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Doutrina Política: Social-Democracia

Módulo I: Doutrina Política: Social-Democracia

Introdução

Estamos no início de um curso sobre Doutrinas Políticas Contemporâneas:


Social-Democracia. Convém, assim, esclarecer alguns pontos sobre o
significado do título e a forma do curso.

O que são doutrinas políticas contemporâneas?

Na perspectiva que aqui adotamos, são aquelas correntes de pensamento que


inspiram e orientam os partidos políticos importantes – em termos de influência,
voto e acesso ao poder – no mundo de hoje. Dito de outra maneira, aquelas
correntes que definem os objetivos de partidos atuais e, em alguns casos, os
meios recomendados para alcançar esses objetivos.

O critério, portanto, é prático. Não vamos discutir correntes de pensamento que


alimentaram partidos fortes no passado, mas insignificantes no presente. Não
vamos discutir, por exemplo, uma corrente conservadora, uma vez que hoje
nenhum partido de peso defende o retorno à ordem econômica, social e política
pré-moderna. Pela mesma razão, não discutiremos a corrente anarquista, uma
vez que os partidos dessa tendência perderam peso, nos países onde ainda
eram importantes, no período entre as duas guerras mundiais.

Um esclarecimento final é necessário. Grandes correntes de pensamento


político não são objetos que possam ser estudados a partir de uma definição
clara, unívoca, aceita por todos. Adversários e partidários têm interpretações
diferentes de cada corrente, e mesmo no interior de cada uma delas
encontramos divisões importantes. A seleção de assuntos e autores feita no
curso é, portanto, necessariamente parcial. Escolhemos obras de autores
consagrados que tratam de temas que a maior parte dos novos esquerdistas
considera fundamentais. No entanto, outros temas e autores, talvez tão
importantes quanto esses, ficaram de fora. Vamos discutir, para dizer de forma
mais precisa, uma seleção de temas e autores importantes para esta corrente.
Assim, para que o aluno possa melhor absorver o conteúdo desse curso e
atender aos objetivos a que se propõe, encontra-se disponibilizado em PDF o
livro Partidos políticos brasileiros. Programas e diretrizes doutrinárias,
organizado por Nerione Nunes Cardoso Júnior, editado pelas Edições Técnicas
do Senado Federal.

Módulo I - Social-Democracia

Ao final desta leitura esperamos que você possa:


 distinguir as características principais da social-democracia;
 indicar suas diferenças em relação ao socialismo;

Unidade 1 - Histórico e Características Principais

Para a análise da social-democracia, nesta unidade, tomaremos como texto


base o conjunto de ensaios, já clássicos, de Adam Przeworski, reunidos, em
1985, sob o título Capitalismo e Social-Democracia. Veremos, em sequência,
nesta unidade:
 Origem da social-democracia;
 Estado de bem-estar social.

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A construção da social-democracia
Qual a relevância do fenômeno social-democrata? Em primeiro lugar,
independentemente de suas limitações e falhas, a social-democracia parece
ser a forma predominante de organização política dos trabalhadores em
condições de capitalismo democrático. Se o caminho da insurreição é excluído,
seja por inviável, seja por não conduzir ao socialismo, a via social-democrata
surge como alternativa natural aos que perseguem os objetivos socialistas.
Críticas são necessárias, nessa perspectiva, basicamente como meio de
correção e ajuste de rumos e políticas específicas, dado que o caminho geral,
por exclusão, estaria afirmado. Apenas "corrigindo" a experiência social-
democrata poderíamos chegar ao socialismo.
A própria ideia de analisar erros cometidos para aperfeiçoar as decisões
posteriores implica uma concepção de história e política ausente em outras
manifestações do pensamento socialista. Supõe a existência de condições
objetivas que delimitam uma gama de opções possíveis, assim como a vontade
livre, no interior dessa gama, de um operador político. Aceitar apenas a
objetividade implica recusar a possibilidade de erros: a história leva
necessariamente ao socialismo. Aceitar apenas a vontade, atitude comum nas
diferentes correntes políticas que afirmam o "amadurecimento" completo das
condições objetivas, implica dizer que a mudança não se realiza pela ausência
de intenção de líderes e partidos políticos; não se realiza pela "traição",
portanto. Traição é, segundo o autor, a forma consequente de ver a estratégia
social-democrata em um mundo livre de restrições objetivas.

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Na verdade, a social-democracia consiste num conjunto de escolhas políticas
feitas em momentos cruciais. Outras opções eram possíveis e foram seguidas
pelos "insurrecionalistas" de todos os matizes. Essas escolhas foram:
Primeira – promover o avanço do socialismo no interior do quadro das
instituições políticas e sociais capitalistas;
Segunda – dirigir-se a um conjunto de classes sociais e não só aos operários
como agentes da mudança; e
Terceira – dedicar-se à luta pelas reformas parciais do sistema, de interesse
imediato das classes trabalhadoras.
Esse leque de escolhas exclui, evidentemente, a chamada "ação direta", como
forma única ou preferencial de luta, recusa o monopólio dos operários da
condição de agentes da mudança e nega o caminho que se resume a preparar
um momento singular de ruptura do sistema, como a insurreição ou a "greve
geral revolucionária".

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A decisão mais importante que precede historicamente às demais é a
participação. Não se tratava de uma decisão óbvia, até porque o direito de voto
permaneceu limitado, por muito tempo, segundo critérios de renda e
propriedade. No quadro das democracias liberais de então, os operários não
votavam, e toda sua manifestação política, até aquelas que reivindicavam o
direito de voto, extravasava as instituições estabelecidas e constituía forma de
ação direta.
A questão se põe com ênfase para o movimento no instante em que se
dissipam as ilusões de uma mudança feita por fora da política, à maneira dos
socialistas utópicos, a partir de colônias ou quistos socialistas que por simples
efeito-demonstração se difundiriam, acabando por tomar conta do corpo
capitalista. Desde esse momento, é necessário optar: ou se recusa a
participação e se combatem as instituições, ou o voto é aceito como mais uma
arma do arsenal dos trabalhadores.unid1pag4
A questão subjacente, de forma alguma trivial, é se a burguesia respeitaria o
resultado de um processo democrático que contrariasse seus interesses vitais.
À vitória eleitoral socialista seguir-se-ia o golpe da reação? A dúvida perdurou
por décadas, uma vez que em 1926, após seis décadas de debate, os social-
democratas austríacos ainda se sentiam no dever de alertar que respeitariam a
ordem constitucional, mas que a reação golpista da direita, caso ocorresse,
seria reprimida de forma ditatorial.
Clique aqui, e leia sobre a importância do voto.

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De qualquer maneira, no que respeita a essa questão, os anarquistas
posicionaram-se de imediato contra sua participação. A seu ver, a miragem das
eleições domesticaria o movimento dos trabalhadores, levando-o a abandonar
seu propósito revolucionário.
A linhagem alternativa, que deu origem a socialistas e comunistas, optou pela
participação. No início, sem muita expectativa: eleições eram vistas como
terreno propício à propaganda e ao recrutamento de novos militantes; ou, no
máximo, como indicador do ânimo dos trabalhadores para encarar a
insurreição.
No entanto, a participação é mecanismo dotado de lógica própria, que não
permite meio termo. No início, os socialistas participavam apenas das eleições;
não faziam acordos relativos ao segundo turno ou à partilha de cargos das
mesas dos parlamentos. Participar em governos de coalizão sequer era
cogitado. Aos poucos, a consciência de que as regras do jogo constitucional
deveriam ser aceitas ou recusadas na íntegra levou-os a fechar acordos,
participar das mesas e, em 1924, a assumir o governo na Grã-Bretanha.
Mesmo então, esse passo foi polêmico e teve que ser justificado com o
argumento da experiência a se ganhar, necessária a um futuro governo
suficientemente majoritário, capaz de implementar o programa de mudanças.
Clique aqui, e saiba mais sobre os anarquistas.

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Na verdade, à medida que a pura abstenção política e a participação restrita se
revelavam inviáveis, os trabalhadores começaram a valer-se da estrutura
partidária social-democrata para atender a seus interesses particulares de
classe. Afinal, no capitalismo, os capitalistas participam diretamente das
decisões relativas à economia, particularmente no que se refere à alocação
produtiva do lucro e à distribuição do excedente entre salários e lucros. Nessas
questões, "votam" todos os dias, produzindo tendências que revelam os efeitos
combinados do conjunto das decisões individuais.
Já os trabalhadores, impossibilitados de atingir seus objetivos de forma direta
no mercado, devem recorrer a instituições como sindicatos e partidos. Sendo
assim, a democracia política e o sufrágio universal passam a ser tratados pelo
movimento operário como corretores das disparidades distributivas que o
mercado propicia.
Durante alguns anos conviveram ambas as táticas, a institucional e a ação
considerada direta. Sem dúvida, contribuiu para a predominância da primeira
opção o fato de as greves gerais deflagradas para a obtenção dos direitos
políticos, o sufrágio universal masculino, haverem sido vitoriosas onde
ocorreram, como na Bélgica e na Suécia. Ao mesmo tempo, todas as greves
gerais desencadeadas com objetivos econômicos, com potencial para evoluir
para uma situação de "greve geral revolucionária", entre o final do século XIX e
as primeiras décadas do século XX, foram derrotadas, com perdas duradouras
para o movimento operário.

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Nas palavras de Kautsky, teórico e dirigente da social-democracia alemã, a
própria luta econômica requer direitos políticos e “estes não caem do céu”. Ou
seja, a participação era necessária. Tornava-se necessário ao partido organizar
os trabalhadores como classe, ou seja, organizá-los para votar como
trabalhadores.
A opção pela participação envolvia riscos. O consentimento dos trabalhadores
às instituições políticas do capitalismo poderia levar a seu fim ou apenas
contribuiria para reforçá-lo? Um claro antagonismo era percebido entre os
objetivos estratégicos e táticos do movimento: a superação do capitalismo
exigia um forte movimento de massas, mas um movimento de massas, por sua
vez, exigia atenção e prioridade para reivindicações menores e mais prosaicas,
ligadas ao cotidiano do trabalhador.
Outros complicadores apresentavam-se ao movimento social-democrata,
segundo o autor. O voto coloca o eleitor na sua condição de indivíduo, sendo
uma prática política que tende, portanto, a obscurecer o caráter de classe da
ação política. O próprio instituto da representação constituía problema na
tradição do movimento, problema que a democracia de conselhos ou comunas
tendia a controlar com a eventual demissão de representantes e com o
mandato imperativo. Mesmo o surgimento espontâneo desse tipo de
democracia nas insurreições operárias conhecidas comprova a relação tensa
entre o movimento e o instituto da representação.
Por outro lado, participar regularmente em eleições implicava, como ainda
implica, construir uma máquina partidária eficiente, com uma burocracia forte
que inevitavelmente passa a preponderar nas decisões partidárias, levando o
movimento a uma tendência de aburguesamento. Além disso, a opção eleitoral
tem como consequência lógica o abandono dos instrumentos característicos da
ação direta. A continuidade do seu uso provoca a desconfiança e rejeição do
eleitor, além de fazer pesar a suspeita de oportunismo: “voto quando somos
maioria, insurreição quando somos minoria”.
Finalmente, o recurso continuado aos instrumentos da democracia fortaleceu a
tendência no movimento a considerar o socialismo a sequência lógica da
democracia, sua simples extensão para os planos econômico e social. A
democracia passa então do status de instrumento de luta, de meio, para a
consecução de um determinado fim, o socialismo, para o de um valor a ser
preservado e ampliado na nova sociedade. A revolução operária não eliminaria
a obra da Revolução Francesa, mas a terminaria.
É preciso assinalar a presença de um elemento de cálculo estratégico na
adesão do movimento operário às regras do jogo eleitorais. Conforme a
ortodoxia marxista, os operários viriam a constituir a maioria da população, em
todos os países capitalistas. Afinal, para expandir-se, obedecendo a sua lógica
imanente, o capitalismo precisava de um número crescente de operários. O
sistema criava seus próprios coveiros, na conhecida expressão de Marx.
Assim, cedo ou tarde chegaria o momento em que os partidos operários
representariam a maioria da população e contariam com a grande maioria dos
votos.

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Nessa perspectiva, a questão da insurreição perde sentido, dado que o
movimento encontrava-se fadado a tomar o poder pelo voto, em condições de
sufrágio universal. Essa interpretação encontra fundamento até em algumas
passagens de Engels, que afirmam a república democrática como a forma por
excelência da ditadura do proletariado.
Os dados pareceram indicar durante muito tempo o acerto dessas previsões.
Retirados da ilegalidade e conseguido o sufrágio universal, todos os partidos
socialistas europeus viram sua votação crescer exponencialmente, entre o fim
do século XIX e a segunda década do século XX. Entre 1905 e 1925, uma boa
parte deles alcançou seu auge eleitoral, uma maioria relativa situada em torno
dos 40% dos votos.
Até esse momento, convém lembrar, esses partidos dirigiam-se prioritária ou
mesmo exclusivamente à classe operária. No Partido Trabalhista Britânico, até
mesmo a filiação individual de um membro de outra classe foi vetada pelos
sindicatos até 1918.
Havia razões de ordem teórica para essa opção. Para Marx, a centralidade dos
operários, na condição de atores políticos da mudança, devia-se a duas
razões: sua condição de classe explorada no regime, diretamente interessada
em sua superação; e sua capacidade, única fora da burguesia, de organizar a
produção.
No entanto, havia também razões de ordem prática ao menos tão importantes
quanto as teóricas.
Em primeiro lugar, a competição econômica campeava entre os operários,
assim como entre os capitalistas, e sua superação era condição indispensável
ao aumento da eficiência do conflito contra a classe capitalista. Daí a
necessidade de organizar um partido político identificado com a classe que
demandasse o voto do trabalhador na condição de trabalhador.
Em segundo lugar, a ausência de um partido desse tipo facilitaria, na
sociedade burguesa, a integração dos operários como indivíduos, votando
conforme demandas de outra ordem – regionais, religiosas, ou outra qualquer.
Por isso era importante demarcar a classe operária da “massa reacionária”
constituída pelas demais classes.
Finalmente, o partido voltado para a classe era necessário para superar o viés
imediatista e antipolítico dos trabalhadores, sempre interessados no confronto
direto com o seu empregador, mas desconfiados do mundo da política.

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No entanto, essa concentração classista dos partidos operários teve que ser
alterada por imposição do processo eleitoral. Com efeito, a classe operária,
contrariamente às previsões de Marx, jamais chegou a constituir a maioria
estável da população em qualquer país capitalista. Após seu momento de
auge, quando, como vimos, se aproxima da metade da população total, perto
da passagem do século, a participação dos operários, no sentido clássico do
termo, na população cai constantemente. Em 1968 representavam 25% da
população francesa; em 1971, 20% da população belga, para ficar apenas em
dois exemplos expressivos.
A economia havia mudado. O crescimento, não antecipado pela teoria, do setor
de serviços demandava cada vez mais trabalhadores. A nova legislação,
resultado do empenho dos socialistas, fazia aumentar também a importância
de estudantes e aposentados na população total. Em suma, a previsão de Marx
de uma sociedade no rumo da simplificação da estrutura de classes, com uma
burguesia cada vez menor e mais rica, confrontada com uma massa operária
majoritária e empobrecida, não se verificara.
A nova situação deixou aos partidos social-democratas uma alternativa difícil.
De um lado, era possível preservar a homogeneidade social, a pureza de
classe, o que implicava resignar-se à condição de minoria eleitoral. De outro
lado, também era possível ultrapassar os limites da classe operária e dirigir o
apelo político e eleitoral do partido a outras classes e camadas da população,
percebidas como aliadas conjunturais dos operários. A soma dos votos
tradicionais dos socialistas com os dos aliados de classe permitia pensar na
maioria nas eleições.
É preciso assinalar que esta última alternativa não implica necessariamente, ao
menos na percepção de dirigentes e militantes da época, o abandono dos
objetivos finais do movimento. Significava apenas reconhecer que, ao contrário
da assertiva de Marx, a emancipação dos trabalhadores não seria obra
exclusiva dos próprios trabalhadores.
De fato, à medida que a progressão eleitoral dos partidos social-democratas
estagnava, a opção pelo pluriclassismo se impôs. Os partidos passaram a
dirigir-se ao povo, às classes populares, focalizando sua crítica num pequeno
número de grandes capitalistas e especuladores. Os limites da categoria povo
eram amplos o suficiente para abarcar perto de 90% da população desses
países.
A social-democracia nunca chegou a percentuais similares de votos. Sua
estratégia atraiu parte dos membros das classes populares, mas não todos.
Paralelamente, parece haver-se estabelecido um círculo vicioso entre o apelo à
classe e o apelo ao povo. Quanto mais os partidos modificavam seus discursos
para atrair o voto de camponeses, trabalhadores de colarinho branco,
funcionários públicos, intelectuais, maior a perda de seus votos operários
tradicionais. No que parece ter sido um dos pontos culminantes do processo, a
eleição britânica de 1979, 50% dos operários votaram nos conservadores.

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A busca da maioria encontrava-se, aparentemente, bloqueada nas duas
alternativas eleitorais. A opção classista estava condenada à maioria, dado que
a classe operária tendia a perder participação na população total. A opção
popular, por sua vez, produzia uma perda de votos antigos que
contrabalançava a conquista dos novos.
Mas quais as razões desse fenômeno?
A primeira e mais evidente razão é a concentração em objetivos comuns aos
operários e outros integrantes da coalizão. A política popular dirige-se aos
interesses da maioria do povo: operários são contemplados, não na sua
especificidade de classe, mas como cidadãos de baixa renda, usuários dos
serviços públicos, consumidores e contribuintes, por exemplo. Os interesses
próprios dos trabalhadores passam a um segundo plano.
Há uma segunda razão, de caráter menos imediato. O discurso da opção
popular interpela os eleitores como indivíduos, solicita sua escolha numa arena
política neutra, voltada para o bem comum. Esse tipo de apelo enfraquece a
identidade de classe e libera os operários a votar conforme as exigências de
outros princípios, como região, religião e outros.

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Essas questões, no entanto, não foram antecipadas pelas lideranças que
encaminharam os partidos social-democratas ao rumo do bloco de classes.
Para eles, permanecia a validade do objetivo final do movimento: a abolição da
propriedade privada, fonte da irracionalidade e da injustiça presentes na
sociedade capitalista. Para eles, a luta por objetivos específicos, de interesse
das classes populares, não constituía desvio em relação a essa meta, mas a
construção do caminho que levaria a ela. O socialismo como etapa seguinte ao
capitalismo era visto como inevitável, e os ganhos do movimento, de fundo
popular ou operário, eram irreversíveis e acumulativos. Na expressão de
Jaurès, líder do socialismo francês, a transição para a nova sociedade poderia
ser comparada à passagem de um navio pela linha do Equador: lenta,
inexorável e imperceptível.
A seguir, examinaremos a feição que a social democracia adotou a partir da
década de 1930.

Unidade 2 - O Estado do bem-estar social

É preciso ressaltar ainda que, naquele momento, a social-democracia carecia


de uma política econômica própria. Partilhava com os partidos burgueses da
crença no padrão-ouro, na necessidade do equilíbrio orçamentário. Mesmo as
iniciativas de aumento salarial eram ponderadas com a necessidade de manter
o lucro em patamares que garantissem o investimento futuro e a geração de
novos empregos. O traço diferencial dos partidos social-democratas estava
numa parcialidade distributiva em favor dos operários, seja diretamente, seja
pela via popular. As medidas distintivas típicas eram a luta por um salário
mínimo, políticas habitacionais, seguro-desemprego, tributação progressiva
sobre a renda e a herança. Todas tiveram como resultado final a melhoria das
condições de vida dos trabalhadores.
Do marxismo o movimento herdara basicamente os argumentos da crítica ao
capitalismo. Propostas efetivas de como proceder para sua superação
resumiam-se à transferência da propriedade dos meios de produção para a
coletividade: a nacionalização. No entanto, embora o período entre as duas
guerras mundiais tenha testemunhado a ascensão de diversos partidos
socialistas ao poder, nada se fez, praticamente, no sentido dessa grande
diretriz.

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Duas razões estariam na origem dessa omissão.
A primeira razão, uma ambiguidade conceitual quanto ao que fazer.
Nacionalizar, ou seja, passar o controle para o Estado, ou socializar,
entregando a empresa à gestão dos trabalhadores que operam aquela unidade
particular de produção? Os partidos dividiram-se nessa questão, alguns
enfatizando mais o aspecto planificador da propriedade estatal e outros o
componente autogestionário. Aos olhos dos socialistas, contudo, essa última
alternativa não poderia ser vista como definitiva, pois solucionava apenas a
contradição interna à empresa, entre capitalistas e operários, mas não o
conflito entre aquela unidade e o conjunto dos consumidores.
A segunda razão encontra-se no fato de os socialistas haverem assumido o
governo na condição de minoria ou na liderança de uma coalizão com outros
partidos, contrários à política de nacionalização. Nessa situação, impõe-se a
escolha entre dois caminhos. O primeiro é perseguir a nacionalização, o
objetivo final, apesar da condição de minoria. A derrota subsequente teria
utilidade pedagógica, ensinando às massas a identidade de seus aliados e de
seus inimigos, preparando o advento de um governo socialista majoritário.
Essa posição foi implementada apenas uma vez, em 1928, na Noruega, por um
governo socialista que durou três dias. O segundo caminho é o das reformas, o
da mudança do capitalismo a prestações, até o dia em que a maioria se volte
para os partidos socialistas e as nacionalizações possam ser efetuadas.
Essa situação de carência de uma teoria econômica específica perdura até a
década de 1930. Após a crise de 1929, uma série de políticas anticíclicas é
implementada em diversos países. Seu fundamento teórico foi formulado por
Keynes, e o caso mais conhecido é o New Deal americano. No entanto, na
mesma época, os governos socialistas da Noruega, Suécia e França iniciavam
políticas de estímulo a demandas similares.
Clique aqui, e saiba mais sobre o New Deal Americano.

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Criou-se um novo paradigma, no qual cabia ao Estado gerenciar o nível de
demanda, seja mediante uma política de pleno emprego, seja pelo gasto
público direto em obras de qualquer espécie. Aceitava-se um certo montante
de déficit público, a economia assim aquecida saía da crise e iniciava-se um
novo ciclo expansionista. No momento posterior, de prosperidade, procurava-
se o equilíbrio das contas públicas.
A afinidade entre keynesianismo e social-democracia foi imediata e duradoura.
Essa perspectiva permitia pensar a congruência entre os interesses
particulares dos trabalhadores e os interesses gerais da sociedade. Aumentar a
renda dos trabalhadores era a receita para fazer a economia crescer e
beneficiar a todos. Os interesses populares, de todas as classes e grupos
aliados, aparentavam uma afinidade, até então oculta, com os interesses da
classe operária.
Clique aqui e saiba mais sobre o mundo pós-primeira guerra

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Para aperfeiçoar ainda mais os seus conhecimentos sobre a Primeira Guerra
Mundial, assista ao vídeo abaixo.

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KeynesA assimilação do enfoque keynesiano à política econômica dos
socialistas no poder marca o início do que se convencionou chamar Estado do
bem-estar social. Não se trata mais de implementar reformas pontuais
enquanto se aguarda o momento propício à nacionalização massiva. Criou-se,
na verdade, um novo modelo, com a ambição de domesticar o capitalismo, em
benefício de trabalhadores e consumidores. O papel ativo que o Estado passou
a ter permitiria evitar a crise econômica e compensar os danos sociais do
sistema, sem necessidade da nacionalização completa da atividade
econômica.
O modelo, de grande aplicação na Europa, após a segunda guerra, apoiava-se
em três pilares.Até esse momento, convém lembrar, esses partidos dirigiam-se
prioritária ou mesmo exclusivamente à classe operária. No Partido Trabalhista
Britânico, até mesmo a filiação individual de um membro de outra classe foi
vetada pelos sindicatos até 1918.
Em primeiro lugar, a presença do Estado como agente econômico, como
provedor dos insumos fundamentais à economia, a preços módicos. Tornou-se
comum o monopólio público em setores como crédito, aço, carvão, energia,
transportes e comunicações. Todos eles estratégicos e de baixa rentabilidade
para o capital privado. Entre os poucos casos de presença estatal em
indústrias de bens de consumo, cabe citar, por sua relevância, a produção de
automóveis.
Em segundo lugar, a promoção de políticas anticíclicas de prevenção e
regulação de crises econômicas. Aqui o Estado age como controlador da
demanda, normalmente suprindo-a, mediante geração direta ou indireta de
postos de trabalho.
Clique aqui, e saiba mais sobre Keynes.

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O terceiro pilar é a construção de uma rede de proteção que pretendia nada
menos que a segurança absoluta para todo cidadão, “do berço ao túmulo”.
Integram essa rede as políticas de saúde, previdência, assistência social,
habitação, transporte, educação, assim como todas as demais que o Estado
utilize para o incremento da segurança e do bem-estar de sua população.
A rede de segurança tem o objetivo de sanar as sequelas sociais do
capitalismo. A presença do Estado na produção e na regulação do mercado
imprimiria racionalidade a esse espaço, evitando a crise, ao menos a crise
prolongada. Os capitalistas seriam induzidos a investir os seus lucros nos
setores considerados pelo Estado como importantes para a eficiência do
sistema. No limite, operariam como funcionários da coletividade.
O modelo supõe a possibilidade de os trabalhadores fazerem uso do Estado,
em que cada pessoa representa um voto, para corrigir as distorções do
mercado, esfera na qual o peso nas decisões é proporcional ao montante de
recursos que cada um possui. A política prevaleceria, garantindo a justiça e a
eficiência que o mercado seria incapaz de prover por períodos continuados.
A experiência da social-democracia na aplicação desse modelo trouxe à tona
suas limitações estruturais. Na verdade, equidade e eficiência não são
objetivos sempre compatíveis, mas muitas vezes até antagônicos. Em casos de
tensões e conflitos aparece a principal barreira limitadora: a dependência da
disposição do capitalista para o investimento.

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O modelo depende do crescimento econômico, este do investimento e este
último, por sua vez, do lucro e da expectativa de sua continuidade. Na hipótese
de resistência ou desconfiança dos capitalistas, estes, a rigor, não precisariam
sequer conspirar contra o governo: bastar-lhes-ia deixar de investir, para
provocar em pouco tempo uma crise desestabilizadora, de consequências
fatais para o governo.
Esse o dilema que atormenta os governos socialistas empenhados numa
transição sistêmica, na superação do capitalismo por uma nova ordem
econômica e social. Qualquer passo no sentido da nacionalização, da restrição
dos mercados, retira os capitalistas da base de apoio ao governo e gera um
momento de desorganização da produção. Essa crise tem seu ônus, em
empregos e salários, e a classe trabalhadora não se mostrou historicamente
disposta a suportá-los, mesmo com o aceno de benefícios futuros até mais
substanciais.
A crise é inevitável nessa situação. Um governo eleito com promessas de
mudanças deve satisfazer as demandas dos diversos grupos de apoio a que
deve a vitória. Esse leque de demandas pode ser atendido por um número
limitado de meios: distribuição direta de renda, uso da capacidade produtiva
ociosa, gasto das reservas internacionais e redução da taxa de lucros.
Segundo Przeworski, os três primeiros sempre se mostrarão insuficientes, de
maneira que a pressão no sentido da redução da taxa de lucros é inevitável.
Nesse momento ocorre a reação empresarial. Obrigados pela instância política
a manter salários e empregos em montante maior que o necessário, aumentam
seus preços, gerando inflação. Caso se imponham controles diretos sobre os
preços, cessa a produção e surge uma situação de escassez. Processos com
esse roteiro aproximado observaram-se na França, em 1936; em Portugal, na
Revolução dos Cravos; e no Chile de Allende.
A conclusão do autor é da impossibilidade da mudança de sistema por meios
democráticos. A perda inicial que os trabalhadores experimentam determina a
retirada de seu apoio ao governo partidário da mudança, deixando-o debilitado
para enfrentar com sucesso a reação conservadora. A melhor solução para os
trabalhadores seria persistir no compromisso social-democrata, assegurar os
ganhos possíveis em troca da renúncia à revolução social. Afinal, somente
esse modelo assegurou, historicamente, a convivência entre capitalismo e
democracia.
Ao estudar o histórico e as características principais da social-democracia,
detivemo-nos nas opções fundamentais que levaram, com o tempo, a sua
distinção em relação à corrente socialista tradicional. Em seguida, discutimos
as características principais do produto de engenharia política que se associou
à social-democracia a partir da década de 1930 e, principalmente, no pós-
guerra: o conjunto de políticas econômicas e sociais que veio a ser conhecido
como Estado do bem-estar social.
No próximo módulo vamos abordar as bases que tornaram possível o
compromisso que é esse tipo de estado: o Estado do bem-estar social.
Doutrina Política: Social-Democracia

Módulo II: Bases materiais do compromisso social-democrata

Unidade 1 - Capitalismo e Democracia

Como vimos, uma das idéias correntes nos primórdios do movimento socialista
era a crença na incompatibilidade, no médio e longo prazo, entre capitalismo e
democracia. A existência simultânea desses dois elementos era considerada
intrinsecamente instável. Numa situação como essa, a classe dominada
procuraria de imediato estender sua emancipação política para o campo social,
o que implicaria a eliminação do capitalismo. A burguesia, por sua vez, trataria
de restabelecer a congruência ampliando a sujeição social dos operários para a
esfera da política, limitando, sempre que possível, o sufrágio aos ricos e
proprietários, e eliminando, assim, a democracia.

Na base dessa análise se encontra a constatação de que o conflito de


interesses que opõe operários e patrões é insanável. Afinal, a relação entre
ambos é de exploração, em que salário e lucro são resultados de um jogo de
soma zero, e uma mudança qualitativa da situação de vida dos operários
somente é possível por meio da superação revolucionária do sistema
capitalista, numa ordem de novo tipo, de caráter socialista.

No entanto, a experiência mostrou que capitalismo e democracia conseguiram


conviver, por períodos de tempo bastante extensos, sob determinadas
condições.

Onde se encontraria a falha na argumentação de Marx e dos primeiros


socialistas?

Conforme Przeworski, encontra-se nas conclusões equivocadas que foram


retiradas dessa análise, em linhas gerais correta, a saber:

Primeira: embates em torno de interesses materiais levam a conflitos sobre a


forma de organizar a sociedade;

Segunda: o sufrágio universal tem o dom de incrementar a luta de classes e o


capitalismo só consegue se manter pela força; e

Terceira: o caminho para o socialismo passa pelas crises do capitalismo.

Pois bem, é evidente que a longa convivência do capitalismo com o sufrágio


universal não quer dizer que a exploração de uma classe sobre outra, no
sentido preciso da apropriação do trabalho excedente, tenha terminado.
Apenas, essa exploração conta com o consentimento daqueles que a sofrem.
Quais as razões desse consentimento? Essa a pergunta que Przeworski tenta
responder nos ensaios discutidos nesta unidade.

Unidade 2 - Razões da hegemonia da classe capitalista

1. Razões da hegemonia da classe capitalista

A pergunta sobre as razões da persistência do capitalismo já havia norteado as


reflexões de Gramsci. Para esse autor, a operação de diversos mecanismos no
plano ideológico garantia a produção do consentimento ativo dos explorados.
Não se trata, no entanto, de uma questão de ilusão coletiva, que o trabalho
pedagógico dos militantes, informado pela ciência, pode por si só dissipar.
Qualquer ideologia subsiste apenas quando dispõe de bases materiais para
tanto.

A questão pode ser formulada, portanto, da seguinte maneira: quais as bases


materiais, as condições objetivas, da hegemonia da classe dos capitalistas?

De pronto, é preciso reconhecer que os interesses dos explorados devem ser,


de alguma forma, contemplados. Em outras palavras, a determinação da taxa
de lucro situa-se entre dois limites: o montante do lucro não pode ser pequeno
a ponto de inviabilizar o investimento e o crescimento econômico futuro; mas
tampouco pode ser grande a ponto de deixar o salário do trabalhador no nível
da subsistência, sem contemplar algo do seu interesse material.

Para tornar a argumentação mais precisa é necessário deixar explícitos alguns


dos conceitos utilizados. Duas são as características básicas do capitalismo,
para fins da análise. Em primeiro lugar, a produção dirige-se a terceiros, ao
mercado, o que significa dizer que os produtores diretos não são auto-
suficientes, mas dependentes. Em segundo lugar, os capitalistas são
proprietários do lucro e monopolizam as decisões sobre o seu destino, ou seja,
sobre a alocação de recursos na economia, a cada momento.

De acordo com essas definições, a exploração dos trabalhadores é a mesma


coisa que a lucratividade e produtividade do sistema. O ponto importante é que
o lucro, ou seja, o interesse particular do capitalista, é condição da realização
do interesse de todas as demais classes da sociedade. Todas dependem do
crescimento, este depende do investimento, que, por sua vez, provém do lucro.
Daí que os capitalistas possam aparecer como portadores do interesse
universal daquela sociedade.

Esse ponto é de particular significação, pois implica reconhecer, conforme o


autor, que a oposição entre interesse presente e futuro dos operários é
inevitável. A perseguição dos interesses de longo prazo dos trabalhadores, ou
seja, a mudança do sistema, não pode ser empreendida sem contrariar de
imediato os interesses presentes do capitalista. Estes, numa situação de
incerteza quanto à continuidade do lucro, suspendem o investimento, impondo
perdas pesadas à sociedade, em particular aos trabalhadores, que vêem
diminuir, de imediato, os salários e o montante de empregos.

Para evitar essa perda imediata, trabalhadores acedem ao compromisso com o


sistema, renunciam a sua subversão, em troca de determinadas condições. Em
primeiro lugar, os capitalistas em seu conjunto devem ser alocadores eficientes
do lucro. Em outras palavras, devem dirigi-lo ao investimento produtivo, de
maneira a gerar empregos. Devem, portanto, evitar aplicações improdutivas, o
consumo conspícuo, além de, evidentemente, sua transferência a outro país.

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Aplicado o lucro da maneira mais eficiente possível, encontra-se montado o


cenário para um conflito distributivo de resultado incerto. Aqui se produz a
segunda condição necessária ao consentimento: a expectativa de uma
progressão salarial dos trabalhadores.

Em síntese, o argumento do autor postula que enquanto perdurar a alocação


eficiente do lucro, de forma a gerar novos empregos, e a expectativa de
aumento continuado nos salários for razoável, é racional para os trabalhadores
optar pela manutenção do sistema, uma vez que o caminho da mudança impõe
perdas certas no curto prazo.

Alcançado esse compromisso, os salários não se manteriam no nível da


subsistência, como pensava Marx, mas no patamar necessário à preservação
do consentimento ativo dos trabalhadores com a exploração. A ausência de um
compromisso desse tipo ou sua ruptura teria como consequência o impasse
político e, no limite, o recurso exclusivo à coerção na esfera da política.
Historicamente é o que parece haver-se verificado naqueles países europeus
que enfrentaram greves gerais por motivos econômicos nas primeiras décadas
do século. Em casos como esse, passa a valer a relação, afirmada por Marx,
de incompatibilidade, no médio prazo, entre capitalismo e democracia.

Clique aqui, e saiba mais sobre Marx e o capitalismo.

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Ou seja, quando o capitalista desvia o lucro do investimento e fecha qualquer


possibilidade de melhora da renda do trabalhador, a opção racional é a ruptura,
no rumo do socialismo. Essa escolha não seria racional, nesse caso, apenas
se o socialismo se revelasse, no futuro, menos eficiente que o capitalismo ou
se as perdas que o caminho da mudança impõe levassem os trabalhadores a
uma situação material ainda pior que aquela provocada pelas condições
capitalistas menos favoráveis.

Vimos, nesta unidade, as bases materiais do compromisso social-democrata.


Necessitam estas atender a duas expectativas dos trabalhadores. A primeira é
a alocação eficiente do lucro, de maneira a gerar mais empregos. A segunda é
a progressão salarial de maneira a que a remuneração do trabalho supere o
nível de subsistência e apresente tendência crescente. Dadas essas
condições, seria racional para os trabalhadores abdicar de seu interesse de
longo prazo, a substituição da organização capitalista pelo socialismo. Na
próxima unidade vamos examinar as razões da crise do Estado do bem-estar
social, iniciada na década de 1970.
Doutrina Política: Social-Democracia

Módulo III: Razões da Crise da Social-Democracia

Nas quatro unidades seguintes estudaremos:

 crise da social-democracia;
 características da social-democracia clássica e do neoliberalismo e sua
confrontação;
 razões do sucesso social-democrata até os anos 70;
 mudanças necessárias ao modelo.

Unidade 1 - A crise da social-democracia

Discutimos na última unidade a análise adiantada por Przeworski a respeito


das bases materiais do compromisso social-democrata, análise praticamente
contemporânea a seu objeto. Debateremos agora uma abordagem da crise que
se abateu sobre o paradigma social-democrata, desenvolvida por Giddens em
1999, com o benefício, portanto, de uma distância temporal maior dos
acontecimentos sob exame.

Para Giddens, a onda de governos liberais que se seguiu ao final da década de


1970 demonstrou cabalmente o esgotamento das políticas implementadas até
então pela social-democracia. O mundo mudara e a esquerda demorou a dar-
se conta da mudança. Talvez somente a queda do muro de Berlim tenha
despertado a esquerda do seu torpor, apenas para mergulhá-la na incerteza e
na perplexidade.

O fato é que o socialismo, na condição de portador de um programa econômico


específico, teve fim. A questão passa a ser quais os meios, quais as políticas a
propor para alcançar os valores tradicionais da esquerda? Como assegurar a
igualdade num contexto de prosperidade? Reconhecida a impossibilidade de
eliminar o mercado e a dificuldade de domesticá-lo no velho estilo, como
conviver com ele? Como utilizar sua capacidade de emitir constante e
automaticamente informações necessárias às decisões na esfera econômica e
evitar as sequelas sociais de seu funcionamento? Essas as questões
fundamentais postas, no entendimento do autor, a uma esquerda de novo tipo,
que se disponha a administrar as mudanças em curso no mundo a partir de sua
perspectiva de valores.

A nova direita, os partidários irrestritos do mercado, também enfrenta


contradições e dificuldades. Em primeiro lugar, a crença, não verificada até o
momento e pouco plausível no futuro, de que o mercado solucionará, sempre,
no médio prazo, os desequilíbrios sociais que gera no curto prazo. Em segundo
lugar, a contradição latente entre o liberalismo econômico e o conservadorismo
no plano dos costumes, da vida pessoal. Qual a razão de postular, como fazem
os conservadores britânicos e os republicanos americanos, indivíduos
autônomos na esfera econômica, mas sujeitos à autoridade da tradição nas
esferas da família, da nação, da arte e da ciência?

Giddens expõe seu entendimento acerca da crise do modelo social-democrata


em dois momentos. No primeiro, apresenta elementos fundamentais que
caracterizam, a seu ver, as posições da velha esquerda social-democrata e da
nova direita neoliberal. No segundo, analisa as premissas do sucesso social-
democrata e indaga de sua continuidade ou não no presente.

Unidade 2 - Características da social-democracia clássica

a) Envolvimento difuso do Estado na vida social e econômica

Decorre diretamente da afirmação das duas principais funções do Estado que


operam no sentido de manter o compromisso: prevenir a crise econômica e
remediar as mazelas sociais.

b) Domínio da sociedade civil pelo Estado

A social-democracia clássica manifestava desconfiança aguda em relação às


organizações da sociedade civil. A ação do Estado dispensava as iniciativas de
quaisquer grupos de cidadãos organizados, por ser a princípio mais eficiente,
uma vez que era sempre melhor informada e mais representativa, fazendo
prevalecer os interesses da coletividade sobre qualquer tipo de particularismo.

c) Coletivismo

A satisfação das necessidades humanas de maneira igualitária leva à ênfase


em soluções coletivas. A discussão feita pelo sociólogo Marshall a respeito da
progressão dos direitos sociais enfatiza particularmente esse ponto.

d) Administração keynesiana da demanda

Abordamos esse tópico algumas vezes em módulos anteriores. Resta assinalar


que, para Giddens, encontra-se associado a outro traço: o corporativismo. O
processo decisório passou a girar, cada vez mais, em torno do tripé Estado,
empresários e trabalhadores, estes últimos representados por suas entidades
de classe.

e) Mercado restrito

Trata-se do tema da domesticação do mercado, seja pela via da propriedade


pública sobre setores relevantes da economia, seja pelo direcionamento das
decisões dos capitalistas, via políticas de estímulo positivo ou negativo, a
rumos compatíveis com o interesse da coletividade.

f) Pleno emprego

É a meta permanente no horizonte social-democrata. Tem um peso significativo


na agenda do pacto, pois, como vimos, contribui para a igualdade e é condição
do financiamento do Estado do bem-estar social, pois implicaria,
simultaneamente, o número ótimo de cidadãos contribuintes e o número
mínimo de cidadãos beneficiários.

Para saber mais sobre Thomas Humphrey Marshall, leia o artigo de Paula
Julieta Jorge de Oliveira, publicado pela OAB. Clique aqui

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Em contraste, a alternativa liberal que começou a confrontar a social-


democracia com sucesso, a partir dos anos 1970, pode ser caracterizada por
suas posições contrastantes em relação aos mesmos pontos anteriormente
arrolados.

2. Características do neoliberalismo

a) Governo mínimo

O eixo da plataforma liberal, que considera o Estado fonte de ineficiência,


corrupção e autoritarismo. Preconiza-se sua substituição, sempre que possível,
pela livre iniciativa dos cidadãos.

b) Sociedade civil autônoma

É o corolário do ponto anterior. Indivíduos devem assumir a iniciativa nas


esferas social e econômica de maneira isolada ou na forma de associações
voluntárias. Empresas são veículos da livre iniciativa, mas também o são todas
as associações que reúnem os indivíduos para fins outros que não o lucro.

c) Fundamentalismo de mercado

O mercado, campo de interação das iniciativas individuais na esfera


econômica, tem a capacidade de sempre produzir a melhor solução possível,
se não de imediato, no médio prazo. A intervenção premeditada do Estado
distorce o funcionamento dos mecanismos de mercado, de forma que, embora
os efeitos desejados sejam atingidos no curto prazo, suas consequências
deletérias devem fazer-se sentir posteriormente. Em todo caso, o balanço geral
acusaria sempre uma situação inferior à ótima.

d) Individualismo econômico com autoritarismo moral


As propostas neoliberais articulam, normalmente, a aprovação da autonomia
individual no plano econômico com o respeito à tradição no plano moral. Como
já assinalado, há um antagonismo latente entre ambas as posições.

e) O mercado de trabalho como um mercado a mais

O fato de o mercado de trabalho colocar em jogo a sobrevivência de indivíduos


e famílias não deve ser motivo para um tratamento excepcional, com uma
margem maior de intervenção do Estado sobre ele. Em outros termos, o Estado
não deve obstar a perda de renda de determinados grupos, desfavorecidos por
uma mudança na conjuntura. Todo emprego ou salário artificialmente
preservado pesa sobre a sociedade como um todo e se reflete em perda de
sua competitividade.

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f) O elogio da desigualdade

A desigualdade é considerada inevitável – afinal cada indivíduo é singular em


suas aptidões e falhas, e é benéfica. De maneira geral, o elogio da diversidade
é, como vimos, um tema clássico do repertório liberal. A desigualdade de bens
e renda é vista como o resultado, justo, de decisões de responsabilidade
individual.

g) Nacionalismo tradicional

Um dos valores que faz a ponte entre os neoliberais e os antigos


conservadores. A nação é valorizada e os alvos dessa atitude são, de costume,
os imigrantes, a integração regional e as posturas abertas ao cosmopolitismo
cultural. Daí a pretensão, comum, de limitar a globalização a seu aspecto
econômico e, nele, à livre circulação de capitais, retendo o trabalho e a cultura
às fronteiras nacionais.

h) Estado e bem-estar social como rede de segurança

A ideia é limitar a provisão de segurança por parte do Estado àqueles que


"efetivamente dela necessitam". Recusa-se o princípio de um sistema
universal, uma vez que, sempre que possível, os indivíduos devem responder
pela sua segurança nos planos da saúde, educação, previdência social,
desemprego e outros. O fantasma liberal é que a assistência pública passe a
ocupar todo o horizonte de vida dos assistidos, mutilando sua iniciativa.

i) Baixa consciência ecológica

Tal como no caso da social-democracia, a sensibilidade dos liberais para com o


meio-ambiente é escassa. Predomina a crença de que boa parte dos
problemas ecológicos é solucionável por mecanismos de mercado, uma vez
que a escassez se traduziria de imediato em elevação de preços e
desenvolvimento de alternativas mais baratas.

j) Realismo internacional

No plano internacional, a diretriz é o realismo: a mobilização dos meios mais


eficientes para o atendimento de interesses nacionais predefinidos.

k) Mundo bipolar

O neoliberalismo partilha com a social-democracia o ambiente internacional de


seu pensamento: um mundo regido pela lógica da competição entre dois
grandes blocos.

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Em resumo, temos:

 Social-Democracia Clássica
 Neoliberalismo

 Envolvimento difuso do Estado na vida social e econômica


 Governo mínimo
 Domínio da sociedade civil pelo Estado
 Sociedade civil autônoma
 Coletivismo
 Individualismo econômico com autoritarismo moral
 Administração keynesiana da demanda
 Fundamentalismo de mercado
 Mercado restrito
 Pleno emprego
 O mercado de trabalho como um mercado a mais
 Igualitarismo
 O elogio da desigualdade
 Estado do bem-estar social abrangente
 Estado de bem-estar social como rede de segurança
 Baixa consciência ecológica
 Baixa consciência ecológica
 Internacionalismo
 Nacionalismo tradicional
 Realismo internacional
 Mundo bipolar

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Em síntese, a social-democracia postula a ascendência do Estado sobre o


mercado. Ascendência legítima, uma vez que expressaria sempre o desejo da
maioria. Na prática, as decisões são tomadas no diálogo entre o Estado, árbitro
maior, e as classes empresariais e trabalhadoras.

No plano social, dá-se como certo que o indivíduo não é capaz de defesa
própria em um leque importante de situações, nas quais é legítima e
necessária a intervenção reparadora do Estado. O envolvimento da burocracia
na vida das famílias assistidas é percebido como ônus inevitável do modelo.

As associações voluntárias são vistas com desconfiança em razão da


deficiência em termos de profissionalismo e, principalmente, por não disporem
de uma noção de conjunto do problema a que se dedicam, visão esta facultada
apenas ao Estado.

O neoliberalismo, por sua vez, postula o menor Estado possível, sob controle
do mercado e da sociedade civil. Esta disporia da energia suficiente para gerar
a solidariedade de que a sociedade precisa.

O princípio mesmo do Estado do bem-estar social é posto em questão. A


segurança dos cidadãos deve ser obra dos próprios cidadãos. Nas palavras de
um de seus expoentes, no futuro o Estado do bem-estar social será visto com o
mesmo desprezo que aquele hoje dedicado à escravidão.

No fundo, a segurança dos indivíduos só pode ser consequência do


crescimento econômico, que distribuirá seus frutos de maneira desigual,
recompensando as decisões acertadas e punindo todos os equívocos.

Unidade 3 - Premissas do sucesso do modelo social-democrata

Conforme Giddens, o sucesso do modelo social-democrata apoiava-se em


cinco premissas. Na sua opinião, a confrontação que lhe moveu o
neoliberalismo só passou a conseguir sucesso eleitoral no momento em que
essas premissas foram ultrapassadas na sociedade. O modelo viu-se face aos
novos desafios, para os quais as antigas políticas não constituíam mais
resposta. Relacionamos, a seguir, as premissas apresentadas.

Primeira: Família tradicional

O Estado do Bem-Estar Social fundamentava-se no modelo de família


tradicional: marido empregado, provedor do salário, e esposa fora do mercado,
dedicada aos trabalhos domésticos. Nesse modelo, a equação do pleno
emprego é de solução relativamente simples, uma vez que tem como alvo
apenas a metade da população adulta. No momento em que a mulher ingressa
no mercado de trabalho, o objetivo torna-se mais pesado, de alcance mais
difícil.

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Segunda: Homogeneidade do mercado de trabalho

Terceira: Produção em massa

Também a produção em massa torna mais fácil o processo de tomada de


decisões em favor do pleno ou máximo emprego. O planejamento da oferta de
postos de trabalho é consideravelmente mais simples nessa circunstância.
Hoje as empresas de pequeno e médio porte tendem a ganhar mais peso,
dando maior complexidade ao mercado de trabalho.

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Quarta: Burocracia especializada

O modelo dependia, também, da existência de uma camada burocrática


especializada, capaz de tomar as decisões "técnicas" acertadas, ou seja,
compatíveis com os pressupostos do modelo, bem como de monitorar as
políticas decorrentes. A transparência e a participação popular no processo
eram características menos valorizadas que sua eficiência. Talvez essa seja a
única premissa que continua realizável no presente.

Quinta: Economias nacionais no interior de fronteiras soberanas

Em outras palavras, um elevado grau de controle, por parte do governo, sobre


as variáveis econômicas de maior relevância. Uma das condições das políticas
inspiradas no keynesianismo é a preponderância da economia doméstica sobre
os setores dependentes do exterior. Essa condição desaparece, a olhos vistos,
nas condições de globalização em que vivemos. O Estado controla cada vez
menos as variáveis econômicas mais importantes, e a interdependência,
evidentemente assimétrica, torna-se a regra.

Unidade 4 - As mudanças necessárias

O recuo eleitoral dos partidos socialistas, a onda liberal que invadiu a Europa a
partir de fins dos anos 1970, obedece, conforme esta perspectiva, a causas
mais profundas que a simples volubilidade dos cidadãos ou a alternância entre
oposição e situação. A erosão progressiva de cada uma dessas premissas teria
posto, aos governos de esquerda, problemas cada vez mais difíceis de serem
resolvidos nos seus parâmetros clássicos. O Estado do bem-estar social
tornava-se, ao mesmo tempo, mais caro e mais ineficiente. A acumulação de
insucessos parciais teria conferido credibilidade à alternativa neoliberal,
provocando a sucessão de vitórias eleitorais.

As mudanças necessárias

A reação da esquerda só poderia se dar mediante a abertura de sua agenda às


novas questões postas pelas mudanças em curso no mundo.

Em primeiro lugar, a mudança mais evidente foi a das estruturas de apoio


político para o projeto da esquerda. Tradicionalmente, a base de apoio da
esquerda foi a classe trabalhadora. Com o tempo, como vimos, esfumou-se a
esperança de atingir a maioria eleitoral apenas com base nessa classe, e a
social-democracia operou uma guinada, ampliando o alvo de seu discurso para
o “povo” ou para as “classes populares”. Mesmo assim, a centralidade do apelo
à classe operária foi mantida, e a conquista da maioria eleitoral não foi uma
tarefa fácil, precisando superar o “trade-off” apontado por Przeworski.

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Pois bem, nas novas condições, as bases classistas da esquerda socialista e


social-democrata manifestam uma fragilidade ainda maior. Na verdade, a
própria determinação de classe sobre o comportamento político e eleitoral
encontra-se abalada. Segundo dados citados por Giddens, na Suécia, país
com forte e tradicional influência classista sobre o voto, a classe respondia, em
1967, por 54% das definições de voto. Em 1985, esse percentual havia caído
para 34%.

Em outras palavras, não só os trabalhadores diminuem em número, como


tendem cada vez mais a votar de acordo com outros valores que não aqueles
vinculados à identidade de classe.

Esse movimento é congruente com as observações de Inglehart sobre a


mudança de valores em curso no mundo contemporâneo. Haveria hoje uma
tendência nos países afluentes, provocada pela prosperidade material e pelo
sucesso do Estado do bem-estar social, no sentido da importância maior de
valores não ligados à subsistência, valores pós-materialistas, portanto, em
detrimento dos valores articulados à segurança material. Ganham peso como
definidores de votos outras identidades, fundadas na etnia, religião, idade,
gênero, cultura, entre outros, e, por outro lado, classe social, renda e consumo,
por exemplo, perdem significação.

Esse fato não implica o abandono dos trabalhadores como grupo interlocutor
importante dos partidos socialistas, mas impõe a consideração de outros
grupos, como mulheres, jovens e aqueles organizados em torno de questões
que cortam o eixo direita-esquerda, como os verdes.
Atentos à necessidade de mudança, de interlocutores e de propostas, os
diversos partidos socialistas europeus iniciaram um processo de transição. A
partir da década de 1980 passaram a incluir em sua agenda temas como a
produtividade econômica, a participação dos cidadãos, o desenvolvimento de
estruturas comunitárias, a ecologia e a pluralidade de estilos de vida, todos
antes subestimados.

A incorporação de temas como esses e sua articulação com a agenda antiga


da social-democracia, ou seja, a tentativa de construção de um novo
paradigma para a esquerda, é o tema do curso Doutrinas Políticas
Contemporâneas: Novas Esquerdas.

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