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Prefácio a Fedra (1677) – Jean Racine

Traduzido por Gustavo Arnt

Eis aqui ainda uma tragédia cujo tema é tomado a Eurípides. Embora eu tenha seguido uma rota um
pouco diferente da que esse autor tomou para conduzir a ação, não deixei de enriquecer minha peça com
tudo que me pareceu mais deslumbrante na sua. Mesmo não devendo a ele mais do que a ideia do caráter de
Fedra, eu poderia dizer que lhe devo o que coloquei de mais razoável no teatro. Não fico espantado que este
caráter tenha tido um sucesso tão feliz no tempo de Eurípides, e que ele seja tão bem aceito em nosso século,
pois ele tem todas as qualidades que Aristóteles demanda ao herói da tragédia e que são próprias a excitar a
compaixão e o terror. Com efeito, Fedra não é nem de todo culpada, nem de todo inocente. Ela é colocada,
por seu destino e pela cólera dos deuses, em uma paixão ilegítima, que lhe causa horror desde o começo. Ela
aplica todos seus esforços para superá-la. Ela prefere deixar-se morrer a declarar sua paixão a alguém, e
assim que ela é forçada a desvendar-se, ela fala com uma confusão que faz ver bem que seu crime é mais
uma punição dos deuses que um movimento de sua vontade.
Eu tive mesmo o cuidado de torna-la um pouco menos odiosa do que ela é nas tragédias antigas, em
que ela se resolve a acusar Hipólito. Cri que a calúnia tinha alguma coisa de muito baixo e de muito negro
(SIC) para colocá-la na boca de uma princesa que tem, aliás, sentimentos tão nobres e tão virtuosos. Esta
baixeza me pareceu mais conveniente a uma ama, que podia ter inclinações mais servis e que, todavia, faz
essa falsa acusação apenas para salvar a vida e a honra de sua senhora. Fedra apenas consente porque está
numa agitação de espírito que a coloca fora de si e retorna um momento depois no desejo de justificar a
inocência e declarar a verdade.
Hipólito é acusado, em Eurípides e em Sêneca, de ter violado sua madrasta. “Vim corpus tulit” (a
violência levou o corpo). Mas aqui ele é acusado apenas de ter tido o desejo. Eu quis poupar a Teseu uma
confusão que lhe teria tornado menos agradável aos espectadores.
Tratando-se do personagem de Hipólito, percebi nos Antigos que eles “reprovavam” Eurípides, por
tê-lo apresentado como um filósofo isento de toda imperfeição; o que causava a morte desse jovem príncipe
causava mais indignação que piedade. Cri dever dar-lhe alguma fraqueza que o tornaria um pouco culpado
para com seu pai, sem, no entanto, tirar-lhe nada de sua grandeza de alma, com a qual ele poupa a honra de
Fedra e se deixa oprimir sem acusar-lhe. Chamo fraqueza à paixão que ele sente malgrado seu por Arícia,
que é a filha e a irmã dos inimigos mortais de seu pai.
Essa Arícia não é de modo algum uma personagem de minha invenção. Virgílio diz que Eurípides
lhe desposara e com ela teve um filho depois que Esculápio o ressuscitou. E eu li ainda em alguns outros
autores que Hipólito havia se casado e levado à Itália uma jovem ateniense de grande nascença, a qual se
chamava Arícia e que tinha dado seu nome a uma pequena cidade da Itália.
Remeto-me a essas autoridades, porque estou escrupulosamente ligado a seguir a fábula. Segui até
mesmo a história de Teseu, tal qual ela aparece em Plutarco.
Foi nesse historiador que encontrei o que me deu ocasião de crer que Teseu descera aos infernos para
resgatar Prosérpina, uma viagem que esse príncipe fizera no Épiro rumo à fonte do Aqueronte, até onde
Pirítoo queria raptar a mulher do rei, que aprisionou Teseu após matar Pirítoo. Assim eu tratei de conservar
a verossimilhança da história, sem nada perder dos ornamentos da fábula, que contribui enormemente à
poesia. E o rumor da morte de Teseu, fundado nessa viagem fabulosa, permite a Fedra fazer uma declaração
de amor que se torna uma das principais causas do seu mal e que jamais ela teria ousado fazer enquanto
cresse que seu marido estivesse vivo.
De resto, não ouso assegurar que esta peça seja com efeito a melhor de minhas tragédias. Deixo ao
leitor e ao tempo decidir quanto ao seu verdadeiro preço. O que posso assegurar é que não compus nenhuma
em que a virtude ressalte tanto quanto nesta. Nela se castigam severamente as mínimas faltas; o mero
pensamento do crime é visto com tanto horror quanto o crime em si; as fraquezas do amor se passam como
verdadeiras fraquezas; as paixões são unicamente exibidas para mostrar toda a desordem que elas causam; e
o vício é pintado com cores que fazem conhecer e odiar sua deformidade. É este propriamente o objetivo
que todo homem que trabalha para o público deve se propor e era o que os primeiros poetas trágicos tinham
em vista antes de mais nada. Seu teatro era uma escola em que a virtude não era menos ensinada que nas
escolas dos filósofos. Assim quis Aristóteles dar regras ao poema dramático e Sócrates, o mais sábio dos
filósofos, não desdenhava lançar mão das tragédias de Eurípedes. Seria desejável que nossas obras fossem
tão sólidas e tão plenas de instruções úteis como a desses poetas. Seria possivelmente um meio de
reconciliar a tragédia com numerosas pessoas célebres por sua piedade e sua doutrina que a condenaram nos
últimos tempos e que a julgariam sem dúvida mais favoravelmente se os autores se propusessem tanto a
instruir seus expectadores quanto a lhes divertir e se perseguissem nisso a verdadeira intenção da tragédia.

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