Você está na página 1de 6

O que é ser contemporâneo?

Essa foi a pergunta que guiou o curso de filosofia que Giorgio


Agamben apresentou no Instituto Universitário de Arquitetura deVeneza. É também o
título deste ensaio, até hoje inédito em espanhol [e português], publicado pelo jornal Clarín
em 21-3-09. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

1.

A pergunta que eu gostaria de inscrever no início deste seminário é: "De quem e de que
somos contemporâneos? E, sobretudo, o que significa ser contemporâneos?". (…) De
Nietzsche, vem-nos uma indicação inicial, provisória, para orientar nossa busca por uma
resposta. (…) Em 1874, Friedrich Nietzsche, um jovem filólogo que havia trabalhado até
então em textos gregos e, dois anos antes, havia alcançado uma celebridade imprevista
com "A origem da tragédia", publica as "Considerações Intempestivas", com as quais
quer acertar contas com o seu tempo, tomar posição com relação ao presente.
"Intempestiva é essa consideração", lê-se no começo da segunda Consideração, "porque
tenta entender como um mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época
justamente se sente orgulhosa, ou seja, sua cultura histórica, porque penso que todos
somos devorados pela febre da história e deveríamos, pelo menos, nos dar conta disso".

Nietzsche situa, portanto, sua pretensão de "atualidade", sua "contemporaneidade" com


relação ao presente, em uma desconexão e em uma defasagem. Pertence realmente ao seu
tempo, é verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com
aquele, nem se adequa a suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual. Mas,
justamente por isso, a partir desse afastamento e desse anacronismo, é mais capaz do que
os outros de perceber e de apreender o seu tempo.

Essa não-coincidência não significa, naturalmente, que seja contemporâneo quem vive em
outra era, um nostálgico que se sente mais cômodo na Atenas de Péricles, ou na Paris de
Robespierre e do Marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe coube viver.
Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe que irrevogavelmente lhe
pertence, sabe que não pode fugir de seu tempo.

A contemporaneidade é, pois, uma relação singular com o próprio tempo, que adere a este
e, ao mesmo tempo, toma distância dele. Mais exatamente, é "essa relação com o tempo
que adere a este, por meio de uma defasagem e de um anacronismo". Os que coincidem de
um modo excessivamente absoluto com a época, que concordam perfeitamente com ela,
não são contemporâneos, porque, justamente por essa razão, não conseguem vê-la, não
podem manter seu olhar fixo nela.
2.

Em 1923, Osip Mandelstam escreveu a poesia "O século" (a palavra russa vek significa
também "época"). Ela contém não uma reflexão sobre o século, mas sim sobre a relação
entre o poeta e seu tempo, isto é, sobre a contemporaneidade. Não o "século", senão,
segundo o primeiro verso, "meu século" (vek moi):

Meu século, minha besta, há alguém que possa


Esquadrinhar em teus olhos
E soldar com seu sangue
As vértebras de dois séculos?

3.

O poeta, que devia pagar sua contemporaneidade com a vida, é quem deve manter o olhar
fixo nos olhos de seu século-besta, soldar com seu sangue a coluna quebrada do tempo. O
poeta – o contemporâneo – deve manter o olhar fixo em seu tempo. Mas que vê quem vê
seu tempo, o sorriso demente de seu século? Gostaria aqui de lhes propor uma segunda
definição da contemporaneidade: contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo em seu
tempo, para perceber não as suas luzes, mas sim as suas sombras. Todos os tempos são,
para quem experimenta sua contemporaneidade, escuros. Contemporâneo é quem sabe ver
essa sombra, quem está em condições de escrever umedecendo a pena nas trevas do
presente. Mas o que significa "ver a escuridão", "perceber a sombra"?

Uma primeira resposta nos é sugerida pela neurofisiologia da visão. O que acontece quando
nos encontramos em um ambiente sem luz, ou quando fechamos os olhos? O que é a
sombra que vemos nesse momento? Os neurofisiologistas dizem-nos que a ausência de luz
desinibe uma série de células periféricas da retina, chamadas, precisamente, de off-cells,
que entram em atividade e produzem essa espécie particular de visão que chamamos de
sombra. A sombra não é, portanto, um conceito privativo, a simples ausência de luz, algo
como uma não visão, mas sim o resultado da atividade das off-cells, um produto da nossa
retina. Isso significa (…) que perceber essa sombra não é uma forma de inércia ou de
passividade, mas sim de algo que implica uma atividade e uma habilidade particulares, que,
no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir sua
escuridão, sua sombra especial que não é, de todos os modos, separável dessas luzes.

Pode se chamar de contemporâneo só aquele que não se deixa cegar pelas luzes do século
e que é capaz de distinguir nelas a parte da sombra, sua íntima escuridão. Com isso, porém,
não respondemos a nossa pergunta. Por que o fato de poder perceber as trevas que provêm
da época deveria nos interessar? Por acaso, a sombra não é uma experiência anônima e,
por definição, impenetrável, algo que não está dirigido a nós e não pode, portanto, nos
incumbir? Pelo contrário, contemporâneo é aquele que percebe a sombra de seu tempo
como algo que lhe incumbe e que não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que qualquer
luz, se refere direta e singularmente a ele. Quem recebe em pleno rosto o feixe de trevas
que provém de seu tempo.

4.

No firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem rodeadas por uma espessa
penumbra. Tendo-se em conta que há no universo um número infinito de galáxias e de
corpos luminosos, a sombra que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, requer
uma explicação. Gostaria de falar agora da explicação que a astrofísica contemporânea dá
para essa sombra. No universo em expansão, as galáxias mais remotas de afastam de nós
a uma velocidade tão grande que sua luz não pode chegar a nós. O que percebemos como
a sombra do céu é essa luz que viaja extremamente veloz até nós e, no entanto, não pode
nos alcançar, porque as galáxias das quais ela provém se afastam a uma velocidade
superior à velocidade da luz. Perceber essa luz que tenta nos alcançar, e não pode, na
escuridão do presente: isso significa ser contemporâneo. Daí vem que ser contemporâneos
é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capazes não apenas de
manter o olhar fixo na sombra da época, mas também perceber nessa sombra uma luz que,
dirigida até nós, se afasta infinitamente de nós. Isto é: chegar pontualmente a um encontro
ao qual só é possível faltar.

Por isso, o presente que a contemporaneidade percebe tem as vértebras quebradas. Nosso
tempo, o presente, não é só o mais distante: não pode nos alcançar de maneira nenhuma.
Ele tem a coluna quebrada, e nos encontramos exatamente no ponto da fratura. Por isso,
somos, apesar de tudo, seus contemporâneos. O encontro que está em questão na
contemporaneidade não ocorre simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo
cronológico, algo que urge em seu interior e o transforma. Essa urgência é o intempestivo, o
anacronismo que nos permite apreender o nosso tempo na forma de um "muito cedo" que é,
também, um "muito tarde", de um "já" que é também um "ainda não". E reconhecer, nas
trevas do presente, a luz que, mesmo sem nunca poder nos alcançar, está
permanentemente em viagem até nós.

5.

Um bom exemplo dessa experiência especial do tempo que chamamos de


contemporaneidade é a moda. O que define a moda é que ela introduz uma descontinuidade
no tempo, que o divide segundo sua atualidade ou falta de atualidade, seu estar e seu não
estar mais na moda (na moda, e não simplesmente de moda, que alude só às coisas).
Apesar de ser sutil, essa divisão é clara: os que devem percebê-la infalivelmente a
percebem e, dessa forma, certificam seu estar na moda. Mas se tratar-*mos de objetivá-la e
fixá-la no tempo cronológico, ela se revela inapreensível. Sobretudo o "agora" da moda, o
instante em que começa a ser, não é identificável por nenhum cronômetro. Esse "agora" é o
momento em que o estilista concebe o traço, o matiz que definirá a nova forma das peças?
Ou no qual ele a confia ao desenhista e depois à costureira que confecciona o protótipo?
Ou, melhor, o momento do desfile, onde a peça é levada pelas únicas pessoas que estão
sempre e somente na moda, as manequins, que, no entanto, justamente por isso, nunca o
estão realmente? Porque, em última instância, o estar na moda da "forma" ou da "maneira"
dependerá do fato de que as pessoas de carne e osso, diferentes das manequins – vítimas
sacrificiais de um deus sem rosto – a reconheçam como tal e a convertam em sua
vestimenta.

O tempo da moda está, portanto, constitutivamente adiantado a si mesmo e, por isso,


também sempre atrasado; sempre tem a forma de um limiar inapreensível entre um "ainda
não" e um "já não". É provável que, como sugerem os teólogos, isso dependa do fato de que
a moda, pelo menos em nossa cultura, é uma signatura teológica do vestido que deriva da
circunstância de que a primeira peça de vestuário foi confeccionada por Adão eEva depois
do pecado original, na forma de um pano entrelaçado com folhas de figueira. (As peças que
vestimos derivam não desse pano vegetal, mas das "tunicae pelliceae", dos vestidos feitos
com peles de animais que Deus, segundo Gênesis 3, 21, faz com que nossos progenitores
vistam, como símbolo tangível do pecado e da morte, no momento em que os expulsa do
paraíso). Em todo caso, além da razão, o "agora", o "kairos" da moda é inapreensível: a
frase "estou na moda neste instante" é contraditória, porque, no segundo em que o sujeito a
pronuncia, ele já está fora de moda.

Por isso, o estar na moda, como a contemporaneidade, comporta certa "soltura", certa
defasagem, em que sua atualidade inclui dentro de si uma pequena parte de sua parte de
fora, um sabor de démodé. Nesse sentido, dizia-se de uma senhora elegante na Paris do
século XIX: "Elle est contemporaine de tout le monde". Mas a temporalidade da moda tem
outro caráter, que a assemelha à contemporaneidade. No próprio gesto em que seu
presente divide o tempo segundo um "já não" e um "ainda não", ela cria com esses "outros
tempos" – certamente com o passado e talvez também com o futuro – uma relação
particular. Ela pode, vale dizer, "encontrar" e, dessa maneira, reatualizar qualquer momento
do passado (os anos 20, os anos 70, mas também a moda império ou neoclássica). Pode,
portanto, colocar em relação o que dividiu inexoravelmente, voltar a chamar, reevocar e
revitalizar o que havia declarado como morto.
6.

Essa relação especial com o passado tem outro aspecto. A contemporaneidade se inscreve
no presente marcando-o sobretudo como arcaico, e só quem percebe no mais moderno e
recente os indícios e as signaturas do arcaico pode ser seu contemporâneo. Arcaico
significa: próximo do "arché", ou seja, da origem. Mas a origem não está situada só em um
passado cronológico: é contemporâneo ao devir histórico e não cessa de funcionar nele,
como o embrião continua atuando nos tecidos do organismo maduro, e o bebê, na vida
psíquica do adulto. A distância e, ao mesmo tempo, a proximidade que definem a
contemporaneidade têm seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum
ponto bate com tanta força como no presente. (…)

Os historiadores da literatura e da arte sabem que, entre o arcaico e o moderno, há um


encontro secreto, e não tanto por causa do fato de que as formas mais arcaicas parecem
exercer no presente um fascínio particular, mas sim porque a chave do moderno está oculta
no imemorial e no pré-histórico. Assim, o mundo antigo, em seu final, se volta, para se
reencontrar, para as origens: a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o
arcaico. Nesse sentido, justamente, pode-se dizer que a via de acesso ao presente tem
necessariamente a forma de uma arqueologia. Que não retrocede, porém, a um passado
remoto, mas sim ao que, no presente, não podemos viver de nenhuma forma e, ao
permanecer no vivido, é incessantemente reabsorvido para a origem, sem nunca poder
alcançá-lo. Porque o presente não é outra coisa que a parte de não-vivido em cada vivido, e
o que impede o acesso ao presente é justamente a massa do que, por alguma razão (seu
caráter traumático, sua proximidade excessiva) não conseguimos viver nele (…).

7.

Os que tentaram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo só às custas de dividi-la em


mais tempos, em introduzir no tempo uma des-homogeneidade essencial. Quem pode dizer
"meu tempo" divide o tempo, inscreve nele uma divisão e uma descontinuidade: e, no
entanto, justamente por meio dessa divisão, essa interpolação do presente na
homogeneidade inerte do tempo linear, o contemporâneo instala uma relação especial entre
os tempos.

Mesmo que, como vimos, o contemporâneo é que abriu as vértebras de seu tempo (ou
percebeu a falha ou o ponto de ruptura), ele faz dessa fratura o lugar de encontro entre os
tempos e as gerações. Nada mais exemplar, nesse sentido, do que o gesto de Paulo de
Tarso, no ponto em que experimenta e anuncia aos seus irmãos essa contemporaneidade
por excelência que é o tempo messiânico, o ser contemporâneo do messias, que ele chama
de "tempo de agora" ("ho nyn kairos"). Não só esse tempo é cronologicamente
indeterminado (…), mas também tem a capacidade singular de relacionar consigo mesmo
cada instante do passado, de fazer de cada momento ou episódio do relato bíblico uma
profecia ou uma prefiguração ("typos", figura, é o termo preferido de Paulo) do presente
(assim Adão, por meio de quem a humanidade recebeu a morte e o pecado, é o "tipo" ou
figura do messias, que traz aos homens a redenção e a vida).

Isso significa que o contemporâneo não é só quem, percebendo a sombra do presente,


apreende sua luz invendável. É também quem, dividindo e interpolando o tempo, está em
condições de transformá-lo e colocá-lo em relação com os outros tempos, ler nele a história
de maneira inédita, "encontrar-se" com ela segundo uma necessidade que não provém
absolutamente de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode deixar de
responder. É como se essa luz invisível que é a escuridão do presente projetasse sua
sombra sobre o passado, e este, tocado por seu feixe de sombra, adquirisse a capacidade
de responder às trevas do agora.

Michel Foucault devia ter algo semelhante em mente quando escrevia que suas
indagações históricas sobre o passado são só a sombra projetada por sua interrogação
teórica do presente. E Walter Benjamin, quando escrevia que o signo histórico contido nas
imagens do passado mostra que estas alcançarão a legibilidade só em um determinado
momento de sua história. De nossa capacidade de dar ouvidos a essa exigência e a essa
sombra, de ser contemporâneos não só do nosso século e do "agora", mas também de suas
figuras no texto e dos documentos do passado, dependerão o êxito ou o fracasso de nosso
seminário.

Você também pode gostar