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Continuidade e
descontinuidade: o debate ao
longo da história da igreja
Rodney Petersen
A
primeira pergunta na interpretação da Escritura que o
cristão, após reconhecer o senhorio de Jesus Cristo, faz,
é como relacionar as Escrituras hebraicas com o “Novo”
Testamento.1 Muitas divisões entre igrejas cristãs surgem das
diferentes maneiras de compreender esse relacionamento. Isso
foi o que aconteceu nos primeiros anos da igreja. Foi um assunto
tratado durante a Reforma, bem como em períodos posteriores e
recentes de reavivamento da igreja.
Nossa pergunta é a que foi feita por Filipe ao eunuco etíope:
Compreendes o que vens lendo? (At 8.30). Foi a dos dois discípulos
na estrada de Emaús (Lc 24.13-49). Precisaríamos reformulá-la hoje.
Por exemplo: A crise de saúde gerada pela aids é uma praga lançada
sobre a sociedade moderna por um Deus indignado? O clamor por
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Os teólogos
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Os doutores da igreja
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A Idade Média
Uma exegese geralmente espiritual ou alegórica com propósi-
tos morais proveu, então, a forma aceitável pela qual os Testamentos
deveriam se relacionar. Quatro “sentidos” da Escritura (literal,
alegórico, tropológico e anagógico), definidos primariamente por
Orígenes e Agostinho, foram separados da “letra” e do “espírito”
do texto e perceptíveis em João Cassiano († 435). Estes domina-
riam a exegese medieval, particularmente no que se refere ao AT
em relação ao NT. Isso pode ser visto nas palavras de importantes
comentaristas medievais como Isidoro de Sevilha (c. 560-636), Beda,
o Venerável (c. 673-735), e Ambrósio Autperto († 781). Durante a
Idade Média essa tradição tornou-se diferenciada e regularizada
em modos monásticos e escolásticos de reflexão teológica. Embora
frequentemente mescladas, a teologia monástica buscava na Bíblia
um texto para a vida litúrgica e devocional. A implicação disso é
que os vários níveis espirituais de significado na Bíblia foram res-
saltados como ajudas à vida moral. A teologia escolástica, impulsio-
nada pela curiosidade e pelo questionamento dialético, fez maiores
exigências filosóficas sobre o texto. Tal teologia se defrontaria mais
diretamente com o problema de outras fontes de conhecimento e
como essas fontes desafiariam um ou ambos os Testamentos.15
O período carolíngio trouxe um despertamento aos estudos
bíblicos. Entretanto, somente no século XVII começamos a encontrar
coisas de interesse à nossa pergunta. Por exemplo, o desenvolvimento
da teologia monástica na obra de indivíduos como Rupert de Deutez
(c. 1075-1129/30), Bernardo de Clairvaux (1090-1153), Ricardo de São
Vítor († 1173), Joaquim de Fiore (1132-1202) e Boaventura (c. 1217-
1274) mostra uma aprofundada interpretação espiritual da Escritura,
que une os Testamentos por meio da elaborada figurae para ilustrar
o movimento de tempo em direção ao julgamento final concomitante
com as virtudes adequadas a cada período da história. Quando a
teologia escolástica atingiu certo ápice em Tomás de Aquino, o mesmo
aconteceu em relação à teologia monástica com referência à história
em Joaquim de Fiore e com respeito à alma, em Boaventura. Joaquim
é de particular interesse. Seu elaborado plano de tipos e figuras do
AT foi composto por uma grade semelhante, discernida no livro de
Apocalipse, para criar uma explosiva visão tripartida da história. Isso
aniquilou os grupos ortodoxos e dissidentes que criam na iminência
do milênio na Reforma e durante seu período.16
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A Renascença e a Reforma
A obra de Martinho Lutero (1483-1546) ficou em débito
com a obra de Lyra, como também com as correntes derivativas
mais amplas da Renascença. Sua crítica a Roma começou com o
sistema sacramental e a teologia escolástica; depois continuou a
questionar a exegese. Lutero insistiu na autoridade e suficiência
da Escritura em oposição à tradição da igreja. Entendidos pela
fé e pela iluminação do Espírito (Weimar, VII, 96-98), ambos os
Testamentos da Escritura estavam abertos a todos os cristãos. A
revelação, seja preparatória ou progressiva, teve uma história que
o Espírito possibilitou ser compreendida. Lutero rejeitou os signi-
ficados “espirituais” tradicionais ou a quádrupla interpretação da
Escritura e foi na direção de um único significado do texto, exceto
onde uma interpretação espiritual tinha a clara intenção do autor.
Essa abordagem histórica do AT foi um fator central na teologia
da Reforma. Entretanto, a questão do seu sentido literal em relação
ao NT permaneceu legítima. Lutero seguiu Lefèvre d’Etaples e
argumentou que os escritores do AT estavam conscientes da vinda
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O século XIX
Immanuel Kant (1724-1804) leva-nos diretamente às perguntas
do século. Crítico de ceticismo cada vez maior (como em David
Hume), Kant esforçou-se para compreender os limites do conheci-
mento. Ele deixou pouco espaço para a metafísica, antevendo, assim,
o romantismo de Schleiermacher, o idealismo hegeliano, o reino
moral de Ritschl e o Deus distante de Kierkegaard. Nisso ele deu
continuidade ao padrão de crítica do século anterior, acrescentando
que os estímulos de consciência eram superiores no AT. Em lugar
de uma imposição de fora e de uma sujeição ao governo de Deus
por natureza, ele defendeu uma percepção interior e uma prática de
moralidade oriunda da vontade autônoma, não dependente, sobre a
lei heteronômica ou o poder submisso ao governo de Deus.29
O idealismo moral e o progressivismo histórico esboçado por
Kant ajudaram a completar o cenário para o desenvolvimento da
“alta” crítica como foi desenvolvida originariamente na Alemanha.
Na obra de Friedrich Schleiermacher (1768-1834) essa crítica rei-
vindicou oferecer orientação à igreja para uma fé mais esclare-
cida. Fundamentando a autoridade religiosa na “percepção de
absoluta dependência de Deus”, ele rejeitou as partes de ambos
os Testamentos mais distantes de um profundo senso interior
de divindade. O AT era, de fato, de muito maior valor do que a
mitologia grega. Ambas as tradições constituíram caminhos de pre-
paração para o evangelho. A filosofia de G. W. F. Hegel (1770-1831)
e a teologia de F. C. Baur (1792-1860) provavelmente melhor repre-
sentam o progressivismo histórico do período. Em ambas, a religião
dos judeus foi parte de uma contínua realização de uma verdade
mais completa da história. A crítica bíblica de Julius Wellhausen
(1844-1918) pode muito bem ser vista suportando estas e também
mais recentes premissas racionalistas, em sua articulação do desen-
volvimento gradual da religião hebraica desde uma forma animista
nômade até a criação de um sistema racional de leis. De formas
diferentes Adolf Harnack (1851-1930) conduziu seu progressismo
de volta à busca pelo autêntico passado de Jesus, pondo de lado
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O século XX
Em certo sentido, todo o espectro de questões que tem
ocorrido em relação aos Testamentos apareceu no século XX.
Guerra, mudança social e tendência intelectual trabalharam na
direção do fim do progressivismo do período anterior. Os estudos
de Albert Schweitzer (1875-1965), que apareceram num momento
de mudança social, sugeriam a realidade de um Jesus apocalíptico,
desconhecido da teologia contemporânea, arraigado no passado de
Israel. Aquele mundo, aberto a todos por meio de estudos arqueo-
lógicos e filológicos, revolucionou as perspectivas sobre o AT e sua
relação com o NT. O AT não pode mais ser comparado com fábulas
gregas, mesmo sendo esse o conceito defendido por alguns no
século anterior.33
A reafirmação da veracidade histórica do AT, a identidade
radical de Jesus, o lugar do ser humano perante a “diversidade” de
Deus e a maneira pela qual tais ideias foram canalizadas por uma
teologia de “crise” (principalmente a obra de Karl Barth [1886-
1968]) ajudaram a criar uma nova consciência teológica para a
nossa questão. Além disso, a escatologia da neo-ortodoxia, de forma
tão diferente quanto foi articulada, aprofundou, sem negar explici-
tamente, posições milenaristas tradicionais através de uma compre-
ensão mais imediata do reino de Deus. Isso ofereceu possibilidade
para trazer o poder profético do AT para as preocupações sociais
presentes (p. ex., os Blumhardts, os Niebuhrs, Jürgen Moltmann).
Esse movimento tornar-se-ia mais claro quando estendido por
posteriores teólogos da libertação, frequentemente devedores
às premissas marxistas ou secularistas, todavia em muitos casos
ligados à maneira na qual os primeiros movimentos reformados ou
cristãos restauracionistas usaram os Testamentos como guia para a
santidade compartilhada.34
Hoje, o estudo da inter-relação dos Testamentos está chegando
ao fim do seu segundo milênio. Enquanto isso acontece, estamos
conscientes das formas pelas quais as considerações hermenêuticas
moldam nossa compreensão da fé. Tais assuntos incluem a impor-
tância da história em seu próprio direito. A primeira pergunta para
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Conclusão
A maneira precisa pela qual os Testamentos se relacionam
é uma discussão que continuará até o dia do juízo final. Todavia,
várias questões são esclarecidas pela história da igreja. Primeiro,
é claro que a percepção de Jesus sobre o AT tem sido fator orien-
tador em quase todos os períodos. A igreja tem consciência do que
se percebeu ser o método de Jesus de abordar a nossa questão.
Em segundo lugar, quatro formas de avaliar o inter-relacionamento
entre os Testamentos podem ser isoladas em termos de sua impor-
tância teológica: o AT pode ser lido como mera história; ele é quase
sempre lido por meio do NT; ele pode ser compreendido como
completo, de certa forma, em sua própria integridade teológica; ele
pode simplesmente ser visto como símbolo alegórico em relação
ao NT.
A implicação teológica dessas formas de leitura dos Testa
mentos pode ser esquematizada como segue.37 Primeiramente,
se o AT é mera história, então nenhuma orientação em particular
é oferecida aos cristãos para a vida pessoal ou social. Não existe
garantia profética particular para a vinda de Jesus. Não há lugar
especial para os judeus na história. Cada agrupamento étnico pode
ser visto como tendo sua própria organização de salvação.
Em segundo lugar, se o AT deve ser lido através dos evangelhos,
então qualquer orientação que ele possa oferecer para os cristãos é
filtrada pela ética de Jesus. O texto pode ser lido por seu possível
valor profético ou cristocêntrico. A nação judaica antes de Cristo pode
ser vista como intérprete de um papel privilegiado na preparação do
advento dele, e tal atuação deve ser harmonizada, do mesmo modo,
depois dele. Além disso, o NT fornece o paradigma necessário para
responder a pessoas de outros ambientes culturais ou religiosos.
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