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A CONTRA-REVOLUÇÃO 223

A contra-revolução
na Alemanha. Marx e a
Nova Gazeta Renana

LÍVIA COTRIM

Entre os pensadores contemporâ- Se hoje, diante das sucessivas der-


neos, Marx é, sem dúvida, um dos mais rotas da perspectiva do trabalho, é ne-
polêmicos. São incontáveis os traba- cessário e urgente repensar criticamen-
lhos, dos mais diversos níveis e com te a história do movimento operário, é
os mais variados objetivos, que versam igualmente necessário e urgente recu-
sobre seu pensamento, seja para criticá- perar o pensamento próprio de Marx.
lo, defendê-lo ou interpretá-lo sob di- Mas, paradoxalmente, há ainda obras
ferentes vieses. Não cabe aqui, é claro, do pensador alemão que, além de me-
nem sequer aflorar as polêmicas que recerem menor atenção dos estudiosos,
se desenvolveram, mas sempre vale permanecem inéditas no Brasil. É o
chamar a atenção para o “destino trá- caso dos artigos escritos por ele para a
gico” do pensamento marxiano, no Nova Gazeta Renana, quase todos inédi-
mais das vezes abordado a partir de tos em português (à exceção de “A bur-
problemáticas ou concepções externas guesia e a contra-revolução”2), e que,
a ele, com o resultado de imputar-lhe excetuando-se o importantíssimo tra-
sentidos e mesmo questões que lhe são balho de Claudin3, praticamente não
de fato estranhas.1 contam com análises mais detalhadas.

1 . Ver, a esse respeito, CHASIN, J. (1994), “Marx 2. MARX, K. (1991), “A burguesia e a contra-
— Estatuto ontológico e resolução metodológica”. revolução”, Cadernos Ensaio Pequeno Formato I, São
In: TEIXEIRA, F. Pensando com Marx, São Paulo, Paulo, Ensaio.
Ensaio, e Revista Ensaios Ad Hominem 1 — Tomo 3. CLAUDIN, F. (1975), Marx, Engels y la Revo-
III: Política, Santo André, Ad Hominem, 2000. lución de 1848, Madrid, Siglo Veintiuno.

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Entretanto, o estudo das revoluções de rava o burguês Código Napoleônico,


1848 e de seus artigos para a Nova Ga- garantindo uma liberdade de impren-
zeta Renana permite aflorar a dupla ta- sa mais ampla do que a possibilitada
refa acima mencionada. É no intuito de pela legislação feudal-absolutista
contribuir para ela que apresentamos prussiana.
aqui nossa tradução de alguns dos ar- A fundação do periódico eviden-
tigos daquele periódico.4 cia a importância atribuída por Marx
Os anos que antecedem e preparam ao combate teórico, que pode ser per-
as revoluções de 1848 são também os cebida na observação externada numa
da viragem ontológica e da configura- reunião do Comitê de Correspondên-
ção do pensamento marxiano, como ele cia de Bruxelas:
mesmo nos indica em seu “Prefácio à
Crítica da Economia Política”, de 1859.5 Em particular, dirigir-se na Alemanha
De sorte que Marx enfrenta, teórica e aos operários sem possuir idéias rigo-
praticamente, as revoluções de 1848 já rosamente científicas e uma doutrina
com sua fisionomia adulta, e o faz uti- concreta equivaleria a levar a cabo um
jogo desonesto e inútil, uma propagan-
lizando como arma principal um diá-
da em que estaria suposto, de um lado,
rio, a Nova Gazeta Renana — Órgão da um entusiasmo apoteótico e, doutro,
Democracia, publicada de 1/6/1848 a 19/ simples imbecis escutando de boca
5/1849, sediado em Colônia, capital da aberta.6
província do Reno, uma das regiões
econômica e politicamente mais desen- Para o pensador alemão, a independên-
volvidas da Alemanha, na qual vigo- cia organizacional e política da classe
trabalhadora deveria ter por suposto
sua independência teórica ou, em ou-
4. A tradução do conjunto dos artigos de Marx
para a Nova Gazeta Renana, dentre os quais selecio- tras palavras, a organização só é inde-
namos os ora publicados, faz parte dos trabalhos pendente se o for também a apreensão
preparatórios para a elaboração de nossa tese de da realidade, a clareza dos objetivos a
doutorado provisoriamente intitulada “Marx — atingir e o conseqüente estabelecimen-
política e emancipação humana: 1848-1871”, sob
orientação do prof. dr. Miguel Chaia (Programa
to dos passos a serem dados em cada
de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais momento. Nesse sentido, Marx busca
– PUC-SP). Tradução do original alemão: Marx- criar um jornal que alcançasse ampla
Engels Werke, Berlim, Dietz Verlag, 1959, vols. 5 e difusão entre os trabalhadores, tendo
6. As notas de rodapé foram todas extraídas des-
sa edição. Os artigos “A Declaração de
por objetivo desenvolver e difundir
Camphausen na Sessão de 30 de Maio”, “Queda “idéias rigorosamente científicas e uma
do Ministério Camphausen” e “O Projeto de Lei doutrina clara”, participando da luta
sobre a Revogação dos Encargos Feudais” foram revolucionária com a “arma da crítica”,
traduzidos em conjunto com Márcia V. M. de
esforçando-se para transformá-la em
Aguiar.
5. Uma análise detalhada do processo de confi-
guração do pensamento marxiano encontra-se em 6. Apud CHASIN, J. Apresentação a MARX, K. op.
CHASIN, J. op. cit. cit., p. 19.

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“poder material” por sua assunção pelo da Alemanha, ou a “miséria alemã”,


proletariado. uma vez que aquela distinção marcou
As revoluções de 1848 constituem indelevelmente os rumos das revolu-
um objeto privilegiado, uma vez que ções de 1848.
oferecem a oportunidade de abordar A análise marxiana reconstitui as
a emersão do proletariado como clas- múltiplas determinações da “miséria
se independente, a primeira contrapo- alemã”, desde a raiz de suas estreitas
sição direta entre capital e trabalho, e relações econômico-sociais às diversas
isso no quadro até hoje único de uma manifestações, emanadas daquela, de
revolução de âmbito europeu. O leque covardia, debilidade e ferocidade po-
de questões aberto pelos escritos de líticas, de sorte que a esfera da politici-
Marx na Nova Gazeta Renana é extre- dade — assim como, nela, a atuação
mamente amplo. Os artigos publica- das diversas individualidades — ga-
dos a seguir foram selecionados com nha em consistência e peso específico.
vistas a oferecer uma primeira apro- O que permite a Marx perceber que a
ximação de sua análise sobre revolu- estreiteza da “miséria alem㔠não mais
ção e contra-revolução na Alemanha, poderia ser superada por um movi-
de modo a destacar a especificidade mento revolucionário encabeçado pela
desta em relação à situação francesa burguesia, pois a possibilidade histó-
— aflorando, assim a problemática das rico-universal de um passo dessa na-
formas particulares de objetivação do tureza se encerrara com a explicitação
capitalismo —, particularidade que vai de seu antagonismo com o proletaria-
sendo obtida a partir da apreensão do do. Tal antagonismo, nódulo funda-
movimento cotidiano. Análise que mental das revoluções de 1848, tam-
também nos mostra o tratamento bém evidenciou praticamente a impo-
marxiano da esfera da politicidade, no tência da esfera da politicidade para a
sentido de evidenciar sejam os víncu- resolução dos problemas sociais.
los entre essa e os demais âmbitos da Nos textos que se seguem, Marx
sociabilidade, especialmente a matriz mostra que acontecimentos à primeira
da produção e reprodução da vida, vista semelhantes podem entranhar
sejam aqueles que se põem entre os sentidos bastante distintos, evidencia-
indivíduos e sua classe, bem como o dos pela elucidação dos nexos que os
caráter não resolutivo dessa esfera no vinculam à particularidade dos respec-
que tange à perspectiva da revolução tivos processos históricos. Assim, tan-
social. to na revolução prussiana de março,
Os artigos produzidos para a Nova como na francesa de fevereiro, os tra-
Gazeta Renana ocupam posição desta- balhadores e a burguesia se opuseram
cada dentre as várias ocasiões em que à monarquia; entretanto, a burguesia
Marx se debruçou sobre a distinção alemã, diferentemente da francesa,
entre as formas clássica ou “européia” desenvolvera-se lentamente e optando
do processo francês e a retardatária sempre por soluções não-revolucioná-

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rias, e sim conciliatórias com as forças ção” que a burguesia prussiana busca
feudais ou semifeudais e absolutistas, encaminhar para esse problema indica
e não se via empurrada à conquista do sua disposição conciliatória, sua debi-
domínio político por uma necessidade lidade e covardia. Estas se refletem cla-
urgente. O proletariado alemão, por seu ramente na esfera das relações políti-
lado, pouco desenvolvido, não orga- cas, seja na postura dos representantes
nizado, educado em submissão espiri- dessa classe nas duas Assembléias – de
tual, mal pressentia seu antagonismo Frankfurt e de Berlim –, seja na suces-
de interesses com a burguesia, e conti- são dos diversos ministérios, e prenun-
nuava a ser seu apêndice político. Mas, ciam sua derrota. Como disse Marx do
temendo o que o proletariado alemão ministro Camphausen: “Ele semeou a
poderia chegar a ser e o que já era o reação no sentido da burguesia, ele a
proletariado francês, a burguesia viu colherá no sentido da aristocracia e do
sua salvação numa transação covarde absolutismo”.8
com a monarquia e a nobreza. Assim, Esse comentário, resultante da aná-
enquanto, na França, a revolução de 48 lise do procedimento da burguesia, in-
desembocava na contraposição do tra- dica também a presença de ilusões
balho ao capital, na Alemanha se confi- politicistas por parte daquela classe.
gurava como uma revolução burguesa. Lançada à frente do poder político por
Todavia, o 1848 alemão, resultado da força de uma insurreição popular, e
debilidade, lentidão e covardia do de- estando disposta desde o início a trair
senvolvimento da burguesia alemã, não seus aliados, a burguesia prussiana su-
era uma “revolução de tipo europeu”, pôs que a assunção do poder político
mas somente “o retardado eco débil de formal pusera as forças do velho esta-
uma revolução européia num país atra- do à sua disposição, uma vez que estas
sado”, cuja “ambição consistia em for- a apoiaram sem reservas na repressão
mar um anacronismo”, já que não se tra- aos trabalhadores. Assim como a re-
tava da “instauração de uma nova socie- volução parisiense de fevereiro fora o
dade, mas do renascimento berlinense estopim da revolução prussiana de
da sociedade morta em Paris”.7 março, as jornadas de junho parisienses
Índice do atraso do desenvolvimen- e sua derrota dão o sinal para o desen-
to alemão, a unificação nacional era um cadeamento da contra-revolução na
objetivo central da revolução e uma Alemanha, no decorrer da qual, no en-
necessidade para a efetivação do do- tanto, a derrota dos trabalhadores pre-
mínio burguês. Como parte fundamen- figura a da burguesia, em favor das for-
tal dessa problemática, destacava-se a ças mais retrógradas — os junkers, o
destruição das relações agrárias de cu- exército e a burocracia prussianas — ,
nho feudal ainda subsistentes; a “solu- conservando relações feudais no cam-

7. MARX, K. “A burguesia e a contra-revolução”,


op. cit., pp. 43-44. 8. Ibid., p. 38.

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po e inviabilizando a unificação nacio-


nal sob forma democrática.
Os artigos que se seguem, abor-
dando temas e momentos críticos da
revolução e contra-revolução na Ale-
manha de 1848-49, oferecem-nos um
contorno do caráter desse movimen-
to, da especificidade da “via prussiana”
de objetivação do capitalismo, ou “mi-
séria alemã”, da problemática do poli-
ticismo, bem como aludem a diversas
outras questões que o leitor atento cer-
tamente descobrirá. Ao mesmo tempo,
são uma expressiva amostra da agude-
za das análises marxianas acerca da
política, elaboradas no calor dos acon-
tecimentos e como arma para neles in-
tervir, análises que jamais perdem nem
a especificidade dos acontecimentos
cotidianos, nem seu vínculo com as ten-
dências históricas e as potencialidades
presentes na realidade.

Recebido em 17/6/2002
Aprovado em 30/10/2002

Lívia Cotrim, doutoranda em Ciências Sociais


pela PUC-SP; professora do Colegiado de Ciên-
cias Sociais — Fafil — FSA; membro do Núcleo de
Estudos de História: Trabalho, Poder, Ideologia –
Departamento de História – PUC-SP.
E-mail: Icotrim@aol.com

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