que Johnson os tenha dissociado em seu espí- tão ortodoxo q u a n t o o do próprio Sr. Lewis. Sobre essas ques-
rito. O fato é que a Guerra Civil do século XVII, na qual Mil- tões não sustento n e n h u m a opinião: é provavelmente benéfico
ton é uma figura simbólica, simplesmente jamais acabou. A à questão admitir q u e Milton fosse um saudável membro inde-
Guerra Civil não terminou pergunto se q u a l q u e r guerra civil pendente da Igreja e t a m b é m m e m b r o do Partido Liberal; mas
séria um dia chega ao fim. l o d o esse período da sociedade julgo q u e devamos ainda permanecer cm guarda contra um sec-
inglesa é de tal modo convulso e dividido q u e seus efeitos ainda tarismo inconsciente se pretendermos servir à poesia por amor
são sentidos. Ao 1er o ensaio de Johnson sempre se percebe q u e à poesia.
ele toma obstinada e apaixonadamente outro partido. N e n h u m Chega de preconceitos. Considerarei em seguida a objeção
outro poeta inglês, nem Wordsworth, n e m Shelley, viveu tão positiva q u e deve ser feita a Milton em nossa própria época ou,
intensamente esses graves episódios, ou ficou de um dos lados, por assim dizer, a acusação de que ele é uma influência perni-
quanto o fez Milton; de n e n h u m outro poeta é tão difícil con- ciosa. E daí prosseguirei em direção à constante crítica de repro-
siderar a poesia simplesmente e n q u a n t o poesia, sem recorrer- vação (para empregar uma frase de Johnson), c finalmente aos
mos às nossas inclinações teológicas e políticas, conscientes ou territórios nos quais o considero um grande poeta, um daque-
inconscientes, herdadas ou adquiridas, f a z e n d o assim u m a les, aliás, q u e poderiam ser hoje estudados com proveito.
intromissão indevida. Ε o perigo é tanto maior na m e d i d a em Devido a u m a afirmação sobre a crença generalizada na
que tais emoções vestem agora diferentes roupagens. Considera- perniciosidade da influência dc Milton, volto à crítica que o
se agora grotesco, em âmbito político, pertencer ao partido do Sr. Middleton Murry fez a Milton em seu Heaven and Earth,
rei Carlos; e creio que se considera agora igualmente grotesco, um livro q u e inclui capítulos dc aguda intuição, entremeados
do ponto de vista moral, pertencer ao partido dos puritanos; e de passagens que me parecem imoderadas. O Sr. Murry aborda
para a maioria das pessoas de hoje as concepções religiosas de Milton cm seguida ao seu longo e paciente estudo sobre Kcats,
ambos os partidos podem parecer igualmente remotas. Todavia, e é com os olhos dc Keats que ele vê Milton.
as paixões não se extinguiram, e se não estivermos p r o f u n d a - " K e a t s " , escreve o Sr. Murry, " c o m o artista poético que
mente atentos, sua fumaça poderá embaçar a lente através da não deve nada a ninguém desde Shakespeare, e Blakc, como
qual analisamos a poesia de Milton. Algo tem de ser feito, é profeta de méritos espirituais único em nossa história, expres-
claro, para nos persuadirmos de q u e Milton jamais pertenceu sam ambos, substancialmente, o mesmo julgamento sobre Mil-
de fato a qualquer partido, mas de que se desentendeu com ton: *A vida para ele scria a morte para m i m ' . E qualquer que
todos eles. O Sr. Wilson Knight, 3 em Chariot of wrathy argüiu
que Milton foi mais um monarquista do q u e um republicano, 4. Denis Saurat. autor de .Wilton: man and thinker {1925). ( N . T . )
5. C. S. Lewis, autor de A preface to "Paradise lost" (1942) e The life records of
3. Ver nota 22 ao ensaio "A música da p o e s i a " , nesta coletânea. ( N . T . ) Milton. cm 5 vols. (1949). ( N . T . )
200 202
T. S. ELIOT MILTON II

venha a ser nosso veredicto sobre o desenvolvimento da poesia prazer da leitura. Milton deixou um grande poema épico impos-
inglesa a partir de Milton, devemos admitir a justeza da opi- sível de ser escrito pelas gerações seguintes; Shakespeare conce-
nião dc Keats de que a grandiloqüência de Milton não leva a beu um drama poético impossível de ser superado; essa situa-
parte alguma. Ό inglês deve ser mantido em boas condições', ção é inevitável, e persiste até que a língua seja tão modificada
diz Keats. Ser influenciado além de um certo ponto pela arte q u e não haja mais o risco, porque não haveria a possibilidade,
dc Milton, percebe ele, arruina o fluxo criativo do gênio inglês de imitação. Qualquer um que tente escrever um drama poé-
em si e por si. Ao dizer isso, creio eu, Keats exprime o q u e tico, mesmo hoje em dia, deveria saber que metade de sua ener-
de mais profundo existe no gênio inglês. Permanecer sob os efei- gia corre o risco de se exaurir no esforço para escapar às árduas
tos da magia de Milton é estar condenado a imitá-lo. E inteira- c opressivas dificuldades de Shakespeare: no m o m e n t o em que
mente distinto o que ocorre com Shakespeare. Shakespeare des- sua atenção relaxa, ou em que sua mente se afadiga, ele incorre
concerta e libera; Milton é claro e constringe." no mau verso shakespeariano. Por longo tempo, desde um
Trata-se de uma afirmação muito segura, e critico-a com poema épico como o de Milton, ou um drama poético como o
ccrta insegurança porque não posso pretextar ter dedicado tanto de Shakespeare, nada podia ser feito. Todavia, esse esforço
estudo assim a Keats, como tampouco ter insinuado u m a com- deve ser continuamente repetido, pois não podemos jamais
preensão de suas dificuldades, q u a n t o o Sr. Murry. Mas este saber antecipadamente q u a n d o estará próximo o m o m e n t o em
parece estar tentando aqui transformar a predicação de um que se tornará possível um novo poema épico ou um novo drama
determinado poeta com um determinado objetivo n u m deter- poético; e q u a n d o esse m o m e n t o estiver prestes a se delinear é
minado m o m e n t o do tempo numa censura de validade atempo- possível que o gênio de um único poeta empreenda a derradeira
ral. Ele parece afirmar que a função liberatória de Shakespeare transfiguração do idioma e da versificação que levará essa nova
e a ameaça constritora de Milton são características permanen- poesia a adquirir sua forma.
tes desses dois poetas. Ser influenciado além dc um certo pon- Referi-me ao conceito do Sr. Murrv4 sobre a má influência
t o " por qualquer mestre é ruim para qualquer poeta; c não de Milton como algo generalizado porque, implicitamente, é
interessa se essa influência for a de Milton ou a dc um outro; toda a personalidade de Milton que está em jogo, e não especi-
e como não podemos prever onde esse ponto se situa, não pode- ficamente suas crenças, sua linguagem ou sua versificação, mas
ríamos estar mais bem informados para designá-lo como um as crenças como foram conccbidas por essa personalidade parti-
ponto /«certo. Se não é bom permanecer sob os efeitos da cular, e sua poesia como expressão dessa mesma personalidade.
magia dc Milton, seria bom permanecer sob os efeitos da de Pelo conceito particular que define a influência de Milton
Shakespeare? Isso depende de que gênero de poesia vocês este- como algo de ruim entendo aquele que atende às exigências
jam tentando desenvolver. Keats queria escrever um poema da linguagem, da sintaxe, da versificação, da imagística. Não
épico, e concluiu, como seria de esperar, que não havia ainda sugiro que haja aqui uma completa diferença de tema: trata-
chegado a hora em que outro poema épico inglês, comparável se da diferença de abordagem, da diferença de foco de interesse,
em grandeza a O paraíso perdido, pudesse ser escrito. Ele o ten- entre a crítica filosófica e a crítica literária. Uma incapacidade
tou t a m b é m ao escrever peças, e alguém poderia argüir que para o abstruso e um interesse pela poesia que é, primordial-
King Stephen6 acabou sendo mais frustrado por Shakespeare mente, um interesse técnico dispõem meu espírito para a mais
do que Hyperion por Milton; e o King Stephen é uma peça limitada e talvez mais superficial tarefa. Permitam-me que con-
que podemos 1er uma vez, mas à qual jamais voltaremos pelo tinue a encarar a influência de Milton desse ponto de vista, o
de alguém que escreve poesia cm nossa própria época.
6. Keats começou a escrever essa pe«,a em 1818. mas não chegou a concluí-la. ( N . T . )
A censura contra Milton, a de que sua influência técnica
7. Ver nota 15 a "O que c poesia m e n o r ? " . ( N . T . )
foi má, parece não ter sido feita por ninguém mais positiva-
20-i T. S. ELIOT MILTON li 205

mente do que por m i m . Constatei que eu mesmo, muito recen- cedido, seria sensato deplorar uma obra-prima que não foi es-
temente, em 1936, havia dito que essa crítica a Milton ' consi- crita, em troca de outra de que dispomos e que conhecemos?
deravelmente mais grave se afirmarmos que a poesia de Milton E quanto àquele futuro remoto, o que nos caberia afirmar então
poderia exercer uma influência apenas para o pior dentre quais- sobre a poesia que poderá ser escrita, a não ser que seríamos
quer poetas. E mais grave ainda se afirmarmos que a má influên- provavelmente incapazes de compreendê-la ou apreciá-la, e que
cia de Milton poderia ser rastreada para bem além do século por conseguinte não leríamos n e n h u m a opinião sobre o que
XVIII, e para bem além dos maus poetas — se dissermos q u e poderão significar uma " b o a " e uma " m á " influência nesse
foi uma influência contra a qual ainda lutamos".* mesmo futuro? A única relação em que a questão da influência,
Ao escrever essas frases esqueci-me de fazer uma tripla dis- boa ou má, é significativa é a relação para com o futuro ime-
tinção, q u e agora me parece de certa importância. Há três afir- diato. E com essa relação que estou comprometido até o pes-
mações isoladas aí incluídas. A primeira é a de que u m a influên- coço. Desejo inicialmente mencionar outra censura contra Mil-
cia haja sido má no passado: isso equivale a afirmar q u e os ton, a que está representada pela expressão "dissociação da sen-
bons poetas dos séculos XVIII ou XIX poderiam ter escrito sibilidade".
melhor se não houvessem se submetido à influência de Milton. Observei, muitos anos atrás, num ensaio sobre Dryden, que:
A segunda afirmativa é a de que a situação contemporânea é " N o século XVIII manifestou-se uma dissociação da sensi-
tal que Milton se converteu num mestre a q u e m deveríamos bilidade da qual jamais nos recuperamos; e essa dissociação,
evitar. A terceira é a de que a influência de Milton, ou a de como é natural, deveu-se à influência dos dois mais portento-
qualquer poeta em particular, pode <cr sempre perniciosa, e sos poetas do século, Milton e D r y d e n " . '
de que nos cabe predizer que onde quer que se encontre, em A extensa passagem da qual esse período foi extraído está
qualquer época do futuro, embora remoto, será u m a influência citada pelo Dr. Tylliard 10 em seu Milton. O Dr. Tylliard faz o
nociva. Ora, não estou de m o d o algum predisposto a fazer tais seguinte comentário:
afirmativas porque, dissociadas da segunda, elas não me pare- " F a l a n d o apenas daquilo que nessa passagem se refere a
ciam ter qualquer significado. Milton, eu diria que existe aqui uma mistura de verdade e fal-
Em primeiro lugar, q u a n d o consideramos algum grande sidade. Cabe admitir certa espécie de dissociação da sensibili-
poeta do passado, ou mais de um, e deles afirmamos terem exer- dade em Milton, não necessariamente indesejável; mas o fato
cido uma influência nociva, devemos admitir q u e a responsabi- de que ele haja sido responsável por qualquer dissociação seme-
lidade, se existe alguma, cabe mais aos poetas que se deixaram lhante em outros (pelo menos até que essa dissociação geral ine-
influenciar do que àqueles cujas obras exerceram a influência. vitavelmente se manifestasse) não é verdadeiro".
E claro que podemos mostrar que quaisquer truques ou manci- Creio que a afirmação genérica representada pela expressão
rismos que os imitadores revelam são devidos à imitação e a riva- "dissociação da sensibilidade" (uma das duas ou três expres-
lidade consciente ou inconsciente, mas q u e constituem uma sões de minha lavra, como "correlato objetivo", que acabariam
reprovação à sua escolha inescrupulosa de um modelo, e não por alcançar uma repercussão internacional que me surpreen-
ao próprio modelo. E jamais conseguiremos provar que n e n h u m deu) conserva alguma validade, mas inclino-me agora a concor-
poeta em particular poderia ter escrito melhor poesia se hou- dar com o Dr. Tylliard em que deixar o fardo sobre os ombros
vesse escapado a essa influência. Mesmo que afirmássemos, o de Milton e Dryden foi um erro. Se essa dissociação ocorresse,
que só pode ser matéria de fé, que Keats poderia ter escrito
9 Essa p a r a g e m p e r t e m e ao ensaio John Dry Jen, T. & F.. HoUiday, Nova York.
um verdadeiro grande poema épico se Milton não o tivesse pre- 1932. ( N . T . )
10 E. M W Tylliard. autor de Milton (1930), The Miltomc setting (1947) e Stu
8. O trecho citado pertence ao ensaio anterior, "Milton I" (N.T.) dies tri Milton (1951). (N.T.)
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T. S. ELIOT MILTON II

desconfio que as causas seriam muito complexas e profundas plasma seu estilo graças a um princípio perverso e pedante. Ele
para justificar nossos princípios teóricos relativamente à mudança pretendia utilizar palavras inglesas com um idioma estrangeiro.
em termos dc crítica literária, l udo o que podemos dizer é q u e Isso foi descoberto e condenado em toda a sua prosa; é que
algo semelhante a isso aconteceu, que isso teve algo a ver com aqui a capacidade de julgamento atua livremente, seja suavi-
a Guerra Civil; mas seria inclusive imprudente dizer q u e foi zada pela beleza, seja atemorizada pela dignidade de seus pen-
causado pela Guerra Civil, e sim que constitui u m a conseqüên- samentos; mas essa é uma força de sua poesia, ou seja, a de
cia das mesmas causas q u e levaram a ela, q u e devemos procu- q u e seu apelo é obedecido sem resistência: o leitor se sente
rar as causas na Huropa, e não apenas na Inglaterra; e conside- tativo de um espírito mais nobre c elevado, e a crítica se trans-
rando o que foram essas causas, podemos escavar e escavar até forma em admiração."
alcançarmos uma profundidade cm que as palavras e os concei- "O estilo de Milton não foi modificado por sua temática:
tos nos sejam insuficientes. o que se revela com maior extensão cm O paraíso perdido pode
Antes de prosseguir em nossa argumentação contra Milton, ser encontrado em Cornus. Uma das fontes dc sua singularidade
nos termos em que foi ela sustentada por alguns poetas há vinte foi seu convívio com os poetas toscanos; a distribuição de suas
e cinco anos — ou seja, nos do segundo, mas expressivo signifi- palavras, suponho, é freqüentemente italiana, talvez aqui e ali
cado da " m á influência" —, creio que o melhor seria conside- combinadas com as de outras línguas. Podc-sc dele dizer, pelo
rar quais as críticas permanentes que podem ser suscitadas: aque- menos, o que Johnson disse de Spenser, isto é, que ele não
las censuras que, quando as fazemos, devemos admitir que sejam escrevia em nenhuma língua, tendo formulado o que Butler
feitas mediante leis duradouras do gosto. A essência da censura chamou de um dialeto babilónico, áspero c bárbaro em si, mas
permanente a Milton deve ser encontrada, creio eu, no ensaio transformado por um gênio sublime e por um conhecimento
de Johnson. Não cabe examinar aqui certos julgamentos pesso- abrangente num veículo dc tamanha instrução e de tal prazer
ais e errôneos de Johnson, como tampouco explicar sua conde- que, como ocorre a outros amantes, encontramos encanto em
nação de Comus e de Sansão Agonista, nem a aplicação de câ- sua d e f o r m i d a d e . "
nones dramáticos que nos parecem inaplicáveis; ou perdoar-lhe Essa crítica me parece substancialmente verdadeira: a rigor,
o abandono da versificação no Lycidas em nome da especializa- a menos que a aceitemos, não consigo imaginar de que maneira
ção, mais do que da ausência, de seu senso de ritmo. A mais possamos apreciar a grandeza de Milton. Seu estilo não é um
importante censura que Johnson faz a Milton está contida em estilo clássico no que este não corresponde à elevação dc um es-
três parágrafos, os quais peço permissão para citar na íntegra. ulo comum. graças ao toque final do gênio, à grandeza. Trata-
" E m todas as suas maiores obras' , diz J o h n s o n , " p r e d o - se, desde seus fundamentos, c em cada elemento particular,
mina do princípio ao fim uma peculiaridade uniforme de dic- de um estilo pessoal, que não está baseado na linguagem comum
ção, um modo e um molde dc expressão que não guarda a ou na prosa c o m u m , como tampouco na comunicação direta
menor semelhança com n e n h u m escritor precedente, c q u e até do significado. É difícil afirmar o que seja exatamente certa
o momento se afasta do uso comum, de m o d o que um leitor grande poesia, o que seja o retoque infinitesimal responsável
inculto, ao folhear o livro pela primeira vez, se surpreende com por toda a diferença de uma óbvia afirmação que qualquer
uma nova linguagem." um poderia fazer; a leve transformação que, embora permita
Essa novidade tem sido atribuída, por aqueles q u e não que u m a óbvia afirmação continue a ser óbvia, produz sempre
conseguem perceber nada de errado em Milton, a seus laborio- a máxima, e não a mínima, alteração na língua comum. Cada
sos esforços em busca de palavras adequadas à grandeza de deformidade de construção, cada distorção do idioma estran-
suas idéias. Nossa língua, diz Addison, se degrada com ele. geiro, do emprego de uma palavra utilizada de iorma aliení-
Mas a verdade é que, tanto em prosa quanto em verso, ele gena ou com o significado de uma palavra estrangeira da qual
208 Τ S. FI Ι Ο Ι
MILTON II 209

ele se originou, passando a ser mais aceito do que aquele que do estudo dc Chaucer; talvez devamos aguardar por um grande
era dc uso corrente em inglês, cada idiossincrasia, é um ato pes- poeta antes dc encontrarmos algum que possa tirar proveito
soal de violência que Milton foi o primeiro a cometer. Não se do estudo de Milton.
trata de n e n h u m clichê, de n e n h u m a dicção poética no sentido Repito que a distância que separa o verso de Milton da lin-
depreciativo, mas de uma seqüência contínua de atos originais guagem cotidiana, a invenção de sua própria linguagem poé-
de ilegalidade. Dentre todos os modernos usuários do verso, o tica, pareceu-me uma das características de sua grandeza. As
exemplo mais próximo parece-me ser o de Mallarmé, um poeta outras características são o seu senso de estrutura, tanto no
muito menor do que Milton, embora também um grande poeta. esquema geral do Paraíso quanto no do Sansão, e a sua sintaxe;
As personalidades, as teorias poéticas de ambos não poderiam e afinal, mas não menos importante, sua infalibilidade, cons-
ter sido muito diferentes, mas q u a n t o à violência q u e pratica- ciente ou inconsciente, ao escrever de modo a proporcionar a
ram contra a língua, e que justificaram, há uma remota seme- melhor ostentação de seus talentos e a melhor dissimulação de
lhança. A poesia de Milton é poesia na medida em q u e está o suas fraquezas.
mais distante possível da prosa; sua prosa me parece muito pró- A adequabilidade do tema do Sansão é muito óbvia para
xima de uma linguagem semipoética para q u e dela possamos que sobre ela se discorra cm detalhes: era provavelmente a única
dizer que seja boa prosa. história dramática a partir da qual Milton podia ter escrito uma
Dizer que a obra de um poeta está o mais distante possível obra-prima. Mas a total conveniência de O paraíso perdido não
da prosa teria outrora me impressionado como algo condenató- foi, creio eu, tão freqüentemente observada. Trata-se com toda
rio, mas agora, quando tenho que me defrontar com um Mil- a certeza de uma percepção intuitiva daquilo que ele não podia
ton, isso me soa simplesmente com a exatidão de sua singular fazer, a do projeto miltoniano interrompido de um poema épico
grandeza. Como poeta, Milton me parece provavelmente o sobre o rei Artur. Primeiro, ele tinha pouco interesse em, ou
maior de todos os excêntricos. Sua obra não ilustra princípios o conhecimento de, seres humanos individuais. Em O paraíso
da boa escrita; os únicos princípios da escrita q u e ela ilustra são perdido, ele não estava obrigado a recorrer a nenhum conheci-
de tal ordem que só têm validade para o próprio Milton. Há m e n t o de homens e mulheres. Mas tal interesse pelos seres
duas espécies de poetas que podem ser úteis a outros poetas. h u m a n o s não era exigido — a rigor, sua ausência era uma con-
Existem aqueles que sugerem, a um ou outro dc seus sucesso- dição necessária — para a criação das figuras de Adão e Eva.
res, algo que eles mesmos não fizeram, ou q u e estimulam u m a Não são eles o h o m e m e a mulher como qualquer um de nós
maneira diferente de fazer a mesma coisa: não são estes prova- conhece: se o fossem, não seriam Adão c Eva. São apenas o
velmente os maiores, mas os menores, isto é, os poetas incom- Homem e a Mulher originais: não são tipos, mas protótipos.
pletos com os quais os poetas mais recentes descobrem uma afi- Revelam as características gerais dos homens e das mulheres,
nidade. E há os grandes poetas com os quais podemos apren- tais como as podemos reconhecer, na tentação e na queda, os
der regras negativas: n e n h u m poeta pode ensinar outro a escre- primeiros impulsos das faltas e das virtudes, a abjeção e a
ver bem, mas alguns grandes poetas p o d e m ensinar a outros nobreza, de todos os seus descendentes. Têm a humanidade
como evitar certas coisas. Eles nos ensinam o q u e há por evitar ordinária no grau certo, e todavia não são, c nem deveriam ser,
ao nos revelar aquilo de que a grande poesia é capaz sem recor- ordinariamente mortais. Caso fossem mais particularizados,
rer ao que lhe é alheio — q u a n t o ela pode ser despojada. seriam falsos, e se Milton tivesse mais interesse pela humani-
Dante e Racine pertencem a essa categoria. Mas se fizermos uso dade, não poderia tê-los criado. Outros críticos salientaram a
continuo de Milton, deveremos fazê-lo de um m o d o absoluta- precisão, sem falha ou exagero, com que Moloch, Belial e
mente distinto. Até mesmo um poeta de pequena estatura M a m m o n , no segundo livro, falam de acordo com o pecado
pode aprender algo a partir do estudo de Dante, ou a partir pessoal que cada um deles simboliza. Não seria adequado que
200 T. S. ELIOT MILTON II 211

os poderes infernais devessem possuir, no sentido h u m a n o , ramos Adão e Eva no Éden. Assim como um grau maior de
caracteres, pois um caráter é sempre mesclado, mas nas mãos caracterização de Adão e Eva teria sido inadequado, também
de um manipulador de segunda ordem poderiam eles ter sido uma pintura mais vívida do Paraíso terrestre teria sido menos
facilmente reduzidos a humores. paradisíaca, pois uma definição maior, uma descrição mais deta-
A adequabilidade da matéria de O paraíso perdido ao gênio lhada da flora e da fauna, só poderiam ter assimilado o Éden à
e às limitações de Milton torna-se ainda mais evidente q u a n d o paisagem da Perra com a qual estamos familiarizados. Nessas
consideramos as imagens visuais. Já assinalei, n u m estudo escrito circunstâncias, a impressão que guardamos do Éden é a mais
há alguns anos, sobre a deficiência de Milton no q u e se refere adequada, e é essa a que Milton estava mais qualificado para
à observação visual — uma deficiência que s u p o n h o esteja sem- nos oferecer: a impressão da luz, uma luz do dia e uma luz das
pre presente — de que o efeito de sua cegueira pode ter sido estrelas, uma luz do amanhecer e do anoitecer, uma luz que,
exercido antes para fortalecer as qualidades compensatórias do relembrada por um cego, irradia uma glória jamais experimen-
que para agravar um defeito que desde sempre existiu. 11 O Sr. tada por aqueles que não perderam a visão.
Wilson Knight, que dedicou um rigoroso estudo às imagens Não devemos, portanto, em O paraíso perdido, esperar
recorrentes na poesia, alertou para a propensão de Milton às que vejamos claramente; nosso sentido de visão deve se obscure-
imagens relacionadas à engenharia e à mecânica; parece-me cer, de m o d o que nossa audição possa tornar-se mais aguda.
que o melhor de Milton está nas imagens q u e sugerem vastas O paraíso perdido, assim como o Finnegans wake (pois não con-
dimensões, espaços ilimitados, profundezas abismais, luz e treva. sigo pensar em n e n h u m a outra obra que proporcione um para-
N e n h u m tema ou cenário, diferentes daqueles q u e ele escolhe lelo mais interessante: dois livros escritos por dois grandes músi-
em O paraíso perdido, podiam proporcionar-lhe esse campo cos cegos, cada um deles trabalhando numa língua de sua pró-
de ação para a espécie de imagens nas quais ele se superou, pria criação baseada no inglês), realiza esse movimento peculiar
ou fazer jus àqueles poderes de imaginação visual q u e nele foram cm busca de um reajuste da maneira de apreensão por parte
precários. do leitor. A ênfase recai sobre o som, e não sobre a visão, sobre
Os absurdos e as discrepâncias para os quais, em sua maio- a palavra, c não sobre a idéia; e, ao final, é a versificação invul-
ria, Johnson chama a atenção — e que, tanto q u a n t o possam gar que constitui o signo mais inequívoco da mestria intelec-
ser adequadamente isolados dessa maneira, ele corretamente tual de Milton.
condena — poderão aparecer, creio eu, n u m a proporção mais No q u e se refere ao problema da versificação de Milton,
justa se os considerarmos em relação a esse julgamento geral. tanto q u a n t o sei, muito pouco se escreveu. Temos o ensaio de
Não julgo que devêssemos tentar ver muito claramente qual- Johnson no The Rambler, que merece mais atenção do que
quer cena que Milton descreve: elas deveriam ser aceitas como recebeu, c dispomos também de um breve tratado de Robert
uma fantasmagoria errática. Lamentarmo-nos porque de início Bridges sobre a métrica de Milton, Milton's prosody. Refiro-
nos deparamos com uma pessoa perversa "acorrentada sobre o me a Bridges com respeito, pois n e n h u m poeta de nossa época
lago ardente' , e depois de um ou dois minutos vê-la percorrer deu uma atenção tão rigorosa à métrica quanto ele. Bridges cata-
o seu caminho até a margem, é esperar por uma espécie de dis- loga as sistemáticas irregularidades que conferem permanente
crepância que o mundo ao qual Milton nos introduziu não requer. variedade ao verso de Milton, e não consigo descobrir nenhuma
Essa limitação do poder visual, semelhante ao limitado inte- falha em sua análise. Mas, embora tais análises sejam interessan-
resse de Milton pelos seres humanos, torna-se não somente tes, não julgo que sejam esses os meios mais adequados para
uma falha desprezível, mas uma virtude positiva, q u a n d o visi- nos oferecer uma apreciação do ritmo peculiar de um poeta.
Parece-me também que o verso de Milton é particularmente
11. Eliot alude aqui ao ensaio anterior, " M i l t o n I " . ( N . T . ) refratário à decifração de seus segredos quando apenas um deles
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T. S. ELIOT 212
MILTON II

é submetido a exame, pois seu verso não é elaborado dessa nossa língua. O que chama a atenção no parágrafo de Milton,
maneira. Ε o periodo gramatical, a oração e, mais ainda, o pará- entretanto, é que cie representa o julgamento dc um homem
grafo o que constitui a unidade do verso miltoniano; e a êntase que não tinha em absoluto um ouvido surdo, mas simples-
colocada em sua estrutura é a mínima necessária para fornecer mente educado, para a música verbal. Dentro dos limites da
um modelo oposto à estrutura do período. E somente no período poesia de sua própria época, Johnson é um excelentc árbitro
que se pode encontrar o comprimento de onda do verso milto- dos relativos méritos dc diversos poetas que escreveram verso
niano; é sua capacidade de dar a cada parágrafo u m a forma per- branco. Mas, no todo, o verso branco de sua época poderia
feita e inigualável, de tal m o d o que a plena beleza do verso só mais propriamente ser chamado de verso arrímico; e em nenhum
pode ser desfrutada em seu contexto, e sua destreza em traba- lugar essa diferença é mais visível do que num verso de uma
lhar com unidades musicais mais amplas do que a de qualquer tragédia de sua autoria, Irene12: o fraseado é admirável, o estilo
outro poeta, o que, a meu ver, constitui a mais convincente evi- elevado e correto, mas cada verso clama por outro que rime com
dencia da suprema mestria de Milton. É impossível extrair do ele. Na verdade, é somente com trabalho, ou graças a uma ins-
verso rimado o sentimento peculiar, quase u m a súbita transição piração ocasional, ou por submissão à influência de dramatur-
sem fôlego, transmitido pelos longos períodos de Milton, c tão- gos mais velhos, que o verso branco do século XIX obtém êxito
somente por eles. Na verdade, essa mestria expressa u m a evidên- ao tornar a ausência da rima inevitável e justa, com a justeza
cia mais convincente de sua força intelectual do que o alcance de Milton. Até mesmo Johnson admitiu não poder imaginar
de quaisquer idéias que ele haja inventado ou tomado de emprés- q u e Milton fosse um artesão da rima. E nem levou o século
timo. Ser capaz de dominar tantas palavras ao mesmo t e m p o é XIX a obter sucesso ao conferir ao verso branco a flexibilidade
o testemunho de um espírito da mais excepcional energia. de que ele necessita se o tom da linguagem comum, ao abor-
dar os tópicos da comunicação ordinária, tiver dc ser empre-
E interessante nesse ponto recordar as observações gerais
gado; de m o d o que, q u a n d o nossos modernos usuários do verso
sobre o verso branco, que uma consideração sobre O paraíso
branco não conseguem tangenciar o sublime, freqüentemente
perdido instigou Johnson a fazer em relação ao fim de seu ensaio.
caem no ridículo. Milton aperfeiçoou o verso branco não-dramá-
"A música dos versos heróicos ingleses fere o ouvido dc
tico e, ao mesmo tempo, lhe impôs limitações, difíceis de supe-
m o d o tão indistinto que facilmente se perde, a menos q u e as
rar, relativamente ao emprego que cie pode ter se suas maiores
sílabas de cada verso colaborem em conjunto; essa colaboração
possibilidades musicais forem passíveis de ser exploradas.
só pode ser obtida pela preservação de cada verso dissociado
Compararei afinal minha própria atitude, como a dc um
do outro n u m sistema distinto de sons; e essa distinção é obtida
representante típico dc uma geração de vinte c cinco anos atrás,
e preservada pelo artifício da rima. A variedade de pausas, dc
com minha presente atitude. Julguei aconselhável considerar
que tanto se gabam os amantes do verso branco, transforma as
os assuntos na ordem em que os tenho considerado para discu-
medidas métricas de um poeta inglês cm períodos de um decla-
tir; em primeiro lugar, as censuras e difamações que suponho
mador; e existem apenas alguns competentes e privilegiados lei-
terem validade permanente, e que foram feitas melhor por
tores de Milton capazes de perceber onde os versos terminam
Johnson, no sentido de esclarecer as cafcsas, e a justificativa,
e principiam. O verso branco, disse um crítico sagaz, parece ser
da hostilidade a Milton por parte de alguns poetas numa deter-
um verso destinado apenas ao olho. "
minada conjuntura. E desejo esclarecer aquelas virtudes dc Mil-
Alguém na platéia pode recordar q u e essa última observa- ton que particularmente me impressionam, antes de explicar
ção, com palavras muito semelhantes, já foi feita muitas vezes, por que considero que o estudo de seu verso poderia afinal ser
uma geração literária atrás, sobre o "verso livre" utilizado na proveitoso aos poetas.
época; e mesmo sem esse estímulo de Johnson me teria ocor-
rido declarar que Milton é o mestre supremo do verso livre em 12. Ver nota 25 a "Johnson como critico e p o e t a " . ( N . T . )
214 T. S ELIOT MILTON II

Sugeri em diversas ocasiões q u e as mudanças importantes a um de seus mais importantes deveres. É que a poesia deveria
na linguagem do verso inglês, que estão representadas pelos não apenas ajudar a purificar a língua da época, mas também
nomes de Dryden e Wordsworth, p o d e m ser caracterizadas a evitar que ela se transforme muito rapidamente: um desen-
como tentativas bem-sucedidas de escapar a u m a linguagem volvimento demasiado rápido da língua poderia constituir um
poética que deixou de ter relação com a maneira de falar de desenvolvimento no sentido de uma gradual deterioração, e
nossos dias. Esse é o sentido dos Prefácios de Wordsworth. Em esse é o risco q u e corremos hoje em dia. Se a poesia do resto
princípios do presente século, uma outra revolução na maneira deste século mantiver a linha de desenvolvimento que me
de falar — e tais revoluções trazem em seu bojo u m a alteração parece, ao rever a evolução da poesia durante os últimos três
da métrica, um novo apelo ao ouvido — foi o p o r t u n a . Aconte- séculos, seguir o curso correto, haverá de descobrir novas e
ce, inevitavelmente, que os jovens poetas engajados nessa revo- mais refinadas formas de dicção agora estabelecidas. Nessa bus-
lução exaltarão os méritos dos poetas q u e não são responsáveis ca, ela teria muito a aprender com a estrutura do longo verso
pelas qualidades que eles se e m p e n h a m fervorosamente em con- miltoniano; poderia t a m b é m evitar o perigo de um servilismo
cretizar. É até justo, e decerto inevitável, que sua prática, mais à linguagem coloquial e aos jargões correntes. E poderia ainda
influente ainda do que seus pronunciamentos críticos, deva aprender que a música do verso é mais poderosa na poesia, que
atrair seus próprios leitores para os poetas por cuja obra foram tem um significado definido expresso nas mais apropriadas pala-
eles influenciados. Essa influência tem certamente contribuído vras. Os poetas poderiam ser levados a admitir que o conheci-
para ampliar o gosto (se cabe aqui distinguir o gosto da moda) m e n t o da literatura de sua própria língua, associado ao conhe-
por Donne. Não creio que n e n h u m poeta m o d e r n o , a menos cimento da literatura na construção gramatical de outras lín-
que se encaixe n u m a atitude de rabugice irresponsável, tenha guas, constitui uma parte valiosa do equipamento daqueles
sempre negado os consumados poderes de Milton. E c u m p r e q u e escrevem em verso. E poderiam também, como já insinuei,
dizer que a dicção de Milton não constitui u m a dicção poética dedicar algum estudo a Milton como aquele que, fora do teatro,
no sentido de que equivale a u m a moeda depreciada: q u a n d o é o mestre supremo em nossa língua da liberdade dentro da
violenta a língua inglesa, ele não está imitando n i n g u é m , e ele forma. Um estudo do Sansão aguçaria a apreciação de qual-
é inimitável. Mas, como já disse, Milton representa a poesia quer um q u a n t o à irregularidade justificada, colocando-o ainda
no extremo limite da prosa; e um de nossos princípios era o em guarda contra a irregularidade gratuita. Ao estudarmos O
de que o verso teria as virtudes da prosa, de que a dicção poé- paraíso perdido, tornamo-nos capazes de perceber que o verso
tica deveria vir a ser incorporada à linguagem culta contemporâ- está continuamente acionado pelo distanciamento do metro
nea, antes de pretendermos que esta se elevasse à condição de regular e pelo retorno a ele; e que, em comparação com Milton,
poesia. Outro princípio era o de que a temática e as imagens somente a custo um escritor que haja posteriormente cultivado
poéticas deveriam estender-se aos assuntos e às questões relacio- o verso branco foi capaz de exercer de algum modo qualquer
nadas a um h o m e m ou a uma mulher modernos; de q u e pre- liberdade. Podemos também ser induzidos a pensar que a
tendemos o não-poético, de que tentamos até mesmo a trans- monotonia de um verso incapaz de ser decomposto em seus
mutação de matéria refratária em poesia, e em palavras e frases elementos métricos esgota a atenção ainda mais rapidamente
que não haviam sido anteriormente utilizadas na poesia. Ε o do q u e a monotonia de um metro regular. Em suma, parece-
estudo de Milton de nada nos valia aqui: ele era apenas um me agora que os poetas estão suficientemente liberados do peso
obstáculo. da reputação de Milton para abordar o estudo de sua obra sem
risco e com proveito para a sua poesia e para a língua inglesa.
Não podemos em literatura, como tampouco na vida, viver
em permanente estado de revolução. Se cada geração de poetas
assumisse o compromisso de atualizar a dicção poética relativa-
mente à linguagem falada, a poesia fracassaria no que se refere
J O H N S O N C O M O CRÌTICO E POETA 217

lives of the poets as poucas pessoas cultas que o leram não che-
gam a uma dúzia, e dessa dúzia, a metade se lembra sobretudo
das passagens com relação às quais todos discordam. Uma das
razões para a indiferença com que se encara a sua crítica é a
de que ele não iniciou n e n h u m movimento poético: Johnson
era um poeta secundário do fim de um movimento que fora
JOHNSON lançado por poetas que lhe eram superiores, e seus poemas refle-
COMO CRITICO E POETA 1 tem uma vertente pessoal de um estilo que se encontrava bem
definido. Dryden e Coleridge, este de parceria com Wordsworth,
representam para nós algo de novo na poesia de sua época. O
q u e Dryden escreveu sobre poesia é, portanto, mais excitante
do que o que Johnson escreveu. Em seus ensaios críticos, Dryden
antecipou as leis da linguagem poética a que se submeteriam
duas gerações vindouras, enquanto os conceitos de Johnson são
retrospectivos. Interessado na defesa de sua própria maneira
de escrever, Dryden parte do geral para o particular, e critica
ι determinados poetas apenas para ilustrar sua argumentação;
Johnson, ao criticar a obra de certos poetas — e de poetas cuja
É sobretudo como crítico, como o autor de The lives of the obra já estava concluída —, é levado a generalizar. As situa-
poets, que Johnson me interessa aqui. Mas t e n h o algo a dizer ções históricas em que ambos viveram são absolutamente distin-
também sobre sua poesia, pois julgo q u e , ao estudar a crítica tas. O fato de um autor escrever do princípio ao fim de uma
da poesia exercida por um crítico q u e é t a m b é m poeta, só época não deveria, afinal de contas, ser relevante para o julga-
podemos apreciar essa crítica — seus padrões, seus méritos e m e n t o que possamos fazer sobre sua estatura, mas inclinamo-
suas limitações — à luz do género de poesia que ele escreveu. nos a favorecer injustamente aquele primeiro. Não há nada o
Considero Johnson um dos três maiores críticos de poesia da lite- que dizer sobre a influência de Johnson, e nos deixamos sem-
ratura inglesa (os outros dois são Dryden e Coleridge). Iodos pre impressionar por uma reputação influente, pois a influên-
os três foram poetas, e no caso de todos eles o estudo de sua cia é u m a forma de poder. Mas q u a n d o a maré de influência
poesia é altamente relevante para o estudo de sua crítica, pois que um escritor pode desencadear para uma ou duas gerações
cada um deles estava interessado em determinada espécie de atingiu seu ponto culminante, e uma outra força impeliu as
poesia. águas em direção diferente, e q u a n d o várias outras marés hou-
verem subido e baixado, grandes escritores permanecem com a
Se essa relação direta é menos aparente no caso de Johnson
mesma influência potencial no futuro. Resta saber se a influên-
do que nos de Dryden e de Coleridge, isso se deve a motivos
cia literária dc Johnson, assim como, no âmbito político, a de
banais. E grande a bibliografia existente sobre Johnson, mas é
seu amigo de outro partido, Edmund Burke, 3 simplesmente
relativamente pouco o que se escreveu sobre seus textos. Seus
não aguardam uma geração que ainda não nasceu para recebê-la.
dois grandes poemas 2 têm sido negligenciados, e q u a n t o a The

3 Burke, E d m u n d . Estadista c escritor inglês (Dublin, 1729 — Beaconsfield. Ingla-


1. Conferência da Ballard Matthews, pronunciada na University College,
terra, 1797). Membro da Câmara dos C o m u n s desde 1765, tornou-se um dos mais
Gales do Norte, em 1944. ( Ν . A . )
destacados integrantes do partido whig. Suas principais (»bras são A philosophical
2. Sem dúvida alguma, London, a poem (1738) e The vanity of human wishes enquiry into the origin of our ideas of the sublime and beautiful ( 1756) e On con-
(1749), já citados no ensaio " A s três vozes da p o e s i a " , nesia coletânea. ( N . T . ) ciliation with A menca (1775). ( N . T . )
J O H N S O N C O M O CRÍTICO F . POETA 219
232 T. S. ELIOT

o próprio Johnson, embora haja feito o melhor com relação a


Um óbvio obstáculo ao nosso prazer q u a n d o lemos The
cada um, não teria considerado que todos esses autores mereces-
lives of the poets como um todo — e devemos lê-lo como um
sem figurar na coletânea. Todavia, sabemos que Johnson tinha
todo se quisermos avaliar a magnitude da realização de Johnson
certa liberdade para acrescentar nomes à coleção, pois nos disse-
é que não lemos as obras de muitos dos poetas ali incluídos,
ram que ele sugeriu três dos poetas ali inclusos, e sobre um
e n e n h u m a promessa de prazer ou de enriquecimento nos pode
deles. Sir Richard Blackmore, 1 ' terei algo mais a dizer.
ser feita para nos persuadir a lê-los. Li alguns dos poetas meno-
res do século XVIII para compreender por q u e Johnson os esti- O fato de que os antecessores e contemporâneos de Shakes-
mava; em outros dei apenas uma olhadela; e há alguns mais peare, bem como os poetas metafísicos anteriores a Cowley, 10
que Johnson recomenda com tal indulgência, ou que aborda não fossem vendáveis naquela época teria justificado o veto dos
dc maneira tão superficial, que sequer me dei o trabalho de livreiros a qualquer proposta dc Johnson quanto à sua inclusão.
consultá-los. Ninguém desejaria 1er os versos de Stepney 4 ou Mas não há n e n h u m a evidência de que Johnson pretendesse
de Walsh: 5 c somente a custo acredito q u e algum candidato incluí-los; os fatos demonstram que seu conhecimento sobre
ao doutorado poderia ser estimulado por seus orientadores a eles era muito limitado e que ele estava absolutamente satisfeito
dedicar sua tese ao estudo da obra de Christopher Pitt. 6 A afir- cm editar uma antologia poética que começava por Cowley e
mação dc Johnson de que os poemas de Yalden merccem lei- Milton. O belíssimo prefácio a Shakespeare é um trabalho iso-
tura atenta' não é mais convincente do q u e u m a carta de apre- lado, e cm nada revela a consciência da necessidade de avaliar
sentação escrita para um visitante do qual o escritor deseja se qualquer poeta em relação a seus antecessores e contemporâ-
livrar. O estudante interessado na história do gosto literário neos. Todavia, essa inocência quanto aos métodos históricos e
poderá sobressaltar-se com a observação de Johnson dc que "tal- comparativos, que a crítica moderna toma como garantia, con-
vez n e n h u m a composição em nossa língua haja sido lida mais tribui para o mérito singular desse prefácio; e as virtudes de
vezes do que a 'Choice', de Pomfret , 8 e desejará descobrir Shakespeare para as quais ele chama a atenção são em sua maio-
por quê. Mas o leitor comum provavelmente ficará mais desa- ria aquelas em que Shakespeare foi inigualável, as que ele não
pontado com as omissões dc Johnson do que impelido à curio- compartilha, nem mesmo no menor grau, com os outros drama-
sidade por todas as suas inclusões. Todo m u n d o sabe que a cole- turgos.
tânea representava a escolha de um grupo de livreiros, ou edito- Essa limitação do campo da poesia inglesa é uma impor-
res, que presumivelmente consideravam vendáveis as obras de tante característica positiva. Seria um erro capital atribuir a
todos esses autores e que certamente julgavam, com mais evi- estreita faixa dos interesses dc Johnson apenas à ignorância,
dente razão, que os prefácios do Dr. Johnson compensariam ou apenas à falta de avaliação crítica, ou mesmo a ambas. Seria
de longe a falta de direitos autorais ao recomendarem sua edi- talvez mais verdadeiro dizer que sua ignorância era devida à
ção para o público. Podemos estar razoavelmente certos de q u e falta de compreensão do que dizer que sua falta de compreen-
são era devida à ignorância, mas a coisa não é tão simples assim.
4. Stepney, George. Poeta inglês (1663-1707). ( N . T . ) Se censurarmos um crítico do século XVIII por não ter possuído
5. Walsh, William. Poeta inglês ( 1663-1708). autor de poemas adoravelmente eró-
ticos, como "The jealousy" e " l h e desperate lover" ( N . T . )
6. Pitt, Christopher Poeta inglês (1669-1748), famoso no setulo XVIll por sua tra- 9. Blackmore, Sir Richard. Poeta inglês (1655-1729), autor de poemas heróicos,
dução da F.neida ( N . T . ) filosóficos e religiosos Foi louvado por Addison no Spectator. ( N . T . )
7. Yalden. Thomas. Poeta inglês (1670-1737). autor dos Hymns to darkness, cm 10. Cowley. Abraham. Poeta inglês (Londres. 1618 — Chcrtsey, 1667), perten-
oposição aos Hymns to light. ( N . T . ) cente ao g r u p o dos " m e t a f í s i c o s " e cuja obra está na raiz do ensaio que Johnson
escreveu sobre a poesia metafísica. Deixou poemas anâcreônticos (" l h e lover' ) c
8. Pomfret, J o h n . Poeta inglês (1667-1702), autor dc Poems of circumstance
odes {Odes) à maneira de Pindaro. Sua poesia, que representa a decadência do bar-
(1669) e do p o e m a citado por J o h n s o n , " C h o i c e " , sobre o tema da filosofia da
roco inglês, foi definitivamente reunida em Works (1905-1906). ( N . T . )
felicidade. ( N . T . )
232 T. S. ELIOT J O H N S O N C O M O CRÍTICO F . POETA 221

u m a capacidade dc apreciação moderna, histórica e abrangente, cer de muitas coisas que somos obrigados a abandonar para
devemos adotar com relação a esse mesmo crítico a atitude cuja que ela se realize. Não vemos com bons olhos especialmente a
ausência nele reprovamos; precisamos não ser estreitos ao acusá- idéia de que, para obter uma coisa, devamos admitir dar em
lo de estreiteza, ou preconceituosos ao acusá-lo de preconceito. troca uma outra dc valor. Os caminhos da história estão, c sem-
Johnson tinha um ponto de vista positivo que não coincide com pre estarão, juncados desses valores perdidos; e a visão limitada
o nosso, um ponto de vista q u e d e m a n d a um vigoroso esforço desses valores talvez seja uma qualificação necessária para quem
de imaginação para comprccndê-lo, mas se conseguirmos quer q u e aspire a tornar-se um reformador político e social. O
entendê-lo, perceberemos sua ignorância ou sua sensibilidade aperfeiçoamento da língua, que o século XVIII conquistou, foi
sob u m a luz diferente. Walter Raleigh 11 diz de Johnson q u e um aperfeiçoamento genuíno: somente uma geração futura
" e l e havia lido imensamente para escrever o Dictionary,12 mas podia tomar consciência dessas perdas inevitáveis.
o conhecimento da literatura inglesa q u e adquiriu desse m o d o Johnson, com toda a certeza, viu o corpo da poesia inglesa
não era sempre aproveitável para um propósito distinto. Sob do ponto de vista que adotou para assegurar um progresso,
certos aspectos, isso constituía até mesmo um obstáculo. O Dic- um refinamento da língua c da versificação segundo linhas defi-
tionary de Johnson foi concebido primordialmente para propor- nidas, c que implicavam uma confiança na correção e na perma-
cionar um padrão de tratamento polido, a d e q u a d o aos ideais nência do estilo que havia sido conquistado — uma confiança
clássicos da nova época. Ele se viu obrigado, portanto, a se ante- de tal m o d o mais poderosa do que aquela que podemos ter
cipar aos elisabetanos menores, cuja autoridade ninguém reco- no estilo, ou estilos, de nossa época, que somente a custo pode-
nheceu, e cuja liberdade e extravagância eram contrárias ao seu ríamos imaginá-la como qualquer coisa menos como um defeito
projeto". de sua capacidade crítica. A ênfase sobre (c a preocupação
Para o poeta e o crítico do século XVII1, os valores da lín- com) o estilo e as normas comuns que Johnson revela — o que
gua e da literatura estavam mais i n t i m a m e n t e associados do nos dá às vezes á impressão de que ele julga os grandes gênios
que parece aos escritores e ao público leitor dc nossos dias. A pelos padrões adequados apenas aos espíritos menores — pode
excentricidade ou a esquisitice eram condenáveis: um poeta era nos induzir a superestimar o valor de uma poesia de poucos
louvado não porque inventasse u m a forma original de lingua- recursos em detrimento da obra de determinado gênio que se
gem, mas por sua contribuição à língua c o m u m . Johnson e os mostre menos obediente às regras. Todavia, o embotamento
homens de seu t e m p o observaram q u e se registrara um pro- que podemos atribuir a Johnson é raramente visível em suas
gresso no refinamento e na precisão da língua, assim como na afirmações positivas, evidenciando-sc apenas pelo silêncio, e
finura e no decoro dos costumes, e tais conquistas, por serem esse silêncio é a prova, não de uma insensibilidade pessoal,
recentes, eram altamente estimadas. Johnson é capaz de censu- mas de uma atitude que nos é difícil assumir. Do ponto de
rar Dryden por seus maus costumes e seu mau gosto na contro- vista de Johnson, a língua inglesa da época anterior não estava
vérsia. Ora, observa-se geralmente que, na exaltação do sucesso suficientemente avançada, encontrando-se ainda " c m sua infân-
relativo a uma empresa que nos arrebata, podemos nos esque- c i a " ; a língua com a qual os poetas mais antigos trabalhavam
era ainda muito grosseira para que estes fossem tratados cm
11. Raleigh ou Ralegh. Sir Walter. Escritor inglês (Hayes. Devonshire, c 1552 pé de igualdade com os dc uma época mais refinada. Suas obras,
Londres. 1618). Participou de diversas c a m p a n h a s militares e organizou expedições
de exploração na América do Norte. C o n d e n a d o à prisão p e r p e t u a , escreveu no cár-
caso não estivessem em nível muito alto, constituíam um objeto
cere u m a Htslory of the world (1614). Atribuem-se-lhe alguns notáveis poemas de estudo mais apropriado a um antiquário do que a um público
incluídos na coletânea anónima Elizabethan song books O trecho citado por Eliot leitor culto. A sensibilidade de qualquer época do passado dâ
pertence a Remains (10 vols., 1651). ( N . T . )
sempre a impressão dc que provavelmente é mais limitada do
12. Raleigh se refere aqui ao Dictionary of the English language, em dois volumes,
que Johnson publicou em 1755. ( N . T . ) que a nossa, pois estamos naturalmente muito mais cônscios
T. S. ELIOT J O H N S O N C O M O CRÍTICO F . POETA
232 223

da falta da consciência de nossos ancestrais cm relação às coisas a pari ir de sua observação de que Ben Jonson se assemelhava a
dc que somos conscientes do que da falta de consciência, em D o n n e mais na aspereza dc seus versos do que no matiz de
seus s e n t i m e n t o s " . Na verdade, hoje em dia encaramos Donne
nós mesmos, relativamente às coisas q u e eles perceberam c das
como um competentíssimo artesão, como um artista do verso
quais não temos a menor idéia. Podemos perguntar, portanto,
de notável virtuosismo; e o que Johnson designa "aspereza"
se não há u m a distinção capital a ser estabelecida entre a sensi-
chega aos nossos ouvidos como uma música sutilíssima. Mas o
bilidade limitada — lembrando aqui q u e a a m p l i t u d e mais
julgamento crítico sobre o Lycidas, tão bem conhecido quanto
extensa da história de que temos conhecimento tende a nos
o que ele emitiu sobre os poetas metafísicos, também agride
dar a impressão de que todas as mentes do passado são limita-
nossa sensibilidade. Johnson afirma que nesse poema "a dicção
das — ca sensibilidade precária; e, conseqüentemente, pergun- é ríspida, os ritmos indecisos e as cadências desagradáveis".
tar se Johnson, dentro de seus próprios limites, não seria um Podemos julgar possível concordar com algumas outras observa-
crítico tão sensível q u a n t o criterioso, se as virtudes que ele louva ções de Johnson sobre o Lycidas. Se considerarmos que uma ele-
na poesia não persistiriam sempre como virtudes e se as espé- gia requer a justificativa de uma tristeza sincera e profunda,
cies de defeito q u e ele censura não permaneceriam hoje como poderemos chegar à conclusão de que o poema é frio. A associa-
defeitos que merecessem ser evitados. ção de imagens cristãs e clássicas está de acordo com o gosto
Mesmo que eu ainda não haja conseguido me expressar barroco q u e não agradava ao século XVIII, c devo admitir de
mais claramente, espero ter feito algo para perturbar-lhes o espí- minha parte que jamais me senti gratificado com o espetáculo
rito e prepará-los para uma investigarlo sobre a crítica de que de padre C a m u s n e São Pedro caminhando juntos na mesma
Johnson era insensível à música do verso. Um leitor moderno procissão, como uma dupla de professores a perambular através
que tenha lido The lives of the poets não se lembra com muita da King's Parade 1 6 para ouvir o sermão universitário. Mas segu-
clareza dc nada do que Johnson observa sobre a versificação ramente é a virtude musical que veste os absurdos da grandiosi-
de Donne a do Lycidas1 ' de Milton. Se não nos recordarmos de dade, tornando t u d o aceitável. Cabe-nos, pois, perguntar: seria
n e n h u m a outra opinião dc Johnson, recordemos a seguinte: Johnson insensível à música do verso? Teria ele, como toda a
" O s poetas metafísicos eram homens de saber q u e se sua geração, u m a audição defeituosa?
e m p e n h a r a m ao máximo em exibi-lo, mas desgraçadamente,
Não há talvez razão mais irredutível das extremas diferen-
ao decidir engastá-lo na rima, cm vez de escrever poesia, escre-
ças de opinião entre respeitáveis críticos dc poesia do que uma
veram apenas versos, e com muita freqüência versos que depen-
diferença de ouvido; e por o u v i d o " , cm sc tratando de poesia,
diam mais do teste dos dedos do que do ouvido, pois a modu-
e n t e n d o uma apreensão imediata de duas coisas que podem ser
lação era tão imperfeita que os versos só foram reconhecidos consideradas abstratamente uma isolada da outra, mas que pro-
como tais graças à contagem das sílabas duzem seu efeito em uníssono: o ritmo e a dicção. Elas não exis-
No que toca à obra de Cleveland, 1 4 c de outros metafísicos tem uma sem a outra, pois a dicção — o vocabulário e a cons-
menores, esse julgamento seria bastante razoável, mas pode- trução — determina o ritmo, e os ritmos que um poeta consi-
mos estar certos de que Johnson estendia essa censura a D o n n e dera congeniais determinam sua dicção. É a imediata impressão
favorável do ritmo c da dicção que nos dispõe a aceitar um
13. Escrito cm 1638, o Lycidas c u m a elegia bucólica sobre a morte dc um a m i g o
dc Milton dos tempos dc C a m b r i d g e , Edward King (1612-1637). q u e morreu afo- poema, cstimulando-nos a dar-lhe mais atenção e a descobrir
gado d u r a n t e uma viagem à Irlanda. (N T . )
14. Cleveland ou Cleiveland, J o h n . Poeta e h u m o r i s t a inglês ( L o u g h b o r o u g h . 15. Camus simboliza o regato C a m . que passa em Cambridge, alegoria da Univer-
1613 — ? 1658). p e r t e n c e n t e ao g r u p o dos metafísicos. Iornou-sc mais conhe- sidade q u e . como Milton, presta h o m e n a g e m a Edward King. (N. 1.)
cido na m e t a d e do século XVII gradas às i n ú m e r a s edições de seus poemas, sobre-
16. Famosa rua de Cambridge, que leva à Capela do Rei, o n d e sào proferidos os
t u d o " T h e rebel s c o t " . A edição definitiva de suas obras, sob o título de Poems,
sermões. ( N . T . )
c de 196*7. ( N . T . )
224 T. S. ELIOT
J O H N S O N C O M O CRITICO E POETA 225

outras razões para apreciá-lo. Esse contato imediato pode desa- do mérito que nos parece o mais conspícuo, e rejeitar Donne
parecer na leitura da poesia de u m a geração para outra. Não é devido à rudeza de sua dicção. E quando Johnson escreve sobre
senão q u a n d o uma literatura atinge a maturidade quando, Shakespeare, surpreendemo-nos que ele silencie sobre a mestria
talvez, acaba de superar esse m o m e n t o e penetra, mais adiante, da versificação. Não houve aqui n e n h u m preconceito contra
n u m a época posterior que os críticos se tornam capazes de uma maneira particular de escrever, como q u a n d o ele discute
perceber que o ritmo e a dicção não se satisfazem simplesmente os metafísicos, nem qualquer antipatia pessoal cm relação ao
em melhorar, ou deteriorar-se, de uma geração para outra, mas h o m e m , como q u a n d o ele fala de Milton, mas apenas a mais
o fato é que ocorre também uma modificação de extrema pureza, aguda observação, a mais alta estima, o mais justo e generoso
de modo que algo está sempre sendo perdido, assim como algo louvor; e Johnson concede a Shakespeare o mais elevado nível
está sendo ganho. Pode-se observar não apenas na perfeição entre os poetas, por todas as razões possíveis, menos as da
de qualquer estilo, mas t a m b é m no a m a d u r e c i m e n t o de um beleza do ritmo c da dicção.
indivíduo, que certas potencialidades só chegam a ser fruídas
Sustento que não deveríamos levar em conta essa miopia,
se outras forem abandonadas; a rigor, parte do prazer q u e usu-
que para nós é muito estranha, como um defeito pessoal dc
fruímos com a literatura do passado, como da alegria q u e nos
Johnson, o que diminui sua estatura como crítico. O que lhe
dão as crianças, reside na consciência q u e temos de q u e muitas
falta é um sentido histórico cujo momento ainda não havia che-
potencialidades não serão de todo realizadas. Sob esse aspecto,
gado. Eis aqui algo que Johnson nos pode ensinar, pois, se con-
a literatura primitiva pode ser mais rica do q u e aquela q u e se
seguirmos chegar a esse sentido histórico, nossa única linha de
lhe seguiu. Uma literatura difere de u m a vida h u m a n a porque
conduta será a dc desenvolvê-lo daqui em diante; c uma das
pode regressar ao seu próprio passado e desenvolver alguma
maneiras pelas quais podemos fazê-lo em nós mesmos é por
capacidade que foi a b a n d o n a d a . Assistimos em nossa própria
meio da compreensão de um crítico no que ele não é aparente.
época a um renovado interesse por D o n n e e, depois deste, por
Johnson não chegou a compreender o ritmo e a dicção que lhe
poetas mais antigos, como Skclton. 1 U m a literatura pode tam-
pareciam arcaicos, não devido à falta de sensibilidade, mas por
bém renovar-se a partir da literatura de u m a outra língua. Mas
causa de u m a especialização da sensibilidade. Se o século XVIII
a época em que Johnson viveu não era velha o bastante para
admirasse a poesia das épocas passadas do mesmo modo como
que sentisse a necessidade de u m a renovação como essa, pois
o fazemos, o resultado seria o caos: não haveria nenhum século
acabara de alcançar a sua própria m a t u r i d a d e . Johnson podia
XVIII como o conhecemos. Essa época não teria rido a convic-
imaginar a literatura de sua época como aquela q u e havia alcan-
ção pára aperfeiçoar os gêneros poéticos que aperfeiçoou. A sur-
çado o padrão a partir do qual a literatura do passado podia
dez do ouvido de Johnson para certos gêneros dc melodia era
ser julgada. N u m a época como a nossa, em q u e a novidade é
a condição necessária à sua agudeza dc sensibilidade cm relação
amiúde admitida como a principal exigência da poesia, caso se
à beleza verbal dc outros gêneros. Dentro de seu raio de ação
pretenda que ela desperte nossa atenção, e na qual os conceitos
c dc seu tempo, Johnson tinha o ouvido tão sensível quanto o
de pioneiro e de inovador estão entre os mais honrosos títulos,
de qualquer outro. Freqüentemente, quando ele chama a aten-
é difícil assimilar esse ponto de vista. Percebemos facilmente
ção para as belezas ou as deficiências da obra dos poetas sobre
seus absurdos, e maravilhamo-nos diante da segurança com q u e
os quais escreve, devemos reconhecer que ele está certo, e que
Johnson foi capaz dc censurar o Lycidas, baseado na ausência
nos revela algo que não conseguiríamos observar sem a sua ajuda.
Isso pode atestar que seus critérios têm um valor permanente.
17. Skelton, J o h n . Poeta ingles (Diss, Norfolk, c. 1465 — Londres, 1529) da epoca
Tudor. Foi um dos maiores representantes da literatura satírica de seu país. como Há uma outra consideração a ser feita quanto ao problema
o atestam The boke of Phyllyp sparowe, Ballade of the Scottyshe kyng (1513), da diferença entre as sensibilidades de um e de outro século
Speke, parrot (1521) e Why come ye not to court? (1522) (N T.)
que é digna de nota. Trata-se do problema da ênfase sobre o
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som ou sobre o sentido. A poesia mais elevada, cumpre admi- com certa curiosidade. Cheguei à conclusão de que os elogios
tir, passa nos mais severos exames em ambos os assuntos. Mas de Johnson a esse poema revelam um grave equívoco em dois
há uma grande parte da boa poesia q u e firma sua reputação sentidos. Em primeiro lugar, o poema infringe quase todas
graças à sua excelência em apenas u m a dessas vertentes. A ten- aquelas regras de excelência que o próprio Johnson, ao abordar
dência moderna é a de acolher até certo p o n t o a incoerência um poeta de maior estatura, estabelecera para o uso do terceto
do sentido, de ser tolerante com poetas q u e ignoram o q u e c do alexandrino sob a forma do dístico rimado. Em vez de
estão tentando dizer exatamente, contanto q u e o verso soe bem reservar o terceto (três versos que rimam juntos e o alexandrino
e apresente imagens surpreendentes e insólitas. Há, de falo, com a função do terceiro verso) para a conclusão de um período,
um certo mérito no delírio melodioso, q u e pode constituir uma onde essa terminação pode ser muito eficaz, Blackmore intro-
autêntica contribuição à literatura, q u a n d o efetivamente corres- duz um terceto quase de saída, e nos brinda com um alexan-
ponde àquele perene apetite da h u m a n i d a d e por um ocasional drino como o segundo verso de um dístico. Ε o que é pior: a
festim de címbalos e tambores. Todos desejamos nos sentir às versificação às vezes não é melhor do que a de um exercício
vezes um pouco embriagados, quer o estejamos, quer não, ainda de um escolar. Mas Johnson, como todos os bons anglicanos e
que entregar-se exclusivamente a certos gêneros de poesia im- todos os bons tories ™ abominava Hobbes, insigne ateu c totali-
plique perigos análogos àqueles q u e decorrem do uso imode- tário. Ele deve ter fechado os olhos a defeitos que teria repro-
rado do álcool. Além da poesia do som e, de um certo ponto vado um Dryden ou Pope devido ao prazer que sentia com os
de vista, ocupando uma posição intermediária entre a poesia seguintes versos que aludem àquele filósofo:
do som e a poesia do sentido . há a poesia q u e representa
uma tentativa para distender os confins da consciência h u m a n a At lenght Britannia's soil. immortal darnel
c relatar as coisas desconhecidas, para exprimir o inexprimível. Brought forth a sage of celebrated name,
Mas essa poesia não me interessa aqui. Entre os dois extremos Who with contempt on blest Religion trod.
do encantamento e do sentido temos sido hoje em dia, creio Mocked all her precepts, and renunced her God.
eu, mais facilmente seduzidos pela música do absurdo hilariante
do que satisfeitos com a inteligência e a sabedoria que se expres- Se aplicarmos a es ses versos o gênero de crítica minuciosa em
sam em medidas prosaicas. A época de Johnson, e o próprio que J o h n s o n se notabilizou, observaremos que o primeiro deles
Johnson, estavam mais inclinados por essa última escolha. J o h n - é ruim do ponto de vista gramatical, pois dame ( " d a m a " )
son era capaz de atribuir qualidade poética a muitas coisas que está gramaticalmente em oposição a soil ( "solo"), quando deve-
nos parecem apenas competentes e corretas; nós, por outro lado, ria estar a Britannia ( " G r ã - B r e t a n h a " ) ; e podemos censurar o
estamos excessivamente dispostos a aceitar como poesia o que segundo verso pela observação de que o nome de Hobbes não
não é nem competente nem correto. Perdoamos m u i t o ao som se tornou célebre senão muito após seu nascimento. Podería-
e à imagem; ele perdoava muito ao sentido. E um excesso mos esperar t a m b é m que a personificação da Religião, como
n u m a ou noutra direção equivale ao risco de trocar o efêmero u m a fêmea desamparada esmagada por Hobbes, fosse assaz
pelo permanente. Johnson às vezes se enganou. Aludi, pouco deselegante para o gosto de Johnson. Para mim, esse é o tipo
antes, a Sir Richard Blackmore. de descuido que mais severamente se deve reprovar num crí-
Impressionado pela afirmação de Johnson de que Creation, tico, um descuido q u e contraria seus próprios padrões de gosto.
de Blackmore, era sozinho um poema que "o teria feito passar
18. Membros do Partido Conservador o u . simplesmente, conservadores. (N.T.)
à posteridade como um dos cinco eleitos da Musa inglesa", c
19. " E n f i m , o solo da Grã-Bretanha, dama imortal! / Deu à luz um sábio de
por sua declaração dc q u e ele próprio recomendou que Black-
n o m e celebrado. / Q u e com desprezo esmagou sob os pés a santa Religião. I Zom-
more fosse incluído na coletânea que organizou, li o poema bou de todos os seus preceitos c rct.egou seu D e u s . " ( N . T . )
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E, em segundo lugar, a leitura que ti z do poema me leva a des- estilo graças a um princípio perverso e p e d a n t e " e que "ele
confiar de q u e Johnson deveria rejeitá-lo até mesmo em razão pretendia utilizar palavras inglesas com um idioma estrangei-
das matrizes de seu conteúdo, pois Johnson e isso é m u i t o r o " . Mas, após fazer essa crítica, Johnson lhe rende os maiores
importante com relação a ele era um dos anglicanos mais elogios, afirmando q u e Milton 'era um mestre de sua língua
ortodoxos, assim como um dos mais devotos cristãos de sua em toda a p l e n i t u d e " . E ao referir-se à fragilidade do verso
época, e n q u a n t o Blackmore me parece estar expressando um branco " h e r ó i c o " particularmente à dificuldade, q u a n d o é
estrito deísmo. Só me cabe supor q u e o deísmo impregnara a declamado, de preservar a identidade métrica de cada verso —
tal ponto a atmosfera do século q u e o nariz de Johnson não c, finalmente, após dizer tudo o que poderia ser dito contra o
conseguiu perceber-lhe o odor. verso branco, faz ele a generosa concessão: " N ã o posso me per-
Todavia, quero distinguir essa espécie de erro — a do crí- suadir a lamentar que Milton não tivesse escrito versos rimados,
tico que não aplica seus próprios padrões daqueles erros apa- pois não me cabe desejar que sua obra não seja o que ela é;
rentes que nascem dos princípios de um espírito particular num entretanto, como outros heróis, deve ser ele antes admirado
momento particular, e que de m o d o algum nos parecem erros do q u e i m i t a d o " . O reconhecimento da grandeza de Milton
da mesma tempera logo que conseguimos assimilar o ponto de como versiflcador é inequívoco. Mas há leis relativas ao uso das
vista de quem os comete. E assim q u e <e irão manifestar, após palavras e da construção fraseologica que Milton desafia. O
nos deixar de início surpresos, diversas observações de Johnson transgressor não deveria ser louvado pelas infrações; e um poeta
sobre os poetas que escreveram versos brancos. No q u e se refere de segunda ordem pode ser mais obediente às leis do que um
a essa espécie de verso, ele parece conferir o lugar de maior des- poeta de grande gênio. Assim, Akenside, na fatura global
de seus versos", pode ser mais correto do que Milton, e, se pre-
taque a Akenside, 20 de q u e m diz q u e " n a fatura global de seus
zarmos a correção, sob esse aspecto é superior a ele.
versos ele é talvez superior a qualquer outro que haja utilizado
o verso branco". Mesmo que não considerássemos o verso branco Não creio que a história do verso branco desde a época de
dos grandes poetas dramáticos de u m a época anterior — ou o Milton lhe dê um desmentido absoluto. "A música dos versos
verso dramático de Otway em seus melhores momentos —, essa heróicos ingleses fere o ouvido de modo tão indistinto", diz
parece à primeira vista uma afirmação extravagante. Johnson, " q u e facilmente se p e r d e . " E é verdade; o outro
Em nossos dias empregamos palavras de m o d o tão relaxado perigo é o de u m a pulsação monótona, que deixa por completo
q u e o pensamento de um escritor pode às vezes nos escapar de transmitir qualquer música. O que Johnson esqueceu de
pela simples razão de ele haver dito exatamente o q u e queria. observar é que Milton tornou o verso branco um recurso bem-
Para extrair o significado da afirmação de Johnson sobre Aken- sucedido para o poema heróico, graças à própria excentricidade
side, devemos primeiro comparar sua versificação com a de que Johnson condena.
outros usuários do verso branco em seu século; temos t a m b é m Todavia, Johnson fez com que o verso de Milton fosse visto
de comparar o que Johnson disse sobre os outros, e com o q u e como uma exceção. Ele admite que há propósitos para os quais
ele disse sobre o verso de Milton. Em seu ensaio sobre Milton, o verso branco permanece como um instrumento adequado,
vocês haverão de se lembrar que Johnson confirma as palavras muito embora não se preocupe cm definir e particularizar rais
de Addison, segundo q u e m a língua se degrada nas mãos de propósitos. Diz cie dos Night thoughts, de Young:21
Milton. Johnson prossegue dizendo que Milton "plasmara seu
21. Y o u n g . Edward. Poeta ingles (Winchester, Hants, 1683 - Wclwyn, Oxford-
shire, 1765). Os Night thoughts ( 1742-1745), que exerceram grande influencia
20. Akenside, Mark Poeta c medico inglês (Newcastle, 1721 - Londres, 1770), sobre o pre'-romantismo, constituem um monólogo de cerca de dez mil versos bran-
autor do poema descritivo e filosófico The pleasures of imagination (1744) e de cos. Young deixou ainda Conjectures on original composition ( P 5 9 ) . que tambem
urn volume de Odes (1745). ( N T . ) antecipa o pré-romantismo. ( N . T . )
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J O H N S O N C O M O CRÍTICO F. POETA

"Eis um dos poucos poemas cm q u e o verso branco não ções gerais sobre os perigos do verso branco são tais que os usuá-
podia ser preterido pelo verso rimado senão com desvantagem. rios que em seguida dele se serviram teriam feito bem em pon-
A difusão desenfreada dos sentimentos c os arroubos dc imagi- derar. E Johnson não podia antever que os futuros poetas esta-
nação teriam sido reprimidos e paralisados caso estivessem con- riam também aptos a exibir no dístico rimado, por meio de seu
tidos pela r i m a " . desejo de estender os recursos dessa forma para além dos rígidos
Johnson aprova o emprego do verso branco utilizado por limites impostos pelos melhores versos do século XVIII, a mesma
Thomson cm Seasons por razões semelhantes: exuberância, a mesma loquacidade e o mesmo tédio que John-
"Eis uma das obras em que o verso branco é adequada- son relaciona como os vícios do verso branco. Temos que rccor-
mente empregado. A ampla expansão dos conceitos gerais dc rer a William Morris para dele arrancar alguns exemplos.
Thomson, e sua enumeração dc variedades circunstanciais, pode- Dentre todos os poetas cujas obras Johnson apresenta
riam ter sido obstruídas e prejudicadas pelas freqüentes intersec- podemos, creio eu, convir que as de Thomson e de Young são
ções do sentido, q u e são efeitos necessários da r i m a " . as únicas que nos legaram poemas em versos brancos mais ou
Permitam-nos voltar a Akenside. o autor sobre cujos versos menos legíveis e que o estudante de poesia inglesa tem ainda
brancos Johnson prodigalizou tão altos elogios. Seu contexto é algum interesse em 1er. Portanto, ao louvar sua versificação,
este: Johnson se revela incapaz de saber como deveria ser escrito o
4
Na fatura global de seus versos, ele é talvez superior a verso branco. Ao qualificar sua aprovação da versificação de
qualquer outro que haja utilizado o verso branco; sua fluência Akenside, é preciso acrescentar que seu elogio do poema que
é uniforme, e suas pausas são musicais, mas o encadeamento revela os dons moderados de Akenside no que ele tem de
de seus versos sc prolonga por m u i t o t e m p o , e a conclusão inte- melhor (The pleasures of imagination ou Pleasures oj the ima-
gral não ocorre com suficiente freqüência. O sentido se distende gination t), é, na verdade, muito fraco.
ao longo de um entrelaçamento de frases complicadas e, como " A s palavras se multiplicam até que o sentido somente a
aí nada se distingue, nada pode ser r e l e m b r a d o " . custo se torne perceptível; a atenção abandona a mente, e sc
E Johnson continua, generalizando seus conceitos críticos fixa no ouvido. O leitor vagueia em meio à difusão lasciva, às
sobre Akenside: vezes aturdido, às vezes extasiado, mas, após várias voltas por
"A liberdade que o verso branco proporciona de escapar à esse florido labirinto, dele sai como havia entrado. E pouco o
necessidade de concluir o sentido com o dístico instiga os espíri- que lhe desperta a atenção, e ele nada consegue reter."
tos luxuriantes c ativos a uma tal auto-indulgéncia, q u e eles Isso equivale a dizer, de maneira direta, como Johnson se
amontoam imagem sobre imagem, ornamento sobre ornamento, incumbiu de fazer, que o poema não merece leitura. Impus-
sendo facilmente persuadidos a encerrar seu discurso. Receio, me a operação mecânica de 1er esse poema do princípio ao fim,
por conseguinte, que o verso branco seja encontrado com muita mas não posso dizer que o li; pois, como advertia Johnson, ,4 a
freqüência nas descrições exuberantes, nas argumentações loqua- atenção abandona a m e n t e " . Assim, na verdade, li apenas
zes e nas narrativas e n f a d o n h a s " . algumas passagens. Contudo, guardei a impressão de que o som
Dizer que o encadeamento dos versos de Akenside se pro- é mais melodioso do que o dos versos quer de Thomson, quer
longa por muito tempo e q u e o sentido se distende ao longo de Young, embora estes sejam poetas de muito mais substância.
de um entrelaçamento de frases complicadas equivale a uma Suas sílabas tônicas são bem distribuídas; suas pausas c estrutu-
censura plenamente justificada por nossa análise dos versos desse ras fraseológicas são concebidas geralmente de modo a assegu-
autor, embora caiba observar que esse encadeamento e essas fra- rar uma permanente variedade, sem que a medida métrica
ses complicadas eram exatamente aquilo que Milton foi capaz jamais seja rompida. E ainda que ele seja sempre enfadonho,
de manipular com êxito conspícuo e solitário. Mas as observa- só raramente é absurdo. Se vocês mergulharem em The seasons,
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J O H N S O N C O M O CRÍTICO F. POETA 233

de Thomson, encontrarão a m i ú d e deliciosas paisagens, mas con- Não posso me impedir de perguntar quantos poemas em
cluirão t a m b e m q u e o autor se e m p e n h a constantemente em versos brancos do século XIX poderão ser lidos pela posteridade
elevar o que e humilde e embelezar o q u e é banal, o que con- com qualquer interesse maior do que aquele que agora nos pro-
vida ao ridículo. Considerem, por exemplo, sua exortação huma- porcionam os poemas de Thomson, Young ou Cowpcr. Perdu-
nitária ao pescador: rarão o Hyperion, o Prelude (que, apesar de enfadonho em
muitas passagens, deve ser lido inteiro), algumas belas composi-
But let not on thy book the tortur 'J worm ções curtas de Tennyson, certos monólogos dramáticos de Brow-
Convulsive, twist in agonising fold.11 ning. Mas, de m o d o geral, suponho que os poemas do século
XIX q u e devem continuar a ser lidos sempre com prazer são
Akensidc jamais diz nada q u e valha a pena dizer, mas o que
os poemas rimados.
não vale a pena dizer ele o diz b e m . O final do Livro III de seu
Q u e Johnson considerava o verso branco como mais apro-
poema (que ele deixou inacabado na m e t a d e do Livro IV) é
priado ao teatro do que o verso rimado é algo que podemos
bom o bastante para q u e o citemos aqui:
deduzir de sua preferência por All for loveu dentre as peças
heróicas de Dryden, assim como do fato de haver ele escolhido
When at last
o verso branco para a sua tragédia Irene,2' Que Johnson não
The Sun and Nature s tace again appear'd,
chegou a compreender as peculiaridades do verso branco dramá-
Not far I found me; where the public path,
Winding through cypress groves and swelling meadsf tico, comprova-o esta peça, pois o que nela encontramos é o
From Cnossus to the cave of Jove ascends. verso branco de um escritor que pensava e sentia cm termos
Heedless I followed on: till soon the skirts do dístico rimado. Já observei que, quando Johnson expressa
Of ìda rose before me, and the vault toda a sua alta e justa estima por Shakespeare como poeta dra-
W ide opening pierced the mountain s rocky side. mático, ele fala como se Shakespeare escrevesse numa língua
Entering within the threshold, on the ground cujo conteúdo tivesse sido preservado, mas cujo som nada signi-
I flung me, sad. faint, overworn with toil.25 ficasse para nós, pois não há de sua parte uma única palavra
sobre a música do verso shakespeariano. Johnson sustentava
Se vocês não soubessem q u e m escreveu esses versos, poderiam que o verso branco é o mais adequado ao palco, simplesmente
atribuí-los a um poeta superior. Mas, como J o h n s o n observa porque está mais próximo da prosa; cm outras palavras, as pes-
em relação às odes do mesmo autor: 4 4 De q u e vale criticar uma soas que conversam entre si ocasionalmente articulam um pen-
obra que não mais será lida? . Todavia, s u p o n h o q u e pode- tàmetro iâmbico, mas quase nunca incidem na rima. Não creio
mos agora compreender — e, dentro de certos limites, aceitar que esse ponto de vista seja absolutamente válido. Se, por outro
— a afirmação de que 'na fatura global de seus versos, [Aken- lado, Johnson não foi capaz de apreciar a música especial do
side] é talvez superior a qualquer outro q u e haja utilizado o verso branco dramático, também se enganou ao considerar que
verso b r a n c o " . o verso branco é necessariamente a forma que melhor convém
à conversação. Observei há muito tempo que Dryden me parece
22. ' Q u e na ponta dc teu anzol o verme t o r t u r a d o / N ã o se contorna convulso se aproximar mais intimamente dos tons da conversação em
em agònicas d o b r a s ! " ( N . T . )
suas peças com versos rimados do que o faz em All for love.
23. " Q u a n d o afinal / O sol e a face da natureza outra vrz d e s p o n t a r a m . / Eu
me achava ali por perto, o n d e a vereda pública, / F a r e j a n d o por e n t r e os cipres-
tes e as t ú m i d a s c a m p i n a s , / Sobe desde Cnossos ate a gruta de Zeus / Descui-
doso, segui adiante; e logo a* bordas / do Ida surgiram à m i n h a f r e n t e , e a abó- 24. Ver nota IH a "A música na poesia (N.T.)
bada / Escancarada se entreabriu na rocha da m o n t a n h a . / Ao cruzar a soleira,
25. Tragédia clássica escrita por J o h n s o n em 1749 e que constitui, acima de tudo,
melancólico, a b a t i d o . / Deixei-me cair ao solo. a l q u e b r a d o pelo esforço " (Ν Γ.)
um diálogo moral sobre os temas da virtude. ( N . I . )
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J O H N S O N C O M O CRÍTICO F. POETA

A Irene dc Johnson tem todas as virtudes q u e se presumiria os seus próprios dons. Hm Sansão, ele escolheu o assunto que me-
tivesse o verso do autor; e para J o h n s o n , q u e h a b i t u a l m e n t e lhor lhe convinha; c se adota o modelo grego, o faz porque
escrevia sem muito esforço, parece q u e essa obra lhe exigiu era um poeta, e não um dramaturgo, e é dentro dos limites
muito trabalho. Seu verso não tem n e n h u m a q u a l i d a d e dramá- dessa forma que melhor revela sua mestria e dissimula suas fra-
tica; é correto, mas a correção isolada dessa forma torna-se em quezas. O que mais surpreende, entretanto, desde que John-
si um defeito. A peça seria hoje mais legível se ele a tivesse son elegeu o drama francês, assim como o inglês, como aque-
escrito em versos rimados; no c o n j u n t o , ela seria mais facil- les que deveriam ser imitados, é que ele não faz n e n h u m a refe-
mente declamada, e o que há dc b o m , mais facilmente retido; rência ao caso, inconveniente à sua tese, do Athalie, de Racine.
o texto não teria perdido n e n h u m a de suas virtudes de estru- Racine era um poeta do teatro, se é que algum dia houve
tura, de pensamento, de vocabulário e de figuras de retórica.
algum; em Athalie ele utiliza o coro, e Athalie, creio cu, é
O que seria harmonioso com as rimas, torna-se apenas monó-
na verdade u m a grande peça. Mas, com essa exceção, Johnson
tono sem elas.
estava julgando o drama coral segundo padrões dramáticos que
Ocupei-me até aqui primordialmente com a tarefa de ten-
não imagino que a maioria de nós aplique ao Sansão. Para
tar reduzir alguns dos obstáculos à apreciação de J o h n s o n como
muita gente, o Sansão é a mais legível dentre as obras maiores
crítico. Antes de concluir, restam duas opiniões incidentais de
de Milton; certamente, mais legível do que O paraíso recon-
Johnson que preciso encarar, pois. do contrário, eu ficaria
quistado. Podemos até mesmo apreciar o Sansão, como pode-
exposto à crítica de q u e as evitei. A primeira é a opinião de
mos apreciar Com us, q u a n d o são encenados. Mas não creio
Johnson sobre o drama coral, ao qual ele era desfavorável; a
que ninguém possa apreciá-los exclusivamente como dramas:
segunda é sua atitude em relação ao verso religioso ou devoto,
precisaríamos ou estar muito familiarizados com o texto, ou
com o qual se mostrou condescendente. Devo assim dirigir a
então possuir um ouvido muito atento, para degustar a beleza
atenção do júri para essas duas questões.
das palavras. Do contrário, não acredito que a intriga ou as
"Se O paraíso reconquistado foi m u i t o depreciado, Sansão
personagens de u m a ou de outras dessas peças possam mobili-
Agomsta, em compensação, foi m u i t o a d m i r a d o . Somente um
zar por m u i t o t e m p o a nossa atenção.
velho preconceito e o fanatismo pelo saber p u d e r a m fazer com
que Milton preferisse as tragédias antigas, atravancadas por Inclino-me a acreditar que, no conjunto, Johnson, ao per-
um coro, para a« montagens em palcos franceses e ingleses, e mitir-se criticar o Sansão como drama, está correto. Não creio
somente devido a u m a cega confiança na reputação de Milton que ele estimasse a força dramática das convenções gregas em
é que se poderia louvar um drama t u j a s partes intermediárias seu lugar e em seu tempo. Na verdade, duvido que isso seja
não têm causa nem efeito, e que não apressam nem retardam possível para qualquer um que estivesse no insipiente estágio
a catástrofe." de conhecimento arqueológico cm sua época: com certeza, nossa
Aproveito a ocasião para lembrar enfaticamente a vocês própria compreensão das peças gregas como peças foi imensa-
q u a n t o Johnson era moderno para a sua época: sua preferência mente ampliada por pesquisas c estudos recentes. Mas a verda-
pelo teatro francês e inglês em detrimento do teatro grego é deira questão é se a forma do drama grego pode ser adaptada
apenas um dos exemplos disso. Desejaria tornar mais clara a ao m u n d o moderno. E suspeito que a principal justificativa
ccnsura que ele faz a Milton, na passagem q u e acabo dc trans- para Milton, tanto quanto para alguns poetas mais recentes,
crever, dizendo que não creio ser devido a um velho preconceito, ao imitar a forma grega do drama, é que o emprego de um
ou ao fanatismo pelo saber, que Milton foi levado a escrever coro permite a certos poetas destituídos de qualquer talento
sua peça a partir do modelo grego. Julgo q u e isso se deve sobre- dramático utilizar o melhor de suas qualidades e, desse modo,
t u d o a um conhecimento, consciente ou não, de quais eram dissimular algumas de suas deficiências.
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As opiniões de Johnson sobre o verso religioso estão mais nente, e talvez por essa razão a poesia sacra do serviço religioso
cabalmente expressas cm sua Life of Waller1* É aqui q u e ele está, na melhor das hipóteses, na eloqüência impessoal do
faz as seguintes observações: latim. É verdade q u e alguns versos religiosos de caráter devoto
" Q u e n e n h u m ouvido piedoso se ofenda se declaro, contra- parecem igualmente válidos em ambos os contextos. Alguns
riamente a diversas autoridades, q u e a devoção poética não dos poemas de George Herbert podem ser encontrados nos
pode f r e q ü e n t e m e n t e agradar ( . . . ) " . hinários, e todavia os considero menos satisfatórios como hinos
"A piedade contemplativa, no intercâmbio de Deus com do q u e os de Watts, pois neles percebo sempre a personali-
a alma h u m a n a , não pode ser poética ( . . . ) dade de Herbert, e jamais o menor vestígio da personalidade
Essas e outras palavras poderiam ser transpostas para a de Watts. Mas a maior parte da poesia devota do século XVIII
Life of Watts,2 na qual estão elas c o n f i r m a d a s pela seguinte não tem o mérito nem de uma espécie nem dc outra. As ra-
passagem: zões pelas quais a boa poesia desse gênero não foi escrita, e
" S u a poesia devota, como a dos demais, é insatisfatória. as razões pelas quais Johnson não podia reconhecer a possibili-
A penúria de seus temas leva a repetições intermináveis, e a san- dade de que ela o fosse, estão relacionadas às limitações da sen-
tidade do assunto repele os ornamentos da dicção figurativa". sibilidade religiosa nesse século. Eu disse limitações, e não falta
Como crítica sobre Watts, isso é o q u e basta. Para uma de sensibilidade, pois ninguém poderá 1er as Prayers and medi-
geração que aprendera a admirar os sonetos sacros de D o n n e c tations,,28 ou o Serious calf de Law, 29 sem reconhecer que essa
os poemas líricos de George Herbert, Crashaw e V a u g h a n , ele época possui t a m b é m seus m o n u m e n t o s de fervor religioso.
parece rigorosamente pervertido. J u l g o q u e temos de levar eni
conta não apenas as limitações do gosto literário dc sua época,
II
mas t a m b é m suas limitações religiosas. A m b a s as coisas vão
aqui de par u m a com a outra, pois, do m e s m o m o d o q u e não
ocorre ao espírito de Johnson q u e existam valores poéticos nas N ã o me proponho discutir a poesia do século XVIII em
épocas anteriores, os quais haviam desaparecido e n q u a n t o se geral, ou sequer discutir as Vidas de Dryden e Pope, dc John-
son, exceto para delas extrair algumas declarações capazes de
aperfeiçoavam os de seu tempo, assim t a m b é m não creio que
caracterizar a teoria crítica de Johnson. Preciso dizer algo sobre
lhe pudesse ocorrer que havia uma sensibilidade religiosa que
a poesia de Johnson, sobre o princípio que já estabeleci dc que
também desaparecera. As críticas dc Johnson se aplicam à maio-
só poderemos compreender a crítica dc poesia de um poeta
ria dos versos religiosos que foram escritos desde então, bem
em relação à poesia que ele escreve. Sobre seus poemas mais
como aos que se escreveram em sua própria época, O q u e com-
curtos só podemos dizer que a maioria deles possui aquelas
promete sua condenação é a ausência de qualquer discrimina-
duas qualidades que Johnson julgava ser tudo o que se pode
ção entre a poesia sacra do serviço religioso das igrejas e a poe-
exigir de poemas curtos: concisão e elegância. Um deles, Long
sia sacra originária da experiência pessoal. No hino, na antífona,
na seqüência, a intromissão da experiência pessoal seria imperti-
28. Título de um diário íntimo q u e J o h n s o n manteve, com intervalos irregulares,
desde 1729, ainda na epexa em q u e vivia em Oxford, e que testemunha o seu espi-
26. Waller, E d m u n d . Poeta inglês (Colcshill. 1606 Hall Barn, 1687). Primo rito p r o f u n d a m e n t e religioso. Observam-se aí seus escrúpulos, suas perplexidades,
de Cromwell, foi m e m b r o do Parlamento, mas depois passou para o lado de Car- seus impulsos para uma ortodoxia anglicana, que seu racionalismo e sua sensibili-
los I. Deixou um Panegyrical (1655). o n d e <elebra os feitos do p r i m o . Sua obra d a d e ameaçavam abalar. ( N . T . )
anuncia o classicismo inglês. ( N . T . ) 29. Law William. Poeta inglês (1686-1761). Recusou-se a cumprir o juramento
27. W a t t s , Isaac. Hinólogo e poeta inglês (1674-1748), considerado o iniciador dc obediênc ia a Jorge I e permaneceu ortodoxamente a n g l i c a n o . O título completa
da moderna hinologia inglesa, com seus Hymns and spiritual songs (1707) e The da obra citada por Eliot é A serious call to J devote and holy life (1728), que
psalms of David imited in the language of the New Testament (1719). ( N T ) influenciou Wesley, o f u n d a d o r do metodismo. (N. I )
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expected one-and-twenty, poderia proporcionar u m a interes- For who would leave, un bribe d, Hibernia 's land.
sante comparação, sem prejuízo para J o h n s o n , com The Shrop- Or change the rocks of Scotland for the Strand?"
shire lad: o verso de H o u s m a n 3 0 é t a m b é m conciso e. elegante,
mas apenas do ponto de vista da dicção; q u a n t o à edificação A resposta é: Samuel Johnson, melhor do que qualquer outro.
(trata-se de dois critérios de J o h n s o n , como se verá), podería- Tais objeções podem parecer desfavoráveis, mas cias reforçam
mos dizer que o poema de J o h n s o n é superior. O único, supo- minhas dúvidas sobre o talento de Johnson para a sátira. John-
nho, dos poemas curtos de J o h n s o n q u e é mais do q u e conciso son era um moralista c carecia de uma certa leveza divina que
e elegante, o único q u e realiza o q u e n i n g u é m antes dele reali- torna fulgurantes os versos dos dois maiores poetas satíricos
zou e que n e n h u m sucessor pôde igualar, é o p o e m a sobre a ingleses. A indignação pode transformar-se em poesia, mas é
morte do Dr. Levett, um h o m e m obscuramente sábio e gros- preciso que seja uma indignação relembrada em tranqüilida-
seiramente b o n d o s o " — um p o e m a único graças a sua ternura, de; 3 2 em London sinto que se manifesta uma débil indignação,
sua piedade e sua sabedoria. Os dois poemas aos quais se deve cm vez de uma indignação autêntica a ser relembrada. Na sátira
a reputação de Johnson como poeta são, todavia, The vanity dc Dryden, como de um m o d o distinto na de Pope, o objeto
of human wishes e London. Este soma 364 versos; aquele, 263. satirizado se dilui na poesia, c somente a custo pode-se percebê-
Johnson era um poeta reflexivo: podia não se expressar plena- lo como algo mais do que um pretexto para a poesia. Com
mente num poema de menor extensão, mas, por ser um poeta Dryden, o h o m e m ridicularizado torna-se absurdamente gigan-
reflexivo, não tinha os recursos necessários para um poema de tesco, e o inseto pernicioso de Pope se transforma em algo belo
e estranho. Em London, o efeito global é o dc uma lamúria.
maior alcance.
A indiciação dc toda uma cidade malogra: é incrível, mesmo
London tem belos versos e passagens, mas não me parece
no século XVIII, que não se pudesse jamais sair à noite sem ser
bem realizado como um todo. O cenário, ou o prólogo do
assaltado por bêbados turbulentos, ou dormir cm sua casa sem
poema, é artificial. É tedioso ver a invectiva apresentada como
o perigo de ser assassinado por ladrões. Johnson dissemina gene-
um discurso de "Tales injuriado a um amigo q u e lhe foi
ralizações, e tais generalizações não são verdadeiras; o que man-
levar as despedidas em Greenwich, e n q u a n t o ele entra n u m
tém o poema vivo é o fluxo subterrâneo dos sentimentos pes-
bote para embarcar no navio q u e o conduzirá a seu exílio volun-
soais, a amargura da miséria, das afrontas, das injúrias c das
tário em Pembrokeshire. Há, como em outras passagens do
privações, realmente vivenciadas por Johnson em sua juventude.
poema, u m a impressão de falsidade. J o h n s o n queria escrever
uma sátira à maneira de Juvenal para denunciar a perversidade O espírito de Johnson tende a uma reflexão geral que se
londrina, mas que houvesse algum dia p r e t e n d i d o deixar Lon- apoia em exemplos. N u m a passagem bem conhecida, Imlac, o
dres por um distante promontório em Saint David é tão incom- preceptor de Rasselas, 33 chega a observar que:
patível com seu t e m p e r a m e n t o e com os confessos sentimentos "A missão de um poeta é analisar, não o indivíduo, mas
q u e lhe povoarão o restante da vida q u e não p o d e m o s acredi- a espécie; observar as propriedades gerais e as vastas aparências;
tar que lhe houvesse algum dia passado pela cabeça o propó- ele não conta as estrias da tulipa, nem descreve as diferentes
sito de fazê-lo. Ele era o último h o m e m a fixar residência cm nuanças do verde da floresta. Ele deve mostrar em seus retratos
da natureza os traços marcantes e surpreendentes que recordam
Saint David, ou a ter apreciado as belezas desse sítio român-
tico q u a n d o ali viesse a chegar.
31 "Pois q u e m . gratuitamente, abandonaria as terras da Hibérnia, / Ou desejaria
transformar no Strand as rochas da Escóciaí'" ( Ν . Ί .)
30. Housman, Alfred Edward. Poeta ingles (Catshill. 1859 - C a m b r i d g e . 1936).
32. Óbvia alusão ao célebre toiKeito de Wordsworth no prefácio às Lyrical ballads
A coletânea citada por Eliot, que data de 1896, possui grande força rítmica e metaíó-
(1798). segundo o qual a poesia era uma "emotion recollected in tranquillity". (Ν. I .)
rica, e foi durante muito tempo o volume de poemas mais lido na Inglaterra O pró-
prio Housman admitiu a influencia de Johnson sobre os poemas dessa coletânea. (N.T.) 33. Herói do conto de J o h n s o n , Rasselas (1759). (N.T.)
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J O H N S O N C O M O CRÍTICO E POETA
241

o original cm todos os espíritos; c deve negligenciar as diferen- vanity of human wishes. Dentre tais exemplos, a passagem
ças mais minuciosas q u e alguém possa ter observado, mas que sobre Carlos da Suécia " 6 é amiúde citada como a que melhor
um outro pode ter esquecido, para escolher as características se sustenta. Esses 32 versos compõem um parágrafo que é, em
que são analogamente óbvias à vigilância e ao d e s c u i d o " . si mesmo, totalmente perfeito na forma: a curva ascendente
Essa disposição para o geral afeta até m e s m o as regras de da ambição, a súbita calamidade, e o lento declínio seguido
Johnson relativas à dicção poética. Έ u m a regra geraí em poe- de degradação, ao longo dos quais vemos o conquistador,
s i a " , diz ele em sua Life of Dry Jen, q u e todos os termos de
arte apropriados se diluam cm impressões gerais, porque a poe- Compelled a needy supplicant to wait
sia deve falar uma linguagem universal. Essa regra torna-se ainda W hile ladies interposi and slaves debate,37
mais poderosa em relação às artes não-liberais, e por conse-
guinte distanciada do conhecimento c o m u m '; e prossegue cen- expirando em
surando Dryden pelo emprego de termos técnicos de navegação,
a maioria dos quais como seam ( " s u t u r a ). mallet ( " m a r r e - a barren strand,
ta '), tarpauling ( " t o l d o " ) — consideraríamos agora corriquei- A petty fortress, and a dubious hand.38
ros. Mas não estou interessado nas idéias de Johnson sobre dic-
ção poética: desejo apenas sugerir q u e as regras poéticas dc J o h n - Mas essa passagem não é daquelas que preservam seu valor inte-
son estavam, até certo p o n t o , limitadas pelo género de poesia gral q u a n d o isoladas do contexto a que pertencem: ela exige o
que ele próprio foi capaz de escrever. que a antecede e o que se lhe segue para ocupar o lugar que
Em The vanity of human wishes, Johnson encontrou o lhe cabe no conjunto do poema.
tema que mais admiravelmente lhe convinha. A idéia, indicada A grande poesia do tipo de The vanity of human wishes é
pelo título, não era nova, e nunca o fora. Aliás, isso não era rara, e não podemos censurar Johnson por não ter escrito mais
necessário nem desejável para um poema dessa natureza: o essen- nessc genero, q u a n d o consideramos quanto é difícil encontrá-
cial é que fosse u m a idéia q u e o leitor não questionasse por la. Entretanto, essa especie de poesia não pode ser alçada ao
um só instante. A esse respeito, The vanity of human wishes, nível mais elevado. Ela é, por natureza, de construção quase
como poema meditativo, é superior à Elegy de Gray, 3 4 pois sempre frouxa; a idéia nos é dada de saída, e como se trata de
uma idéia universalmente aceita, não comporta senão um
esse ultimo poema contém u m a ou duas idéias q u e talvez não
p e q u e n o desenvolvimento, ou apenas variações sobre um tema.
sejam muito consistentes: na verdade, é m u i t o pouco provável
Johnson não possuía o dom da estrutura. Para se chegar a uma
que um cemitério de aldeia, ou qualquer cemitério, abrigue o
construção mais elaborada — c sustento que a estrutura deve
corpo de alguém que pudesse ter sido H a m p d e n / 3 Milton ou
ser um elemento importante na composição poética —, é indis-
Cromwell. Com toda a certeza, em seu p o e m a . Gray não se
pensável uma variedade de talentos: descritivos, narrativos e
revela em absoluto estritamente meditativo: o q u e avulta na
dramáticos. Não esperamos jamais de um poema escrito cm
Elegy como descrição, como evocação da paisagem rural inglesa,
rimas parelhas que ele tenha uma estrutura muito coesa, que
é de suma importância. Por outro lado, sc Johnson se limitasse
às vezes, de acordo com o que o autor pretende dizer, poderia
ao genérico, sem apoiá-lo em exemplos, pouco restaria de The

34. O título completo desse poema é Elegy writ ten in a country churchyard Ver 36. Ou Carlos II (Londres. 1630 - id., 1685), rei da Inglaterra, da Escócia e da
nota 15 ao ensaio "Sir J o h n D a v i e s " , nesta coletânea. ( Ν , Τ . ) Irlanda, filho de Carlos I. ( N . T . )
35. H a m p d e n , J o h n . Político inglês (Londres, c. 1595 — T h a m e , 1643). primo de 37. " O b r i g a d o a esperar, como um pedinte necessitado. / Enquanto as damas se
Cromwell, ao lado de q u e m combateu durante a Ouerra Civil. Sua oposição ao paga- interpõem e os escravos discutem.' ( Ν . Ί . )
m e n t o do ship money (1637) tornou-o um dos heróis desse conflito nacional. ( N . T . ) 38. " u m a árida praia, / N u m forte desprezível, sob mãos suspeitas." ( N . T . )
242 T. S. ELIOT J O H N S O N C O M O CRÍTICO E POETA
243

começar ou terminar não importa onde. Mas há um poema, ou de qualquer outro poeta, do que as rimas dc Prior 41 são as
de um amigo e contemporâneo de J o h n s o n , que revela um alto dc Cowley. Suas cadências, suas pausas, sua dicção, constituem
grau de organização poemática. Considero The deserted villa- criações pessoais, sem transição nem imitação. Ele pensa segundo
ge39 superior a qualquer poema de Johnson ou de Gray. No um encadeamento peculiar, e o faz sempre como um homem
poema de Goldsmith, a arte da transição está admiravelmente de gênio; olha para a Natureza e a Vida que lhe rodeiam com
ilustrada. Se vocês o examinarem estrote a estrofe, encontrarão o olho que a Natureza concede apenas aos poetas; um olho
sempre uma mudança correta no lugar certo, do descritivo ao que distingue em todas as coisas que sc lhe apresentam aquilo
meditativo, ao pessoal, de novo ao meditativo, à paisagem com sobre o que a imaginação pode se deleitar quando aí se demora,
personagens (o clérigo e o mestre-escola), com um talento e e com um espírito que abarca de uma só vez a vastidão, sem
uma concisão raramente igualados desde Chaucer. Essas partes negligenciar os pormenores. O leitor de The seasons se maravi-
estão adequadamente proporcionadas. Enfim, a idéia, embora lha diante do que jamais vira antes que Thomson lhe houvesse
tão aceitável q u a n t o a de Johnson, é mais original e t a m b é m revelado, e com o fato dc jamais ter sentido o que Thomson
profética: lhe t r a n s m i t e " .
A originalidade se encontra aqui diluída numa "maneira
III fares the land, to hastening ills a prey, de pensamento e de expressão". Mas o pensamento cm si não
Where wealth accumulates, and men decay.40 tem necessidade de ser novo ou difícil dc apreender e dc acei-
tar; ele pode ser, e para Johnson amiúde o foi, o lugar-comum,
Fiz essa digressão porque não creio que Johnson revele grande
ou um pensamento que, quando apreendido, é tão rapida-
poder de construção em seus poemas e porque não acredito
mente aceito que o leitor se extasia diante do fato de nunca
que ele reconheça a importância de considerar a estrutura na
tê-lo pensado por si mesmo. A originalidade não requer a
avaliação de um poema. Passo agora a rever aquelas proprieda-
recusa da convenção. Habituamo-nos, durante o século pas-
des de um bom poema que Johnson ilustra em seus próprios
sado, ou mesmo antes, a uma tal desordem de estilos pessoais
versos e, sobretudo, recomenda nos dos outros.
que nos esquecemos de que a originalidade é tão significativa
Johnson atribuía importância à originalidade. Originali- num período de calma quanto numa época de constantes modi-
dade é uma dessas numerosas palavras cujo significado pode ficações; a c o s t u m a m o - n o s dc tal modo às diferenças de estilo
se alterar de geração para geração, e devemos nos prevenir cm poético identificáveis por qualquer um que podemos nos tor-
relação ao que Johnson quer dizer com cia. Seu próprio emprego nar menos sensíveis às mais sutis variações dentro de uma forma,
em todo o m u n d o está ilustrado pela seguinte passagem tomada variações que o espírito e o ouvido habituados a essa forma po-
à sua Life of Thomson·. dem perceber. Mas a originalidade, quando se torna a única
" C o m o escritor, Thomson merece um elogio da mais alta — ou a mais louvada — virtude da poesia, pode deixar por
espécie: sua maneira de pensar, e de expressar o q u e pensa, é completo de ser uma virtude; c quando diversos poetas, e seus
original. Seu verso branco não é mais o verso branco de Milton, respectivos grupos de admiradores, deixarem de ter em comum
quaisquer padrões de versificação, qualquer identidade de gosto
39. Famoso poema do escritor inglês Oliver G o l d s m i t h , publicado cm 1770 É e de dogmas em que acreditar, a crítica poderá detenorar-se
um poema melancólico e sentimental q u e denuncia a explorarão do aldeào pelo
aristocrata e o êxodo rural causado em parte pelo sistema de l a t i f ú n d i o q u e favore-
cia os abusos da grande propriedade. Ver t a m b e m nota 20 a " A s três vozes da poe-
41. Prior, Matthew. Poeta inglês ( W i m b o r n e Minster, East Dorset. 1664 Wim-
sia". (N.T.)
pole. Cambridgeshire, 1721). Discípulo e è m u l o de Pope, escreveu versos dc socie-
40. ' Perra infeliz, vítima de desgraças q u e se aceleram. / O n d e a riqueza se acu- dade m u i t o esi miados na epoca. Sua principal obra é Poems on several occasions
mula e os homens d e g e n e r a m . " ( N . T . ) (1709). (N T.)
244 T. S ELIO !
J O H N S O N C O M O CRÍTICO Ε POETA
245

até o nível de u m a proclamação de preferencia. A originali- de edificação: trata-se de uma única experiência cujos elemen-
dade que Johnson sanciona é u m a originalidade limitada pelas tos constituintes analisamos.
outras qualidades q u e ele exige. Ao julgar a permanência dos princípios de um crítico per-
Johnson atribuía importância à edificação. Esse t e r m o tor- tencente a u m a época de fato distinta da nossa, devemos cons-
nou-se objeto de zombaria, embora o q u e signifique possa ser t a n t e m e n t e reinterpretar sua linguagem de acordo com a nossa
algo de que jamais conseguimos escapar. Q u e a poesia deva própria situação. No sentido mais generalizado, suponho que
proporcionar sabedoria ou inculcar virtudes parece à maioria a "edificação" signifique apenas que da boa poesia, e com cer-
das pessoas um valor absolutamente secundário, ou mesmo teza da grande poesia, devemos extrair não só algum proveito,
estranho; a alguns, inclusive, parece até m e s m o incompatível mas t a m b é m um prazer. Se identificarmos a "edificação" com
com a verdadeira função da poesia. Mas, em primeiro lugar, a propagação das idéias morais da época de Johnson — idéias
devemos observar q u e J o h n s o n , q u a n d o seu senso crítico é agu- que os cristãos podem sustentar ter sido maculadas pelo deísmo,
çado, jamais se permite superestimar um p o e m a unicamente e que outros podem considerar bastante cristãs —, não conse-
sob o pretexto de q u e este inclua um e n s i n a m e n t o moral. Ele guiremos perceber que foram apenas as nossas noções de edifi-
sustentava que um poema deveria ser interessante c que propor- cação q u e m u d a r a m . Q u a n d o Matthew Arnold disse que a poe-
cionaria prazer imediato. Na verdade, julgo q u e ele superes- sia era u m a crítica da vida, 12 estava mantendo o padrão da edi-
time esse requisito q u a n d o , em sua life of Cowley, diz: ficação. Até mesmo a teoria " d a arte pela a r t e " constitui ape-
" T o d o aquele que proclama ser útil p o r q u e agrada deve nas u m a variante sob a forma dc um protesto; c em nossa época,
agradar de imediato. Os prazeres do espírito implicam algo dc a defesa da poesia como substitutivo da religião — e a tenta-
súbito c inesperado; aquilo q u e eleva deve t a m b é m surpreen- tiva, nem sempre bem-succdida ou benéfica à poesia, dc expri-
der. O que se percebe lenta e gradativamente p o d e nos gratifi- mir ou impor uma filosofia social em verso — revela que é
car com a consciência do aperfeiçoamento, mas jamais nos sur- somente o conteúdo da "edificação que se transforma.
preenderá com o sentido do prazer . Se, portanto, conferirmos à "edificação" toda a elastici-
Concordo q u e um poema q u e não cause n e n h u m a impres- dade q u e o termo comporta, este, ao que parece, se reduzirá
são imediata, que de algum m o d o não desperte a nossa atenção, à afirmação de que a poesia deveria ter algum valor sério para
provavelmente não provocará depois n e n h u m f r é m i t o de pra- o leitor: trata-se de uma proposição que não se poderá negar e
zer. Mas Johnson não me parece admitir a possibilidade de q u e , por conseguinte, não vale absolutamente a pena afirmar.
qualquer desenvolvimento ou expansão do prazer, n e m da gra- Nossa única discordância será quanto à espécie de conteúdo
dual percepção de novas belezas, em seguida a um conheci- que consideramos edificantes. Nossa dificuldade real em relação
mento mais profundo; e nem consente em um a m a d u r e c i m e n t o aos conceitos de Johnson são antes de outra ordem. Distingui-
do leitor e no desenvolvimento de sua sensibilidade por meio mos mais claramente entre a intenção consciente do escritor e
de uma experiência mais p r o f u n d a e um c o n h e c i m e n t o mais o resultado de sua obra. Desconfiamos do verso em que o autor
abrangente. Todavia, não fiz a citação acima com o objetivo busca deliberadamente instruir ou persuadir, fai distinção não
de manifestar meu desacordo, mas para indicar q u ã o estrita- constitui um daqueles l u g a r e s - c o m u n s do pensamento de John-
m e n t e o prazer e a edificação se encontram associados no espí- son. Entretanto, suponho, ele está de fato preocupado com a
rito de J o h n s o n . Ele fala de " t o d o aquele q u e proclama ser moralidade do poema, e não com os desígnios morais do poeta.
útil porque a g r a d a " , e diz " q u e aquilo q u e eleva deve tam-
bém s u r p r e e n d e r " . A edificação não constitui um acréscimo 42 "Poetry is a criticism oi l i f e " : frase que se tornou celebre desde que o crítico
e ensaísta inglês Matthew Arnold (Laieham. 1822 Londres, 1888) a adotou
que se possa separar de um poema, pois é organicamente essen- como o próprio f u n d a m e n t o de sua atitude crítica, como se pode ver em seus Essays
cial a este. Não temos duas experiências, uma dc prazer e outra m criticism (2 vols.. 1865-1888). ( N . T . )
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44
Bossu e é da opinião diz J o h n s o n na Life of Milton, n a l ? " E essa é uma das teses sustentadas nessa discussão sobre
" d c que a primeira tarefa do poeta é descobrir uma moral, a crítica de Johnson: a de que ele se encontrava numa posição,
que sua fábula ilustrará e, logo em seguida, estabelecerá. Esse como n e n h u m crítico de idêntica estatura desde então o esteve,
parece ter sido o único processo dc Milton; a moral de outros para escrever crítica puramente literária. apenas porque foi capaz
poemas é incidental e conseqüente; somente em Milton ela é dc admitir que havia uma atitude geral para com a vida, e
essencial e intrínseca." uma opinião comum quanto ao lugar que nela ocuparia a poesia.
Considero verdadeiro esse julgamento sobre Milton, embora Volto agora ao emprego que Johnson fazia da expressão
se Johnson tivesse conhecido Dante melhor, talvez não houvesse dicção poética [poetic diction). Para a maioria das pessoas dc
tomado Milton como exemplo único. Isso parece confirmar, hoje, imagino que dicção poética" signifique uma linguagem
todavia, que aquilo q u e interessa a J o h n s o n é antes o poder e uma escolha de palavras que estão em desuso, e que talvez
jamais foram muito boas no que tinham de melhor. Se formos
edificante do poema do q u e a deliberada intenção do poeta.
tolerantes, entenderemos o uso dc uma linguagem e um voca-
Somos todos, naturalmente, segundo nosso grau de atração,
bulário tomados de empréstimo aos poetas de uma geração, lin-
influenciados por qualquer obra de arte em particular graças à
guagem c vocabulário diferentes como não mais adequados à
nossa simpatia ou antipatia para com as ideias e a personali-
poesia. Se formos rigorosos, entenderemos que essa linguagem
dade do autor. Hmpenhamo-nos, e em nossa época cumpre
c vocabulário foram sempre ruins, mesmo quando eram novos.
que o façamos, em descartar essa atração ou repulsa para che-
Wordsworth, cm seu Prefácio, diz: 1 encontrar-se-á tambem
garmos a uma justa avaliarão do mérito artístico. Sc vivêssemos,
nesses volumes um pouco daquilo a que chamamos de dicção
como Johnson, n u m a época dc relativa u n i d a d e e de hipóteses poética ". Johnson emprega o termo num sentido laudatorio.
geralmente aceitas, deveríamos provavelmente estar menos inte- Na Life of Dryden ele observa: " N ã o havia, portanto, na época
ressados em fazer esse esforço. Se estivéssemos de acordo com de Dryden n e n h u m a dicção poética, nenhum sistema dc pala-
a natureza do m u n d o em q u e vivemos, com o lugar q u e nele vras que estivessem, por sua vez, purificadas da aspereza de ter-
cabe ao h o m e m e com seu destino; se estivéssemos de acordo mos apropriados a determinadas artes. Palavras demasiado fami-
com o significado que atribuímos à sabedoria, à qualidade dc liares, ou excessivamente remotas, não servem ao propósito de
vida para o indivíduo e a sociedade, deveríamos aplicar julga- um poeta. Os sons que percebemos cm ocasiões triviais ou gros-
mentos morais à poesia com a mesma segurança de J o h n s o n . seira s não nos transmitem facilmente impressões fortes, ou ima-
Mas numa época em que não encontramos sequer dois escrito- gens deleitáveis; e as palavras que são para nós quase estranhas,
res que precisem estar de acordo seja lá com o q u e for, n u m a sempre q u e ocorrem, despertam sobre si a atenção que deveriam
época em que necessitamos constantemente admitir q u e um despertar sobre as coisas".
poeta com uma concepção de vida q u e julgamos estar equivo- É preciso ter em mente, com relação ao vocabulário e à cons-
cada pode escrever uma poesia m u i t o superior à daqueles cuja trução, o que tentei expor acima dc maneira mais geral: que a
concepção coincidc com a nossa, somos obrigados a fazer essa noção da língua como algo permanentemente em mutação não
abstração; c, ao fazê-la, caímos na tentação dc ignorar por com- constitui a única a causar impressão na época dc Johnson.
pleto, com resultados desastrosos, o valor moral da poesia. Dc Recuando no passado cerca dc dois séculos, ele constatou tanto
m o d o que, com respeito à concepção de vida de um poeta, na língua q u a n t o nos costumes um contínuo aperfeiçoamento.
inclinamo-nos a perguntar, não "é verdadeiro?", mas "é origi- Até onde ele pôde observar, esse aperfeiçoamento não o decep-
cionou, mas Johnson não tinha nem a consciência dc que algo
43. Bossu, René Le. Crítico francês (1631-1680). autor dc um Traité du poème se perdera, nem a percepção das inevitáveis mudanças que esta-
e'pique que Boilcau muitíssimo estimava. Esquecido na França, é ainda l e m b r a d o
vam por vir. O próprio Wordsworth não revela tampouco
pelos escritores ingleses, s o b r e t u d o os q u e viveram nos se'culos XVII e XVIII. ( N . T . )
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n e n h u m a consciência mais aguda do q u e Johnson da constância viais" ou grosseiras' , nos parecem dignas de ser celebradas
com que a língua deve mudar: o q u e ele julgara ter estabele- em verso. Os preceitos de Johnson sobre dicção poética conti-
cido era um retorno a uma dicção de simplicidade popular e n u a m sólidos, mas temos de utilizar nosso próprio engenho
de pureza rural. Wordsworth estava certo ao perceber que a lín- q u a n d o os aplicarmos.
gua literária não devia perder contato com a linguagem falada, Q u e Johnson alertou para o vício do maneirismo, atesta-o
mas seu padrão de dicção poética correta era tão relativo q u a n t o uma outra passagem da Life ofDryden, uma passagem que deve-
o dc Johnson. Nós, pelo contrário, deveríamos ser capazes de ria ser p r o f u n d a m e n t e considerada por qualquer um que aspire
reconhecer que caberia haver, para todo período, algum padrão a escrever bons versos:
de correta dicção poética que não fosse nem idêntico ao da lín- Aquele q u e escreve cm demasia dificilmente escapará ao
gua corrente nem dela muito distante; e cumpre admitir q u e maneirismo, ou seja, um retorno a determinados modismos
a dicção poética correta, daqui a meio século, não será a mesma como facilmente se pode observar. Dryden é sempre um outro
que hoje se reconhece. O que quero dizer é q u e o vocabulário, e o mesmo\ ele não revela, numa segunda vez, as mesmas ele-
a linguagem c as normas gramaticais da poesia não p o d e m ser gâncias dentro da mesma forma, nem parece praticar nenhuma
idênticos aos da prosa. No que toca à escolha das palavras, a outra arte q u e não seja a de expressar com clareza o que pensa
restrição de Johnson permanece verdadeira: a de que os 4 sons vigorosamente. Seu estilo não podia ser imitado com facilidade,
que percebemos em ocasiões triviais ou grosseiras" devem ser nem séria nem ludicamente, pois, como ele sempre foi idêntico
evitados, exceto, devo acrescentar, q u a n d o o propósito do poeta a si m e s m o , e sempre variado, não há nenhuma característica
é apresentar algo de trivial ou de grosseiro; e a de q u e 4as pala- p r e d o m i n a n t e ou distintiva".
vras que são para nós quase estranhas, sempre q u e ocorrem, Desejo chamar atenção especial para esse problema da dic-
despertam sobre si a atenção que deveriam despertar sobre as ção poética, porque se trata dc um padrão essencial da crítica
coisas", exceto, acrescentaria eu, q u a n d o a palavra é a única de Johnson e porque considero que a ausência dc qualquer
capaz de designar essa coisa, ou q u a n d o o objetivo do poeta é padrão c o m u m dc dicção poética constitui uma fraqueza tanto
despertar a atenção sobre a palavra. do verso moderno q u a n t o da crítica que dele fazemos. E delibe-
Criticar a dicção poética da poesia do século XVIII é u m a radamente cuidei dessa questão antes de abordar seu padrão
coisa; criticar uma teoria sobre a dicção poética desse mesmo de edificação. Q u e a poesia, quando ilustra alguma verdade
século é outra. Devemos nos lembrar de q u e se não se a d m i t e ou inculca alguma prática virtuosa, seja mais digna de ser lou-
n e n h u m a dicção poética não dispomos de n e n h u m padrão vada do q u e no caso contrário, e que a poesia que recomenda
para criticar o bom c o mau texto poético; negar q u e não há ou insinua maus princípios, ou induza ao erro, deva ser conde-
n e n h u m estilo comum correto é tão perigoso q u a n t o insistir nada, demonstra-o, de maneira cabal, o tratamento que John-
em que o estilo poético dc nossa época deveria ser o mesmo son dispensa aos autores de que se ocupa. Todavia, ao elogiar
q u e o do século XIX. Nosso moderno vocabulário abriga mui- os Pleasures of imagination, de Akenside, disse ele: Nada
tas palavras comparativamente novas q u e poderiam soar como tenho a ver com os princípios filosóficos ou religiosos do autor;
bárbaras aos ouvidos dc Johnson. Passamos a inventar, a desco- meu problema é com sua poesia". Johnson não confundia seu
brir, a modelar e a teorizar num ritmo desconhecido a qual- julgamento sobre o que um autor estava dizendo com seu jul-
quer época anterior, c cada nova palavra se consolida m u i t o gamento sobre a maneira como ele o dizia. Ora, observo as
mais rapidamente. N e n h u m a palavra é demasiado nova, se for vezes na crítica contemporânea dc poesia e nas mais ambiciosas
a única que atende a um propósito; n e n h u m a palavra é dema- abordagens à poesia que hoje se escrevem uma confusão entre
siado arcaica, se for a única que atende t a m b é m a um propó- esses julgamentos. O padrão de edificação esgalhou-se numa
sito. E muitas ocasiões, que para Johnson poderiam parecer 4 4 tri- variedade de preconceitos; mesmo que não haja nenhuma opi-
T. S. ELIOT J O H N S O N C O M O CRÍTICO E POETA
242 251

falta de qualquer estilo c o m u m e à conseqüente dificuldade


nião comum sobre aquilo q u e a poesia teria o dever de ensinar,
o crítico não está necessariamente liberado de julgamento moral, dc comunicação, l ais condições também favorecem o floresci-
mas amiúde considerará um poema bom ou ruim segundo seja m e n t o daquilo em que o próprio verso dc Johnson, no que ele
este simpático ou antipático do p o n t o de vista do autor. Não tem dc melhor, se revela notável: a eloqüência. A eloqüência
raro. o conhecimento do crítico sobre os conceitos do autor será é u m a virtude que está associada à grande oratória; deveríamos
adquirido graças a outras fontes q u e d e t e r m i n a d o poema ofe- distingui-la de um tipo inferior, c muito mais comum, o da
rece à sua crítica, e essas fontes influenciarão seu julgamento oratória política, através do teste relativo ao efeito que ela pode
do poema. E q u a n t o às questões de saber se um poema é bem exercer sobre a razão c a sensibilidade, e de sua recusa quanto
ou mal escrito, se podia ser melhorado, se as cadências são musi- à possibilidade de recorrer às mais grosseiras e inflamáveis pai-
cais, se a escolha das palavras é fastidiosa ou literária", se as xões. A eloqüência é o aguilhão que pode instigar as emoções
imagens são felizes e estão a d e q u a d a m e n t e distribuídas, se a dos espíritos inteligentes e criteriosos. Mas, no âmbito poético,
sintaxe é correta e as transgressões à estrutura normativa estão não se pode dizer q u e seja eloqüente, no sentido em que uti-
justificadas, são elas evitadas como se deixassem aquele q u e as lizo a palavra, toda a poesia que dela se originou. A poesia só
coloca exposto à suspeita de p e d a n t i s m o . O resultado é quase se torna eloqüente q u a n d o o poeta recorre às emoções que os
sempre um comentário q u e não tem n e n h u m valor para o autor, espíritos inteligentes e criteriosos podem experimentar juntos
a não ser que, q u a n d o favorável, possa constituir u m a boa — cm outras palavras, q u a n d o o poeta se dirige não a um lei-
publicidade — como uma crítica de processos eleitorais, pela tor isolado, mas a uma platéia. Não se trata de uma virtude
qual os críticos classificam a si mesmos contra ou a favor de poética universal; é eficaz em alguns casos, mas incompatível
determinado poeta. com a materialização de alguns outros desígnios. Porém a maio-
Q u e não haja em nossos dias n e n h u m padrão d e f i n i d o de ria dos grandes poetas dela se valeu em alguma ocasião. Ela
gosto na poesia é em parte o resultado das condições da socie- está relacionada àquela força peculiar da poesia de Johnson e
dade e das origens históricas, q u e estão além de nosso controle de Goldsmith, como, antes deles, das de Dryden e de Pope,
e de nossa responsabilidade. O melhor, talvez, q u e p o d e m o s que posso definir dizendo que cada palavra e cada epíteto nela
fazer, e que merece ser feito, é aprender a reconhecer os bene- se dirigem diretamente às suas metas. Em compensação, mui-
fícios, para o escritor e para o crítico, do estilo comum na poe- tos dos poetas que se seguiram recorreram às palavras mais por
sia. Somente q u a n d o de fato se reconhece um estilo c o m u m , amor aos efeitos harmoniosos, às associações e ao poder indefi-
do qual o poeta não pode se afastar sem o risco de ser censu- nido das sugestões. Os maiores poetas fizeram muito isso, e
rado, é que a expressão "dicção poética' p o d e adquirir um cumpre admitir q u e poderemos nos enganar se concedermos
significado que não seja pejorativo. Q u a n d o tais padrões relati- atenção exclusiva a uma categoria de palavras ou a outra.
vos a um estilo c o m u m existem, o autor q u e visa alcançar a
Na Life of Pope, Johnson define, tal como a poesia dc
originalidade é levado a preocupar-se com as mais sutis nuan-
Pope as ilustra, as três qualidades que constituem o gênio poé-
ças que lhe poderia atribuir. Ser original d e n t r o de limites defi-
tico. Diz ele, significativamente, que Pope tem essas três quali-
nidos de propriedade pode requerer maior talento e esforço
dades " e m proporções muito harmoniosamente ajustadas umas
do que q u a n d o cada autor pode escrever da maneira q u e lhe
às o u t r a s " — o que é u m a advertência sadia de que não se trata
apraz, e q u a n d o dele se espera, acima de t u d o , q u e seja dife-
de qualidades isoladas, mas de qualidades que estão relaciona-
rente dos demais. Ser obrigado a trabalhar sob as mais sutis
nuanças é o mesmo que ser compelido a lutar em favor da pre- das entre si e por meio das quais devemos julgar um poeta —,
cisão e da clareza: boa parte do q u e se condena como obsti- e que, na verdade, o equilíbrio de sua proporção é em si a qua-
nado hermetismo por parte dos escritores modernos deve-se à lidade final. Ele escreve o seguinte:
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"Ele tinha invenção [invention), graças à qual sc consti- ginação [imagination] que considero difícil aplicá-la na prática.
tuíam novos encadeamentos de fatos, e se produziam novos As mudanças no significado das palavras, e as flutuações da
cenários imagísticos, como em The rape of the lock, e pela ênfase que nelas se coloca, fazem parte da história da nossa civi-
qual ornamentos e ilustrações extrínsecos c adventícios cram lização. Um crítico contemporâneo, comprometido com a mesma
associados a um assunto conhecido, como no Essay on criticism. tarefa dc análise, chegaria a uma conclusão mais complicada,
Ele tinha imaginação [imaginationque exerce u m a poderosa que seria provavelmente influenciada pelo estudo das ciências
influência sobre o espírito do escritor, p e r m i t i n d o - l h e transmi- dc desenvolvimento mais recente. A conclusão moderna estaria
tir ao leitor as diversas formas da natureza, os incidentes da mais dc acordo com nosso equipamento mental, mas não seria
vida e as energias da paixão, como em sua Eloisa, em Windsor necessariamente mais verdadeira por essa razão; devido à insta-
forest e nas Ethic epistles. Ele tinha julgamento [judgementJ, bilidade das ciências das quais ela poderia se originar, seria até
q u e seleciona da vida ou da natureza aquilo q u e exige o propó- possível que fosse antes levada a se desgarrar daquilo que é o
sito presente e q u e , ao isolar a essência das coisas de suas qua- verdadeiro propósito de tais discriminações, a saber: a ajuda
lidades concomitantes, torna a m i ú d e a ficção mais poderosa que elas proporcionam no sentido de discernir os méritos e os
do q u e a realidade; e tinha as cores da língua sempre à sua defeitos dc determinados poemas. As conclusões de Dryden e
disposição, prontas para o r n a m e n t a r seu assunto com toda a de Johnson — porque esses críticos estavam interessados na lite-
graça da expressão elegante, como nos casos em q u e adapta ratura e n q u a n t o tal, e não em psicologia ou sociologia, c devido
sua dicção à maravilhosa multiplicidade dos s e n t i m e n t o s c das a sua extrema simplicidade — têm uma utilidade duradoura.
descrições de Homero . O interesse particular de uma variante de Johnson reside, creio
eu, no uso que ele fez do termo julgamento {judgement). indí-
Os perigos de tentar catalogar as faculdades do poeta são
cio dc suma importância da faculdade crítica que se encontra
de duas espécies. Essas denominações p o d e m separar faculda-
na composição criadora.
des que somente se encontram juntas e p o d e m elas ser conside-
radas muito seriamente, como u m a verdade psicológica ou filo- Na época atual, o poeta (cu gostaria que se compreen-
sófica final, q u a n d o sc tornam apenas análises de validade desse que falo em termos gerais, sem aludir a esse ou àquele
pragmática, a serem tratadas com base em sua utilidade q u a n d o nome) parece propor-se como objetivo principal, entendido
nos a j u d a m a ponderar os méritos de d e t e r m i n a d o s poetas. E como o mais característico de sua arte, novas e surpreendentes
prudente não apenas escolher um jogo dc definições q u e melhor imagens, com episódios que interessem às emoções ou excitem
nos convenha, ou admitir q u e o mais exato é o mais reccnte, a curiosidade. Tanto suas personagens quanto suas descrições
mas t a m b é m cotejar todas aquelas que provenham de respeitá- são, na medida do possível, específicas e individuais, até que
veis autoridades de diferentes épocas. Percebemos q u e elas têm se reduzam apenas a retratos. Em sua dicção e sua métrica, por
muito em c o m u m . Johnson acompanha Dryden no e m p r e g o outro lado, ele se mostra relativamente desleixado."
do termo invenção (invention), pois o situa ao lado da imagina Essas palavras não são minhas, mas de Coleridge, poderiam
ção [imagination], enquanto Dryden tornara a invenção \inven elas, com extrema pertinência, ser aplicadas aos tempos de hoje;
tion] uma espécie de imaginação {imagination], juntamente por outro lado, o princípio aqui mantido é um daqueles que,
com a fantasia [fancy] e a elocução {elocution]', Johnson não estou certo, Johnson aprovaria. De modo semelhante, as obser-
emprega a elocução [elocution), mas introduz o julgamento vações de Coleridge sobre dicção poética, quando comparadas
[judgement]. Coleridge se concentra na imaginação [imagina com as dc Johnson, revelam uma concordância fundamental
Hon], na qual descobre profundezas de significado insuspeito no que se refere à diferença entre o uso da língua em verso e
seja de Dryden, seja de Johnson; e subestima a fantasia, estabe- sua utilização na prosa. Numa época como a nossa, carente de
lecendo uma distinção tão sutil entre a fantasia [fancy] e a ima- padrões comuns, os poetas precisam se lembrar eles próprios
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T. S. ELIOT

de que não basta confiar naqueles dons q u e lhes são inatos, e se torna um meio para a formação do caráter; cm alguns críti-
que cada um deles exerce com naturalidade, mas de q u e a boa cos, dos quais Pater 44 é um exemplo, a temática da crítica se
poesia deve revelar diversas qualidades de proporção, das quais converte num pretexto de outra espécie. Em nossos próprios
u m a é o bom senso. Eles deveriam t a m b é m utilizar seu julga- dias é bastante visível a influência da psicologia e da sociologia
mento para descobrir por si mesmos as matrizes de sua própria sobre a crítica literária. Por outro lado, essas influências das ciên-
cias sociais ampliaram o campo da crítica e consolidaram —
força e fraqueza, a fim de refrear a exuberância de sua força e
num m u n d o que, ao contrário, está inclinado a relegar a impor-
de evitar ocasiões em q u e se revelaria apenas sua fraqueza.
tância da literatura — as relações da literatura com a vida. Mas
Recordo-me de q u e certa vez uma famosa tenista me disse que
de outro ponto de vista, esse enriquecimento tem sido também
jogava melhor q u a n d o se mostrava n a t u r a l m e n t e traça em
um empobrecimento, pois os valores estritamente literários, a
determinados golpes, pois o esforço para superar sua deficiência
apreciação do bom texto pelo próprio amor a esse texto, desapa-
— e a manobra destinada a deixá-la menos vulnerável —
recem q u a n d o a literatura é julgada à luz dc outras considera-
aumentavam consideravelmente suas fontes de energia. Há ções. O fato de q u e as coisas sejam assim não deve ser atribuído
aqui alguma coisa sobre a qual os poetas poderiam refletir. nem à aprovação nem ao descrédito de determinados críticos.
Uma avaliação exaustiva da crítica de J o h n s o n exigiria, em O q u e ocorre simplesmente é que as condições sob as quais a
primeiro lugar, um estudo do contexto geral do século XVIII; literatura é julgada apenas c naturalmente como literatura, e
em segundo lugar, um estudo sobre o próprio J o h n s o n , não não como outra coisa, não existem mais. Para que esse julga-
como objeto de anedota, mas no q u e se refere às suas outras m e n t o da literatura seja a tarefa normal e natural do crííico, é
obras, e à luz de suas opiniões religiosas e políticas; e, final- necessário q u e haja um público definido e limitado ao qual
mente, um estudo muito mais d e t a l h a d o de sua crítica sobre pertença um grupo ainda menor de pessoas de gosto e dc dis-
os maiores poetas que ele examinou, como Shakespeare, Milton, cernimento, com as mesmas características de educação e de cos-
Dryden, Pope ou Gray. Seria mais u m a tarefa de mestre-escola tumes. E preciso que seja uma sociedade que acredite em si
do que de professor. Q u e r o apenas sugerir ao estudioso da poe- mesma, u m a sociedade cm que as diferenças de conceitos reli-
sia e da crítica de poesia ingleses q u e aqui está um assunto q u e giosos e políticos não sejam extremas. Somente numa sociedade
merece muito mais investigação séria do q u e até agora lhe con- desse tipo é q u e os padrões de um estilo comum podem tornar-
cederam. E, para concluir, desejaria resumir aquelas questões se sólidos c inquestionáveis. Essa é a espécie dc sociedade para
q u e me parecem ter particular importância para a crítica de a qual Johnson escreveu. E uma das provas da transformação
poesia de nossa própria época. da sociedade, acelerada em nossa própria época, uma transfor-
Em primeiro lugar, é espantoso q u e The lives o j the poets mação que traz inevitavelmente uma mudança na consciência
de Johnson seja a única coletânea m o n u m e n t a l de estudos críti- da própria crítica literária, é que, ao tentar explicar a mim
cos sobre poetas de língua inglesa, com u m a coerência e uma mesmo e à m i n h a platéia o singular interesse da crítica de John-
amplitude que n e n h u m a outra crítica inglesa p o d e reivindicar. son, vejo-me obrigado a adotar um ponto de vista muito dis-
tinto do dele e a introduzir a sugestão de um contexto social
Cabe aqui perguntarmos por q u e não se escreveu depois
que se tornou a necessária preocupação do crítico.
n e n h u m a obra dc crítica do mesmo gênero. A crítica do século
XIX, q u a n d o não pertence primordialmente à categoria das
pesquisas eruditas, à apresentação de fatos q u e se p o d e m afir- 44. Pater, Walter Horácio. Crítico c ensaísta inglês (Shadwcll, 1839 - Oxford,
mar sobre um ou outro autor, t e n d e m a configurar-se como 1894). Sua obra principal são os Studies in the history of the Renaissance ( 1873).
em que o autor lança os valores estéticos da Renascença. O estcticismo amoralista
algo que foi menos estritamente literário. Com Coleridge, a crí- de Paicr, q u e exerceu forte influência sobre Wilde, pode ser visto ainda em A p pre
tica mergulha na filosofia e n u m a teoria dc estética; com nation*, with an essay on style ( 1889). Plato andplatomsm (1893) e no romance
filosófico Marius. the Epicurean (1885). ( N . T . )
Arnold, ela submerge na ética e na propedêutica, e a literatura
128
T. S. ELIOT

A conclusão dc que uma obra comparável a The lives of


the*poets não pode ser escrita nos dias dc hoje não deveria nos
induzir a colocar Johnson nos píncaros nem a lamentar o declí-
nio de civilidade que torna essa crítica impossível, c o m o tam-
pouco deveria, por outro lado. nos incitar a definir tais ensaios
como curiosidades que não tivessem nenhuma relação com os
nossos problemas atuais. Seu primeiro mérito é um mérito que
BYRON 1
deveria ter para nós todo o estudo do passado, ou seja, o de
que nos tornaria mais conscientes daquilo que somos, e de nos-
sas próprias limitações, proporcionando-nos assim uma compre-
ensão mais ampla do mundo em que agora vivemos. Seu mérito
secundário é o de que, ao estudarmos esses poetas, e ao tentar-
mos assim compreender o ponto de vista dos autores que ele
analisa, poderemos resgatar alguns dos critérios de julgamento
que desapareceram da crítica de poesia. N ã o é preciso aceitar
todos os juízos críticos de Johnson ou concordar com todas as
suas opiniões para aprender essa lição. E nem deveremos su- As circunstâncias dc uma grande parte da vida de Byron
perestimar a poesia daquele período ao qual os nomes de foram bem esclarecidas, ao longo destes últimos anos, por Sir
Dryden e de Johnson podem servir de fronteira. Mas entre as Harold Nicholson- 1 e pelo Sr. QuennelJ, 3 os quais forneceram
variedades de caos nas quais hoje em dia nos encontramos imer- também interpretações concordantes que tornam mais inteligí-
sos, uma é a do caos da língua, no qual não mais são visíveis veis para as atuais gerações o caráter de Byron. Nenhuma inter-
nenhum padrão de escrita, e onde assistimos a uma crescente pretação semelhante, todavia, foi apresentada em nossa época
indiferença para com a etimologia e a história do uso das pala- sobre o verso de Byron. Dentro e fora das universidades, Words-
vras. E precisamos constantemente nos lembrar de que a sobre- worth, Coleridge, Shelley e Kcats tem sido discutidos de vários
vivência da língua é responsabilidade de nossos poetas e críticos. pontos dc vista; Byron c Scott foram deixados dc lado. Mas
Byron, pelo menos, nos daria a impressão dc ser provavelmente
o menos simpático a todos os críticos contemporâneos. Seria
interessante, portanto, se pudéssemos dispor de meia dúzia de
ensaios sobre ele para sabermos qual o índice de concordância
a que poderíamos chegar. Este ensaio constitui uma tentativa
para que isso se torne possível.

1. Texto publicado em From Ann io Victoria. coletânea de ensaios editada por


Bonamy D o b r é e , publicada por Cassei & Co.. em 1937 (N A )
2. Nicholson. Sir Harold. Biografo e crítico literário inglês (Teerã, 1886 —
1961). Editor literário de vários jornais ingleses, escreveu biografias de lennyson.
Verlaine e Byron. ( N . T . )
3. Q u e n n e l l , Peter. Crítico c ensaísta ingles contemporâneo, autor de obras como
Byron: the yean of fame (1935), Byron m Italy ( 1941 ) e Baudelaire ami the symbo
listes (1929). ( N . T . )
VEATS
T. S. ELIOT
259

Há várias dificuldades iniciais. É problemático voltar a ração faz honra a Byron, mas sc vocês examinarem os dois ros-
um poeta cuja poesia despertou — suponho que em muitos tos, não há mais nenhuma semelhança. Para qualquer um que
de nossos contemporâneos, exceto aqueles que eram m u i t o jo- gostasse dc ter bustos em sua casa, um busto de Scott seria
vens para ter lido qualquer poesia desse período o primeiro algo com que se poderia conviver. Há um ar de nobreza que
entusiasmo da juventude. Ouvir histórias da infância de alguém circunda essa cabeça, um ar de magnanimidade, uma espécie
contadas por um parente mais velho é geralmente tedioso; dc serenidade interior e talvez inconsciente que pertence àque-
uma volta, muitos anos depois, à poesia de Byron, faz-se acom- les grandes escritores que são também grandes homens Mas
panhar de uma melancolia semelhante: as imagens retornam Byron - esse rosto intumescido que sugere uma tendência à
à mente misturadas à lembrança de alguns versos no estilo cie corpulência, essa boca fraca e sensual, essa banalidade inquieta
Don Juan, matizadas pela desilusão e pelo cinismo somente da expressão e, pior do que tudo, esse olhar vazio da consciên-
possíveis aos dezesseis anos, versos que poderiam estar publica- cia da beleza —, o busto de Byron é o de um homem que,
dos num jornal de colégio. Há obstáculos mais impessoais a sob todos os aspectos, era um trágico ambulante. Entretanto,
superar. A massa da poesia de Byrgn é deprimente em relação por ser um ator a tal ponto consumado é que Byron chegou
à sua qualidade; alguém poderia supor que ele jamais destruiu a uma espécie de conhecimento do mundo exterior do qual
nada do que escreveu. Todavia, essa massa é inevitável num era preciso que aprendesse alguma coisa para nele desempe-
poeta do tipo de Byron, e a ausência de um e l e m e n t o destrui- nhar o seu papel, e um conhecimento dessa parte de si mesmo
dor em seus poemas indica a espécie de interesse, e a espécie que era o seu papel. Conhecimento superficial, é claro, mas
de falta de interesse, que ele teve em poesia. Nossa opinião é de- tão apurado quanto poderia sê-lo.
que a poesia deve ser algo de muito concentrado, algo decan- Falarei de uma virtude escocesa da poesia de Byron quando
tado, mas se Byron tivesse decantado seus versos, nada teria chegarmos ao Don Juan. Mas há uma parte muito importante
restado. Quando percebemos exatamente o que ele fazia, con- do composto byroniano que pode sem dúvida ser mencionada
cluímos que o. fez da melhor maneira que poderia ter feito. antes dc considerarmos sua poesia, para a qual suponho que
No que se refere à maioria de seus poemas mais curtos, sente- sua ascendência escocesa forneceu a matéria. E seu singular dia-
se que ele fazia algo que Tom Moore poderia fazer tão bem bolismo, seu prazer em posar como criatura condenada e em
ou melhor; em seus poemas mais extensos, ele realizou algo dar provas de sua danação de maneira quase sempre terrifican-
que ninguém jamais conseguiu igualar. te. Ora, o diabolismo de Byron é muito distinto daquele que
E às vezes desejável abordar a obra de um poeta inteira- a "agonia romântica", como a chama o Sr. Praz,·' produziu
mente desacreditado através de uma via dc acesso pouco fami- nos países católicos. E não julgo que seja fácil fazê-lo derivar
liar. Sc a via de acesso que escolhi para chegar a Byron for do confortável compromisso entre o cristianismo e o paganismo
uma estrada que só existe cm meu próprio espírito, serei corri- a que se chegou na Inglaterra e que é caracteristicamente inglês.
gido por outros críticos: ela pode, de qualquer m o d o , frustrar Ele só podia provir do contexto religioso de um povo embebido
os preconceitos c encorajar uma nova opinião a ser formada. na teologia calvinista.
Sugiro, por conseguinte, considerar Byron como um poeta esco- O diabolismo byroniano, se na verdade merece esse nome,
cês — eu disse escocês, e não de expressão escocesa, já que ele era de tipo compósito. Até certo ponto, cie compartilha da ati-
escreveu em inglês. O único poeta de sua época que se podia
considerar capaz de rivalizar com ele, um poeta ao qual Byron 4· Praz, Mario. Crítico c ensaísta italiano (Roma. 1896), especialista do período
se referia invariavelmente nos mais altos termos, era Sir Wal- romântico e de história da literatura inglesa. Escreveu sobre C h a u c e r . Donne c o
ter Scott. Sempre vi, ou imaginei ter visto, no busto dos dois teatro elisabetano. Suas obras principais são La carne, la morte e il diavolo noia
letteratura romantica ( 1930), Stona della letteratura inglesa {1937) e The romantic
poetas, uma certa semelhança no formato da cabeça. A compa- agony (1947), o n d e analisa o erotismo byroniano. (N.T.)
260 T. S. ELIOT GOETHE. O SABIO 285

rude prometeica de Shell. - e da paixão romântica pela liber- ser poético, e tais tentativas, após as examinarmos, se tornam
dade; e essa paixão, que inspirou seus mais românticos arrou- fraudulentas: são apenas afirmações de lugar-comum sem
bos. se combinava à imagem de si mesmo como h o m e m de nenhuma profundidade de significação. Um bom exemplo dessa
ação capaz de trazer à tona a aventura grega. E sua atitude pro- impostura é a conhecidíssima estrofe do final do Canto XV do
meteica se confunde com uma atitude satânica (miltoniana). Don Juan:
A concepção romântica que Milton tinha de Satã e semiprome-
téica, além de contemplar o Orgulho como virtude. Seria difí- Between two worlds life hovers like a star,
cil dizer se Byron era um h o m e m orgulhoso, ou um h o m e m Twixt night and morn, upon the horizon's verge.
que gostava de se fazer de orgulhoso — a possibilidade de as
How h t tie do we know that which we are I
How less what we may be! lhe eternal surge
duas atitudes estarem combinadas na mesma pessoa não as torna
Of time and tide rolls on, and bears afar
nem um pouco diferentes no plano abstrato. Byron era sem
Our bubbles; as the old burst, new emerge,
dúvida um h o m e m vaidoso, de maneira absolutamente simples: Lashed from the foam of ages; while the graves
Of empire heave but like some passing waves.G
I can 7 complain. whose ancestors are there.
Emets, Radulphus — eightand-forty manors São versos indignos até mesmo de uma revista colegial. A verda-
(.If that my memory doth not greatly err)
deira excelência de Byron situa-se em outro nível.
Were their reward for following Billy s banners. (...)s
As qualidades do verso narrativo que se encontra em Don
Seu sentido de danação estava também suavizado por um
Juan não são menos notáveis nos contos anteriores. Antes de
me ocupar deste ensaio, confesso que desde os tempos de meu
toque de irrealidade; para um h o m e m tão ocupado consigo
entusiasmo escolar jamais relera esses contos, e deles me reapro-
mesmo e com a personagem que interpretava, nada q u e perten-
ximei com certa apreensão. Eles são legíveis. Por mais absurda
cesse ao mundo exterior podia ser inteiramente real. E impossí-
que seja a concepção de vida neles expressa, tais contos são,
vel, portanto, fazer de seu diabolismo algo coerente ou racio-
como contos, muito bem contados. Como contador de histórias,
nal. Parece que ele era capaz de atuar de duas maneiras,, e de
cumpre-nos, na verdade, ter Byron em alta conta; considero
se considerar ao mesmo tempo um indivíduo isolado e superior
que n e n h u m outro além de Chaucer possui maior legibilidade,
aos outros homens por causa de seus próprios crimes, e uma cria-
com exceção de Coleridge, a quem Byron usou mal e çóm quem
tura naturalmente boa e generosa, corrompida por crimes come-
muito aprendeu. E Coleridge jamais realizou uma narrativa
tidos contra si pelos outros. E essa criatura inconseqüente que
dessa extensão. Os enredos de Byron, caso mereçam ser assim
se torna o Giaour, o Corsário, Lara, Manfredo e Caim; somente
considerados, são extremamente simples. O que torna os contos
como Don Juan é que ele se avizinha de sua própria verdade.
interessantes é, em primeiro lugar, uma fluência torrencial do
Mas nessa estranha composição de atitudes e crenças o elemento
verso e uma habilidade para fazê-lo variar aqui e ali, a fim de
que parece mais real e profundo é o da perversão da fé calvi-
evitar a monotonia; e, em segundo lugar, um gênio para o deva-
nista dos ancestrais de sua mãe.
neio. A digressão, na verdade, é uma das artes mais eficazes
Uma das razões para o esquecimento de Byron, creio eu,
é que ele foi admirado por suas mais ambiciosas tentativas de
6. Entre dois m u n d o s a vida oscila, c o m o u m a estrela, / Entre a noite c a m a n h ã ,
nas bordas do horizonte. / Q u ã o pouco sabemos do q u e somos! / Menos ainda o
5. " N ã o posso me queixar, c u , cujos ancestrais lá estão. / Erneis, R a d u l p h u s — que seremos! A vaga eterna / Do t e m p o e da morte rola sem cessar, e leva para
quarenta e oito solares / (Se m i n h a memória não me traísse tanto) / Eoram sua longe / Nossas bolhas dc ar; e q u a n d o estouram as antigas, as novas se f o r m a m ,
recompensa por ter seguido os estandartes de Billy ( . . . ) . " Billy era o n o m e fami- ' Saídas da e s p u m a dos séculos, e n q u a n t o as t u m b a s / Dos impérios se levantam,
liar de William ( G u i l h e r m e , o Leão), rei da Escócia entre 1165 e 1214. ( N . T . ) nias c o m o vagas passageiras." ( N . T . )
262 T. S. ELIOT GOETHE. O SABIO 285

do contador de histórias. O efeito das digressões de Byron tem que por qualquer desejo de· absolvição, que dificilmente lhe
por objetivo nos manter interessados no próprio narrador, e, poderia ter sido concedida; mas o emprego do artifício acrescen-
graças a esse interesse, interessar-nos ainda mais na história. tava uma pequena complicação à história. C o m o já disse, não
Para os leitores de sua época, esse interesse deve ter sido muito é absolutamente fácil descobrir o que aconteceu. O poema se
forte do ponto de vista da magia encantatória, pois, ainda hoje inicia por uma longa apóstrofe à extinta glória da Grécia, tema
em dia, se a ela nos submetermos a ponto de 1er um poema a partir do qual Byron podia tecer variações com grande habili-
de cabo a rabo, o fascínio da personalidade de Byron é pode- dade. O Giaour faz uma entrada dramática:
roso. Se citássemos alguns poucos versos, não importa, a rigor,
diante de que platéia, eles provavelmente desencadeariam um Who thundering comes on blackest steed\
acesso de momentânea hilaridade:
With slackened bit and hoof of speed?10
E temos dele uma vaga aparição através de um olho muçulmano:
Her eye 's dark charm 'twere vain to tell.
But gaze on that o) the Gazelle. Though young and pale, that sallow front
It will assist thy fancy well; Is scathed by fiery p as s ton s brunt (...),11
As large, as languis hingly dark.
But Soul beam'd forth in every spark (...), que é o bastante para nos dizer que o Giaour é uma pessoa inte-
ressante, pois encarna, talvez, o próprio Lord Byron. Segue-se
mas o poema como um todo pode mobilizar a atenção de uma longa passagem sobre a desolação na casa de Hassan, habi-
alguém. The Giaour* é um longo poema, mas seu enredo é tada apenas pela aranha, o morcego, a coruja, o cachorro-do-
muito simples, embora nem sempre fácil dc acompanhar. Um mato e as ervas daninhas; deduzimos que o poeta omitiu a con-
cristão, presumivelmente um grego, se e m p e n h o u , por alguns clusão da história e que devemos esperar que o Giaour assas-
meios sobre os quais nada nos é dito, cm insinuar-se na intimi- sine Hassan, que é, obviamente, o que ocorre. N e m Joseph
dade de uma jovem que pertencia ao harém, ou q u e talvez Conrad poderia ser mais perifrástico. Um embrulho cai então
fosse a esposa favorita de um muçulmano chamado Hassan. secretamente na água, e suspeitamos que seja o do corpo de
Na tentativa de escapar com seu amante cristão, Leila é recaptu- Leila. Segue-se uma passagem reflexiva cm que o poeta medita,
rada c morta; no curso devido, o cristão, com alguns de seus sucessivamente, sobre a Beleza, o Espírito e o Remorso. Leila
amigos, embosca e mata Hassan. Descobrimos depois q u e a his- volta de repente, viva, por um m o m e n t o , mas isso nada mais
tória dessa vingança — ou parte dela — é contada pelo próprio é do que outro deslocamento na ordem dos acontecimentos.
Giaour a um padre de meia-idade, sob a forma de confissão. Testemunhamos então a surpreendente chegada de Hassan e
E de uma espécie singular de confissão, pois o Giaour é tudo, seu séquito — isso pode ter ocorrido meses ou mesmo anos
menos penitente, e torna absolutamente claro que, embora seja após a morte de Leila — surpreendidos pelo Giaour e seus ban-
ele pecador, não o é de fato por sua própria culpa. Ele parece didos, e não resta dúvida de que Hassan será assassinado:
antes impelido pelo mesmo motivo do Velho Marinheiro 9 do
Fali'η Hassan lies — his unclosed eye
Seria inútil proclamar o encanto de seu olho negro, / Mas olha f i x a m e n t e a Yet lowering on his enemy. (...) 12
pupila da Gazela. / Ela virá socorrer a tua fantasia; / Ainda q u e tão vasta e tào
languidamente sombria. / A Alma fulgura em cada centelha ( . . . ) . " ( N . T . ) 10. " Q u e m chega com o clamor do trovão sobre o corcel mais negro, / O bridão
8. Publicado em 1813, o título completo desse p o e m a e The Giaour; a fragment afrouxado e os cascos apressados? ' ( N . T . )
of a Turkish tale. ( N . T . )
11. " E m b o r a pálida e jovem, essa f r o n t e amarelada / Está destruída pelos arrou-
9. Personagem central do poema de Coleridge, The ancient manner, q u e , corno bos da fogosa paixão ( . . . ) . " ( N . T . )
castigo por um crime comeiido no mar (ele m a t o u um albatroz), e' vítima dc um 12. " H a s s a n cai ao solo - seus olhos a i n d a abertos / Eitam ameaçadores o ini-
desejo irrefreável de contar a sua história ( N . T . )
migo ( . . . ) . · ' ( N . T . )
264 T. S. ELIOT
BYRON 265

Ocorre então uma deliciosa mudança de métrica, bem como Vale a pena observar, suponho, que Byron levou o conto
uma súbita transição, justamente no instante em que esta se
em verso bem mais adiante do que Moore e Scott, se quiser-
faz necessária:
mos considerar sua popularidade como qualquer coisa mais
The browsing camels' bells are tinkling; densa do que o capricho do público ou o fascínio de uma perso-
His mother look d from her lattice high — nalidade habilmente explorada. Certamente, tais elementos con-
She saw the Jews of eve besprinkling tribuem para ela, mas, acima de tudo, os contos em verso de
The pasture green beneath her eye, Byron representam um estágio mais amadurecido do que os
She saw the planets faintly twinkling: de Moore. O Laila Rookh, desse último autor, é apenas uma
4
'Tis twilight sure his train is nigh. n seqüência de contos reunidos por um pesado relato em prosa
Segue-se uma exéquia para Hassan, pronunciada evidentemente das circunstâncias de sua narração, sem dúvida imitada de As
por outro muçulmano. E eis que o Giaour reaparece, nove mil e uma noites. Scott aperfeiçoou uma história em estilo
anos depois, num mosteiro, c o m o ficamos sabendo por um dos direto com um tipo de enredo que ele utilizaria cm suas novelas.
monges que responde a uma pergunta sobre a identidade do Byron c o m b i n o u o exotismo com a realidade, e desenvolveu
visitante. N ã o se esclarece de que m o d o o Giaour se ligou ao mais efetivamente o emprego do suspense. Suponho também
mosteiro; os monges parecem tê-lo aceito sem reservas, e seu que a versificação de Byron é a mais hábil possível, mas essa
comportamento entre eles é m u i t o estranho, mas somos infor- espécie de verso precisa ser lida em toda a sua extensão se se*
mados de que ele doou ao mosteiro uma vultosa soma em pretende formar uma impressão, e seu mérito relativo não
dinheiro pelo privilégio de permanecer ali. O p o e m a termina pode ser revelado por meio de citações. Identificar cada passa-
com a confissão do Giaour a um dos monges. Por q u e um grego gem tomada ao acaso c o m o se fosse de Byron ou de Moore exi-
daquela época teria ficado abatido pelo remorso (embora de giria um conhecimento que está além da minha capacidade,
todo impenitente) por assassinar um m u ç u l m a n o n u m combate mas s u p o n h o que q u e m quer que haja recentemente lido os
que teria considerado leal, ou por que Leila teria sido culpada contos de Byron concordaria que a seguinte passagem não pode
de abandonar um marido ou senhor a q u e supostamente estava ser de sua autoria:
unida sem seu consentimento, são perguntas a que não pode-
mos responder.
And ohi to see the unbuned heaps
Considerei alguns detalhes do Giaour para provar a extraor- On which the lonely moonlight sleeps —
dinária engenhosidade de Byron como contista. Nada existe de The very vultures turn away,
direto no relato de uma história simples; nada do que gostaría- And sicken at so foul a prey I
mos de saber é contado, e o comportamento dos protagonistas Only the fierce hyaena stalks
é às vezes tão inexplicável que suas razões e sentimentos são con- Throghout the city s desolate walks
fusos. Todavia, o autor não apenas dela se afasta, c o m o também At midnight, and his carnage plies
dela se distancia enquanto nanativa. Trata-se do mesmo talento Woe to the half de ad wretch, who meets
que Byron deveria ter utilizado melhor no Don Juan\ e a pri- The glaring of those large blue eyes
meira razão pela qual Don Juan continua ainda legível é que o A mid the darkness of the streets!u
poema tem a mesma qualidade narrativa dos contos anteriores.
14. "E oh! ao ver os m o n t u r o s insepultos, / Sobre os quais o luoar d o r m e solitário
13. " O s camelos pastando fazem tilintar os guizos: / Sua m ã e olha do alto da / — Ate m e s m o os abutres se afastam / De presa tão m e d o n h a q u e os nauseia 1 /
janela Ela viu o orvalho da noite q u e umedecia / O verde pasto sob os seus Somente a esquiva hiena p e r a m b u l a I Pelas ruas desoladas da cidade A meia-
olhos, / Viu os planetas q u e t i h i a m e n t e cintilavam: É o crepúsculo decerto o noite, e se lança à carniça / — Infeliz do miserável semimorto, que vc / O olhar
seu séquito está p r ó x i m o ' . " ( N . T . ) faiscante d a q u e l a s grandes pupilas azuis / No coração das trevas q u e povoam as
ruas." (N.T.)
266 T. S ELIOT BYRON 267

Isso é de Lalla Rookh, e foi assinalado c o m o excepcional dito pela arte instintiva graças à qual, num poema como Childe
por algum leitor da Biblioteca de Londres. Harold, e ainda mais eficazmente cm Beppoig ou em Don Juan,
Childe Harold15 parece-me inferior a esse grupo de poe- ele evita a monotonia ao transitar com habilidade de um assunto
mas (The Giaour, The bride of Abydos. The corsair, Lara etc.). para outro. Ele tinha a virtude maior de jamais ser enfadonho.
De tempos em tempos, é verdade, Byron desperta um tíbio inte- Mas, ao admitirmos a existência de virtudes esquecidas, reco-
resse graças a uma passagem brilhante, mas as passagens brilhan- nhecemos ainda uma falsidade na maioria daquelas passagens
tes de Byron jamais são suficientemente boas para torná-las o que foram anteriormente mais admiradas. A que se deve essa
que delas se espera em Childe Harold: falsidade?
Qualquer que seja, na poesia de Byron, o elemento 4 'im-
Stop! for thy tread is on an Empire s dust16 próprio", estaríamos enganados se o chamássemos de retórico.
Muitas coisas têm sido grupadas sob essa designação, e se nos
é justamente o que se deseja para reviver o interesse nesse ponto,
dispusermos a julgar o verso de Byron como retórico", estare-
mas a estrofe que se segue, sobre a batalha de Waterloo,
mos então constrangidos a evitar o emprego desse adjetivo a
parece-me absolutamente falsa, e é de todo representativa da
propósito de Milton e de Dryden, a propósito daqueles em rela-
falsidade em que Byron se refugia toda vez que tenta escrever
ção aos quais (e sob formas muito distintas) parece que esta-
poesia:
mos d i z e n d o algo que tenha sentido, quando aludimos a sua
Stop! for thy tread is on an Empire's dust! ''retòrica". Seus fracassos, quando eles fracassam, são de uma
An Earthquake 's spoil is sepulchred below! espécie mais comprometedora do que a dos êxitos de Byron,
Is the spot mark d with no colossal bust? quando o b t é m êxito. Cada um deles tinha uma forma de se
Nor column trop hie d for triumphal show? expressar acentuadamente pessoal, assim como um sentido da
None; but the moral's truth tells simpler so, língua; na pior das hipóteses, eles tem um interesse pela pala-
As the ground was before. so let it be; — vra. Vocês p o d e m reconhecê-los graças a um único verso, e
How that red rain hath made the harvest grow! podem dizer: eis aqui uma maneira particular de usar a língua.
And is this all the world has gained by thee,
Não há uma individualidade desse gênero no verso de Byron.
Thou first and last of fields! king making victory ?r
Se avaliarmos alguns versos isolados da passagem sobre a bata-
lha de Waterloo no Childe Harold, os quais poderiam passar
h muito mais difícil, numa epoca que perdeu m u i t o cedo
por "citações familiares' \ não poderemos dizer que algum
a capacidade de apreciar as virtudes que p o d e m ser encontra-
deles seja grande poesia:
das na poesia de Byron, analisar com acuidade seus vícios e
defeitos. E por isso que não queremos conceder a Byron o cré-
And all went merry as a marriage bell (...)
15. O Childe Harold's pilgrimage é um longo p o e m a narrativo em catorze cantos, On with the dance! let joy be unconfined. (...) 19
dos quais os dois primeiros foram publicados em 1812 e o ú l t i m o em 1818 O
poema narra a peregrinação de um herói d e s e n c a n t a d o e suas aventuras amorosas
pela península Ibérica, a Grécia e a Albânia. ( N . T . )
Pode-se dizer de Byron, como de nenhum outro poeta inglês de
16. "Pára 1 pois teu pé repousa sobre o pó de um i m p é r i o . " (N T . )
sua estatura, que ele nada acrescentou à língua, nada descobriu
1 7 • Pára· pois teu pé repousa sobre o pó de um unpério! / As ruínas de um cata-
clisma estão sepultas lá embaixo! / O sítio está assinalado por um busto colossal> 18. Beppo, a Venetian history. publicado em 1818, é um poema em oitava-rima,
Ou por uma gloriosa coluna em sinal de triunfo? / N a d a ; mas a verdadeira moral em tom ligeiro e cáustico, ern que o autor satiriza a sociedade veneziana da época. (N. 1 )
fala tao mais simplesmente. / C o m o antes era o solo, q u e assim p e r m a n e c e / - 19. "E t u d o seguia alegremente, c o m o um carrilhão nupcial ( . . . ) / Continuai a
Como a chuva vermelha faz crescer a colheita! / E eis t u d o o q u e o m u n d o rece- dançar! Q u e a alegria não t e n h a fim ( . . . ) . " Alusão ao famoso baile de Bruxelas,
beu de ti, / l u . a primeira e a última baralha! Vitória artífice de reis?" (N T . ) d u r a n t e a noite q u e antecedeu a batalha de Waterloo. ( N . T . )
268 T. S. ELIOT GOETHE. O SABIO 285

44
quer nas sonoridades, quer no significado das palavras, se as Non pas vers qui chantent dans la mémoire, mais vers
considerarmos de per si. Não consigo pensar cm n e n h u m poeta qui dans la mémoire sonnent et retentissent comme une fan-
dc sua distinção que pudesse ter sido tão facilmente um consu- fare, vibrants, trépidants, sonnant comme une fanfare, son-
mado estrangeiro que escrevia em inglês. A pessoa c o m u m fala nant comme une charge, tambour éternel, et qui battra dans
inglês, mas somente algumas pessoas cm cada geração podem les mémoires françaises longtemps après que le réglementaires
escrevê-lo; e dessa colaboração involuntária entre um grande tambours auront cessé de battre au front des régiments \21
número de pessoas que falam uma língua viva e algumas pou- Mas Byron não pertencia "a essa g e n t e " , nem à de Lon-
cas que a escrevem é que d e p e n d e a continuidade e a sobrevi- dres, nem à da Inglaterra, mas à gente de sua mãe, e a mais
vência dessa língua. Assim c o m o um artista q u e pode se expri- excitante estrofe de sua Waterloo é a seguinte:
mir magnificamente em inglês enquanto se dedita a sua obra
ou se encontra num bar, e somente a duras penas é capaz de And wild and high the 'Cameron s gathering ' rose!
escrever uma carta numa língua morta que guarda certa seme- lhe war note of Lo chie I which Albyn's hills
lhança com o artigo de fundo de um jornal, enfeitado com pala- Have heard, and heard, too, have her Saxon foes; —
How in the noon of night that pibroch thrills,
vras como "redemoinho ou p a n d e m ò n i o \ assim t a m b é m
Savage and shrill! But with the breath which fills
Byron escreve uma língua morta ou agonizante.
Their mountain-pipe, so fill the mountaineers
Essa insensibilidade de Bvron para com o vocábulo inglês With the fierce native daring which instils
— a tal ponto dc empregar um grande número de palavras antes The stirring memory of a thousand years,
que delas tomemos consciência indica, para propósitos práti- And Evan s, Donald's fame rings in each clansman s ears!22
cos, uma sensibilidade precária. D i g o "para propósitos práticos"
porque estou preocupado com a sensibilidade em sua poesia, e Tudo concorria para fazer de Don Juan2 " o maior dos poe-
não com a sua vida privada, pois se um escritor não dispuser mas de Byron. A estrofe que ele tomou de empréstimo aos poetas
da língua em que expressa seus sentimentos, estes poderiam per- italianos permitia-lhe valorizar admiravelmente seus méritos e
feitamente não existir. Não precisamos sequer comparar seu dissimular suas deficiências, do mesmo m o d o que sc sentia
relato de Waterloo com o de Stendhal para sentirmos a falta mais à vontade sobre um cavalo ou na água do que sobre seus
de detalhes precisos, mas vale a pena assinalar q u e a sensibili- pés. Seu ouvido era precário e capaz apenas de efeitos grossei-
dade de Stendhal, expressa em sua prosa, revela certos valores ros; e em sua estrofe de ritmo lento, com seus finales habitual-
poéticos que Byron absolutamente não tem. Byron fez pela lín-
21. " N ã o os versos q u e c a n t a m na m e m ó r i a , mas os versos q u e ecoam e r e t u m b a m
gua muito mais do que os redatores de artigos de f u n d o de nos-
na m e m ó r i a c o m o u m a fanfarra, vibrantes, trepidantes, ecoando como uma fantar-
sos jornais fazem todos os dias. Julgo que esse malogro é muito ra, e c o a n d o c o m o um disparo, t a m b o r eterno, c q u e pulsarão nas memórias france-
mais importante do que a banalidade dc suas intermitentes diva- sas por longo t e m p o depois q u e os tambores regulamentares silenciarem à trente
dos r e g i m e n t o s . " ( N . T . )
gações filosóficas. Todos os poetas exprimiram banalidades, todos
22. " S e l v a g e m e altissonante, ergueu-se o grito das 'tropas dos Camarões'! / O
disseram coisas que já haviam sido ditas. N ã o é a fragilidade grito de guerra de Lochiel. q u e as colinas de Albyn / O u v i r a m , e q u e ouviram tam-
das idéias, mas o domínio escolar da linguagem, que faz o seu b é m seus inimigos saxónicos; / C o m o no ápice da noite essa p í b r o q u e marcial
verso nos parecer trivial, e seu pensamento, pouco profundo: reboa, / A g u d a e selvática! Mas o sopro q u e insufla / Sua cornamusa insufla de
tal m o d o os m o n t a n h e s e s / C o m a bravia audácia nativa q u e instila / A excitante
Mais que Hugo aussi était dans tout ce peuple.™ As pala- lembrança de mil anos, / E a glória de Evan e de Donald ecoa nos ouvidos de
vras de Péguy não deixam de flutuar cm meu espírito q u a n d o cada h o m e m d o c l ã ! " ( N . T . )
penso em Byron: 23. O Don Juan é um p o e m a heróico-cómico q u e constitui u m a sátira brilhante e
atrevida a maneira do século XVIII, talvez u m a auto-ironia, ou uma visão sarcás-
tica do herói do Childe Harold. Byron começou a escrevê-lo em 1819 e terminou-o
20. E que H u g o t a m b e m pertencia a toda essa g e n t e . " ( N . T . )
em 1824. ( N . T . )
270 T. S F.l.lOT BYKON 271

mente femininos e ocasionalmente t r i p l o s , e l c parece sempre cação deliberada, uma fabricação que só se completa com o
nos advertir de que não está fazendo muito esforço e de que, texto dos últimos versos. A razão pela qual Byron compreendeu
não obstante, está produzindo algo de tão bom ou melhor do esse eu tão bem é ele que constitui sua própria invenção, e o
que os poetas solenes que consideram sua versificação mais poeta não compreendeu perfeitamente senão o eu que inventou.
seriamente. E, na verdade, Byron alcança o melhor de si quando Sc não me engano, não se pode sentir piedade e horror senão
não faz muito esforço para ser poético; quando tenta sê-lo em diante do espetáculo dc um homem que consagra uma energia
alguns versos, produz coisas como a estrofe que anteriormente tão desmesurada e tanta pertinácia a um propósito inútil c insig-
citei e que começa assim: nii icantc; ao mesmo tempo, contudo, sentimos simpatia e
humildade ao refletir que se trata dc um vício ao qual a maio-
Between two worlds life hovers like a star.
ria de nós se entrega de maneira indecisa e menos obstinada,
Mas numa escala de intensidade menor, ele alcança uma o que vale dizer que Byron fazia da vocação aquilo que, para
surpreendente gama dc efeitos. Seu gênio para a digressão, que quase todos nós, constitui uma fraqueza momentânea, mere-
o afasta de seu assunto (usualmente para falar de si mesmo) e cendo por isso uma certa admiração melancólica por seu êxito.
de súbito o traz de volta a este, atinge no Don Juan o ápice Mas em Don Juan temos algo muito mais próximo de uma
de sua força. O sarcasmo e a zombaria contínuos, que sua estrofe autêntica au to-revelação, pois Juan, apesar das fulgurantes virtu-
e seu modelo italiano encarregam-se de manter constantemente des que Byron lhe atribui — de modo que cie pudesse manter
em seu espírito, atuam como um admirável antídoto contra o seu nível junto à aristocracia inglesa —, não é uma personagem
estilo bombástico que tende, nos relatos anteriores, a embru- heróica. Nada há de absurdo na sua presença de espírito c cora-
lhar o estômago do leitor; e sua sátira social ajuda-o a permane- gem durante o naufrágio, nem nas suas proezas nas guerras
cer objetivo, além de revelar uma sinceridade que, se não é pro- otomanas; ele exibe uma espécie de coragem física e uma capa-
funda, parece pelo menos plausível. O retrato que cie pinta cidade de heroísmo que estamos absolutamente dispostos a atri-
de si mesmo chega a ser bem mais honesto do que tudo o que buir ao próprio Byron. Mas nos relatos de suas relações com as
nos é dado a ver em suas primeiras obras. Vale a pena examiná- mulheres, ele nada faz para parecer heróico ou mesmo digno,
lo em certos detalhes. e temos a impressão de que tais relatos incluem tanto um ingre-
Charles Du Bos, em seu admirável Byron et le besoin de diente autêntico quanto uma dose de simulação.
la fatalité^ cita uma longa passagem de Lara1' em que Byron É notável — e isso confirma, creio eu, o ponto dc vista
se auto-retrata. Du Bos mcrece pleno crédito por rcconhcccr sobre Byron sustentado pelo Sr. Peter Quennell — que, nesses
sua importância, e Byron merece todo o crédito que Du Bo§
episódios amorosos, Juan desempenhe sempre o papel passivo.
lhe dá por tê-la escrito. Essa passagem me surpreende também
Até mesmo Haidee, a despeito da inocência e da ignorância
como uma obra-prima de auto-análise, mas de uma análise do
dessa flor da natureza, parece antes a sedutora do que a sedu-
eu que é, em boa parte, uma fabricação deliberada, uma fabri-
zida. Esse episódio é o mais longo c o mais cuidadosamente ela-
borado dentre todas as passagens amorosas, c julgo que ele
24. Trata-se de um verso cuja solução recai sobre u m a sílaba á t o n a . ( N . T . )
mereça ser bastante ressaltado. É verdade que, após a iniciação
25. Obra do crítico e ensaísta francês Charles Du Bos (Paris. 1882 — La
Celle-Saint-Cloud, 1939), publicada em 1931. Ou Bos deixou ainda um m a g n í f i c o que Juan recebera anteriormente de Donna Julia, somente a
ensaio sobre G o e t h e (1949) e as sete séries das Approximations (1922-1937), além custo nos tornaremos crédulos o bastante para acreditar na ino-
de um diário (1946-1954). de publicação p ó s t u m a . ( N . T . )
cência que se lhe atribui com Haidee, mas isso não nos levaria
26 C o m o The corsair, Ura (1814) é um p o e m a narrativo q u e tem c o m o cenário
as ilhas gregas do Mediterrâneo e q u e descreve as aventuras de um herói melancó- a rejeitar a descrição como falsa. A inocência de Juan é apenas
lico e algo sinistro. ( N . T . )
um substitutivo da passividade de Byron, e se a situarmos em
272 T. S. ELIOT GOETHE. O SABIO 285

seu devido lugar, poderemos reconhecer no relato alguma autên- Who queer a flat? Who (spite of Bow-street's ban)
tica compreensão do coração humano e aceitar versos c o m o On the high toby-spice so flash the muzzle?
Who on a lark. with black-eyed Sal (his blowing)
Alasi They were so young, so beautiful. So prime, so swell, so nutty, and so knowing?29
So lonely, loving. helpless, and the hour
Was that in which the heart is always full. Isso é de primeira ordem. N ã o lembra nem um pouco Crabbe,
And having o'er itself no further power. sugerindo antes Burns.
Prompts deeds eternity cannot annul (...)2 Os últimos quatro cantos são, se não estou redondamente
enganado, os mais substanciosos do poema. Satirizar a humani-
O amante de Donna Julia e de Haidee é justamente aquele dade requer em geral um talento mais cordial que o de Byron,
homem, percebe-se, que vira a ser em seguida o favorito de tal como o de Rabelais, ou mais profundamente torturado,
Catarina, a Grande — para cuja apresentação, suspeita-se, Byron como o de Swift. Mas na última parte do Don Juan Byron revela-
se preparou ao longo de seus oito meses com a condessa de se preocupado com um cenário inglês no qual nada restava de
Oxford. 2 8 E aí permanece, se não a inocência, pelo menos romântico para ele; o poeta estava interessado num campo res-
aquela estranha passividade que curiosamente se assemelha à trito que conhecera muito bem, e uma cortante animosidade
inocência. aguçava seus poderes de observação, facilitando-lhe assim o exer-
Entre a primeira e a segunda parte do p o e m a , entre as cício da sátira. Sua capacidade de entendimento permanecia
aventuras de Juan no exterior e suas estripulias na Inglaterra, superficial, mas era precisa. E bastante possível que ele tenha
há uma notável diferença. Na primeira parte, a sátira ê inci- compreendido algo que não foi capaz de levar a uma conclusão
dental; a ação é picaresca, e da melhor categoria. A criativi- eficaz; possivelmente era-lhe necessária, para completar a histó-
dade de Byron jamais falha. O episódio do naufrágio, muitís- ria daquela reunião monstruosa, certa capacidade de rir, o que
simo conhecido graças às citações, revela algo de absolutamente era avesso ao temperamento de Byron. Ele poderia ter julgado
novo e bem-sucedido, ainda que o autor carregue um pouco impossível lidar com aquela notável personagem de Aurora
nas tintas no ato de canibalismo com o qual a seqüência cul- Raby, a mais consistente de sua galeria, dentro dos limites de
mina. A última aventura extravagante ocorre i m e d i a t a m e n t e uma sátira. T e n d o criado uma personagem demasiado séria,
após a chegada de Juan à Inglaterra, q u a n d o é d e t i d o por ban- de um m o d o bastante real para o m u n d o que conhecia, pode-
didos na estrada para Londres; e aqui, mais uma vez, me ria ele ter sido levado a reduzi-la às dimensões de uma dc suas
parece que, na oração fúnebre do bandido morto, há algo de heroínas românticas comuns. Mas Lord Henry e Lady Adeline
novo no verso inglês: Amundeville são pessoas exatamente do nível de Byron quando
à sua capacidade de compreensão, e têm uma realidade pela
He from the world had cut off a great man, qual seu autor talvez não haja recebido o devido crédito.
Who in his time had made heroic bustle.
Who in a row like Tom could lead the van. O que coloca os últimos cantos do Don Juan no topo das
Booze in the ken, or at the spellken hustle? obras de Byron é, creio eu, a circunstância de que a temática

" A i dc m i m ' l ies cram tào jovens, tão belos, / Tão solitários, amorosos, inde-
29. " E l e privara o m u n d o dc um g r a n d e h o m e m . / Q u e , em sua época, promo-
fesos. e a hora / Era aquela em que o coração, sempre t r a n s b o r d a n t e , / E n ã o t e n d o
vera heróicas desordens. I Nos distúrbios, q u e m , melhor do q u e T o m . podia assu-
mais n e n h u m controle sobre si, / C o m e t e atos q u e a e t e r n i d a d e não p o d e a n a t a r
mir o c o m a n d o . / Embriagar-se na taverna, ou bancar o t r o m b a d i n h a na multi-
(...)." (N.T.)
dão? / Ou e n g a n a r os otários? Q u e m (apesar da proibição do comissário) / Nos
28. Na verdade. Byron teve u m a breve ligação amorosa t o m a condessa de Oxíord assaltos de estrada melhor acendia a pólvora? / Q u e m , n u m a pilantragem. com
em fins de 1812, época em q u e manteve t a m b é m relações tempestuosas com Lady Sarah de olhos negros, sua a m a n t e , / Era tão maravilhoso, tão elegante, tão sedu-
Caroline Lamb. ( N . T . )
tor e tão a s t u t o ? " ( N . T . )
275 285
T. S. ELIOT GOETHE. O SABIO

lhe proporciona afinal um objeto adequado a uma autèntica sustentada sem remissão até o último verso da décima sétima
emoção. A emoção é avessa à hipocrisia, e se ela fosse revigo- estrofe. Essa não é a sátira de Dryden, e muito menos a dc
rada por sentimentos mais pessoais e mesquinhos, os sentimen- Pope; está mais próxima talvez das de Hall 51 ou de Marston, 32
tos do homem que, quando criança, conhecera a humilhação que são, aliás, impróprios para comparação. Na verdade, não
de aposentos miseráveis em companhia de uma mãe excêntrica; se trata em absoluto da sátira inglesa; é antes um flyling, 33
que, quando tinha quinze anos, se revelara desajeitado, desgra- mais próximo em sentimento e inienção da sátira de Dunbar: 5 4
cioso e incapaz dc dançar com Mary Chaworth; que permane-
cera estranhamente alheio na sociedade que tão bem conhecia Lene larbar, loungeour, baith lowsy in lisk and lonye;
— essa mistura da origem de sua atitude para com a sociedade Fy! skoldent skyn, thow art both skyre and skrumple;
inglesa lhe daria apenas maior intensidade. E a hipocrisia do For he that rostit Lawrance had thy grunye.
mundo que ele satirizou se situava no extremo oposto da sua. And he that hid Sand John is ene with ane worn pie,
Na verdade, o termo "hipócrita' , exceto no sentido original And he that dang Sane t Augustine with ane rumple,
da palavra, é duro demais para ser aplicado a Byron. Ele era
Thy fowl/ front had\ and he that Bartilmo flaid;
um ator que consagrou imensos esforços para se adaptar ao
The gallo wis gaipis e ft it thy graceles grunt ill.
As thow wald for ane haggeis, hungry gled.53
papel que desempenhava; sua superficialidade foi algo que ele
criou para si próprio. E difícil, ao considerarmos a poesia de
Esse paralelo pode parecer questionável a alguns, mas,
Byron, não sermos atraídos pela análise do h o m e m que ele loi,
quanto a m i m , ele me levou a gostar mais vivamente — e,
mas muito mais atenção já se dedicou ao h o m e m do que ao
suponho, a fazer uma apreciação mais justa — da poesia dc
poeta, e prefiro, dentro dos limites de um ensaio c o m o este,
Byron do que antes. Não pretendo que Byron seja Villon (nem,
manter a poesia em primeiro plano. O caso é que a sátira byro-
por outras razões, que Dunbar ou Burns se igualem ao poeta
niana à sociedade inglesa, na última parte do Don Juan, é algo
francês), mas cheguei a encontrar nele certas qualidades, além
com relação a que não consigo encontrar paralelo na literatura
inglesa. Ele estava certo ao fazer do herói de sua reunião social de sua abundância, que são muito raras na poesia inglesa, bem
um espanhol, pois o que Byron compreende e detesta na socie- como a ausência de alguns vícios que são bastante freqüentes.
dade inglesa c muito mais do que um estrangeiro poderia com-
preender e detestar nessas mesmas circunstâncias.
31. Hall, J o s e p h Poeta inglês (1574-1656), autor de Characters of virtues and vices
Não sc pode abandonar a leitura de Don Juan sem chamar (1608). ( N . T . )
a atenção para uma outra parte que enfatiza a diferença entre 32. Marston, John D r a m a t u r g o e poeta inglês (Coventry. Warwick, 1576 Lon-
esse poema e qualquer outra sátira escrita em inglês: os versos dres. 1634). Alcançou g r a n d e p o p u l a r i d a d e com o p o e m a licencioso The métamor-
phosa of Pygmalion '» image and certain satyres (1598). Deixou as peças The Dutch
da dedicatória. A dedicatória a Southcy me parcce uma das
courtezan (1605), The malcontent e Sophomshe (1606). (N.T.)
peças dc injúria mais hilariantes da língua:
33. Flyting. invectiva poética dos poetas escoceses do século XVI. ( N . T . )
34. D u n b a r , William Poeta inglês (East Lothian, c. 1465 ? c. 1530). Sua obra.
Bob Sou they! You re a poet Poet laureate, exemplo do gótico flamboyant, está cheia de melancolia e humorismo, como o ates-
And representative of all the race; tam The dance of the seven deidly synnts (1503-1508) e In honour of the city of
Although 'tis true that you turn 'd out a Tory at London. (N.T.)
Last, yours has lately been a common case; 35. " S u j e i t o ético, m a n d r i ã o p i o l h e n t o na ilharga e na perna, / Fora! magro escal-
pelado, b o r b u l h e n t o e e n c a r q u i l h a d o ; / Aquele q u e pós Lourenço na grelha tinha
And now, my Epic Renegade! what are ye at?...™ tua cabeça d e c e p a d a , / Ε o q u e escondeu São J o ã o sob um escapelário, / Ε o que
feriu Santo Agostinho a golpes de açoite. / Tinha tua goela ignóbil, e o escalpela-
30. Bob Sou t hey 1 És um poeta Poeta Laureado, / E s í m b o l o de (oda a raça; dor de São Bartolomeu; / A forca boquiaberta aguarda teu focinho horrendo / E
/ Embora seja verdade q u e te tornaste um Tory / Afinal, teu caso e d i g n o dos tem- te quereria para seu p i c a d i n h o , ó milhafre a f a m a d o . Estes versos pertencem a
pos q u e correm; I E agora, m e u epico renegado, o q u e t r a m a s ? " ( N . T . ) um p o e m a de D u n b a r . " L i f e at œ u r t " . e x e m p l o típico do fly ting escocês. ( N . T . )
T. S ELIOT
276

H até mesmo seus vícios parecem virtudes gêmeas que intima-


mente os recordam. Com seu charlatanismo, ele revela também
uma franqueza invulgar; com sua pose, mostra-se igualmen-
te um poete contumace num país solene; com sua impostura
e sua automistificação, exibe também uma honestidade descui-
dada e canalha; ele é, ao m e s m o t e m p o , um aristocrata vulgar
GOETHE, O SÁBIO 1
e um bêbado respeitável; com seu falso diabolismo e sua vai-
dade pretensamente dissoluta, é autenticamente supersticioso
e devasso. Refiro-me às qualidades e aos defeitos visíveis em
sua obra, os quais são importantes para julgá-la, e não a sua
vida privada, que não me interessa.

Sobre o consolo da lareira de meu escritório encontra-se


há uns quinze anos ou mais, entre os retratos de meus amigos
escritores, o fac-símile de um desenho de Goethe já na velhice.
O retrato irradia vitalidade — obra, percebe-se, não apenas de
um desenhista bem-dotado, mas de um artista inspirado por
seu m o d e l o . 2 Goethe aparece com as mãos juntas por detrás
das costas; os ombros estão arqueados e a figura se inclina para
a frente, mas o corpo, embora possa estar alquebrado por enfer-
midades, continua obviamente sob o controle de. um espírito
vigoroso. Os olhos são amplos e luminosos, e a expressão, tra-
vessa, a um tempo benévola e mefistofélica: estamos na pre-
sença de uni h o m e m que combina a vitalidade da juventude
com a sabedoria da velhice. Houve um m o m e n t o , há alguns
anos, em que o desenho foi bruscamente deslocado junto com
seus pares, mas, como se poderia esperar de Goethe, esse dese-
nho — sereno, alerta e crítico — sobreviveu e ignorou os inci-
dentes daqueles tempos tumultuados.

I. Conferencia p r o n u n c i a d a na Universidade de H a m b u r g o , por ocasião da entrega


do Premio G o e t h e da Liga Hanseáttca de 1954, em m a i o de 1955. (N A.)
2 Fui i n f o r m a d o de q u e o artista era Maclise, e n t ã o um jovem em visita a Wei-
mar. ( Ν . A . )
T S. ELIOT
278 G O E T H E . O SÁBIO 279

Esse é ο Goethe da época das conversações com Eckermann. 3 problemas, e espero que o leitor possa vir a concordar em que
Ε o Goethe sábio, e como o que tenho a dizer aqui poderia ser o subtítulo que cu tinha cm mente — uma Apologia em Lou-
quase considerado uma Apologia cm Louvor da Sabedoria, o vor da Sabedoria — não era inteiramente gratuito.
desenho constituiria um frontispício adequado ao meu texto. No desenvolvimento do gosto e do julgamento crítico em
Se se empregar a palavra "sábio" com todo o cuidado c escrú- literatura — uma parte ou um aspecto do processo global que
pulo que ela requer, ter-se-á então em mente uma das mais leva à maturidade há, segundo minha própria experiência,
raras conquistas do espírito humano. A inspiração poética não três importantes etapas. Durante a adolescência fui tomado de
é em absoluto muito c o m u m , mas o verdadeiro sábio é mais entusiasmo por um autor após outro, por qualquer um que
raro do que o verdadeiro poeta, c q u a n d o essas duas virtudes, atendesse às instintivas exigências dc meu estágio de desenvol-
a da sabedoria e a da linguagem poética, existem numa só pes- vimento. Nesse estágio entusiástico, a faculdade crítica está
soa. então voccs estão diante do grande poeta. São poetas dessa semidesperta, pois não há nenhuma comparação de um autor
espécie que pertencem não apenas ao seu próprio povo, mas com outro, n e n h u m a consciência da base sobre a qual repousa
também ao mundo; são apenas poetas dessa espécie que se o relacionamento entre o leitor e o autor em cuja obra ele está
podem considerar, não essencialmente c o m o limitados por sua absorto. N ã o apenas pouco se leva em conta a escala de valores,
própria língua e por sua pátria, mas c o m o grandes europeus. como também é falsa a apreciação da grandeza desse ou daquele
Em primeiro lugar, perguntei-me se ainda havia algo a autor, pois se trata de um padrão inacessível ao espírito ainda
dizer sobre Goethe que já não tivesse sido dito melhor. Toda- imaturo; nesse estágio existem apenas os escritores pelos quais
via, quando me vi na contingência de escolher um assunto c somos tomados de assalto e aqueles que nos deixam indiferen-
esboçar a maneira de abordá-lo, senti-me surpreso diante do tes. Na medida em que alguém amplia sua leitura, e começa
excesso de possibilidades, dos incontáveis aspectos de G o e t h e a conhecer uma variedade cada vez maior dc grandes autores
e dos inúmeros contextos em que ele podia ser examinado. em prosa e em verso, adquirindo ao mesmo tempo uma experi-
Ao cabo, eu podia reduzir meus assuntos a dois, mas, após essa ência maior do m u n d o e das mais poderosas forças da reflexão,
reflexão, me dei conta de que ambos estavam tão intimamente o gosto se torna mais apurado, as paixões arrefecem e a compre-
associados que não constituíam senão um único problema a ser ensão se aprofunda. Nesse estágio começamos a desenvolver
tratado como um todo. A primeira pergunta era a seguinte: aquela capacidade crítica e aquele poder de autocrítica sem os
quais o poeta nada fará senão repetir-se pelo resto da vida. Toda-
em que consistem as características c o m u n s daquele número
via, embora possamos desfrutar do prazer nesse estágio, assim
seleto de autores, dos quais Goethe é um e x e m p l o , q u e são
como compreender e apreciar uma variedade indefinida de
grandes europeus? E a segunda era esta: em q u e se resume o
gênios artísticos e filosóficos, continuarão a existir certos auto-
processo pelo qual alguém chega a se reconciliar c o m esses gran-
res de alto nível que insistiremos obstinadamente em conside-
des autores em relação aos quais, em nossa juventude, não sen-
rar antipáticos. Assim, o tercciro estágio de desenvolvimento
tíamos senão indiferença, ou que nos eram antipáticos — não
de maturação, na medida em que esse processo pode ser
apenas porque isso ocorre, mas porque convém q u e ocorra, e
representado pela história de nossas leituras e estudos — é
não apenas o processo, mas a necessidade moral do processo?
aquele cm que começamos a investigar as razões pelas quais
Ao longo deste ensaio considerarei alternadamente esses dois
não conseguimos gostar daquilo que outros leitores, ou talvez
muitas gerações de leitores, julgaram delicioso, e que estavam
3. São os anos d u r a m e os quais G o e t h e conversava d i a r i a m e n t e sobre todos os
assuntos possíveis com seu secretário J o h a n n Peter E c k e r m a n n ( 1 7 9 1 - 1 8 5 4 ) , q u e tão ou mais bem qualificados do que nós para fazer um julga-
publicou em 1837 sua s notas sob o título de Gespräche mit Goethe, obra em q u e mento. Ao tentarmos compreender por que não conseguimos
o poeta revela seu interesse pelas novas tendências literárias c seu ideal de u m a
c o m u n i d a d e literária de todas as nações. ( N . T . )
apreciar corretamente determinado autor, procuramos deitar
G O E T H E , O SÁBIO 281
280 T. S. ELIOT

giosos, indignos de confiança. Mas tive a experiência de haver


alguma luz não apenas sobre esse autor, mas t a m b é m sobre
convivido com essa poesia cm minha juventude, e isso me ficou
nós mesmos. O estudo de autores de cuja obra não consegui-
na memória. Durante algum tempo tais poetas me emociona-
mos gostar pode constituir assim um valiosíssimo exercício, con-
ram bastante: eu sentia, e ainda sinto, que aprendi com eles o
quanto essa prática se inclua entre aquelas às quais o b o m senso
que podia aprender e o que eles foram capazes de me ensinar.
impõe limites, pois ninguém dispõe de t e m p o para estudar a Com G o e t h e a questão é outra. No que se refere aos poetas a
obra de todos os grandes autores cuja leitura não oferece prazer que acabo de aludir, cu poderia imaginá-los como poetas de
algum. O processo de averiguação não é um esforço para apre- maior envergadura se tivessem sustentado uma concepção de vi-
ciar aquilo de que não se consegue gostar; é um esforço para da diferente. Mas com Goethe, por outro lado, parece-me cor-
compreender essa obra, e para que possamos nos compreender reto c necessário que haja tido as idéias que teve, e se compor-
em relação a ela. O prazer virá, se vier, s o m e n t e c o m o conse- tado da maneira c o m o o fez. E a antipatia superada, quando
qüência da compreensão. se trata da antipatia para com uma figura tão grande quanto a
Há óbvias razões, no meu próprio caso, para certas dificul- de G o e t h e , equivale a uma importante libertação das limita-
dades em compreender Goethe. Para qualquer um c o m o eu, ções de nosso próprio espírito.
que combina uma forma de espírito católica, uma herança cal- Poderá parecer uma frivolidade egoistica dedicar tanto
vinista e um temperamento puritano. G o e t h e implica na ver- t e m p o às mudanças de minha própria atitude em relação a
dade alguns obstáculos a serem superados. Mas minha experiên- Goethe. Faço-o por duas razões. Primeiro, porque as poucas
cia me ensina que o reconhecimento dos obstáculos — c esse referências esparsas a Goethe em meus ensaios críticos anterio-
reconhecimento requer antes um auto-exame do q u e um exame res são, em sua maioria, eivadas de má vontade e de caráter
do autor —, ainda que eles não sejam abolidos, pode diminuir- denegritório, de m o d o que, para justificar minha presente ati-
lhes a importância. As diferenças que não são examinadas tude e evitar qualquer suspeita de leviandade, preciso levar
jamais emergem da obscuridade do preconceito: q u a n t o melhor em conta a evolução de m e u espírito. Segundo, porque julgo
compreendermos as razões pelas quais não conseguimos apre- que a situação pode ser generalizada de m o d o a se tornar útil.
ciar um autor, mais próximos estaremos de vir a apreciá-lo, Eu disse que, na medida em que meu próprio desenvolvimento
pois compreensão e simpatia estão intimamente associadas. Sem é típico, a educação recebida começa, na adolescência, a ser arre-
jamais haver negado o gênio de G o e t h e , sem ter permanecido batada, invadida, desfigurada por um escritor após outro (re-
insensível àquela parte de sua poesia mais facilmente assimilá- firo-me, é claro, à formação recebida em poesia). Posterior-
vel para um estrangeiro, eu havia, receio-o, sido irritado por mente, adquirimos um conhecimento e um prazer que derivam
ele. Com o tempo, vim a compreender que minha discordância da leitura de uma infinidade de obras; somos influenciados
em relação a Goethe — afora alguns traços pessoais cuja impor- por espíritos de natureza cada vez mais diferente; tornamo-nos
tância parece agora ter diminuído — era primordialmente uma mais senhores de nós mesmos; o julgamento crítico se desen-
discordância em relação a sua época, pois eu havia chegado, volve; tornamo-nos mais conscientes daquilo que hizemos e
com o correr dos anos, a me sentir distante dos maiores poetas daquilo que ocorre cm nossas explorações das obras-primas do
ingleses do século XIX, tanto os do m o v i m e n t o romântico pensamento e da imaginação. Passada a meia-idade, duas
quanto os do período vitoriano. Gosto ainda de determinados mudanças adicionais me ocorreram. De um lado, minhas prefe-
poemas, mas, à exceção de Coleridge — e de Coleridge mais co- rências literárias diminuíram, e sinto-me inclinado a voltar cada
mo filósofo, teólogo e pensador social do que c o m o poeta —, vez mais freqüentemente à obra de um número cada vez menor
venho perdendo contato com os autores dessa época; Tennyson, de poetas; de outro, chego à conclusão de que entre eles podem
Browning, Arnold, Meredith — a filosofia de vida desses auto- existir alguns autores que jamais conheci de fato, no sentido
res chega a me parecer inconsistente, e seus f u n d a m e n t o s reli-
28 2 T. S. ELIOT G O E T H E , O SÁBIO 283

de sermos íntimos de algum escritor ou de com ele nos sentir- Byron é um poeta que foi o poeta de uma Época e, durante
mos à vontade, e com os quais devo acertar contas antes de essa Epoca, o poeta de toda a Europa. Hm Edgar Poe, a Amé-
morrer. rica produziu um poeta que, sobretudo por sua influência sobre
Há alguns anos comecei a pensar que devia finalmente fazer três poetas franceses de três gerações consecutivas, pode ser con-
um esforço para me reconciliar com Goethe: não primordial- siderado europeu, mas o correto lugar e a categoria desses dois
mente para reparar uma injustiça cometida, pois já se comete- homens ainda são, e talvez sejam para sempre, matéria de con-
ram muitas injustiças literárias sem que ninguém sentisse re- trovérsia. E desejo restringir-me àqueles cujas qualificações são
morso, mas porque devo ter de algum m o d o negligenciado al- incontestadas.
guma ocasião dc me aperfeiçoar, que seria um pecado negligen- Para começar, quais são nossos critérios? Dois, seguramente,
ciar. Experimentar esse sentimento já constitui um importante são a Permanência e a Universalidade. O poeta europeu deve
reconhecimento: é, com toda a certeza, o reconhecimento de não apenas ser aquele que mantém uma certa posição na histó-
que Goethe é um dos grandes europeus. O leitor perceberá ria: sua obra deve continuar a proporcionar prazer c proveito
agora, espero, que essas duas questões a da reconciliação e às gerações que se sucedem. Sua influência não constitui ape-
a da definição do grande europeu — se encontram tão intima- nas um assunto dc registro histórico; ele continuará a ser valioso
mente associadas em meu espírito que eu não podia considerar para qualquer época, e cada época o compreenderá de maneira
uma sem tocar na outra. diferente, e será obrigada a avaliar novamente sua obra. E ele
Parece-mc que a abordagem mais idónea a essa definição deve ser tão importante para os leitores de sua raça e dc sua lín-
é tomar alguns autores cujo direito a esse título é universal- gua quanto para os outros: os de sua raça e de sua língua senti-
mente admitido, c considerar o que eles tem em c o m u m . Antes rão que ele faz parte integral de seu grupo, c que é, na ver-
de mais nada, entretanto, estabelecerei os limites dentro dos dade, seu representante no estrangeiro. Para os leitores dc dife-
quais farei minha seleção. Em primeiro lugar, limitar-mc-ei aos rentes países c de diferentes épocas, ele pode significar coisas
poetas, pois a poesia é o setor em que estou melhor qualificado muito distintas, mas nenhuma nação ou geração questionará
para apreciar a grandeza de um autor. Em segundo lugar, exclui- sua importância. A história de tudo o que foi escrito sobre a
rei todos os poetas gregos e latinos. Minhas razões para isso obra de um h o m e m como esse fará parte da história do espírito
estão indicadas pelo título que Theodor Haecker deu a seu europeu.
ensaio sobre Virgílio: Vergil% Vater des Abendlandes ( Virgílio, Obviamente, não se podem elaborar duas listas, uma de
pai do Ocidente).4 Os grandes poetas da Grécia e de Roma, grandes poetas que são grandes europeus, e outra constituída
bem como os profetas de Israel, são os ancestrais da Europa, por aqueles que não conseguiram adquirir os direitos a essa dis-
mais que dos europeus, no sentido medieval e moderno. É por tinção. Tudo o que podemos fazer, creio cu, é estarmos de
causa de nosso substrato comum, nas literaturas da Grécia, de acordo no que se refere a um número mínimo, considerarmos
Roma c de Israel, que podemos falar de uma "literatura euro- quais as características comuns que eles apresentam e nos empe-
péia", e a sobrevivência da literatura européia, posso dizer de nharmos para nos aproximar de uma definição, através da qual
passagem, depende de nossa contínua veneração aos nossos procederemos à avaliação de outros poetas. Não creio que possa
ancestrais. Nessa qualidade, estão eles excluídos dc minha pre- haver qualquer dúvida com relação a três deles: Dante, Shakes-
sente investigação. Há também poetas modernos, cuja influên- peare c Goethe.
cia tem sido muito importante cm países e idiomas que não Aqui devo introduzir uma palavra de cautela. Tenho dúvi-
são os nossos, que não atendem às exigências dc meu propósito. das se deveríamos chamar um poeta de "grande europeu" a
menos que seja também um grande poeta,.mas julgo que temos
4. Ver nota 8 ao ensaio "Virgílio e o m u n d o c r i s t à o " . nesta c o l e t â n e a (N.T.) de admitir que há grandes poetas que não são grandes euro-
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peu s. Na verdade, suspeito que quando chamamos qualquer e o drama de Fausto são apenas partes da estrutura montada
homem de letras de grande europeu, ultrapassamos os limites por Shakespeare e por Goethe, partes que ficariam muito redu-
do julgamento estritamente literário, fazendo ao m e s m o tempo zidas se constituíssem a única obra dc seu autor. O que confere
uma avaliação histórica, social e ética. Comparem Goethe com a Shakespeare e a Goethe suas respectivas condições não é uma
um poeta inglês contemporâneo algo mais jovem: William única obra-prima, mas a obra total de toda uma existência. E,
Wordsworth. Wordsworth foi seguramente um grande poeta, por outro lado, Cervantes é, para aqueles dentre nós que não
se o termo chega a ter algum sentido; no melhor do que produ- são versados em literatura espanhola, o autor de um único livro;
ziu. seu vôo é bem mais alto que o de Byron, bem c o m o o de embora seja um grande livro, isso não basta para colocar Cer-
Goethe. Além disso, sua influência foi decisiva para os rumos vantes em pé de igualdade com Dante, Shakespeare e Goethe.
da poesia inglesa em determinado momento: seu nome marca Dom Quixote figura, inquestionavelmente, entre aqueles livros
uma época. Todavia, ele jamais significou para seus próprios seletos que atendem às exigências do teste da "literatura euro-
conterrâneos o que Goethe significa para os dele. Analogamente péia", isto é, livros sem cujo conhecimento — no sentido em
— mas aqui falo com a desconfiança que convém —, parece- que não foram apenas lidos, mas assimilados —, nenhum
me possível sustentar que Hölderin foi, em certos momentos, homem da raça européia pode ser realmente educado. Mas não
mais inspirado do que Goethe; entretanto, t a m b é m ele não podemos dizer que seja necessário para o europeu educado
pode jamais ser colocado no m e s m o nível de uma figura euro- conhecer Cervantes, no sentido em que podemos dizer que o
péia. Não me proponho abordar as possíveis explicações das europeu educado deve conhecer Dante, Shakespeare e Goethe.
diferenças entre as duas espécies de poetas; desejo apenas, Como autor de um único livro, Cervantes está para nós inteira-
nesse contexto, lembrar-lhes que se D a n t e , Shakespeare ou mente nesse livro; ele é, por assim dizer, Dom Quixote compre -
Goethe são incontestavelmente h o m e n s europeus, não é ape- endendo-se a si próprio. Que parte da obra de Dante, de Sha-
nas porque são os maiores poetas de suas respectivas línguas. kespeare ou de Goethe podemos destacar e dela dizer que nos
Eles não seriam grandes europeus se não fossem grandes poe- fornecc o essencial de Dante, de Shakespeare ou de Goethe?
tas, mas sua grandeza como europeus é algo mais complexo, Dizer simplesmente que não podemos conhecer Cervantes tanto
mais abrangente, do que sua superioridade sobre outros poe- quanto podemos conhecer aqueles três outros autores não dimi-
tas de sua própria língua. nui o escritor espanhol. E não estou aqui cometendo o erro de
Há também a tentação — no caso de Shakespeare c dc separá-los de seus textos e transformá-los em ídolos, ainda que,
Goethe, mas não no de Dante —, de pensar nas duas grandes especialmente no caso de Goethe, agora que dispomos de tan-
personagens míticas quê eles criaram: Hamlet e Fausto. Ora, tos documentos sobre o h o m e m que ele foi, assim como do
Hamlet e Fausto tornaram-se símbolos europeus. Eles têm isso imenso corpo dc sua obra, seja perigosamente fácil fazê-lo. Falo
em comum com Ulisses e D o m Quixote, que são típicos de desses homens tal como eles existem em seus textos, nos três
seus países, e todavia compatriotas de cada um de nós. Q u e m mundos que criaram de modo a perdurar para sempre como
poderia ser mais grego do que Ulisses, ou mais espanhol do parte da experiência européia.
que Dom Quixote, ou mais inglês do que Hamlet, ou mais ale- Em primeiro lugar, cu diria, como algo que me parece ime-
mão do que Fausto? Todavia, passaram eles a compor o mosaico diatamente óbvio, que na obra desses três autores encontramos
em que estamos todos representados c ajudaram — como é fun- três características comuns: Abundância, Amplitude c Unida-
ção dessas personagens — a explicar o h o m e m europeu para si de. Abundância: todos escreveram copiosamente, c nada do
mesmo. De modo que podemos ser tentados a classificar Sha- que escreveram é desprezível. Por amplitude quero dizer que
kespeare e Goethe como europeus, simplesmente porque cria- cada um deles tinha uma vastíssima gama de interesse, de sim-
ram um herói mítico europeu. No entanto, a peça de Hamlet patia e de compreensão. Há uma variedade de interesses, uma
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28 2

curiosidade universal e uma capacidade mais abrangente do sobre mineralogia e sobre cores — não passavam de excentrici-
que a da maioria dos mortais. Alguns autores têm revelado ta- dades deleitáveis de um h o m e m de curiosidade insaciável que
lento versátil, outros uma curiosidade sempre insatisfeita, mas deambulava por regiões para o acesso às quais não se encontrava
o que caracteriza a variedade de interesses e a curiosidade de aparelhado. Ainda hoje não me sinto propenso a 1er o que ele
artistas como Dante, Shakespeare e G o e t h e é a U n i d a d e funda- escreveu sobre tais assuntos. E que, de saída, a unanimidade
mental. N ã o é fácil definir essa unidade, a m e n o s q u e digamos quanto ao ridículo e a facilidade com que as pessoas versadas
que aquilo que cada um deles nos proporciona é a própria nesses assuntos pareciam rejeitar os conceitos de Goethe me
Vida, o Mundo visto de um ângulo particular de uma determi- induziram a perguntar se G o e t h e não poderia estar certo ou,
nada época européia e de um d e t e r m i n a d o h o m e m dessa época. pelo menos, se seus críticos não poderiam estar enganados.
Não creio que seja preciso me alongar sobre a diversidade Somente há alguns anos é que me debrucei sobre um livro em
dos interesses e atividades de D a n t e e de G o e t h e . Shakespeare, que os conceitos de G o e t h e eram de lato defendidos: Man or
é verdade, confinou-se, ou está c o n f i n a d o , pelas circunstâncias, matter, do Dr. Ernst Lehrs. E verdade que o Dr. Lehrs é um
ao meio de expressão do teatro, mas, q u a n d o consideramos o dos discípulos de Rudolph Steiner, e creio que a ciência dc
imenso espectro de temas e personagens dentro dessa estrutura, Steiner não seja considerada muito ortodoxa; mas isso não é
a enorme variedade e o d e s e n v o l v i m e n t o de sua técnica, sua da m i n h a conta. O q u e o Dr. Lehrs fez foi sugerir-me que os
contínua abordagem a novos problemas, d e v e m o s reconhecer conceitos científicos de G o e t h e se ajustavam de algum m o d o à
pelo menos que, nessa amplitude e abundância, Shakespeare sua obra de imaginação, que a mesma intuição se esforçava por
se situa à parte até m e s m o daqueles poucos escritores de teatro manifestar-se em ambas as expressões e que não seria razoável
que, como dramaturgos e poetas, são seus iguais. Q u a n t o à rejeitar, c o m o afirmação absurda no campo da pesquisa cientí-
Unidade, julgo que os objetivos de u n i d a d e política, teológica, fica, o q u e aceitamos c o m o inspirada sabedoria na poesia. Vol-
moral e poética de Dante são d e m a s i a d o evidentes para exigir tarei a essa questão daqui a pouco em outro contexto, mas, sob
demonstração. Eu afirmaria, c o m base em m i n h a própria expe- o risco de me expor ao ridículo, direi que, em virtude do que o
riência, que a unidade da obra de Shakespeare é tal q u e não Dr. Lehrs escreveu sobre a ciência de G o e t h e , julgo entender
se pode compreender as últimas peças a não ser q u e se conhe- trechos do Fausto, c o m o o da cena de abertura da Parte II,
çam as primeiras, e não se pode entender as primeiras sem se melhor do que antes; e acredito agora que a Parte II é melhor
conhecer as últimas. N ã o é fácil detectar a unidade na obra de do q u e a Parte I, ao contrário do que sempre me disseram pes-
Goethe. Em primeiro lugar, ela é mais s u r p r e e n d e n t e m e n t e soas mais instruídas que cu.
heterogênea do que a obra dos dois outros; além disso, devo
É pelo m e n o s certo que devemos, no esforço para compre-
confessar que há muito dessa vasta obra q u e não c o n h e ç o , ou
conheço apenas superficialmente, de m o d o q u e estou longe ender autores c o m o esses três a que me referi, tentar penetrar
de ser o advogado mais qualificado para a defesa do caso. Por- em t u d o aquilo que lhes despertou interesse. A crítica literária
tanto direi apenas que acredito sinceramente q u e q u a n t o mais é uma atividade que deve constantemente definir suas próprias
vier a conhecer sua obra — cada v o l u m e da mais volumosa edi- fronteiras; deve t a m b e m constantemente ultrapassá-las: a única
ção — , mais convicto estarei de sua u n i d a d e . O teste é este: regra imutável é q u e , q u a n d o a crítica literária transgride esses
será que cada parte da obra de um escritor nos ajuda a compre-
ender o resto? Steiner. R u d o l p h . Filósofo e místico austríaco (Kraljevič, 1861 Dörnach,
Arriscarei afirmar essa crença no m o m e n t o em que ela esti- perto de Basiléia. Suíça, 1925). Interessou-se de início pelos textos científicos de
G o e t h e , q u e reeditou. Desenvolveu q u a l i d a d e s de percepção extra-sensonal que
ver mais próxima de ser questionada. Durante a maior parte o levaram à teosofia. D e n t r e suas obras, avultam Geheimwhsenchaft im Umnss
de minha vida e m p e n h e i - m e em assegurar q u e as teorias cientí- (Esboço da ciência oculta. 1913) e Wie erlangt man Erkenntnisse der höheren
ficas de Goethe — suas especulações sobre taxionomia botânica. Welten (Como alcançar o conhecimento dos mundos superiores, 1920). (N. I.)
288 T S. ELIOT
G O E T H E . O SÁBIO 289

limites, deveria fazê-lo com plena consciência do que está


gua tão bem quanto a sua, pois, para o poeta, explorar todos
fazendo. Não podemos ir muito além no caso de D a n t e , ou
os recursos de sua própria língua constitui o trabalho de uma
de Shakespeare, ou de Goethe, sem tocar na teologia, na filoso-
vida inteira. A maneira pela qual ele está ligado às pessoas dc
fia, na ética e na política; e no caso de G o e t h e sem penetrar,
seu país, o m o d o como delas depende, e como desempenha o
de uma maneira clandestina e sem 'cartas dc crédito", nos ter-
papel dc representar seu próprio povo, não devem ser, acrescen-
ritórios interditos da ciência.
taria eu, identificados como patriotismo (que é uma resposta
Meus argumentos, ou minha defesa, foram até aqui estrita-
particular a circunstâncias particulares), embora seja esta uma
mente negativos. Afirmei apenas que na obra de D a n t e , de
espécie de ligação da qual pode nascer o mais nobre dos patrio-
Shakespeare e de Goethe vocês encontram Abundância, Ampli-
tismos. E uma espécie de ligação que pode até mesmo estar
tude c Unidade. Abundância e A m p l i t u d e comprovadamente,
em agudo conflito com o sentimento patriótico dc muitos com-
e Unidade se vocês se derem o esforço de procurá-la. Após pos-
patriotas do poeta.
tular que Dante, Shakespeare e Goethe foram três grandes euro-
Logo, o poeta europeu não é necessariamente um poeta
peus, parece óbvio que essas características devam ser encontra-
cuja obra seja mais fácil de traduzir em outra língua do que a
das juntas em qualquer outro autor antes q u e possamos atri-
dos poetas cuja obra só tenha significação para seus compatrio-
buir-lhe a mesma condição. £ viável, c o n t u d o , q u e um autor
tas. Sua obra é mais traduzível apenas neste sentido: o dc que
possa nos oferecer Abundância, A m p l i t u d e e Unidade sem,
sempre que se traduz um poeta como Shakespeare para outra
no entanto, conseguir tornar-se um grande europeu. J u l g o que
língua, perde-se exatamente tanto de sua significação quanto
haja um outro elemento positivo a ser considerado. Mas antes
se perde ao se traduzir um poeta inglês de menor envergadura,
de abordar o problema final, há outro termo a ser discutido:
embora no caso de Shakespeare se preserve algo mais, pois há
Universalidade.
mais substância a ser preservada. O que pode ser traduzido?
J anto quando podemos julgar a partir de nossos três auto- Uma história, uma intriga dramática, as impressões de uma per-
res exemplares, o escritor europeu não é m e n o s enfaticamente sonagem viva em cena, uma imagem, uma proposição. O que
um homem de seu próprio*país, de sua raça e de sua língua não pode ser traduzido é a magia encantatória, a música das
do que qualquer daqueles autores de segunda ordem q u e , com palavras e aquela parte do significado que está na música ver-
raras exceções, só sensibilizam seus próprios compatriotas. Pode- bal. Mas aqui, ainda uma vez, não atingimos o cerne da ques-
se até dizer que Dante, Shakespeare e G o e t h e não são apenas tão; estávamos apenas tentando indicar o que torna um poeta
muito italiano, inglês e alemão, mas q u e cada um deles é tam- traduzível, sem explicar a razão pela qual se pode dizer que
bém representativo da região particular em que nasceu. É óbvio, Dante, Shakespeare e Goethe pertencem, como não podemos
naturalmente, que o sentido em que eles são regionais não cons- afirmar com a mesma segurança de quaisquer outros poetas,
titui uma limitação a seu fascínio, embora haja neles muitos não apenas a seus compatriotas, mas a todos os europeus.
elementos que só podem sensibilizar seus conterrâneos. Eles são
Creio que podemos aceitar sem muita dificuldade o apa-
regionais devido a sua concretudc: ser h u m a n o significa perten-
rente paradoxo de que o poeta europeu é, ao mesmo tempo,
cer a uma determinada região da Terra, e h o m e n s de gênio
não menos, mas dc maneira mais positiva, um homem de sua
como esses são mais conscientes do que outros seres humanos.
raça particular, de seu país e de sua cultura local, do que o
O europeu que não pertencesse a n e n h u m país seria um h o m e m
poeta que só pode ser apreciado por seus compatriotas. Pode-
abstrato — um rosto vazio que falaria todas as línguas sem sota-
mos a um só e mesmo tempo perceber que esse poeta, não
que de sua terra ou sem acento estrangeiro. Ε o poeta é o último
importa a que país pertença, é nosso compatriota, e todavia é
dos homens abstratos, pois é o que mais se encontra ligado a
também um representante, entre os maiores, de seu próprio
sua língua: ele não pode sequer se permitir conhecer uma lín-
povo. Esse h o m e m pode ajudar seus compatriotas a se entende-
T. S. ELIOT G O E T H E . O SABIO 285
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rem entre si, e ajudar outro povo a compreendê-lo e aceitá-lo. acima dela. Certamente, não devemos admitir que esses homens
Mas a questão relativa à maneira pela qual ele é representativo compartilhem todas as idéias de sua época. Eles compartilham
de sua própria epoca é algo mais difícil. Dc que maneira alguém os problemas, compartilham a língua em que os problemas são
é representativo de sua época, e todavia de permanente impor- discutidos, mas podem repudiar todas as soluções corrcntes. E
tância — não por causa de seu caráter representativo", mas mesmo q u a n d o levam uma vida social ou pública, experimen-
apenas em si mesmo —, para todas as épocas subseqüentes? tam também uma solidão maior do que a da maioria dos
Como deduziríamos do q u e ficou exposto, do mesmo homens. Seu caráter representativo, caso sejam eles representati-
modo que um h o m e m pode ser um grande poeta, sem ser vos, deve ser algo que percebemos, mas que não podemos for-
um poeta "europeu bem c o m o pode ser representativo dc mular inteiramente.
seu povo e despertar interesse em outros povos justamente por Há muita coisa que não sabemos sobre o homem que
essa capacidade, assim também um h o m e m p o d e ser represen- Dante foi, e pouquíssimo é o que conhecemos de Shakespeare.
tativo de sua própria época e tornar-se importante para outras Mas sabemos bastante sobre a vida dc Goethe. Confesso não
épocas apenas no sentido em q u e ajuda a compreender a sua ser daqueles que a conhecem muito bem. Mas quanto mais
propria. Mas, como tentei dizer anteriormente, estamos inte- aprendo sobre G o e t h e , a partir de sua própria obra e de comen-
ressados em Dante, Shakespeare e G o e t h e não apenas cm rela- tários sobre ela, menos considero possível identificá-lo com sua
ção aos seus respectivos país, língua e raça. mas fora do tempo época. Julgo-o às vezes em completa oposição a ela, tão com-
e de m o d o direto. N e n h u m europeu educado, qualquer que pleta talvez que tivesse sido imensamente incompreendido. Ele
seja sua língua, sua cidadania, sua ascendência e a época em me parece ter vivido mais plena e conscientemcnte em vários
que nasceu, deve furtar-se à pergunta: 4 Ό q u e têm Dante, níveis do que a maioria dos outros homens. O conselheiro par-
Shakespeare e Goethe a me dizer diretamente — e c o m o irei ticular, a celebridade de uma pequena corte, o colecionador
responder a eles? . É essa confrontação direta q u e tem impor- de estampas, desenhos e gravuras, foi também o homem que
tância fundamental. Ora, se tomarmos a palavra no sentido lite- não conseguia dormir de angústia em Weimar, porque ocorrera
ral, o h o m e m realmente representativo de um período, um terremoto em Messina. Após 1er o livro do Dr. Lehrs, ao
como h o m e m representativo de uma nação, é um h o m e m que qual já aludi, e e m seguida reler certas passagens do Fausto,
não é nem muito grande nem m u i t o p e q u e n o . N ã o quero di- ocorreu-me que para Wordsworth e Goethe a natureza' signi-
zer que seja l'homme moyen sensuel: Mas um h o m e m insig- ficava quase a mesma coisa, ou seja, significava algo que eles
nificante só poderia representar um período insignificante — haviam experimentado — e que eu não experimentei — e que
e nenhum período da história é desprezível a esse p o n t o , ao estavam ambos tentando exprimir alguma coisa que, mesmo
passo que o caráter excepcional de um h o m e m verdadeiramente para h o m e n s tão excepcionalmente dotados com o dom da lin-
grande deve nos fazer suspeitar que ele não é totalmente "re- guagem, era em definitivo inefável. Não faz muito tempo,
presentativo". Julgo que, se pudéssemos considerar nossos três recebi um cartão-postal com a reprodução de um retrato de
poetas como inteiramente representativos de sua época, conclui- William Blake: era um desenho bastante conhecido, com o
ríamos que cada um deles estaria limitado por ela dc uma qual eu estava absolutamente familiarizado. Mas por acaso o
maneira como eles não estão. Em suma, consideramos tais deixei por um instante sobre o consolo da lareira, ao lado da
homens como representativos apenas para descobrir que eles gravura de G o e t h e , e julgo ter observado uma expressão seme-
não o são; porque um h o m e m pode não ser representativo não lhante em seus olhos. Só que Blake tinha o olhar de quem per-
apenas por estar aquém ou além dc sua época, mas por estar tencia a outro m u n d o , enquanto Goethe dava a impressão, no
m o m e n t o cm que o artista o retratou, de estar à vontade em
ambos os mundos. Blake também repudiava parte das opiniões
6. "O homem mediano sensual." (N.T.)
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dominantes em sua época. Entendam vocês que não posso me rada característica. Mas nos cabe ainda perguntar: qual é a qua-
desligar da Farbenlehre e da Ur-Pflanze. Trata-se apenas da lidade que sobrevive à tradução, que transcende o lugar e o
questão de saber q u e m estava certo: G o e t h e ou os cientistas? tempo, e é capaz de suscitar uma resposta direta de h o m e m
Ou seria possível que G o e t h e estivesse e n g a n a d o apenas ao jul- para h o m e m , em leitores de qualquer lugar e de qualquer
gar que os cientistas se enganaram, e os cientistas enganados época? E preciso também que alguma coisa possa estar presente
somente ao julgar que G o e t h e se enganara? N ã o seria possível em distintos graus, pois obviamente Dante, Shakespeare e Goe-
que Goethe, sem saber inteiramente o que estava fazendo, the não são os únicos poetas "europeus". Mas é preciso que
devesse proclamar os direitos de um tipo distinto de consciên- algo possa ser reconhecido por uma grande diversidade de
cia daquele que havia d o m i n a d o os séculos XIX e X X ? Se assim homens, pois o teste para um poeta desse tipo, como eu disse
for, então Goethe era tão pouco representativo de sua Época no princípio, é que n e n h u m europeu que seja inteiramente
quanto pode sê-lo um h o m e m de gênio. E talvez haja chegado ignorante de sua obra possa ser definido como educado —
a hora em que possamos dizer q u e não seria absurdo ver o uni- quer a língua do poeta seja a sua, quer tenha ele aprendido
verso como Goethe o viu. e não c o m o o viram os cientistas, essa língua depois de árduos estudos, quer ainda seja ele capaz
agora que o traje vivo de Deus' já se encontra um pouco ras- de 1er apenas uma tradução. Pois se é verdade que o total des-
gado devido à ação das manipulações científicas. conhecimento da língua limita agudamente nossa apreciação
Certamente, Goethe foi um h o m e m de sua época. É difícil desse poeta, isso não serve de desculpa para que ignoremos por
para nós ignorar ou tratar c o m o acidental o fato de que Dante, completo sua obra.
Shakespeare e Goethe tenham chegado a representar cada um Receio que a palavra que estou prestes a pronunciar venha
deles um período da história moderna européia, na medida em a surpreender muitos ouvidos como um anticlimax a esse exórdio,
que um poeta pode desempenhar esse papel, e devemos nos lem- pois se trata simplesmente da palavra Sabedoria. Todavia, não
há nenhuma palavra mais difícil de definir, e nenhuma mais difí-
brar das próprias palavras de G o e t h e sobre o h o m e m e o
cil de compreender. Compreender o que seja a Sabedoria é ser
momento. Mas devemos também nos lembrar, entre outras coi-
o próprio sábio, e não atingi senão o grau de compreensão da
sas, de que tendemos a julgar uma época nos termos do h o m e m
Sabedoria que pode ser alcançado por um homem que sabe que
que dela consideramos representativo, esquecendo-nos de que
não é um sábio, embora tenha razões para crer que seja màis
uma parte igual da significação desse h o m e m possa constituir a
sábio do que há vinte anos. Digo vinte anos atrás porque me
luta que ele travou contra a sua época. Tentei simplesmente
encontro na angustiante situação de citar uma frase que escrevi
introduzir certas reservas cautelosas em nosso e m p r e g o do termo
em 1933. Ei-la:
representativo", perigoso quando aplicado a tais homens. O
" D e G o e t h e , talvez, seja mais verdadeiro dizer que chapi-
homem que é representativo" de seu povo pode ser o crítico
nhou tanto na filosofia quanto na poesia, não obtendo muito
mais severo desse mesmo povo e ser por ele repudiado; o homem
êxito nem em uma nem em outra; seu verdadeiro papel foi o
que é "representativo de sua época pode estar em oposição às de um h o m e m do m u n d o e de um sábio, como um La Roche-
verdades mais amplamente aceitas dessa época. foucauld, um La Bruyère, um Vauvenargues".
Preocupei-me até agora, antes de mais nada, em reconhe- Jamais reli a passagem em que essa frase jaz sepulta: sem-
cer certas qualidades à falta das quais não p o d e m o s admitir pre considerei uma tarefa extremamente incómoda reler meus
que um poeta faça parte desse grupo seleto, para definir em textos em prosa. Descobri essa citação não faz muito tempo
seguida em que sentido a "representatividade", seja de um na introdução do Sr. Michael Hamburger à sua edição e tradu-
lugar ou de uma língua, seja de uma época, pode ser conside- ção dos poemas de Hölderlin. O Sr. Hamburger é minha auto-
ridade para me atribuir essa frase. Ele a citou, cumpre dizê-Io,
7. Respectivamente, "Teoria das cores" e " P l a n t a o r i g i n a l " . ( N . T . ) com desaprovação. É uma frase interessante — interessante por-
294 28 2 T. S. ELIOT
G O E T H E , O SÁBIO 295

que enuncia muitos equívocos em pouquíssimas palavras junta- A sabedoria de um ser humano reside tanto no silêncio
mente com uma verdade: a de que G o e t h e era um sábio. Mas quanto na palavra; c, diz Filóteo do Sinai, "os homens de espí-
o equívoco para o qual desejo chamar a atenção é a identifica- rito silencioso são muito raros". 8 A sabedoria é um dom que
ção da sabedoria com a sabedoria temporal. Dizer que a sabedo- provém da intuição, que amadurece e é exercido pela experiên-
ria de um " h o m e m do m u n d o é, a rigor, uma sabedoria cia para compreender a natureza das coisas, certamente das coi-
muito limitada não diminui minha admiração por La Rochefou- sas vivas, e mais certamente ainda do coração humano. Em cer-
cauld, mas agora, pelo menos, não posso de maneira alguma tos homens, ela pode aparecer de maneira indecisa e ocasional,
confundir as duas sabedorias. Há a sabedoria temporal e a sabe- ou apenas uma vez em toda a existência, no êxtase de uma
doria espiritual. Aquela primeira pode tornar-se afinal uma
única experiência, seja beatífica, seja terrível: em um homem
forma de loucura se ignorar, ou pretender julgar, aquilo que
como Goethe, ela parece ter sido constante, sólida e serena.
está alem de sua compreensão, enquanto a sabedoria espiritual
Mas o h o m e m sábio, contrariamente àquele que é de um lado
pode não dar nenhuma ajuda aos problemas deste mundo.
simplesmente um sábio temporal, e de outro um homem que
Assim, considero que, quando dizemos que um h o m e m e um
tem certa visão intensa das culminâncias e das profundezas, é
"sábio' e que o contexto não indica senão que se trata antes
aquele cuja sabedoria aflora de fontes espirituais, que aprovei-
de uma espécie de sabedoria do que de outra, o que pretende-
tou sua experiência para chegar à compreensão e que adquiriu
mos é dizer que esse h o m e m possui uma sabedoria cujo alcance
a caridade que vem da compreensão dos seres humanos em
é superior à de outro. E é isso o que nos cabe dizer de Goethe.
toda a sua variedade de temperamento, de caráter e dc circuns-
E possível que haja domínios da sabedoria aos quais ele não
tância. Tais homens se agarram às mais diversas crenças e podem
teve acesso, mas estou mais interessado em tentar compreender
até sustentar certos princípios que consideramos odiosos, mas
a sabedoria que ele possuía do que em definir suas limitações.
isso faz parte de nossa própria busca da sabedoria, no afã de
Quando um homem é consideravelmente mais sábio do que
compreendê-la.
lhe compete, não tem por que se queixar de que não seja mais
sábio do que é. Creio, portanto, que é afinal em virtude da sabedoria que
Cabe assinalar um outro equívoco na frase que citei contra informa sua obra que um autor passa a pcrtenccr à categoria
mim mesmo, além do que acabo de denunciar. Ela parece suge- de "grande europeu"; é também graças à sabedoria que ele
rir que a sabedoria seja algo que se expressa cm provérbios, afo- se torna um compatriota comum de todos nós. Ele não é neces-
rismas e máximas sábios, e que a soma desses adágios c máxi- sariamente fácil de compreender e, como já disse, pode apresen-
mas, incluindo os que alguém pensou mas nunca transmitiu, tar tantas dificuldades dc interpretação quanto qualquer outro.
configure a sua sabedoria". Tudo isso, é claro, pode ser consi- Mas o estrangeiro que leu Dante, Shakespeare ou Goethe cm
derado como indícios de sabedoria. Mas a sabedoria é maior tradução, ou que foi prejudicado pela falta dc um conheci-
do que qualquer soma de provérbios sábios, e a Sabedoria ela mento perfeito da língua ao 1er o original, não deve perguntar,
mesma é maior do que a realização da sabedoria em qualquer como poderia fazê-lo em relação a muitos de nossos grandes
alma humana. poetas, "o que admiram os italianos, ou os ingleses, ou os ale-
mães, nesse autor?" Longe de mim a idéia de que a sabedoria
A Sabedoria se louva a si própria, desses poetas seja algo distinto da poesia c de que o estrangeiro
hla se glorifica em meio ao seu povo, desfrute daquela cm detrimento desta. A sabedoria é um cle-
Na assembléia do Mais Alto ela abre a boca,
E triunfa diante de Seu poder.
8. É importarne citar um ensaio de Joseph Pieper: Über das Schweigen Goethes
Eclesiastes, xxiii. (Kösel-Verlag, M u n i q u e ) . ( Ν . Α . )
296 T. S ELIOT G O E T H E . O SÁBIO 297

mento essencial à poesia, e é preciso apreendê-la enquanto poe- res poéticos, exceto os dc realização técnica. Sugerir que Lucré-
sia para que dela se possa usufruir enquanto sabedoria. O lei- cio decidiu deliberadamente explorar com propósitos poéticos
tor estrangeiro, ao assimilar a sabedoria, é t a m b é m envolvido uma cosmologia que julgava falsa, ou que Dante não acredi-
pela poesia, pois é a sabedoria da poesia que não seria de tava na filosofia extraída a Aristóteles e aos escolásticos, que
modo algum transmitida caso não fosse vivenciada pelo leitor lhe fornecem a matéria para os mais belos cantos do Purgatorio,
enquanto poesia. seria condenar os poemas que eles escreveram. Mas julgo que
Aqui se coloca uma pergunta que não pode ficar sem res- o professor Heller simplifica demais o problema ao generalizar
posta, em parte porque fui eu que a coloquei, sob forma um o caso particular que examino: nesse ensaio, ele se preocupa
pouco distinta, há muitos anos, e porque minha resposta não em mostrar que Rilke não apenas foi profundamente influen-
me satisfez; e em parte porque ela foi recentemente colocada ciado por Nietzsche em sua juventude, mas também que a con-
por um crítico de filosofia por cujas opiniões tenho grande cepção de vida que revela a maioria dos poemas maduros
apreço, o professor Erich Heller, de Cardiff. Refiro-me a um daquele autor constitui uma espécie de equivalente poético da
i}
livro de publicação recente, The disinherited mind\ particular- filosofia nietzschiana. E estou absolutamente disposto a admi-
mente ao capítulo dedicado a Rilke e a Nietzsche. O professor tir que, no caso da relação de Rilke com Nietzsche, o Dr. Heller
defende uma excelente causa.
Heller critica, severamente mas sem aspereza, certas afirmações
que fiz há alguns anos e m Thought und belief in poetry. Eu Explorar o problema da crença poética versus crença filosó-
não sustentaria agora certas coisas que disse naquela ocasião, e fica, e a natureza da atitude (seja da crença, seja da Annahme)
estaria algo inclinado a expô-las de m o d o diferente; mas no do poeta em relação a um sistema filosófico, não só nos levaria
que toca a outras afirmações que fiz na época, as críticas do pro- muito longe, como também nos afastaria consideravelmente
fessor Heller não me deixam abatido, tanto mais que, como do assunto de que agora me ocupo, pois o objetivo de nossa
admite o mesmo Dr. Heller, compartilho tais equívocos com o pesquisa é a questão da crença que se pode exigir do leitor de
um poema. O Dr. Heller parece-me inferir que o próprio lei-
próprio Goethe. A questão se refere ao lugar das "idéias" na
tor deva aceitar a filosofia do poeta, se gosta de sua poesia.
poesia, e à 'filosofia ou o sistema de crenças sustentados pelo
Aparentemente, é nesse contexto que o Dr. Heller censura o
poeta. O poeta defende uma 'idéia da mesma maneira como
julgamento de um crítico brilhante, Hans Egon Holthusen,
o faz um filósofo?, e quando exprime uma determinada "filo-
sobre Rilke. "Sc as idéias [de Rilke] fossem todas um embus-
sofia' em sua poesia, dever-se-ia esperar que ele acreditasse
te", diz o Dr. Heller, "ou se, como Herr Holthusen diz em
nessa filosofia, ou que pudesse legitimamente tratá-la apenas
sua obra sobre Rilke, 10 elas estivessem todas equivocadas, no
como matéria adequada a um poema? E, ademais, a aceitação
sentido de contradizer aquela 'lógica intuitiva' que nos ensina
dessa mesma filosofia por parte do leitor seria condição necessá-
ria a sua plena apreciação do poema?
Ora, na medida cm que aquilo que escrevi anteriormente
10. Rilke, d e Η . E H o l t h u s e n . Bowes & Bowes. C a m b r i d g e , e' uma excelente serie
sobre o assunto diga ou sugira que o poeta não precisa acredi- (Studies ,n modern European literature and thought), editada pelo próprio Dr.
tar numa idéia filosófica que escolhe para dar corpo cm seu Heller. O D r . Heller não cita, mas o seguinte parágrafo do ensaio de Herr Holthu-
verso, o professor Heller, sem dúvida, está no absoluto direito sen deve estar na raiz dc seu comentário: .
" U m a vez abstraída a vivacidade concreta de sua linguagem metafórica, seu
de me contradizer, já que uma sugestão dessa índole poderia contexto estético, e consideradas como d o u t r i n a filosófica, as idéias' de Rilke são
parecer uma justificativa de leviandade, e anularia todos os valo- falsas. E essa afirmação é válida se admitirmos que haja um critério objetivamente
Válido de distinção entre idéias 'corretas' e falsas', que haja u m a espec.e de logica
intuitiva que controle grupos de idéias em seu acordo com a existência do h o m e m ,
9 Publicado por Bowes & Bowes, C a m b r i d g e . U m a edição alemã foi publicada q u e . em s u m a . exista um equilíbrio intelectual capaz de nos permitir distinguir
sob o titulo de Enterbter Geist (Suhrkamp-Verlag). ( Ν . A . ) as idéias corretas das idéias falsas. A idéia de ' m i n h a própria morte c falsa porque
T S. ELIOT
29 8 G O E T H E , O SÁBIO 299

11
o que são uma imagem verdadeira e uma imagem falsa do SÓ fico. Há três óbvios exemplos: o Bhagavad-Gítã, De rerum
homem, então a poesia teria pouca chance dc ser o que ele julga naturae (Da natureza das coisas),12 de Lucrécio, e a Divina
que cia seja: a grande p o e s i a / ' comédia, de Dante. E o terceiro deles tem uma singular vanta-
O Dr Heller chega a dizer: 4 4 Não há poesia se perceber- gem para os nossos propósitos pelo fato de estar baseado numa
mos que as 'idéias' são falsas a ponto de constituírem uma dis- doutrina teológica que pertence ao mundo ocidental e que ainda
torção da verdadeira imagem do h o m e m " . Parece que somos hoje é aceita por um grande numero dc pessoas. Esses três poe-
levados a essa estranha conclusão: a de que Herr Holthusen e mas representam outras tantas conccpções do mundo com dis-
vítima de uma ilusão quando imagina que gosta da poesia dc cordâncias tão agudas quanto possíveis entre cada uma delas.
Deixando de lado as outras diferenças específicas — as de que
Rilke, pois para ele não pode restar aí nenhuma poesia. H, por
o Bhagavad Gitã está muito mais próximo de mim no tempo
outro lado, o próprio Dr. Heller é levado a aceitar uma situa-
do que Lucrécio —, estaria eu obrigado a admitir que, como
ção intolerável: a de uma "fenda que tornou impossível para
cristão, posso compreender melhor o poema de Dante do que
a maioria dos cristãos não sentir, ou pelo menos não sentir tam-
os outros, embora estivesse na obrigação de poder compreendê-
bém como verdadeiras, muitas verdades que são incompatí-
10 ainda melhor se fosse um católico romano? Parece-me que
veis com a verdade de sua f é " . Q u e não apena s parecem incom-
o que faço, quando abordo um grande poema como o Canto
patíveis, prestem atenção, mas que o são' Todavia, se perceber-
sagrado da epopéia hindu, ou o poema dc Lucrécio, não é ape-
mos a verdade das "verdades incompatíveis", o sentimento
nas, como diz Coleridge, "suspender minha incredulidade",
da verdade não se tornará inteiramente ilusório? Considero-
mas também colocar-me na posição de um crente. Mas esse é
me de acordo com Herr Holthusen; e, na verdade, se ele esti-
apenas um dos dois movimentos dc minha atividade crítica;
ver enganado c o Dr. Heller certo, então não poderei gostar
o segundo tem por objetivo desligar-mc novamente e olhar o
da poesia de Rilke senão como um mal-entendido. poema do lado de fora da crença. Se o poema estiver distante
O que pretendo, por um atalho, é estabelecer a distinção de minhas próprias crenças, então o esforço de que mais estou
entre a filosofia de um poeta e sua sabedoria. A menos que consciente é o do desligamento. Com a Divina comédia encon-
não seja possível estabelecer essa distinção, estarei condenado tro uma espécie dc equilíbrio; é de preferência com os trechos
a permanecer cego aos méritos dc alguns dos maiores poetas. poéticos da Bíblia, com os profetas e com a maioria de todos
Mas, em primeiro lugar, devo me arriscar a uma teoria da rela- os Evangelhos que descubro o esforço do desligamento — isto
ção entre a aceitação da filosofia e o prazer do poema. é, o esforço para apreciar "a Bíblia como literatura" — e nas
O melhor, suponho, é ter em mente não a filosofia de traduções de nossa Versão Autorizada 1 ' e de Martinho Lutero
um poeta — pois ela pode variar com seu desenvolvimento —,
mas a filosofia daquilo que pode ser considerado um poema filo- 11 O Bhagavad Gitã (O canto do bem aventurado) é um poema mistico-filosofico
de edificação religiosa q u e faz parte do sexto livro do Mahâbharjta, no qual se fun-
d e m d o u t r i n a s pertencentes .i sistemas diversos, como o panteísmo do Vedanta e
si morte não pode ser conquistada por rneio de um s e n t i m e n t o monistico; a m o r t e o d u a l i s m o filosófico do Sankhya. Escrito em forma de diálogo, contém os conse-
deve permanecer sempre inteiramente distinta de nós, c o n s t i t u i n d o u m a conquisi j lhos de Krishna, encarnação de Vishnu, a Arjuna Sào visíveis os traços desse poema
por meio daquilo q u e nos é estranho, u m a invasão da realidade h u m a n a por uma no terceiro m o v i m e n t o do terceiro quarteto, The Dry Salvages. dos Four quartets,
realidade que é s o b r e - h u m a n a . A idéia do amor q u e abdica da Posse e falsa, assim de Eliot. ( N . T . )
como falsas são as idéias de u m a glorificação do m u n d o , da criação sem um cria- 12. Esse p o e m a de Titus Lucretius Caro (Roma, c. 94 a.C. - id. c. a . C . ) está
dor. da imanência sem transcendência, da m e t a m o r f o s e de todas as realidades trans- dividido em seis cantos, ao longo dos quais o autor rejeita as teorias de Heráclito,
cendentais de um iminente ' t u d o - e - u m ' , da dissolução de D e u s na interioridade, Empédocles e Anaxágoras e exalta as de Demócrito e Epicuro. O poema tenta expli-
da dissolução de Sua pessoa na mais intensa e m o ç ã o , da d e f i n i ç ã o do Divino em car os f e n ó m e n o s da natureza de maneira científica, e x p o n d o teorias ate hoje nem
termos de sentimento a rigor, rodo o vocabulário do 'indizível' e do 'invisível sempre a n t i q u a d a s . ( N . T . )
I odas essas idéias são tão falsas q u a n t o as teses proféticas de Nietzsche a doutrina 13. Trata-se da versão de 1611, levada a termo por um g r u p o de sábios por ordem
do Eterno Retorno, do S u p e r - H o m e m - ou o satanismo' de Baudelaire (N A ) de J a i m e I. ( N . T . )
300 T. S. ELIOT 285
G O E T H E . O SABIO

a Bíblia faz parte de nossas duas literaturas —, e aí o esforço qualidade do q u e " i d é i a s " de uma espécie que devemos acei-
de desligamento é mais difícil. C o m as Elegias de Duino^ tar ou rejeitar, expressas n u m a forma que faz do conjunto uma
admito, encontro-me no extremo oposto: eu poderia contentar- obra de arte. Q u e r aceitemos ou não a " f i l o s o f i a " ou a fé reli-
me com o prazer da beleza verbal, e m o c i o n a r - m e com a música giosa de D a n t e , de Shakespeare ou de Goethe (e, na verdade,
do verso; e acabo por realizar um esforço para tentar penetrar a questão de saber quais eram as crenças de Shakespeare jamais
num pensamento q u e , para m i m , e tão difícil q u a n t o adverso. foi definitivamente esclarecida), há a Sabedoria que todos
Vocês observarão q u e nessa sístole e diástole, nesse movi- podemos aceitar. E precisamente por amor a essa Sabedoria
mento que vai e vem, de aproximação e de recuo, de identifica- que devemos nos dar o esforço de freqüentar tais autores; é
ção e de distinção, evitei c u i d a d o s a m e n t e recorrer aos termos porque eles são sábios q u e deveríamos tentar, se considerarmos
forma e conteúdo. A noção de apreciação da forma sem q u e um deles nos é antipático, superar nossa aversão ou nossa
conteúdo, ou do c o n t e ú d o sem forma, é u m a ilusão; se igno- indiferença. Dentre as religiões reveladas e os sistemas filosófi-
rarmos o conteúdo de um p o e m a , não conseguiremos apreciar cos, devemos acreditar q u e um deles é correto, e os demais, fal-
a forma; se ignorarmos a forma, não captaremos o c o n t e ú d o , sos. Mas a sabedoria é XÓ70Ç f u r ò ç 1 o mesmo para todos os
pois o significado de um p o e m a reside nas palavras do p o e m a homens em q u a l q u e r parte. Se assim não fosse, que proveito
e apenas nessas palavras. Ε o q u e acabo de dizer não esgota o poderia tirar um europeu da leitura dos Upanixades, 1 6 ou dos
conteúdo. Em t u d o o q u e eu disse não nos revelamos preocupa- Nikayas budistas? Apenas algum exercício intelectual, a satisfa-
dos com todo o conteúdo, mas apenas com o c o n t e ú d o e n q u a n t o ção de u m a curiosidade, ou u m a sensação interessante como a
sistema filosófico, e n q u a n t o idéias" q u e p o d e m ser formula- de saborear algum exótico prato oriental. Eu disse que a Sabe-
das em outras palavras, e n q u a n t o um sistema de idéias em rela- doria de fato não p o d e ser definida. O que é a Sabedoria de
ção ao qual existe sempre a alternativa de um sistema possível Goethe? C o m o sugeri, os adágios de Goethe, em prosa ou cm
que a razão poderia aceitar. Esse sistema filosófico deve ser con- verso, são apenas ilustrações de sua sabedoria. A melhor prova
vincente: um poema que emergisse de u m a religião q u e nos da sabedoria de um grande escritor é o testemunho daqueles
desse a impressão de ser inteiramente vil, ou de u m a filosofia q u e p o d e m dizer, após um longo convívio com suas obras,
que nos parecesse um completo a b s u r d o , s i m p l e s m e n t e não " s i n t o - m e mais sábio graças ao t e m p o que passei com e l e " .
poderia ser de m o d o algum encarado c o m o um p o e m a . Pelo Pois a sabedoria é transmitida em um nível mais p r o f u n d o do
contrário, se dois leitores de mesma inteligência e sensibilidade q u e o das proposições lógicas; qualquer linguagem é inade-
começassem a 1er um grande p o e m a , um q u e acreditasse na filo- q u a d a , mas provavelmente a linguagem poética está mais apta
sofia do autor e outro q u e simpatizasse com u m a filosofia algo a transmitir a sabedoria. A sabedoria de um grande poeta está
diferente, ambos convergiriam para um p o n t o q u e jamais pode- dissimulada em sua obra, mas q u a n d o dela nos tornamos cons-
riam alcançar, no qual as duas apreciações se equivalessem. cientes, tornamo-nos mais sábios. Há muito admito que Goe-
Assim, é concebível que o professor Heller e Herr H o l t h u s e n the tenha sido um dos mais sábios dentre todos os homens,
pudessem quase chegar ao p o n t o de compartilhar sua estima há m u i t o q u e reconheço ter sido um grande poeta lírico, mas
por Rilke. que a sabedoria e a poesia sejam inseparáveis, em poetas da
mais alta estatura, é algo que somente percebo a partir do ins-
Não me lancei a essa análise g r a t u i t a m e n t e , mas sim para
tante em q u e começo a me tornar um p e q u e n o sábio. Assim,
chegar à conclusão de que há algo mais na poesia de grande

14. Em al . Duineser Elegien. É um c o n j u n t o dc dez elegias, publicadas em 1923.


do poeta austríaco Rainer Mana Rilke (Praga, 1875 Val Mont, perto de Montreux. 15. "Logos z u n o s . " ( N . T . )
1926). 1 rata-se de poesia hermética, em q u e o autor exprime u m a filosofia espiritua- 16. Texto filosófico composto entre os séculos Vili e IV a.C., anexado ao Veda e
lista e fantástica bastante original, mas obviamente influenciada por Nietzsche. ( N T ) no qual se desenvolve a rcllexão sobre o relacionamento entre Atmã e Brahma. ( N . I )
151
T. S. ELIOT

volto a contemplar as feições de G o e t h e q u e t e n h o sobre o con-


solo de minha lareira. Considerei-o, assim como aos dois outros,
como os três poetas q u e são incontestavelmente grandes euro-
peus. Mas não gostaria de concluir sem antes recordar-lhes que
tenho esses homens na conta de seres excepcionais, não em espé-
cie, mas em grau; q u e existiram outros, até m e s m o vivos na
memória, os quais, embora de nível inferior, pertencem à mesma
RUDYARD KIPLING 1
estirpe; e que u m a das condições de sobrevivência de nossa cul-
tura européia no f u t u r o será a da possibilidade de q u e os povos
europeus continuem a produzir tais poetas. E se chegar o
m o m e n t o em q u e a expressão "literatura e u r o p é i a " deixe de
ter algum significado, então a literatura e a lingua de cada
uma de nossas nações começará t a m b é m a d e f i n h a r e a correr
risco de morte.

Há muitas razões para que não conheçamos os poemas de


Kipling tão bem q u a n t o imaginamos. Q u a n d o alguém é conhe-
cido primordialmente como autor de prosa de ficção, inclinamo-
nos — e quase sempre, creio eu, com justiça — a ver o seu
verso c o m o um s u b p r o d u t o . Confesso que sempre duvido de
q u e q u a l q u e r h o m e m seja capaz de se dividir ao ponto dc tirar
o melhor proveito de duas formas dc expressão tão distintas
q u a n t o a poesia e a prosa de imaginação. Se abro uma exceção
no caso de Kipling, não é porque ele tenha feito dessa divisão
algo de bem-sucedido, mas porque penso que, por razões que
constituirão em parte o objeto deste ensaio, seu verso e sua
prosa são inseparáveis; devemos julgá-lo, afinal, não separada-
m e n t e como um poeta e um autor de prosa de ficção, mas
como o inventor de u m a forma mista. Assim, o conhecimento
dc sua prosa é essencial à compreensão de seu verso, e um conhe-
cimento de seu verso é essencial à compreensão de sua prosa.
Portanto, na m e d i d a cm q u e me ocupo aqui de seu verso, não
o faço apenas com o propósito de situá-lo posteriormente e
olhar com maior clareza o c o n j u n t o da obra. Na maioria dos

1. Introdução a A choice of Kipling's verse. publicada pela Haber & Faber em cola-
boração com a M c t h u e n and Macmillan, em 1941. e t a m b é m nos Estados Lenidos.
pela D o u b l e d a y . (N A.)
304 T. S. ELIOT
GOETHE. O SABIO 285

estudos sobre Kipling q u e li, os autores me parecem ter abor- tica" q u a n d o nos encontramos em desacordo com a política, e
dado seu verso como secundário, esquivando-se assim à ques- a maioria dos leitores não deseja nem o imperialismo nem o
tão — que c, não obstante, u m a questão q u e t o d o m u n d o se socialismo cm verso. Mas a questão não consiste no que é efê-
c o | o c a _ dc saber se o verso de Kipling é r e a l m e n t e poesia e, mero, e sim no que é permanente: um poeta que nos pareça
caso contrário, o q u e é. estar inteiramente fora dc contato com sua época pode, apesar
O ponto dc partida do verso de Kipling é o motivo do escri- disso, ter algo dc muito importante para dizer a ela, e um
tor de baladas, e a balada m o d e r n a se utiliza dc um tipo de poeta q u e abordou problemas de seu tempo não cairá necessa-
verso capaz de ser apreciado por aqueles q u e não dispõem de ins- riamente no esquecimento. As Stanzas from the Grande Char-
trumental crítico apropriado. T e n d e m o s , c o n s e q ü e n t e m e n t e , a treuse·, de Arnold, expressam um m o m e n t o de dúvida histórica,
condenar os poemas ao nos referirmos a critérios poéticos q u e registrado por seu mais representativo espírito, um m o m e n t o
não se aplicam a eles. E nossa tarefa, p o r t a n t o , c o m p r e e n d e r o q u e passou, q u e a maioria de nós já superou n u m a ou noutra
tipo ao qual eles pertencem antes de tentar avaliá-los: por con- direção, mas tais estrofes representam aquele m o m e n t o para
seguinte, devemos considerar o q u e Kipling estava e não estava sempre.
tentando fazer. A tarefa é oposta àquela com a qual g e r a l m e n t e Devemos, por conseguinte, tentar descobrir o que é perma-
nos defrontamos q u a n d o d e f e n d e m o s o verso c o n t e m p o r â n e o . nente no verso de Kipling, mas isso não equivale simplesmente
Esperamos conseguir d e f e n d e r um poeta contra a acusação de a dissociar a forma do conteúdo. Devemos considerar o conteúdo
obscuridade, defendé-lo contra a acusação de excessiva lucidez. em si, as atitudes sociais e políticas em seu desenvolvimento,
Esperamos censurar um poeta por sua falta de respeito pela inte- e fazer um esforço para nos desligarmos das presunções de nossa
ligência do h o m e m c o m u m , ou m e s m o por escarnecer intencio- própria geração, e nos perguntarmos se há algo mais cm Kipling
nalmente d a inteligência d o h o m e m c o m u m , c u m p r e - n o s do q u e está expresso pela caricatura de Beerbohm: um virtuose
defender Kipling da acusação de ser um ' j o r n a l i s t a " q u e recor- de cornetim farreando durante o feriado bancário.
ria apenas às emoções coletivas mais c o m u n s . C u m p r e - n o s ridi-
cularizar um poeta porque seu verso não parece destinar-sc a
ser escandido; cumpre-nos ainda d e f e n d e r Kipling da acusação 1
de escrever rimas q u e tilintam. Em s u m a , as pessoas se exaspe-
ram diante da poesia q u e não c o m p r c c n d c m , e m e n o s p r e z a m Em m i n h a seleção dos versos de Kipling não encontrei ne-
a poesia q u e c o m p r e e n d e m sem esforço, da m e s m a maneira n h u m lugar para os q u e foram publicados nos primeiros perío-
que uma platéia se sente o f e n d i d a por um orador q u e profere dos dc produção do autor: para ser exato, a seleção começa à
um discurso acima dc sua compreensão, c por um o u t r o de página 81 da edição completa. As obras anteriores pertencem
quem suspeita estar baixando o nível a fim de q u e ela o e n t e n d a . à juventude; todavia, são obras que, tendo sido publicadas
Um obstáculo adicional à apreciação dc m u i t o s dos poemas em sua época e nela obtido êxito, são de leitura indispensável
de Kipling é seu caráter anedótico e ocasional, b e m c o m o suas para u m a plena compreensão do processo evolutivo de Kipling.
vinculações políticas. As pessoas estão quase sempre inclinadas A maioria delas não tinha outro objetivo que não tosse o de
a depreciar a poesia que parece não ter q u a l q u e r ligação com a constituir uma leitura recreativa n u m jornal inglês editado na
situação presente, mas estão sempre dispostas a ignorar aquela índia: nelas se encontra aquele mesmo conhecimento precoce
que não parece estar associada senão à situação da véspera. dos níveis mais epidérmicos da fraqueza h u m a n a , que e eficaz
IJma agremiação política pode ajudar a conferir à poesia um c irritante cm algumas dc suas primeiras histórias sobre a índia.
interesse imediato: é a despeito dessa agremiação q u e a poesia É obviamente a obra de um jovem inteligente que poderia fazer
será lida, se o for, amanhã. A poesia é c o n d e n a d a c o m o " p o l í - carreira no jornalismo, mas que nem pelo sentimento nem pelo
306 T. S ELIOT
R U D Y A R D KIPLING 307

ritmo poderia nos levar a crer q u e o a u t o r fosse a l g u m dia de um 'escritor de b a l a d a " e me foi necessário algum t e m p o
escrever um p o e m a memorável. Ocioso dizer q u e n ã o se trata para esclarecer o q u e pretendo dizer com isso, pois estou disten-
de poesia: o q u e s u r p r e e n d e e instiga é q u e isso não p r e t e n d e d e n d o e t a m b é m limitando um pouco o significado da palavra
ser poesia, q u e não é a obra de um adolescente a q u e m se " b a l a d a " . E verdade que há u m a linha contínua no que se
poderia atribuir q u a l q u e r aspiração a escrever poesia. Q u e ele refere ao significado que reúne as várias espécies de verso às
seja dotado, q u e seja d i g n o de ser observado, é obvio q u a n d o quais se pode aplicar o termo " b a l a d a " . Na balada narrativa
se sabe q u ã o jovem era e n t ã o , mas esse d o m parece ser ape- da fronteira da Escócia, a intenção é contar uma história em
nas efêmero, e o escritor não cogitava de nada de mais elevado. q u e , nesse estágio da literatura, constitui a forma natural para
Houve, entretanto, influências literárias em sua formação. a história q u e visa elevar a emoção. Nela, a poesia é incidental
Encontramos em seus versos um pastiche de Atalanta in Caly- e, cm (erta m e d i d a , inconsciente; a forma é a da estrofe curta
don1 realizado para seus próprios propósitos imediatos; lembra- rimada. A atenção do leitor se encontra na história e nas perso-
mos t a m b é m q u e Mcintosh Jellaludin ( q u e nos é a p r e s e n t a d o nagens, e a balada deve ter um significado imediatamente apre-
ao cair sobre um jovem camelo, e n q u a n t o recita The song of ensível por parte de seus ouvintes. Audições sucessivas podem
the bower) declama, n u m a ocasião, o Atalanta inteiro m a r c a n d o confirmar as primeiras impressões, repetir o efeito, mas a plena
o ritmo com o pé na beira da cama. A família de Kipling m a n - compreensão deveria ser transmitida na primeira audição. O
tinha relações com a Sociedade Pré-Rafaelita, 3 e é considerável e s q u e m a métrico deve ser simples a fim dc não chamar a aten-
a dívida que Kipling tem para com S w i n b u r n e . N ã o se trata ção para si, mas as repetições e os refrões podem contribuir
em absoluto de u m a imitação: o vocabulário, o c o n t e ú d o e os para um efeito encantatório. Não devem ocorrer complicações
ritmos são diferentes. Há um m o n ó l o g o dos t e m p o s da juven- métricas correspondentes a sutilezas de sentimentos às quais
tude que é muito mais visivelmente i m i t a d o de Browning do não se possa reagir imediatamente. Em outro estágio de cultura
que qualquer coisa imitada de S w i n b u r n e , mas é em dois poe- — como em anglo-saxão e nas formas elaboradas do País de
mas extremamente distintos do estilo de Browning — McAn- Gales —, a poesia desenvolve um virtuosismo consciente, exi-
drew's hymn e The "Mary Gloster" — que a influência dc gindo t a m b é m um virtuosismo dc apreciação por parte da pla-
Browning torna-se mais visível. Por q u e a influência de Swin- téia: as formas impõem ao bardo dificuldades e obstáculos que
burne e Browning é tão diferente d a q u e l a q u e p o d e r í a m o s evidenciam sua destreza q u a n d o ele as supera. Cumpre lembrar
supor? Ela se deve, acredito, a u m a diferença de motivo: o q u e q u e essa sofisticação não se encontra apenas presente naquilo
eles escreveram tinha a intenção de ser poesia, e n q u a n t o Kipling a q u e chamamos de literatura " m o d e r n a ' ou cm estágios ulte-
não estava em absoluto t e n t a n d o escrever poesia. riores dc desenvolvimento das literaturas clássicas, como a latina,
Houve muitos escritores em verso q u e jamais p r e t e n d e r a m a grega, a sanscrita, a persa ou a chinesa; trata-se de um estágio
escrever poesia: à exceção de alguns autores de versos humorísti- alcançado às vezes na poesia de povos dc cultura inferior. E,
cos, eles são em sua maioria r a p i d a m e n t e esquecidos. A dife- por outro lado, a balada em verso não constitui simplesmente
rença é q u e eles jamais escreveram poesia. Kipling não escrevcu um estágio do desenvolvimento histórico: a balada persiste e se
poesia, pois não era isso o q u e se p r o p u n h a fazer. É essa peculia- desenvolve à sua própria maneira, equivalendo a um nível per-
ridade de intenção q u e t e n h o em m e n t e ao c h a m a r Kipling m a n e n t e de prazer literário. Há sempre* um público potencial
para a balada, mas as condições sociais da sociedade moderna
2. Tragedia lírica do poeta inglês Algernon Charles S w i n b u r n e (Londres. 1837 - criam dificuldades para que a boa balada seja escrita. E talvez
Putney, perto de Londres. 1909), publicado em 1865. Trata-se de um h i n o a G r é - mais difícil agora escrevê-la do que no tempo em que foram
cia antiga, em versos de encantadora riqueza musical ( N . T . )
compostas as baladas de caserna, pois Kipling tinha, pelo menos,
3. Confraria literária f u n d a d a em 1847 por D a n t e Gabriel Rossetti para reagir aos
padrões da arte oficial da época. ( N . T . ) a inspiração e o frescor do music-hall vivo.
308 T. S. ELIOT GOETHE. O SABIO 285

Para escrever a balada contemporânea não cabe recorrer à um todo; um refrão pode ajudar a identificar a espécic dc estrofe
ajuda particular a fim de sustentar conceitos sociais avançados dentro da qual é possível um limitado espcctro de variações. A
ou de acreditar que a literatura do f u t u r o deva ser u m a litera- variedade de formas q u e Kipling utiliza em suas baladas é notá-
tura 4 ' p o p u l a r " . A balada deve ser escrita por aqueles a q u e m vel: n e n h u m a delas é igual a outra, c todas se ajustam perfeita-
ela satisfaz c para seus próprios fins. Seria t a m b é m um e n g a n o , m e n t e ao conteúdo c ao estado de ânimo que o poema deve
e uma espécic arrogante de engano, supor q u e o público das transmitir. Tampouco a versificação é muito regular: a pulsação
baladas consista de operários de fábricas, de trabalhadores de só é m o n ó t o n a q u a n d o a monotonia do poema assim o exige;
manufaturas, de mineiros e lavradores. Ela mobiliza pessoas des- e as irregularidades dc escansão revelam um amplo espectro de
sas categorias, mas a composição de sua audiência, suspeito, não possibilidades. Um dos mais interessantes exercícios na combina-
guarda relação com n e n h u m a estratificação social e económica ção das pulsações pesadas e das variações de tempo pode ser
da sociedade. O público para as formas mais a l t a m e n t e desen- encontrado cm Danny Deever, um poema notável tanto do
volvidas/mesmo para as mais esotéricas espécies de poesia, é p o n t o de vista da técnica q u a n t o do conteúdo. A recorrência
recrutado em todos os níveis: as pessoas de pouca educação as regular das mesmas terminações vocabulares, que lucram imen-
consideram amiúde mais fáceis de aceitar do q u e as de educação s a m e n t e com o ritmo imperfeito (parade e said) dá a impressão
média. Por outro lado, o público fiel às baladas inclui muitas de pés em marcha e do movimento de homens em formação
pessoas que são, segundo as convenções, bastante educadas, disciplinada, n u m a u n i d a d e de movimento que realça o horror
além de muitas outras entre as quais se incluem os poderosos, da ocasião e a náusea q u e se apodera dos homens como indiví-
os instruídos, os altamente especializados, os herdeiros da pro- duos; e o t e m p o ligeiramente acelerado dos versos finais marca
priedade. Não pretendo sugerir q u e esses dois públicos estejam a m u d a n ç a no movimento e na música. Não há uma única pala-
obrigados a constituir, ou devam constituir, dois universos, mas vra ou frase q u e chame demasiada atenção para si, ou que aí
que existe aí um público capaz apenas de prestar atenção à não se encontre com vistas no efeito global, de modo que
balada, e um outro, mais restrito, capaz de gostar t a n t o de bala- q u a n d o advém o clímax:
das quanto das mais exigentes formas de poesia. Ora, são às
pessoas de ouvido sensível à balada q u e Kipling se dirige, mas 'What's that that whimpers over'ead?' said hiles-on-Parade,
isso não significa que todos os seus poemas despertem o fascínio 'It's Danny 's soul that's passin ' now. ' the Colour-Sergeant said3
dos leitores apenas nesse nível.
Pouco c o m u m nas baladas de Kipling é sua intenção exclu- (sendo a palavra whimper [ " s o l u ç a r " ] rigorosamente correta),
siva de não tentar transmitir mais do q u e o espírito simples a atmosfera havia sido preparada para que ocorresse uma com-
pode apreender n u m a primeira leitura ou audição. Elas se tor- pleta suspensão da incredulidade.
nam melhores q u a n d o lidas em voz alta, e o ouvido não requer Seria ilusório sugerir q u e todos os poemas de Kipling, ou
n e n h u m treinamento para acompanhá-las com facilidade. Essa pelo menos todos os q u e têm importância, sejam " b a l a d a s " :
simplicidade de propósito faz-se acompanhar dc um c o n s u m a d o há u m a grande variedade de gêneros. Quero dizer apenas que
dom da palavra, da frase e do ritmo. Não há poeta q u e não o acesso à compreensão do que ele estava tentando fazer, em
esteja menos exposto à acusação de se repetir. Na balada, a todos os seus variados versos, passa pelo motivo da balada. A
estrofe não deve ser muito longa e o esquema rítmico não m u i t o melhor introdução, para o meu presente propósito, é chamar
complicado; 4 a estrofe deve ser i m e d i a t a m e n t e apreensível como a atenção para u m a dúzia de determinados poemas bastante

4. Embora Kipling fosse capaz dc lidar ate' m e s m o com u m a f o r m a t ã o difícil V " ' Q u e m c q u e soluça lá cm cima?' pergunta o cabo na fileira. / 'É a alma de
q u a n t o a da sextina. (N A . ) D a n n y q u e esvoaça agora', responde o p o r t a - b a n d e i r a . " ( N . T . )
GOETHE. O SABIO 285
310 T. S. ELIOT

de isolá-la das outras baladas do mesmo tipo, mas para lem-


representativos de seus diferentes tipos. Ao leitor para o qual
brar q u e , no caso de Kipling, vocês não podem traçar uma linha
o acesso à poesia através da balada é o mais natural não é neces-
além da qual alguns dos versos se tornem " p o e s i a " , e que a
sário mostrar q u e o verso de Kipling alcança de vez em q u a n d o
poesia, q u a n d o aflora, deve a intensidade de seu impacto ao
a intensidade da " p o e s i a " ; para tais leitores e mais proveitoso
fato de ser algo q u e está mais além, algo mais do que o escri-
discutir o conteúdo e a concepção de vida do autor, e superar
tor prometeu oferecer a vocês, e que o assunto não é jamais sim-
os preconceitos que possam alimentar contra q u a l q u e r verso
plesmente um pretexto, u m a ocasião para a poesia. Há outros
q u e apresente uma temática distinta ou um p o n t o de vista dife-
poemas em q u e o e l e m e n t o da poesia é mais difícil dc se paten-
rente daqueles q u e eles estão habituados a aceitar, destacan-
tear do q u e em Danny Deever. Dois poemas que muito se asse-
do-o, outrossim, da irrelevante associação com acontecimentos
e atitudes subseqüentes. Isso é o q u e tentarei fazer na seção melham são o Mc Andrew's hymn e The "Aíary Gloster". São
monólogos dramáticos, obviamente, como já disse, que devem
seguinte. Ao escolher os exemplos q u e se s e g u e m , penso antes
algo à invenção de Browning, embora intrínseca e metricamente
no leitor que, caso suponha q u e Kipling haja escrito " t i l i n t a n -
constituam baladas. O veredicto popular escolheu a primeira
tes rimas políticas", dá mais ênfase à expressão tilintantes rimas
como a mais memorável; acho q u e o veredicto popular está cor-
do que à palavra políticas.
reto, mas as razões pelas quais o Mc Andrew's hymn c superior
A primeira impressão que podemos colher a partir do exame
a The " M a r y Gloster não são fáceis de explicar. O velho arma-
de um certo n ú m e r o de poemas selecionados para mostrar a
dor rapace desse ú l t i m o p o e m a não está facilmente descartado,
variedade é que essa variedade c suspeitamente g r a n d e . Ou
e a presença do filho silencioso confere uma qualidade dramá-
seja, podemos não conseguir perceber aí mais do q u e o virtuo-
tica q u e está ausente no solilóquio de McAndrew. Um poema
sismo de um escritor capaz de manipular à vontade quaisquer
não é menos bem-sucedido do que o outro. Sc o poema de
formas e assuntos; podemos não discernir n e n h u m a u n i d a d e .
McAndrew é o mais memorável, isso não ocorre porque Kipling
Podemos ser levados a admitir que um p o e m a após o u t r o , de
estivesse mais inspirado pela contemplação do sucesso do fra-
u m a maneira ou de outra, tenha seu m o m e n t o poético ', e
casso do q u e pela contemplação do fracasso do sucesso, mas
todavia acreditar q u e os m o m e n t o s são apenas acidentais ou ilu-
porque havia poesia da maior qualidade na temática. Foi McAn-
sórios. Seria um erro admitir q u e sc possam escolher alguns
drew q u e m criou a poesia do Vapor, e Kipling quem criou a
poemas que sejam poesia , e q u e o restante, por implicação,
poesia de McAndrew.
não tenha necessidade de ser lido. U m a seleção feita dessa
maneira seria arbitrária, pois não há um p u n h a d o de poemas Falamos às vezes como se o cscritor que se mostra mais cons-
que possam ser isolados dos demais; isso seria ilusório p o r q u e ciente e meticulosamente um "artesão' estivesse o mais dis-
a significação dos " p o e m a s estaria perdida fora do contexto tante possível dos interesses do leitor c o m u m , e como se o escri-
do " v e r s o " , do mesmo m o d o q u e a significação do verso nos tor popular fosse um escritor inábil. Mas n e n h u m escritor se
escaparia fora do contexto da prosa. N e n h u m a parte da obra revela artífice mais cuidadoso com as palavras do que Kipling:
de Kipling, e n e n h u m a fase dc sua obra, são inteiramente apre- trata-se de u m a paixão q u e lhe dá um prodigioso respeito pelo
ciáveis sem que se levem em conta as demais; e, afinal, essa artista dc q u a l q u e r arte e pelo artesão de qualquer ofício/' e
obra — q u e , se for examinada peça por peça, não parece ter q u e talvez esteja implícita cm seu respeito à 1 ranco-Maçonaria.
n e n h u m a unidade além do acaso de circunstâncias externas —
acaba por revelar uma unidade de u m a espécie mais complicada. 6. O touro que pensava (The bull that thought), na arena , "se enfurecia prodigio-
s a m e n t e ; ele simulava a derrota; desesperava em a b a n d o n o estatuário, e por isso
Portanto, se cu chamar a atenção particular de vocês para
faiscava de novo paroxismos de cólera, mas sempre com o desligamento do verda-
Danny Deever como u m a balada de caserna q u e só alcança deiro artista q u e sabe nào ser mais do q u e o receptáculo de uma emoção em que
em parte a intensidade da poesia, não o faço com o propósito outros, mas nào ele. d e v e m b e b e r " . ( N . A . )
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R U D Y A R D KIPLING 313

Os problemas do artista literário reaparecem c o n s t a n t e m e n t e chamava de a Figura no Tapete. 9 No que respeita aos maiores
em suas histórias: em Wireless por exemplo, na qual o pobre dentre os poetas modernos, essa Figura se encontra perfeita-
assistente do farmacêutico tuberculoso é por u m a noite identifi- m e n t e manifesta (pois podemos estar certos da existência da
cado com Keats no m o m e n t o em q u e escrevia The eve of St. Figura sem compreendê-la inteiramente): cito Yeats nesse ponto
Agnes\ em The finest story in the world, em que Kipling devido ao contraste entre seu desenvolvimento, que é muito
enfrenta dificuldades para produzir um p o e m a m u i t o b o m em visível na maneira como ele escreve, e o desenvolvimento de
versos livres (a Song of the galley slaves) c o u t r o m u i t o ruim Kipling, q u e só é aparente nos temas sobre os quais ele escreve.
em versos regulares para ilustrar a diferença entre o p o e m a q u e O q u e esperamos perceber, no caso de um grande escritor, é o
se insinua à força na consciência do poeta e a q u e l e a q u e o pró- q u e ele tinha a escrever sobre o assunto que escolheu, e de que
prio escritor se obriga. A diferença entre a artesania e a arte maneira o tez. Em n e n h u m escritor de estatura idêntica à de
da poesia é, naturalmente, tão difícil de estabelecer q u a n t o a Kipling é tão difícil discernir essa exigência interior, essa uni-
diferença entre a poesia e a arte da balada. Ela não poderá nos d a d e na variedade.
ajudar a definir o lugar de Kipling na poesia; só p o d e m o s dizer Passo das primeiras baladas a uma segunda categoria do
que a artesania de Kipling é mais consistente do q u e a dc verso de Kipling: a daqueles poemas que se inspiram em tópi-
alguns poetas de maior estatura, e q u e a rigor há m u i t o poucos cos da atualidade ou q u e os comentam. Alguns desses, como
poemas, mesmo em suas obras reunidas, em q u e ele não conse- The truce oj the beary sob forma de um apologo, não almejam
gue fazer o que se propusera. A artesania do g r a n d e poeta m u i t a elevação. 1 0 Mas ser capaz de escrever bons versos de cir-
pode às vezes lhe faltar, mas em seus melhores instantes ele faz cunstância é, na verdade, um dom extremamente raro: Kipling
o que Kipling realiza n u m plano inferior, ou seja, escreve trans- tinha esse d o m e se dispunha a utilizá-lo muito seriamente.
parentemente, de m o d o q u e nossa atenção está dirigida para D e n t r e os poemas desse tipo, eu colocaria Gehazi — poema
o objeto, e não para o meio de expressão. I al resultado não é inspirado pelos escândalos de Marconi — em nível muito alto,
obtido simplesmente pela ausência de e l e m e n t o s decorativos como u m a apaixonada invectiva q u e se eleva à autêntica elo-
— pois até mesmo a ausência destes p o d e ser responsabilizada qüência (e como um poema que ilustra, incidentalmente, a
por chamar a atenção sobre si —, mas graças ao fato de jamais i m p o r t a n t e influência das imagens bíblicas e da linguagem da
os utilizarmos em si mesmos, 8 e m b o r a , ainda u m a vez, o q u e Versão Autorizada sobre os seus textos). Os poemas sobre o
parece supérfluo possa ser o q u e é de fato i m p o r t a n t e . O r a , Canadá e a Austrália, c sobre os funerais do rei Eduardo VII,
um dos problemas que surgem com relação a Kipling está rela- são excelentes no gênero, embora não muito memoráveis indi-
cionado àquela perícia artesanal q u e parece torná-lo t a p a z dc vidualmente. Ε o dom para versos de circunstância está associado
transitar de forma para forma, embora sempre n u m a linguagem ao d o m para dois outros gêneros de verso em que Kipling exce-
identificável, e de assunto para assunto, de m o d o q u e ignora- leu: o epigrama c o hino. Os bons epigramas são raríssimos
mos qualquer compulsão interior q u e nos obrigaria a escrever em inglês; e o grande hinólogo é muito raro. São ambos tipos
isso mais do que aquilo versatilidade q u e p o d e nos levar à de verso e x t r e m a m e n t e objetivos: eles podem e deveriam estar
suspeita de que ele seria apenas um performático. Procuramos, carregados de intensa emoção, mas é preciso que seja uma emo-
tanto num poeta q u a n t o n u m novelista, o q u e Henry J a m e s ção capaz dc ser integralmente compartilhada. E capaz dc
escrevê-los um autor tão impessoal q u a n t o Kipling, e gostaria
7. Em Proofs of Holy Writ (uma história publicada apenas na edição dc Sussex).
Shakespeare e J o h n s o n discutem um p r o b l e m a de escolha de palavras colocado
9. Eliot alude a q u i à novela The figure tn the carpet {1896), do escritor norte-ame-
diante deles por um dos tradutores da Bíblia do rei J a i m e ( N . A . )
ricano naturalizado inglês Henry James (Nova York, 1843 — Londres. 1916). (N. I . )
8. O grande discurso de Enobarbus em Antônio e Cleópatra é p r o f u s a m e n t e orna-
10. E m b o r a The truce of the hear deva ser citado entre os poemas que evidenciam
mentado, mas essa ornamentação tem um propósito além dc sua própria beleza ( N A . )
a intuição política de Kipling. (N A.)
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que o leitor olhasse a t e n t a m e n t e os Epitaphs of the war. T e n h o algum a d e q u a d o , assim como o termo "experimentação". Há
Kipling na conta de um grande escritor de hinos por causa do grande variedade, além dc algumas inovações de fato notáveis,
Recessional.11 Trata-se de um p o e m a quase tão conhecido q u e como em The way through the woods c em The harp song of
não carece chamar a atenção do leitor para ele, a não ser para the Dane women-.
sublinhar que constitui um dos poemas em q u e algo se revela
através dc um nível mais baixo do q u e o do espírito do observa- What is a woman that you forsake her.
dor consciente de assuntos políticos e sociais — algo q u e tem And the hearth-fire and the home-acre,
To go with the old grey Widow-maker?13
uma inspiração verdadeiramente profética. Kipling poderia ter
sido um dos mais notáveis hinólogos da língua inglesa. Esse
E nas belíssimas Runes on Weland's sword. Mas havia idênticas
mesmo dom da profecia aflora, no plano político, cm outros
invenções originais nos poemas anteriores (Danny Deever); e
poemas, como The storm cone, mas em parte a l g u m a c o m cate- entre os últimos se registram alguns belíssimos modelos em for-
goria superior à do Recessional. mas mais convencionais, como Cold iron, The land c The chil-
É possível, todavia, agrupar todos os p o e m a s de Kipling dren 's song.
cm u m a ou outra entre diversas categorias distintas. Há o poema Confesso, por conseguinte, que o instrumental crítico que
Gethesemane, q u e julgo não c o m p r e e n d e r 1 2 e q u e é dc tal estamos acostumados a utilizar na análise e na crítica de poesia
m o d o misterioso q u e o poeta decidiu situá-lo cronologicamente não parecem funcionar aqui; confesso, além disso, que a intros-
bem no início de sua edição completa, já q u e ele ostenta como pecção de meus próprios processos não me concede n e n h u m a
subtítulo a data " 1 9 1 4 - 1 9 1 8 " . E há os p o e m a s do período pos- a j u d a , pois parte do fascínio desse assunto reside na exploração
terior. de um espírito q u e é m u i t o diferente do meu. Estou habituado
Os versos do último período revelam, inclusive, u m a diver- a pesquisar a forma, mas Kipling não parece jamais estar à pro-
sidade maior do q u e a dos poemas da j u v e n t u d e . A palavra cura da forma, a não ser de u m a forma particular para cada
"experimentação pode ser aplicada, e h o n r o s a m e n t e aplica- p o e m a , de m o d o q u e encontramos nos poemas uma extraordi-
da, ao trabalho de muitos poetas q u e se aperfeiçoaram e m u d a - nária variedade, mas n e n h u m modelo evidente — a conexão
ram na maturidade. Na m e d i d a em q u e um h o m e m envelhece, deve ser estabelecida em algum outro nível. Todavia, não se
pode voltar-sc para novos temas, ou abordar a m e s m a matéria trata de n e n h u m a exibição de virtuosismo vazio, e podemos
de um m o d o diferente; na m e d i d a em q u e envelhecemos, pas- estar certos de q u e não há n e n h u m a ambição de êxito popular
samos t a m b é m a viver n u m m u n d o d i f e r e n t e , e nos t o r n a m o s ou esotérico apenas pelo gosto do êxito em si mesmo. O escri-
homens diferentes no mesmo m u n d o . As m u d a n ç a s p o d e m ser tor não é apenas um h o m e m sério, mas um homem que tem
expressas por uma mudança de ritmo, de imagens, de f o r m a : u m a vocação. Ele é c o m p l e t a m e n t e ambidestro, ou seja, está
o verdadeiro experimentador não se sente mais instigado por a b s o l u t a m e n t e a p t o a se expressar em verso ou em prosa, mas
uma curiosidade irrequieta, ou pelo afã da novidade, ou pelo sua necessidade dc expressar a m i ú d e a mesma coisa numa his-
desejo de surpreender ou causar espanto, mas pela compulsão tória ou n u m p o e m a é u m a necessidade mais p r o f u n d a do que
dc descobrir, em cada novo poema c o m o em seus primeiros, a simplesmente exibir sua habilidade. Não sei de n e n h u m escri-
forma correta para as emoções cujo desenvolvimento não conse- tor tão b e m - d o t a d o para q u e m a poesia pareça ter sido mais
gue mais, como poeta, controlar. Mas, precisamente, no caso exclusivamente um instrumento. A maioria de nós está interes-
de Kipl ing, o termo desenvolvimento" não parece de m o d o sada na forma pela forma — não i n d e p e n d e n t e m e n t e do con-

11. Hino que se entoa depois do ofício divino. ( N . T . ) 13. "O q u e <5 u m a m u l h e r q u e vos a b a n d o n o u , / E ao fogo da lareira c às terras
12. Embora a morte de seu filho deva ser a causa de sua i n t e n s i d a d e . (N A . ) de vossa p r o p r i e d a d e , / Para seguir o velho fabricante grisalho de viúvas?" ( N . T . )
T. S. ELIOT 312 R U D Y A R D KIPLING
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teúdo mas p o r q u e , ao realizarmos algo q u e , acima dc t u d o , u m a p e q u e n a redução da pena de esquecimento. Poder-se-ia


existirá, almejamos algo q u e , c o n s e q ü e n t e m e n t e , terá a capaci- esperar q u e um poeta q u e se revelou tão pouco comunicativo
dade de excitar, d e n t r o de um l i m i t a d o espectro, u m a conside- com seus êxtases e desesperos pessoais fosse e n f a d o n h o ; poder-
rável variedade dc respostas para diferentes leitores. Para Kipling, se-ia esperar q u e um poeta q u e concedia tanto de seu t e m p o
o poema é algo concebido para atuar — c, na maioria dos casos, ao serviço da imaginação política fosse efêmero; poder-se-ia,
para extrair a m e s m a resposta de todos os leitores, e a p e n a s a afinal, esperar q u e um poeta tão constantemente ocupado com
resposta q u e eles p o d e m elaborar cm c o m u m . Para o u t r o s poe- a aparência das coisas fosse superficial. Sabemos q u e ele não é
t a s _ pelo m e n o s para alguns outros poetas , o poema pode e n f a d o n h o , pois f o m o s todos, u m a vez ou outra, por esse ou
começar a se configurar em f r a g m e n t o s de r i t m o musical, c sua por a q u e l e p o e m a , t o m a d o s dc emoção; sabemos que ele não
estrutura surgirá de início em t e r m o s de algo a n á l o g o à f o r m a é e f ê m e r o , pois nos l e m b r a m o s bastante daquilo que lemos de
musical; c tais poetas acham c ô m o d o se o c u p a r c o n s c i e n t e m e n t e seu p u n h o . Q u a n t o à superficialidade, essa acusação não lhe
dos problemas relativos à artesania, d e i x a n d o q u e o significado p o d e ser feita senão por aqueles q u e continuaram a lê-lo ape-
mais p r o f u n d o aflore a partir de um nível inferior. Trata-se, nas com um interesse pueril. Às vezes, Kipling não se revela
portanto, da questão de saber a q u i l o de q u e a l g u é m decide tor- a p e n a s d o t a d o de penetração, mas quase " p o s s u í d o " de uma
nar-se consciente, e qual a parte do significado, n u m p o e m a , espécie de s e g u n d a visão. E em si u m a coisa curiosa e sem
a ser diretamente transmitida à inteligência, assim c o m o qual a i m p o r t â n c i a q u e se lhe haja reprovado o fato de ele haver colo-
parte a ser i n d i r e t a m e n t e c o m u n i c a d a por m e i o da impressão cado para d e f e n d e r a Muralha 1 1 u m a legião romana que os his-
musical à sensibilidade — l e m b r a n d o s e m p r e q u e o e m p r e g o toriadores a f i r m a r a m jamais ter estado nas proximidades, mas
da palavra " m u s i c a l " e de analogias musicais, q u a n d o se dis- q u e descobertas recentes comprovaram, na verdade, ter ali
cute poesia, tem lá seus perigos se n ã o a v e r i g u a r m o s c o n s t a n t e - a c a m p a d o : eis u m a espécie de coisa que cabe esperar de Kipling.
m e n t e suas limitações, pois a música do verso é inseparável dos Há cavernas mais p r o f u n d a s c sombrias nas quais ele penetrou,
significados e das associações de palavras. Se eu disser, por con- p o u c o i m p o r t a se através da experiência ou graças à imagina-
seguinte, q u e essa preocupação musical é secundária e episó- ção: ocorrem alusões a estas em The end of the passage e, mais
dica em Kipling, isso não significa q u e estou lhe a t r i b u i n d o tarde, em The woman in his life e In the same boat\ bastante
qualquer deficiência artesanal, mas antes u m a o r d e m de valo- estranhas, tais histórias se encontram prefiguradas por um poema
res diferentes cuja estrutura poética e s p e r a m o s d e t e r m i n a r . de sua j u v e n t u d e q u e não incluí, Lι nuit blanche, que intro-
d u z u m a i m a g e m q u e reaparece em The end of the passage.
Se pertencemos à espécic de crítico q u e se h a b i t u o u a ava-
Kipling tinha algum conhecimento das coisas que estavam ocul-
liar poemas somente segundo os padrões da obra de a r t e " ,
tas, e das coisas q u e se encontravam para além das f r o n t e i r a s . π
poderemos tender a repudiar o verso de Kipling a partir de
padrões q u e não se apliquem a ele. Se, por o u t r o lado, formos
o crítico biográfico, interessado primordialmente na obra e n q u a n t o 14 Trata-se da célebre Muralha Romana construída por Adriano no norte da
revelação do h o m e m , Kipling se tornará o mais incompreensível Inglaterra, d e s t i n a d a a d e f e n d e r suas tropas contra as investidas dos pictos (Ν. Γ.)
dos objetos: n e n h u m escritor foi mais reticente sobre si m e s m o , IV C o m p a r e m a descrição da agonia em In the same boat (história cujo final c
ou concedeu tão poucas oportunidades à curiosidade alheia, seja mais fiel à experiência do q u e o de The brushwood boy)'. " S u p o n h a que você seja
u m a corda dc violino - vibrante e q u e alguém ponha o dedo sobre você" com
por auto-idolatria, seja por repulsa à sua própria pessoa. a i m a g e m da "corda do b a n j o distendida ao máximo pela onda que se quebra
O leitor p u r a m e n t e hipotético q u e se d e b r u c e sobre este em The finest story tn the world. C o m p a r e m ainda a história A matter of fact, rela-
ensaio sem n e n h u m c o n h e c i m e n t o prévio dos versos de Kipling tiva à erupção de um vulcão submarino q u e lança um monstro do mar à superfície,
com as primeiras passagens de Alice no país das maravilhas', ambas descrevem acon-
poderia talvez imaginar q u e me a t r i b u í r a m a causa dc um escri- tecimentos exteriores q u e revelam uma exata correspondência com algum rerror espi-
tor de indiscutível s e g u n d a o r d e m , e q u e estou t e n t a n d o , c o m o ritual. A matter of Jact é uma história superior a In the same boat, pois a explica-
n u m a demonstrarão de m i n h a habilidade c o m o a d v o g a d o , obter ção psicológica desta última eclode como um anticlimax à experiência. (N A.)
T. S. ELIOT
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319

Não expliquei o verso de Kipling nem a p e r m a n e n t e im- Needs must all please, yet some not all for need.
pressão que ele p o d e causar sobre vocês. Basta-me poder evi- Needs must all toil, yet some not all for gain,
tar que o coloquem em nichos de columbários q u e não lhe são But that men taking pleasure may take heed.
adequados. 1 6 Se o leitor deste livro negar q u e Kipling seja Whom present toil shall snatch from later pain.
um grande artista do verso, espero q u e pelo m e n o s possa ter Thus some have toiled, but their reward was small
descoberto novas razões para seu j u l g a m e n t o crítico, pois as Since, though they pleased\ they were not heard at all.
acusações comuns q u e se fazem contra ele não são n e m verda-
deiras nem relevantes. Utilizei a palavra verso' com sua pró- This was the lock that lay upon our hps,
This was the yoke that we have undergone,
pria autoridade, pois era assim q u e ele próprio os designava.
Denying us all pleasant fellowships
Há poesia nesses versos, mas q u a n d o ele escreve versos q u e
As in our time and generation.
não são poesia não é p o r q u e haja t e n t a d o escrever poesia e não
Our pleasures unpursued age past recall.
o tenha conseguido. Ele tinha outro objetivo, um objetivo ao
And for our pains — we are not heard at all.
qual se aferrava e que se encontra expresso no p o e m a q u e se
segue, extraído de A diversity of creatures'. What man hears aught except the groaning guns?
What man heeds aught save what each instant brings?
THE FABULISTS When each man's life all imaged life outruns,
1 9 1 4 — 1 9 1 8
What man shall pleasure in imaginings?
So it has fallen, as it was bound to fall,
When all the world would keep a matter hid, We are not, nor we were not, heard at all. r
Since Truth is seldom friend to any crowd',
Men write in fable as old ALsop did\
Jesting at that which none will name aloud. 17. " Q u a n d o o m u n d o inteiro deseja guardar um segredo, / Pois a Verdade é rara-
m e n t e amiga de q u a l q u e r m u l t i d ã o . / Os h o m e n s escrevem fábulas como o fazia
And this they needs must do. or it will fall o velho Esopo, / Z o m b a n d o do q u e n i n g u é m ousará anunciar em voz alta. / E
Unless they please they are not heard at all. d e v e m eles fazê-lo, ou a q u e d a advirá. / Pois a menos q u e agradem, de m o d o
a l g u m serão ouvidos // Q u a n d o a Loucura em desespero a cada dia se e m p e n h a
When desperate Folly daily laboureth / Por lançar a c o n f u s ã o sobre t u d o o q u e possuímos, / Q u a n d o a zelosa Preguiça
c o n d e n a à m o r t e a Liberdade. / E o Medo a m o t i n a d o cava o t ú m u l o da honra /
To work confusion upon all we have, — Mesmo nessa hora incerta antes da q u e d a — / A menos que agradem, de
When diligent Sloth demandeth Freedom s death. m o d o algum serão ouvidos. // C u m p r e agradar a qualquer preço, e todavia nem
And banded Fear commandeth Honour's grave a todos por necessidade, / C u m p r e t a m b e m mourejar, e todavia nem todos para
o g a n h o , / Mas q u e m se vale do prazer deve manter-se em guarda, / Q u e m arran-
Even in that certain hour before the fall, cara a dor f u t u r a o trabalho presente / Assim, alguns trabalharam, mais foi escassa
Unless men please they are not heard at all. a recompensa. / Pois, e m b o r a agradassem, de m o d o algum foram ouvidos. // Foi
esse o ferrolho q u e nos puseram sobre os lábios. / Foi esse o jugo que tivemos de
16. O Dr. J. H. O l d h a m despertou m i n h a atenção para a i m p o r t â n c i a do c a p í t u l o aguentar. / Recusando-nos quaisquer reconfortantes amizades. / Tanto em nosso
sobre Arte e mágica no extraordinário livro The principles of ari, do professor t e m p o q u a n t o em nossa geração. / Nossos prazeres negligenciados perdidos para
R. G. Collingwood. Collingwood t o m a Kipling c o m o um e x e m p l o do "artista sempre / E q u a n t o às nossas dores n i n g u é m de m o d o algum a* ouve. // Q u e
como m á g i c o " , e dei me a arte mágica c o m o " u m a arte q u e é representativa e, escuta o h o m e m a não ser os g e m e b u n d o s canhões? / A que presta atenção, exceto
portanto, evocadora de emoções, u m a arte q u e evoca c o m u m a f i n a l i d a d e d e t e r m i - ao q u e cada instante lhe proporciona? / Q u a n d o a vida de cada h o m e m se esquiva
nada algumas emoções mais do q u e outras para descarregá-las nos assuntos da vida a toda vida imaginada, / Q u e h o m e m sentira prazer na imaginação? / Assim caiu
p r á t i c a " . A contribuição do professor Collingwood parece-me a q u i e x t r e m a m e n t e afinal o q u e estava previsto para cair. / Nào somos, nem fomos, de m o d o algum
valiosa, mas, q u a n t o ao fato de Kipling ser a rigor um b o m e x e m p l o d a q u i l o q u e o u v i d o s . " (A linguagem especiosa e a sintaxe arrevesada tornam puramente tenta-
ele chama o artista como m á g i c o " , não sinto q u e "o artista c o m o m á g i c o " cor- tiva a tradução desse p o e m a , q u e , c o m o observa o tradutor francês Henri Fluchère.
responda a uma descrição cabal de Kipling c o m o um artista do verso. (N A . ) "esta i m p r e g n a d o de u m a nostalgia mística i n d e t e r m i n a d a " . ) ( N . T . )
T. S. ELIOT
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II
vida o o r d e n o u , o resultado foi conceder-lhe um singular desli-
g a m e n t o e distanciamento de todo o meio ambiente, uma alie-
Expressei a opinião de q u e a variedade do verso de Kipling nação universal q u e constitui o reverso de sua f u n d a paixão
e suas mutações de um período para outro não p o d e m ser expli- pela India, pelo Império Britânico, pela Inglaterra c por Sussex,
cadas, como tampouco fornecer um m o d e l o unificado, graças um distanciamento semelhante ao de um visitante perigosa-
ao estudo de seu desenvolvimento, c o m o poderíamos fazer com m e n t e inteligente vindo de outro planeta. Ele permanece algo
a maioria dos poetas. Seu desenvolvimento não p o d e ser com- alienado c indiferente em relação a tudo aquilo com que se iden-
preendido por meio de um único verso, pois Kipling foi, c o m o tifica. O leitor que pode descer um pouco — mas não muito
já disse no início, um escritor c o m p l e t o em prosa e em verso; p r o f u n d a m e n t e — abaixo do nível da popularidade de Kipling
e para compreender essas mudanças temos de considerar a prosa como contador de histórias e declamador de baladas, e que
e o verso c o n j u n t a m e n t e . Kipling parece ser desde o início um revele um vago sentimento em relação a algo que se situe mais
escritor de diferentes fases e ocupações, alguém q u e se desen- abaixo, está apto a fornecer a explicação errônea dc seu próprio
volveu por completo em cada um desses períodos, q u e jamais desconforto. Tentei desestabilizar a crença de que Kipling é
se comprometeu com u m a d e t e r m i n a d a torma de verso a p o n t o um simples autor de estribilhos populares; precisamos agora
de ficar impossibilitado de transitar para o u t r a . Ele é tão dife- considerar se tais "estribilhos populares" são, no sentido pejo-
rente de outros poetas q u e o crítico preguiçoso é t e n t a d o a afir- rativo do termo, " p o l í t i c o s " .
mar apenas que não se trata em absoluto de um poeta, e fica ler nascido na India e ali ter vivido os primeiros anos de
tudo por isso mesmo. As mudanças em sua poesia, na m e d i d a q u e sua memória tem lembrança é um fator de importância
em que são incapazes de ser explicadas por q u a l q u e r e s q u e m a capital para u m a criança tão impressionável. Ter permanecido
habitual de desenvolvimento poético, p o d e m , até certo p o n t o , dos dezessete aos vinte e quatro anos g a n h a n d o ali a sua vida
ser explicadas por modificações de circunstâncias alheias à sua é, para um jovem m u i t o precoce e observador, uma experiência
vida. Digo 4 até ceno ponto porque Kipling, q u e não é apa- t a m b é m i m p o r t a n t e . Parece-me que disso resultaram dois estra-
rentemente senão o reflexo do m u n d o q u e o rodeia, é o mais tos q u e se c o n f u n d e m na apreciação de Kipling sobre a índia:
inescrutável de todos os autores. Um imenso d o m para o uso o estrato da criança e o do adolescente. Foi esse adolescente
das palavras, uma espantosa curiosidade e um poder dc observa- q u e observou os britânicos na índia e escreveu as mais insolen-
ção tanto do espírito q u a n t o de todos os sentidos; a máscara tes e ácidas histórias de Delhi e Simla, mas foi por meio da
do comediante e, além disso, um estranho d o m de segunda visão, criança q u e ele aprendeu a amar o país e sua gente. E Purun
de transmissão de mensagens vindas de alhures, d o m tão descon- Bhagat, são as quatro grandes personagens indianas de Kim
certante q u a n d o dele nos tornamos conscientes q u e , a partir de q u e se tornam reais: o Lama, Mahbub Ali, Hurree Chunder
então, jamais estamos certos de q u a n d o ele não está presente Mookerjee e a opulenta viúva do norte. Q u a n t o aos britânicos,
— tudo isso faz de Kipling um escritor absolutamente impossí- aqueles com os quais ele se revela mais simpático são os que
vel de compreender e inteiramente impossível de depreciar. sofreram ou decaíram — Mcintosh Jellaludin aprendeu mais
A primeira caractcrística q u e observamos em Kipling é, sem do q u e Strickland. 1 8 Kipling pertence à índia de uma maneira
dúvida, u m a excepcional sensibilidade em relação ao meio diferente da de qualquer outro inglês que haja escrito sobre
ambiente, de m o d o que, nesse plano, p o d e m o s traçar sua traje- esse país, e de u m a maneira diferente da de qualquer indiano
tória a partir de circunstâncias externas. O q u e a vida teria feito
desse homem se seu nascimento, sua adolescência, sua maturi-
18. A propósito da etica de Kipling e dos tipos h u m a n o s que ele indica respeito-
dade e sua velh ice houvessem se desenrolado nos mesmos s a m e n t e , consu Ite-se um valioso ensaio do Sr. Bonamy Dobrée em lhe lamp ami
ambientes, é algo que está para além da especulação. C o m o a the lute (N A.)
312 T. S. ELIOT
R U D Y A R D KIPLING 322

em particular, q u e tem u m a raça, um credo, uni domicílio local E na expressão de seus sentimentos ele não estava certamente
e, caso seja um h i n d u , u m a casta. Ele poderia quase ser cha- p r e t e n d e n d o adular uma vaidade nacional, racial ou imperial,
mado de o primeiro cidadão da India. E sua relação com a ou t e n t a n d o divulgar um programa político: o que Kipling pre-
índia nele determina o q u e de mais i m p o r t a n t e existe n u m tendia era comunicar a consciência de alguma coisa de cuja exis-
h o m e m : sua atitude religiosa. Trata-se de u m a a t i t u d e de com- tência ele percebia que a maior parte das pessoas não se encon-
preensiva tolerância. 1 9 Ele não é um descrente pelo contrário, trava de todo consciente. Era uma consciência de grandeza,
é capaz de aceitar todas as crenças, as dos m u ç u l m a n o s , dos hin- decerto, mas era muito mais uma consciência de responsabilidade.
dus, dos budistas, dos parses ou dos jainas, e ate m e s m o (por Há a questão de que a poesia " p o l í t i c a " seja admissível;
meio da imaginação histórica) a do culto de Mithra; se sua com- há a questão da maneira pela qual a poesia política de Kipling
preensão do cristianismo é menos cordial, isso se deve a sua for- é política; há a questão relativa àquilo em que consistia a sua
mação anglo-saxónica; e não há dúvida de q u e ele vira na í n d i a política; e, finalmente, perdura a questão do que temos a dizer
muitos clérigos do tipo do Sr. Bennett, em Ktm. daquela considerável parte de sua obra que não pode em abso-
Seria um equívoco capaz de nos indispor contra a compre- luto, por mais q u e se amplie o alcance do termo, ser chamada
ensão da singular contribuição de Kipling explicar seus senti- dc política.
mentos em relação ao Império Britânico e sua posterior afeição C u m p r e chamar atenção para um outro grande escritor
por Sussex simplesmente como a nostalgia dc um apátrida, inglês q u e pôs política em verso — Dryden. A questão dc saber
como a necessidade de um apoio sentida por um h o m e m q u e se Kipling era um poeta não se relaciona à questão de saber se
não pertence a parte alguma. Explicar satisfatoriamente se us Dryden t a m b é m o era. O autor de Absalom and Achiíopel2υ
sentimentos patrióticos dessa maneira é necessário apenas àque- estava satirizando uma causa perdida retrospectivamente, e se
les que consideram q u e tais sentimentos sejam impróprios colocara ao lado do vencedor; o autor dc The hind and the pan-
como tema poético. Há talvez aqueles q u e a d m i t a m o patrio- therx argüia um caso de política eclesiástica, e ambos os propó-
tismo expresso em poesia, porém na defensiva: o H e n r i q u e V sitos eram muito distintos daquele a que Kipling se propunha.
dc Shakespeare é aceitável, com sua grandiloqüência aliás e m b a - Os dois poemas de Dryden eram mais políticos em seu apelo
raçosa, pois o exército francês era consideravelmente maior do à razão do q u e o foi qualquer um dos de Kipling. Mas ambos
que as tropas inglesas, ainda q u e a guerra c o n d u z i d a por Hen- t i n h a m m u i t o em c o m u m . Um e outro eram mestres da trase,
rique só dificilmente pudesse ser descrita c o m o defensiva. Mas e utilizavam ambos ritmos mais simples que faziam habilmente
se há um preconceito contra o verso patriótico, há um precon- variar; e exigiam ambos que seu meio de expressão tosse empre-
ceito ainda mais poderoso contra o patriotismo imperial em g a d o para transmitir uma afirmação singela c vigorosa, mais
verso. Para muitas pessoas, um império acaba por tornar-se intensa q u e um modelo musical de tons carregados dc emoção.
alguma coisa da qual se deve pedir desculpas, sob o pretexto E (se é possível utilizar esses termos sem confusão) eram ambos
de que este se constituiu por acidente, e q u e , ademais, é dc antes poetas clássicos do que românticos. Chegaram à poesia
algum m o d o um assunto temporário a ser e v e n t u a l m e n t e absor- pela eloqüência, pois tanto para um q u a n t o para outro a sabe-
vido por alguma associação m u n d i a l de caráter universal, doria predominava sobre a inspiração; e estavam os dois mais
e n q u a n t o o patriotismo em si haverá de tornar-se inarticulado.
Mas é preciso que nos habituemos a reconhecer, no caso dc 20. Trata-se de um dos poemas satíricos mais conhecidos do poeta e dramaturgo
inglês J o h n Dryden (Aldwinkle All Saints, N o r t h a m p t o n . 1631 - Londres, 1700),
Kipling, que o Império Britânico não era s i m p l e s m e n t e u m a
p u b l i c a d o em 1681. (N T )
idéia, uma boa ou má idéia; era algo cuja realidade ele sentia.
21 Esse p o e m a de D r y d e n . t a m b é m de caráter alegórico, foi publicado em 1687.
Já convertido ao catolicismo, Dryden se envolve aí n u m a controvérsia entra a Corça
19. Não a tolerância da ignorância ou da indiferença. (N A ) (Igreja de Roma) e a Pantera (Igreja Anglicana). ( N . T . )
324 T. S ELIOT R U D Y A R D KIPLING
325

interessados no m u n d o q u e os rodeava do q u e em suas próprias encontravam na Inglaterra, c que no tratamento dispensado


alegrias e tristezas, e seus sentimentos os interessavam mais no aos soldados c aos militares desmobilizados havia menos do
que tinham de semelhantes aos dos outros h o m e n s do q u e em q u e justiça social, mas sua preocupação era a de tornar o sol-
suas particularidades. Mas eu não desejaria levar tal semelhança d a d o conhecido, e não de idealizá-lo. Kipling se exasperava
muito longe, como t a m p o u c o ignorar suas grandes diferenças; tanto com o sentimentalismo q u a n t o com o menosprezo ou a
e se Kipling suporta a comparação sob certos aspectos, cabe lem- negligência — e u m a atitude está sujeita a suscitar a outra.
brar que ele tem outras qualidades q u e não foram aqui de Eu disse q u e na poesia de Kipling não há desenvolvimento,
m o d o algum cogitadas. mas mutação; e por desenvolvimento devemos entender as mu-
Certamente, Kipling concebia t a n t o o verso q u a n t o a prosa danças ocorridas no meio ambiente e no próprio homem que
como meio de expressão destinado a um propósito de caráter Kipling foi. O primeiro período é o da índia; o segundo, da
público; se nos fosse necessário emitir um j u l g a m e n t o sobre seu viagem à América e de seu domicílio nesse continente; e o ter-
propósito, deveríamos tentar nos colocar nas situações históricas ceiro, o dc seu estabelecimento cm Sussex. Tais divisões são
cm que várias de suas obras foram escritas; e se nosso precon- óbvias; o q u e não é tão óbvio é o desenvolvimento de sua con-
ceito for favorável ou adverso não deveremos encarar suas obser- cepção de império, u m a concepção que se distende e se contrai
vações sobre determinada situação histórica do p o n t o de vista ao m e s m o t e m p o . Ele jamais fez vista grossa às falhas e aos erros
de um período posterior. Devemos t a m b é m considerar sua obra do Império Britânico, mas sustentou uma sólida crença com rela-
como um todo, e os primeiros anos à luz dos últimos, e não ção àquilo q u e este deveria e poderia ser. Em sua última fase,
exagerar a importância de composicões ou expressões particula- a Inglaterra — e um determinado recanto da Inglaterra — tor-
res de que possamos não gostar. Até m e s m o estas p o d e m ser nou-se o centro de sua visão. Ele se mostra mais preocupado
mal interpretadas. O Sr. Edward Shanks, q u e escreveu o melhor com o problema da saúde do coração do império; esse coração
livro sobre Kipling q u e já li (e c u j o capítulo sobre Ό profeta está algo envelhecido, mais natural c mais permanente. Ao
do I m p é r i o " — " T h e prophet of Empire' — resume admira- m e s m o t e m p o , entretanto, sua visão descortina uma perspec-
tiva mais ampla, e Kipling vê o Império Romano c o lugar que
velmente os conceitos políticos de Kipling), 2 2 diz do p o e m a inti-
nele ocupa a Inglaterra. A visão é quase a de uma idéia de impé-
tulado Loot, u m a balada de soldado q u e descreve as formas
rio no seio do paraíso. E com toda a sua imaginação geográfica
de extorquir aos nativos seus tesouros escondidos: Esse p o e m a
e histórica, n i n g u é m poderia estar mais longe do que ele do
é totalmente odioso, e faz o comentarista de Kipling enrubes-
interesse pelo h o m e m na coletividade, ou da manipulação deste
cer q u a n d o se e m p e n h a em explicá-lo" . E 1er u m a a t i t u d e no
na massa: seu símbolo foi sempre um h o m e m individual. O
poema da qual nunca suspeitei. N ã o creio q u e nesse p o e m a
símbolo, q u e em determinada época havia sido o de homens
Kipling haja recomendado a rapacidade e a avidez de tais irre-
c o m o Mulvaney ou Strickland, tornou-se o de Parnesius e Hob-
gularidades, como tampouco desculpado a rapina. Se o acredi-
d e n . Os mecanismos técnicos não perderam seu encanto para
tarmos, deveremos t a m b é m presumir q u e The ladies foi escrito
ele; o telégrafo sem fio e a aviação sucederam-se ao navio a
para glorificar a caótica miscigenação por parte dos soldados
vapor, c n u m a de suas histórias que mais surpreenderam o
profissionais aquartelados em terras estrangeiras. D u r a n t e o
m u n d o — They — um considerável papel é desempenhado
período a que pertencem tais poemas, Kipling, indubitavel-
por um primitivo, e não muito confiável, modelo dc automó-
mente, percebeu que o soldado profissional e seus oficiais eram
vel; mas Parnesius e Hobden são mais importantes do que as
bastante desprezados por seus pacíficos compatriotas q u e se
máquinas. Um é o defensor de uma civilização (de uma civiliza-
ção, não da civilização em abstrato) contra a barbárie, enquanto
22. A obra de Shanks a q u e Eliot se refere é Rudyard Kipling: a study m litera o outro representa o contato essencial da civilização com o solo.
ture and political ideas. ( N . T . )
326 T. S. ELIOT 3 1 2 R U D Y A R D KIPLING
327

Ευ disse que há sempre algo de estranho cm Kipling, m o m e n t o . Kipli ng não chegava sequer a ser um tory no sen-
como se ele fosse o visitante de outro planeta, c para alguns lei- tido d a q u e l e q u e se m a n t é m incondicionalmente leal a um
tores ele pode ainda parecer estranho na identificação de si partido político: ele pode ser assim considerado num sentido
mesmo com Sussex. Há um elemento de tour de force em toda em q u e s o m e n t e um p u n h a d o de escritores, juntamente com
a sua obra que deixa alguns leitores pouco à vontade (sempre um g r u p o dc pessoas em sua maioria incapazes de se expressar,
suspeitamos de pessoas muito inteligentes). Kipling pode susci- obscuras e sem prestígio, podem ser sempre os tones dc uma
tar um pouco a mesma desconfiança de outro grande h o m e m geração. E q u a n t o ao fato dc ser um jornalista (no sentido acima
que era t a m b é m estranho dc uma maneira m u i t o diferente, e citado), devemos ter em mente que as causas por ele defendi-
num plano mais trivial, embora t a m b é m tivesse a sua visão de das não eram causas populares no momento em que ele as for-
império e seus lampejos de p r o f u n d a intuição. Mesmo aqueles m u l o u , q u e ele não pretendeu idealizar os conflitos de fron-
que admiram Disraeli podem se considerar mais à vontade com teira n e m o soldado profissional e que suas reflexões sobre a
Gladstone, gostem ou não do h o m e m e de sua política. Mas a guerra dos Bôeres'' são mais de censura do que de louvor. É
estranheza de Disraeli era comparativamente algo de simples. possível sugerir q u e , na medida em que ele se associava à gló-
E, sem dúvida, a diferença do meio a m b i e n t e dos primeiros ria do império, contribuía desse modo para dissimular seus
anos, ao qual se deve a estranheza de Kipling, proporcionou- aspectos mais sórdidos: o comercialismo, a exploração e a negli-
lhe uma compreensão do meio rural inglês distinta daquela gência. N e n h u m leitor atento de Kipling pode sustentar, entre-
que tem um homem que aí nasceu e se educou, e nele deu ori- tanto, q u e ele não estivesse ciente das falhas do domínio britâ-
gem a pensamentos sobre esse mesmo a m b i e n t e q u e os nativos nico: ele simplesmente acreditava que o Império Britânico era
da região fariam bem em considerar. u m a coisa boa e pretendia colocar diante dos olhos de seus lei-
tores a i m a g e m ideal q u e esse império deveria ser, embora esti-
É possível que seja prejudicial à reputação de um escritor
vesse a g u d a m e n t e cònscio da dificuldade que seria até mesmo
o fato de que ele haja alcançado grande sucesso no começo da
se aproximar dessa imagem, e do permanente perigo de se afas-
vida, com uma obra ou com um tipo de obra, pois é devido à
tar inclusive do m o d e l o que poderia ser atingido. Não consigo
sua obra pregressa que ele será lembrado, e as pessoas (os críti-
encontrar n e n h u m a justificativa para a acusação de que ele sus-
cos, às vezes, principalmente) não costumam modificar suas
tentava u m a d o u t r i n a de superioridade racial. Kipling acredi-
opiniões a partir de obras mais recentes do autor. Além disso,
tava q u e os britânicos tinham uma aptidão maior para domi-
no caso de Kipling, um preconceito contra o c o n t e ú d o p o d e
nar do q u e a de outros povos, e que dispunham de um maior
associar-se a uma falta de compreensão da forma e produzir
n ú m e r o de h o m e n s generosos, incorruptíveis e desinteressados
uma condenação inconsistente. Com base no c o n t e ú d o , ele era
capazes de realizar u m a boa administração; e sabia que o ceti-
considerado um tory\ e com base no estilo, um jornalista. T a n t o
cismo, no q u e toca a essa matéria, conduz mais provavelmente
um termo q u a n t o o outro deveriam certamente ser tidos ape-
a uma m a g n a n i m i d a d e maior do que a um relaxamento do
nas como honrosos, mas o primeiro acaba por granjear um ódio
senso de responsabilidade. Mas não se pode acusá-lo dc susten-
popular por causa de uma identificação vulgar com uma pala-
tar q u e q u a l q u e r britânico, simplesmente por causa de sua
vra mais detestável: para muitas pessoas, uma atitude crítica
raça, fosse de algum m o d o necessariamente superior ou mesmo
em relação à democracia' veio a implicar uma atitude simpá-
igual a um indivíduo de outra raça. Oi tipos de homem que
tica ao fascismo, que, de um ponto dc vista autenticamente
Cory, constitui apenas a extrema degradação da democracia.
Dc modo análogo, o termo " j o r n a l i s t a " , q u a n d o aplicado a 23. C o n f l i t o (1899-1902) causado pelo a n t a g o n i s m o entre Cecil Rhodes, pnmc.ro-
alguém que não pertence à redação de um jornal, acabou por ministro do C a b o (Africa do Sul) e pione.ro do .mperialismo britânico na Atrua.
e Paul Kruger, presidente do Transvaal, que levou à ocupação de Pretoria em
adquirir uma conotação dc bajulador para o gosto popular do e à vitória final das forças inglesas em 1902. ( N . T . )
320 T. S. ELIOT
R U D Y A R D KIPI.ING 328

Kipling admira não estão limitados por quaisquer preconceitos. relatos sobre a batalha de Waterloo. Para aquele primeiro, é a
Sua obra mais madura sobre a índia, e o maior d e n t r e os seus carga da Velha Guarda, e a estrada cm desnível que leva a
livros, e Kim. O h a i n ; para Sthendal, a súbita consciência de Fabrice de que
O conceito de Kipling como um divertido autor popular é o barulhinho incessante à sua volta era causado pelas balas. O
devido ao fato de que suas obras foram populares e de q u e historiador de uma dessas espécies é aquele que dá vida a abs-
divertem. Todavia, nada i m p e d e que alguém expresse concei- trações; o historiador de outra espécie pode envolver toda a civi-
tos populares do m o m e n t o n u m estilo impopular, e eis q u e lização no comportamento de um único indivíduo. H. G.
todos se queixam q u a n d o o escritor divulga conceitos impopula- Wells pode conferir uma grandeza épica ao acúmulo de uma
res e os exprime de forma extremamente legível. Não p r e t e n d o fortuna americana. A imaginação de Kipling insiste sobre a expe-
discutir por mais tempo o " i m p e r i a l i s m o " q u e Kipling professa riência pessoal de um determinado homem, assim como a sua
em seus primeiros anos, pois é preciso falar sobre o desenvolvi- índia se realiza graças a determinados homens. Em The finest
mento de suas concepções. Caberia dizer a essa altura, antes story in the world vê-se aflorar a mesma paixão pelo detalhe
de ir mais adiante, que Kipling não é um doutrinário nem exato q u e amplia a latitude de seus estudos sobre a maquinaria.
um homem de programa. Suas opiniões não devem ser conside- A galera grega é descrita do ponto de vista da galera eslava. A
radas como antíteses às de H. G. Wells A imaginação de Wells embarcação pertencia "à espécie movida a remos, e a água do
é uma coisa e suas opiniões políticas, outra: estas últimas se mar jorra através dos orifícios do remo, e os homens remam
modificaram, mas não amadureceram Mas Kipling não pensa, com a água pelos joelhos. Em seguida há um banco que corre
mesmo no sentido em que se pode atribuir essa atividade a entre duas fileiras de remos, e um capataz munido de um
Wells: seu objetivo, e seu d o m , é o de fazer com q u e as pes- açoite vai e vem ao longo desse banco para fazer os homens tra-
soas vejam, pois a primeira condição de um p e n s a m e n t o cor- balharem (...) Há uma corda esticada no ar, atada ao convés
reto é a sensação correta; a primeira exigência para compreen- superior, a fim de que o capataz a segure quando a embarcação
der um país estrangeiro é sentir-lhe o cheiro, como sentimos o sc move; assim que o capataz solta a corda e cai entre os rema-
cheiro da índia em Kim. Se vocês virem e sentirem verdadeira- dores, lembrem-se de que o herói explode numa gargalhada e
mente, se Deus lhes conceder esse poder, então vocês serão capa- é vergastado como punição. Ele está acorrentado a seu remo, é
zes de pensar corretamente. claro — o herói (...) com um cinturão de ferro ao redor dos
O resumo mais simples da m u d a n ç a de Kipling, na m e t a d e quadris, fixo no banco em que está sentado, e com uma espé-
de sua vida, é o "desenvolvimento da imaginação imperial na cie de algema no p u n h o esquerdo, que o acorrenta ao remo.
Ele está no convés inferior, onde lhe são encaminhados os pio-
imaginação histórica . Para tal desenvolvimento deve ter con-
res galés, e onde a única luz que chega provém das escotilhas
tribuído em alto grau sua permanência em Sussex, pois teve ele
e dos orifícios dos remos. Poderiam vocês imaginar a luz do sol
a humildade de se submeter à paisagem dos arredores e ao fres-
se espremendo entre o cabo do remo e as bordas do orifício e
cor de visão de um estrangeiro. Aludirei aqui mais aos contos
vacilando conforme o balanço da embarcação?" 2 4
do que aos poemas, pois o modelo desses últimos anos de sua
produção conjuga o poema c o conto n u m a espécie de todo
— ou um conto e dois poemas —, combinando-os para cunhar
24. Eis o texto original: " T h e kind rowed with oars, and the sea spurts through
uma forma que nunca ninguém utilizou do m e s m o m o d o e the oar-holes, and the m e n row sitting up their knees in water. Then there's a
no emprego da qual provavelmente ninguém jamais o superou. bench r u n n i n g down between the two lines of oars, and an overseer with a whip
Quando falo de "imaginação histórica", isso não significa q u e walks up and down the bench to make the m a n work. ( . . . ) There's a rope running
overhead, looped to the u p p e r deck, for the overseer to catch hold of when the
dela eu admita apenas uma espécie. Duas espécies distintas ship rolls. W h e n the overseer misses the rope once and falls among the rowers
estão exemplificadas por Victor Hugo e por Sthcndal em seus r e m e m b e r the hero laughs at him and gets licked for it. He's chained to his oar, of
312 T. S. ELIOT
R U D Y A R D KIPLING 330

A imaginação histórica p o d e nos proporcionar u m a consci- A outra peculiaridade das histórias que Kipling escreveu sobre
ência angustiante da extensão do t e m p o , ou nos transmitir Sussex, à qual já me referi, consiste no fato de que ele empresta
u m a impressão vertiginosa da p r o x i m i d a d e do passado. Ou à sua obra o frescor de um espírito e de uma sensibilidade
ambas ao m e s m o t e m p o . Especialmente em Puck of Pook's desenvolvidos e amadurecidos n u m meio inteiramente distinto:
hill e Rewards and fairies, Kipling visa, creio e u , fornecer a ele descobre e reclama uma herança perdida. Os Chapins ame-
um rempo um sentido de a n t i g ü i d a d e da Inglaterra, do ricanos, em An habitation forced, têm um papel passivo:
n ú m e r o dc gerações e de pessoas q u e cultivaram a terra e foram o protagonista da história é a casa e a vida que ela implica,
por sua vez nela sepultas, e da c o n t e m p o r a n e i d a d e do passado. com a p r o f u n d a insinuação dc que o camponês pertence à terra,
Tendo previamente revelado u m a compreensão imaginária do o proprietário aos arrendatários, o fazendeiro aos seus lavrado-
espaço, na qual se inclui a Inglaterra, ele procede a u m a con- res, e não o contrário. Trata-se de u m a deliberada inversão
quista semelhante em relação ao t e m p o . Os contos da história dos valores da sociedade industrial. Os Chapins (exceto no que
inglesa precisam ser considerados em relação às histórias poste- concerne à sua origem, pois vêm de um país de mentalidade
riores que m a n t ê m um vínculo c o n t e m p o r â n e o com o período industrializada) são na verdade u m a espécie de máscara do pró-
de Sussex, como An habitation enforced, My son's wife e The prio Kipling. Ele está t a m b é m por trás do herói de uma histó-
wish house, juntamente com They, sob um aspecto dessa curiosa ria m e n o s bem-sucedida desse m e s m o grupo, My son's wife.
história. A consciência q u e Kipling tinha dc Sussex e o a m o r (Considero-a menos bem-succdida porque ele parece indicar
que este lhe inspirava constituem u m a q u e s t ã o m u i t o distinta sua moral de maneira excessivamente direta, e porque o con-
do sentimento de q u a l q u e r o u t r o escritor regional de f a m a traste entre a sociedade tagarela dos intelectuais de Londres
semelhante, como T h o m a s Hardy N à o é apenas q u e ele esti- — ou dos subúrbios — e a filha silenciosa do notário, que
vesse a g u d a m e n t e cônscio d a q u i l o q u e deveria ser preservado, gosta dc caçar, é martelada com enorme insistência. O con-
e n q u a n t o Hardy se revela um cronista da decadência; ou q u e es- traste entre o m u n d o bucólico em que os medíocres ainda par-
crevesse sobre Sussex tal c o m o o encontrara, e n q u a n t o Hardy ticipam do q u e está bem e um m u n d o intelectual em que o
escrevia sobre um Dorset q u e já se encontrava em declínio na medíocre é h a b i t u a l m e n t e dissimulado e sempre enfadonho
sua infância. E q u e , antes de mais n a d a , a consciência do " f a - não é inteiramente justo. A animosidade q u e ele revela contra
bulista" e a consciência da i m a g i n a r ã o política e histórica estão este sugere q u e ele não tem seu olho no objeto: pois só pode-
sempre presentes na obra do autor de Kim. I m a g i n a r Kipling mos julgar o q u e c o m p r e e n d e m o s , e deve-se constantemente
como um escritor q u e pudesse abordar q u a l q u e r assunto, q u e jantar com a oposição. ) O que mais importa nessas histórias,
escrevia sobre Sussex p o r q u e estivesse s a t u r a d o de seus temas em The wish house c cm Friendly brook, é a visão dc Kipling
estrangeiros e imperiais, ou q u e já houvesse saciado o interesse sobre as pessoas da terra. Não se trata de uma visão cristã, mas
do público por estes, ou simplesmente p o r q u e fosse um cama- pelo menos de u m a visão pagã — contradição da concepção
leão q u e mudasse dc cor c o n f o r m e o a m b i e n t e , seria total- materialista; é a intuição dc u m a harmonia telúrica que deve
mente erróneo, pois sua obra posterior n a d a mais é do q u e a ser restabelecida caso os cristãos desejem redescobrir uma imagi-
continuação e o coroamento da produção dos primeiros tempos. nação de fato cristã. O que o escritor tenta transmitir, mais
u m a vez, não é um programa de reforma agrária, mas um
p o n t o de vista ininteligível para a mentalidade industrializada.
course — ehe hero ( . . . ) with an iron b a n d r o u n d his waist fixed to t h e b e n c h he
Daí o valor artístico do elemento obviamente inacreditável de
sits o n . and a sort of h a n d c o f f on his left wrist c h a i n i n g h i m to the oar. H e ' s on
the lower deck where the worst men are sent and t h e onls light c o m e s f r o m t h e The wish house, q u e se combina estranhamente com o sórdido
hatchways and t h r o u g h the oar-oles. C a n ' t you i m a g i n e t h e sunlight just squee- realismo das mulheres do diálogo, do ônibus rural, da vila
zing through between the h a n d l e a n d the hole an w o b b l i n g a b o u t as t h e ship
moves?"(N.T )
s u b u r b a n a e do câncer dos pobres.
332 T. S. ELIOT GOETHE. O SABIO 285

Essa difícil e obscura história, The wish house, tem sido m e n t e onomatopaicos: há u m a linha harmônica de poesia que
estudada cm relação a dois difíceis e obscuros p o e m a s (não não se desenvolve simplesmente para além de seu alcance,
incluídos aqui) q u e a precedem e sucedem, e q u e seriam ainda mas q u e poderia interferir na intenção. É possível argüir exce-
mais difíceis c obscuros sem a história. A essa altura, estamos ções, mas refiro-m e aqui a sua obra em conjunto, e sustento
m u i t o distantes do simples contador de histórias — m u i t o dis- q u e , sem c o m p r e e n d e r o propósito que anima seu verso como
tantes, inclusive, do h o m e m q u e considerava seu dever tentar um t o d o , não se p o d e estar preparado para compreender as
q u e certas coisas se tornassem claras para seus compatriotas, exceções.
coisas q u e eles não poderiam ver. Ser-lhe-ia difícil imaginar N ã o alego escusas por ter utilizado aqui os termos "ver-
q u e tantas pessoas de sua própria época, ou de q u a l q u e r época, so " e " p o e s i a " de u m a forma reticente, de modo que, quando
julgassem problemático c o m p r e e n d e r as parábolas, ou m e s m o me refiro à obra de Kipling corno verso, e não como poesia,
apreciar a precisão das observações, os esforços calculados para não me julgo a i n d a capaz dc falar dc composições em sepa-
selecionar e combinar elementos, a escolha de palavras e expres- rado c o m o poemas, c o m o tampouco sustentar que há " p o e s i a "
sões, q u e exigia o seu processo de elaboração. Ele devia saber nesses " v e r s o s " . Lá, o n d e a terminologia se torna flutuante,
que qualquer deslize nesse sentido poderia c o m p r o m e t e r sua o n d e nos faltam palavras para expressar o que sentimos, a única
fama, seu prestígio como contador de histórias, sua reputação maneira de sermos precisos é reconhecer a imperfeição de nosso
como "jornalista tory', como escritor fácil capaz de improvi- i n s t r u m e n t a l e dos diferentes sentidos em que utilizamos as
sar n u m relance algo sobre o q u e ocorrera na véspera e até mesmas palavras. Caber-me-ia deixar claro que, quando opo-
mesmo como autor de livros infantis q u e as crianças gostavam n h o " v e r s o " a " p o e s i a " , não estou, nesse contexto, emitindo
de 1er e de ouvir 1er. um juízo de valor. Não e n t e n d o aqui por verso a obra de
Voltemos ao p o n t o de partida. Os últimos p o e m a s , assim a l g u é m q u e escreveria " p o e s i a " , se disso fosse capaz; entendo
como os últimos contos aos quais eles p e r t e n c e m , são às vezes por verso algo q u e faz o que a " p o e s i a " não poderia fazer.
muito obscuros, pois t e n t a m exprimir algo mais difícil do q u e O q u e transformaria o verso de Kipling em poesia não repre-
os primeiros poemas. São poemas de um escritor mais sábio e senta n e m um fracasso n e m u m a deficiência: ele sabia perfeita-
mais amadurecido, mas não revelam n e n h u m a evolução do m e n t e o q u e estava fazendo; e, de seu ponto de vista, mais
" v e r s o " em direção à " p o e s i a " , c o n s t i t u i n d o e x a t a m e n t e o p o e s i a " poderia interferir em seu propósito. E reivindico,
mesmo instrumental das primeiras obras, e m b o r a sejam agora em se t r a t a n d o de Kipling, o direito que temos de falar em
instrumentos que a t e n d e m às exigências dc um propósito "grande v e r s o " . Q u e outros famosos poetas devessem ser in-
maduro. Kipling sempre pôde m a n i p u l a r , do começo ao f i m , cluídos na categoria de grandes artistas do verso é uma questão
uma considerável variedade de formas métricas e estróficas com q u e não vamos aqui tentar esclarecer. Essa questão está agra-
absoluta competência, às quais introduzia notáveis variações vada pelo f a t o de q u e teríamos de nos ocupar com assuntos
de seu próprio p u n h o ; como poeta, todavia, nada inovou. Ele tão imprecisos q u a n t o a forma e o t a m a n h o de uma nuvem
não é um desses escritores dos quais se p o d e dizer q u e , a par- ou o começo e o fim de u m a onda. Mas o escritor cuja obra
tir de sua contribuição, a forma da poesia inglesa seria dife- está sempre mais próxima do verso não é um grande artista
rente caso cies não tivessem escrito. O q u e f u n d a m e n t a l m e n t e do verso; se um escritor deve ser assim considerado, deve exis-
diferencia seu " v e r s o " da " p o e s i a " é a subordinação do inte- tir algo em sua obra de q u e possamos dizer se é verso ou se e
resse musical. A rigor, muitos de seus poemas, se julgados por poesia. Ε o poeta q u e não pudesse escrever em "verso" quando
aquilo que deles nos chega aos ouvidos, dão u m a impressão este fosse necessário estaria privado daquele sentido de estru-
do estado de â n i m o do autor, e n q u a n t o outros são distinta- tura q u e se requer para tornar legível um poema de qualquer
167
T. S. ELIOT

extensão. Eu sugeriria t a m b é m q u e aceitássemos mais facil-


mente que aquilo q u e é mais valioso é t a m b é m mais raro, e
vice-versa. Posso cogitar de u m a série de poetas q u e escreveram
grande poesia e somente de alguns poucos dos quais se pode-
ria dizer que foram grandes artistas do verso. E a m e n o s q u e
eu esteja enganado, o lugar q u e Kipling ocupa nessa categoria YEATS 1
é não apenas elevado, mas único.

As gerações poéticas em nossa época parecem se estender


por um período de cerca de vinte anos. Não quero dizer que
a melhor obra de q u a l q u e r poeta esteja limitada a vinte anos;
0 q u e p r e t e n d o dizer é q u e esse é o período de tempo que se
deve considerar para q u e u m a nova escola ou um novo estilo
poético apareçam. No m o m e n t o , por assim dizer, em que um
h o m e m atinge os cinqüenta anos, ele tem atrás de si uma espé-
cie de poesia escrita por autores q u e já chegaram aos setenta,
e d i a n t e de si u m a outra espécie escrita por aqueles que mal
alcançaram os trinta. Essa é a minha posição no momento, e
se eu conseguir viver mais vinte anos, espero ver ainda uma
outra escola mais jovem de poesia. Minha atitude em relação
a Yeats, c o n t u d o , nào se encaixa nesse esquema. Na época em
q u e eu era jovem e estudava n u m a universidade norte-ameri-
cana, e começava então a escrever meus primeiros versos, Yeats
já era um n o m e de considerável prestígio no m u n d o da poesia,
e seu primeiro período de produção já se achava bem definido.
Não consigo me lembrar se, nesse m o m e n t o , sua poesia chegou
a me causar qualquer p r o f u n d a impressão. Um homem muito

1 Primeira conferência anual sobre Yeats, pronunciada para os Amigos da Acade-


mia Irlandesa no Abbey Theatre, em D u b l i n , cm 1940. Essa conferência foi depois
publicada em Purpose. (N A . )
YEATS 337
336 T. S. ELIOT

volvimento. Q u a n d o ele vinha a Londres, gostava de se reunir


jovem, instigado eie próprio pelo desejo de escrever, não é pri-
e conversar com os poetas mais jovens. As pessoas disseram
mordialmente um crítico ou sequer possui um espírito ampla-
algumas vezes q u e ele era arrogante e autoritário. Jamais o con-
m e n t e aberto. Ele está à procura de mestres q u e lhe facilitem
siderei assim; cm sua conversa com um escritor mais jovem sem-
a tomada dc consciência daquilo q u e ele próprio quer dizer,
pre senti q u e ele se comportava de m o d o ' i g u a l , como com
da espécie de poesia q u e traz em si e q u e p r e t e n d e escrever.
um companheiro de trabalho, um artífice do mesmo mistério.
O gosto de um escritor adolescente é intenso, mas estreito,
Assim o era, s u p o n h o , porque, ao contrário de muitos escrito-
pois está determinado por necessidades pessoais. A espécie de
res, ele se preocupava mais com a poesia do q u e com sua pró-
poesia de que cu tinha necessidade, capaz de me ensinar a fazer
pria reputação de poeta ou da imagem que dele se fazia como
uso de minha própria voz, não existia em absoluto na língua
tal. A arte é maior q u e o artista, e Yeats transmitia aos outros
inglesa; ela só podia ser encontrada na França. Por essa razão,
esse s e n t i m e n t o ; eis por q u e os mais jovens jamais se sentiam
a poesia do jovem Yeats quase n e n h u m a impressão me causou
pouco à vontade em sua companhia.
até o dia em q u e meu entusiasmo foi desencadeado pela poesia
de um Yeats mais velho; e por essa época — q u e r o dizer, a Isso, estou certo, era parte do segredo de seu talento, após
partir de 1919 —. o próprio curso de m i n h a evolução já estava tornar-se indiscutivelmente o mestre, em permanecer sempre
determinado. Daí se conclui q u e , de certo p o n t o de vista, pas- c o n t e m p o r â n e o . O outro segredo era o contínuo desenvolvi-
sei a considerádo um c o n t e m p o r â n e o , e não um antecessor; e, m e n t o a q u e me referi, q u e se tornou quase um lugar-comum
por outro lado, compartilho dos sentimentos de autores mais na crítica sobre sua obra. Mas quase sempre que dela se fala,
jovens que vieram a conhecê-lo e a admirá-lo graças àquela não se analisam n e m suas causas nem sua natureza. Uma das
obra escrita a partir de 1919, q u e foi concebida q u a n d o eles razões, decerto, era simplesmente a concentração e o trabalho
árduo. E por trás disso está o caráter: refiro-me aqui ao caráter
eram adolescentes. especial do artista como artista, isto é, à força de caráter graças
Estou absolutamente certo de q u e a admiração dos poetas à qual Dickens, após esgotar sua inspiração inicial, foi capaz de
mais jovens da Inglaterra e dos Estados Unidos pela poesia de escrever, em plena meia-idade, u m a obra-prima como Bleak
Yeats lhes foi inteiramente benéfica. Sua maneira de se expri- house, tão diferente de seus primeiros trabalhos. É difícil e
mir era muito pessoal para correr o risco de ser i m i t a d a , e suas i m p r u d e n t e generalizar os meios de composição — são tantos
opiniões muiro diferentes das deles para q u e lhes exaltassem c os meios quantos forem os h o m e n s —, mas minha experiência
ratificassem os preconceitos. Foi bom para eles estar d i a n t e do me ensina q u e , na meia-idade, um h o m e m tem três escolhas:
espetáculo de um poeta vivo indiscutivelmente g r a n d e , c u j o parar inteiramente de escrever, repetir-sc com uma habilidade
estilo não tentaram reproduzir e cujas idéias se o p u n h a m àque- q u e talvez haja sido intensificada pelo virtuosismo ou, graças
las que estavam na m o d a entre eles. Vocês não encontrarão, à reflexão, adaptar-se à idade que tem e descobrir uma maneira
cm seus textos, senão indícios passageiros da impressão q u e diferente de trabalhar. Por q u e os últimos poemas longos de
Yeats lhes causou, mas a obra, e o próprio h o m e m c o m o poeta, Browning c de Swinburne são, cm sua maioria, ilegíveis?
tiveram para eles, não obstante, a maior significação. Isso pode S e g u n d o creio, p o r q u e o essencial de Browning ou Swinburne
parecer contrariar o q u e eu havia dito sobre a espécie de poesia está inteiramente nos primeiros poemas, e n q u a n t o com os últi-
que um poeta jovem escolhe para admirar. Mas, na verdade, mos o q u e percebemos é a perda do frescor que havia nos ante-
estou falando de algo diferente. Yca*s não teria exercido essa riores, sem q u e neles se possam encontrar novas qualidades que
influência se não se tornasse um grande poeta, mas a influên- a c o m p e n s e m . Q u a n d o um autor está envolvido numa obra
cia a que me refiro é devida à própria figura do poeta, à inte- de p e n s a m e n t o abstrato — se é q u e existe algo que se possa
gridade de sua paixão pela arte e ao seu ofício, ao qual cie chamar cabalmente de pensamento abstrato fora das ciências
imprimiu o impulso indispensável a seu extraordinário desen-
338 T. S. ELIOT VEATS
339

físicas c matemáticas — , seu espírito pode amadurecer, e n q u a n t o resse por saber q u e m os escreveu, ou fique desejoso de penetrar
suas emoções ou permanecem as mesmas, ou se atroliam, o mais p r o f u n d a m e n t e na obra do poeta. Há outros, não necessa-
q u e pouco importa. Mas amadurecer, para o poeta, significa riamente tão perfeitos ou completos, que despertam uma irresis-
amadurecer como h o m e m inteiro, sentir novas emoções próprias tível curiosidade de saber mais daquele poeta por meio de outra
à sua idade, e com a mesma intensidade q u e na sua j u v e n t u d e . obra de sua autoria. Naturalmente, essa distinção só se aplica a
U m a forma — forma perfeita de desenvolvimento — é a poemas curtos, aqueles em que um autor foi capaz de colocar
de Shakespeare, um dos raros poetas cuja obra da m a t u r i d a d e apenas parte dc seu espírito, se tal espírito tem alguma enverga-
é tão instigante q u a n t o a da época de sua j u v e n t u d e . H á , creio dura. C o m tais poemas, vocês percebem imediatamente que
eu, u m a diferença entre o desenvolvimento de Shakespeare e q u e m os escreveu devia ier muito mais o que dizer, em diferen-
o de Yeats, q u e torna ainda mais curioso o caso desse ú l t i m o . tes contextos, de idêntico interesse. Ora, entre todos os poemas
Em Shakespeare observa-se um lento e c o n t í n u o desenvolvi- pertencentes aos primeiros volumes dc Yeats encontro apenas
m e n t o da mestria de seu artesanato cm relação ao verso, e a em um ou o u t r o verso aquele sentido de uma personalidade
poesia da meia-idade parece implícita na da primeira maturi- única q u e nos instiga e nos deixa sequiosos de conhecer mais
dade. Após os primeiros raros exercícios verbais, vocês dirão dc sobre o q u e pensa e sente o autor. Só dificilmente é que a inten-
cada peça da obra: "Essa é a perfeita expressão da sensibilidade sidade da própria experiência emocional de Yeats se entremos-
desse estágio de seu desenvolvimento". Q u e um poeta de algum tra. Temos prova suficiente da intensidade da experiência de
m o d o se desenvolva, q u e encontre algo de novo para dizer, sua j u v e n t u d e , mas essa evidência só se manifesta retrospectiva-
que o diga igualmente b e m . em plena meia-idade, é s e m p r e m e n t e q u a n d o lemos algumas de suas obras da maturidade.
algo de milagroso de sua parte. Mas no caso de Yeats a espécie Em meus ensaios anteriores enaltcci o que chamei de impes-
de desenvolvimento me parece distinta. N ã o q u e r o dar a impres- soalidade na arte, e poderia parecer que, ao dar como razão
são de q u e vejo sua obra da j u v e n t u d e e seus textos da maturi- para a superioridade das obras maduras de Yeats a expressão
dade quase como se tivessem sido escritos por dois autores dife- mais intensa da personalidade q u e nelas se patenteia, estou
rentes. Se retrocedermos a seus primeiros poemas após um íntimo me contradizendo. E possível q u e eu tenha mc expressado mal,
conhecimento dos últimos, perceberemos, logo de saída, q u e ou q u e fosse apenas um adolescente que se agarrara a essa idéia
— c o m o jamais suportei reler meus textos em prosa, admito
ocorreu em sua técnica um lento e p e r m a n e n t e desenvolvimento
deixar esse ponto em suspenso —, mas penso agora, pelo menos,
daquilo q u e constitui sempre o m e s m o meio de expressão e a
q u e a verdade a respeito do assunto seja a que se segue. Há
mesma maneira de exprimir. E q u a n d o d i g o desenvolvimento,
duas formas de impessoalidade: a q u e é natural para o artesão
não pretendo afirmar q u e muitos dos primeiros p o e m a s , pelo
talentoso e a q u e é mais ou menos adquirida pelo artista à
q u e representam, não estejam tão m a g i s t r a l m e n t e escritos
m e d i d a q u e amadurece. A primeira é a que caracteriza os frag-
q u a n t o podiam sê-lo. Há alguns, como Who goes wtth Fergus?,
mentos a q u e chamei de "peças antológicas", ou a de poemas
que são tão perfeitos em seu gênero q u a n t o q u a l q u e r o u t r o
líricos de Lovelacc 2 ou Suckling, 3 ou mesmo de Campion, esse
cm língua inglesa. Mas os melhores, e os mais conhecidos den-
tre eles, têm esta limitação: são tão satisfatórios em si, c o m o
2. Lovelacc, Richard. Poeta inglês (Woolwick. Kent. 1618 Londres, c. 1657).
"peças antológicas", q u a n t o o são no contcxto de seus outros Seus versos, de erotismo delicado e sensibilidade musical, foram influenciados por
poemas do mesmo período. D o n n e e os " m e t a f í s i c o s " , c o m o o atestam To Altbea. from pmon (1642) e lo
Obviamente, estou mc utilizando da expressão "peças anto- Lucana, going to the war (1649). ( N . T . )
3. Suckling, Sir J o h n . Poeta inglês ( W h i t t o n , Middlesex. 1609 - Paris, 1642).
lógicas" n u m sentido bastante especial. Em q u a l q u e r antologia,
Cortesão b r i l h a n t e , envolveu-se n u m a conspiração e morreu no exílio. Ficou cele-
encontram-se alguns poemas q u e proporcionam por si só u m a bre por sua Ballad upon a wedding. bem como pela tragèdia Aglaura. publicada
completa satisfação c deleite, dc forma q u e o leitor mal se inte- em 1638. ( N . T . )
T. S. ELIOT INDICE ONOMASTICO 354
340

último superior àqueles. A outra f o r m a de impessoalidade č Yeats tinha t a m b é m m u i t o o que descobrir sozinho, mesmo
a do poeta q u e , graças a u m a experiência intensa e pessoal, no q u e se refere à sua técnica. Ser o mais jovem dos integran-
é capaz dc exprimir u m a verdade geral: sem nada perder da tes de um g r u p o dc poetas, n e n h u m deles certamente dc esta-
particularidade de sua experiência, esse poeta dela faz um sím- tura semelhante à sua, mas que se desenvolveram em seu domí-
bolo geral. Η o estranho é q u e Yeats, q u e se revelou um nio limitado, eis algo que poderia interromper por algum tempo
grande artesão na primeira categoria, tornou-se um g r a n d e a evolução da linguagem de um autor. E em seguida, mais
poeta na segunda. Não c q u e ele se haja t o r n a d o um h o m e m u m a vez, o peso do prestígio pré-rafaelita deve ter sido tre-
diferente, pois, c o m o sugeri, percebe-se c l a r a m e n t e q u e a m e n d o . O Yeats do crepúsculo céltico — que me parece ter
intensa experiência da j u v e n t u d e foi b e m vivida — e, na ver- sido mais o Yeats do crepúsculo pré-rafaelita — utiliza o fol-
d a d e , sem essa experiência anterior ele jamais p o d e r i a , s e q u e r clore céltico quase da mesma maneira como William Morris se
de longe, ter alcançado a sabedoria q u e aparece em seus tex- vale do folclore escandinavo. Seus poemas narrativos mais exten-
tos da m a t u r i d a d e . Mas ele tinha q u e a g u a r d a r a ú l t i m a etapa sos trazem a marca de Morris. Na verdade, durante a fase pré-
da m a t u r i d a d e para encontrar a expressão de sua experiência rafaelita, Yeats não é de m o d o algum o menor dos pré-rafaeli-
pregressa; e é isso, s u p o n h o , q u e o torna um poeta único e tas. Posso estar e n g a n a d o , mas a peça The shadowy waters
parece-me u m a das mais perfeitas expressões da vaga beleza
particularmente interessante. encantada d a q u e l a escola poética; e, todavia, tenho a impressão
Considerem o p o e m a da j u v e n t u d e q u e se encontra em — isso p o d e ser u m a impertinência de minha parte — de que
todas as antologias, When you are old and grey and full of sleep são os mares ocidentais vislumbrados através da janela dos fun-
ou A dream of death, incluído no m e s m o volume de 1893. São dos de u m a casa em Kensington,' 1 mito irlandês para a Kelm-
belos poemas, mas produtos apenas de um artesão, pois neles scott Press. 6 E q u a n d o tento visualizar os interlocutores dessa
não se percebe a particularidade q u e deve prover a matéria peça, descubro-lhes os grandes olhos vagos c sonhadores de
para a verdade geral. Na época em q u e se publicou o v o l u m e Burne-Jones." J u l g o q u e a fase cm que ele aborda a lenda irlan-
de 1904 há um desenvolvimento visível em um p o e m a de f a t o desa da maneira como o fizeram Rossetti e Morris é uma fase
encantador, The folly of being conforted, e em Adam's curse; de confusão. Yeats não conseguiu tornar-se um mestre dessa
algo se passa e, ao pôr-se a falar c o m o um h o m e m particular, lenda até o m o m e n t o cm q u e dela fez um veículo para a sua
ele começa a falar para o h o m e m . Isso se torna ainda mais claro própria criação de personagens — na verdade, até o momento
no poema Peace, pertencente ao volume q u e foi p u b l i c a d o em q u e começou a escrcvcr as Plays for dancers. O fato é que,
em 1910. Mas isso não está p l e n a m e n t e evidenciado até o ao tornar-se mais irlandês, não do ponto de vista do fundo,
volume q u e se deu à estampa em 1914, na violenta e terrível mas da expressão, ele se torna ao mesmo tempo universal.
dedicatória epistolar da Responsibilities, com os grandes versos
Desejo sublinhar particularmente dois aspectos no que se
Pardon that for a barren passion 's sake, refere ao desenvolvimento de Yeats. Em primeiro lugar — c
Although I have come close on forty-nine. (...)* já aludi a isso , ter realizado o que Yeats realizou na meia-

Ε o fato de confessar sua idadc no p o e m a é significativo. Mais 5. Q u a r t e i r a o em q u e reside a burguesia abastada de Londres. ( N . T . )
da metade de uma vida para chegar a tal liberdade de expres- 6. A Kelmscott Press estava instalada na casa de William Morris, em Hammers-
mith. (N.T.)
são... E um triunfo.
7. Burne-Jones. Edward (na verdade. Edward Coley Jones) Pintor e desenhista
inglês ( B i r m i n g h a m . 1X33 - Londres, 1898). Um dos fundadores, com William
Morris e D a n t e Gabriel Rossetti, da escola pré-rafaelita. Sua obra esta bem repre-
4. P e r d o e m - m e por causa dc u m a paixão estéril. / E m b o r a eu esteja c o m q u a s e
sentada na B i r m i n g h a m Art Gallery. ( N . T . )
quarenta e nove anos (. . ) . " ( N . T . )
342 T. S. ELIOT YEATS
343

idade e nos últimos anos de sua vida constitui um g r a n d e e You think it horrible that lust and rage
p e r m a n e n t e exemplo — que os poetas de hoje deveriam consi- Should dance attendance upon my old age;
derar com respeito — daquilo a q u e chamei de Caráter do
They were not such a plague when I was young;
What else have I to spur me into song?8
Artista: u m a espécie de excelência tanto moral q u a n t o intelec-
tual. O segundo aspecto, q u e se revela n a t u r a l m e n t e em vir-
Esses versos são particularmente impressionantes e nada agradá-
tude do que eu disse na crítica sobre a absoluta falta de expres-
veis, e o s e n t i m e n t o q u e os inspira foi recentemente censurado
são emocional em sua obra da juventude, é aquele q u e se rela-
por um crítico inglês q u e costumo respeitar. Não os li como
ciona ao Yeats como um poeta e m i n e n t e m e n t e da m a t u r i d a d e .
u m a confissão pessoal de um h o m e m diferente de qualquer
Longe de mim afirmar q u e ele é um poeta destinado apenas
outro, mas a de um h o m e m que era essencialmente como a
aos leitores de meia-idade: a atitude para com Yeats por parte
maioria dos outros; a única diferença é a de uma claridade, de
dos poetas mais jovens q u e escrevem em inglês no m u n d o
u m a honestidade e de um vigor maiores. A que homem
inteiro é prova suficiente do contrário. Ora. em teoria, não há
honesto, idoso o bastante, tais sentimentos podem ser inteira-
n e n h u m a razão pela qual a inspiração ou a matéria poética
m e n t e estranhos? Podem eles ser subjugados e disciplinados
desapareçam na maturidade ou em q u a l q u e r época anterior à
pela religião? Mas q u e m será capaz de dizer que eles estejam
senilidade, pois um autor q u e é capaz de viver u m a experiência
mortos? S o m e n t e aqueles aos quais se aplica a máxima de La
se encontra n u m m u n d o diferente em cada década de sua vida;
Rochefoucauld: " Q u a n d les vices nous quittent, nous nons flat-
como ele a vê com olhos diferentes, a matéria de sua arte é con-
tons de la créance que c'est nous qui les q u i t t o n s " . 9 A tragédia
tinuamente renovada. Mas, na verdade, são raros os poetas q u e
do epigrama de Yeats está toda no último verso.
revelam essa capacidade de adaptação aos anos. Isso exige, a
rigor, u m a honestidade e u m a coragem excepcionais d i a n t e da A n a l o g a m e n t e , a peça Purgatory não é também nada agra-
transformação. A maioria dos h o m e n s ou se agarra às experiên- dável. Eu desejaria q u e ele não tivesse escolhido esse título,
cias da juventude, de maneira q u e seus textos se t o r n a m u m a pois não posso aceitar um purgatório em que não haja nenhuma
réplica leviana de sua obra anterior, ou deixa a paixão de lado, alusão — ou, pelo menos, n e n h u m a ênfase — relativamente à
passando a escrever apenas com a cabeça, com um virtuosismo Purgação. Mas, afora o extraordinário talento dramático com
estéril e vazio. Há u m a outra tentação, inclusive pior: a de se q u e ele introduziu t a m a n h a ação dentro dos limites de uma
tornarem figuras respeitáveis, h o m e n s públicos sem n e n h u m a cena tão exígua e de pouco movimento, a peça oferece uma ma-
participação na vida pública — cabides a p i n h a d o s de m e d a l h a s gistral exposição das emoções de um velho. Segundo penso, o
e condecorações, fazendo, d i z e n d o ou m e s m o p e n s a n d o e sen- epigrama q u e acabo de citar me parece dever ser considerado
tindo aquilo q u e acreditam q u e o público deles espera. Yeats no m e s m o sentido dramático que o da peça Purgatory. O poeta
não pertencia a essa estirpe de poetas, e essa é, talvez, u m a lírico — e Yeats foi sempre um lírico, mesmo quando dramá-
razão pela qual os jovens deveriam julgar sua poesia da maturi- tico — p o d e se dirigir a qualquer h o m e m , ou a homens muito
dade mais aceitável do q u e com maior facilidade poderiam fazê- diferentes de si próprio, mas, para fazê-lo, ele deve momenta-
lo os mais velhos, pois o jovem pode vê-lo c o m o um poeta n e a m e n t e identificar-se com cada h o m e m ou com outros
que, ao longo de sua obra, permaneceu sempre jovem no homens; e é apenas sua capacidade de imaginação de se trans-
melhor dos sentidos e que, sob certo aspecto, rejuvenesceu com
a idade. Mas os velhos, a menos q u e não sejam em parte insti- 8. " J u l g a m vocês ser terrível q u e a luxúria e a cólera / Devessem bailar ao sabor
gados pela honestidade para consigo mesmos expressa na poesia, dc m i n h a velhice; / Elas não me afligiam tanto q u a n d o eu era jovem: / O que
ficarão agastados com a revelação daquilo q u e um h o m e m de mais poderia me instigar a c o m p o r u m a c a n ç ã o ? " ( N . T . )
9. " Q u a n d o os vícios nos a b a n d o n a m , gabamo-nos na crença de que fomos nós
tato é e continua a ser, recusando-se a crer q u e eles sejam isto:
que os a b a n d o n a m o s . " (N.T.)
ï

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YEATS 345

formar nisso q u e leva alguns leitores a supor q u e ele esteja fa- » q u e a determinadas formas métricas. Mas não há nenhuma
landò para si mesmo e consigo m e s m o , especialmente q u a n d o razão pela qual um poeta lírico não seja t a m b é m um poeta dra-
prefere não se comprometer. mático; e, para m i m , Yeats é o tipo de lírico dramático. Foram-
Não desejo enfatizar apenas esse aspecto da poesia da m a t u - Ihe necessários muitos anos para que desenvolvesse a forma dra-
ridade de Yeats. Gostaria de chamar a atenção para o belo mática q u e melhor convinha ao seu génio. Q u a n d o ele come-
poema The winding stair, em memória de Eva Gore-Boot h c çou a escrever peças, drama poético era o mesmo que peças
de Con Markiewicz, 10 no qual a i m a g e m , a princípio de ] escritas em verso branco. Ora, o verso branco era há muito
u m a u n i d a d e métrica morta. Identificar todas as razões desse
Two girls in silk kimonos, both desaparecimento escaparia ao cscopo deste ensaio, mas é óbvio
Beautiful one a gazelle,11
q u e u m a forma q u e foi tratada tão magistralmente por Shakes-
peare tem lá suas desvantagens. Se vocês escreverem uma peça
recebe uma grande intensidade graças ao i m p a c t o do verso
do m e s m o tipo das dc Shakespeare, a lembrança é angustiante;
seguinte: se escrevcrem u m a peça de tipo diferente, é dc enlouquecer.
Além disso, como Shakespeare é tão superior a qualquer drama-
When withered. old and skeleton gaunt.12
turgo q u e se lhe seguiu, o verso branco somente a custo pode
estar dissociado da vida dos séculos XVI e XVII; e só dificil-
e também para Coole Park, q u e começa assim:
m e n t e se consegue captar os ritmos com que o inglês é falado
I meditate upon a swallow s flight. nos dias de hoje. Considero que se algo que se assemelhasse
Upon an aged woman and her house. ao verso branco regular devesse ser restabelecido, isso não pode-
ria ocorrer senão depois de um longo interludio, ao longo do
Nesses poemas percebe-se que as emoções mais intensas e dese- qual ele se libertaria das associações de sua época. No tempo
jáveis da juventude foram preservadas para acolher, retrospecti- em q u e Yeats escreveu suas primeiras peças não era possível
vamente, a plena expressão q u e lhes era devida, pois os senti- recorrer senão à peça em verso; não se trata dc uma crítica ao
mentos interessantes da velhice não são s e n t i m e n t o s diferentes: próprio Yeats, mas de u m a afirmação de que as formas do verso
são sentimentos aos quais os sentimentos da j u v e n t u d e são m u d a m em determinados momentos e cm outros, não. Suas
incorporados. primeiras peças em verso, incluindo o Green helmet, escrita
O desenvolvimento de Yeats em sua poesia dramática é tão n u m a espécie de verso irregular rimado de catorze pés, são de
instigante q u a n t o o q u e se observa em sua poesia lírica Referi- grande beleza e, pelo menos, as melhores que se escreveram
me a ele como poeta lírico n u m sentido em q u e não aplicaria em verso em nossa época. E mesmo nestas cumpre observar
tal conceito, por exemplo, a m i m m e s m o ; e com isso q u e r o certo desenvolvimento na irregularidade das medidas métricas.
dizer que me refiro antes a uma certa espécie de emoção do Yeats não inventou em absoluto um novo metro, mas o verso
branco de suas últimas peças revela um grande progresso em
direção a essa forma; e o que mais surpreende é o virtual aban-
10. Eva Gore-Booth (1870-1926) e sua irmã C o n s t a n t e , depois condessa Markie-
wicz, estiveram associadas à renovação poética irlandesa e aos trágicos a c o n t e c i m e n - d o n o do verso branco cm Purgatory. Um artifício usado com
ios da rebelião de 1916. cujos líderes foram executados (N T . ) grande sucesso em algumas das últimas peças é o interludio
11. " D u a s moças em q u i m o n o de seda. a m b a s / Belas, u m a delas u m a g a z e l a . ' coral lírico. Mas u m a outra (e importante) causa do aperfeiçoa-
(NT.)
m e n t o dramático dc Yeats é o gradual expurgo de qualquer
12. " Q u a n d o murchas, velhas e encarquilhadas " ( N . T . )
o r n a m e n t o poético. Essa é, talvez, a mais penosa etapa do tra-
13. " M e d i t o sobre o vôo da a n d o r i n h a , / Sobre u m a m u l h e r e n v e l h e t i d a e sua
casa." ( N . T . ) balho, no q u e se refere à versificação, do poeta moderno que
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tenta escrever u m a peça em verso. Esse a p e r f e i ç o a m e n t o se Percebo a esta altura que posso ter dado a impressão, con-
torna cada vez mais absoluto. O belo verso q u e ali se encontra trária ao meu desejo e à minha crença, de que a poesia e as
e, por sua própria beleza, um luxo perigoso para o poeta q u e peças do primeiro período de produção de Yeats podem ser
se tornou um virtuose da técnica teatral. O q u e preciso é u m a ignoradas em favor de suas últimas obras. Vocês não podem
beleza q u e não se reduza a um verso ou a u m a passagem iso- dividir tão radicalmente assim a obra de um grande poeta.
lada, mas que esteja tecida na própria textura d r a m á t i c a , de O n d e se observa o prolongamento de uma personalidade tão
positiva e de um propósito tão exclusivo não se pode compreen-
m o d o q u e só dificilmente poderiam vocês dizer se são os ver-
der, ou propriamente apreciar, a obra ulterior sem antes estu-
sos que conferem grandeza ao d r a m a , ou se é o d r a m a q u e
dar e estimar aquela que a antecedeu; e a obra dos últimos
transforma as palavras em poesia. ( U m dos mais tocantes ver-
anos sempre deita alguma luz sobre a dos primeiros, revelando-
sos do Rei Lear c o singelo nos u m a beleza e u m a significação que não havíamos percebido
até então. Temos t a m b é m que levar em conta as condições his-
Never, never, never, never, never, u
tóricas. C o m o eu disse ainda há pouco, Yeats nasceu no fim
mas, sem o conhecimento do contexto, c o m o p o d e r i a m vocês de um movimento literário que, afinal de contas, era um movi-
dizer que isso é poesia, ou m e s m o verso c o m p e t e n t e ? ) A purifi- m e n t o literário inglês. Somente aqueles que trabalharam com
cação do verso de Yeats torna-se m u i t o mais evidente nas q u a - a língua conhecem o esforço e a constância exigidos para se liber-
tar de tais influências; por outro lado, entretanto, assim que
tro Plays for dancers e nas duas q u e estão incluídas no v o l u m e
nos familiarizamos com a voz mais antiga, tornamo-nos capa-
póstumo: a rigor, é nessas duas q u e se encontra sua f o r m a dra-
zes de lhe ouvir as modulações individuais, mesmo em seus pri-
mática correta e definitiva.
meiros versos publicados. Na época de minha própria juven-
É t a m b é m nas primeiras três das Plays for dancers q u e ele
t u d e pareceu-me que não havia grandes forças poéticas imedia-
ensina como se pode tratar o mito irlandês mais do lado de den- tas q u e pudessem ser úteis ou adversas, que nos ensinassem
tro do que do lado de fora, como a n t e r i o r m e n t e aludi. Nas pri- alguma coisa ou contra as quais deveríamos nos insurgir, ainda
meiras peças, assim como nos primeiros poemas, sobre heróis q u e não me escapassem a dificuldade da outra situação e a mag-
e heroínas lendários, percebo q u e as personagens são tratadas, n i t u d e da tarefa. No caso da peça em verso, por outro lado, a
com o respeito que tributamos à lenda, c o m o criaturas de um situação é oposta, pois Yeats de nada dispunha, e não dispú-
, m u n d o distinto do nosso. Nas últimas peças, elas se t o r n a m nhamos de Yeats. Ele começou a escrever peças numa época
homens e mulheres universais. Talvez eu não incluísse The dre- em q u e a peça em prosa sobre a vida contemporânea parecia
aming of the hones rigorosamente nessa categoria, pois Der- triunfante, com um f u t u r o indefinido que se abria à sua frente;
mot e Devorgilla são personagens da história m o d e r n a , e n ã o em q u e a comédia de farsa ligeira se ocupava apenas de certas
figuras da pré-história; mas, para reforçar o q u e já disse, eu camadas sociais privilegiadas da vida metropolitana; e em que
observaria q u e , nessa peça, os dois a m a n t e s têm algo da univer- a peça séria tendia a se configurar como um tratado sobre algum
salidade de Paolo e Francesca de D a n t e , e tal característica o efêmero problema social. Podemos agora começar a perceber
Yeats mais jovem não lhes poderia ter atribuído. O m e s m o q u e até mesmo suas precárias tentativas são provavelmente tex-
tos literários mais duradouros do que as peças de Shaw, e que
ocorre com o Cuchulain, em The hawk's well, e com C u c h u l a i n ,
sua obra dramática como um todo pode atestar uma resistência
Emer e Eithne, em The only jealousy of Emer\ o mito deixa
mais poderosa à vulgaridade urbana bem-sucedida da Shaftes-
de ser apresentado gratuitamente e passa a constituir o veículo
bury Avenue, 1 5 contra a qual ele arremeteu com tanta energia
de uma situação de significação universal

14. "Jamais, jamais, jamais, jamais, j a m a i s . " Ato V, cena III Esse verso p e r t e n c e
ao último monólogo do rei Lear, pouco antes de sua m o r t e . ( N T ) 15. É o que na França se chama dc " t e a t r o de b u l e v a r " . ( N . T . )
T. S. ELIOT GOETHE. O SABIO 285
348

q u a n t o contra o teatro dc Shaw. Assim, desde o início, Yeats diferença, de objeção e de protesto pertencem ao terreno dou-
concebeu e escreveu sua poesia em termos de l i n g u a g e m , c não trinário, e são questões vitais. Preocupei-me apenas com o poeta
de caracteres impressos, do m e s m o m o d o q u e , na d r a m a t u r g i a , e com o dramaturgo, na medida em q u e estes podem ser consi-
sempre quis escrever peças para serem encenadas, e não apenas derados isoladamente. Um exame cabal e minucioso de toda a
para serem lidas. Creio q u e ele se preocupava mais com o tea- obra de Yeats deverá ser algum dia empreendida; é possível
tro e n q u a n t o instrumento de expressão da consciência de um q u e seja necessária u m a perspectiva mais ampla. Há certos poe-
povo do q u e como meio capaz de lhe granjear prestígio e reali- tas cuja poesia pode ser analisada mais ou menos à parte não
zação pessoal; e estou convencido dc q u e s o m e n t e recorrendo só pela experiência, mas t a m b é m pelo prazer que nos propor-
ao espírito é q u e se consegue realizar algo q u e valha a pena ser liona. Há outros cuja poesia, embora t a m b é m nos proporcione
feito. Naturalmente, ele dispunha de algumas consideráveis van- experiência e prazer, tem u m a importância histórica maior.
tagens, cuja narração não rouba coisa alguma à sua glória: seus Yeats é um desses últimos, pois foi um dos poucos cuja histó-
conterrâneos, um povo com um d o m natural e intacto para a ria é a história de seu próprio t e m p o , um daqueles que fazem
palavra e a representação. É impossível dissociar o q u e ele fez parte da consciência dc u m a época que não pode ser compreen-
pelo teatro irlandês do q u e o teatro irlandês fez por ele. Desse dida sem eles. Essa é a altíssima posição que lhe atribuo,
ponto estrategicamente vantajoso, a idéia do d r a m a poético foi embora não creia q u e ela seja definitiva.
mantida viva, e n q u a n t o em todas as partem ela já desaparecera.
Não sei o n d e termina nossa dívida para com ele c o m o d r a m a -
turgo — c, ao longo do t e m p o , ela não será paga senão q u a n d o
o próprio teatro acabar. Em seus textos ocasionais sobre assun-
tos dramáticos, ele firmou certos princípios q u e devemos apoiar,
como o da primazia do poeta em relação ao ator, e a do ator
em relação ao cenógrafo; e o princípio s e g u n d o o qual o teatro,
na medida em que não deve se preocupar apenas com o po-
vo" no sentido estrito dos russos, deve ser para o povo, e dc
acordo com o qual, para tornar-se p e r m a n e n t e , deve prcocupar-
se com situações f u n d a m e n t a i s . Nascido n u m m u n d o em q u e
a doutrina da "arte pela arte era h a b i t u a l m e n t e aceita, e t e n d o
vivido n u m ambiente em q u e se exigia da arte q u e ela fosse
um instrumento para fins sociais, cie aderiu d e c i d i d a m e n t e ao
correto ponto dc vista q u e se situa entre os dois, e m b o r a sem
assumir de m o d o algum n e n h u m compromisso, c mostrou q u e
um artista, ao ser absolutamente fiel à sua arte, está p r e s t a n d o
ao mesmo t e m p o o maior serviço q u e p o d e a sua própria nação
e ao m u n d o inteiro.
Ser capaz de louvar alguém não sc resume, necessariamente,
a estar sempre de acordo com a pessoa louvada, e n ã o escondo
o fato de que há aspectos do p e n s a m e n t o e das emoções de
Yeats que não me são simpáticos. Digo isso apenas para indi-
car os limites q u e cstabclcci cm m i n h a crítica. As questões dc
ÌNDICE ONOMASTICO

Ab so/am an J Ac hitopel, dc Bajazet, dc Racine: 174


Dryden: 323 Bateson, Frederick Wilse: 152
Adam 's curse, de Years: 340 Becket, de Tennyson: 111
Addison, Joseph: 81, 206, 228 Beddoes. Thomas Lovell: 134
Agostinho, Santo: 165 Benn. Gottfried: 134, 136, 138
Akcnside, Mark: 228, 232, 249 Beppo, a Venetian history, de
Alceste, de Eurípedes: 117 Byron: 267
Alice no país das m ara ν ilhas, dc Bhagavad-Gita: 299
Lewis Carroll: 317 Btographia lite rana, de Coleridge
Allegro, L\ dc Milton: 190 142
Alexander. William: 181 Blake, William: 46, 62, 64, 96,
Ml for love, de Dryden: 49. 233 195, 201, 291
All's well that ends well, de Sha- Blackmorc, Richard: 219, 226,
kespeare: 128, 137 227, 228
Among school children, de Yeats: Bleak house, dc Dickens: 337
154 Blue doset, de William Morris:
Ancient mariner, lhe, de Cole- 43
ridge: 147 Bossu, René Le: 246
Antonio e Cleopatra, de Shakes- Bride of A by dos, The, de Byron:
peare: 49, 51, 312 266
Arnold, Matthew: 47, 245 Bridges, Roben Seymour: 41,
Arnold, Sir Edwin: 60, 280, 305 211, 280
Atalanta in Calydon, de Swin- Browning, Elizabeth Barrett: 65,
burne: 306 123
Athalie, de Racine: 235 Browning, Robert: 50, 62, 65,
Aurora Leigh, de Elizabeth 69, 123, 129-131, 233, 306,
Barrett Browning: 65 311, 337
T. S ELIOT ÍNDICE ONOMÁSTICO
352 353

C o n r a d , Joseph (Teodor Józef D u n b a r , William: 275 Folly of being conforte d, The,


Brushwood boy, The, dc Kipling:
Konrad Nalet z Korzeniowski): Dream of death, A, de Yeats: 340 de Yeats: 340
317
148, 263 Dreaming of the bones, The, de Friendly brook, de Kipling: 331
Bull that thought, The, dc
Coole Park, dc Yeats: 344 Yeats: 346 Fry, Roger Elliot: 44
Kipling: 311
Corsair. The. dc Byron: 266 Dryden, J o h n : 27, 28, 45, 49, Gebir, de Landor: 62
Burke. E d m u n d : 2 Ρ
Burnc-Jones, Edward (Edward Cowley, A b r a h a m 219. 243 69, 139, 188, 193. 205, 214, Gehazi, de Kipling: 313
Cow per, W i l l i a m : 50, 65, 233 216, 217, 220, 227, 233, 237, Geòrgicas, de Virgilio: 27, 169,
Colcy Joncs): 341
C r a b b e . George: 71. 273 239, 240, 247, 249, 251-256, 170
Burns, Robert: 132, 273. 275
Crashaw. Richard: 66, 182. 236 267, 275, 323 Gethsemane, de Kipling: 314
Byron et le besoin de la fatalité,
Creation, de Blackmore: 226 Giaour, The, de Byron: 262, 266
de Charles Du Bos: 270
Criterion, The: 145, 149 Eikermann, Johann Peter: 278 Gilbert, William Schwenck: 132
Byron. Lord (George Gor-
Cromwell, Oliver: 45, 240 Éclogas, de Virgílio: 163, 165. God and the unconscious, de
don): 61, 64, 139, 257-276, Curse of Kehama, The, de 166, 176 Victor White: 150
283, 284
Southey: 62 EJegias de Duino, dc Rilke: 134. Goethe, Johann Wolfgang: 10,
( yrnbe/tne, d e Shakespeare: 52 300 94, 277-302
Caliban upon Se te bos, d c Robert
Elegy written m a country Golden treasure of English songs
Browning: 130
Daniel, Samuel: 184 churchyard. de Gray: 183, 240 and lyhcs: 59
Campbell, Joseph : 148
Danny Deever, de Kipling: 309, Eliot, George: 65, 128 Goldsmith, Oliver: 68. 133, 242,
Campion, Thomas: 41. 67. 68.
311. 315 F.mpson, William: 153 251
132, 339
D a n t e Alighieri: 86, 90, 96, 98, End of the passage, The, de Gore-Booth, Eva: 344
Carcopino, Jérôme: 164
99. 120, 123, 163. 165, 175, Kipling: 317 Gray. Thomas: 183, 240, 242,
Catulo, Caio Valério: 88, 176
P 6 , 185, 186, 194, 208, 246, Eneida, de Virgílio: 88, 96, 167, 254
Cenci, The, de Shelley: 49
C h a p m a n , George: 184 283, 301. 346 170, 172, 174 Green helmet, de Yeats: 345
Chano t of wrath, de Wilson Davidson, J o h n : 63 English poemi, de Milton: 198 Greville, Fulke: 184
Davies, Sir J o h n : 9, 179-186 Enterbter Geist. de Erich Heller: Grosart, Alexander Balloch: 181
Knight: 200
D c n h a m , Sir J o h n : 4 5 296
Chauccr, Geoffrey: 86, 90, 156,
De rerum naturae. de Lucré- Epitaphs of the war, de Kipling: Habitation enforced. An, dc
187, 209, 242. 261
cio: 299 314 Kipling: 330, 331
Childe Harold t pilgrimage, dc
Deserted village. The, de Oliver Ésquilo: 116 Haecker, Theodor: 167, 168, 282
Byron: 266. 267
G o l d s m i t h : 68, 133. 142 Eurípedes: 117 H a l l j o s e p h : 275
Children s song. The, de Kipling: Hallam, Henry: 183
Dial. The: 149 Eve of St. Agnes, The, de Yeats:
315 Hamlet. de Shakespeare: 10, 49,
Dictionary of the En git ih lan 312
Choice, d c Pomfret: 218 104-106, 120, 284
guage, de Samuel J o h n s o n : Everyman: 111
Cleveland (ou Cleiveland), J o h n : H a m p d e n . John: 240
222 142, 220
Divina comédia. A, de Dante 86, Eabuhste, The, de Kipling: Hardy, Thomas: 330
Coat of many colors, A, dc Sir Harp song of the Dane Women,
99, 131, 176, 177, 185, 299 318
Herbert Read: 152
Faery queen. The, de Edmund The, de Kipling: 315
Cocktail party, The, de Eliot: 117, Dom Quixote, dc Cervantes: 285
Spenser: 61, 64 Hawk's well. The, de Yeats: 346
149 Don Juan, de Byron: 64, 258-261,
Family reunion, de Eliot: 113, Heart of darkness, de Conrad:
Cold iron, dc Kipling: 315 264. 267, 269-274
115, 116 148
Coleridge, Samuel Taylor: 62, Dong with a luminous nose. The,
Fausto, de Goethe: 285. 287 Heaven and Earth, de Middleton
142-144, 147, 156,' 216, 217, de Edward Lear: 43
Finest story m the world, The, Murry: 201
252-254, 257, 261, 280, 299 D o n n e , J o h n : 48, 64, 66, 85,
de Kipling: 312, 317, 329 Heller. Erich: 296-298, 300
Cornus, de Milton: 74, 198, 206, 132, 184, 214, 222-225, 236 Henrique IV, de Shakespeare: 102
207 Dowson, Ernest: 63 Fmnegans wake, de Joyce: 146,
Henrique V, de Shakespeare: 322
Du Bos, Charles: 270 148, 211
Congreve, William: 80. 101
INDICE ONOMASTICO
T. S. ELIOT 355
354

Kipling. Rudyard: 303-334 Marston. J o h n : 275 One word more, de Robert Brow-
Herbert, George: 65-68, 132, Marvell. Andrew: 132 ning: 123
Knight, William Francis: 165
236. 237
Knight, Wilson: 52, 200, 210 'Mary GlosterThe, de Kipling: Only jealousy of Emer, de Yeats*
Herrick, Robert: 66-68 306, 311 346
Kuhla Khan, dc Coleridge: 147
Hm d and the panter, The, de Matter of fact, A, de Kipling: 317 Orchestra, de Davies: 178, 179,
Dryden: 27. 323
Lactântio, Lácio Caclio (ou Caeci- McAndrew'\ hymn, de 182
Hobbcs, Thomas: 81. 227 Kipling: 306, 31 1 O'Shaughnessy, Arthur: 63
lio) Firmiano: 165
Hölderlin. Friedrich: 293 Men and women, dc Robert Otelo, de Shakespeare: 114
Ladies, The, d e Kipling: 324
Homero: 39. 87. 131, 167. 168. Browning: 123
lalla Rookh, dc Thomas Moore: Otway, Thomas: 49, 228
175, 252 Middle marc h, de George Oxford book of English verse: 59,
265, 266
Hooker, Richard 81 Eliot: 128 179
Land, The, de Kipling 315
Hopkins, Gerard Manlcy: 42. 48, Milton, dc Tylliard: 205
Landor. Walter Savage: 62, 64, 83
73, 96 Lara, de Byron: 266. 270 Milton, J o h n : 40, 50, 52, 59, 68, Paraíso perdido, O, de Mil-
House of life, de Rossetti: 124 La Rochefoucauld: 293. 294 69. 71, 83-85, 90. 91, 132, ton: 64, 68, 71, 192. 194,
Housman, Alfred Edward: 238 Law, William: 237 187-215. 219, 222. 225, 196, 201, 202, 207, 209-212,
Hugo, Victor: 165. 328 Lear. Edward: 43 228-230. 234, 240. 242, 246, 215
Huxley, Aldous: 140. 143 Lehrs, Ernst: 287, 291 254. 260, 267 Paraíso reconquistado, O, de Mil-
Hyperron, dc Keats: 64. 202, 233 Lewis. Cecil Day: 169 Milton's prosody, de Robert ton: 64, 68. 234, 235
Bridges: 211 Pascal; Blaise: 85
Lewis. C. S.: 201
Ilíada, dc Homero: 43. 167 Molière (Jean Baptiste Poquelin): Pater, Walter Horácio: 255
Laghi of Ana. The, de Sir Edwin
In the same boat. d e Kipling: 31 " 80, 85, 94, 101 Peace, de Yeats: 340
Arnold: 60. 62, 64
Interpretations : 153 Montaigne, Michel Eyquem senhor Ρ en seroso, II, de Milton: 190
Lives of the English poets, The,
Irene, de Johnson: 213, 233. 234 de Samuel J o h n s o n : 142, de: 81 Pericle s, de Shakespeare: 52
Ivory tower, The, dc Henry James: 216-218, 222, 254, 256 Moore, Marianne: 149 Pervigilium Venens, de Virgilio:
192 J Moore, Thomas: 62, 258. 265 41
London, de Samuel Johnson: 133,
Morris, William Robert: 42, 231, Phoenix and the turtle, The, de
238, 239
James, Henry: 88. 191. 192 341 Shakespeare: 154
Long expected one and twenty,
Jespcrsen (Jens O t t o Harry): 41 Murder in the cathedral, dc Eliot: Pickwick papers, de Charles
de J o h n s o n : 237
Jeune Parque, La, de Valéry: 134 109-114, 125 Dickens: 126
Johnson. Samuel: 68, 83, 86, Loot, de Kipling: 324
Murry, J o h n Middleton: 140, Pitt. Christopher: 218
142, 197, 199-201, 206, 207, Love's labour's lost, d e Shakes-
201-203 Plays for dancers, de Yeats: 108,
210-213, 216-256, 312 peare: 51
Lovelace. Richard: 339
My son's wife, dc Kipling: 330, 341, 346
Joyce, James: 146, 148, 167, 193, Pleasures of imagination, (The),
Love song of J. Alfred Prufrock, 331
194, 196 de Akenside: 231, 249
Julius Caesar. de William Ale- The, de Eliot: 154, 155
Nemésio: 180 Poe, Edgar Allan: 123, 283
xander: 181 Lowes. J o h n Livingstone: 146-148
Nicholson, Sir Harold: 257 Pomfrct, John: 218
J um blies, The, de Edward Lucrécio Caro, Tito: 28, 297, 299
Nietzsche. Friedrich: 296-298 Pope, Alexander: 84, 85, 90, 93.
Lear: 43 Lycidas, de Milton: 196, 206,
Night thoughts, dc Young: 229 139, 181, 188, 227, 237, 239,
J u n g , Carl Gustav: 150 222, 223, 225
Nosce teipsum, de Davies: 178. 251, 254, 275
179, 182. 186 Pound, Ezra: 130, 145, 187
K e a t s . J o h n : 64, 123, 201. 202, Macbeth, dc Shakespeare: 102, Praz, Mario: 259
114, 189 Nuit blanche, L·, dc Kipling: 317
204, 257, 312 Prayers and meditations, de John-
Maeterlinck, Maurice: 107, 108
Ker, William Pattori: 38, 39 Odisséia, de Homero: 43, 167 son: 237
Mallarmé. Stéphane: 44, 208
Kim, de Kipling: 321, 322, 328, O l d h a m , J o h n : 45, 318 Prelude, de Wordsworth: 61, 64,
Markiewicz, Constance: 344
330 Oliver, F. S.: 55 69, 233
Marlowe, Christopher: 79, 127, 196
King Stephen. de Keats: 202
T. S ELIOT INDICE ONOMASTICO 357
356

Runes on U eland's sword, de I Suckling, Sir John: 339 Villon, François: 94, 275
Principles of art, The, de R. G. Surrey. Henry Howard (conde
Kipling: 315 Virgílio Maro, Publio: 27, 39,
Collingwood: 318 de): 41 41, 76-79. 84-93, 95. 96. 98,
Principles of literary criticism, dc Swift, Jonathan: 81, 273
Sabe dona suprema. A, d e Hubert 120. 163-176, 282
Richards: 141 Swinburne, Algernon Char-
Benoit: 143
Prior, Matthew: 243 les: 306, 337
Saint Joan, dc Bernard Shaw: 112 Waller. Edmund: 45. 236
Proofs of Holy Writ. de Kipling:
San\Jo Agonista, dc Milton: 68, Synge, John Millington: 107.108 Walsh, William: 218
312 71, 206, 209, 215, 234, 235 Wasteland, The, de Eliot: 148,
Propcrcio, Sexto Aurelio: 88 Saurat, Denis: 201 Iamhurlaine, de Marlowe: 127 149
Puck ofPook's hill, de Scott, Sir Walter: 62, 257-259, Task, de Cowper: 65 Watts, Isaac: 236. 237
Kipling: 330 Taylor, Jeremy: 85 Way of the world, de Congreve: 80
265
Purgatory, de Yeats: 108. 343, Tempest, The, dc Robert Brow-
Seasons, de T h o m s o n : 65, 230, Way through the woods, The,
345 ning: 130 dc Kipling: 315
231. 243
Seneca: 180, 184 Tempestade, A, de Shakespeare: Weeper, The, de Crashaw: 182
£)**** Aíj£. de Shelley: 69 52, 133. 157 Wells. H. G.: 328, 329
Serto us cai L de \\ 1111 am La w : 237
Qucnncll. Peter: 257, 271 Shadow, u a te rs. The. de Tempie, The, de George Herben: Weston. Jessie: 150
Yeats: 341 65 When you are old and grey and
Racine, Jean: 49. 85, 90, 91. 94, Tennyson. Lord (Alfred): 42, full of sleep, de Yeats: 340
Shakespeare William: 3 3 . 4 8 - 5 2 .
128, 174, 208, 235 58, 68-80. 85, 86. 91-102, 111, 233. 280 White. Victor: 150
Rafael: 123 104. 108, 110, 114, 115, Thalaba, de Southcy: 62 Who goes with Fergus?, de Yeats:
Raleigh (ou Ralegh). Sir Walter: 118-121, 128. 189. 190. 193, They, dc Kipling: 325. 330 338
220 194, 201-203, 219. 225. 233. Thompson, Francis: 50 William. Charles: 61, 198, 199
Rambler, The, de Samuel John- 254, 283-295, 301. 312. 322, Thomson, James: 65. 230-233. U in ding star. The, de Yeats: 344
son: 1 9 7 , 2 1 1 338. 345 242. 243 Winter's tale, The, de Shakes-
Read, Sir Herbert E d m u n d : 152 Shanks. Edward: 324 Thought and belief in poetry, de peare: 52
Shaw. George Bernard: 101, 347, Eliot: 296 Wireless, de Kipling: 312
Reason's academy. dc Davies:
Traherne, Thomas: 66 Wish house, The, de
178 348
Troilo e Cresstda, de Shakespeare: Kipling: 330-332
Recessional, dc Kipling: 314 Shelley Percy Bysshc: 27. 40, 59.
168 Woman in ht s life, The, de
Ret João, de Shakespeare: 104 6 2 , 6 9 . 157. 158, 200, 257, 260
Truce of the bear, The, de Kipling: 317
Rei Lear, de Shakespeare: 137, Shropshire lad, de H o u s m a n : 238
Kipling: 313 Wordswonh, William: 45, 50-52,
346 Skclton, J o h n : 224
Tylliard. E. M. W : 205 59, 61, 151, 152, 190, 200.
Responsibilities, de Yeats: 340 Sófocles: 128 214, 217, 247, 248, 257, 284,
Revolt of Islam, The, dc Shelley: Song of the galley slaves, de 291
Ulysses, de Joyce: 167, 193
69 Kipling: 306. 312
Upanixadcs: 301 Work m progress, de Joyce: 194,
Rewards and fat ries, de Kipling: Southcy, Robcri: 62, 64. 274
196
Spenser, E d m u n d : 61, 83. 207
330 Valéry, Paul: 134, 135 Wyatt. Sir Thomas: 40
Spirti of romance. The, de Pound:
Richards, Ivor Armstrong: 141 Valon. Annette: 152
145 Yaldcn, Thomas: 218
Rilke, Rainer Maria: 134. Vanity of human wishes, The, dc
Stanzas front the Grande Char Yeats, William Butler: 46, 108.
296-298, 300 Samuel Johnson: 216, 238, 240
tre use, de Arnold: 305 154, 313. 335-349
Road to Xanadu. The, dc John Vaughan, Henry: 66, 132, 236
Steiner, Rudolph: 287 Yongy-bongy bo, The, de Edward
Livingstone Lowes: 146, 147 Vénus e Adônis, de Shakespeare: 51
Stendhal (Marie-Henry Lear: 43
Robinson, H. M.: 148 Vergil, Vater des Abendlander,
Beylc): 268, 328, 329 Young, Edward: 50, 229, 231
Rock, The. de Eliot: 124, 125 de Theodor Haccker: 282
Stepney, George: 218
Romeu e Julieta, dc Shakespeare:
Storm clone, The, dc Kipling: 314
10, 104, 119, 120
Rossetti. Dante Gabriel 123, 341
Obras de T. S. Eliot

1. Poesia
Prufrock and other Observations, T h e Egoist Ltd., Londres, 1917.
Poems, T h e Hogarth Press, R i c h m o n d , 1919.
Ara vos Prec, T h e Ovid Press, Londres, 1920.
The Waste Land. Boni & Liveright, Nova York, 1922.
Hollow Men, Faber & Gwyer, Londres, 1925.
1909-1925, Faber & Gwyer, Londres, 1925.
Ash-Wednesday, Faber & Faber, Londres, 1930.
Sweeney Agonistes, Faber & Faber, Londres, 1932.
The Rock, Faber & Faber, Londres, 1934.
Collected Poems 1909-1955, Faber & Faber, Londres, 1936.
Old Possum's Book of Practical Cats, Faber & Faber, Londres, 1939.
Four Quartets, Harcourt, Brace & Co., Nova York, 1943.
The Complete Poems and Plays 1909-1950, Harcourt, Brace and Co.,
Nova York, 1962.
The Cultivation of the Christmas Trees, Faber & Faber, Londres, 1954.
Collected Poems 1909-1962, Faber & Faber, Londres, 1963.
Poems Written in Early Youth, Faber & Faber, Londres, 1967.

2. Ensaio e Crítica
Ezra Pound\ his Metric and Poetry, A. A. K n o p f , Nova York, 1917.
The Sacred Wood, M e t h u e n Sc C o . , Londres, 1920.
Homage to John Dryden, T h e Hogarth Press, Richmond, 1924.

*. Esta relação foi extraída de Poesia de T. S. Eliot, tradução, introdução e notas


de Ivan J u n q u e i r a . Rio de J a n e i r o , Nova Fronteira, 4» edição, 1984.
For Lancelot Andrewes, Faber Sc Gwyer, Londres, 1928.
Dante, Faber Sc Faber, Londres, 1929.
Thoughts after Lam berth, Faber Sc Faber, Londres, 1931.
Selected Essays 1917-1932, Faber Sc Faber, Londres. 1932.
John Dryden, T . & E. Holliday, Nova York, 1932.
The Use of Poetry and the Use of Criticism, Faber & Faber, Londres, 1933.
After Strange Gods, Faber & Faber, Londres, 1934.
Elizabethan Essays, Faber & Faber, Londres, 1934.
Ancient and Modern, Faber & Faber, Londres, 1936.
The Idea of a Christian Society, Faber & Faber, Londres, 1939.
Points of View, Faber Sc Faber, Londres, 1941.
The Music of Poetry, Jackson, Son & C o . , Glasgow, 1942.
The Classics and the Men of Letters, OUP, Londres, 1942.
Reunion by Destruction, T h e Pax H o u s e . Londres, 1943.
What Is a Classic?, Faber & Faber. Londres, 1945.
On Poetry, Concord A c a d e m y , C o n c o r d , Massachusetts, 1947.
Sobre o autor
Milton, G . C u m b e r l e g e , Londres, 1947.
Note* towards the Definition of Culture, Faber Sc Faber, Londres, 1948. T h o m a s Stearns Eliot nasceu em Saint Louis, Missouri, Estados U n i d o s , a 26
de s e t e m b r o de 1888, e m o r r e u em Londres a 4 de janeiro de 1965. D e s c e n d e n t e de
Poetry and Drama, Harvard University Press, C a m b r i d g e , Mass., 1951.
e m i g r a n t e s ingleses q u e se e s t a b e l e c e r a m em M a s s a c h u s e t t s em meados do século
The Frontiers of Criticism, University of M i n n e s o t a Press, 1956.
XVIII, Eliot foi criado n u m a m b i e n t e f a m i l i a r b u r g u ê s , religioso e c u l t u r a l m e n t e
Essays on Poets and Poetry, Faber Sc Faber, Londres, 1957. r e f i n a d o . Um de seus avós, o r e v e r e n d o W i l l i a m G r e e n l e a f Eliot, foi f u n d a d o r da
George Herbert, L o n g m a n s , G r e e n & C o . , Londres, 1962. Igreja Anglicana de Saint Louis e da U n i v e r s i d a d e de W a s h i n g t o n , da qual se tor-
Knowledge and Experience in the Philosophy of F. H. Bradley, Faber & n o u p r e s i d e n t e . Seu p a i , H e n r y W a r e Eliot, o c u p o u - s e por quase toda a vida dos
Faber, Londres, 1964. interesses empresariais da f a m í l i a , t e n d o p r e s i d i d o a Hydraulic Press Brick C o m -
To Criticize the Critic, Faber Sc Faber, Londres, 1965. p a n y of Saint Louis. C h a r l o t t e C h a u n c e y Stearns, m ã e do poeta, pertencia a famí-
lia aristocrática de Boston, ligada ao comércio. De boa cultura humanística e a l g u m
p e n d o r literário, escreveu u m a biografia do sogro e um p o e m a , de caráter biográ-
3. Teatro fico, sobre o pregador f l o r e n t i n o Savonarola. Eliot era o caçula dos sete filhos do casal.
Murder in the Cathedral, Faber Sc Faber, Londres, 1935. C r i a d o até q u a s e o final da adolescência em Saint Louis, Eliot concluiu os estu-
The Family Reunion, Faber Sc Faber, Londres, 1939. d o s secundários em Massachusetts, na A c a d e m i a M i l t o n . C o m 18 anos, m u d o u - s e
para Boston e ingressou na U n i v e r s i d a d e de H a r v a r d , o n d e se f o r m o u em Letras
The Cocktail Party, Faber Sc Faber, Londres, 1950.
Clássicas. Em 1910, um a n o a p ó s a f o r m a t u r a , foi para a França. Em Paris, f r e q ü e n -
The Confidential Clerk, Faber Sc Faber, Londres, 1954. tou os cursos de l í n g u a e literatura francesas e de filosofia na S o r b o n n e . De volta
The Elder Statesman, Faber Sc Faber, Londres, 1959. aos Estados U n i d o s , d o u t o r o u - s e em filosofia em Harvard. No verão de 1914, Eliot
partiu para a Inglaterra. No a n o s e g u i n t e surgiu seu p r i m e i r o p o e m a i m p o r t a n t e ,
4. Traduções The Love Song of John Prufrock, na revista Poetry, de Chicago. N a Inglaterra,
e m p r e g o u - s e i n i c i a l m e n t e em u m a p e q u e n a escola para crianças nos arredores de
Anabasis, a Poem by St.-John P e r s e " , Faber Sc Faber, Londres, 1965. Londres. Dois a n o s d e p o i s , t o r n o u - s e f u n c i o n á r i o do Lloyds Bank Ltd.. Em 1920,
p u b l i c o u The Sacred Wood e, e m 1922, The Waste Land, q u e o consagrou como
u m dos maiores p o e t a s d e l í n g u a inglesa d o século. A i n d a n o m e s m o ano, f u n d o u
a revista trimestral de literatura e filosofia The Criterion, q u e d u r a n t e dezessete
anos exerceu g r a n d e i n f l u ê n c i a nos m e i o s intelectuais e u r o p e u s . O passo seguinte
no m u n d o e d i t o r i a l levou-o à d i r e t o r i a da Faber SC Fáber, à testa da q u a l p e r m a -
neceu a t é a m o r t e . Seus laços c o m a I n g l a t e r r a est re i t a r a m - s e d e f i n i t i v a m e n t e em
1927, q u a n d o a d q u i r i u a c i d a d a n i a inglesa. É dessa época a frase conhecida
c m q u e s e a u t o d e f i n i u c o m o u m anglo-católico e m religião, classicista e m poesia
c m o n a r q u i s t a em política.
/i ougruyuu uu mmuvciu
Alejo Carpentier

Um homem luta nas Brigadas Internacionais


durante a Guerra Civil Espanhola. Uma mu-

lher é expulsa de seu país com a Revolução


A k)<> Í '«· n*nl l«T
Russa. Um cubano e uma russa. Uma história
A SAGRAÇÃO de amor que culmina com a Revolução Cuba-
DA PRIMAVERA na. A Sagração da Primavera é um fascinan-
te mosaico construído na linguagem envol-
vente de Alejo Carpentier. Ε o último roman-
ce escrito por ele, um dos maiores escrito-
res cubanos de todos os tempos.

DESERTO
De J.M.G. Le Clézio
Tradução de Maria Lúcia Machado

Um romance magnífico, de um dos mais ta-


lentosos escritores franceses contemporâ-
neos, ganhador do G r a n d e Prêmio Paul Mo-
rand da Academia Francesa. Conta a histó-
ria da terra dos Homens Azuis, guerreiros
nômades que em 1910 resistem à conquista
I1 colonizadora no Saara. Eles buscam a liber-
dade, a mesma que irá impulsionar Laila,
uma sua descendente que vive na França, a
voltar ao Deserto.

Paradiso
Lezama Lima

"yEm seus instantes mais altos, Paradiso é uma


cerimonia, algo preexistente a toda leitura
com fins e modos literários. " — Julio Cortá-
zar.
Finalmente chega ao Brasil uma das maiores
obras-primas da literatura latino-americana,
Paradiso, romance maior, barroco, sensual e
emocionante do maior escritor cubano de to-
dos os tempos, José Lezama Lima.
U A n i A AVJ ΓΛ1
A METAMORFOSE Franz Kafka
Franz Kafka

C o n s i d e r a d o , ao lado de Proust e Joyce,


Enigmático e sombrio, Kafka é o a r a u t o da
um dos maiores escritores deste século,
m o d e r n i d a d e , porta-voz de um m u n d o em
p e r m a n e n t e confronto com o a b s u r d o . KAFKA Kafka e r a um h o m e m p r o f u n d a m e n t e an-
g u s t i a d o . No sanatório, d u r a n t e o trata-
Metáfora grotesca da c o n d i ç ã o h u m a n a , a
m e n t o de uma t u b e r c u l o s e q u e o mataria KAFKA
tragédia de G r e g o r Samsa — q u e certo
anos d e p o i s , ele inicia esta Carta ao Pai,
dia a c o r d a ''metamorfoseado num mons-
v e r d a d e i r o a c e r t o de c o n t a s com o c a u s a -
truoso inseto" — tornou-se um clássico da
dor d o s e n t i m e n t o d e f r a c a s s o q u e per-
literatura de todos os tempos. A MF lAMORrOSE
meia toda a sua vida.
CARTA AO PAI
t r a d u ç ã o d e Modesto C a r o n e
t r a d u ç ã o d e Modesto C a r o n e

UM MÉDICO RURAL
Pequenas Narrativas
Franz Kafka
Histórias do Sr. Keuner
Toda força literária de Kafka está p r e s e n t e n a s Bertolt Brecht
catorze narrativas q u e c o m p õ e m Um Médico Ru-
ral, b r i l h a n t e m e n t e t r a d u z i d a s pelo escritor Mo- As Histórias do Sr. Keuner foram escritas entre
desto C a r o n e (prêmio Jabuti de t r a d u ç ã o c o m O 1935 e m e a d o s dos anos 50, a p r e s e n t a n d o um
Processo, de Kafka). P o u c o c o n h e c i d a s , n u n c a p e r s o n a g e m através do qual Bertolt Brecht
p u b l i c a d a s no Brasil, elas r e ú n e m escritos per- e x p r e s s a sua e x p e r i ê n c i a moral: o Sr. Keuner é o
t u r b a d o r e s , o n d e estão p r e s e n t e s , d e forma ma- Sr. Brecht, um dos maiores poetas, d r a m a t u r g o s
gistralmente concisa, os e l e m e n t o s da prosa de e literatos d e s t e século. Pela primeira vez
Kafka. r e u n i d a s , as Histórias do Sr. Keuner mostram
Brecht no perfeito domínio da prosa curta,
objetiva, aliada a uma ferina crítica social.

O PROCESSO
De Kafka
Tradução de Modesto Carone

CARTAS NA RUA
Um dos maiores romances desse século rece- C h a r l e s Bukowski
be uma brilhante tradução de Modesto Caro- t r a d u ç ã o : A l b e r t o A l e x a n d r e Martins e Marilene
ne, o mais autêntico tradutor de Kafka no KAFKA Felinto
Brasil. Pesquisando em edições alemãs, ele l
Jm b e b e r r ã o simpático, cético, nostálgico e
acolheu os capítulos incompletos bem como c h e i o d e h u m o r passeia pela monotonia b u r o c r á - \ Cartas
passagens riscadas pelo próprio autor, com- tica dos c o r r e i o s e mostra a A m é r i c a com a visão •na Rua (
pondo a mais precisa e completa tradução do de um a n t i g u r u . Talvez o melhor e mais divertido
grande autor tcheco já publicada em nosso r o m a n c e d o i r r e v e r e n t e escritor n o r t e - a m e r i c a n o BUKOWSKI
país. C h a r l e s Bukowski.
MANIFESTOS DO SURREALISMO
i\DKf un m λ

André Breton
Uma edição histórica que reúne os très Mani-
festos do Surrealismo. Mais do que subverte- \u\ntxms
IMI
rem os conceitos da criação artística, estes SI KM LL/WM

textos revolucionaram a própria relação do


homem consigo mesmo e com o mundo.

JÓIAS DE FAMÍLIA
Zulmira Ribeiro Tavares

Maria Bráulia tem dois rubis. Um falso, um ver-


dadeiro. Assim, em sua vida, nem sempre a apa-
rência correspondia à realidade. Essa foi a pri-
meira lição dos rubis de Maria Bráulia. A segun-
da foi que com rubis, falsos ou verdadeiros, é
possível manipular os outros. E que, do jeito co-
mo funcionam as coisas, convém construir um cer-
to poder pessoal para ter felicidade. Essa é a fábu-
la sobre a hipocrisia social de Zulmira Ribeiro Ta-
vares em seu novo livro, uma novela deliciosa.

AQUELE RAPAZ
m e m ó r i a s e ficções
Jean-Claude Bernardet

Uma surpresa do c o n s a g r a d o crítico e professor


de cinema J e a n - C l a u d e B e r n a r d e t : seu p r i m e i r o
texto ficcional revela um escritor fluente e cati-
vante. L e m b r a n ç a s do internato, do amigo, da
g u e r r a na E u r o p a . A imigração, a c h e g a d a ao
Brasil. Memórias e ficções de um h o m e m sensível
e refinado.
1%V I I I I I I I U W IV VHUMIVU) v w » -

à exceção de um deles, nas déca-


das de 1940 e 1950, De Poesia e
Poetas é uma mostra luminosa
da monumental erudição de um
dos grandes poetas, dramaturgos
e críticos do século.

" Q u e m lê os textos críticos de


Eliot percebe de imediato que os
fundamenta não somente uma
formação acadêmica, mas sobre-
tudo uma visão de mundo, um
ideário^ estético-filosófico que
lhes confere o estatuto de obra
do p e n s a m e n t o . "

Do prólogo de Ivan Junqueira

Area de interesse:
Literatura

Tradução: Ivan Junqueira

II*

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