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O PABLO NERUDA, SURREALISTA/ MODERNISTA

E INOVADOR DA POESIA

Lisana Bertussi (UCS)

Pablo Neruda, chileno de nascença, soube como nenhum outro poeta cantar sua
terra, a América latina, sua natureza, sua gente, seus conflitos, o que fez surgir a
dimensão de identidade na luta pela opressão, estendendo o conceito de região, no
sentido de pertença e adesão afetiva aos valores da comunidade, como diria Ruben
Oliven,1 para outros países como a Espanha, com sua sangrenta guerra civil, a Rússia,
com sua revolução socialista, os Estados Unidos, com seu racismo e movimentos pela
igualdade racial, e o Brasil, entre muitos outros países, com seus esforços pela
emancipação.
Ao lado desse Neruda telúrico e político, temos um poeta lírico excelente, e um
grande inovador na linguagem da poesia, com traços característicos da tendência
surrealista, imagística inusitada e modernista, em grande parte de seus poemas, ainda
que se possa arriscar a dizer que, nos textos mais panfletários, seus poemas perdem em
elaboração estética, tornando-se quase prosaicos.
Feita uma opção de recorte para leitura - com Crepusculário2, primeiro livro,
publicado em 1923 escrito pelo poeta, dos dezesseis aos dezenove anos, e de tonalidade
simbolista; Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, de 1924, com poemas de
amor, construídos já com maior consciência de elaboração estética, processo inaugurado
nessa obra; a trilogia formada por Residência na terra I, de 1933, Residência na terra
II, de 1937 e Terceira residência, de 1947, textos que operam uma transformação
monumental na linguagem, em direção ao Surrealismo, ao mesmo tempo, em que, no
último, anuncia-se sua vocação de poesia politicamente engajada; Canto geral de 1950,
sua obra máxima sobre a opressão do homem pelo homem e as lutas de libertação e
Memorial de Isla negra, texto que mescla biografismo, telurismo, luta social e lirismo
amoroso - está criado o corpus de leitura selecionado para a presente inquirição, ainda

1
Ruben George Oliven, no ensaio A parte e o todo: a diversidade cultural do Brasil: Petrópolis: Vozes,
1992, enfatiza que, na região, temos uma comunidade com adesão afetiva aos valores agregadores.
2
Vamos usar as siglas, seguidas de páginas, para as obras examinadas, ou seja: CR para Crepusculário,
VPA para Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, RI, para Residência na terra I, RII para
Residência na terra II, RIII para Terceira residência, CG para Canto geral e MIN para Memorial de Isla
negra.

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que os dois primeiros livros não sejam a tônica do estudo. O percurso desse estudo vai
em direção à observação da modernização estética de sua poesia.

O PERCURSO ESTÉTICO DA INOVAÇÃO DA LINGUAGEM, PELA


ASSOCIAÇÃO INUSITADA DAS IMAGENS E PELA SINTAXE ORIGINAL E OS
TRAÇOS SURREALISTAS DA POESIA DE PABLO NERUDA

A poesia de Neruda acompanha os movimentos vanguardistas que ele conhecia e


de que participou, como é o caso do Surrealismo, e há muitos elementos que fazem seu
texto ser modernista, como a imagística inusitada, com adjetivação e imagens
imprevistas, a percepção sinestésica do real, a presença da descrição do objeto em
arabesco3, ou seja, concentrar-se mais nos detalhes, como seu movimento por exemplo,
mais no esboço do que nos contornos realistas, como procede o abstracionismo. Há
poemas em que as imagens da realidade são fragmentárias justaposições, colagens, ao
gosto dos Surrealistas. A sintaxe é, algumas vezes, não linear e o poeta usa neologismos
originais. O que não significa que não haja momentos excessivamente panfletários, o
que sem dúvida tem valor como colaboração para os movimentos sociais, mas em que o
poeta esquece dos cuidados com a elaboração formal, apresentando um texto quase
prosaico.
Seu conceito de belo acompanha os modernos que, para substituir a noção
clássica da beleza natural, criaram a de “belo feio”, dando espaço para qualquer tipo de
elemento do mundo moderno, inclusive as ruínas, as prostitutas e o lixo. Esse
aproveitamento do feio, do grotesco, do lixo, do abominável, é muito útil à poesia de
denúncia social que Neruda faz, pois sua intenção é reforçar os aspectos negativos da
sociedade.
Para mostrar esses elementos e a inovação da linguagem são fundamentais os
textos: Residência na terra I, Residência na terra II, Terceira residência, Canto Geral e
Memorial da Isla negra. O texto mais representativo do Surrealismo é Residência na
terra II, mas há modernidade em poemas de todos os livros de poesia, assim como,
enfatizamos novamente, há uma tendência para o panfleto menos elaborado na

3
Esse é um conceito usado por Hugo Friedrich, no ensaio A lírica moderna: da metade do século XIX a
meados do século XX. Tradução de Marise M. Curioni. São Paulo: Duas cidades, 1978.

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linguagem, principalmente em Canto geral, o que não quer dizer que esse texto não
possua segmentos de alta poeticidade.

A IMAGÍSTICA FRUTO DA PERCEPÇÃO SINESTÉSICA DO REAL, O


ARABESCO, O NEOLOGISMO

O elemento mais enfático, como tradutor do moderno em sua poesia, é a


imagística extremamente inusitada, com junção de adjetivos aos substantivos, de forma
originalíssima. Dela faz parte a descrição sinestésica do real, em que se misturam cores,
sensações olfativas, termais, gustativas, auditivas, tácteis, demonstrando que o poeta
tem uma maneira original de captar a realidade, que muitas vezes é tão indizível, tão
transformadora, que necessita da invenção de palavras novas como o neologismo. No
poema “Ângela adônica”, de Residência na terra I, temos um exemplo desses
procedimentos. Observe-se:

Hoje me estendi junto a uma jovem pura


como à beira de um oceano branco,
como no centro de uma ardente estrela
de lento espaço.

Do seu olhar cordialmente verde


caía a luz, qual uma água seca,
Em transparentes e profundos círculos de fresca força.

Seu peito como um fogo de dois lumes


em duas regiões ardia erguido,
e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes claros.

Um clima de ouro madurava apenas


as diurnas longitudes do seu corpo
enchendo-o de frutas derramadas
oculto fogo.(RI., p.38)

Comparar o gesto de aproximação do corpo da mulher “como [estar] à beira de


um oceano branco”, “como [ser] o centro de uma estrela ardente” já é extremamente
original e sinestésico, pois a brancura pode representar a pureza da jovem e o oceano
suas potencialidades sensuais, reforçadas pela “ardente estrela” em que se mesclam

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impressões visuais, cromáticas e térmicas. É imprevisto o casamento do adjetivo “ouro”
para “clima”, em que também a sensação térmica se mistura à psicológica. Um corpo
cheio de “frutas derramadas” é metáfora do desejo que envolve a sensação gustativa e
olfativa dos frutos. É paradoxal a imagem “água seca”, a qual cria uma ambiguidade de
sentido, proposta da vanguarda, desde os Simbolistas. O hermetismo alcançado, longe
de fechar a possibilidade de significação, abre perspectivas muito ricas: é o poeta que
tem sua sede estancada pelo contato amoroso? São os olhos da amada que estão secos
porque felizes? Fica a questão para um leitor perspicaz resolver.
No poema “Walking around”, de Residência na terra II, as imagens utilizadas
pelo poeta, para dar expressão a sua sensação de tédio, de vazio existencial, análogo ao
que os modernos chamavam de “idealidade vazia”, 4 causa muito estranhamento e exige
da leitura um grande esforço de interpretação, que não lhe permite ser passiva. Observe-
se:

Acontece que me canso de ser homem.


Acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
murcho, impenetrável, como um cisne de feltro
navegando numa água de origem cinza.

O cheiro das barbearias me faz chorar aos gritos.


Só quero um descanso de pedras ou de lá,
só quero não ver mais estabelecimentos nem jardins,
nem mercadorias, nem óculos, nem elevadores.

Acontece que me canso dos meus pés e das minhas unhas


e do meu cabelo e da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem. (RII., p.33)

Esse cansaço “de ser homem” fica muito bem expresso em “impenetrável, como
um cisne de feltro”, comparação inédita e em “só quero um descanso de pedras”, em
que o complemento nominal “de pedras” é inusitado para o substantivo “descanso”.
Assim como é original essa segmentação do corpo, em “me canso dos meus pés e das
minhas unhas / e do meu cabelo e da minha sombra”, o que já é uma fragmentação do
real a ser apontada mais adiante.

4
Esse também é um conceito usado por Friedrich, na obra citada.

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No poema “Reunião sob as novas bandeiras” de Terceira residência, a alegoria
da participação do poeta no movimento revolucionário libertador é original e causa
estranhamento pela beleza inusitada da imagem. Observe-se:

Reunidos assim
duramente central, não busco asilo
nos vazios dessas lágrimas e mostro
a cepa da abelha: um pão radiante
para o filho do homem: no mistério do azul se prepara
para olhar o trigo em sangue distante. (TIII., 55)

Não é comum “busc[ar] asilo / nos vazios [das] lágrimas”, nem tampouco
“mostr[ar] a cepa da abelha: um pão radiante para o filho do homem”. Não é fácil para o
leitor decifrar que “mistério do azul” é esse, nem o “trigo em sangue distante”. “Trigo”
e “pão” são duas imagens reiteradas em Neruda para simbolizar a possibilidade de um
mundo de fartura, em que não haja pobres com fome.
No segmento “Invocação” do poema-livro “Espanha no coração” temos:

Pátria sulcada, juro que em tuas cinzas


nascerás como flor de água perpétua,
juro que de tua boca em sede sairão ao ar
as pétalas do pão, a derramada
espiga inaugurada. Malditos sejam,
malditos, malditos que com acha e serpente
chegaram à tua arena terrestre, malditos
os que esperaram este dia para abrir a porta
da mansão para o mouro e o bandido:
conseguiste o quê? Trazei a lâmpada
olhai o solo empapado, olhai o osso negro
comido pelas chamas, a vestimenta
da Espanha fuzilada.(TIII., p.61)

À alusão à fênix, ave mitológica que renasce das cinzas, em “juro que em tuas
cinzas / nascerás como flor de água perpétua”, em que temos uma junção imprevista de
“flor” com a qualificação “de água perpétua”, juntam-se imagens originais como
“pétalas do pão” e a intertextual referência à história das invasões na Península ibérica,
em “malditos [...] os que esperaram este dia para abrir a porta / da mansão para o mouro
e o bandido” e a imagem original de “o osso negro / comido pelas chamas, a vestimenta
/ da Espanha fuzilada”, em que é imprevista a qualificação de “vestimenta” como “osso

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negro/ comido pelas chamas”, expressando com muita força as sequelas da guerra civil
espanhola.
No Canto geral, há vários poemas com a imagística muito bem trabalhada e
causadora de estranhamento, como no livro “A lâmpada da terra”, no segmento
“Amazonas”, em que a descrição do rio é cheia de associações imprevistas e metáfora s
sinestésicas. Observe-se:

Amazonas,
capital das sílabas da água,
pai patriarca, és
a eternidade secreta das fecundações,
te caem os rios como aves, te cobrem
os pistilos cor de incêndio,
os grandes troncos mortos te povoam de perfume,
a lua não pode vigiar-te ou medir-te.
És carregado de esperma verde
como árvore nupcial, és prateado
pela primavera selvagem,
és avermelhado de madeiras,
azul de pedras, vestido de vapor ferruginoso,
lento como um caminho de planeta. (CG., p.31)

Qualificar o rio como “capital das sílabas das águas”, “eternidade secreta das
germinações”, coberto pelos “pistilos cor de incêndio”, “árvore nupcial” “lento como
um caminho de planeta” é totalmente ambíguo. Sinestésica é a presença do “incêndio”,
do “perfume” do “esperma verde” o “prateado” e o “avermelhado de madeiras”, em que
o cromatismo dá conta da dimensão da beleza do rio.
Em “Minerais”, “Macchu Picchu, é “um assombro dourado” (CG., p.39), Cuzco
uma “flor pensativa do mundo” e a “A agricultura perfumava / o reino das cozinhas / e
estendia sobre os tetos / um manto de sol debulhado” (CG., p.39) Em todos esses
segmentos temos sinestesias , ao unirem-se sensações visuais cromáticas a impressões
subjetivas.
Em “Alturas de Macchu Piccho”, a descrição da cordilheira é uma construção de
imagens, em que a originalidade fruto da adjetivação inusitada está em cada verso.
Observe-se:

Arquitetura de águias perdidas.


Corda do céu, abelha das alturas.

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Nível sangrento, estrela construída.
Borbulha mineral, lua de quartzo.
Serpente andina, rosto amaranto.
Cúpula de silêncio, pátria pura.
Noiva do mar, árvore de catedrais.
Ramo de sal, cerejeira de asas negras.
Dentadura nevada, trovão frio.
Lua arranhada, pedra ameaçadora.
Cabeleira do frio, ação do ar.
Vulcão de mãos, catarata escura.
Onda de prata, direção do tempo. (CG., pp. 57,58)

“Arquitetura de águias perdidas”, “abelha das alturas”, “estrela construída”,


“cúpula de silêncio”, “árvore de catedrais”, “cabeleira do frio”, “vulcão de mãos”,
“onda de prata”, “direção do tempo” são imagens ao mesmo tempo metafóricas, como
“arquitetura”, “estrela”, “cúpula”, “árvore”, metonímicas, como “águias”, “abelha” e
alusivas, como “vulcão de mãos”, “direção do tempo”.
Observe-se o trabalho com as antíteses e a hipérbole, em “Cortés”, de “Os
conquistadores” e como se constrói a imagem da contraposição da invasão agressiva e
da pureza do território nativo, através de antíteses como: “punhais” e “perfumes”,
“tropa” e “orquídeas”, “atropelando jasmins”, “amigo” e “abutre cor-de-rosa”. E, ainda,
as hipérboles como: “vai chover sangue”, “as lágrimas serão capazes de formar névoa,
vapor, rios”, unidas à força significativa da metáfora que está em “até derreteres os teus
olhos”:

E avança mergulhando punhais, ferindo


As terras baixas, as escarvantes
cordilheiras dos perfumes,
parando a sua tropa entre orquídeas
e coroações de pinheiros,
atropelando os jasmins,
até as portas de Tlaxcala.
(Irmão aterrado, não tomes
por amigo o abutre cor-de-rosa:
do musgo te falo, das
raízes de nosso reino.
Vai chover sangue amanhã,
as lágrimas serão capazes
de formar névoa, vapor, rios,
até derreteres os teus olhos.) (CG., pp71,72)

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Em Memorial de Isla, negra, o poema “amores: Terusa I” é um exemplo
inquestionável desses procedimentos da imagística: a associação inusitada e a sinestesia.
Observe-se:

Terusa
aberta entre papoulas
centelha
negra
da primeira dor,
uma estrela entre os peixes,
para a luz
e para a pura corrente genital,
uma ave roxa do primeiro abismo,
sem alcova, no reino
do coração visível
cujo mel inauguram as amendoeiras,
o pólen incendiário da retama selvagem,
a melissa de tentativas verdes,
uma pátria de misteriosos musgos. (MIN., p.57 )

Aqui, as metáforas para as características da mulher amada que é como uma


“centelha negra da primeira dor”, “estrela entre os peixes / para a luz”, “ave roxa do
primeiro abismo”, “cujo mel inauguram as amendoeiras”, “pólen incendiário da retama
selvagem”, “pátria de misteriosos musgos”, portam elementos sinestésicos de
visualidade, cromatismo, gustação, sensações térmicas e tácteis vinculadas às
impressões subjetivas do sujeito lírico no contato amoroso, alcançando uma descrição
alegórico sinestésica extremamente original.
Já se comparou a abstração do objeto na arte moderna ao “arabesco”, conceito
criado para representar uma espécie de esboço do objeto, que não se desvela totalmente
para o observador, mas apenas em detalhe, como já se falou acima. Em Primeira
residência, há um poema intitulado “Unidade”, no qual se pode ter um modelo
exemplar desse recurso de representação do real. Observe-se:

Há algo denso, unido, sentado no fundo,


repetindo o seu número, o sinal idêntico.
Como se nota que as pedras tocaram o tempo,
na sua fina matéria há um cheiro de idade
e a água que traz o mar de sal e sonho.

Me cerca uma mesma coisa, um só movimento:


o peso do mineral, a luz da pele,
grudam-se ao som da palavra noite:

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a tinta do trigo, do marfim, do pranto,
as coisas de couro, de madeira, de lã,
envelhecidas, desbotadas, uniformes,
unem-se em torno de mim como paredes. (RI., p.17)

Estão completamente imprecisos os contornos desse objeto de que temos


detalhes como a densidade, a “matéria”, o “cheiro”, o “peso”, o “movimento”, mas não
a forma completa. É dada apenas a informação de que é “algo”, uma “coisa” indizível,
que cerca o poeta “como parede[s]”. Essa é forma de percepção e expressão do real em
esboço, abstrata como nas artes plásticas.
Desvelar novas perspectivas do real pode necessitar, além da imagística
inusitada, de palavras inventadas, para dar conta dos novos significados. Daí, a grande
presença de neologismos na poesia de Neruda. São exemplos curiosos “sobrelonge”, no
poema “Serenata”, “subcelestes” em “Comunicações desmentidas” e “coceguentos” de
“Ritual das minhas pernas”, todos de Residência na terra I (RI., pp 31, 46, 57).Da
mesma forma, temos “desestimam” em “Barcarola” e “desexpediante”, no poema de
mesmo nome, em Residência na terra II (RII., pp23, 37). Em “América não invoco teu
nome em vão”, de Canto geral, há um “odor doceagudo’ (CG., p. 312). Esse processo
inventivo vem corroborar, mais uma vez, o quanto a percepção de mundo de Neruda é
desveladora de novos ângulos de visão, o que faz com que a inventividade da linguagem
seja essencial instrumento poético.

O SURREALISMO NA POESIA DE NERUDA: A FRAGMENTAÇÃO DO REAL, A


JUSTAPOSIÇÃO DE IMAGENS, A COLAGEM, O ONÍRICO

Muito referiu a crítica o pertencimento de Neruda ao movimento Surrealista e


não há dúvida que ele usou muito a forma de apreensão e expressão de mundo desse
movimento de vanguarda. Já, em Primeira residência, no poema “Cavalo dos sonhos”
temos uma imagem surreal de um cavalo onírico que leva o poeta a diversos planos
espaciais. Observe-se:

Que dia sobreveio! Que espessa luz de leite,


compacta, digital, me favorece!
Ouvi o relincho do seu cavalo vermelho

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e nu, sem ferraduras e radiante.
atravesso com ele sobre as igrejas,
galopo pelos quartéis desertos de soldados
e um exército impuro me persegue.
Seus olhos de eucalipto roubam sombra,
seu corpo de sino galopa e golpeia. (RI., p. 14)

A “espessa luz de leite” tem dentro de si um “cavalo vermelho” que pode levar o
sujeito do poema às “igrejas” e aos “quartéis”. Relevante é reparar que a adjetivação
imprevista como em “luz de leite”, “olhos de eucalipto”, “corpo de sino” são recursos
para criar a atmosfera surreal, assim como a imprecisão dessa “luz de leite” aproxima-se
do arabesco.
Em “Enterro do leste”, também podemos observar a ilogicidade das imagens que
criam clima de surrealidade:

Eu trabalho de noite, cercado de cidades


de pescadores, de oleiros, de defuntos queimados
com açafrão e frutas, envoltos em musselina escarlate:
sob a cascata esses mortos terríveis
passam a ressoar correntes e flautas de cobre,
estridentes e finas e lúgubres sibilam
entre a cor das pesadas flores envenenadas
e o grito dos cinzentos dançarinos
e o crescendo monótono dos tantãs
e a fumaça das madeiras que ardem e cheiram. (RI., p.50)

Essa justaposição de “cidades”, “pescadores”, “oleiros”, “defuntos queimados”,


que cercam o poeta, já é insólita. E a cor de “musselina escarlate” e das “pesadas flores
envenenadas”, o “ressoar [de] correntes e flautas de cobre”, “os gritos dos cinzentos
dançarinos” e a “fumaça das madeiras” é a sinestesia a serviço da criação da irrealidade.
Em “O fantasma do navio cargueiro” temos uma espécie de mergulho no subconsciente,
no onírico:

Adegas interiores, túneis crepusculares,


que o dia intermitente dos povos visita:
sacos, sacos que um deus sombrio acumulou
como animais cinzentos, redondos e sem olhos,
com doces orelhas cinzentas,
e ventres estimáveis cheios de trigo ou copra,
sensitivas barrigas de mulheres grávidas,

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pacientemente vestidas de cinza, pacientemente
à espera na sombra do doloroso cinema. (RI., p.58)

Essas “adegas interiores’, esses “túneis crepusculares”, esse “deus sombrio”,


esses “animais cinzentos, redondos, sem olhos / com doces orelhas cinzentas”, essas
“barrigas de mulheres grávidas” são todos elementos que remetem a uma atmosfera de
sonho e pesadelo e são metonímicas imagens fragmentárias da projeção do real no
subconsciente, como é comum na arte surrealista.
Residência na terra II é o livro de Neruda mais significativo para o Surrealismo.
São incontáveis os poemas, em que essa tendência aparece. Observe-se “A rua
destruída”, em que as justaposições de imagens e a ilogicidade prevalecem sobre o
sentido, não fácil para o leitor, nesse hermético e plurissignificativo texto.

PELO FERRO INJURIADO, pelos olhos do gesso


passa uma língua de anos diferentes
do tempo. É uma cauda
de ásperas crinas, umas mãos de pedra cheias de ira,
e a cor das casas emudece, e estalam
as decisões da arquitetura,
um pé terrível enxovalha as sacadas:
com lentidão, com sombra acumulada,
com máscaras mordidas de inverno e lentidão,
passeiam os dias de alta fronte
entre casas sem lua.

A água e o costume e o lodo branco


que a estrela desprende, e especialmente
o ar que os sinos têm golpeado com fúria
gastam as coisas, tocam
as rodas, detêm-se nas tabacarias,
e cresce o cabelo vermelho nas cornijas
como um longo lamento, enquanto na profundeza
tombam chaves, relógios
flores assimiladas no esquecimento. (RII., p.41)

A mistura de planos espaço-temporais em “pelos olhos de gesso / passa uma


língua de anos diferentes do tempo”, esse metonímico ser que é “cauda de ásperas
crinas”, com “umas mãos de pedra cheias de ira”, com “um pé terrível” e tem os
contornos de um monstro de pesadelo e a colagem de “sacadas”, “máscaras”, “casas”,
“água”, “lodo”, “sinos”, “rodas”, “tabacarias”, “chaves”, “relógios”, “flores assimiladas

873
no esquecimento” são uma justaposição de elementos resultante da fragmentação do
real. O mesmo procedimento de criar ilogicidade repete-se em “Melancolia nas
famílias”. Observe-se:

Conservo um frasco azul,


dentro dele uma orelha e um retrato:
quando a noite obriga
às penas do mocho,
quando a rouca cerejeira
destroça os lábios e ameaça
com cascas que o vento do oceano cem frequência perfura,
eu sei que há grandes extensões afundadas,
quartzo de lingotes,
lodo,
águas azuis para uma batalha,
muito silêncio, muitos
veios de retrocesso e cânforas,
coisas caídas, medalhas, ternuras,
para quedas, beijos. (RII., 45)

Também aqui não há concretude na imagem de “um frasco azul” com uma
“orelha” e um retrato” dentro. E a junção do “mocho”, da “rouca cerejeira”,
personificada , do “quartzo”, do “lodo”, das águas azuis”, das “cânforas”, “coisas
caídas”, “medalhas”, “ternuras”, “para quedas”, “beijos” é uma colagem de elementos
díspares pois se misturam objetos com impressões psicológicas subjetivas.
No livro-poema “Espanha no coração” de Terceira residência, no segmento
“Canto sobre umas ruínas”, a destruição do país, pós-guerra civil, aparece expressa na
decomposição do real e colagem de fragmentos. Observe-se:

Tudo foi e caiu


brutalmente destruído
utensílios feridos, tela
noturna, espuma suja, urinas justamente
vertidas, bochechas, vidros, lãs,
cânfora, círculos de fio e de couro, tudo,
tudo por um roda torna ao pó,
ao desorganizado sonho dos metais,
todo o perfume, todo o fascinado,
tudo reunido em nada, tudo caído
para não nascer nunca. (RIII p.107)

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É insólito que se possa colar, lado a lado, “utensílios”, “tela”, “espuma”,
“urinas”, “bochechas”, “vidros’, lãs”, objetos inanimados e metonímicos fragmentos
humanos, a não ser como alegoria do caos provocado pela guerra, “desorganizando
sonho de metais”. Já as antíteses entre “perfume” e “fascinado” metaforizam a
destruição dos homens e seus objetos, demonstrando o quanto de transformador pode ter
a luta fratricida.

O BELO FEIO COMO METONÍMIA DO MUNDO DILACERADO PELA


EXPLORAÇÃO SOCIAL E A GUERRA

Para os movimentos que anteciparam a vanguarda européia, com um Baudelaire


e suas insólitas Flores do mal, assim como para as tendências que vieram depois e o
Modernismo, a discussão sobre o conceito de beleza foi muito renovadora. Da
concepção clássica do belo natural, harmônico, chega-se, através da valorização da
cidade moderna e seu cotidiano - a qual carrega muito de grotesco, feio, deformado - à
noção de “belo feio” do lixo urbano, entendido num sentido amplamente metafórico,
que pode ser trazido como matéria de poesia. 5 Pablo Neruda, talvez com o intuito de
denunciar uma realidade injusta e degradada, traz à sua poesia muitos elementos desse
calibre.
No poema “Um dia sobressai”, de Segunda residência na terra, pode-se
observar essa tendência. Observe-se: “Do sonoro saem os números / Números
moribundos e cifras com esterco / Raios umedecidos e relâmpagos sujos” (RII., p.9).
Em “Doenças de minha casa” temos: “de tal modo não se pode sair, que não se pode /
digerir / um assunto estimável, é tanta a névoa cagada pelos pássaros, / é tanta a fumaça
convertida em vinagre / e o ar azedo que esburaca escadas” (RII., p.53). Ao referir a
guerra civil espanhola, em “Espanha no coração”, no poema “Ode solar ao exército do
povo”, quando descreve o campo de batalha após a luta, o poeta exclama; “não mais do
que uma mortal cadeia, buraco / de pescados mais podres: sempre adiante! / Não há ali
senão mortos, moribundos, / pântanos de terrível pus sangrento” (RIII., p.125). Em
“Novo canto de amor a Stalingrado”, temos “Desfeitas vão as invasoras mãos /

5
Remeto o leitor a meus ensaio de Pós-doutorado, realizado na PUCRS e editado pela Ed.
Movimento/EDUCS em 2009, onde examino com mais profundidade essa questão oferecida como
discussão por Baudelaire, pelos manifestos do Simbolismo, Vanguarda e Modernismo.

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triturados os olhos do soldado, / estão bem cheios de sangue os sapatos / que pisaram
tua porta, Stalingrado” (RIII., p.141).
No Canto geral, no segmento “Os libertadores”, ao referir as sequelas da
invasão e exploração da América, temos:

Uma mulher coletava pus,


e o copo de substância
em honra do céu de cada dia,
enquanto a fome dançava nas minas
do México dourado,
e o coração andino do Peru
chorava docemente
de frio entre os molambos. (CG., p.135)

Em “Areia traída” do mesmo livro, em que há a intenção explícita de denúncia,


os exemplos são em grande número. Observe-se o poema “A nata”, em que se refere a
podridão da aristocracia latino-americana, como “trepadeiras chupadoras / de sangue
esterco e suor, / cipós estranguladores, / anéis de gibóias feudais” (CG., p. 254), ou
ainda em “Os favoritos”, ironizando algum personagem, político do governo, por sua
covardia e servilismo: “É o covardão arrendado / para louvar as mãos sujas / [...]
Acorda rápido em palácio / e mastiga com entusiasmo / as dejeções do soberano [..]
enturvando / a água e pescando seus peixes / na laguna purulenta” (CG., p. 259).E
também falando dos ditadores em “A United Fruit Co.”: “a ditadura das moscas, /
moscas trujillos, moscas Tachos, / moscas Crias, moscas Martínez, / [...]moscas úmidas/
de sangue humilde e marmelada/ mas bêbadas que zumbem / sobre as tumbas
populares” (CG., p. 275).Do Chile e seu governo diz: “em minha pátria preside a vileza.
/ É Gonçález Videla a ratazana que sacode / o seu pelame cheio de esterco e de sangue /
sobre a terra minha que vendeu (CG., p. 307). A constelação de palavras de baixo calão,
como os termos “esterco”, “cagada”, “pus sangrento”, “dejeções”, “moscas”, aponta
para a degradação do mundo latino-americano ou seus similares no conflito da
exploração do homem.

O PANFLETO E O EXCESSO DE AUTOBIOGRAFISMO QUE FAZEM O POETA


DESCUIDAR DA LINGUAGEM

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Apontaram-se acima os elementos elogiáveis, na poesia de Neruda, resultantes
de um trabalho estético cuidadoso. Mas, infelizmente, não se pode fazer a apologia de
toda a sua produção. Muitas vezes o caráter panfletário, de denúncia (não se negando
aqui o valor social de sua luta através da poesia) faz com que o texto soe quase como
prosa, como se pode observar, em vários momentos, como por exemplo, no poema
“Luis Cortez”, de “A terra se chama Juan”, do Canto geral. Observe-se: “[...] pouco /
importa minha morte, / nem os nossos sofrimentos, pois a nossa luta / é grande, / mas
que fiquem sabendo, camarada, não se esqueça” (CG., p.364). Não há trabalho nenhum
com a imagística aqui, onde a denotação impera.
Também o excesso da presença da primeira pessoa e do autobiografismo
prejudicam o trabalho poético. Isso pode ser observado no poema “A united Fruit Co.”,
em que o poeta depõe em primeira pessoa: “Eu entrei nas casas profundas/ como covas
de ratos, úmidas/ de salitre e de sal apodrecido,/ vi seres famintos se arrastarem” (CG.,
p.277); ou, ainda, no segmento “Que acorde o lenhador”, de Canto geral: “mas um
poeta do extremo sul da América, / filho de um ferroviário da Patagônia, / americano
como o ar andino, / Hoje fugitivo de uma pátria na qual / o cárcere, o tormento, a
angústia imperam / enquanto o cobre e o petróleo lentamente / se convertem em ouro
para reis alheios” (CG., p. 405). Nesse fragmento, nem o uso da terceira pessoa pode
iludir o leitor sobre o caráter autobiográfico do texto. E essa presença excessiva do eu
vai repetir-se muito em poemas como “Irmão Pablo”, ou “O povo” de “As flores de
Punitaqui” do Canto geral (CG. pp. 442,456), ou “Saudação” de “Coral de ano-novo
para a pátria em trevas” (CG., p. 486), o que se amplifica no livro “Eu sou” do mesmo
Canto geral, em que o título já enuncia o tema autobiográfico, sempre agindo como um
inibidor da poeticiade do texto.
Sem dúvida, estamos diante de um grande poeta. Grande pela intenção social de
sua produção, grande pelo elogio incansável à sua região e à toda a América, grande
pela capacidade inovadora da linguagem, mas que em alguns momentos, por excessivo
pendor para o panfletário, ou para o autobiografismo, acaba permitindo que a qualidade
de sua poesia seja prejudicada. Mas não podemos nos deixar levar pela percepção
desses excessos, que é preciso apontar, mas que não podem desmerecer a grandeza
inquestionável de sua obra.

REFERÊNCIAS

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De apoio teórico

CHIAMPI, Irlemar. (Org.) Fundadores da modernidade. São Paulo: Ática, 1991 (Série
Temas - Estudos literários).
BERTUSSI, Lisana. Tradição, modernidade, regionalidade. Porto Alegre: Movimento /
Caxias do Sul: EDUCS, 2009.6
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados
do século XX. Tradução de Marise M. Curione. São Paulo: Duas cidades, 1978.
OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural do Brasil.Petrópolis;
Vozes, 1992.
POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura gaúcha. Porto
Alegre; Movimento, 1974.
TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro:
apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas,
de 1957 até hoje. 10ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.

Informativas sobre vida e obra do autor e sobre a História da América Latina

AIRA, César. Dicionário de autores latinoamericanos. Buenos Aires: Emecé, 2001.


Imbert, E Anderson. Historia de la literatura hipanoamericana. México: Fondo de
cultura, 1986.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América latina. 10ª ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1980.
GALEANO, Eduardo. A descoberta da América que ainda não houve.Ed. da UFRGS/
MEC/ SESu/ PROEDI, 1988.
JOZEF, Bella. Historia da literatura hispanoamericana. 3ª ed. Rio: Francisco Alves,
1989.
http://www.neruda.uchile.cl.

Dos textos do corpus do ensaio

6
Essa obra, que é o ensaio de Pós-doutorado da autora, cotém complementação bibliográfica extensa
sobre Vanguarda, Modernismo , Regionalismo e Regionalidade.

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NERUDA, Pablo. Crepusculário. Tradução de José Eduardo Degrazia. Porto Alegre:
LPM, 2007.
NERUDA, Pablo. Vinte poemas de amor e uma canção desesperada. Tradução de
Domingos Carvalho da Silva . 24ª ed. José Olympio, 2005.
NERUDA, Pablo. Residência na terra I. Tradução de Paulo Mendes Campos. Porto
Alegre; LPM, 1980.
NERUDA, Pablo. Residência na terra II. Tradução de Paulo Mendes Campos.Porto
Alegre: LPM, 2004.
NERUDA, Pablo. Terceira residência. Tradução de José Eduardo Degrazia. Porto
Alegre: LPM, 2007.
NERUDA, Pablo. Canto geral. Tradução de Paulo Mendes Campos. 13. ed. Rio:
Bertrand Brasil, 2006.
NERUDA, Pablo. Memorial de Isla negra. Tradução de José Eduardo Degrazia. Porto
Alegre: LPM, 2007.

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