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E INOVADOR DA POESIA
Pablo Neruda, chileno de nascença, soube como nenhum outro poeta cantar sua
terra, a América latina, sua natureza, sua gente, seus conflitos, o que fez surgir a
dimensão de identidade na luta pela opressão, estendendo o conceito de região, no
sentido de pertença e adesão afetiva aos valores da comunidade, como diria Ruben
Oliven,1 para outros países como a Espanha, com sua sangrenta guerra civil, a Rússia,
com sua revolução socialista, os Estados Unidos, com seu racismo e movimentos pela
igualdade racial, e o Brasil, entre muitos outros países, com seus esforços pela
emancipação.
Ao lado desse Neruda telúrico e político, temos um poeta lírico excelente, e um
grande inovador na linguagem da poesia, com traços característicos da tendência
surrealista, imagística inusitada e modernista, em grande parte de seus poemas, ainda
que se possa arriscar a dizer que, nos textos mais panfletários, seus poemas perdem em
elaboração estética, tornando-se quase prosaicos.
Feita uma opção de recorte para leitura - com Crepusculário2, primeiro livro,
publicado em 1923 escrito pelo poeta, dos dezesseis aos dezenove anos, e de tonalidade
simbolista; Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, de 1924, com poemas de
amor, construídos já com maior consciência de elaboração estética, processo inaugurado
nessa obra; a trilogia formada por Residência na terra I, de 1933, Residência na terra
II, de 1937 e Terceira residência, de 1947, textos que operam uma transformação
monumental na linguagem, em direção ao Surrealismo, ao mesmo tempo, em que, no
último, anuncia-se sua vocação de poesia politicamente engajada; Canto geral de 1950,
sua obra máxima sobre a opressão do homem pelo homem e as lutas de libertação e
Memorial de Isla negra, texto que mescla biografismo, telurismo, luta social e lirismo
amoroso - está criado o corpus de leitura selecionado para a presente inquirição, ainda
1
Ruben George Oliven, no ensaio A parte e o todo: a diversidade cultural do Brasil: Petrópolis: Vozes,
1992, enfatiza que, na região, temos uma comunidade com adesão afetiva aos valores agregadores.
2
Vamos usar as siglas, seguidas de páginas, para as obras examinadas, ou seja: CR para Crepusculário,
VPA para Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, RI, para Residência na terra I, RII para
Residência na terra II, RIII para Terceira residência, CG para Canto geral e MIN para Memorial de Isla
negra.
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que os dois primeiros livros não sejam a tônica do estudo. O percurso desse estudo vai
em direção à observação da modernização estética de sua poesia.
3
Esse é um conceito usado por Hugo Friedrich, no ensaio A lírica moderna: da metade do século XIX a
meados do século XX. Tradução de Marise M. Curioni. São Paulo: Duas cidades, 1978.
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linguagem, principalmente em Canto geral, o que não quer dizer que esse texto não
possua segmentos de alta poeticidade.
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impressões visuais, cromáticas e térmicas. É imprevisto o casamento do adjetivo “ouro”
para “clima”, em que também a sensação térmica se mistura à psicológica. Um corpo
cheio de “frutas derramadas” é metáfora do desejo que envolve a sensação gustativa e
olfativa dos frutos. É paradoxal a imagem “água seca”, a qual cria uma ambiguidade de
sentido, proposta da vanguarda, desde os Simbolistas. O hermetismo alcançado, longe
de fechar a possibilidade de significação, abre perspectivas muito ricas: é o poeta que
tem sua sede estancada pelo contato amoroso? São os olhos da amada que estão secos
porque felizes? Fica a questão para um leitor perspicaz resolver.
No poema “Walking around”, de Residência na terra II, as imagens utilizadas
pelo poeta, para dar expressão a sua sensação de tédio, de vazio existencial, análogo ao
que os modernos chamavam de “idealidade vazia”, 4 causa muito estranhamento e exige
da leitura um grande esforço de interpretação, que não lhe permite ser passiva. Observe-
se:
Esse cansaço “de ser homem” fica muito bem expresso em “impenetrável, como
um cisne de feltro”, comparação inédita e em “só quero um descanso de pedras”, em
que o complemento nominal “de pedras” é inusitado para o substantivo “descanso”.
Assim como é original essa segmentação do corpo, em “me canso dos meus pés e das
minhas unhas / e do meu cabelo e da minha sombra”, o que já é uma fragmentação do
real a ser apontada mais adiante.
4
Esse também é um conceito usado por Friedrich, na obra citada.
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No poema “Reunião sob as novas bandeiras” de Terceira residência, a alegoria
da participação do poeta no movimento revolucionário libertador é original e causa
estranhamento pela beleza inusitada da imagem. Observe-se:
Reunidos assim
duramente central, não busco asilo
nos vazios dessas lágrimas e mostro
a cepa da abelha: um pão radiante
para o filho do homem: no mistério do azul se prepara
para olhar o trigo em sangue distante. (TIII., 55)
Não é comum “busc[ar] asilo / nos vazios [das] lágrimas”, nem tampouco
“mostr[ar] a cepa da abelha: um pão radiante para o filho do homem”. Não é fácil para o
leitor decifrar que “mistério do azul” é esse, nem o “trigo em sangue distante”. “Trigo”
e “pão” são duas imagens reiteradas em Neruda para simbolizar a possibilidade de um
mundo de fartura, em que não haja pobres com fome.
No segmento “Invocação” do poema-livro “Espanha no coração” temos:
À alusão à fênix, ave mitológica que renasce das cinzas, em “juro que em tuas
cinzas / nascerás como flor de água perpétua”, em que temos uma junção imprevista de
“flor” com a qualificação “de água perpétua”, juntam-se imagens originais como
“pétalas do pão” e a intertextual referência à história das invasões na Península ibérica,
em “malditos [...] os que esperaram este dia para abrir a porta / da mansão para o mouro
e o bandido” e a imagem original de “o osso negro / comido pelas chamas, a vestimenta
/ da Espanha fuzilada”, em que é imprevista a qualificação de “vestimenta” como “osso
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negro/ comido pelas chamas”, expressando com muita força as sequelas da guerra civil
espanhola.
No Canto geral, há vários poemas com a imagística muito bem trabalhada e
causadora de estranhamento, como no livro “A lâmpada da terra”, no segmento
“Amazonas”, em que a descrição do rio é cheia de associações imprevistas e metáfora s
sinestésicas. Observe-se:
Amazonas,
capital das sílabas da água,
pai patriarca, és
a eternidade secreta das fecundações,
te caem os rios como aves, te cobrem
os pistilos cor de incêndio,
os grandes troncos mortos te povoam de perfume,
a lua não pode vigiar-te ou medir-te.
És carregado de esperma verde
como árvore nupcial, és prateado
pela primavera selvagem,
és avermelhado de madeiras,
azul de pedras, vestido de vapor ferruginoso,
lento como um caminho de planeta. (CG., p.31)
Qualificar o rio como “capital das sílabas das águas”, “eternidade secreta das
germinações”, coberto pelos “pistilos cor de incêndio”, “árvore nupcial” “lento como
um caminho de planeta” é totalmente ambíguo. Sinestésica é a presença do “incêndio”,
do “perfume” do “esperma verde” o “prateado” e o “avermelhado de madeiras”, em que
o cromatismo dá conta da dimensão da beleza do rio.
Em “Minerais”, “Macchu Picchu, é “um assombro dourado” (CG., p.39), Cuzco
uma “flor pensativa do mundo” e a “A agricultura perfumava / o reino das cozinhas / e
estendia sobre os tetos / um manto de sol debulhado” (CG., p.39) Em todos esses
segmentos temos sinestesias , ao unirem-se sensações visuais cromáticas a impressões
subjetivas.
Em “Alturas de Macchu Piccho”, a descrição da cordilheira é uma construção de
imagens, em que a originalidade fruto da adjetivação inusitada está em cada verso.
Observe-se:
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Nível sangrento, estrela construída.
Borbulha mineral, lua de quartzo.
Serpente andina, rosto amaranto.
Cúpula de silêncio, pátria pura.
Noiva do mar, árvore de catedrais.
Ramo de sal, cerejeira de asas negras.
Dentadura nevada, trovão frio.
Lua arranhada, pedra ameaçadora.
Cabeleira do frio, ação do ar.
Vulcão de mãos, catarata escura.
Onda de prata, direção do tempo. (CG., pp. 57,58)
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Em Memorial de Isla, negra, o poema “amores: Terusa I” é um exemplo
inquestionável desses procedimentos da imagística: a associação inusitada e a sinestesia.
Observe-se:
Terusa
aberta entre papoulas
centelha
negra
da primeira dor,
uma estrela entre os peixes,
para a luz
e para a pura corrente genital,
uma ave roxa do primeiro abismo,
sem alcova, no reino
do coração visível
cujo mel inauguram as amendoeiras,
o pólen incendiário da retama selvagem,
a melissa de tentativas verdes,
uma pátria de misteriosos musgos. (MIN., p.57 )
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a tinta do trigo, do marfim, do pranto,
as coisas de couro, de madeira, de lã,
envelhecidas, desbotadas, uniformes,
unem-se em torno de mim como paredes. (RI., p.17)
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e nu, sem ferraduras e radiante.
atravesso com ele sobre as igrejas,
galopo pelos quartéis desertos de soldados
e um exército impuro me persegue.
Seus olhos de eucalipto roubam sombra,
seu corpo de sino galopa e golpeia. (RI., p. 14)
A “espessa luz de leite” tem dentro de si um “cavalo vermelho” que pode levar o
sujeito do poema às “igrejas” e aos “quartéis”. Relevante é reparar que a adjetivação
imprevista como em “luz de leite”, “olhos de eucalipto”, “corpo de sino” são recursos
para criar a atmosfera surreal, assim como a imprecisão dessa “luz de leite” aproxima-se
do arabesco.
Em “Enterro do leste”, também podemos observar a ilogicidade das imagens que
criam clima de surrealidade:
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pacientemente vestidas de cinza, pacientemente
à espera na sombra do doloroso cinema. (RI., p.58)
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no esquecimento” são uma justaposição de elementos resultante da fragmentação do
real. O mesmo procedimento de criar ilogicidade repete-se em “Melancolia nas
famílias”. Observe-se:
Também aqui não há concretude na imagem de “um frasco azul” com uma
“orelha” e um retrato” dentro. E a junção do “mocho”, da “rouca cerejeira”,
personificada , do “quartzo”, do “lodo”, das águas azuis”, das “cânforas”, “coisas
caídas”, “medalhas”, “ternuras”, “para quedas”, “beijos” é uma colagem de elementos
díspares pois se misturam objetos com impressões psicológicas subjetivas.
No livro-poema “Espanha no coração” de Terceira residência, no segmento
“Canto sobre umas ruínas”, a destruição do país, pós-guerra civil, aparece expressa na
decomposição do real e colagem de fragmentos. Observe-se:
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É insólito que se possa colar, lado a lado, “utensílios”, “tela”, “espuma”,
“urinas”, “bochechas”, “vidros’, lãs”, objetos inanimados e metonímicos fragmentos
humanos, a não ser como alegoria do caos provocado pela guerra, “desorganizando
sonho de metais”. Já as antíteses entre “perfume” e “fascinado” metaforizam a
destruição dos homens e seus objetos, demonstrando o quanto de transformador pode ter
a luta fratricida.
5
Remeto o leitor a meus ensaio de Pós-doutorado, realizado na PUCRS e editado pela Ed.
Movimento/EDUCS em 2009, onde examino com mais profundidade essa questão oferecida como
discussão por Baudelaire, pelos manifestos do Simbolismo, Vanguarda e Modernismo.
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triturados os olhos do soldado, / estão bem cheios de sangue os sapatos / que pisaram
tua porta, Stalingrado” (RIII., p.141).
No Canto geral, no segmento “Os libertadores”, ao referir as sequelas da
invasão e exploração da América, temos:
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Apontaram-se acima os elementos elogiáveis, na poesia de Neruda, resultantes
de um trabalho estético cuidadoso. Mas, infelizmente, não se pode fazer a apologia de
toda a sua produção. Muitas vezes o caráter panfletário, de denúncia (não se negando
aqui o valor social de sua luta através da poesia) faz com que o texto soe quase como
prosa, como se pode observar, em vários momentos, como por exemplo, no poema
“Luis Cortez”, de “A terra se chama Juan”, do Canto geral. Observe-se: “[...] pouco /
importa minha morte, / nem os nossos sofrimentos, pois a nossa luta / é grande, / mas
que fiquem sabendo, camarada, não se esqueça” (CG., p.364). Não há trabalho nenhum
com a imagística aqui, onde a denotação impera.
Também o excesso da presença da primeira pessoa e do autobiografismo
prejudicam o trabalho poético. Isso pode ser observado no poema “A united Fruit Co.”,
em que o poeta depõe em primeira pessoa: “Eu entrei nas casas profundas/ como covas
de ratos, úmidas/ de salitre e de sal apodrecido,/ vi seres famintos se arrastarem” (CG.,
p.277); ou, ainda, no segmento “Que acorde o lenhador”, de Canto geral: “mas um
poeta do extremo sul da América, / filho de um ferroviário da Patagônia, / americano
como o ar andino, / Hoje fugitivo de uma pátria na qual / o cárcere, o tormento, a
angústia imperam / enquanto o cobre e o petróleo lentamente / se convertem em ouro
para reis alheios” (CG., p. 405). Nesse fragmento, nem o uso da terceira pessoa pode
iludir o leitor sobre o caráter autobiográfico do texto. E essa presença excessiva do eu
vai repetir-se muito em poemas como “Irmão Pablo”, ou “O povo” de “As flores de
Punitaqui” do Canto geral (CG. pp. 442,456), ou “Saudação” de “Coral de ano-novo
para a pátria em trevas” (CG., p. 486), o que se amplifica no livro “Eu sou” do mesmo
Canto geral, em que o título já enuncia o tema autobiográfico, sempre agindo como um
inibidor da poeticiade do texto.
Sem dúvida, estamos diante de um grande poeta. Grande pela intenção social de
sua produção, grande pelo elogio incansável à sua região e à toda a América, grande
pela capacidade inovadora da linguagem, mas que em alguns momentos, por excessivo
pendor para o panfletário, ou para o autobiografismo, acaba permitindo que a qualidade
de sua poesia seja prejudicada. Mas não podemos nos deixar levar pela percepção
desses excessos, que é preciso apontar, mas que não podem desmerecer a grandeza
inquestionável de sua obra.
REFERÊNCIAS
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De apoio teórico
CHIAMPI, Irlemar. (Org.) Fundadores da modernidade. São Paulo: Ática, 1991 (Série
Temas - Estudos literários).
BERTUSSI, Lisana. Tradição, modernidade, regionalidade. Porto Alegre: Movimento /
Caxias do Sul: EDUCS, 2009.6
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados
do século XX. Tradução de Marise M. Curione. São Paulo: Duas cidades, 1978.
OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural do Brasil.Petrópolis;
Vozes, 1992.
POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura gaúcha. Porto
Alegre; Movimento, 1974.
TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro:
apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas,
de 1957 até hoje. 10ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.
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Essa obra, que é o ensaio de Pós-doutorado da autora, cotém complementação bibliográfica extensa
sobre Vanguarda, Modernismo , Regionalismo e Regionalidade.
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NERUDA, Pablo. Crepusculário. Tradução de José Eduardo Degrazia. Porto Alegre:
LPM, 2007.
NERUDA, Pablo. Vinte poemas de amor e uma canção desesperada. Tradução de
Domingos Carvalho da Silva . 24ª ed. José Olympio, 2005.
NERUDA, Pablo. Residência na terra I. Tradução de Paulo Mendes Campos. Porto
Alegre; LPM, 1980.
NERUDA, Pablo. Residência na terra II. Tradução de Paulo Mendes Campos.Porto
Alegre: LPM, 2004.
NERUDA, Pablo. Terceira residência. Tradução de José Eduardo Degrazia. Porto
Alegre: LPM, 2007.
NERUDA, Pablo. Canto geral. Tradução de Paulo Mendes Campos. 13. ed. Rio:
Bertrand Brasil, 2006.
NERUDA, Pablo. Memorial de Isla negra. Tradução de José Eduardo Degrazia. Porto
Alegre: LPM, 2007.
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