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Aluísio Ferreira de Lima

Sofrimento de indeterminação e
reconhecimento perverso
Um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação

Doutorado em Psicologia Social

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social
2009
Aluísio Ferreira de Lima

Sofrimento de indeterminação e
reconhecimento perverso
Um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação

Doutorado em Psicologia Social

Tese apresentada à banca examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial para a
obtenção do título de Doutor em
Psicologia Social, sob orientação do
Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social
2009
Banca Examinadora:

Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa.

Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado

Prof. Dr. Odair Sass

Prof. Dr. Juracy Armando M. de Almeida

Prof. Dr. José Mendes Fonteles Filho


Para julgarmos os outros, existem diversos critérios
que, em conjunto, podem ser todos válidos. Escolher,
porém, um só deles, seja o da ciência, seja o da moral
pública, e proclamá-lo sagrado – é a coisa que não
consigo compreender.

Hermann Hesse. Para ler e pensar.

Todo pensar é um exagero, enquanto todo


pensamento, que vale como tal, aponta para mais além
dos fatos que o justificam. Na diferença entre o
pensamento e a solução se encontra um potencial
tanto de verdade como de loucura. Não existem
critérios obrigatórios, únicos, absolutamente
confiáveis, e a decisão depende sempre de um
complexo de intermediários complexos.

Theodor W. Adorno. Opinion, Locura, Sociedad.

O mundo é minha miniatura porque está tão longe, tão


azul, tão calmo, quando o considero onde ele está,
como está, no tênue desenho de meu devaneio, no
limiar de meu pensamento! Para dele fazer uma
representação, para colocar todos os objetos em escala
e medida real, em seu verdadeiro lugar, preciso
quebrar a imagem que eu contemplava quando ele era
uno e, depois, encontrar em mim mesmo motivos ou
lembranças para reunir e ordenar o que minha análise
acaba de quebrar.

Gaston Bachelard. O mundo como capricho e


miniatura.
Dedico este trabalho...

... à Meire e Stephanie Caroline, que têm


suportado e compartilhado minha insatisfação
com o que insiste em não ser mudado e que é
o motor de meu pensamento.

... aos companheiros (des)conhecidos que se


preocupam em proteger a sociedade dos
especialistas e acreditam que um mundo
melhor é possível.

... aos corpos torturados, às vozes silenciadas e


olhos vendados que insistem na resistência e
lutam por reconhecimento e emancipação.
Agradecimentos

Essa tese pode ser vista como o resultado de suturas realizadas por mim, a partir do
material mais rico que se poderia utilizar: a existência humana, ou ainda, a luta pela
existência humana, oferecida em abundância, a todo instante, por colaboradores
conhecidos, anônimos e material bibliográfico. Tenho a plena convicção de que mesmo se
fosse possível o recolhimento de todo material produzido acerca do tema tratado nessa
pesquisa, tudo teria sido reduzido a nada se ela não fosse a expressão de muitos olhares e
reflexões proporcionados pelas relações que vivenciei. Por esse motivo se o trabalho em
questão não conseguir expressar claramente o que se propõe, o erro estará justamente na
minha inabilidade e ingenuidade, pois esse tipo de material é de difícil manuseio e sua
costura muito delicada.
Sendo assim, embora a escrita de uma tese tenha sido um empreendimento solitário,
sua gestação, assim como as sementes finalmente germinadas, é resultado da complexidade
existente, do equacionamento das interações, dos encontros, dos desencontros, das
descobertas, das renúncias, da poética e do devaneio. O que implica necessariamente em
alguns agradecimentos que, embora tente apresentar aqui, não contemplará todos os
envolvidos na produção intelectual que resulta nesse trabalho. Assumo que serei injusto,
assim como todos que fazem seus agradecimentos, quanto aos nomes que apresentarei a
seguir. Espero sinceramente que aquelas pessoas que porventura não estejam citadas
saibam o quanto sou grato por terem compartilhado fragmentos de suas vidas comigo,
experiências compartilhadas que têm servido de alimento para minha escrita e pensamento.
Algumas pessoas, entretanto, não poderiam deixar de ser citadas, três delas,
inclusive, aparecem inicialmente por terem sido essenciais durante todo esse processo. As
duas primeiras são Meire Silva de Lima e Stephanie Caroline Ferreira de Lima, que
acompanharam de perto as metamorfoses que sofri e em todos os momentos estiveram ao
meu lado, sempre tendo de negociar um pouco de atenção com a imensidão de afazeres
acadêmicos e profissionais. Não tenho palavras para descrever o quanto vocês duas
foram/são importantes em todo esse percurso. Obrigado pelo amor, carinho e paciência
dispensado todos esses anos. Espero que de agora em diante possa dedicar o tempo que
vocês merecem e que possamos viver com intensidade os pequenos e grandes momentos de
nossas vidas.
A terceira trata-se do Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa, ou simplesmente Ciampa,
como costumamos chamá-lo, exemplo de docente e intelectual que pretendo um dia me
tornar. Alguém que consegue viver plenamente aquilo que estuda e ensina. As influências
desse grande mestre que alimentam minhas considerações acerca da Psicologia Social e
identidade humana estão evidenciadas em minha produção acadêmica. Hoje tenho a honra
de chamá-lo também de meu amigo e aproveito essa oportunidade para agradecê-lo pela
acolhida na PUCSP, ainda em término de minha graduação, e por ter suportado as minhas
angústias durante todos esses anos.
Entre aquelas que estiveram ligadas diretamente à confecção dessa tese de
doutoramento, dá-me uma enorme satisfação observar que muitas delas já sentaram comigo
para almoçar, tomar café, jogar videogame etc., participaram comigo em congressos, aulas
e debates, jogaram conversa fora, trocaram angústias, desilusões e sonhos — todo tipo de
coisas que enriquece a nossa vida e fazem com ela seja única e, ao mesmo tempo, um
desafio à imaginação. Uma atmosfera que muitas vezes transformou o relacionamento
acadêmico em amizades duradouras. Entre esses questionadores e co-conspiradores que
conheci e convivi na PUCSP estão: Juraci Armando Mariano de Almeida, que sempre fez a
pergunta certa para (des)organizar minhas certezas; Nadir Lara Junior, com quem realizei
ótimos debates e sempre fui cobrado pela busca da precisão epistemológica; Renato
Ferreira de Souza, pelas leituras primorosas e sua tolerância à discussão por Internet;
Shirley Acioly, sempre disponível para me ajudar com os abstracts; Clodoaldo Leme;
Edileuza Santiago; Helena Kolyniak, com quem tive minha primeira experiência de
docência universitária; Marlene Camargo, que literalmente organizou minha vida no
Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da PUCSP, acolheu minhas
angústias e expectativas frente às possibilidades de bolsa; todos os colegas do Núcleo de
Estudos da Identidade Humana – NEPIM, que debateram todos os assuntos tratados nessa
tese.
Na PUCSP também tive a honra de contar com a contribuição de outros mestres
imprescindíveis para minha formação intelectual. Aqui me refiro a todos os professores do
Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da PUCSP – PSO, por seus textos,
debates, seminários e aulas. Principalmente à professora Maria do Carmo Guedes, que com
seu brilhantismo e paixão ensinou-me ainda no mestrado a importância da pesquisa
histórica. Outros professores, fora do PSO, também contribuíram de forma significativa em
meu processo de formação, me refiro aos professores: Odair Sass, do Programa de
Educação: História, Política e Sociedade que sempre apareceu com um novo
questionamento acerca de minhas proposições e metodologias (sempre paciente com
minhas abordagens nos corredores da PUCSP); Jeane-Marie Gagnebin, do Programa de
Mestrado e Doutorado em Filosofia, pela iniciação nos estudos da hermenêutica,
principalmente pelas brilhantes aulas sobre Walter Benjamin & Paul Ricoeur; e José Luiz
Aidar Prado, do Mestrado e Doutorado em Comunicação e Semiótica, que apresentou
autores críticos até então desconhecidos por mim e pelas ótimas sugestões na banca de
qualificação.
No que se refere às colaborações teórico-metodológicas que recebi fora da PUCSP,
agradeço aos professores: José Mendes (Babi) Fonteles Filho & Gislene Maia de Macêdo,
do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará – UFC, companheiros do
Laboratório de Identidade Cultura e Subjetividade – LAICUS, pelos deliciosos almoços
filosóficos e conversas em(na) rede que contribuíram sobretudo nos momentos de crise da
escrita; José Umbelino Gonçalves Neto, também da UFC, por suas sugestões preciosas,
pela leitura atenta e ajuda na revisão gramatical do texto; Thomas S. Szasz, da State
University of New York’s Upstate Medical University in Syracuse, que não poupou esforços
para ajudar-me na busca de suas obras publicadas no Brasil, por fazer apontamentos
importantes acerca do meu projeto inicial e por me enviar manuscritos recentes de seus
trabalhos; Karl E. Scheibe, da Wesleyan University, por ter me fornecido trabalhos
inacessíveis de Theodor R. Sarbin, alguns inclusive não publicados.
Fora do espaço universitário, não poderia deixar de agradecer aos irmãos e irmãs
que pude escolher, pessoas que representam a amizade verdadeira e o companheirismo que
é essencial para sustentar um projeto ético-político como o que tenho tentado vivenciar.
Não tenho palavras para agradecer a Brendali Dias, companheira de batalhas árduas, saiba
que sempre poderá contar comigo; Marcelo Alves dos Santos, que muito me presenteia
com sua confiança; Rogério Dias, que sempre me atentando para não esquecer das minhas
origens; Ana Paula de Carvalho, sempre me provocando; Simone Souza, por suportar
minhas provocações; Cristiano Caires, que transcreveu as entrevistas com extrema rapidez
e atenção, mesmo estando próximo ao final de sua graduação e envolto com as diversas
exigências acadêmicas. Luciana Guilherme, que me ensinou que não precisamos de anos de
amizade para considerar alguém como grande amigo; Andréia Moassab, que tanto tem me
ajudado a pensar alternativas para as alternativas; Sâmia Malufe, pela solidariedade e pela
alegria; Sonha Malaquias, poeta apaixonada pela vida que muito me orgulho de ter
conhecido e compartilhado minha história de vida e Antonio Maia O. do Vale, parceiro na
coordenação do curso de Psicologia da UFC, sempre disposto para as boas conversas.
Não poderia esquecer de agradecer à minha grande família formada por: Aparecida
Alves Ferreira (minha mãe), Vera (minha sogra), Alexandre, Paulo, Ana Paula, Thiago,
Elisa e João Victor (meus irmãos), Aucilene (Lena), Gisele, Osvano, Mirian e Sérgio (meus
cunhados(as)) e Roger Junior, Beatriz, Luiz, Kevin, Rodrigo, Felipe, Caio, Thamyres,
Giovanna (sobrinhos), que acompanharam de perto as dificuldades de um teimoso jovem da
periferia rumo à formação superior. E a minha segunda família, formada por todos os
companheiros de treino do Judô Mauá e Infight Jiu-Jitsu, principalmente aos Mestres Paulo
Nardy, Leandro Fidelis e Shihan Kaor Okada, esse último, com quem aprendi o Bushidô
(Caminho do Guerreiro).
Agradeço à Universidade Federal do Ceará – UFC, nas figuras do Magnífico Reitor
Jesualdo Pereira Farias e Prof. Dr. Sérgio Armando de Sá e Benevides – Diretor do Campus
Avançado de Sobral da UFC, que não apresentaram nenhuma dificuldade para que eu
pudesse finalizar a tese de doutoramento. Assim como, a todos os amigos conhecidos a
partir de meu ingresso como docente nessa instituição: estudantes a quem ministrei aulas ou
que têm participado de meu projeto de extensão, técnicos administrativos (Jean e Franklin)
e colegas docentes: Luis Achilles Furtado, Franklin Freitas, José Olinda Braga, Érica Atem
Costa, Camilla Vieira, Carlos Roger Ponte, Joyce Di Ciero, Luciane Oliveira, Suely Costa,
Odimar Feitosa Filho, Pablo Benevides, Renata Guimarães e Rita Helena S. F. Gomes.
Finalmente, agradeço ao CNPq pelo financiamento da pesquisa nos dois primeiros
anos de doutoramento — ocasião em que abri mão da bolsa integral para tomar posse do
cargo de professor efetivo do setor de estudo: Psicologia Social, da Universidade Federal
do Ceará – UFC — e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES, de quem fui bolsista nos meses finais de pesquisa, escrita e defesa da tese.
Resumo
LIMA, Aluísio Ferreira de. Sofrimento de indeterminação e reconhecimento perverso:
Um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação. Tese de Doutorado. PUCSP, 2009.

Essa é uma tese de Psicologia Social Crítica, cujo foco principal foi explicitar, a partir da
teoria de identidade proposta por Antonio da Costa Ciampa expressada no sintagma
identidade-metamorfose-emancipação, como ocorre a construção da personagem doente
mental a partir do reconhecimento de diferentes atores sociais, e a relação que essa
personagem estabelece com o discurso da saúde mental proposto pela reforma psiquiátrica.
Dividimos a pesquisa em três capítulos denominados: itinerário histórico, itinerário teórico,
itinerário empírico. No primeiro itinerário fazemos uma apresentação histórica do
desenvolvimento da concepção dualista normal/patológico, que culminou na construção da
identidade pressuposta do doente mental, e analisamos esse desenvolvimento à luz das
diferentes articulações institucionais e políticas (principalmente a relação entre a Psiquiatria
e Psicologia Social) legitimadas a partir de leis e decretos que possibilitaram a Reforma
Psiquiátrica brasileira atual. Em seguida, assinalamos como a teoria de identidade proposta
por Ciampa se insere na tradição da Psicologia Social Crítica e atravessa as contribuições
da Teoria Crítica, principalmente a habermasiana, para pensar as condições de emancipação
humana, a ponto de desvelar como a identidade sofre fortes investidas dos discursos
técnico-psicológicos, que produzem personagens fetichizadas sustentadas por um
reconhecimento perverso. Na seqüência trazemos as narrativas da história de vida de Ana,
Gabriel e Francisco, que nos ofereceram elementos para evidenciar como os indivíduos têm
se apropriado do discurso de doença mental para organizar e representar suas identidades
atualmente. Nesse momento, assinalamos que não podemos mais sustentar cinicamente
que, ao utilizar o discurso de doença mental a partir de uma política de identidade
antimanicomial, estamos possibilitando a emancipação dos indivíduos, sendo necessário
que adotemos um reconhecimento pós-convencional (visão em paralaxe), para não
reproduzirmos reconhecimentos perversos.

Palavras-chave: Identidade, Reconhecimento Pós-Convencional, Sofrimento de


indeterminação, Psicologia Social, Teoria Crítica, Saúde Mental.
Abstract
LIMA, Aluísio Ferreira de. Suffering from indeterminacy and perverse recognition: A
study on the construction of the mentally ill character from the identity-
metamorphosis-emancipation sintagma. Doctoral Thesis. PUCSP, 2009.

This is a thesis of Critical Social Psychology which main focus was to unveil, based on the
theory of identity proposed by Antonio da Costa Ciampa expressed in the identity-
metamorphosis-emancipation sintagma, how the construction of the mentally ill character
occurs considering the recognition of different social actors and the relation set with the
mental health discourse proposed by the psychiatric reform. The research was divided into
tree named routes: historical route, theoretical route, empirical route. In the first route we
make a presentation of the historical development of the dual normal/pathological
conception, which culminated in the construction of the assumed identity of the mentally
ill, and analyze this development in light of the different institutional articulations and
policies (especially the relationship between psychiatry and Social Psychology) legitimized
from laws and decrees that allowed the Brazilian Psychiatric Reform. Then, we point out
how the theory of identity proposed by Ciampa is inserted in the tradition of Critical Social
Psychology and cross the contribution of critical theory, especially the habermasian theory.
All this to think about the conditions for human emancipation to unveil the strong
investment of technical and psychological discourses suffered by the identity and which
produce fetishized characters sustained by perverse recognition. Then, we bring the life
history narratives of Ana, Gabriel and Francisco, which offered evidence of how
individuals have appropriated the discourse of mental illness to organize and represent their
identities today. In this moment, which point out that we can not cynically sustain, by using
the discourse of mental illness from an anti-asylum politics, that we are enabling the
empowerment of individuals. We need to adopt a post-conventional recognition (parallax
view) to not reproduce perverse recognition.

Keywords: Identity, Post-Conventional Recognition, Suffering from indeterminacy, Social


Psychology, Critical Theory, Mental Health.
Resumen
LIMA, Aluísio Ferreira de. Sufrimiento de indeterminación y reconocimiento
perverso: Un estudio de la construcción del personaje enfermo mental a partir del
sintagma identidad-metamorfosis-emancipación. Tesis de Doctorado. PUCSP, 2009.

Esa es una tesis de Psicología Social Critica, cuyo enfoque principal fue revelar, a partir de
la teoría de la identidad propuesta por Antonio da Costa Ciampa expresada en el sintagma
identidad-metamorfosis-emancipación, como ocurre a la construcción del personaje
enfermo mental a partir del reconocimiento de diferentes actores sociales, y la relación que
ese personaje establece con el discurso de la salud mental propuesto por la reforma
psiquiátrica. Dividimos a la investigación en tres capitulos denominados: camino histórico,
camino teórico, camino empírico. En el primer camino hacemos una presentación histórica
del desarrollo de la concepción dualista normal/patológico, que culminó en la construcción
de la identidad presupuesta por el enfermo mental, y analizamos ese desarrollo a la luz de
las diferentes articulaciones institucionales y políticas (principalmente a la relación entre la
Psiquiatría y Psicología Social) legitimadas a partir de leyes y decretos que posibilitaron a
la Reforma Psiquiátrica brasileña actual. En seguida, apuntamos como la teoría de identidad
propuesta por Ciampa se pone en la tradición de la Psicología Social Critica y traspasa las
contribuciones de la Teoría Critica, principalmente a la habermasiana, para pensar las
condiciones de la emancipación humana, a punto de revelar como la identidad sufre fuertes
investidas de los discursos técnico-psicológicos, que producen personajes fetichisadas
sostenidas por un reconocimiento perverso. En seguida traemos las narrativas de la historia
de vida de Ana, Gabriel y Francisco, que nos ofrecieron elementos para evidenciar como
los individuos ven apropiado del discurso de enfermedad mental para organizar y
representar sus identidades actuales. En ese momento, defendiemos que no podemos mas
sujetar cinicamente que, al utilizar el discurso de la enfermedad mental a partir de una
política de identidad antimanicomial, estamos posibilitando la emancipación de estos
individuos y enseñando que volverse necesario un reconocimiento pos-convencional, para
que no reproduzcamos reconocimientos perversos.

Palabras-Claves: Identidad, Reconocimiento Pos-Convencional, Sufrimiento de


indeterminación, Psicología Social, Teoría Crítica, Salud Mental.
SUMÁRIO

PRÓLOGO .......................................................................................................................... 23

OBJETO E MÉTODO ........................................................................................................ 31

PRIMEIRA PARTE: ITINERÁRIO HISTÓRICO ............................................................. 45


I. Psicologia Social Crítica e saúde mental: as metamorfoses da concepção de doença
mental e sua relação com a sociedade da insatisfação administrada ............................ 47
1. A construção da identidade pressuposta do doente mental como instrumento de
particularização e opacificação das contradições sociais: o anormal como caso típico do
que o Brasil tem de “errado” ......................................................................................... 53
2. A identidade pressuposta do doente mental nos anos 60, 70 e 80 no Brasil: a reprodução
do paciente doente mental como justificativa de expansão do hospital psiquiátrico
privado e a produção do cidadão doente mental como política de saúde mental ......... 77
3. O “cinismo consensual” da saúde mental concretizado no abandono de uma revolução
psiquiátrica em detrimento do direito de ser reconhecimento como doente mental: A
reforma psiquiátrica como um problema para Psicologia Social Crítica ...................... 94

SEGUNDA PARTE: ITINERÁRIO TEÓRICO ............................................................... 109


II. Psicologia Social Crítica e Identidade: As contribuições da Teoria Crítica nos estudos de
Antonio da Costa Ciampa e a possibilidade de pensar a doença mental como um
problema de identidade ............................................................................................... 111
1. Da identidade social e sua relação com a ideologia ao sintagma identidade-metamorfose-
emancipação ................................................................................................................ 112
2. Políticas de identidade e identidades políticas como conceitos necessários para o
entendimento do sentido emancipatório das identidades ............................................ 136
3. Sofrimento de indeterminação e reconhecimento perverso: a administração da
insatisfação como instrumento de controle da sociedade capitalista .......................... 164

TERCEIRA PARTE: ITINERÁRIO EMPÍRICO ............................................................ 185


III. A saúde mental interpelada pelo sintagma identidade-metamorfose-emancipação: A
(im)possível relação entre a manutenção da concepção de doença mental e a luta por
reconhecimento da identidade humana ....................................................................... 187
1. A história de Ana: quando assumir uma personagem insustentável de doente mental se
mostra como única opção frente a possibilidade de representação de uma outra
personagem insuportável ............................................................................................. 190
2. A história de Gabriel: quando assumir uma personagem fetichizada é vislumbrada como
única possibilidade de reconhecimento como pessoa portadora de direitos ............... 220
3. A história de Francisco: quando a deflação da personagem fetichizada serve de mediação
para a construção de uma personagem possibilitadora de auto-respeito e alteridade . 240

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 263

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 267


ANEXOS ........................................................................................................................... 293
PRÓLOGO

Os homens renovam com seu próprio trabalho uma


realidade que os escraviza em medida crescente e os
ameaça com todo tipo de miséria. A consciência dessa
oposição não provém da fantasia, mas da experiência.

Max Horkheimer1

Nesse prólogo pretendo fornecer algumas respostas a questionamentos que em


meus sentimentos mais íntimos, nas horas mais solitárias da escrita da tese apareceram,
me perturbaram e que foram responsáveis pela produção dessa tese de doutoramento.
Nas páginas que seguem irei apresentar, de uma forma menos formal do que nos
capítulos seguintes, qual o sentido da obra para minha formação enquanto pesquisador,
docente e, sobretudo, como Psicólogo Social que tem se voltado para os estudos da
identidade humana e das formas de reconhecimento. Tentarei em poucas linhas fazer
uma reflexão sobre as metamorfoses que passei ao longo dos últimos anos como pós-
graduando em Psicologia Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUCSP e o quanto essa experiência influenciou de forma direta meu contato com
pessoas, textos teórico-técnicos e principalmente com as narrativas de história de vida
das pessoas entendidas como portadoras de transtorno mental, doença mental, loucura
etc.
Inicio com algumas perguntas que me perseguiram durante toda a escrita do
trabalho ora apresentado, possivelmente as mais difíceis de responder: Por que essa
tese? Qual sua relevância social e científica? Discutir “doença mental” no auge da
Reforma Psiquiátrica brasileira, momento em que os discursos sobre o fechamento dos
manicômios e a implantação das instituições substitutivas — os Centros de Atenção
Psicossocial: CAPS, as Residências Terapêuticas etc. —, são hegemônicos nas políticas
de saúde mental e nas ciências da saúde, não seria sem sentido? O que justificaria
retomar um conceito (doença mental) que é negado e combatido pelo Movimento da
Luta Antimanicomial? Não seria mais interessante ajudar a encontrar novas tecnologias
para fortalecer o movimento e a implementação plena da Reforma Psiquiátrica?

1
HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. p.134.
24

Retomar a doença mental como objeto de pesquisa não seria lidar com um problema já
ultrapassado, ou como diria Pierre Bourdieu2, um falso problema?
Confesso que inicialmente pensava que sim! O projeto de tese inicial, inclusive,
procurava produzir um conhecimento que pudesse contribuir com a Reforma
Psiquiátrica, tal como ela tem se configurado no Brasil a partir da Lei 10.216, de 06 de
abril de 2001, mais especificamente, imaginava em tecer os prolegômenos para uma
clínica de identidade3. Acreditava que esse projeto contribuiria de forma crítica para a
transformação do discurso acerca das doenças mentais, certeza que provinha da crença
que compartilhei durante os últimos anos em que estive envolvido com a área4 e que me
fazia sentir sendo parte de um movimento de resistência, de vanguarda. A questão
inicial era como pensar uma clínica mais social, tal como Omar Ardans havia proposto
em sua primeira tentativa de pensar uma clínica de identidade5. Em outras palavras,

2
Cf. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. Passim.
3
O projeto inicial, apresentado na seleção de doutorado Programa de Estudos Pós-graduados em
Psicologia Social (PSO) da PUCSP no 1º semestre de 2006 era intitulado: Patologias mentais e sua
relação com as distorções sistemáticas da linguagem: Uma re-leitura a partir do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação. A proposta recebeu parecer consubstanciado em setembro de
2007 do PSO e foi encaminhado para a comissão de ética da PUCSP, sendo registrado como Protocolo
de Pesquisa n.196/2007 e aprovado na Reunião Ordinária do Comitê de Ética em Pesquisa da PUCSP
do dia 24/09/2007. É importante destacarmos que não submetemos o projeto novamente a este comitê
após a mudança do foco de discussão da tese por acreditarmos que os elementos que garantem o
cumprimento das normas éticas continuam sendo observados e respeitados, inclusive, o objetivo
buscado nas entrevistas de história de vida, assim como o tipo de participantes, continuaram os
mesmos. (os pareceres constam no anexo)
4
Meu envolvimento com o campo da saúde mental dá-se desde o 3º. ano de minha graduação em
Psicologia, momento em que fiz estágio no Espaço Fernando Ramos da Silva, atualmente CAPSad, da
cidade de Diadema – SP. Desde então participei de Redução de Danos e Movimento da Luta
Antimanicomial, atuei como Psicólogo e coordenador de ambulatório de Saúde Mental na Prefeitura de
Rio Grande da Serra e no Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras drogas da Estância
Turística de Ribeirão Pires, ambas em São Paulo; tomei como objeto de pesquisa o uso de drogas e o
tratamento pelas oficinas terapêuticas no Mestrado realizado na PUCSP; cursei especialização em
Saúde Mental na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – USP; participei de dezenas de
Congressos, Fóruns, Encontros etc. no campo da Saúde Mental e Psicologia; e participei como membro
e posteriormente como membro-pesquisador do Consórcio Intermunicipal de Saúde Mental do ABC
Paulista.
5
Refiro-me aqui à influência que recebi na época da proposta apresentada anteriormente por Omar
Ardans, em 2001, no posfácio de sua tese de doutorado intitulada: Apontamentos sobre a
Metamorfose Humana: Um ensaio de Psicologia Social. O autor, nesse texto, ao propor uma
Psicologia Social Clínica, “supõe um movimento inverso àquele inaugurado pela psicanálise; no lugar
do percurso que leva das descobertas na psicologia individual à dimensão coletiva, ir da consideração
das formas espirituais e coletivas da sociabilidade, particularmente a partir do comportamento
desumano, para o individual em torno de sua identidade e de sua metamorfose.” op.cit. p.146. No
projeto inicial de doutorado, Ardans procurou focar seu projeto na Clínica de Identidade, estudando um
grupo de profissionais antroposóficos que desenvolvia um trabalho social em três favelas paulistas;
porém, esse grupo passou por dificuldades e encerrou as atividades, inviabilizando o andamento do
projeto e fazendo com que o pesquisador mudasse o foco inicial e assumisse um caráter teórico que
fornecesse subsídios para a ampliação das discussões sobre metamorfose e das categorias a ela
vinculadas.
25

estava certo de que o problema era como aplicar os pressupostos teórico-metodológicos


da Psicologia Social à Reforma Psiquiátrica e com isso demorei um pouco para
finalmente entender algumas das provocações trazidas pelo professor Dr. Odair Sass,
ainda na minha qualificação e posteriormente defesa da dissertação de mestrado6.
Não sei se meu orientador — Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa — conseguiu
enxergar todas essas minhas dificuldades iniciais com o tema ou se já vislumbrava as
possibilidades de metamorfose apresentadas aqui. Mas não poderia deixar de apontar
que certamente foi no decorrer de nossas conversas, nos corredores, na sala do
Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social, nas orientações em sua casa,
que essas transformações foram sendo gestadas e tornadas possíveis. Ouso dizer,
inclusive, que o texto ora apresentado é uma resposta ao nosso primeiro contato na
PUCSP. Lembro que com alguns manuscritos o procurei após ler A estória do Severino
e a história da Severina, ainda quando fazia estágio de graduação e lhe contei sobre
meu interesse em articular a teoria de identidade com o manejo das oficinas terapêuticas
e que desejava sua orientação, terminei perguntando o que achava da proposta.
Estávamos em uma lanchonete situada dentro da PUCSP. Sua resposta, após ter
acabado de fumar um cigarro e tomar um primeiro gole de café, foi uma pergunta que
me perseguiria durante os anos seguintes. Com a calma e clareza que sempre tece seus
comentários e faz sugestões, me perguntou se era médico. Com minha resposta
negativa, continuou dizendo: “— pois você me parece um médico querendo descrever
uma nova terapêutica!”. Sem comentar mais nada a respeito de minha questão inicial
me convidou para participar do Núcleo de Estudos da Identidade Humana e indicou
“Pensamento Pós-Metafísico”, de Jürgen Habermas, para ler, inaugurando meu ingresso
na leitura das diversas teorias críticas.
Passaram-se alguns anos desde esse primeiro encontro. O tema que motivou
minha procura pela academia permaneceu, entretanto, as metamorfoses ocorridas na
maneira como compreendia o tema foram muitas. Atualmente o prof. Ciampa não fuma,
nem toma café e mais do que orientador é um amigo pessoal, eu sou Psicólogo,

6
Na dissertação de mestrado que também inicialmente procurei entender o potencial terapêutico das
oficinas de teatro para os usuários de drogas ficou claro que o “terapêutico” dessa oficina não era a
produção artística, mas sim, a possibilidade de reconhecimento do humano por trás do diagnóstico
psiquiátrico. Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de
identidade: possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro e
Dependência de drogas e psicologia social: um estudo sobre o sentido das oficinas terapêuticas e o
uso de drogas a partir da teoria de identidade.
26

continuei com diversas atuações na área da saúde mental. Exerço a docência e pesquisa
na área de Psicologia Social do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará –
UFC e estou preste a defender uma tese de doutoramento. Uma tese resultante do
impacto de um primeiro encontro e que acompanhada das vivências ao longo desses
anos foi se configurando como um projeto não apenas de doutorado, mas também, como
um projeto de trabalho para minha vida. Sendo assim, fica evidente que a pergunta que
remetia ao lugar de onde estava fazendo meus questionamentos foi recorrente em
minhas leituras, ora aparecendo como um demônio inoportuno, ora sendo acolhida e até
mesmo sendo esperada nos lugares certos.
Poderia dizer aqui, de um outro modo, que a tese apresentada a seguir é uma
tentativa de resposta àquela simples pergunta de Ciampa, que não conseguiu ser
respondida e que colocou em xeque tudo o que eu acreditava. Pergunta que hoje
percebo ter incomodado por denunciar a persistência de uma racionalidade psiquiátrica7
em meu próprio discurso, o discurso psicológico, que aprendi em minha formação e que
entrava em consonância com o discurso da Reforma Psiquiátrica brasileira. Tomar
consciência desse fato, como poderá ser observado ao longo da tese, influenciou
radicalmente as metamorfoses frente minha proposta inicial, uma vez que as
dificuldades de implementação efetiva da reforma psiquiátrica, que me parecia no início
da pesquisa ser de ordem meramente instrumental, passaram a ser percebidas de forma
diferenciada quando percebi que no caso da saúde mental, que tem se voltado para
atender objetivos utilitariamente estabelecidos (redução de leitos e ampliação de
serviços substitutivos), estava diante do divórcio entre a teoria e a práxis.
Como se poderia imaginar, essa guinada fez com que a construção da pesquisa
se tornasse um trabalho árduo que encontrou como principal dificuldade a revisão de
meu projeto ético-político de vida. Uma vez que minha formação em Psicologia, que de
certa maneira ainda é hegemônica no Brasil e ao meu ver tem transformado a formação
universitária em deformação profissional, voltou-se muito mais para a reprodução da
prática e aprimoramento de aplicações das teorias e técnicas com vistas no mercado de

7
Racionalidade psiquiátrica e discurso psiquiátrico são entendidos aqui como evidências de não
superação da instituição psiquiátrica, que mais do que uma estrutura concreta que separaria os
indivíduo normais dos anormais, excluindo-os do espaço público, refere-se ao conjunto de
conhecimentos e normas morais revestidas de científicas determinam o que é doença mental. Como
assinala Thomas Szasz, o discurso normativo e classificador da Psicologia e Psiquiatria, que ao
utilizarem-se de metáforas comparativas com as doenças físicas, transformam o sofrimento frente aos
problemas estruturais do capitalismo em doença mental. Cf. SZASZ, Thomas S. O mito da doença
mental.
27

trabalho, do que para a história, crítica, questionamento e produção do conhecimento


psicológico. Não percebia que a armadilha conceitual presente no campo da saúde
mental, — que ao mesmo tempo que me direcionava para o ativismo8 obscurecia minha
percepção da produção da exclusão (entendida aqui como processo estrutural) a ponto
de transformar em “sofrimento psíquico”, “doença mental”, o sentimento frente à grave
situação de desemprego, de precarização do emprego, vulnerabilidade do trabalho,
exploração e indeterminação — fazia com que eu ofertasse uma escuta surda, um olhar
cego, uma fala muda e uma ação reiterativa9.
Acredito que seja importante discorrer, mesmo que de forma breve, sobre essa
metamorfose, uma vez que antes de fazer parte do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo não havia me
atentado às diversas análises já realizadas, por autores como Jürgen Habermas, Max
Horkheimer, Theodor Adorno, Hannah Arendt, Cornelius Castoriadis, Naomi Klein,
Boaventura de Souza Santos, Giorgio Agamben, Slavoj Žižek, Milton Santos e tantos
outros, que fizeram parte de meu programa de estudos nos últimos anos. Um programa
de estudos que mais do que se preocupar com o aprofundamento dos temas trabalhados
no mestrado e doutorado voltou-se para o aprofundamento da história e epistemologia
da Psicologia Social, a pragmática, a ética do discurso, a hermenêutica, a dialética, a
psicanálise, a teoria política e teoria crítica.
Inevitavelmente, na medida em que o programa de estudos foi sendo
desenvolvido, o olhar e a crítica aos objetos estudados foram se transformando
radicalmente. Na esfera teórica o auge das metamorfoses sofridas frente ao objeto de
estudo pode ser identificada durante a pós-graduação em saúde mental, cursada e

8
É notório o enfraquecimento da figura do militante em nosso momento histórico, indícios e reflexos da
força do militarismo em nosso país. Para mim que nasci no final da ditadura é extremamente difícil
vivenciar a experiência de resistência e encontrar um projeto utópico. Entendo que a socialização para
militância transformou-se em uma socialização para o ativismo (cada vez mais especializado), esse
último entendido como uma ação pragmática que abandona visões totalizadoras em benefício de
implicações mais pontuais. O politicamente correto é pressuposto e visto como postura de vanguarda
(que curiosamente questiona as partes mas alia-se ao todo).
9
Rosa Maria Nader, em sua tese de doutoramento de 1990 descrevia uma realidade que ainda não foi
superada pelos profissionais da psicologia inseridos nos serviços substitutivos. Por escuta surda a
autora entende a onipotência do saber a priori utilizado pelo psicólogo que faz com que sua escuta seja
avaliada pela capacidade de articular a realidade com a teoria, o olhar cego refere-se ao olhar treinado
para a classificação (que por mais que seja questionada acaba cedendo ao CID10 ao mantermos os
conceitos tradicionais) e, finalmente, a fala muda, replicante de um discurso tecnificado ou fetichizado,
muda por não conseguir expressar o verdadeiro sofrimento do indivíduo submetido ao especialista. Cf.
NADER, Rosa Maria. Psicologia e Transformação: Os caminhos para a prática psi. Por ação
reiterativa entendemos a práxis que não produz de fato algo transformador, apenas repõe o que já está
instituído.
28

concluída entre o final da pesquisa de mestrado e início do doutoramento.


“Especialização” que me mostrou claramente que ao invés de construir “outra”
alternativa para o campo da saúde mental, transformando radicalmente a realidade que o
indivíduo, nomeado doente mental, louco, está inserido, estava me transformando em
especialista na administração e faturamento do que é convencionalmente entendido
como doença mental; mais um cínico, como bem descreve Žižek, que sabe o que faz,
mas continua a fazê-lo10. Percebi que o objetivo maior da proposta, a publicização da
loucura, o aumento da cidadania do louco, era na verdade a promoção de uma cidadania
despolitizada e reduzida à simples inserção do indivíduo não-convencional numa forma
de vida social já dada, que não questionava a realidade instaurada.
Na esfera prática, meu próprio envolvimento com o tema, a partir da
participação em fóruns, reuniões técnicas de planejamento orçamentário, congressos e
serviços substitutivos em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catarina,
Ceará e Pará, fez com que gradualmente enxergasse que o próprio discurso da
desinstitucionalização, proposto pelos precursores da atual reforma psiquiátrica, tem
sido cada vez mais reduzido à diminuição de leitos nos manicômios e aumento de vagas
de trabalho para equipes multiprofissionais. Não refletindo acerca da nova forma de
institucionalização que tem sido proposta e implementada com o aumento dos serviços
substitutivos (implementados muitas das vezes por conta de facilidades e incentivos
governamentais e não por iniciativa de movimentos sociais) e oferta de empregos, em
grande maioria não vinculados a concursos públicos e sujeitos a contratações via
Organizações Sociais (OS), ou ainda, com utilização de cargos comissionados
(profissionais que sequer entendem o sentido da própria reforma psiquiátrica e foram
“formados” de forma tradicional ou para o mercado). Até mesmo o discurso positivo de
luta pelos direitos humanos do indivíduo não-convencional, começou a desvelar-se
como um discurso que não conseguia problematizar o quanto o doente mental libertado,
tornado agente econômico (consumidor) e mercadoria (objeto de trabalho para os
especialistas e indústrias), passa a estar submetido a uma nova fase da administração
capitalista, cuja fase de produção atual tem promovido a existência de consumidores,
nos mais diversos seguimentos de mercado.
A articulação entre essas duas esferas fez com que percebesse que nos dois
movimentos, que se descrevem como opostos tanto na literatura referente à Saúde

10
Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia.
29

Mental quanto na prática, persiste, em última análise, o mesmo problema. O primeiro


deles é o dos ativistas da Reforma Psiquiátrica que elogiam e engrandecem seu próprio
discurso como movimento de vanguarda, o segundo, é aquele feito pelos militantes da
Psiquiatria Clássica que seguem defendendo a retomada dos manicômios11. Nos dois
discursos12 o indivíduo continua sendo tutelado e desresponsabilizado. Sua fala é
medida pela mesma cama de Procusto13, a equipe multiprofissional, quando não apenas
o psiquiatra, são aqueles que dizem o que é normal e patológico.
Na prática o indivíduo diagnosticado ainda recebe o estigma que o acompanhará
pelo resto de sua vida como usuário da saúde mental: “louco em abstinência,
estabilizado”. A persistência do discurso psiquiátrico na atualidade, tão bem
demonstrado nos trabalhos clássicos de Thomas Szasz e Michel Foucault, possibilita
observar que na reforma os avanços teóricos e mesmo concretos foram pouquíssimos: o
muro do manicômio foi derrubado, mas o discurso da instituição psiquiátrica
permanece. O indivíduo continua sendo selecionado e classificado a partir do mesmo
ideal de normalidade, como na criticada psiquiatria clássica. Impossibilitado de negar o
diagnóstico (se o fizer prova sua doença) e a terapêutica acordada pelos “técnicos”, tem
que lidar com o risco de ser visto como usuário sem perfil para os serviços substitutivos,
ou ainda, perder algum “benefício” da previdência social, só restando alguma dignidade
e reconhecimento para os “militantes profissionais”14, obviamente pelo seu papel de
legitimizadores das práticas estabelecidas.

11
Utilizando-se da retórica científica, que Szasz já mostrou ser extremamente fraca no que se refere ao
conceito de doença mental, os opositores da desconstrução das instituições psiquiátricas asilares
defendem a legitimidade frente ao controle do doente mental, incapaz e abandonado. Ver, por exemplo,
o editorial assinado por Valentim Gentil, do Hospital das Clínicas da FMUSP, publicado na Revista
Brasileira de Psiquiatria.
12
É importante que fique claro que não estou negando o fato explícito de que o discurso da Reforma
Psiquiátrica é mais humanizado e que é um avanço frente a lógica manicomial, a ênfase dada aqui é
para o fato de esse discurso ter se transformado em apenas apenas isso, um discurso mais humanizado,
não questionando a concepção de loucura socialmente estabelecida, simplesmente propondo uma
reabilitação ao instituído.
13
O uso do termo cama de Procusto remete ao mito grego, onde para entrar em Atenas, o viajante tinha
que passar por um portão. Este portão era guardado por Procusto, um monstro poderoso que só deixava
entrar aqueles que correspondiam a um padrão ideal, a uma certa normalidade. Se a pessoa fosse muito
baixa, ele a punha numa cama de ferro para esticá-la; se fosse muito alta, ele a deitava nesta cama e
submetia a vítima a uma cirurgia, cortando-lhe os pés; este leito era conhecido como a Cama de
Procusto.
14
Militantes profissionais é um termo empregado por Jubel Barreto (2005) para designar determinados
pacientes (usuários de serviços substitutivos) que participam em diversos eventos e que atestam as
vantagens de estar fora do manicômio, o que podemos pensar que serve muito mais para reforçar a
política adotada do que para ampliar sua participação no espaço público, ou ainda, questionar os novos
serviços, defendidos como ideais para essas pessoas.
30

Aparente está que ao imergir nesse universo, passei a entender que os problemas
presentes na implantação das instituições substitutivas não são da ordem do treinamento
e organização, mas sim, da própria concepção de “reforma psiquiátrica”, que não se
interessa em libertar os indivíduos do discurso psiquiátrico, o qual continua sendo
fortalecido e pregrado religiosamente a partir da pactuação dos diferentes campos de
conhecimentos que se organizam em torno da concepção de saúde mental com o Estado.
As metamorfoses me fizeram abandonar o objetivo inicial de propor mais uma
tecnologia para aquilo que é pressuposto como discurso de “vanguarda” — o que
colocaria a Psicologia Social a serviço dessa lógica — e buscasse compreender as
influências desse discurso, na construção e manutenção da personagem doente mental,
portador de sofrimento psíquico, louco etc., e sua relação com o capitalismo avançado,
o que por sua vez, propõe o uso da Psicologia Social não como tecnologia de saúde
mental, mas sim, como possibilidade de crítica do discurso psiquiátrico.
Inevitavelmente, também ficará explícito no texto que a análise, constituída a
partir da procura por pontos de sutura entre a Filosofia, Psicanálise, Teoria Crítica,
Teorias da Comunicação e Psicologia Social, focará e não só desvelará o que “está aí”
— a persistência do discurso psiquiátrico mascarado de “novo” discurso de cuidado —,
mas principalmente os perigos que a utilização de um reconhecimento perverso — que
reduz as diversas personagens que compõem a identidade dos indivíduos à uma
representação da personagem fetichizada que impede os mesmos de serem algo mais
que o militante profissional ou doente mental em recuperação — oferece para a
emancipação humana. Valendo-me de uma metáfora comumente utilizada nos textos
que tratam da saúde mental, que diz colocar em xeque a concepção de loucura —
rebatizada pela polissemia que, em última análise, redunda no significado de doença
mental —, acredito que o texto a seguir é uma proposta de leitura alternativa cuja
argumentação defende que enquanto continuarmos apenas colocando em xeque a
instituição psiquiátrica permaneceremos consentindo em jogar a mesma partida. A tese
adquire uma postura frente ao conhecimento o qual segue a proposição de Paul
Feyerabend15, para quem fazer ciência é assumir um empreendimento anárquico, cuja
produção deve ser capaz de avaliar quanto avançamos frente à nossas crenças em
determinadas teorias ou quanto colaboramos com a reposição de uma tecnologia que
serve ao modismo e adequação à sociedade.

15
FEYERABEND, Paul. Contra o Método.
OBJETO E MÉTODO

A confusão e o deserto da psicologia não se explicam


pelo fato de ela ser uma “ciência jovem”; seu estado não
pode ser comparado com o da física, por exemplo, nos
seus inícios. Existem na psicologia métodos
experimentais e confusão conceitual.

Ludwig Wittgenstein1

É importante que apresentemos, antes da tese propriamente dita, como


entendemos a relação entre o método e o objeto da pesquisa. É necessário que
registremos aqui os meios utilizados para a compreensão de nosso objeto de estudo,
pois como escreve Humberto Eco, somente a partir dessa definição é que poderemos
“definir as condições sob as quais podemos falar, com base em certas regras que
estabelecemos ou que outros estabeleceram antes de nós”2. O texto que segue tem como
intuito expressar como fizemos a pesquisa e de certa maneira, apresentar os obstáculos
epistemológicos encontrados em nosso percurso. Todavia, não tem a pretensão de ser
uma discussão antecipada daquilo que se pretende estudar, acreditamos que aqui
poderemos indicar como objeto e método apareceram como indissociáveis entre si. Ao
ponto que o próprio objeto determinou, “dentro dos limites possíveis e conhecidos, o
método e não o inverso”. Da mesma forma, acreditamos que será visível como a escolha
de uma ou de outra técnica para investigar o problema foi “condicionado à teoria e às
hipóteses dele decorrentes”3, afastando-nos de alguns outros métodos, sobretudo, o
positivista.
Essa é uma pesquisa de Psicologia Social que toma como referencial teórico-
metodológico de base autores da chamada Teoria Crítica, que por sua vez, consideram o
fenômeno estudado a partir de suas determinações histórico-sociais e sua orientação
para a emancipação humana, ao mesmo tempo possível e bloqueada pela lógica própria
da organização social vigente. Teoria Crítica aqui é entendida como um campo teórico
amplo que está além da configuração histórica que lhe conferiu o título de Escola de
Frankfurt4, mas que continua orientando-se para a compreensão das possibilidades de

1
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. p.206. [grifos do autor]
2
ECO, Humberto. Como se faz uma tese. p.21.
3
SASS, Odair. Teoria Crítica e investigação empírica na psicologia. p. 147-159.
4
No sentido originário dado por Max Horkheimer em seu artigo de 1937, “Teoria Tradicional e Teoria
Crítica”, a expressão apontava um campo teórico ligado ao marxismo. Esse posicionamento ajuda a
32

emancipação da dominação. Esse posicionamento crítico requer uma atitude frente ao


conhecimento tão prudente quanto aquela que é recomendada para as leituras do senso
comum. Do mesmo modo, exige um estado de alerta diante dos conhecimentos atuais e
uma disposição interna para colocar as verdades escolares em questionamento.
Conhecimentos que são postos à prova a partir da explicitação dos discursos sufocados
e naturalizados. Um exercício concreto, como defende Boaventura de Souza Santos, “de
provocação que faz ao pensamento e à práxis no duplo movimento de trabalhar
conceitos hegemônicos de forma contra-hegemônica, buscando indícios de superação
das relações sociais capitalistas”5 e as artimanhas de reposição da realidade atual.
O distanciamento que fazemos do método positivista se dá por entendermos que
este é um sistema de referência que busca a partir do reducionismo dos fenômenos e do
controle de variáveis um resultado pressuposto generalizável. O pesquisador pré-avalia
o sentido de possíveis proposições científico-experimentais, que por sua vez estabelece
regras não só para a construção de teorias, mas também para sua comprovação crítica6,
o que faz com que a análise da realidade somente seja reconhecida como objetiva se
realizada por instrumentos padronizados, pretensamente neutros. A busca pelo resultado
controlado nos leva a questionar se os dados produzidos a partir dessa perspectiva são
realmente aquilo que se propõe a priori conhecer, ou se na verdade o que se prova é a
fidedignidade do experimento, sua replicação instrumental, independente da realidade.
Não iremos alongar essa discussão do positivismo e nossa crítica a esse modelo,
diversos autores já a fizeram com bastante competência. Basta trazer aqui a constatação
de Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, ainda na década de 80 do século passado, que
dentre outras proposições diziam que “não estamos mais no tempo em que os
fenômenos imutáveis prendiam atenção. Não são mais as situações estáveis e as
permanências que nos interessam antes de tudo, mas as evoluções, as crises e
instabilidades”7. Concordamos que necessitamos de “uma teoria sobre a impossibilidade

entender porque autores como Axel Honneth e Jürgen Habermas, que não compartilham totalmente com
o projeto inicial frankfurtiano, não sejam relacionados à Escola de Frankfurt mas ainda sejam
considerados herdeiros do legado da Teoria Crítica. Uma discussão interessante a esse respeito pode ser
encontrada em: NOBRE, Marcos. Luta por Reconhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crítica.
5
SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. p.11.
6
Nossas críticas ao modelo positivo baseiam-se nas discussões realizadas pelos autores da Escola
Frankfurtiana, sobretudo as críticas realizadas por Jürgen Habermas. Cf. HABERMAS, Jürgen. La
lógica de las ciencias sociales & Idem. Técnica e Ciência como Ideologia.
7
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabele. A nova aliança: A metamorfose da Ciência. p.5 e segts.
33

de uma teoria geral”8 e que somente a partir dessa guinada epistemológica é que
poderemos desenvolver uma Psicologia Social Crítica9. Afinal, já é bem conhecido o
fato de a Psicologia Científica, sobretudo a Psicologia Social, ter tomado forma a partir
de uma cadeia de pretensões de conhecimento acerca dos indivíduos e coletividades que
permitiram o controle e adaptação desses à ordem estabelecida, ou seja, serviu como
instrumento de normalização e administração da sociedade.
Por enquanto adiantamos que o fato de assumirmos a articulação entre a
Psicologia Social e a Teoria Crítica deixa explícita nossa posição frente à produção de
conhecimento numa época em que o capitalismo tardio vive sua globalização em busca
de legitimação10, transformando as formas sociais de interação em relações de consumo
e a cultura em commodities11. O Materialismo Histórico leva-nos a considerar que o
conhecimento do real é uma luta contra a opacidade, nunca é imediato e pleno, em
outras palavras, que o pensamento empírico somente torna-se claro a posteriori, quando
o conjunto de argumentos é enfim explicitados. Isso refletido está na maneira como a
pesquisa foi realizada, que não condiz diretamente com a forma que se encontra
apresentada: itinerário histórico, itinerário teórico, itinerário empírico e itinerários que
se entrecruzam.
Apontamos no prólogo as metamorfoses que o pesquisador sofreu ao longo da
pesquisa, entretanto, não dissemos como essas metamorfoses influenciaram a escrita
desse trabalho. Podemos dizer que a tese foi tomando forma a partir de um movimento
contrário às pesquisas geralmente feitas acerca do tema, que seguem a ideologia
dominante da reforma psiquiátrica e têm como pressuposto o discurso da psiquiatria e
anti-psiquiatria como ponto inicial. Essa é uma pesquisa de identidade entendida como
metamorfose humana, que segue como influencia as proposições teóricas desenvolvidas

8
SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. p.39.
9
Não discutiremos o termo “Psicologia Social Crítica”, sua utilização durante o desenvolvimento da tese
mostrará que se trata de pensar a Psicologia Social articulada com o Materialismo Histórico. É
importante assinalar, entretanto, Psicologia Social Crítica não é uma nomenclatura nova, ela aparece
como configuração de uma proposta para o campo da Psicologia Social na década de 70 do século
passado. Para maiores detalhes sugerimos a leitura dos textos: LANE, Silvia T. M. A Psicologia Social
e uma nova concepção do homem para a Psicologia; Ibidem. O processo grupal & MONTEIRO,
Luís G. M. Objetividade x Subjetividade: da crítica à psicologia à psicologia crítica.
10
Cf. HABERMAS, Jürgen. Crise de legitimação no capitalismo tardio.
11
Cf. HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Harvey escreve que “dentro da lógica da
acumulação do capital, é que o capital possui meios de se apropriar e extrair excedentes das diferenças
locais, das variações culturais locais e dos significados estéticos, não obstante a origem.” p.237.
34

por Antonio da Costa Ciampa12, o que nos leva a considerar que lidamos com algo que
não contém nenhum núcleo duro que garanta sua consistência.
Na concepção de Ciampa, que difere de outros autores da sociologia e psicologia
que tratam a identidade como identidades híbridas13, transnacionais14, líquidas15, pós-
convencionais16, agenciamentos17, zonas de contato e rotas18, subversão e
transgressão19, identização20, ipseidade21, agenciamentos22 etc., a identidade somente é
representada por meio de personagens, que quando são reconhecidas, negam a
totalidade da identidade. Em outras palavras, a identidade é compreendida como uma
interioridade que somente é vista quando exteriorizada. Isso, por sua vez, obriga-nos a
aceitar que a identidade somente é passível de ser estudada em sua aparência, através de
seu auto-reflexo, no jogo de representação entre as diferentes personagens, ou ainda, no
fetiche da representação de algumas delas. Por conta disso, a questão do
reconhecimento mostrar-se-á essencial no decorrer da pesquisa, uma vez que
acreditamos ser justamente nas formas de reconhecimento das identidades que
poderemos vislumbrar como as personagens são superadas, articuladas ou condenadas à
reposição. No que se refere a essa última colocação, assinalaremos tanto como os
efeitos do discurso propagado pela instituição psiquiátrica foi sendo desenvolvido com
o intuito de construir a personagem doente mental, como também evidenciaremos a
função da manutenção desse discurso para a sociedade capitalista atual.
Podemos dizer que a construção da tese foi realizada pelo seu avesso, ou seja,
primeiramente entramos em contato com a realidade que pretendíamos estudar e com
possíveis “informantes”, que eram indivíduos que indicavam pessoas que eram vistas
por eles como “doentes mentais”, “pessoas portadoras de sofrimento mental”, “loucos”
etc., ou ainda, que se descreviam como doentes mentais e/ou usuários de saúde mental.
Esses informantes foram escolhidos aleatoriamente, nos diferentes espaços sociais em
12
A concepção de identidade como metamorfose será explorada na segunda parte do segunda parte, por
enquanto podemos dizer que nos referimos ao trabalho: CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do
Severino e a História da Severina: Um ensaio de Psicologia Social.
13
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura.
14
GILROY, Paul. The Sugar You Stir.
15
BAUMAN, Zygmunt. Identidade.
16
HABERMAS, Jürgen. Para a Reconstrução do Materialismo Histórico.
17
BUTLER, Judith. Agencies of Style for a Liminal Subject.
18
CLIFFORD, James. Taking Identity Politics Seriously: ‘The Contradictory Stony Ground…’.
19
GROSSBERG, Lawrence. History, Imagination and the Politics of Belonging: Between the Death
and Fear of history.
20
MELUCCI, Alberto. O Jogo do Eu.
21
RICOEUR, Paul. O si mesmo como um Outro.
22
TAYLOR, Charles. O que é agência humana?
35

que o pesquisador participou, tais como: escolas, praças, universidades, clínicas,


instituições substitutivas de saúde mental, Internet etc. Sendo que o objetivo dessa
estratégia foi o de encontrar pessoas que eram reconhecidas ou se reconheciam como
doentes mentais e que não necessariamente faziam parte da rede de saúde mental
implementada pelo Estado. E, posteriormente, a partir das indicações feitas pelos
informantes e das pesquisas de grupos na Internet, nos aproximamos dos entrevistados,
submetemos o projeto de pesquisa à comissão de ética da PUCSP23 e agendamos a
gravação das narrativas de histórias de vida com doze deles24. Com as primeiras
histórias de vida em mãos, começamos a levantar o material bibliográfico que
possibilitasse compreender como se constituiu historicamente a concepção de normal e
patológico no Brasil (principalmente a relação estabelecida entre a Psiquiatria,
Psicologia, Sociedade, Estado e Capitalismo), e, finalmente, articulamos esse material
com o referencial teórico-metodológico da Psicologia Social, mais especificamente, a
teoria de identidade proposta por Ciampa, que por sua vez, foi articulada com as
proposições da Teoria Crítica25, Teorias da Comunicação e a Psicanálise26.
Podemos dizer que fizemos um exercício de pensamento contra-indutivo,
utilizando aqui uma contribuição de Feyerabend27, e esperamos que este conjunto de
proposições presentes nessa tese possa colaborar com a construção de uma leitura
acerca dos fenômenos descritos como doenças mentais que parta não mais da orientação
psiquiátrica, mas do corpo teórico da Psicologia Social Crítica. Não foi nosso intuito
fazer uma análise institucional da instituição psiquiátrica — nos pareceu mais
interessante contrapor as histórias de vida com os discursos da instituição psiquiátrica e
a partir dessa contraposição pensar qual a relação com o trabalho, a economia e a
dominação. Isso não significa que tenhamos desprezado as contribuições clássicas da
antipsiquiatria presentes nas obras de Ervin Goffman, Michael Foucault, Thomas Szasz,
Ronald Laing e Theodor Sarbin. Esses autores nos mostraram como o naturalismo
instaurado pelo discurso normativo da instituição psiquiátrica, que tem imperado nas
interpretações não somente da saúde mental, sempre foi articulado com o
desenvolvimento do capitalismo e tem sido utilizado como neutralizador de nossas

23
A aprovação da Comissão de Ética da PUCSP encontra-se na sessão de anexos.
24
Embora tenhamos realizado as entrevistas com doze pessoas apenas utilizaremos três delas.
25
Principalmente os trabalhos de Jürgen Habermas & Axel Honneth.
26
Principalmente as proposições de Slavoj Žižek e seus interlocutores brasileiros: Vladimir Safatle &
José Luiz Aidar Prado.
27
Cf. FEYERABEND, Paul. Contra o Método.
36

fontes morais e éticas sendo, portanto, um dos grandes males da nossa sociedade.
Naturalismo que tenta impedir que vejamos a hierarquia moral que sempre existe nos
diagnósticos e que serve de pano de fundo para os indivíduos avaliarem uns aos outros.
Essa postura na produção de conhecimento fez com que nos aproximássemos
tanto do que Cecília Minayo28 entende como método hermenêutico-dialético, quanto da
tentativa de reconciliação entre a hermenêutica e a crítica das ideologias proposta por
Paul Ricoeur29. Esses dois modelos, que apresentam mais pontos de encontro do que se
distanciam, nos trazem elementos importantes “na crítica da produção do conhecimento
científico, principalmente no esforço que estes apresentam contra a ameaça da
tecnocracia”30. As narrativas e os discursos dos indivíduos são entendidas como centro
da análise, situadas em seu contexto e o pesquisador tem a tarefa de entender o
fenômeno ou processo social a partir das suas determinações e transformações dadas
pelos indivíduos.31 É importante lembrar que assinalar que nos aproximamos desses
modelos teóricos não significa que nos afastemos do materialismo histórico que, por sua
vez, — aqui nos valemos da interpretação de Slavoj Žižek das teses sobre o conceito de
história de Walter Benjamin —, tem a capacidade “de imobilizar o movimento
histórico, de isolar o detalhe da totalidade histórica”32, possibilitando que vislumbremos
como determinado aspecto tem sido re-posto, retornando como passado “repleto do
presente” por não ter sido revolucionado33.
De forma esquemática, podemos dizer que a partir das narrativas de história de
vida nos colocamos três tarefas: primeira, explorar as concepções tradicionais e
descobrir a serviço de quem determinado conhecimento foi produzido e tem se

28
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde.
29
Essa reconciliação é desenvolvida por esse autor no trabalho: RICOEUR, P. Interpretação e
Ideologias. Nesse trabalho, Ricoeur, após a análise que faz do debate ocorrido entre Habermas e
Gadamer, chega à conclusão que: “A tarefa da hermenêutica das tradições é a de lembrar à crítica das
ideologias que é sobre o fundo da reinterpretação criadora das heranças culturais que o homem pode
projetar sua emancipação e antecipar uma comunicação sem entrave e sem limite. (...) É bem provável
que quem não é capaz de reinterpretar seu passado, também não seja capaz de projetar concretamente
seu interesse pela emancipação.” p.142.
30
LIMA, Aluísio Ferreira de. Hermenêutica da Tradição ou Crítica das Ideologias? O debate entre
Hans-Georg Gadamer & Jürgen Habermas.
31
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Ciência, Técnica e Arte: O desafio da pesquisa social. p. 25 e
segts. [grifos da autora]
32
ŽIŽEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. p.182.
33
Como escreve Žižek, esse é o momento em que “o contínuo se rompe, onde se aniquila a textura da
história prévia, a dos vencedores, e onde, retroativamente, através do sucesso da revolução, todos os
‘atos falhos’, todas as tentativas malogradas do passado, que funcionavam no texto vigente como traço
vazio e desprovido de sentido, são resgatadas, recebem sua significação.” op.cit. p.185.
37

perpetuado; segunda, trazer a experiência do mundo da vida34, o diálogo abafado, para


contrapor a essas teorias e colocá-las a prova; terceira, realizar uma análise que possa
explicitar35 o papel do discurso psiquiátrico na manutenção da realidade social e no
reconhecimento da identidade pessoal. Aqui não só explicitar como as identidades tem
sido danificadas pelo discurso psiquiátrico, mas também apontar os limites e as
implicações éticas na utilização cínica desse discurso. Sendo assim, o que buscamos
com a tese não será descrever como determinado conhecimento representa o real, mas
sim discorrer sobre o que determinado conhecimento produz na realidade, sua
intervenção no real. A importância de tal proposição estará na possibilidade que
apresenta na explicitação da colonização do imaginário e as possibilidades de
alterização e emancipação da identidade. Propomos que o objeto de estudo fosse visto a
partir de sua gênese histórico-social, a qual possibilitou observar que no caso da doença
mental ao invés de encontrar uma ação dos indivíduos sobre um determinado objeto,
deparamo-nos com um processo invertido no qual o indivíduo é definido pela
passividade e é do objeto que vem o movimento. Essa inversão, como poderá ser
acompanhada no itinerário histórico, mostrar-se-á como particularidade própria da

34
Mundo da Vida é citado aqui a partir da apreensão habermasiana do conceito, que se refere ao “lugar
transcedental” do indivíduo, no qual ele está sempre inserido, em relação ao qual é impossível manter
uma distância. “O ‘mundo da vida’ tanto forma o horizonte como o pano de fundo para a comunicação
quotidiana e a experiência quotidiana. O ‘mundo da vida’, enquanto pano de fundo e contexto pouco
temático e levado por acréscimo, forma o pólo oposto para um saber tematizado, que é presenciado,
dentro do seu horizonte, e exposto, sempre de novo, ao risco de dissenção, do poder-dizer-não. Já na
comunicação quotidiana combinamos as nossas enunciações com as exigências de validade, possíveis
de criticar, que transcendem todos os padrões provinciais enquanto meras exigências. Com isto, as
tensões sentidas entre as contingentes limitações e as idealizadoras pressuposições da práxis do
entendimento mútuo invadem o ‘mundo da vida’ propriamente dito – idealizações, essas, que na
realidade se põem em evidência, com totais e antes de mais, nas formas comunicativas das
argumentações. O contrapropendente jogo mútuo entre aquele saber explícito, que depende de
idealizações, e aquele saber de segundo plano, que absorve os riscos, não se pratica, tal como Husserl
julgava, na concorrência entre o saber empírico da ciência, dos especialistas, e as certezas pré-teóricas.
O ‘mundo da vida’ permanece referenciado, muito mais, como pano de fundo e horizonte, numa práxis
quotidiana da vida cujos pressupostos de comunicação dependem, prontamente, de idealizações.”
HABERMAS, Jürgen. Edmund Husserl sobre o “mundo da vida”, filosofia e ciência. p.41
35
Acreditamos que a palavra “explicitar” é a que melhor se encaixa para descrever àquilo que faremos no
decorrer da tese, pois concordamos com posturas como a Slavoj Žižek que no momento atual não se
trata mais de “desvelar”, “descobrir”, “desmistificar”, “desalienar” etc. O problema é o do exercício
hegeliano de negação da negação daquilo que está aí: a aparência. Esse difícil exercício, como bem
assinala Žižek, “não nos leva a uma mera e simples afirmação: assim que as coisas (começam a)
parecer, não só parecem o que não são, criando uma ilusão, como também podem parecer apenas
parecer, ocultando o fato de que são o que parecem ser.” ŽIŽEK, Slavoj. Visão em paralaxe. 48. Nesse
sentido, assumimos que não existem dois pontos de vista (o bem e o mal), mas sim, que existe um
ponto de vista (que na tese mostrar-se-á como o discurso da saúde mental) e o que foge a ele, um outro
ponto de vista que é produzido pelo vazio do que não pode ser visto pelo primeiro ponto de vista (e que
pretendemos explicitar com as narrativas de história de vida de pessoas que organizam suas identidades
a partir da personagem doente mental).
38

gênese de nosso objeto, uma vez que diferentemente das patologias orgânicas em que o
pedido de diagnóstico e tratamento segue o princípio do alívio do sofrimento para o
doente, as chamadas doenças mentais surgem de uma reivindicação de membros da
sociedade que não suportavam o comportamento diferente de determinado membro da
sociedade36.
A escolha pela narrativa de história de vida como elemento empírico utilizado na
tese segue a proposta de pesquisa de identidade inaugurada há 21 anos por Antonio da
Costa Ciampa37, n’A Estória do Severino e a História da Severina. Nesse trabalho, a
história de vida foi um instrumento apropriado para obter as informações necessárias
para compreender como a identidade é metamorfose em busca de emancipação.
Seguindo uma certa influência sartreana38, principalmente a explanação que este faz do
método progressivo regressivo desenvolvido no trabalho Questão de método, Ciampa
nos ensina que a narrativa de história de vida pode demonstrar como o homem se
caracteriza antes de tudo por sua capacidade de superação das circunstâncias dadas, pela
capacidade de criar projetos para si e que isso permite compreender se o resultado de
suas ações promove uma realidade nova e provida de significação própria, em lugar de
ser muito mais do que simplesmente uma média.
Acreditamos que a utilização da narrativa de história de vida possibilita o
surgimento da personagem do narrador, que, segundo Benjamin, estaria em vias de
extinção, há muito esquecido e sufocado, por trazer as contradições do sistema e por
apontar o mal-estar cotidiano, “como se estivéssemos privados de uma faculdade que
nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”39. E uma vez
que não descrevemos o passado simplesmente, mas o articulamos com nosso presente e
projetos futuros, também podemos dizer que essa ação aparece como uma forma de
resistência à massificação e à serialidade. A importância da narrativa encontra-se na
possibilidade de que aquele que conta a história tem de nos mostrar os restos, rastros, de
sua individualidade. Como assinala Jeanne Marie Gagnebin40, a narrativa de história de

36
Cf. SZASZ, Thomas. Cruel compaixão; Idem. Mito da doença mental; Idem. Fabricação da
Loucura e Ideologia e Doença Mental.
37
Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de
Psicologia Social. e CARONE, Iraí. Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da
Costa Ciampa: A estória do Severino e a história da Severina.
38
Cf. SARTRE, Jean-Paul. Questão de Método. p. 155 et seq..
39
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. p. 198.
40
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, História, Testemunho.
39

vida, justamente por apresentar-se como um exercício de articulação entre o passado e o


presente, possibilita a quebra da repetição daquilo que se lembra e,

abre-se aos brancos [do pensamento], aos buracos, ao esquecido e ao recalcado,


para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve
direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também significa
uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências
do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer o passado,
mas também de agir sobre o presente.41

Isso, por sua vez, reforça o compromisso do pesquisador com o relacionamento


ético frente ao entrevistado, pois este se torna mais do que um mero expectador da
história narrada. O pesquisador que utiliza a narrativa de história de vida ocupa o lugar
de “testemunha” do sofrimento, da mortificação e das possibilidades de subversão dos
indivíduos. O conceito de “testemunha” apontado aqui, como bem adverte Gagnebin, é
entendido de uma forma ampliada à sua concepção habitual. Ultrapassa o sentido
daquele que “viu com os próprios olhos” e que pode afirmar como determinado
acontecimento ocorreu. Testemunha, na perspectiva apresentada, é aquele que
compartilha o sofrimento do outro, é aquele que não vai embora:

[é aquele] que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que
suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não
por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão
simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento do indizível, somente
essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo
infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, inventar o presente.42

A concepção de pesquisador como testemunha é um posicionamento ético-


político frente à desigualdade que é presenciada. Isto posto, lembremos que uma tese
dessa natureza é um trabalho de criação e como tal lida com as possibilidades e limites
da produção subjetiva, o que torna a articulação dessas narrativas com os dados
históricos e teóricos extremamente importante. O trabalho de análise e sua relação com
a objetividade “acaba por condicionar-se à competência, à sensibilidade e à honestidade
do pesquisador na crítica interna e externa dos documentos (dados) que elegeu e na
determinação do peso (ou valor) de cada um deles no corpo de seu trabalho43. O que,

41
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, História, Testemunho. p.55. [grifos da autora]
42
Ibidem. p.57.
43
ALBERTI, Verena. História Oral: a experiência do CPDOC. p.06.
40

obviamente, não significa dizer que ao adotarmos o uso de narrativas de história de vida
como instrumento é ter em mãos todas as possibilidades de interpretação e análise.
Afinal, faremos o estudo de três narrativas em nossa tese, o que levaria alguns
pesquisadores a questionar a generalidade das análises realizadas. A respeito dessa
última colocação, inclusive, é importante adiantar que na análise da identidade proposta
por Ciampa44, que resgata a lógica hegeliana45, o universal materializa o universal, na
unidade do particular. Iraí Carone46, ao realizar uma análise da tese de doutorado de
Ciampa, explora essa questão da generalização e escreve:

(...) você tem que entender o universal como necessariamente particularizado. O


universal não existe separadamente; sociedade somos todos nós; e o que nós
somos, somos particularizações. Sociedade é o universal particularizado através
de seus agentes sociais, dos indivíduos, das instituições. Então, eu só posso ver
o universal na sua particularização; isso não quer dizer que o universal seja o
conjunto dos particulares, porque aí você vai perder a noção de totalidade; a
totalidade não é a soma dos particulares e nem o particular é separado do
universal; o particular é singularização do universal.47

Em um período cujo universal dominante é o Capital, podemos imaginar que a


explicitação do singular pode mostrar como a quebra da continuidade do existir humano
pode ser decorrente de uma imposição social, em que a identidade do indivíduo, sua
vontade, é confrontada com exigências do mercado. A preocupação com a
generalização dos dados, nesse sentido, cede lugar para a preocupação com o
aprofundamento dos dados, ou como assinala Silvia Lane, a “preocupação com a
objetividade do empírico abre espaço para a subjetividade como processo histórico”48.
O objetivo na análise das narrativas de história de vida, nesse sentido, está na
possibilidade que esta tem de nos mostrar como a identidade de uma pessoa foi se
metamorfoseando ao longo dos anos a partir de “uma infinidade de influências que nela
se cruzam e às quais não pode por nenhum meio escapar, de ações que sobre ela se
exercem que lhe são inteiramente exteriores”49, e ao mesmo tempo, evidenciar como
determinadas representações podem representar a contradição frente à mesmice. Afinal,

44
CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de
Psicologia Social. p.127.
45
HEGEL, Georg W. F. Princípios de filosofia do Direito. p.15.
46
CARONE, Iraí. Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa: A
estória do Severino e a história da Severina.
47
Ibidem. p.12-13.
48
LANE, Silvia T. M. Prefácio: A estória do Severino e a História da Severina. p.10.
49
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. p.36.
41

os eventos não só acontecem por conta de todas as coisas que o indivíduo vive, mas
sim, por conta de determinados acontecimentos e dos significados que estes adquiriram
no decorrer do tempo.“É a interpretação, o sentido que atribuímos aos fatos, que os faz
existir como tais”50.
Talvez nem fosse preciso dizer que não temos a pretensão de descrever uma
objetividade tal como ela é, pois acreditamos que nunca nos aproximaremos da
realidade pura, pois essa não existe. Como escreve Slavoj Žižek, o “Materialismo não é
a afirmação direta de minha inclusão na realidade objetiva (...); ele reside, antes, na
torção reflexiva por meio da qual e me incluo na imagem constituída por mim”51.
Assume-se na apropriação desse instrumento que a realidade que vemos nunca é
“inteira”, não somente porque grande parte dela me escapa, mas porque existe uma
opacidade inerente que indica minha inclusão nela. Opacidade que nos leva a acreditar
ser mais interessante o instante rememorado do que uma história de vida linear, uma vez
que se compreendemos a identidade como a articulação de várias personagens, o tempo
e a memória também devem ser entendidos como uma articulação de muitos instantes.52
Nos instantes, momentos focalizados pelos indivíduos nas narrativas, podemos
entender como cada personagem que constitui a identidade dos entrevistados foram
sendo reconhecidas, negadas ou repostas, o que reforça a proposição de Ciampa de que
“quando um momento biográfico é focalizado, não é para afirmar que só aí a
metamorfose está se dando; é apenas um recurso para lançar mais luz no episódio onde
é mais visível o que se está afirmando”53. Novamente a contribuição de Ciampa para a
pesquisa de identidade torna-se explícita, na medida em que este autor supera a prática
da mera descrição identitária, cujo desafio era obter o maior número de informações
possíveis e passa a ser a busca pelos significados implícitos presentes na construção
dessa identidade, que é entendida como metamorfose, transformação. A ênfase de nossa
investigação como será verificado, está na importância da ação individual autônoma —
em parte à margem (ou não diretamente ligada à) da instituição psiquiátrica, que
funciona na atualidade como instituição socializadora e político-cultural tradicional —
como geradora de novas estratégias de sobrevivência, novos universos de sentido. Ao

50
AUGRAS, Monique. História Oral e subjetividade. p.36.
51
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.32.
52
Aqui nos referimos a uma aproximação da teoria de identidade com a teoria dos instantes de Roupnel,
trabalhada no texto de BACHELARD, Gaston. La intuición del instante.
53
CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de
Psicologia Social. p.141.
42

mesmo tempo, a investigação não deixará de assinalar que o espaço de iniciativa


individual tanto é afetado pelos como afeta os determinantes estruturais e institucionais
existentes na atualidade, o que torna possível e necessário pensar a possibilidade de um
ato comunicativo54 como proposta de intervenção.
Entendendo que os argumentos apresentados até aqui foram suficientes para
expor o objeto e método utilizado para pesquisar nosso tema, sigamos para a
apresentação esquemática da tese, que foi dividida em três itinerários denominados:
itinerário histórico, itinerário teórico e itinerário empírico. No primeiro itinerário
apresentaremos o desenvolvimento histórico da concepção dualista normal/patológico
no Brasil, que culminou na construção da identidade pressuposta do doente mental e
analisamos esse desenvolvimento à luz das diferentes articulações institucionais e
políticas (principalmente a relação entre a Psiquiatria e Psicologia Social). Nesse
capítulo poderá ser encontrada a legitimação dessas concepções a partir de leis e
decretos que possibilitaram a Reforma Psiquiátrica brasileira atual. Em seguida, no
itinerário teórico, mostraremos como a teoria de identidade proposta por Antonio da
Costa Ciampa se insere na tradição da Psicologia Social Crítica e atravessa as
contribuições da Teoria Crítica, principalmente a habermasiana, para pensar as
condições de emancipação humana. Assinalaremos como as proposições desenvolvidas
por Ciampa fazem parte do núcleo de uma teoria de identidade capaz de explicitar como
o desenvolvimento da identidade sofre fortes investidas dos discursos técnico-
psicológicos, que por sua vez, tende a reduzir a complexidade da identidade a
personagens fetichizadas, sustentadas por um reconhecimento perverso, possibilitando
entender como tem ocorrido a construção da personagem doente mental na atualidade.
No itinerário empírico apresentaremos as narrativas da história de vida de Ana, Gabriel
e Francisco que, na medida em que forem possibilitando observarmos como foram
ocorrendo a construção e o impedimento de suas personagens, nos darão elementos para
evidenciar como os indivíduos têm se apropriado do discurso de doente mental para
organizar e representar suas identidades, do mesmo modo, assinalaremos como essa
personagem tem sido reconhecida pelos técnicos da saúde, o que, como poderá ser
verificado, implicará em nossa proposição de que não podemos mais sustentar

54
Tal como assinalado por José Luiz Aidar Prado, para quem é necessário um novo tipo de discurso, onde
o espaço político se alteraria, a partir de um ato comunicativo, “do político, na esfera fetichizada da
ordem instrumental, seu modo de possibilidade como acontecimento.” PRADO, J. L. A. Brecha na
comunicação: Habermas, o Outro, Lacan. p.267-268.
43

cinicamente que ao utilizar o diagnóstico de doença mental a partir de uma lógica


antimanicomial estamos possibilitando que esses indivíduos possam se emancipar.
Realizada as apresentações dos itinerários, faremos nossas considerações finais que,
longe de querer indicar uma conclusão, tratará de assinalar o que aprendemos com a
pesquisa e as conseqüências dessa tese para a Psicologia Social, sobretudo, para os
estudos de identidade.
Temos plena clareza que o exercício proposto na tese é um exercício de
racionalização, ou poderíamos melhor dizer que é uma busca pela explicitação de
formas de expressão da racionalidade na realidade, contra uma tendência que insiste em
desenvolver uma racionalidade da realidade, facilmente identificadas como
racionalidades sistêmica55, cínica56 e indolente57, existentes atualmente. Uma postura
que reflete mais do que um jogo de palavras e que insiste na importante proposição de
Paul Feyerabend58, que nos alerta para o fato de que fazer ciência é assumir um
empreendimento anárquico, cuja produção deve ser capaz de avaliar o quanto
avançamos frente à nossas crenças em determinadas teorias, ou como colaboramos com
uma reposição de uma tecnologia que serve ao modismo e adequação à sociedade. Que
mascara uma razão interessada ao utilizar discursos hegemônicos de liberdade e
democracia que na verdade não passam de instrumentos de garantia e legitimação de
campos de trabalho especializados, que dependem da existência do problema ao invés
de sua subversão, revolução.

55
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa. Volumes I e II
56
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe.
57
SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da
Experiência.
58
FEYERABEND, Paul. Contra o Método.
PRIMEIRA PARTE

ITINERÁRIO HISTÓRICO
I. PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA E SAÚDE MENTAL: AS
METAMORFOSES DA CONCEPÇÃO DE DOENÇA MENTAL E SUA
RELAÇÃO COM A SOCIEDADE DA INSATISFAÇÃO ADMINISTRADA

Há um quadro de Klee que se chama Ângelus Novus.


Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo
que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados,
sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história
deve ter esse mesmo aspecto. Seu rosto está dirigido para
o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que
acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa
a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta
força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o
impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as
costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos de progresso.

Walter Benjamin1

Vivemos um momento histórico em que a globalização do mundo pode ser


entendida como a universalização do capital e de seu mercado, dos preços e do dinheiro
— cada vez mais virtual —, do mercado de trabalho, do mercado improdutivo e do
mercado imaterial2, dos gostos, da alimentação, da cultura e dos modelos de vida social,
das identidades, de uma racionalidade instrumental/sistêmica a serviço de um
capitalismo de desastre3 — que se organiza não mais a partir da ordem, mas do caos —,
que defende a liberdade — que é em última análise liberdade para o consumo4 —, e que
é mantido com mercadorias metamorfoseadas em sua estética, em que a marca substitui
o produto5 e sustenta a simulação6. Podemos dizer que estamos imersos nas ruínas que
Walter Benjamin apontou em sua alegoria da história7. E tal como o anjo pintado por
Paul Klee sentimo-nos arrastados de costas para um futuro incerto e impotentes perante
as catástrofes acumuladas ao longo da história, sendo cada vez mais difícil escapar do
conformismo que quer apoderar-se do presente.
1
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, p. 226.
2
GORZ, André. O imaterial.
3
KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre.
4
SEVERIANO, Maria de Fátima V. Narcisismo e Publicidade: Uma análise psicossocial dos ideais de
consumo na contemporaneidade.
5
HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da Estética da Mercadoria.
6
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação.
7
BENJAMIN, Walter. Op.cit.
48

E mesmo que autores como Eric Hobsbawn digam que “a descoberta de que
estávamos enganados, de que talvez não tenhamos entendido algo direito, deve ser o
ponto de partida de nossas reflexões sobre a história”8, o sentimento de época reinante
parece ser o de pessimismo que fez com que outros autores como Francis Fukuyama9
proclamassem o fim da história e o início da pós-modernidade, que expressa a
consciência de uma burguesia que se vê vencedora e com a possibilidade de finalmente
transformar o tempo em repetição infinita de sua dominação. O que para Michael
Löwy10, por exemplo, apresenta um perigo duplo: “transformar tanto a história do
passado – a tradição dos oprimidos – quanto o sujeito histórico atual – as classes
dominadas, novos destinatários dessa tradição – ou seja, em instrumento nas mãos de
classes dominantes”.
Inserido nesse cenário, o próprio conhecimento, construção humana que aparece
na tentativa de dominar a natureza e que por sua vez acaba por dominar o próprio
humano, afasta-se de sua origem histórica e corre o risco de parecer, ele mesmo, o
conhecimento, uma natureza, como se sua origem fosse ex-nihilo, tornando-se
instrumento de administração da realidade. O que nos leva a arriscar a dizer que essa
negação da história, que temos visto em muitas proposições teóricas, é acompanhada da
empatia com os dominadores e que inseridos nesse pano de fundo chegamos ao ponto
em que o nosso pensamento prefere muito mais confirmar seu saber a explorar aquilo
que o contradiz; ou que prefere mais as respostas do que as perguntas. Não percebemos,
ou fingimos cinicamente não perceber, que as discussões acerca da exclusão são apenas
parte da retórica que reforça a exclusão, que as personagens representadas como
mesmidade são na verdade modulações da mesmice11 de identidades fetichizadas e que
talvez os próprios movimentos sociais, cooptados pelo Capital e/ou Estado, estejam
trabalhando contra o seu projeto emancipatório inicial12.
Slavoj Žižek, de quem nos valemos de algumas considerações, denuncia esse
perigo quando trata de discutir a falência do estado de bem-estar social e a nova
configuração de um Estado que passa agora a transformar em caso “típico”
determinadas personagens tidas como problemáticas (a mãe solteira negra, no exemplo

8
HOBSBAWN, Eric J. O presente como história: Escrever a história de seu próprio tempo. p.112.
9
FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem.
10
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de
História”. p.66. [grifos do autor]
11
Discutiremos essa diferença com maior profundidade na segunda parte da tese.
12
ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.11 et seq.
49

de Žižek), e posteriormente transforma esse caso “típico” em noção universal — na


verdade, pano de fundo para a ideologia dominante — de modo que a estratégia de
negação das contradições sociais, as particularidades, expressadas pela mãe solteira
(desemprego, família numerosa, raça, gênero etc.) é invertida na transformação dessa
identidade em símbolo de identidade plena. É tendo em vista que estamos inseridos
nessa realidade que pensamos acerca da identidade pressuposta do doente mental,
sustentada pelo discurso psiquiátrico13, cuja concepção serviu e serve a interesses
específicos em cada momento histórico de nossa sociedade a ponto de tornar-se parte do
imaginário coletivo. Julgamos, inclusive, que seja pertinente já apresentarmos um
primeiro questionamento e nossa posição frente a ele: seria possível concluir a priori
que vivemos um momento histórico onde o reconhecimento da doença mental reflete
uma política de identidade promotora de autonomia, tal como é proposta pela literatura
atual que analisa os avanços da Reforma Psiquiátrica brasileira?
Acreditamos que não seria possível. Pensamos que antes de assumir essa política
de identidade proposta como parte de uma política de Estado (apoiada inclusive pelos
ativistas do Movimento Antimanicomial), devemos caminhar sobre os escombros
produzidos ao longo da história da psiquiatria no Brasil e sua relação com a Psicologia,
principalmente com a Psicologia Social, devemos escavar o passado, e buscar elementos
que ajudem a explicitar que o estado de exceção em que vivemos ainda é regra geral.
Estado de exceção cuja opacidade de definição “diz respeito a um patamar, ou uma zona
de indiferença, em que o dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam”14, como
assinala Giorgio Agamben, o momento onde a regra é o esvaziamento, a suspensão da
Lei. Condição que, inclusive, apareceu como o primeiro obstáculo na pesquisa, uma vez
que a própria polissemia utilizada para a classificação do indivíduo como anormal foi
mostrando-se como promotora de diversos sentidos que poderiam nos fazer cair em
armadilhas que levariam apenas a realizar uma crítica convencional à instituição
psiquiátrica concreta (manicômio, hospital psiquiátrico), sem, contudo atacar aquilo que
identificamos como a raiz do problema: a persistência do discurso psiquiátrico no
discurso da saúde mental e a manutenção da construção da personagem doente mental.
Para exemplificar essas últimas proposições, podemos trazer aqui um trecho do
levantamento — realizado por Thomas Szasz em meados da década de 90 do século

13
Iremos apresentar e discorrer sua utilização ainda nesse capítulo.
14
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.39.
50

passado — das denominações utilizadas para diagnosticar, tipificar, as representações


realizadas no cotidiano pelos indivíduos com comportamentos indesejáveis e as
respectivas instituições responsáveis por sua tutela ao longo de mais de trezentos anos.

[o comportamento indesejado] (...) foi rotulado e re-rotulado como loucura,


insanidade, alienação mental, idiotia, demência, neurastenia, demência precoce,
psicopatia, mania, esquizofrenia, neurose, psiconeurose, psicose, doença
emocional, descontrole do ego, fracasso do ego, desordem emocional, doença
psicológica, desordem psicológica, doença psiquiátrica, desordem psiquiátrica,
imaturidade, fracasso social, má adaptação social, desordem de comportamento,
e assim por diante. De modo semelhante, a instituição para o confinamento de
tais ‘pacientes’ tem sido chamada de casa de loucos, asilo para lunáticos, asilo
para insanos, hospital mental estadual, hospital mental, hospital para psicopatas,
hospital psiquiátrico, instituto psiquiátrico, instituto psiquiátrico para pesquisas
e treinamento, centro psiquiátrico e centro de saúde mental comunitário.15

Denominações que, longe de encontrar uma superação, uma definição


consensual, fazem parte da linguagem comum entre os especialistas e coexistem sem
maiores problemas atualmente. Naomar Almeida Filho16, em um excelente ensaio, ao
explorar as dimensões antropológicas, sociológicas e epistemológicas dos conceitos de
doença, defende inclusive que esses conceitos têm permanecido como acessórios para
esboçar uma teoria da saúde, não sendo nenhuma surpresa que Loucura, Doença
Mental, Patologia Mental, Transtorno Mental, Saúde Mental, sejam praticamente
conceitos cognatos17, cuja utilidade somente pode ser sustentada em uma sociedade que

15
SZASZ, Thomas Stephen. A retórica da Rejeição. p.61.
16
Cf. ALMEIDA FILHO, Naomar. For a general theory of Health: Preliminary epistemological and
antropological notes. Nesse ensaio o autor nos mostra que na língua inglesa encontram-se vários
termos: disease, que corresponderia à patologia; illness, à enfermidade; malady, à moléstia; sickness, à
doença; disorder, a transtorno, sendo que conforme a doutrina adotada pelos autores essas mesmas
palavras aparecem com sentidos diferentes.
17
Ao consultar diferentes dicionários encontramos as seguintes definições: DORSCH, Friedrich,
HÄCKER, Hartmut & STAPF, Kurt-Hermann. Dicionário de Psicologia Dorsch. Loucura é próxima
de alienação: Alienação: alienation, termo para designar uma sensação vaga, que tudo parece estranho
e não familiar. Termos semelhantes são: desrealização, despersonalização, síndrome de
despersonalização. Ibidem. p.30 Já Loucura: psicose; perturbação dos processos mentais, onde ocupam
o primeiro plano representações delirantes e ilusões (patológicas) dos sentidos. Doença mental em
sentido estrito. (em Medicina Legal) estado em que, pela psicose, faltam consciência e responsabilidade
das próprias ações e suas conseqüências. Ibidem. p.541; ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
Filosofia. Alienação: 1) na linguagem comum significa perda ou posse, de um afeto ou dos poderes
mentais. 2) idade média; grau de ascensão mística em direção a Deus; Rousseau como cessão de
direitos naturais à comunidade, efetuada com o contrato social; Hegel como alhear-se à consciência de
si mesma, em Marx como distanciamento do homem de sua consciência das coisas que produz. (p. 26)
Loucura: dois modos diferentes: 1º. Como inspiração ou dom divino, 2º. Como amor à vida e tendência
a vivê-la em simplicidade; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. A Alienação é ato ou efeito de
alienar(-se); alheação, alheamento, alienamento (seguida de uma descrição dos conceitos listados
anteriormente nos dicionários de filosofia e psicologia). Loucura é explicada como um distúrbio,
51

permanece enfeitiçada pela “ideologia da saúde perfeita”, tal como foi postulada por
Lucien Sfez18. Lembremos também que essa mesma polissemia serve de referencial
para disciplinas acadêmicas que explicam a anormalidade psíquica nos currículos de
graduação em Psicologia, Medicina, Enfermagem, Terapia Ocupacional etc.; assim
como esses conceitos são utilizados como base para a classificação e faturamento do
“doente mental” (Código Internacional de Doenças – CID1019 e Diagnostic and
Statistical Manual – DSMIV20) pelo Ministério da Saúde; bandeira nos movimentos de
Luta Antimanicomial; na própria linguagem cotidiana para apontar as contravenções
frente às formas de conduta convencionais. Fenômeno que nos remete às proposições
apresentadas por Jürgen Habermas, para quem quando um discurso científico, com sua
forma objetivante, passa a imperar na sociedade estamos diante de uma “colonização do
mundo da vida”21, resultante da pressão de imperativos econômicos e burocráticos que
introduzem distorções reificantes em nossa compreensão individual e coletiva.

alteração mental caracterizada pelo afastamento mais ou menos prolongado do indivíduo de seus
métodos habituais de pensar; de seu sentir e agir; também é relacionado à paixão, a quando as coisas
fogem do controle pessoal e a atitude, comportamento que denota falta de senso, de juízo, de
discernimento. Os outros conceitos somente podem ser articulados conjuntamente, uma vez que
nenhuma delas encontram-se unidas no dicionário: a palavra Mental, na rubrica referente a psiquiatria
diz respeito ao psiquismo, às características psíquicas de um indivíduo; Doença é a alteração biológica
do estado de saúde de um ser (homem, animal etc.), manifestada por um conjunto de sintomas
perceptíveis ou não; enfermidade, mal, moléstia (em sua extensão é compreendida como alteração do
estado de espírito ou do ânimo de um ser); Patologia qualquer desvio anatômico e/ou fisiológico, em
relação à normalidade, que constitua uma doença ou caracterize determinada doença; Transtorno,
conceito da moda associado à mente: no dicionário é descrito como ato ou efeito de transtornar,
situação que causa incômodo a outrem (contratempo; situação imprevista e desfavorável; contrariedade,
decepção); Saúde, finalmente, é concebida em sua característica tradicional: estado de equilíbrio
dinâmico entre o organismo e seu ambiente, o qual mantém as características estruturais e funcionais do
organismo dentro dos limites normais para a forma particular de vida (raça, gênero, espécie) e para a
fase particular de seu ciclo vital (estado de boa disposição física e psíquica; bem-estar).
18
Lucien Sfez defende em seu livro A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia, a tese de que
vivenciamos o surgimento de uma ideologia, mais global que a comunicação, onde prega-se que seria
possível alcançarmos uma nova utopia em que a saúde seria conquistada plenamente. Embasa suas
considerações nas teorias da comunicação e nos avanços da engenharia genética. Em uma das
passagens desse trabalho Sfez escreve que “o inimigo não está mais no exterior, não tem mais de ser
combatido ou civilizado. Não é mais o selvagem, o negro, o amarelo, o judeu, o proletário para o
burguês, o burguês para o proletário. O inimigo está por toda parte e em lugar nenhum, anônimo, sem
fronteiras, no eletronicon sem rosto como na camada esburacada de ozônio, na droga e no colesterol.”
Ibidem. p.25.
19
Um Simpósio da Organização Mundial de Saúde realizado em Londres, 2001, concluiu que as
próximas edições do código estariam suspensas até 2010.
20
DSM (manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais) é a classificação elaborada pela
American Psychiatry Association. Tem como objetivo a unificação de critérios descritivos com fins de
diagnóstico e estatística dos transtornos mentais. A primeira edição data de 1952.
21
Daremos maior atenção às proposições de Habermas no segunda parte da tese. A discussão acerca da
ciência e técnica como ideologia e colonização do mundo da vida podem ser aprofundados nos
trabalhos: Cf. HABERMAS, J. Técnica e ciência como “Ideologia”; Idem. Crise de legitimação no
capitalismo tardio; e Idem. Teoria de la acción comunicativa. 2 volumes.
52

Essa polissemia frente ao conceito, inclusive, nos levou a abrir mão de querer
encontrar um conceito que abarcasse todos os sentidos que a concepção de saúde mental
poderia representar e escolhesse utilizar simplesmente os conceitos “doença mental” e
“Loucura” para identificar a utilização de um discurso “técnico-psicológico” —
incluímos aqui os discursos psicanalítico, psicológico e psiquiátrico acerca do ideal de
normal e patológico, para diagnosticar as expressões identitárias não-convencionais,
indesejadas. É importante assinalar que ao utilizar os dois conceitos não estamos
deflacionando sua importância ou ignorando o fato de que pessoas possam ser
diferentes umas das outras, que possam tomar atitudes não esperadas ou que algumas
vezes necessitem de medicamentos para diminuir sentimentos de angústia, solidão, ou
deixar de ver e ouvir vozes, pelo contrário, defendemos que as diferenças individuais e
as formas de sofrimento devem ser reconhecidas e acolhidas como problema a ser
trabalhado.
Ficará explícito no decorrer do texto que o que queremos apontar com o uso
desses conceitos ao longo da tese é a cooptação a priori dessas expressões humanas
pelo discurso da instituição psiquiátrica, inaugurado desde o alienismo de Philipe
Pinel22 e ainda hoje utilizado pela saúde mental e sua utilização no reconhecimento
perverso dos indivíduos — que assim como em outras políticas de identidade atuais
devem submeter-se ao diagnóstico (abrir mão de sua totalidade) como pré-condição
para a inclusão como “cidadão” em programas governamentais — explicitando a
presença de uma lógica disciplinar na qual esses indivíduos passam a orientar “seu
modo de agir a partir de uma lógica de anulação paradoxal de contradições e de
amaciamento de contrários exigida pela racionalidade das sociedades capitalistas
contemporâneas”23.
Uma última advertência antes de encerrarmos nossa apresentação se refere à
maneira como nos apropriamos da história, uma vez que não apresentaremos nesse

22
O Traité Médico-Philosophique sur L’Aliénation Mentale ou La Manie, publicado em 1800 na França,
será a bíblia do alienismo e dará a Philipe Pinel o título de pai do alienismo. Muitas das biografias
descreviam Pinel como um herói que literalmente arrancou as correntes e libertou os alienados do
encarceramento. Todavia, sabe-se hoje que esses gestos nunca existiram, foram construídos após sua
morte por pessoas próximas, que idealizavam sua atuação nos manicômios. Se existiu algum mérito no
gesto de Pinel é, segundo Foucault, o de ter introduzido, junto a William Tuke, “uma personagem,
cujos poderes atribuíam a esse saber apenas um disfarce ou, no máximo, sua justificativa.”
FOUCAULT, Michael. História da Loucura na Idade Clássica. p. 498. Uma análise mais
aprofundada da desmistificação do gesto de Pinel encontra-se em WEINER, Dora. Le geste de Pinel:
The history of a psychiatric myth. p.232-247. Para maior aprofundamento das idéias de Pinel sugerimos
conferir: PINEL, Philippe. Tratado médico-philosófico sobre a alienação mental ou a mania.
23
SAFATLE, Vladimir. O cinismo e a falência da crítica. p.24.
53

capítulo uma história da loucura. Por outro lado, poderá ser encontrada ao longo do
texto diversas indicações de ótimas tradições que realizaram o estudo aprofundado
desse tema. Nosso foco histórico estará na gênese e desenvolvimento da concepção
dicotômica normal/patológico e da identidade pressuposta do doente mental —
materializada nas políticas e normas legitimadas pelas diferentes formas de governo
experienciadas no Brasil (aqui pediremos paciência para o leitor, pois retornaremos até
o final do século XVIII) — e nas vicissitudes de uma Psicologia Social que sempre
manteve relações com essa temática. Certamente ao utilizar esta estratégia correremos o
risco de apresentar limites e falhas em nosso percurso, todavia, voltamos a dizer que
não nos propomos aqui a fazer uma nova história da loucura ou da psiquiatria.

1 – A construção da identidade pressuposta do doente mental como instrumento de


particularização e opacificação das contradições sociais: o anormal como caso
típico do que o Brasil tem de “errado”

(...) imitamos (...) os que julgamos superiores a nós, os creadores, os


requintados, os progressivos, os que estão, lá do outro lado do mundo, fazendo
a civilização. Cada vez que um desses fazedores da civilização se mexe para
fazer uma revolução ou para fazer a barba, nós, cá do outro lado, ficamos mais
assanhados do que a macacaria dos junglaés. De uns copiamos as formas de
governo e os modos de vestir, os principios da política e os padrões das
casemiras – os figurinos, alfaiates e as instituições. De outros copiamos outras
cousas: as philosophias mais em voga, as modas literarias, as escolas de arte, os
requintes e mesmo suas taras de civilizados. De nós é que não copiamos nada.24

Essas palavras de Oliveira Vianna, escritas em 1921, no prefácio do que


poderíamos chamar de primeiro texto brasileiro de Psicologia Social, não poderiam ser
mais apropriadas para iniciarmos nossa apresentação do desenvolvimento da instituição
psiquiátrica no Brasil. Esta, como poderá ser observado, desenvolveu-se a partir de um
amálgama entre as idéias acerca da Educação, Medicina e Psicologia, a ponto de criar
uma confusão frente ao campo de conhecimento em que cada teoria era praticada. É
certo que desde 1543 já existia no Brasil a preocupação com os indivíduos indesejados e
miseráveis, que eram tratados nas Santas Casas de Misericórdia, as chamadas “casinhas
de doidos” da Bahia25. Todavia, não encontramos nenhuma citação que apontasse

24
VIANNA, Oliveira. Pequenos Estudos de Psychologia Social. p.08-09.
25
São raros os relatos sobre as formas de diagnóstico e os métodos de tratamento desse período. A
informação que pudemos encontrar é extremamente sucinta e encontra-se em um livro de história da
54

produções ou preocupações com o que seria denominado como alienação nos primeiros
300 anos da colônia portuguesa26.
A ausência de registros, ao nosso ver, pode ser atribuída ao tipo de atenção que
era dada a esse tipo de indivíduos pelas instituições religiosas antes da transferência da
Corte para o Brasil, que até então era apenas uma colônia de exploração praticamente
abandonada. Até meados do século XVIII, a ocupação do território brasileiro era feita
por meio da iniciativa privada dos colonos. “Enquanto os interesses políticos e
econômicos desses colonos coincidiram com os do reino, as cidades se comportaram
com a expectativa do Estado”27. Junto à expansão das cidades e ao surgimento de uma
elite formada por negociantes, militares, funcionários públicos, religiosos e outros que
se opunham à extorsão portuguesa, aparecem as ações de sabotagem econômica e
rebeldia, fazendo com que Portugal decida dominar a situação, chegando a transferir o
Vice-Reinado da Bahia para o Rio de Janeiro.
Com a chegada da corte Portuguesa em 1808, a vida privada dos indivíduos será
associada ao destino político de uma determinada classe social, sendo assim, o
imperativo de controle da “barbárie” será ainda maior. Sabia-se que não era possível
contar com a Igreja (durante todo período colonial o clero defendeu seus próprios
interesses e foi um opositor em várias ocasiões), nem com a corporação militar (além do
perigo de armar a população, ocorreram vários episódios em que os militares se
envolveram em disputas políticas contra o Governo português). Perante essa fragilidade
política no controle da população, causada pela falta de apoio de instituições aliadas que
tivessem legitimação frente à sociedade, a instituição médica encontrou a brecha
esperada para tornar-se instituição de referência, como nos mostra Jurandir Freire
Costa28:

psiquiatria produzido por cerca de 40 historiadores franceses, cada um focando uma etapa histórica ou
ramo da psiquiatria. Nele atribui-se as casas de doidos das Santas Casas de Misericórdia da Bahia como
os primeiros dispositivos de atenção aos indesejáveis, sendo que o primeiro grande asilo somente
surgirá após 1822. Cf. POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la
Psiquiatría. p.462 et seq.
26
A ausência de registros também foi reforçada quando tomamos contato com o belíssimo trabalho de
José Souza e Agostinho Lima que em 1900 publicaram um livro em dois volumes onde apresentavam
resenhas de todas as publicações brasileiras e textos importantes desde a colonização até 1900. O
segundo capítulo é dedicado ao balanço do desenvolvimento das ciências médicas no Brasil. Cf.
SOUZA, José Eduardo Teixeira de & LIMA, Agostinho José de Souza. O livro do centenário (1500-
1900).
27
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.20.
28
Ibidem. p.28 e segts.
55

A medicina que, desde o início do século XIX, lutava contra a tutela jurídico-
administrativa herdada da Colônia, deu um largo passo em direção à sua
independência, aliando-se ao novo sistema contra a antiga ordem colonial. Este
progresso fez-se através da higiene, que incorporou a cidade e a população ao
campo do saber médico. Articulando antigas técnicas de submissão, formulando
novos conceitos científicos, transformando uns e outros em táticas de
intervenção, a higiene congregou harmoniosamente interesses da corporação
médica e objetivos da elite agrária.29

Com um novo e forte aliado, o Estado sabia pela experiência européia que para
tal empreitada não bastava apenas criar formas de controle dos corpos mais rígidas, ou a
criação de leis, tampouco inculcar ideológica, filosófica ou politicamente idéias que
fizessem os indivíduos mudarem suas visões de mundo. Era preciso colonizar o
imaginário da esfera privada e para que essa colonização tivesse efeito seria necessário
que ela operasse em um outro nível. Primeiramente, despolitiza-se o mundo da vida, o
cotidiano, o senso comum, e apresenta-se uma nova leitura acerca dos seus problemas,
ou seja, inverte-se a preocupação social e direciona-se a mesma preocupação para o
indivíduo, descrito de forma fragmentada nos discursos sobre o corpo, o sexo, a
subjetividade. Tal despolitização, por sua vez, não é possível sem um agente que seja
socialmente legitimado, o que não era o caso vivenciado até então. Lembremos que a
esfera pública brasileira havia se tornado um foco permanente de contestação do poder
real desde o século XVIII.
O meio utilizado para essa colonização do imaginário foi a imprensa, que não
por acaso chegou junto com a Corte portuguesa em 1808. Nem precisaríamos dizer aqui
como esta influenciará toda a formação intelectual no país30. Com a aliança entre o
Estado e a Medicina, começam a aparecer as primeiras publicações acerca da
normalidade e das patologias, “logo no primeiro anno da sua fundação, conhecem-se 37
publicações, no segundo (1809) 62, no terceiro (1810) 99, e até 1822 catalogou Valle
Cabral 1154 impressos varios das suas officinas saídas”31. A imprensa da Corte
publicará, em 1808, a primeira regulamentação especial do serviço sanitário e o
primeiro trabalho médico impresso no país. Em 182232 surge a primeira publicação
médica, no Estado do Maranhão, com o título de Folha Medicinal, que apesar desse
nome tinha como conteúdo da primeira edição uma forte discussão política. Em

29
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.28.
30
SOUZA, José Eduardo Teixeira de & LIMA, Agostinho José de Souza. A Imprensa. p.31 e segts.
31
Ibidem. p.34.
32
IDEM. As sciencias medico-pharmaceuticas. p.130.
56

seguida, mais precisamente em 1827, no Rio de Janeiro, foram publicados o


Propagador das Sciencias Medicas, Annales de médicine, chirurgie et pharmacie,
organizado por J. F. Sigaud. Esse periódico, de acordo com Postel & Quetel33,
desempenhou um papel crucial para o desenvolvimento da cultura medicalista no país,
principalmente no que se refere à propagação da medicina européia, em particular a
francesa. Um fato curioso é que a revista teve uma periodicidade extremamente curta,
publicou-se apenas de 1827 a 1828, todavia, foi responsável por vários estudos
posteriores.
Contando com uma produção que pouco a pouco foi se tornando significativa na
área, a doença mental e os seus perigos resultantes dessa doença foram alcançando a
esfera privada. O alcance das informações que os jornais e revistas obtinham era muito
maior do que o tipo de informação que era proporcionado pelas instituições escolares
freqüentadas por uma elite social muito restrita e o tipo de informação, destinado
principalmente para a classe em ascensão, que proliferava nessa época, tinham diversas
finalidades: científicas, políticas, literárias, artísticas, de instrução e recreio. Tendo a
norma como preocupação principal, a atenção dispensada à doença mental, metáfora da
desordem, passa a ser objeto de reflexão e preocupação. A imprensa, tornada veículo de
conhecimento atualizado destinado a transformar as formas privadas de subjetividade,
na promoção e fortalecimento dos ideais de homem europeu, realiza intervenções em
três eixos básicos: educação, saúde e trabalho (não muito diferente do que vemos hoje
em dia).
Todavia, para uma efetiva colonização do imaginário foi imprescindível uma
educação que orientasse (dirigisse) as possibilidades de compreensão dos indivíduos.
Sendo assim, a educação moral torna-se um ideal a ser buscado, com a desculpa de ser o
agente mais eficaz para o refinamento científico da primitiva sociedade colonial. Os
especialistas encarregados de reeducar terapeuticamente a família “dão-se conta de que
a desestruturação familiar é um fato social, mas raramente percebem que as terapêuticas
educativas são componentes ativos na fabricação deste fato”34. É importante apontar
que o que se entendia como ideal de família era a família abastada da sociedade
brasileira, influente nos assuntos políticos; eram para esses indivíduos as políticas
médico-higienistas.

33
POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la Psiquiatría. p.462.
34
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.16.
57

Não interessava ao Estado modificar o padrão familiar dos escravos que


deveriam continuar obedecendo ao código punitivo de sempre. Estes últimos,
juntamente com os desqualificados de todo o tipo, serão trazidos à cena médica
como aliados na luta contra a rebeldia familiar. Escravos, mendigos, loucos,
vagabundos, ciganos, capoeiras, etc., servirão de anti-norma, de casos-limites
da infração higiênica.35

Em 1829, criou-se a Sociedade de Medicina e Cirurgia no Rio de Janeiro. O


objetivo dessa entidade era reforçar a higiene pública e defender as ciências médicas.
Nasce aqui a Medicina Social brasileira formada por um conjunto de médicos que
defendiam a necessidade de uma “melhor” assistência aos alienados. Fizeram parte da
inauguração dessa sociedade os médicos: J. C. Soares Meirelles, J. M. da Cruz Jobim,
L. V. De Simoni, J. F. Sigaud e J. M. Faivre. Unidos, esses médicos poderiam
“promover o progresso e desenvolvimento das sciencias medicas, prestar socorros
gratuitos aos doentes pobres, beneficiar em geral a população, pelo estudo e applicação
dos meios favoráveis á conservação e melhoramento da saúde pública”36. Esses mesmos
médicos criaram o seminário da saúde pública em 1831, que era órgão da Sociedade de
Medicina e Cirurgia; esta última em 1835 adotou o nome de Academia Imperial de
Medicina. Uma lei de 1832 transformou os antigos colégios de Medicina e Cirurgia da
Bahia e Rio de Janeiro em Faculdades de Medicina. A formação médica nessas
instituições será direcionada para o que será denominada medicina social, sendo que no
bojo teórico abordado durante a formação do médico a psicologia ocupará um lugar
privilegiado e fechará o tripé formado pela Educação e o Direito para compreensão e
tratamento dos brasileiros. A psicologia será nesse período o conhecimento ideal37 para
o alienismo em desenvolvimento, uma vez que se busca com as teorias e técnicas
psicológicas uma produção de conhecimento que pudesse oferecer “meios para o
controle social dos indivíduos e das populações e para a ‘patologização’ do
comportamento anormal”38. Massimi escreve que algumas teses defendidas nesse
período podem nos dar bons exemplos dos usos da psicologia, uma vez que:

35
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.33.
36
SOUZA, José Eduardo Teixeira de & LIMA, Agostinho José de Souza. As sciencias medico-
pharmaceuticas. p.81.
37
O termo “ideal” aqui empregado poderia ser atrelado ao uso kantiano do termo, que quer dizer uma
idéia in individuo, ou seja, uma coisa individual só determinável ou só determinada através da idéia.
Ideal, ainda mais distante da realidade que a idéia, um protótipo, uma cópia, diretriz normativa de ação.
38
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.38.
58

(...) entre as teses e dissertações elaboradas pelos estudantes da escola para a


obtenção do grau de doutor, há muitas dedicadas a esse domínio. Em tais
trabalhos, os temas específicos mais debatidos são: a psicologia da mulher, as
doenças relacionadas à sexualidade, os aspectos psicossociais do casamento e
da relação familiar; a higiene do desenvolvimento infantil, da puberdade e da
terceira idade; a higiene das diversas condições sociais (escravos, presos,
mendigos, prostitutas) e das instituições (em particular, colégios e prisões); a
alienação mental, suas diferenças e analogias com o estado de saúde psíquica, o
suicídio como forma de doença mental, as emoções e os afetos; as influências
do estado moral do homem sobre o físico, e vice-versa; a frenologia; a “terapia
moral”39.

A idéia de medicina social como ciência positiva ocupa nesse período um papel
político fundamental, o de ordenar o mundo da vida de uma forma que garanta o
progresso inevitável da sociedade. De forma emblemática, os trabalhos de José
Francisco Xavier Sigaud40 e Luiz Vicente De-Simoni41 expressam os desejos pelas
ações de contenção da desordem social. O primeiro autor criticou a falta de
providências para retirar das ruas os tipos populares que perambulavam pelas ruas da
cidade do Rio de Janeiro, indivíduos que “embuçados em grotescos andrajos excitam as
risadas dos viandantes, e provocam apenas um sorriso de compaixão de envolta com a
torrente de grosseiras injúrias e ridículos apítetos com que são amofinados”42, e o
segundo defendeu a criação urgente de asilos com seu ensaio enfático denominado A
importância e necessidade de um manicômio ou estabelecimento especial para o
tratamento dos alienados, publicado em 1839, que fundamentalmente defende os
princípios do tratamento moral como método eficaz no tratamento dos alienados.
Com a ajuda de autores como os citados anteriormente, o positivismo e o
eugenismo passam a ser as ciências primeiras, fazendo com que as epistemologias de
caráter mais metafísico sofram repressões, fato visível na reforma do ensino proposta
pelo ministro Benjamin Constant em 1891. Uma passagem da tese de Pereira Barreto
apresentada à faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1865, intitulada Teorias das
Gastralgias e das Nevroses em Geral, oferece uma ótima síntese do espírito de época,
em que o pressuposto básico é o mesmo para todo conhecimento científico: “todos os
fenômenos quaisquer, astronômicos ou físicos, químicos ou biológicos, sociais ou

39
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.38-39.
40
SIGAUD, José Francisco Xavier. Reflexões acerca do trânsito livre dos doidos pelas ruas da cidade
do Rio de Janeiro. p.559-562.
41
DE-SIMONI, Luiz Vicente. Importância e necessidade de criação de um manicômio ou
estabelecimento especial para o tratamento dos alienados. p.142-159.
42
SIGAUD, José Francisco Xavier. Op. cit. 560.
59

morais, estão sujeitos a leis fixas e invariáveis”43. As conseqüências dessa hegemonia


teórico-conceitual será a de tratar todos os fatos da vida cotidiana como propensos à
investigação positivista e à intervenção sistêmica. Toda a complexidade social passa a
ser reduzida ao composto da inteligência, sentimento e atividade, isto é, a funções
cerebrais. Com isso, os problemas resultantes das interações cotidianas tornam-se
problemas de adaptação ao meio ambiente.

A população não seria doente porque era miserável. Pelo contrário, a miséria do
povo é que seria fruto tanto da doença, da escravidão do homem ao verme,
quanto da ignorância, plasma dos males que empobreciam a terra e
enfraqueciam o povo, fazendo-o mergulhar na incapacidade.44

São criadas e fortalecidas as condições ideais para a criação de asilos para


alienados, que serão inaugurados ainda durante o segundo reinado (1841-1889). São
eles: o Hospício Dom Pedro II45, fundado em 1852, no Rio de Janeiro; em São Paulo,
em 1852, estado em que a ofensiva da ciência com relação aos doentes mentais havia
começado em 1848 com a lei provincial que visava criar um Hospício — somente
inaugurado em 1852 na Avenida São João, que funcionou até 1864, quando foi
transferido para uma chácara na Ladeira Tabatinguera —; em Pernambuco, em 1861; na
Bahia, em 1874 e no Rio Grande do Sul em 1884. No estado de São Paulo, em 1892, o
Doutor Franco da Rocha46 foi convidado pelo governo do estado para orientar os
estudos sobre assistência aos alienados, resultando disso a construção do Hospício
Juquery, concluída em 1903.
No que se refere à população que era internada nesses manicômios, notava-se
que no hospício de São Paulo, por exemplo, onde a maioria dos alienados eram
indigentes, “havia em 1895, 376 doentes, distribuídos da seguinte forma: 258 brancos,
43
BARRETO, Luis Pereira. Teoria das Gastralgias e das Nevroses em geral. p.316.
44
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.72.
45
Esse hospício permanecerá anexo ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia até 11 de janeiro de 1890,
data em que é decretada a separação dessa instituição. Cf. BRASIL, Decreto 142-A: “Considerando,
finalmente, que cessaram os motivos que determinaram o Governo a annexar ao hospital da Santa Casa
da Misericordia desta Capital o que fôra primitivamente creado, para tratamento de alienados, pelo
Decreto n.º 82 de 18 de julho de 1841: Resolve desannexa-lo daquelle hospital e constitui-lo
estabelecimento publico independente, com a denominação de Hospicio Nacional de Alienados, que se
regerá por instrucções que serão opportunamente expedidas, mantendo-se por enquanto os estatutos
approvados pelo Decreto n.º 1077 de 4 de dezembro de 1852, na parte não alterada pelo presente
Decreto.”
46
São Paulo representou desde 1918, por meio da Faculdade de Medicina de São Paulo, o primeiro
núcleo de difusão das idéias psicanalíticas no Brasil. Franco da Rocha (1864-1933), que ocupa a partir
de 1913 até 1923 a cátedra de Clínica Psiquiátrica e Neuriátrica na Faculdade de Medicina, será uma
figura de destaque nesse processo.
60

77 negros e 41 mulatos. [O estado de] São Paulo tinha cerca de 2 milhões de habitantes,
com um percentual de: 30% estrangeiros, 11% negros e 13% mulatos”47. É importante
apontar um fato apresentado por Romero: nesse período São Paulo era descrita como o
despejo de loucos estrangeiros. “Clamava-se por maior rigor das autoridades, que
permitiam a entrada no país de tarados, débeis mentais, criminosos e prostitutas”48. E se
considerarmos que as internações nesses hospícios eram realizadas sem nenhuma
regulamentação até o final do século XIX, podemos inferir que muitos dos brancos
internados eram estrangeiros.
Na sociedade a qual o discurso técnico-científico exigia a implementação da
disciplina que garantiria a ordem e o progresso, a alienação tornou-se um conceito útil
para explicar a ruptura do equilíbrio individual e coletivo. Conceito que, por sua vez,
inicia o período de ampliação da ação do Estado na esfera privada que seguirá até
meados da Segunda Guerra Mundial. O tratamento moral, por sua vez, passou a ser
utilizado como intervenção científica para o controle e correção dos indivíduos não
convencionais repetindo a história dos países europeus. As causas da alienação passam
a ser relacionadas a fatores predisponentes — o clima, a sexualidade, a idade, o
temperamento, a profissão e o modo de vida — e às causas determinantes, ou seja,
fatores físicos (comportamentos hereditários de distúrbios patológicos) e emocionais
(devido a problemas familiares). Os fenômenos que mais despertam a atenção dos
médicos alienistas são o amor e a sexualidade, o ciúme, a tristeza ou melancolia. De
acordo com Massimi49, muitos dos autores enfatizam “a origem social da alienação
mental: os indivíduos que não conseguem acompanhar os movimentos rápidos do
progresso da civilização, sobretudo nas sociedades industrializadas, são mais sujeitos à
doença.” E como nos mostra Mariza Romero50, a medida para a normalidade segue uma
perspectiva estética:

Fragilidade, desproporção nas formas, desarmonia dos movimentos, feiúra,


semelhança com animais colocavam a aparência como critério científico para
determinar quem estava apto ao convívio social, pois se, de um lado, o corpo

47
POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la Psiquiatría. p.466. Tradução
nossa: “había, en 1895, 376 enfermos, distribuidos de la manera siguiente: 258 blancos, 77 negros y 41
mulatos. São Paulo tenía cerca de dos millones de habitantes, con um porcentaje de: 30% de
extranjeros, 11% de negros y 13% de mulatos.” Esta é a população do Estado, mais precisamente
2.282.279, segundo o Censo de 1900. A cidade tinha 239.820 habitantes.
48
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.93.
49
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.53.
50
ROMERO, Mariza. Op. cit. p.90.
61

pelos sinais de beleza indicava a normalidade e diferenciava as classes, por


outro, pelos estigmas degenerativos apontava os doentes mentais que a partir de
meados do século 19 tornaram-se objeto de intervenção da ciência.

“Distúrbios” como o onanismo, a pederastia, a bebedeira, a mentira e a


excentricidade expressavam o avesso da ordem, mas geravam também atitudes
como a daquele senhor [Franco da Rocha havia examinado um rico senhor de
nacionalidade inglesa e embora não tenha encontrado nenhuma anormalidade o
fato de permanecer solteiro e com fortuna o suficiente para não precisar
trabalhar fez com que lhe fosse atribuído o diagnóstico de misantropia] que não
se entregou sem crítica às imposições sociais, à disciplina, ao ideal de
constituição da família que deveria ser o agente mais perfeito da moralização da
sociedade.51

Perante uma nação formada por índios, negros, mestiços e estrangeiros, os


manicômios não pararam mais de crescer e aumentar suas internações. Obviamente, isso
não significou que o poder médico tenha sido internalizado como inevitável, uma vez
que ocorreram algumas desconfianças frente a esse governo médico. Lembremos que
Machado de Assis52, por exemplo, demonstrou sua preocupação com o crescimento
desmedido dos asilos e das intervenções dos alienistas em sua sátira O alienista,
publicada em 1882, cujo personagem principal, Dr. Simão Bacamarte, ao utilizar os
conhecimentos modernos da medicina alienista acaba por declarar a todos os indivíduos
itaguainenses como anormais, a ponto de, por fim, internar a si mesmo, uma vez que era
o exemplar de perfeição humana, logo, uma anormalidade também. O texto literário já
apresenta os perigos decorrentes do aumento do poder da instituição psiquiátrica na
descrição do que era normal ou patológico.
No próprio meio técnico-científico não demorou muito para os efeitos dessas
instituições totais emergirem. Em meados de 1886, os problemas serão explicitados e
aparecerão na pesquisa do médico Teixeira Brandão, “Os estabelecimentos para
alienados no Brasil”53, que defenderá a necessidade de uma legislação que
regulamentasse o confinamento dos alienados. Entretanto, mesmo com toda a influência
política de Teixeira Brandão, essa legislação somente será concretizada via decreto após
a proclamação da República. Outra obra de grande repercussão que ajudará a organizar

51
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.92. [grifos
da autora]
52
Cf. ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O Alienista.
53
Guilherme Messas escreve que Teixeira Brandão foi a principal figura do período inicial da psiquiatria
brasileira, sua influência era tamanha que elegeu-se deputado para aprovar o Decreto 1.132 de 1903.
Cf. MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento
legislativo brasileiro em saúde mental. p.73 e segts.
62

os hospícios nesse período será O alienado no direito civil brasileiro: apontamentos


medico-legaes ao projecto de código civil, escrito por Raimundo Nina Rodrigues54, em
1901. Nela, Nina Rodrigues faz um exame das diferentes leis para alienados espalhadas
na Europa e aponta o que seria ideal para o caso brasileiro. Faz, inclusive, apontamentos
interessantes e de certa forma até libertários com relação aos cuidados com o alienados
e denuncia as instituições existentes.

E´a garantia a direitos do cidadão, ameaçados pelo mao funccionamento dos


asylos de alienados, graças ao abandono e menospreço a que os tem votado a
maioria dos governos estaduaes. E esses direitos periclitam si, a pretexto de
methodos curativos, os asylos de alienados se puderem converter n’uma ameaça
de sequestração de pessoas sans; ou, si o internamento dos realmente loucos se
puderem transformar, por falta de necessaria fiscalisação da justiça publica, em
um efficaz e impune instrumento de assalto dos bens do alienado.55

De fato, a experiencia nos mostra que os alienados entre nós precisam de


garantias contra todos; contra as familias particulares que os queiram explorar,
contra os proprios poderes publicos que os submettem a tratamentos des-
humanos.56

Como nos mostra Guilherme Messas57, “ainda no calor dos acontecimentos


ligados à ruptura institucional e sob a tutela do governo provisório, foi expedida a
primeira longa série de normas jurídicas concernentes ao campo mental, o Decreto
142.” Exatamente cinqüenta e sete dias após a proclamação da República, em 11 de
janeiro de 1890, legitima-se o pacto entre o Estado, a Psiquiatria e o Direito. Após esse
primeiro decreto outros três foram expedidos até a aprovação da primeira Lei em
190358, os Decretos 206, 508 e 89659; neles podem-se observar os ajustes que
legitimaram a instituição psiquiátrica como a responsável pela administração da ordem.
No artigo 3º do Decreto 206, a figura do médico será eleita como a determinante: “A

54
RODRIGUES, Raimundo Nina. O alienado no direito civil brasileiro: apontamentos medico-legaes
ao projecto de código civil.
55
Ibidem. p.228.
56
Ibidem. p.231.
57
MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento
legislativo brasileiro em saúde mental. p.66.
58
BRASIL. Decreto n.º 1132 - de 22 de dezembro de 1903: Reorganiza a assistencia a Alienados.
Essa lei será inspirada na legislação francesa sobre os alienados de 1838, promulgada por Jean-Étienne
Esquirol (fiel discípulo de Pinel).
59
Respectivamente: Decreto n.º 206. Aprova as instruções a que se refere o Decreto 142A, de 11 de
janeiro último e cria a Assistência Médica e Legal de Alienados. 15 fev. 1890; BRASIL. Decreto
n.º 508. Aprova o regulamento para a assistência Médico-Legal de Alienados. 21 jun. 1890;
BRASIL. Decreto n.º 896. Consolida as disposições em vigor relativas aos diferentes serviços da
Assistência Médico-Legal de Alienados. 29 jun. 1892.
63

direcção dos differentes asylos será confiada a um médico, responsável perante o


Ministro do Interior, de quem diretamente dependerá”60; esse decreto será revisto e
refinado, dando poder efetivo à psiquiatria no Decreto 508, artigo 3º: “A direcção geral
da Assistência será confiada a um médico de competência comprovada em Estudos
Psychiatricos...”61. Uma curiosidade a ser apontada é que até a publicação desses dois
decretos a instituição psiquiátrica somente se apropriava do corpo masculino. Antes, a
cargo das instituições religiosas, as alas femininas ficavam sob responsabilidade das
irmãs de caridade. O distanciamento definitivo com o assistencialismo religioso será
realizado em 1892, com a publicação do Decreto 896, que inaugurava a assistência laica
na administração dos asilos62. Passa a ser tarefa exclusiva do médico o direcionamento
conveniente do estado físico e das faculdades morais do paciente, ou seja, “o
humanitarismo médico se substitui à antropologia e à ética de matriz religiosa da cultura
colonial”63.
Ainda no ano de 1903, vota-se a primeira lei que regulamenta as internações,
que passaram a ser efetivadas somente se o indivíduo passasse por um exame de seu
estado mental. A mesma lei criou a divisão entre o encarceramento dos doentes mentais
e criminosos, tornando necessárias às construções de novos hospícios para alienados
criminosos e para alienados delinqüentes64. Ao fazer uma análise detalhada dessa lei e
compará-la às atuais legislações, Messas mostrará que não existirá uma grande mudança
com relação à lei de 190365. Em todas elas o direito individual é tomado como base para
pensar as ações médicas. A diferença aparece na práxis, na concepção de alienação e no
método de tratamento dos indivíduos. Nesse período a instituição psiquiátrica estava às
voltas com o positivismo e com o eugenismo.

A idéia de que o progresso passava pela qualidade da raça foi adotada pela
maioria dos nossos intelectuais e, após a Proclamação da República, tornou-se
praticamente uma obsessão definir o “tipo nacional” que garantisse o rumo à
civilização, fazendo frente às visões pessimistas que davam o país como

60
BRASIL. Decreto n.º 206. Aprova as instruções a que se refere o Decreto 142A, de 11 último e cria
a Assistência Médica e Legal de Alienados.
61
Cf. Idem. Decreto n.º 508. Aprova o regulamento para a assistência Médico-Legal de Alienados.
62
Lembremos que o Decreto 791, publicado em 1890, criou a Escola Profissional de Enfermeiros e
Enfermeiras dentro do Hospício Nacional de Alienados.
63
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.39.
64
Cf. POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la Psiquiatría. p.467 e segs.
65
Cf. MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento
legislativo brasileiro em saúde mental. p.75 e segts.
64

perdido, já que os mestiços, segundo o censo de 1890, compunham a maioria da


população.66

A aristocracia eugênica seria composta por indivíduos possuidores de força,


clarividência, senso de realidade, auto-domínio, coragem, ambição e energia
moral, qualidades essas que não pertenciam nem às raças negra e amarela nem a
trabalhadores e pobres, inferiores por natureza. As provas científicas desse
pensamento eram fornecidas por estatísticas elaboradas nos Estados Unidos e
Inglaterra, mostrando que “53% dos bem-dotados pertencem à classe abastada,
37% à classe média, 10% à medíocre e 0% a inferior”.67

A produção científica procurava, ao invés de questionar a validade das teorias


importadas, prová-las mesmo que para isso tivesse que distorcer resultados. O interesse
de classe guiava o conhecimento, que por sua vez, deveria ser capaz de abarcar as
questões sociais e exercer seu controle sobre elas, com vistas nos dizeres positivos de
ordem e progresso. Isso implicava na eliminação da “desordem” a partir da eliminação
dos “desordeiros”, e na medida em que a sociedade, e conseqüentemente o homem
branco burguês, a partir dessa perspectiva, passou a ser considerado como resultado de
uma evolução natural do humano, todos aqueles que escapavam a esta “norma” eram
vistos como uma doença que deveria ser tratada para o bem estar do todo. As palavras
de Pereira Barreto ajudam a entender bem o espírito científico da época:

Contemplamos o organismo social como um grande doente, ao qual temos


aplicado tôda sorte de terapêuticas, de medicações empíricas e racionais, de
anódinos e corroborantes, de paliativos e de intempestivos, e, vendo que a
moléstia continua, nós nos perguntamos se não será tempo de substituirmos o
empirismo e o racionalismo pelo ponto de vista puramente naturalista, como o
está fazendo com tanto fruto a medicina hodierna ou científica.68

Sob essa perspectiva, desenvolve-se uma teoria e práxis distanciada do mundo


da vida, que se serve da perspectiva da adaptação social. A ausência de um olhar que
considerasse as experiências subjetivas abriu espaço para que as teorias da
degenerescência pudessem ser articuladas com os pressupostos positivistas. Em
Teixeira Brandão, por exemplo, a teoria da degenerescência, entendida como ciência,
serve para sustentar a diferença entre os seres humanos, dividindo-os em inferiores e

66
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.112. [grifos
nossos]
67
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.120.
68
BARRETO, Luís Pereira. As três filosofias. In, BARROS, R. S. M. Obras Filosóficas de Luís Pereira
Barreto. p.128
65

superiores69. “A evidência supostamente ‘manifesta’ é a prova de que a hereditariedade


é o aspecto essencial nas causas de patologia mental”70. E embora tenham ocorrido
algumas alterações de cunho jurídico, a noção de doença mental adotada
hegemonicamente era a de Teixeira Brandão. Sendo que o auge dessa política será a
criação em 1920 do Departamento Nacional de Saúde Pública, que selará o pacto entre a
instituição psiquiátrica, justiça e Estado71. A teoria da degenerescência teve um duplo
efeito de autorizar com suas hipóteses a reorientação do alienismo e a formulação de um
novo projeto de profilaxia a partir do asilo.

O otimismo positivista encarregar-se-ia da tarefa de facilitar a passagem


conceitual do indivíduo à sociedade, formada a imagem do organismo
individual, avalizando um amplo projeto assistencial científico com apoio na
idéia de uma linha contínua sobre a qual a patologia e normalidade deixam de
ser realidades heterogêneas. O resultado desta junção foi a formulação do
primeiro grande projeto global de assistência psiquiátrica brasileira,
impregnado do espírito de “missão” eugênica e orgulhoso de sua contribuição
para romper o atávico atraso social recorrendo a técnicas profiláticas para a
purificação da raça brasileira.72

A influência dessa nova ideologia dominante pode ser vista no caso da criação
da Liga Brasileira de Higiene Mental73, em 1923, na cidade do Rio de Janeiro, por
Gustavo Riedel. A instituição trabalhava com os aportes da psicologia e mantinha um
laboratório e um “Seminário Brasileiro de Psicologia” que se reunia semanalmente e
anualmente organizava as “Jornadas Brasileiras de Psicologia”. O objetivo inicial da
Liga era pensar a melhoria da assistência ao doente mental. Contudo, a partir de 1926,

69
A proposta teórica de Teixeira Brandão era de certa maneira original, uma vez que desenvolve sua
própria classificação das doenças mentais, em um momento histórico cuja teoria Kraepeliniana era
hegemônica mundialmente. Cf. BRANDÃO, João Carlos Teixeira. Elementos fundamentaes de
psychiatria e clinica forense.
70
MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento
legislativo brasileiro em saúde mental. p.77.
71
A criação do DNSP, marco legislativo que estabeleceu o regime entre Estado e indivíduo deu-se com o
Decreto 3.987. 2 de jan., 1920. Entre as atribuições desse novo órgão, estavam: “a) os serviços de
hygiene no Districto Federal que deverão abranger a prophylaxia geral e específica das doenças
transmissiveis, a execução de providencias de natureza, agressiva ou defensiva, as que tiverem por fim
a hygiene domiciliaria, a policia sanitaria das habitações privadas e collectivas, das fabricas, das
officinas, dos collegios, dos estabelecimentos commerciaes e industriaes, dos hospitaes, casas de saude,
maternidade, matadouros, mercados, logares ou logradouros publicos, hotéis, restaurantes e fiscalização
dos gêneros alimenticios.”
72
BARRETO, Jubel. O umbigo da reforma psiquiátrica. p.130-131.
73
Decretada instituição de utilidade pública pelo Decreto 4.778 de 27 de dez. de 1923. De acordo com
Mário Yahn, “As Ligas acabavam por se reduzir a um ambulatório, onde eram atendidos neuróticos e
psicóticos menos graves, que recebiam, especialmente, tratamentos medicamentosos.” Cf. YAHN, M.
Higiene Mental. p.40.
66

esse objetivo foi cedendo lugar para a ideologia eugênica, a profilaxia e a adaptação dos
indivíduos por meio da educação. “A preocupação transferiu-se do indivíduo ‘doente’
para o ‘normal’, da cura para a prevenção, ampliando seu raio de ação para a sociedade
como um todo, definindo a ação psiquiátrica como prática higiênica, apoiada na noção
de eugenia”74. Inicia-se o combate ao alcoolismo, à prostituição, ao jogo e ao crime.
Estes se tornaram temas de destaque no interior da Psiquiatria, que passou a articular
doença mental e criminalidade, com base na teoria da degenerescência. Sendo que o
auge desse higienismo eugênico na legislação brasileira ocorre em 1927, com a
publicação do Decreto 5.14875, de 10 de janeiro de 1927, que passou a considerar como
“assistência aos psicopatas” as ações que até então eram nomeadas como “assistência
aos alienados”. Já havia sido importada dos portugueses uma leitura psiquiátrica que
possibilitava associar loucura e crime, tais como o Manual de Enfermidades Mentais, de
Benedict Morel e Os alienados nos tribunais e a loucura, de Cesare Lombroso, que
reforçavam o argumento “do determinismo biológico quanto aos papéis desempenhados
pelos autores e seu ambiente: os atores obedecem à sua natureza inata”76.
E tal como propunha Nina Rodrigues, aqueles indivíduos que não se adequassem
deveriam ser vistos como ameaças sociais e deveriam ser retirados da sociedade,
independentemente de sua raça, ainda que por razões diferentes: “os negros porque
eram historicamente defasados em relação a ela, os brancos por não terem se adaptado
às normas de conduta que eles próprios produziram”77. Essa forma de interpretação
possibilitará uma arbitrariedade em relação ao que seria considerado crime, imputando
ao criminoso a etiologia da criminalidade associada à idéia da mentalidade primitiva,
isentando assim, a influência das condições sociais na construção do criminoso, ao
mesmo tempo que a sociedade era entendida como vítima do indivíduo criminoso, o que
referendava a exclusão dos degenerados e a regeneração dos indivíduos.

A ênfase atribuída pelo próprio Nina Rodrigues às análises antropométricas,


particularmente à craniometria, assim como a relevância dada por alguns de
seus críticos a este aspecto de sua obra, talvez tenham contribuído para tornar
quase invisível uma passagem que embora tardia é muito importante em sua

74
ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A Psicologia no Brasil: Leitura histórica sobre sua
constituição. p.50.
75
Cf. BRASIL. Decreto 5.148. Reorganiza a Assistência a Psicopatas no Distrito Federal. 10 de jan.,
1927.
76
GOLD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. p.135.
77
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil.
p.142.
67

carreira: o deslocamento da atenção dos aspectos fisiológicos para os aspectos


psíquicos do comportamento humano. No entanto, quanto mais psicológicas se
tornavam as observações de Nina Rodrigues, tanto mais sociológicas se
mostram suas análises; mais e mais a loucura, por exemplo, aparece como
expressão das relações sociais entre os homens.78

A própria alienação era entendida a partir dessa articulação entre pensamento


primitivo e inadaptação à sociedade. A influência de Nina Rodrigues será explícita na
medicina social, psicologia forense e criminal, aparecendo claramente nos trabalhos de
Oscar Freire, Flámínio Favero, Almeida Junior, Pacheco e Silva e, principalmente, em
Arthur Ramos79. Para este último, por exemplo, a alienação era entendida como negação
da realidade. No trabalho “Loucura e Crime” ele escreve que, nos alienados:

A sua adaptação ao real é nulla. (...) é o pensamento que não busca a adaptação
á realidade; tem as suas leis próprias, que só dizem respeito ao indivíduo,
esquecido completamente da vida exterior, despida, para o interiorizado, de
qualquer interesse.80

Com Arthur Ramos a relação entre Alienismo, Psiquiatria, Direito e Psicologia


Social começará a ser explicitada e, de certa maneira, desmembrada81. A sua inserção e
participação política fortalecerá ainda mais o papel da instituição psiquiátrica no

78
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil.
p.141-142.
79
Arthur Ramos foi discípulo de Nina Rodrigues e pode ser considerado um dos mais importantes e
veementes defensores da teoria da degenerescência no Brasil. Produtor de várias obras que procuravam
enfocar a inferioridade racial e a degeneração psíquica, assim como as formas de expressão afro-
brasileiras, vistas a partir da concepção de manifestações primitivas, pode ser considerado um dos
pioneiros da Psicologia Social no Brasil, embora autores como Mariza Corrêa (Op. cit.), por exemplo,
digam que este reduziu ainda mais a teoria de seu mestre, caindo em distorções da própria teoria de
Nina Rodrigues, como simplesmente substituir os termos raça por cultura e mestiçamento por
aculturação.
80
RAMOS, Arthur. Loucura e Crime: Questões de Psychiatria, Medicina Forense e Psychologia
Social. p.16-17.
81
Embora tenhamos na literatura acadêmica uma propensão a indicar o trabalho de Arthur Ramos como
um marco histórico para a Psicologia Social, sua obra não foi a pioneira no país nessa área. Já haviam
sido publicados, em 1921, os Pequenos Estudos de Psychologia Social, de Oliveira Vianna e, em
1935, Psicologia Social, de Raul Briquet, que era catedrático da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo e professor de Psicologia Social da Escola Livre de Sociologia e Política de
São Paulo. Nesse último trabalho, como explica Briquet, foram reunidas as lições do curso de
Psicologia Social que ministrou no segundo semestre de 1933, na Escola Livre de Sociologia e Política.
Arthur Ramos foi responsável pelo segundo curso de psicologia social do Brasil, ministrado em 1935
na Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, experiência que resultou na escrita e publicação
de seu livro célebre publicado em 1936: Introdução à Psicologia Social. Dado o prestígio da Escola de
Obstetrícia, coube a Edgard Braga o primeiro livro que relacionava a articulação entre essa Psicologia
Social e as práticas de higiene e saúde. O livro, intitulado O homem errado, resultado da coletânea de
vários artigos publicados por esse último autor em 1936, foi muito divulgado e alcançou várias edições,
popularizando-se em todo o país, principalmente no Nordeste. Cf. COELHO, Maria Cecília Simões de
Oliveira. Edgard Braga: O jovem velho poeta das metamorfoses.
68

controle da sociedade. Sob sua orientação a psicologia social (até então amalgamada no
interior da medicina) pela primeira vez aparecerá como ciência diferenciada. Entretanto,
sua ação não aparecerá como crítica ao modelo adotado, pelo contrário, ela seguirá a
tradição inaugurada no país, positiva e normativa, como ciência auxiliar da Psiquiatria e
do Direito.

A posteriori, a filiação das pesquisas de Nina Rodrigues à orientação


culturalista, por oposição ao método histórico, Arthur Ramos não só ignorava o
contexto teórico em que se desenvolveu o trabalho de Nina Rodrigues –
contexto no qual a perspectiva histórica estava por definição assegurada – como
esclarecia a sua própria visão de categorias culturais como categorias definidas
a partir da cor da pele de seus integrantes.82

A importância dada a Arthur Ramos aqui não se deve apenas ao impacto de sua
Psicologia Social83, mas sim, à sua ação política a partir dessas concepções. Após ser
nomeado chefe da Sessão Técnica de Ortofrenia e Higiene Mental, por Anísio Teixeira,
em 193484, Arthur Ramos coloca em ação seu plano de higiene mental. E passa a ditar
os parâmetros de comportamento social sadio e doentio. Esse teórico orientou os adultos
a fugir das cartomantes e curandeiros — incentivando a procura do médico quando era
preciso alguma orientação —, a se adaptarem de bom humor a seu trabalho, a repousar
nas férias e a evitar o álcool e outros tóxicos. Às mães, lembrava, em primeiro lugar que
“a infância é a idade de ouro para a higiene mental” e que a “maior responsabilidade
dessa educação higiênica cabe às mães”. Um de seus conselhos célebres é assim
fraseado: “Dê à criança a maior liberdade vigiada”85.

82
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil.
p.283.
83
A Psicologia Social de Arthur Ramos segue o modelo apresentado originalmente por Floyd H. Allport,
que considerava o comportamento social e suas relações com o biológico. Arthur Ramos adota certos
conceitos freudianos, embora os “behavioriza” e individualiza. Sendo assim, fala de “motivações anti-
sociais” no lugar de pulsões instintivas, de “pulsões socializadas” no lugar de superego e substitui os
instintos descritos por McDougall por “reações nervosas”, determinadas pela herança biológica, mas
modificáveis pelo condicionamento social. É importante apontar aqui que a Psicanálise brasileira desse
período (embora com algumas tensões) também seguirá esse mesmo movimento de ajustamento, uma
vez que se deu sobretudo pela importação da leitura norte-americana da teoria freudiana.
84
Ano em que foi publicado o decreto que resistiu por mais tempo no campo da doença/saúde mental,
uma vez que somente foi reformado após a publicação da Lei de 6 de abril de 2001.O Decreto 24.559,
de 3 de julho de 1934, tinha como finalidade, como o próprio título nos mostra, dar “proteção à pessoa
e bens dos psicopatas”. Composto por 8 artigos, o Decreto marca uma forma de organização que tem
sua imagem melhor descrita no “O alienista” de Machado de Assis.
85
Maria Cecília Coelho lembra que desde os anos 20 desse período uma grande significativa de mão-de-
obra industrial era de mulheres e crianças, assim como, era o momento de organização e expansão da
indústria farmacêutica e de alimentos. Estas “provavelmente, como conseqüência, passam a produzir os
reclames inspirados nas matérias médicas. A Publicidade nos meios de comunicação – jornais, revistas
69

Outras personagens se destacaram nesse período com produções em que também


trabalharam a relação direito, medicina e psicologia86. Dentre elas, Domingos José de
Nogueira Jaguaribe (1843-1926) foi uma das que obtiveram maior reconhecimento.
Jaguaribe se dedicou principalmente às pesquisas referentes ao alcoolismo, fundando
nos primeiros anos do século XX o Instituto Psycho-Physiologico, voltado para estudos
experimentais e elaboração de métodos de tratamento para os alcoolistas, baseados
principalmente no hipnotismo e na sugestão. Como lembra Massimi87, foi de Nogueira
Jaguaribe também o projeto que criou “a ‘Liga Brasileira contra o Alcoolismo’, da
implantação do ‘tratamento psychoterápico’ do alcoolismo nas casas de correção e da
instituição do ensino antialcoólico em todas as escolas do estado”. Jaguaribe será um
dos primeiros brasileiros a fazer parte de uma rede de relações internacionais, sendo
membro e presidente, em 1912, da Sociétè de Psychoterapie de Paris; professor
correspondente da Escola de Psicologia de Paris, reconhecido e estimado por autores
que eram referências internacionais, tais como Liebeault Le Bon, Lombroso, Bérrillon,
Ramon y Cajal, participa, em 1900, do Congresso Internacional de Hipnotismo, na
mesma cidade. Em 1913 publica o texto “As Bases da Moral: Estudos de Psychologia
Physiológica”, que estabelece uma relação entre a psicologia experimental e
hipnotismo.
Outra personagem que atualmente é vista como importantíssima para a Reforma
Psiquiátrica, mas que em sua época não conseguiu grande repercussão de seu trabalho
dentro do país, foi o médico Ulisses Pernambucano (1892-1943), do Instituto de
Psicologia e da Assistência a Psicopatas de Pernambuco. Ulisses Pernambucano,

e mais rádio difusora.” Cf. COELHO, Maria Cecília Simões de Oliveira. Edgard Braga: o jovem
velho poeta das metamorfoses. p.76-78.
86
Discordando de Marina Massimi (1990; 1994; 2000) que vê nessas produções o desenvolvimento do
pensamento psicológico e a consolidação da psicologia como ciência independente, vemos nesses
trabalhos o fortalecimento e validação da medicina social, do higienismo e, principalmente, da
instituição psiquiátrica. As pesquisas realizadas nesse período eram relacionadas com neurologia,
psiquiatria, higiene mental, criminologia e psiquiatria forense. Dentre os autores encontrados que
discutem essas temáticas, podemos destacar: Henrique Roxo de Brito Belfort (1877-1969), autor da
tese “Duração dos Atos Psíquicos Elementares”, apresentada na Escola Médica do Rio de Janeiro em
1900, considerada o primeiro grande trabalho de psicologia experimental publicado no Brasil; Antonio
Austregésilo (1876-1960), neurologista atuante da Faculdade do Rio de Janeiro, que se destaca por sua
contribuição à psicoterapia, principalmente nas obras “A Cura dos Nervosos (1918)” e “Pequenos
Males (1919)”; Maurício Medeiros (1885-1966), possivelmente o primeiro brasileiro estudante de
psicologia experimental no exterior (Paris), autor da tese sobre os “Métodos em Psicologia”,
apresentada no Rio de Janeiro em 1907, fundador e diretor do Laboratório de Psicologia Experimental e
Clínica Psiquiátrica do Hospício Nacional; Miguel Álvaro Branca Osório, especialista em fisiologia
nervosa e psicofisiologia do Laboratório de Fisiologia do Rio de Janeiro.
87
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.67-68.
70

considerado um dos pioneiros da psiquiatria social na América Latina, junto com seus
colaboradores, desenvolveu uma modalidade de atendimento aos alienados que era
extremamente revolucionária. Enquanto a hegemonia dos pesquisadores e técnicos
estavam voltados para as formas de controle da sociedade e melhoria das tecnologias
utilizadas nos manicômios, Ulisses Pernambucano pensou em criar

(...) serviços para doentes mentais não alienados, com hospital aberto; serviços
para doentes mentais alienados, com hospital para doentes agudos e colônia
para doentes crônicos; Manicômio Judiciário; Serviço de Higiene Mental, com
Serviço de Prevenção das Doenças Mentais e Instituto de Psicologia.88

Ulysses Pernambucano, que fora discípulo de Nina Rodrigues, distanciou-se da


concepção eugenista e positivista, dirigindo seus estudos para outras perspectivas. A
concepção de adoecimento mental desenvolvida por esse autor era de que a doença
mental tinha uma relação existencial, na qual o indivíduo era agente do processo, tendo
os fatores sociais como co-determinantes. Opunha-se à visão organicista, que era antes
determinante do que determinada pelas condições sociais. De acordo com Antunes89,
Pernambucano pode ser considerado o pioneiro no Brasil do movimento que seria
conhecido posteriormente como antipsiquiatria90.
Frente a uma produção teórica e uma práxis concreta espalhada em praticamente
todo território nacional, não é difícil prever que a consolidação da instituição
psiquiátrica no Brasil foi ficando cada vez maior. Já vimos que o Decreto 5.148, de
1923, reconhecia sua importância na sociedade brasileira e que o papel da Psicologia foi
essencial nesse projeto91. Também dissemos que essa influência não ocorreu
simplesmente como uma inspiração para a produção de conhecimento, mas sim que foi

88
ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A Psicologia no Brasil: Leitura histórica sobre sua
constituição. p.53.
89
Ibidem.
90
Embora Antunes na obra citada, ressalte que a pouca divulgação de seu pensamento e obra (talvez por
conta da ideologia dominante na época) não tenha permitido que tal movimento reconhecesse seu
trabalho. Mário Yahn escreve que “iam adiantados os trabalhos e as pesquisas, quando, em 1935,
modificou-se a orientação política do Governo Federal. Ulisses Pernambucano foi perseguido e o grupo
se desmembrou.” YAHN, Mário. Higiene Mental. p.42.
91
Vale a pena lembrar as duas obras de destaque desse período na Psicologia Social: “Psicologia Social”,
de Raul Briquet, e “Introdução à Psicologia Social” de Arthur Ramos. Nos dois trabalhos vemos uma
tentativa de leitura das principais tendências mundiais. Para o primeiro, a Psicologia Social deveria
evidenciar a relevância dos fatores psíquicos no entendimento do comportamento dos indivíduos, para
o segundo, era a ciência intermediária entre a psicologia e a sociologia, que poderia ajudar a desvelar as
deformidades hereditárias da personalidade, seguindo a influência de Nina Rodrigues. No seu livro,
Arthur Ramos destaca a obra de Floyd Allport, desde 1921 co-editor do Journal of Abnormal and
Social Psychology, que como o próprio título sugere, aproxima o social do anormal.
71

utilizada como discurso de autoridade que tentava a todo custo adequar os “bárbaros” ao
ideal de “civilização” que foi se delineando. Em 1923, por exemplo, o Hospital de
Engenho de Dentro montou seu Laboratório de Psicologia92, dirigido por Gustavo
Riedel, então Diretor da “Colônia de Psicopátas”. Com a mudança na direção, o
Laboratório foi assumido por Waclaw Radecki em 1924, que ampliou as atividades de
pesquisa e os cursos de especialização para médicos da Colônia93. Em 1932, o
Laboratório de Psicologia muda novamente sua direção, Nilton Campos que estudara
com W. Köhler na Alemanha permanece no cargo até 1934, quando assume o ensino da
Psicologia na Universidade do Brasil. Ainda no Laboratório de Psicologia formou
pesquisadores em várias áreas, desde a psicofisiologia até a Psicologia Social,
publicando em 1930, Psicologia da vida afetiva. A Psicologia, principalmente a
Psicologia Social, mesmo sendo ensinada como disciplina complementar dos cursos de
Biologia e Neurologia, ofereceria o suporte necessário para o projeto que viria a seguir,
uma vez que ainda não existiam as cátedras de Psiquiatria94. Todavia, o auge do
higienismo eugênico só se torna possível após a publicação do Decreto 24.559, de 3 de
julho de 193495, que será o ato legislativo que resistirá por mais tempo, sendo renovado
apenas pela lei de 6 de abril de 200196.

92
Este laboratório contava com instrumental capaz de medir sensações, reflexos, atenção, associações,
discriminação, memória etc. adquirido na França e Alemanha.
93
O Laboratório é transformado em 1932 pelo Decreto Lei n° 21.173, no Instituto de Psicologia da
Secretaria de Estado da Educação e Saúde Pública, onde deveria ser organizado o primeiro curso de
psicologia. “Todavia, provavelmente devido a problemas financeiros, o instituto sobrevive apenas
poucos meses, sendo incorporado, em junho de 1937 (Lei n° 452), à Universidade do Brasil.” Cf.
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p. 66.
94
De acordo com Isaías Pessotti: “Até as gestões de Décio de Souza, em 1950, para se criarem cadeiras
de Psicologia nos cursos de Medicina, os médicos, nesse campo, eram autodidatas e mesmo o ensino de
Psiquiatria durava apenas um ano.” Cf. Pessotti, I. Dados para uma história da Psicologia no Brasil.
p.127.
95
No ano de 1934 também teremos a criação da Universidade de São Paulo – USP que incorporou a
cátedra de Psicologia do Instituto de Educação Caetano de Campos, antiga Escola Normal de São Paulo
e no ano seguinte cria-se a Universidade do Brasil, proposta como padrão para outras universidades. Na
USP a disciplina de psicologia torna-se obrigatória nos três primeiros anos do currículo de Filosofia. De
1935 até 1944 essa cadeira ficou a cargo de Jean Maugüé, sendo substituído em 1945 por Otto
Klineberg, que havia publicado, em 1940, um manual “Social Psychology”, que por sua vez fica no
cargo até 1947 quando a disciplina passa a ser ministrada por Annita de Castilho e Marcondes Cabral
que trabalhava com Noemi Silveira Rudofler no Serviço de Psicologia Aplicada. Em 1954 os estudos
mudam de direção novamente e será a vez da psicologia experimental ocupar o palco com os trabalhos
de Arrigo Leonardo Angelini.
96
O único ato legislativo significativo no período que vai da constituição da República brasileira até a
Segunda Guerra Mundial será o Decreto-Lei 3.138, de 24 de janeiro de 1941, que Dispõe sobre a
assistência médica, pelos Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões, dos doentes mentais que
forem seus segurados ou associados.
72

O Decreto 24.559 delimitará finalmente os mecanismos “de proteção” aos


psicopatas em relação aos seus bens, direitos civis e amparo social. Detalhará as
condições de credenciamento de profissionais97 e as instituições de referência para o
tratamento dos psicopatas. No que se refere ao projeto de profilaxia mental e o destino
do psicopata, o decreto apontava que:

O serviço de profilaxia mental destina-se a concorrer para a realização da


profilaxia das doenças nervosas e mentais, promovendo o estudo das causas
destas doenças no Brasil, e organizando-se como centro especializado da
vulgarização e aplicação dos preceitos de higiene preventiva.
§ 1º Para segurança dessas finalidades, o Govêrno providenciará no sentido de
serem submetidos a exame de sanidade os estrangeiros que se destinarem a
qualquer parte do territorio nacional, e os que requererem naturalização, sendo
que, nêste caso, o exame deverá precisar, especialmente, o estado neuro-mental
do requerente.
§ 2º Os portadores de qualquer doença mental ou nervosa, congênita ou
adquirida, não sendo casados com brasileiros natos ou não tendo filhos nascidos
no Brasil, poderão ser repatriados, mediante acôrdo com os gôvernos dos
respectivos países de origem.98

Os Psicopatas, assim declarados por perícia médica processada em fórma


regular, são absoluta ou relativamente incapazes de exercer pessoalmente os
atos da vida civil.
Parágrafo único. Supre-se a incapacidade pelo modo instituído na legislação
civil ou pelas alterações constantes do presente decreto.99

Assume-se um eugenismo xenofóbico na legislação brasileira, preza-se a


purificação racial com a repatriação dos estrangeiros. A busca pela sociedade eficiente
que espelhasse os ditames de “ordem e progresso” adquire nesse período o auge de sua
forma. O que colocaria, por um lado, a guinada da instituição psiquiátrica na mesma
linha de desenvolvimento – retardada como podemos perceber –, do desenvolvimento
da instituição psiquiátrica na Europa, e que pode ser descrito sinteticamente da seguinte

97
Com esse Decreto a Psicologia começa a perder seu lugar no seio da medicina social e vai se tornando
uma ciência auxiliar para uma psiquiatria que passa a ser vista como auto-suficiente para o
entendimento das patologias mentais. O artigo 5 do Decreto 24.559 expressa claramente quem são os
responsáveis pelo psicopata: “É considerado profissional habilitado a dirigir estabelecimento
psiquiátrico, público ou particular, quem possuir o título de professor de clínica psiquiátrica ou de
docente livre desta disciplina em uma das Faculdades de Medicina da República, oficiais ou
oficialmente reconhecidas, ou quem tiver, pelo menos durante dois anos, exercido efetivamente o lugar
de psiquiatra ou de assistente de serviço psiquiátrico no Brasil ou no estrangeiro, em estabelecimento
psiquiátrico, público ou particular, autorizado.”
98
BRASIL. Decreto n.º 24.559. Dispõe sôbre a profilaxia mental, a assistência e proteção á pessôa e
aos bens dos psicopatas, a fiscalização dos serviços psiquiátricos e dá outras providências. 3 de jul.
1934., Art.25.
99
IDEM. Decreto 24.559, Art.26.
73

maneira: num primeiro momento seguiu o modelo de uma nosologia naturalista,


considerando a hereditariedade como fator principal da degeneração e desordem social,
e posteriormente ampliou sua atenção e apoiou-se em teorias naturalistas do meio físico
para explicar as causas da insanidade (nos dois casos apoiando-se em causas físicas e
concretas). Em que as metáforas da desordem, a decisão acerca do normal e patológico,
segue a fórmula: desorganizar é ir contra a organização — como se tanto a sociedade
quanto os indivíduos chegassem à estabilidade do silêncio dos órgãos —, contrariando
leituras críticas como a de Georges Canguilhem, para quem o patológico estaria
justamente no silêncio da repetição de um mesmo padrão de comportamento para lidar
com o sofrimento em diferentes contextos100. E por outro lado, redefiniriam as
estratégias de administração social do doente mental paulatinamente, da necessidade de
adaptação social (típica de uma sociedade disciplinar), para a urgência do ajustamento
cultural a partir de uma higiene mental (típica de uma sociedade de controle).
Com o advento da psicanálise no Brasil, a normalidade física é colocada em
segundo plano, assumindo-se a cultura como objeto de investigação e ação, e a
Psicologia tem sua utilidade reduzida dentro do campo da medicina. Como Szasz
assinala, isso foi algo que ocorreu de forma similar em outros países, onde a partir do
momento em que a psicanálise foi absorvida pela psiquiatria, “as facções opostas foram
redefinidas como as perspectivas médicas e psicológicas sobre o comportamento do
anormal”101, surgindo assim, uma separação entre as escolas de psiquiatria biológica
(médica) e não-biológica (existencial, psicológica e social). Entretanto, em ambas as
perspectivas a concepção de loucura se igualam ao concordarem que com a existência
de indivíduos que precisa de tratamento psicológico e moral, os quais estão impedidos
de ter uma vida articulada, entre o racional e irracional, entre a esfera pública e a esfera
privada. Como Ronald Laing assinala, na prática a manutenção dessa ideologia expressa
o fato de que ao atestar que alguém é louco, doente mental:

(...) não ponho em dúvida que ele seja desequilibrado, talvez perigoso para si
mesmo e para os outros, e exija atenção e cuidados num hospital para doentes
mentais. Ao mesmo tempo, estou cônscio de que, em minha opinião, existem
outras pessoas consideradas sadias, cuja mente é radicalmente doentia, podendo

100
A saúde, escreve Canguilhem, está justamente na possibilidade de “ultrapassar a norma que define o
normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas
em situações novas”. Cf. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. p.148.
101
SZAZ, Thomas S. Cruel Compaixão. p.193.
74

também constituir um perigo para si mesmas e para os outros, e a quem a


sociedade não considera psicopatas destinadas a um hospício.102

Com isso, se desde meados do século XIX e início do século XX a Psicologia


aparecia como campo de conhecimento importante para a medicina social e alienismo
brasileiro, com a consolidação da Psiquiatria e sua aliança com a Psicanálise103, sua
ação fica cada vez mais distante do cenário psiquiátrico104. As relações entre médico e
psicólogo podem ser visualizadas na obra de Mário Yahn, que em 1955, na introdução
do livro “Higiene Mental” dizia ser a atribuição do Psicólogo (Psicanalista) contribuir
com o trabalho clínico nos Centros de Saúde, uma vez que haveria ocorrido uma
evolução que teria partido primeiramente na fase teórica das Ligas de Higiene Mental,
organizações de conferências, palestras, semanas relativas a assuntos como: alcoolismo,

102
LAING, Ronald David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p.27.
103
É importante assinalar aqui que no eixo Rio-São Paulo, somente três estabelecimentos estarão filiados
a International Psychoanalitical Association – IPA, fundada por Freud em 1910. Nesses três apenas a
de São Paulo – SBPSP, desde seus primeiros Estatutos, abre possibilidade para que pessoas não
médicas se submetam a formação, o que é contraditório, uma vez que é conhecida as diversas
denúncias de charlatania realizadas por médicos psiquiatras e neurologistas à essas associações.
104
Isso não impede o desenvolvimento da Psicologia, como nos mostram os estudos de Massimi (1990;
2000; 2004); Antunes (2005), Coimbra (1995), Pessotti (2004), Jacó-Vilela & Rodrigues (2004). A
Psicologia que já se desenvolvia no país mesmo antes do uso da instituição psiquiátrica como aparelho
ideológico do Estado, entre meados de 1940 até o início dos anos de 1970, desenvolve-se nas diferentes
abordagens. A título de ilustração, podemos dizer que as principais escolas que se desenvolvem nesse
período são: a Psicanálise, a Fenomenologia, o Funcionalismo, o Behaviorismo e a Psicologia Social. A
Psicanálise divulgada no Brasil desde os anos 10 até os 30, é fortalecida com a fundação da primeira
Sociedade Brasileira de Psychanalise, em 1927 e, iniciando a artir daí a formação nos moldes
freudianos, psicanalistas a partir de 1937; o movimento fenomenológico e a filosofia existencial por sua
vez, teve sua origem a partir da fundação da Universidade de São Paulo, em 1934, tendo inicialmente
forte influência francesa e posteriormente, a americana a partir de 1959 e o primeira programa de
formação em Gestalt-Terapia oferecido em 1977 por Walter Ribeiro, em Brasília; o funcionalismo que
passará por três fases: de 1900-1930, preocupava-se em explorar as possibilidades de estudo da
Psicologia em instituições de saúde mental e educação do país, de 1930-1940, com as primeiras
tentativas de aplicação desses conhecimentos aos problemas sociais (educação, trabalho e saúde
mental), 1940-1960, período em que coincide com a fase em que se inicia a formação universitária em
Psicologia e que corresponde à expansão da pesquisa científica no país na área, 1960-1990, com o
debate entre cultura e cognição, da hipótese de carência cultural, marginalidade e na explicação de
algumas formas de fracasso escolar e doença mental e, finalmente, a partir de 1990 até atualmente, com
a consolidação dos grupos de pesquisa formados entre 1970-1980 e com a expansão da pós-graduação
no país; já o behaviorismo radical no Brasil, inicia-se a partir da primeira viagem de Fred Keller ao
Brasil, em 1961, embora os contatos entre este teórico e o Brasil tenham se iniciado a partir de 1959.
Durante sua estada no Brasil, este teórico ofereceu um curso de curta duração na Sociedade de
Psicologia de São Paulo, e tornou-se professor visitante da USP. A presença de Keller possibilitou com
que gerassem os primeiros trabalhos de análise do comportamento no Brasil, publicados no Journal of
the Experimental Analysis of Behavior. Dentre os pioneiros da análise do comportamento no Brasil
pode-se destacar a Dra. Carolina Bori, principal responsável pela continuidade da pesquisa em análise
do comportamento no Brasil. A consolidação da institucionalização da Psicologia também se dá com a
publicação da Lei n.º 4.119, de 27 de agôsto de 1962, que Dispõe sôbre os cursos de formação em
psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo, e do Decreto n.º 53.464, de 21 de janeiro de 1964,
que Regulamenta a Lei n.º 4.119, de 27 de agôsto de 1962, que dispõe sôbre a profissão de psicólogo.
75

casamento, profilaxia do divórcio etc., a ponto de deixar o campo apto para as ações de
higiene mental105.
Os muros dos asilos e manicômios começam a tornarem-se pequenos frente às
necessidades de intervenção no corpo social. Os propósitos psicanalíticos, advindos de
uma prática adaptacionista de psicanálise, que disseminavam sua atuação na articulação
entre esfera pública e privada não poderiam mais ser realizados no interior de grandes
hospícios. As ações voltadas para o ajustamento deveriam ser fruto da evolução dos
olhares desses dois campos de conhecimento: da medicina exige-se um olhar para além
da doença, do psicanalista uma articulação com a pedagogia. Essa “clínica do social”
que ampliou com a Psicanálise sua possibilidade de diagnosticar o normal e o
patológico pôde “cuidar de toda população desajustada”, como nos mostra Yahn ao
discorrer sobre a orientação dada às educadoras sanitárias acerca de como seria a
identificação do doente mental:

Quando fomos a um Centro de Saúde para dar, às educadoras sanitárias, a


primeira orientação específica sôbre o trabalho de Higiene Mental na Infância,
perguntaram-nos quais as pessoas que deveriam ser conduzidas à consulta.
Havíamos pedido que fôsse organizado um grupo de oito a dez mães. “Mas de
que tipo?” Perguntaram-nos. “Não há necessidade de escolher”, respondemos.
“Tôda mulher que a Sra. vir com uma criança ao colo ou puxando uma criança
pela mão, traz consigo, seguramente, um problema psicológico, decorrente de
inter-relações pessoais defeituosas que sempre existem entre adultos e
crianças”106.

O pensamento de Yahn a respeito da articulação entre a Psiquiatria e a


Psicanálise107, na verdade, segue a tendência dos países capitalistas do pós-guerra que
absorveram essa última como nova tecnologia para o diagnóstico, tratamento e
prevenção dos desajustes: “a clínica de Higiene Mental, já em franca evolução,

105
Cf. YAHN, Mário. Higiene Mental. p.15-16.
106
YAHN, Mário. Higiene Mental. p.15. Em outra passagem esse autor escreve que o Centro de Saúde,
como ambulatório, “passa a funcionar, como verdadeiro cérebro orientador, para os pacientes. Não se
estabelece mais uma diferença tão radical entre os doentes que precisam ou não precisam ser
internados; e o ambulatório tem duas frentes: — Uma voltada para o meio social, atendendo os
pacientes que ali podem permanecer, e outra voltada para dentro do hospital psiquiátrico, onde o
paciente continua a ser atendido, sem que se modifique radicalmente a orientação que vinha sendo
seguida.” Cf. Ibidem. p.302.
107
No início da década de 70 do século passado, Leão Cabernite, presidente da SPRJ, será um dos vários
psicanalistas que farão críticas a esse modelo de Psicanálise. Os artigos acerca da “poluição da
psicanálise” feita pelo bando de “invasores”, os psicólogos e a segunda geração de psicanalistas
argentinos, serão voltadas para o conteúdo fascista e reacionário das práticas desenvolvidas. Para
maiores detalhes dessa tensão sugerimos o trabalho: COIMBRA, Cecília. Os guardiães da ordem.
p.60 et seq.
76

principalmente nos E.U.A e na Inglaterra”108. De modo a nos levar a associar a


tendência de desmonte do aparato tradicional (manicômio), como seguimento das
premissas que estavam sendo colocadas em pauta na agenda mundial. Momento
histórico em que, como nos ensinou Szasz, era antiquado opor-se abertamente à
liberdade109. Uma forma de pactuação perversa entre Psicanálise e Psiquiatria
denunciada, por exemplo, na crítica realizada por Theodor Adorno em sua Mínima
Moralia:

Se fosse possível uma psicanálise da cultura prototípica dos nossos dias, se a


predominância absoluta da economia não escarnecesse de toda a alternativa de
explicar a situação a partir da vida anímica das suas vítimas, e se os próprios
psicanalistas não tivessem, há muito, jurado fidelidade a esta situação, tal
investigação revelaria que a enfermidade actual consiste justamente na
normalidade.110

No que se refere à autonomia legislativa, após 1945 nota-se uma deflação na


produção de normas jurídicas específicas para os doentes mentais. A legislação que
discutirá a assistência e a proteção dos indivíduos “portadores de enfermidades
mentais”, passa a ser regulada por leis e decretos gerais sobre saúde. Messas111
defenderá a tese de que isso ocorreu devido, em primeiro lugar, à interpretação
culturalista que se tornou predominante, “no limite, ela também termina por reduzir a
psicologia a um posto avançado da pedagogia”, em segundo lugar, de natureza
conjuntural, deveu-se “ao enfraquecimento do Estado totalitário vanguardista e de seus
sustentáculos de ordenação social”. Sendo assim, assinalamos que se nas primeiras
décadas do século determinados indivíduos eram vistos como doentes mentais,
alienados graves com tendência à intervenção médica — e a psiquiatria era um
sinônimo de manicômio —, cuja confinação permanente pelo Estado era aceita como
uma resposta justa, para o alienado e para a sociedade ameaçada; a partir de 1961, a
sociedade desajustada necessitava de um aumento das ações da instituição psiquiátrica,
as quais saíam dos muros e passava a se espalhar pela sociedade.

108
YAHN, Mário. Op. cit. p.16.
109
SZASZ, Thomas. Cruel Compaixão. p.193.
110
ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia. p.55.
111
Cf. MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das leis e as leis do espírito. p.88 e sgts.
77

2. A identidade pressuposta do doente mental nos anos 60, 70 e 80 no Brasil: a


reprodução do paciente doente mental como justificativa de expansão do
hospital psiquiátrico privado e a produção do cidadão doente mental como
política de saúde mental

Com a chamada modernização do Brasil, iniciada no Governo de Jucelino


Kubitscheck112, nosso presidente Bossa Nova, desenvolve-se a expansão do capitalismo
monopolista, por meio da industrialização dominada pelo capital estrangeiro. Logo a
relação estabelecida entre o Estado e a instituição psiquiátrica sofrerá uma nova
transformação. Seguindo a influência norte-americana, o Brasil, a partir de 1960, mais
precisamente após a publicação do Decreto 49.974, de 21 de janeiro de 1961113,
promove uma nova reforma psiquiátrica. A novidade no decreto está na inversão da
internação do alienado, do psicopata, como elemento indispensável para a ordem social,
para desse momento em diante, a desinternação progressiva desses indivíduos. Com a
adoção da epidemiologia como referência principal na elaboração das políticas114,
abandonam-se às preocupações com a ordem pública — tão presentes nas idéias e leis
de períodos anteriores e que reduziam os problemas políticos-sociais-econômicos aos
atributos individuais específicos do povo brasileiro —, e passa-se a identificar os casos
particulares “típicos”, o que possibilita identificar o impacto das ações de saúde
mental115 da população, que passaria a ser cada vez mais medicalizada. A Reforma
Psiquiátrica promove a partir de então a metáfora da desinternação, que na realidade
prática do mundo da vida apenas ampliava sua função de regulação da população.
A desinternação como preocupação principal fica aparente no segundo capítulo
do Decreto 49.974-A, Art. 75, que deixa explícita que “a política sanitária nacional,
com referência à saúde mental, é orientada pelo Ministério da Saúde, no sentido da
prevenção da doença e da redução, ao mínimo possível, dos internamentos em
estabelecimentos nosocomiais”. Os novos reformistas brasileiros, como foi o caso de

112
Seu Governo perdura de 1956 à 1961.
113
BRASIL. Decreto nº 49.974-a. Regulamenta, sob a denominação de Código Nacional de Saúde, a
Lei nº 2.312, de 3 de setembro de 1954, de Normas Gerais Sôbre Defesa e Proteção da Saúde".
114
Ibidem. Artigo 83: O Ministério da Saúde promoverá investigações epidemiológicas, sôbre a
prevalência e a incidência das doenças mentais no país.
115
A Liga das Nações, criada após a guerra de 1918, havia criado em seu Departamento de Saúde uma
sessão de Higiene Mental, universalizando o termo. Posteriormente, tal como estava proposto desde
1946 pela Organização Mundial de Saúde (departamento especializado da Organização das Nações
Unidas, fundada em 1945), higiene mental é substituído por um termo mais abrangente que articulava
com a concepção de saúde como “um estado de bem estar completo, físico, mental e social”.
78

Mario Yahn, com forte influência psicanalítica e cultural dos problemas mentais, não
consideravam os manicômios espaços que possibilitavam uma intervenção efetiva. Para
a efetivação dessa orientação cabia ao Ministério da Saúde fomentar “a criação de
‘centros de elucidação de diagnóstico’ como organizações para-hospitalares, de
‘hospitais de dia’, e de serviços de ‘assistência aberta’, públicos ou privados, aos quais
poderá dar cooperação técnica e material”116. A cobertura da assistência extra-hospitalar
previa intervenções desde o psicopata indigente até o dependente de drogas, assim como
previa também estratégia de reintegração social117.

Art. 84. As instituições de amparo social à família do psicopata indigente e os


centros de recuperação profissional para alcoolistas e outros toxicômanos,
exercerão suas atividades de psico-higiene, através de organizações para-
hospitalares.

Art. 85. O Ministério da Saúde organizará e estimulará a criação de serviços


psiquiátrico-sociais de assistência tanto aos pacientes egressos de nosocômios,
como as famílias, no próprio meio social ou familiar.

Art. 86. O Ministério da Saúde tomará providências para a criação de "anexos


psiquiátricos" nos hospitais gerais, para o cumprimento do disposto no § 1º do
art. 77.

A intenção interventiva estava explícita: promover a saúde mental em meio à


comunidade e à família, em outras palavras, nos espaços em que a produção das
doenças mentais ocorria. Em casos extremos, a assistência deveria ser realizada em
anexos psiquiátricos em hospitais gerais. A higiene mental aparecia como tecnologia
capaz de contribuir para o desenvolvimento de uma vida psíquica mais saudável.
Yahn118 ao discorrer sobre os objetivos principais da higiene mental destaca dois
objetivos: “a) a profilaxia da loucura e de outras perturbações psíquicas ou psicológicas
menos graves; b) o estabelecimento de regras e conceitos graças aos quais se pode
conseguir uma vida psicológica mais equilibrada e normal”. Sua construção teórico-
metodológica não se embasava em uma ciência, “mas um ponto de vista especial
adotado para atingirmos determinados fins práticos no sentido do bem estar
psíquico”119.

116
BRASIL. Decreto 49.974-A, de 21de janeiro de 1961. artigo. 77, § 1º.
117
Ibidem.
118
YAHN, Mário. Higiene Mental. p.17.
119
Ibidem. p.28.
79

Todavia, vai se tornando cada vez mais aparente que a reforma psiquiátrica
firmada por meio do Decreto 49.974, efetivamente, apenas promoveu a simples
substituição do termo “doença mental” por “saúde mental” e efetuou um upgrade na
tecnologia psiquiátrica tradicional, que poderia agora abrir as portas da instituição
psiquiátrica para que outros saberes se tornassem parceiros, como foi o caso, por
exemplo, da Psicologia Social120. Isso mostra que o projeto de desinstitucionalização —
que na verdade foi apenas de desinternação, ao passo que não se questionava a
instituição psiquiátrica — proposta a partir de 1961 no Brasil, não foi um resultado a
posteriori de nenhum movimento social, pelo contrário, foi a priori mais uma estratégia
de ajuste político-econômico. Esse tipo de racionalidade instrumental proporcionou para
essa proposta durante um curto período de tempo uma perspectiva promissora, muito
próxima, inclusive, ao que se espera atualmente conseguir com a Lei 10.216 de 6 de
abril de 2001. Todavia, surgiram alguns problemas que impediram sua implementação
prática do decreto de 1961.

O primeiro, talvez o principal, refere-se exatamente ao fato de o Brasil estar


nesse período aliado fortemente à expansão do capitalismo por meio do crescimento da
industrialização dominada pelo capital estrangeiro, cujo modo de produção requer um
poder de dominação contínuo dos que se apropriam sobre os expropriados. Isso faz com
que o poder econômico somente possa ser mantido pela manutenção, também contínua,
do poder político. Nesse caso, como assinala Célia Regina Borges121, era quase que
inevitável o desenvolvimento de aparatos institucionais de coerção, repressão e
consenso ideológico que permitissem exercer controle sobre a sociedade. O segundo
problema refere-se às guerras declaradas. O código de 1961 não ocultou seus
adversários, reforçava a rixa com a religião (não mais como instituição concorrente na
assistência – pois a hegemonia da instituição psiquiátrica já estava constituída, mas
como especificidade terapêutica) e classificava as “pessoas não qualificadas”

120
Os primeiros trabalhos que discutem a relação da Psicologia Social com a Saúde Mental e tentam
definir esse “novo campo” foram publicados a partir de 1958. Entre os trabalhos que se destacaram e
que posteriormente foram objeto de análise no ensaio de FREEMAN, Howard E. & GIOVANNONI,
Jeanne M. intitulado: Social Psychology and Mental Health, publicado na segunda edição do
Handbook of Social Psychology são: SCOTT, W. A. Research definitions of mental health and
mental illness, 1958.; JAHODA, M. Current concepts of mental health, 1958.; SMITH, M. B.
Research strategies toward a conception of positive mental health, 1961. Em todos eles a
preocupação era contribuir com o entendimento do desajustamento social e com os métodos de
adaptação e adequação.
121
Cf. BORGES, Célia Regina Congilio. Através do Brasil: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo.
80

(profissionais que atuavam com técnicas não reconhecidas)122 como inaptas para
desenvolver intervenções. Existia o consenso de que essas práticas influenciavam o
psiquismo da população, todavia, o código não impediu que as comunidades
terapêuticas proliferassem em todo país. Por último, o código desconsiderou a
hegemonia da instituição psiquiátrica e sua íntima relação com o desenvolvimento
capitalista brasileiro.

Esperava-se que o Código Nacional de Saúde pudesse garantir a redução das


internações psiquiátricas e ampliar a assistência à comunidade, e que, para tanto,
multiplicariam-se os equipamentos para-hospitalares e anexos psiquiátricos nos
hospitais gerais. Na prática o inverso ocorre, paradoxalmente será justamente nesse
período a grande expansão dos manicômios no Brasil123. O Brasil, que no imediato pós-
guerra estava capitalizado, forneceu as condições necessárias para que dois documentos
datados de 1946 e 1947124 fossem contemplados e beneficiassem empreendedores
privados. O Decreto 22.561, de 7 de fevereiro de 1947, é o exemplo da contradição
entre uma reforma psiquiátrica humanista e uma política hospitalar grandiosa em termos
físicos: para conseguir renúncia fiscal era necessário a instalação mínima de duzentos
leitos hospitalares em cada projeto; assim, é fácil imaginar, com esse tipo de facilitação
a partir desse decreto, o modo que a privatização progressiva dos serviços começa a
ocorrer paulatinamente. Madel Luz, em um estudo pioneiro, publicado em 1979, sobre
as instituições médicas, intitulado: As instituições médicas no Brasil, escreve que nesse
período incentivam-se as consultas ambulatoriais e internações médicas, por um lado, e

122
BRASIL. Decreto 49.974-A. Art. 80. É vedada, quer nos estabelecimentos destinados à assistência a
psicopatas, quer fora dêles, a pratica de quaisquer atos litúrgicos de religião, culto ou seita, com
finalidade terapêutica, ainda que a título filantrópico e exercida gratuitamente; Art. 81. É vedada a
pessoas sem habilitação legal para o exercício da profissão, a prática de técnicas psicológicas com
fundamento nos processos de sugestão capazes de infundar o estado mental de indivíduos ou de
coletividades, ainda que sem finalidades de proteção ou de recuperação da saúde; Art. 82. Qualquer
autoridade pública local tem o dever de notificar, imediatamente, às autoridades sanitárias competentes,
a eclosão de "epidemia de crendice terapêutica" de qualquer natureza, com aspectos de contágio
psíquico, propiciando psicoses induzidas, fanatismo de multidões ou loucura coletiva.
123
Aqui aparece uma particularidade brasileira que ajuda a entender a viabilidade atual da reforma e a
inviabilidade dos anos de 1960. Quando Szasz realizou sua pesquisa acerca da reforma psiquiátrica nos
EUA pós Segunda Guerra Mundial, foi associada a possibilidade desse feito com o desenvolvimento
dos medicamentos antipsicóticos, os estimulantes e antidepressivos. No Brasil, tal como apresentado no
relatório de Mário Yahn, em 1952, em Santiago do Chile, o uso de medicamentos psiquiátricos ainda
era muito restrito. Cf. SZASZ, T. Cruel Compaixão. e YAHN, M. Higiene Mental.
124
O Decreto-Lei 8.550, de 3 de janeiro de 1946, autorizava o Ministério da Educação e Saúde a
“celebrar Acordos, visando a intensificação da assistência psiquiátrica no território nacional”,
otimizando a assistência psiquiátrica “nas regiões em que os estudos (...) revelarem deficiencias” Art.1.
e o Decreto 22.561, de 7 de fevereiro de 1947, por sua vez concede favores fiscais aos
Estabelecimentos Hospitalares que se construírem no Distrito Federal.
81

o consumo de medicamentos por outro. É importante lembrar que nesse período o


mercado farmacêutico também havia se desenvolvido a ponto de tornar desnecessário o
uso de força, uma vez que os novos medicamentos possibilitavam que os doentes
mentais, novos consumidores, retornassem ao trabalho. “A medicina será um lenitivo
para a extrema carência da população. O remédio, uma alternativa para a fome”125.

O papel político das instituições médicas transparece nessa ambigüidade do


termo Saúde: a medicalização generalizada como substituto do que é retirado da
maioria pelas condições sociais da produção: um mínimo de controle sobre as
decisões de política-ecônomica (salários, “produtividade”, planejamento da
economia, etc.), conquistado historicamente, a duras penas; um mínimo de
controle sobre as políticas de saúde (planos, programas, organização dos
serviços e a própria concepção de saúde); um mínimo de controle sobre a
produção e a reprodução (o ensino) dos conhecimentos da medicina.126

Tal como o alienista de Machado de Assis, o discurso técnico-psicológico


desenvolvido a partir de então colocará toda a sociedade brasileira dentro do
manicômio, como pode ser visto na comparação feita por Gabriel Figueiredo127, do
crescimento das instituições manicomiais desde os anos de 1941 até os anos de 1981.
Figueiredo mostra-nos que a rede privada cresceu praticamente 11 vezes mais que a
pública. Em 1941, em meio à Segunda Guerra Mundial, existiam 65 hospitais
psiquiátricos no Brasil (31 pertenciam à rede pública e 34 à privada). Após o Plano
Salte128, mais precisamente em 1961, existiam 140 hospitais (54 públicos e 86
privados). Nos 10 anos que seguiram, em que ocorreu a maior privatização dos serviços
de saúde da história brasileira, em todo território nacional existiam 340 hospitais (63
públicos e 277 privados). Entre os anos de 1971 e 1981 nenhum hospital público foi
aberto, ao passo que o número de hospitais psiquiátricos privados passou de 277 para
362.
Embora tivéssemos uma nova orientação na concepção de saúde mental
garantida pelo Conselho Nacional de Saúde, de 1961, na prática, graças à hegemonia da
instituição psiquiátrica, todos os Governos mantiveram o mesmo projeto de expansão
física de um modelo que do ponto de vista internacional estava ultrapassado.

125
LUZ, Madel T. As instituições médicas no Brasil: Instituição e estratégia de hegemonia. p.19.
126
Ibidem. p.19-20.
127
Cf. FIGUEIREDO, Gabriel. Ética e reforma da assistência psiquiátrica no Brasil. p.1-14.
128
O Plano Salte (Saúde, Alimentação, Trabalho e Energia), foi mais uma tentativa frustrada de
desenvolvimento. Os gastos foram mal elaborados e não faziam relação com os resultados obtidos. Cf.
BRASIL. Lei n.1102. Aprova o Plano Salte e dispõe sobre sua execução. 18 de mai., 1950.
82

Tanto nos governos democráticos dos anos 40 e 50 quanto no regime militar,


nas duas décadas seguintes, prevaleceu a noção de que o investimento na
economia (inicialmente na indústria, em seguida na infra-estrutura), bastaria
para tornar o país justo e apto a participar do primeiro time do mundo ocidental.
A saúde mental jamais foi estrela de primeira grandeza dessa agenda, sendo
entendida como fator secundário a agregar valor ao progresso. A lógica que
moveu as políticas do período foi a do empreendedorismo industrial, e o
balanço das ações promovidas em saúde mental confirma esta tese. O parque
industrial brasileiro privado cresceu à semelhança do parque industrial e infra-
estrutura. Ambos eram avaliados pelo número de plantas e, sobretudo, pela
crescente participação privada, apoiada pelo poder público.129

Diante das várias reformas psiquiátricas apresentadas até agora é preciso


discordar de Paulo Amarante130, o qual entende que uma reforma psiquiátrica concreta
somente inicia em fins da década de 1970. Fica cada vez mais explícito o fato de que a
história da saúde mental no Brasil é uma história de reformas iniciadas concretamente
desde o início do século XX e que após 1960 seguiu duas frentes: o fortalecimento dos
manicômios privados e o aumento da intervenção psiquiátrica na comunidade, com
fortes tendências a psiquiatrização do social, em que o psiquiatra deve responsabilizar-
se, treinar os agentes não-profissionais, tais como: vizinhos, agentes religiosos, líderes
comunitários etc. Sendo assim, vemos que mesmo o conceito de saúde mental surge
associado a um processo de adaptação do social, apontando um padrão ampliado de
anormalidade, do mesmo modo como ocorreu nos Estados Unidos131. Entretanto,
também verificaremos nesse período que concomitantemente às tentativas de
ajustamento dessa comunidade imaginada132, que não se restringiu apenas à saúde
mental, mas sim a toda política nacional, surgirão formas de resistência advindas tanto

129
MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das leis e as leis do espírito. p.95.
130
AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. p. 91.
Nesse trabalho Amarante diz que no “Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais
concretamente e principalmente a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970,
fundado não apenas na crítica conjuntural do subsistema nacional de saúde mental, mas também, e
principalmente, na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas (...).” Nos parece
que aceitar a idéia de que a reforma somente inicia-se nesse período seria negar todos os outros
momentos de metamorfose da instituição psiquiátrica. Claro que aqui está em jogo nossa compreensão
de instituição, que está para além da idéia de estrutura física e saber técnico de um determinado período
e entende que o manicômio e as técnicas utilizadas fazem parte de um período de aperfeiçoamento da
instituição psiquiátrica, não tendo sido, portanto, superadas, mas sim aperfeiçoadas.
131
Cf. SZASZ, Thomas S. Cruel Compaixão. Passim.
132
Achamos útil trazer o conceito de comunidade imaginada desenvolvido por Benedict Anderson. Para
esse historiador as comunidades são imaginadas no sentido de que se organizam a partir de um discurso
heterogêneo, possibilitando planejamento e projeções. Cf. ANDERSON, Benedict. Comunidades
Imaginadas.
83

de movimentos universitários como dos movimentos populares: as minorias mostram-se


como maiorias silenciosas.
Frente ao reordenamento monopolista do capitalismo internacional, que
caracteriza a política populista de 1961 a 1964, vem surgir movimentos sociais que são
marcados pelos debates “em torno do ‘engajamento’ e da ‘eficácia revolucionária’, onde
a tônica é a formação de uma ‘vanguarda’ e seu trabalho de ‘consciência das massas’,
para que possam participar do processo revolucionário”133. Esses movimentos,
fortalecidos pelos ecos de vitória da Revolução Cubana, começam a colocar em xeque
os grupos dominantes aliados aos capitais estrangeiros, incapazes de desenvolver uma
política autônoma, o que faz com que seja criada mais uma nova ameaça: a personagem
do comunista. Sob esse discurso, que aterrorizava os ideais de família e a
propriedade134, dá-se o golpe militar de 1964. Borges nos mostra com muita
propriedade que no momento em que os argumentos liberais retiram do Estado seu
caráter meramente regulatório para dar seguimento às necessidades de reestruturação do
capital, “o Estado manifesta-se reduzido à pureza de sua essência: o Estado policial.
Sustentado pela comunidade do medo, e onde impera o reino absoluto do mercado, o
Estado é recolocado na função ilusória dos ‘interesses gerais’”135. A psiquiatria, assim
como as outras instituições médicas, continuariam cumprindo o pacto de implantação e
manutenção da estrutura de dominação. Isso fica explícito após 1968 quando suas
práticas, enquanto instrumento técnico-científico, tornam-se modos de intervenção
política, representando, utilizando aqui uma linguagem habermasiana, uma dominação e
colonização cada vez maior do mundo da vida ocultado pela invocação de imperativos
técnicos136, ou ainda, pela assunção de uma racionalidade cínica, onde a contradição
posta é ao mesmo tempo uma contradição resolvida137. Não sendo uma surpresa
observar o crescimento desigual dos manicômios138 ocorrer ao mesmo tempo em que se

133
COIMBRA, Cecília. Guardiães da Ordem: Uma viagem pelas práticas psi no Brasil do
“Milagre”. p.3.
134
“(...) semanas antes e depois do golpe de 31 de março de 1964, em muitas capitais do país, são
organizadas as Marchas da Família com Deus e Propriedade. Multidões de senhoras e suas famílias de
classe média e média alta desfilam pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro e São Paulo e, juntamente
com a cúpula da Igreja Católica, denunciam a ‘comunização’ da sociedade brasileira e exigem um
governo forte.” Ibidem. p.5.
135
BORGES, Célia Regina Congilio. Através do Brasil: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo. p.21.
136
HABERMAS, Jürgen. Ciência e técnica como “Ideologia”. p. 49 et seq.
137
ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. p.60 et seq.
138
Fernando Tenório mostra que foram “sobretudo os governos militares que consolidaram a articulação
entre internação asilar e privatização da assistência, com a crescente contratação de leitos as clínicas e
hospitais conveniados. O direcionamento do financiamento público para a esfera privada durante o
84

estabelece como política de saúde a desinternação e ampliação da clínica na


comunidade pregada pelo Código Nacional de Saúde.
Com o apoio de diferentes mídias, a popularidade do discurso acerca da
identidade pressuposta do doente mental, já instaurada por jornais e revistas, expandiu-
se a todos os cantos do país e classes sociais, tornando a área médica o tema central dos
debates ao catequizar a esfera privada com as siglas, doenças e formas de controle
médico139 (num movimento atrelado à expansão dos aparelhos televisores, que
passavam a ser um dos bens mais estimados da classe média e baixa140). Esses meios de
comunicação, inclusive, vivem seu momento de fortalecimento e variam de acordo com
os interesse dos grupos representados nos veículos de comunicação, ou seja, tanto
coincidiam com o discurso do Estado, quanto em momentos oportunos se opunham a
ele. Quando o “milagre econômico” começa a se desfazer, as camadas mais pobres e
algumas parcelas da classe média tornam-se aliados nas lutas por melhores condições de
vida, trabalho, salário, moradia, alimentação, educação e saúde e democratização da
sociedade em todos os seus níveis.

A famosa “crise das instituições” que se explicita nos diferentes movimentos de


1968 começa na prática a ser repensada no Brasil. Em cima, principalmente,
das crises da Igreja, das esquerdas e do sindicalismo – que a ditadura militar
brasileira aprofunda e acirra – surge uma série de movimentos sociais
procurando novos caminhos. Caminhos que produzem práticas ligadas à
“teologia da libertação”, que repensam o marxismo, a luta armada e o
movimento sindical.141

A Psicologia, que havia sido relegada ao espaço universitário desde meados de


1930 e vivia uma “aparente separação” da instituição psiquiátrica, volta ao campo da
saúde mental na medida em que seu interesse é direcionado à aplicação frente a uma
sociedade que se interessava cada vez mais pelos projetos de ascensão social.
Fortalecida com a consolidação como instituição independente após a publicação da Lei

regime militar deixa-se ver, por exemplo, no fato de que entre 1965 e 1970 a população internada em
hospitais diretamente públicos permaneceu a mesma, enquanto a clientela das instituições conveniadas
remuneradas pelo poder público saltou de 14 mil, em 196, para trinta mil, em 1970.” TENÓRIO,
Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e
conceitos. p.34.
139
LUZ, Madel T. As instituições médicas no Brasil: Instituição e estratégia de hegemonia. p.205 e
segts.
140
COIMBRA, Cecília. Op. cit. p.24.
141
Ibidem. p.40.
85

que regulamenta a profissão em 1962142, passa a fornecer, a partir do “psicologismo”, a


legitimação científica à tecnologia do ajustamento143. Fenômeno que nos faz entender
tanto a onipresença da clínica no imaginário social da profissão quanto o fato de que
essa clínica responde por um modelo específico, liberal e privado, denominado
anteriormente de concepção clássica de clínica. Cecília Coimbra nos mostra que
seguindo a influência midiática que colocava na educação o melhor investimento de
uma sociedade e possibilidade de ascensão, os cursos de psicologia, principalmente a
rede privada, também crescerão de forma assustadora144. Nessa graduação, por sua vez,
produzia-se, como podemos imaginar, observando o pano de fundo apresentado até
aqui, uma certa psicologia que desde seu início trazia impressa em suas diferentes
práticas a marca da tradição positivista.

(...) exemplos são a hegemonia do Behaviorismo e de uma Psicologia Social


que reproduz mecanicamente conceitos e técnicas de estudo de inspiração
norte-americana. É o domínio da psicologia experimental positivista com suas
características de cientificidade, neutralidade, objetividade e tecnicismo. A
própria psicanálise ensinada – e, em certos cursos, hegemônica – nesses cursos
de graduação também está marcada por este positivismo e pela
“psicologização” da vida social e política, seguindo os modelos produzidos na
época e já citados.145

Entretanto, a utilidade da Psicologia como tecnologia de ajustamento, aliada


novamente à hegemonia do discurso psiquiátrico, não se tornaria uma concepção
consensual entre os diferentes psicólogos. Haja vista o fenômeno de época que foi
denominado como “crise do pensamento social”, cuja expressão mundial referia-se à
crescente transformação do teórico em mero técnico, que havia perdido a capacidade de

142
BRASIL. Lei nº 4.119. Dispõe sôbre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a
profissão de psicólogo. de 27 de agôsto de 1962, regulamentada pelo Decreto nº 53.464, de 21 de
janeiro de 1964. O artigo 4º. Referente ao exercício profissional do Psicólogo deixa explícito sua
função a resolução de problemas de ajustamento.
143
Domenico U. Hur assinala que a atuação política “estava capturada pela repressão do Estado. O
contrato social dos psicólogos compactuava com tal captura e não esboçava reação. A maneira de
compactuar com o Estado foi o mecanismo de negação de que tal atuação fosse política e afirmá-la
como meramente técnica-profissional. A entidade de classe, por meio do mecanismo de cisão, cindiu o
político e o profissional, criando uma atuação meramente técnica. À profissão referia-se apenas a
questões da teoria e técnica; a política era outra coisa, representada por posicionamentos ideológicos
referentes à macropolítica”. Cf. HUR, Domênico Uhng. Políticas da psicologia de São Paulo : as
entidades de classe durante o período do regime militar à redemocratização do país. p.197.
144
No ano de 1964, havia no Rio de Janeiro apenas na PUC o curso de Psicologia (desde 1957). Em São
Paulo existiam três cursos: USP, inciado em 1958; PUC São Bento iniciado em 1962 e o Sedes
Sapientiae. Ainda em 1964 são criados o curso de Psicologia na UFRJ; em 1965 na UEG (atual UERJ).
145
COIMBRA, Cecília. Guardiães da Ordem: Uma viagem pelas práticas psi no Brasil do
“Milagre”. p.118.
86

envolver sua produção científica em um contexto globalizado. O psicólogo, profissional


responsável pela produção de conhecimento e transformação da sociedade se
“transforma em mero técnico adstrito às tarefas que lhe são impostas com alvos não
científicos. A alienação do trabalho científico se traduz por ações orientadas segundo
interesses daqueles que financiam sua atividade”146. Entretanto, nessa “crise”, a
consciência histórica começa a emergir e os especialistas, na pretensão de conseguir
respeitabilidade científica, começam a ver-se como responsáveis pela barbárie imposta à
sociedade. Principalmente entre o final de 1960 e meados de 1970, quando o corpo
social emerge no campo discursivo sob a égide da pobreza, da miséria, e vê-se brotar
diversas críticas ao Estado autoritário e à deficiência da assistência pública. Nesse
período são descortinadas as fraudes no sistema de financiamento dos serviços privados,
as denúncias de abandono, tortura e maus tratos a que eram submetidos os indivíduos
submetidos à saúde mental. Com o estado de exceção exposto vive-se à experiência do
social, a chamada minoria a ser ajustada mostra-se como maioria silenciosa, que
reconhece os riscos de fratura de uma sociedade cônscia de sua divisão, e que toma
consciência da necessidade de adoção de práticas democráticas. Os movimentos
populares urbanos se fortalecem e as ligas camponesas vão cada vez mais aglutinando
um número maior de trabalhadores em torno da reivindicação das necessidades básicas.
As greves se espalham em vários setores da produção, o desemprego e a inflação
alcançam números assustadores. A universidade passa a lidar com as desigualdades
sociais e com a produção de alternativas de intervenção e constata sua impotência, fruto
da simples importação de uma leitura de sociedade que não correspondia à realidade
brasileira. Uma crise torna-se evidente, os parâmetros de leitura e intervenção
comumente utilizados mostram-se ineficientes.
A influência das contradições sociais no desmantelamento do Estado autoritário
e nas formas de interpretação e intervenção de alguns psicólogos torna-se explícita
principalmente no início da década de 1970, quando sob o regime militar, os psicólogos
envolvidos com a psicologia na comunidade passaram a incorporar os setores populares.
Nestes espaços as intervenções possíveis estavam na possibilidade de incitamento da
racionalidade crítica, organização popular e participação política147. Esses profissionais
tinham como característica uma postura de militância e um envolvimento com a vida

146
CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social e suas relações com a ideologia. p.12.
147
Para maiores detalhes Cf. LANE, Silvia T. M. Histórico e fundamento da psicologia comunitária
no Brasil. p.17 et seq.
87

das populações oprimidas. Esse envolvimento e o próprio sentimento de opressão


vivido pelos psicólogos colocou como necessidade imediata à criação de uma sociedade
mais justa e livre. Dentre esses, aqueles que estavam envolvidos com os problemas de
saúde mental defendiam que essa questão deveria ser encarada de maneira mais
abrangente, uma vez que na vida das pessoas diagnosticadas como doentes mentais se
entrelaçavam problemas ligados ao desemprego, habitação e educação148.
A crítica à Psicologia distanciada do social estava instaurada e os movimentos
pela deselitização e criação de referenciais teórico-metodológicos que possibilitassem
emancipação social tornou-se a agenda do período. O discurso dos profissionais
militantes, levados inevitavelmente para dentro das universidades, colocou ainda mais
em xeque a utilidade dos referencias utilizados até então. Ao comentar esse momento
histórico, Antonio da Costa Ciampa escreve que a própria experimentação “passa
apenas a servir como uma evidência de que [estavam] fazendo ciência e não
filosofia”149, e com isso os grandes e verdadeiros problemas da sociedade começam a
emergir de forma impossível de se fragmentar e manipular de forma estéril150.

148
Cf. ANDERY, Alberto Abib. Psicologia na comunidade. p.205 et seq. Sugerimos também o artigo
publicado originalmente em 1985: GOIS, César Wagner de Lima. O paciente pobre. p.71 et seq.
149
CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social e suas relações com a ideologia. p.13.
150
Na Psicologia Social constata-se que a literatura hegemônica até então era a norte-americana, ou seja,
quando se falava em Psicologia Social, falava-se em psicologia social desenvolvida nos Estados
Unidos. Nesse sentido, começou-se a entender que muitos dos problemas estudados no Brasil eram na
verdade problemas da sociedade norte-americana. Surge aquilo que será denominado por diversos
autores (Triandis, 1977; Ianni, 1971; Zajonc, 1969; Moscovici, 1972) como a “crise da Psicologia
Social”. Embora seja apontada por Ciampa como existente a partir de 1972, o marco dessa nova postura
teórico-epistemológica ocorrerá em 1976, no Congresso da Sociedade Interamericana de Psicologia –
SIP que ocorrera em Miami, quando Silvia Lane, alinhada aos questionamentos europeus à respeito da
crise da Psicologia, declara a assunção de um novo empreendimento: a construção de uma Psicologia
Social Crítica que lidasse com as complexidades brasileiras e que buscasse a emancipação das classes
dominadas. O lócus de desenvolvimento dessa “nova” Psicologia Social foi a Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, universidade cuja Psicologia foi a primeira área a instalar a Pós-Graduação, e
que “embora iniciada com um curso de Psicologia da Educação (1969), teve desde o início estudantes
cujas pesquisas lidavam com objetos e métodos da Psicologia Social. Por exemplo, a dissertação de
Mestrado de José Roberto Malufe “Caça ao tesouro: experimento de campo em Psicologia Social”.”
(PEPG-PS, 2002, p. 16) Com a abertura democrática nos fins dos anos 70 e início dos anos 80, os
trabalhos produzidos durante os anos anteriores começaram a tomar mais visibilidade e de um trabalho
associado a clandestinidade, a “psicologia comunitária” passa a ser vista como uma atividade
consagrada, adotada por vários profissionais, gerando debates e reflexões. Com o surgimento da
ABRAPSO em julho de 1980, legitima-se um espaço de interlocução e troca de experiências entre os
Psicólogos Sociais. A PUCSP (conhecida internacionalmente como escola de São Paulo), a PUCRS, a
UFRGS e a UFMG ainda hoje servem como pólos de produção teórica para esse campo, seja nos
trabalhos com grupos, a análise da ideologia, representações sociais, mediando a consciência crítica e o
desenvolvimento de identidades políticas. No que se refere aos estudos e intervenções, a UFPB e a
UFC se tornaram locais de referencia. A Psicanálise, inserida nessa discussão, teve com os trabalhos de
Joel Birman, Jurandir Freire Costa, Luis Cláudio Figueiredo e Suely Rolnik, por exemplo, uma guinada
frente ao seu lugar na lógica discursiva de ajustamento para o desvelamento das condições onde são
produzidos e mantidos esses discursos.
88

A militância desses profissionais (não somente psicólogos) na saúde mental,


fortalecida a partir das críticas ao discurso da instituição psiquiátrica elaboradas
principalmente por Ervin Goffman151, Thomas Szasz152, Michel Foucault153, Ronald
Laing154, Franco Basaglia155, Theodor Sarbin & J. Juhasz156, entre outros, desde a
década de 60, que tentaram propor reflexões para os problemas da instituição
psiquiátrica para a liberdade e autonomia humana, impulsionam a criação de

151
GOFFMAN, Ervin. Manicômios, Prisões e Conventos. Publicado em 1961, o trabalho de Goffman
demonstra como as práticas realizadas nas instituições totais (manicômios, prisões e conventos) são
práticas de mortificação dos indivíduos
152
SZASZ, Thomas Stephen. The Myth of Mental Illness. Os esforços de Szasz ao longo de todos os
anos seguintes têm se voltado para a tarefa de encontrar elementos que pudessem demonstrar que o
conceito de “doença mental” é uma invenção médica do século XIX, tornada popular devido às
potencialidades de utilização como instrumento de administração político-econômica, que muitas de
suas proposições são atos violentos contra os direitos humanos, uma ameaça para a liberdade e
emancipação humana. N’O Mito da Doença Mental, livro publicado no ano seguinte ao artigo citado
(1961), Szasz nos oferece uma forma de análise do desenvolvimento do comportamento desviante e/ou
da doença mental, que o aproxima tanto das discussões de Ervin Goffman como da Psicologia Social de
George Herbert Mead. O último trabalho publicado por Szasz chama-se Psychiatry: the Science of
Lies, onde segue defendendo a utilização ideológica da concepção de doença mental.
153
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. É importante assinalar que a genealogia da Loucura de
Michel Foucault, além de uma genealogia da loucura, também será um estudo detalhado sobre a
transformação das formas de exclusão individual. Para Foucault após a revolução industrial ocorreu
uma transformação na forma de marginalização do louco que passou a ser realizada a partir da
ideologia do trabalho (louco é aquele inapto para o trabalho). Em outro trabalho, ele sintetiza essa
transformação ao dizer que os “indivíduos identificados como ‘anormais’ passam a ser segregados
entre os séculos XVI e XIX na França, e somente a partir do desenvolvimento do capitalismo e a
necessidade de um exército de reserva da força de trabalho retornam para o espaço público.” Cf.
FOUCAULT, M. Loucura e Sociedade. p.262.
154
LAING, Ronald David. O Eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. Ronald Laing,
cujo trabalho teve um tremendo impacto na revolução cultural de 1960, seguia o sentido das críticas
realizadas pelos teóricos apresentados anteriormente, que ficaram conhecidas como antipsiquiatria, e
sua atuação, serviu como modelo alternativo de atenção aos desviantes. Laing confrontou a
racionalidade entendida como “normal” com as formas de irracionalidade mantidas pela sociedade.
Assim, guerra, violência urbana, cultura de consumo etc., são colocadas lado a lado com os casos de
pessoas internadas nos manicômios, o que leva Laing a defender a tese de que o isolamento humano é
irracional e que a loucura é uma característica comum no desenvolvimento humano, sendo, portanto,
anormal” o olhar direcionado para o humano que tende a caracterizá-lo como doente mental.
155
BASAGLIA, Franco. Che cos’è la psichiatria? Franco Basaglia foi reconhecido como um ícone da
Luta Antimanicomial, principalmente no Brasil onde é referência hegemônica no projeto de
desinstitucionalização. Com a ajuda de colaboradores publicou, em 1963, Che cos’è la psichiatria?,
onde incorpora as discussões trazidas por Goffman, Foucault, Szasz, Laing e outros mais, e desde então
parte para a elaboração de uma proposta alternativa aos modelos de tratamento. Para Basaglia a
etiologia da doença mental deveria ser pensada como uma complexa interação entre a experiência do
“paciente” e sua localização social, os métodos médicos de intervenção, valores culturais e ideologia
dominante. Nesse sentido, era mister que as diferentes abordagens trabalhassem interdisciplinarmente
para que os sistemas científicos pudessem ser contestados. A apresentação desse texto e outros do autor
podem ser encontros nos escritos selecionados por Paulo Amarante. Cf. BASAGLIA, Franco. Escritos
selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica.
156
Cf. SARBIN, Theodor R. & JUHASZ, J. B. The concept of mental illnesss: A historical
perspective. Sarbin & Juhasz traz a discussão da doença mental para o campo da Psicologia Social,
incorpora a teoria de Goffman, as críticas de Szasz, aplica os conceitos de Psicologia Social as
categorias tradicionais de doença mental e conclui nesse trabalho que o estigma tradicional e o
tratamento de indivíduos diagnosticados dessa maneira eram metáforas que serviam à administração
social.
89

movimentos sociais que realizam fortes críticas ao modelo manicomial financiado pelo
Estado e às políticas de saúde implementadas de forma autoritária, que resultam na
elaboração de propostas alternativas que vieram a chamar-se de reforma sanitária:
movimento pela reformulação do Sistema Nacional de Saúde.
É importante assinalar aqui que a política de identidade desse movimento foi se
configurando em torno de uma proposta que não cindia com a ideologia da doença
mental desenvolvida desde o alienismo até a teoria psiquiátrica kraepeliniana157. O
saber psiquiátrico não é contestado, como aconteceria nas obras de autores da
antipsiquiatria como Goffman158, Laing159 e Szasz160, mas visto como possível de ser
reformado a partir de uma psiquiatria democrática, menos radical em relação às teorias
técnico-psicológicas, tal como é encontrada na obra de Franco Basaglia161. Apontar essa
escolha entre as diferentes leituras críticas à instituição psiquiátrica e a subseqüente
escolha teórico-metodológica adotada pelo movimento pró-reforma psiquiátrica nos
possibilita entender muitos dos problemas vivenciados pela própria saúde mental atual,

157
Kraepelin, assim como Pinel, terá sua obra reconhecida e será apontado como o pai da reforma
psiquiátrica moderna.
158
Goffman criticava além da forma asilar a forma como está configurada a sociedade, uma vez que havia
percebido que as relações mantidas no interior dos manicômios reproduziam as formas de interação
social realizadas fora desse lugar. Para Goffman, “quaisquer que sejam os refinamentos dos
diagnósticos psiquiátricos dos vários pacientes, e quaisquer que sejam as maneiras específicas pelas
quais se singulariza a vida ‘no interior’, o pesquisador pode verificar que está participando de uma
comunidade que não é significativamente diferente de qualquer outra que já tenha estudado.”
GOFFMAN, Ervin. Manicômios, Prisões e Conventos. p.113.
159
Para Laing o problema estava em como adotar a noção de “homem visto como pessoa” em
substituição à pregada pela psiquiatria tradicional de “homem visto como organismo”. LAING, Ronald
David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p. 19 et seq.
160
Para Szasz, o mais radical dos autores da antipsiquiatria, a própria concepção de doença mental seria
um engodo, uma vez que não é possível atribuir às condições mentais os mesmos critérios das
condições orgânicas, o que desvelaria que a manutenção da concepção de doença mental, pelo que ele
chama de falsa-ciência psiquiátrica, serviria apenas aos interesses do Estado e sua relação com o
capital. Cf. SZASZ, Thomas Stephen. Psychiatry: the Science of Lies.
161
Basaglia não questionou o estatuto técnico-científico da psiquiatria, sua preocupação voltou-se para a
abolição dos “manicômios”, entendidos como instituições promotoras da desumanidade, dizia que o
problema da doença mental era algo a ser trabalhado após a efetivação de uma abolição dos
manicômios, enquanto isso não acontecia a concepção de doença deveria ser colocada “entre
parênteses”. Seus esforços fizeram com que surgisse, em 1970, uma associação de caráter nacional: a
Psiquiatria Democrática, cuja representação possibilitou que fosse aprovada a Lei 180, em 1978, que
trazia novamente a psiquiatria para o corpo médico e a integrava na reforma sanitária global. Esse
episódio, inclusive, tornou-se polêmico, pois como nos mostra Étienne Trillat: “Basaglia, a quem se
deu a satisfação com o fechamento dos hospitais psiquiátricos, não desaprovou a Lei; o que nos explica
a amargura dos militantes da Psiquiatria Democrática, que protestaram contra a medicalização da
loucura”. Cf. TRILLAT, Étienne. Una Historia de la psiquiatria no século XX. p.344. Tradução
nossa: “Basaglia, a quien se dio satisfacción con el cierre de los hospitales psiquiátricos, no desaprobó
la Ley; lo que nos explica a amargura de los militantes de Psichiatria Democrática, que protestaron
contra esta medicalización de la locura.” Basaglia colocou a loucura entre parênteses, garantiu a
participação de outros especialistas no tratamento do doente mental, mas não propôs uma subversão do
conceito.
90

que convive com o resultado de ter escolhido, ao invés de uma revolução psiquiátrica,
uma proposta conciliadora onde a identidade pressuposta do doente mental torna-se
elemento de disputa, ou ainda, de utilização dual em um capitalismo tardio que na
tentativa de conciliar a tensão entre os interesses do mundo da vida e da lógica sistêmica
incorpora pelo menos dois conteúdos particulares para cada expressão identitária
(cidadão doente mental e paciente doente mental), como escreve Žižek, da expressão de
seu conteúdo popular autêntico e sua distorção pelas relações de dominação e
exploração162. Isso significa que a escolha pelas políticas de reforma apareceram como
ideais para essa fase de desenvolvimento capitalista no Brasil, que a partir de novas
estruturas disciplinares deixa evidente que “a mola do poder não é a imposição de uma
norma de conduta, mas a organização das possibilidades de escolha”163.

Trata-se de operar uma redução da escolha que transforma o movimento no


circuito limitado de um pêndulo que vai necessariamente de um pólo para o
outro. E, como todo pêndulo, o mover-se é apenas uma maneira de conservar o
mesmo centro. Ir de um pólo ao outro é apenas uma maneira mais complicada
de não andar. [a partir dessa perspectiva as] novas formas hegemônicas de vida
podem muito bem conviver, ao mesmo tempo, com a geografia mental da
liberalização e da restrição.164

Por falar em escolhas, no que se refere à própria concepção de democracia,


defendida como uma das bandeiras que justificavam tal reforma psiquiátrica, se torna
evidente que o caminho seguido por essa política de identidade foi o de abrir mão da
eliminação da desigualdade e luta por redistribuição econômica — tão explícita nos
casos em que o diagnóstico psiquiátrico foi utilizado na história da doença mental no
Brasil —, e assumir a bandeira do reconhecimento da diferença, da anulação da
degradação e desrespeito165, garantindo emprego para os especialistas envolvidos com a
saúde mental. Boaventura de Souza Santos acredita que a adoção dessa perspectiva
político-social tem uma relação direta com a herança política da ditadura que
vivenciamos e possibilitando o aprofundamento de processos iniciados a partir de 1930.

162
ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.11 et seq.
163
SAFATLE, Slavoj. Cinismo e falência da crítica. p.202.
164
Ibidem. Loc. cit.
165
Uma discussão interessante a esse respeito pode ser encontrada no debate entre Axel Honneth e Nancy
Fraser acerca das políticas de reconhecimento e redistribuição. Os dois teóricos concordam com o fato
de que existiu uma tendência mundial em se assumir as políticas de reconhecimento das diferenças em
detrimento das políticas de redistribuição igualitária. Cf. FRASER, Nancy & HONNETH, Axel.
Redistribution or Recognition?
91

A ditadura militar, além de consolidar novas estruturas sócio-econômicas de


poder, produziu um modelo de Estado que no início da década de oitenta se
encontrava já em profunda crise. Em meados da década, a transição
democrática avançou, pondo fim ao modelo de dominação política, mas não
confrontou as estruturas de poder econômico e social nem deu prioridade à
reforma do Estado. Foi nesse contexto que as elites conservadoras cavalgaram
com êxito a transição democrática, aproveitando e reforçando a crise do Estado
para entregar o país à nova ortodoxia neoliberal onde vieram as novas
oportunidades para reproduzir seu poder.166

A assunção dessa proposta conciliadora tornar-se-á mais evidente a partir de


1978, quando será fundado o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM,
que articulou as reivindicações trabalhistas, com o discurso humanitário. Esse
movimento fortaleceu-se nos anos seguintes e liderou os acontecimentos que fizeram
avançar até seu caráter fundamentalmente antimanicomial167. As discussões trazidas por
esse movimento estavam voltadas para a garantia de direitos dos pacientes, o
aperfeiçoamento e universalização dos instrumentos utilizados até então, ou seja, o
direito à saúde como questão político-social. Duas citações, um pouco extensas, de
Fernando Tenório168, parecem esclarecer de forma interessante dois problemas
instaurados, valendo a pena colocá-las aqui.

No plano da crítica, produziram-se importantes diagnósticos quanto ao seguinte


funcionamento do modelo de prestação de serviços vigente no país,
caracterizado pela solidária articulação entre a prevalência da internação asilar e
a privatização da assistência: as internações psiquiátricas públicas no Brasil não
são feitas exclusivamente nos hospitais públicos propriamente ditos (isto é, da
união, estados e municípios). A maioria delas é realizada em instituições
privadas, que são para isso remuneradas pelo setor público. É o chamado setor
conveniado ou contratado: hospitais privados que provêem a internação da
clientela pública, mediante remuneração do estado – antes via INPS, depois
Inamps, hoje pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Na maioria das vezes, as clínicas contratadas funcionam totalmente a expensas


do SUS, existindo como empresas privadas com fins lucrativos apenas para
receber clientela. Sua única fonte de receita é a internação psiquiátrica,
remunerada na forma de uma diária paga para cada dia de internação de cada
paciente. A receita será maior de acordo com três variáveis: quanto maior o
número de pacientes internados, quanto maior o tempo de internação e, por
último, quanto menor o gasto da clínica com a manutenção do paciente
internado (por exemplo, uma internação acompanhada apenas por uma consulta

166
SANTOS, Boaventura de Souza (org.) A Globalização e as Ciências Sociais. p.13.
167
Cf. AMARANTE, Paulo. Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate em Torno da Reforma
Psiquiátrica. p.492.
168
Cf. TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:
história e conceitos. p.33-34.
92

psiquiátrica espaçada, mais refeição e remédios, deixa como lucro uma parte
menor da diária do que uma internação acompanhada por psicólogo, atividades
corporais, lazer assistido etc.). (...) A proposta de Política de Saúde Mental da
Nova República, de 1985, mostrava que a crítica germinada nos dez ou 15 anos
anteriores não mudara a política de financiamento de internações: dos recursos
gastos pelo Inamps em serviços contratados junto às clínicas privadas, 81,96%
destinavam-se à área hospitalar, e 4% à assistência ambulatorial.

As experiências “bem sucedidas” realizadas pelo Programa de Saúde Mental de


Santos e pelo Centro de Atenção Professor Luiz da Rocha Cerqueira, em São Paulo, são
vistas como marcos inaugurais da última reforma psiquiátrica que vivenciaríamos até o
presente momento. No caso do Programa de Saúde Mental de Santos, que surge após a
intervenção motivada pelas denúncias (comprovadas) de mortes, superlotação,
abandono e maus-tratos, veremos que surgirão os Núcleos de Atenção Psicossocial –
NAPS, e que será uma das muitas experiências documentadas e discutidas em
dissertações de mestrado e doutorado a partir de 1988169. Nessa proposta o serviço de
atendimento é feito, em geral, durante o dia e à noite o indivíduo volta para casa, o que
torna muito menos custoso sua manutenção. Esse atendimento possibilita que o paciente
compareça todos os dias da semana se necessário e tenha um acompanhamento
multiprofissional. O pressuposto é o de que a alienação, a loucura, a doença mental,
como modo de ser, implica numa dificuldade específica de expressão subjetiva. Sendo
que as dificuldades concretas da vida, acarretadas pela doença mental, devem ser objeto
das ações de cuidado, incorporando-se aquilo que Mário Yahn, em 1955, já descrevia
como extra-clínico. Os CAPS também ampliavam a oferta de novos empregos para os
diferentes técnicos, uma vez que, como nos lembra Tenório170, para essa nova
reorganização dos serviços substitutivos é necessária “uma ampliação tanto da
intensidade dos cuidados (todos os dias, o dia inteiro) quanto de sua diversidade
(atividades e pessoas diversas etc.)”.

169
A experiência de Santos foi retratada na dissertação de mestrado defendida em 1994 no Instituto de
Medicina Social da UERJ por Erotildes Leal sob o título: A noção de cidadania como eixo da prática
clínica: uma análise do programa de saúde mental de Santos. As críticas a essa mesma instituição,
principalmente no que se refere à contradição existente entre o discurso militante (em favor da
autonomia do louco) e o discurso técnico-psicológico (que contribui com a heteronomia e dependência
do doente mental à instituição), reforçando a idéia da existência nesses serviços de uma racionalidade
cínica onde saber e não saber convivem sem problema, podem ser encontradas na dissertação de
mestrado defendida no Instituto de Psicologia da USP por Myrna Yamazato Koda, em 2002, intitulada:
Da negação do manicômio à construção de um modelo substitutivo em saúde mental: o discurso
de usuários e trabalhadores de um Núcleo de Atenção Psicossocial.
170
TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:
história e conceitos. p.40.
93

Com a difusão do “sucesso” cada vez maior desse novo modelo as condições
para a concretização do movimento pela “nova” Reforma Psiquiátrica tornam-se
possíveis. Dois eventos ocorridos em 1987, inclusive, serão o marco dessa
consolidação, são eles: a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Encontro
Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental. Esse último é planejado durante a I
Conferência, após a constatação de que a perspectiva sanitarista de incorporar as
propostas reformistas nas políticas do período vinha sofrendo a resistência da rede
hospitalar privada. Fernando Tenório afirma que a I Conferência representa o marco da
desinternação.

O encontro que a ela se segue institui um novo lema: “Por uma sociedade sem
Manicômios”. Estabelece um novo horizonte de ação: não apenas as
macroreformas, mas a preocupação com o “ato de saúde”, que envolve
profissional e cliente; não apenas as instituições psiquiátricas, mas a cultura, o
cotidiano, as mentalidades. E incorpora novos aliados: entre eles, os usuários e
familiares, que, seja na relação direta com os cuidadores, seja através de suas
organizações, passam a ser verdadeiros agentes críticos e impulsionadores do
processo.171

Sendo que um dos espaços onde será reforçado o reconhecimento da cidadania


do louco, doente mental, e cobrada a garantia de seu tratamento e medicalização na
comunidade, será o Movimento da Luta Antimanicomial. Para marcar a importância
desse movimento, inclusive, institui-se o dia 18 de maio como Dia Nacional da Luta
Antimanicomial. E finalmente, a estrutura de tratamento, negando suas origens, tem
como novo plano à invenção de novos dispositivos e tecnologias de cuidado,
substituindo a clínica fechada por instrumentos abertos, diversificados, de natureza
comunitária. Todo esse processo, por sua vez, será amparado por duas novas
proposições legislativas: o projeto de Lei no. 3.657, apresentado em 1989172 pelo

171
TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:
história e conceitos. p.35. Colocamos os grifos com o intuito de assinalar a concepção de agente
crítico, que aqui nos parece se referir àquele que concorda com o discurso psiquiátrico e assume a nova
política de reforma psiquiátrica. Vamos discutir com melhor profundidade essa questão ao longo deste
trabalho.
172
O projeto 3.657/89, de autoria do deputado Paulo Delgado, que viria a ser conhecido como a Lei da
Reforma Psiquiátrica, era simples, contendo apenas três artigos em seu conteúdo: o primeiro impedia a
construção ou contratação de novos hospitais psiquiátricos pelo poder público; o segundo previa
direcionamento de recursos para equipamentos “não-manicomiais”; e o terceiro obrigava a
comunicação das internações compulsórias à autoridade judiciária, que por sua vez, emitiria parecer
sobre a legalidade da internação. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas encontrou
dificuldade no Senado, que aprovou, no ano 2000, uma versão menos radical no que se refere a
substituição dos hospitais. Essa versão foi repudiada quando voltou para a Câmara dos Deputados, uma
94

deputado Paulo Delgado (que somente será aprovada em 2001 com ressalvas) e a Lei
no. 10.216 de 6 de abril de 2001173 (Lei da Reforma Psiquiátrica atual), esta última
contemplando a Declaração de Caracas de 14 de novembro de 1990174. A qual, segundo
Paulo Amarante, “tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de
propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria”175, em
outras palavras, a redução dos leitos psiquiátricos, dos manicômios e a garantia de ser
reconhecido publicamente como louco e tratado na comunidade.

3 – O “cinismo consensual” da saúde mental concretizado no abandono de uma


revolução psiquiátrica em detrimento da luta pelo direito de ser reconhecido
como cidadão doente mental: A reforma psiquiátrica como um problema para
a Psicologia Social Crítica

Com o que foi trazido até agora possível observar que nunca no Brasil se propôs
uma “revolução” ou “emancipação” psiquiátrica. Apenas é possível dizer que, ao longo
dos anos com as transformações teórico-políticas, somou-se à identidade pressuposta do
paciente doente mental, proposta pela instituição psiquiátrica, uma identidade
pressuposta do cidadão doente mental, pelos militantes da saúde mental, que culminou
no desenvolvimento da política de saúde mental brasileira, que vivenciamos atualmente,
a qual assume o discurso de que o produtor da desumanização do doente mental é o
manicômio e que a solução para essa desumanização está na ampliação, a partir de
dados demográficos, as instituições substitutivas, isto é, dos novos dispositivos de
controle que promoverão a inclusão do louco na sociedade. De forma concreta, como
bem assinala Fernando Tenório:

vez que chegava a autorizar explicitamente a construção de hospitais e contratação de novos leitos “nas
regiões onde não existia estrutura assistencial”, que suprimiu o artigo referente à construção e
contratação de leitos. Cf. DELGADO, Paulo. Projeto de Lei n.3657/89.
173
BRASIL. Lei no. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Duas
coisas nos chamam atenção nessa lei, a primeira está no item II do 2º. Parágrafo: no qual o indivíduo
portador de sofrimento mental deve receber o maior número possível de informações a respeito de sua
doença e seu tratamento (que não é clara nem para os profissionais, uma vez que a premissa da reforma
é criar formas alternativas) e a segunda está no item I do 6º Artigo: cuja internação voluntária é descrita
como aquela em que o indivíduo dá o consentimento (baseado no que lhe dizem ser sua doença).
174
A Declaração de Caracas avalia o hospital psiquiátrico como insuficiente e redireciona a organização
dos serviços, como serão expostos na Lei 10.216.
175
AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. p.91
95

O questionamento dos pressupostos do saber psiquiátrico é colocado não em


uma perspectiva externa à psiquiatria, mas no sentido de, internamente ao
campo, produzir um novo modo de fazer e conceber a doença mental, seu
tratamento e a cura. A clínica do CAPS, portanto, não dispensa a tradição, o
saber e os instrumentos da psiquiatria, mas subordina-os a uma nova apreensão
do que seja a problemática da doença mental e do que seja tratar.176

De qualquer modo, vale reforçar aqui que a Lei 10.216, aprovada em 2001,
tornou finalmente possível à execução do plano que, como vimos, já era visualizado em
1961, o que é possível observar no desenvolvimento que a “nova” reforma psiquiátrica
terá a partir do momento em que a nova lei começou a vigorar. No mesmo ano, por
exemplo, foi convocada a III Conferência Nacional de Saúde Mental177, que segundo o
relatório elaborado ao final do evento, as etapas municipal e estadual envolveram cerca
de 23.000 pessoas, e a etapa final contou com 1.480 delegados, entre representantes de
usuários, movimentos sociais, familiares e profissionais. Com o evento, o novo ciclo da
reforma psiquiátrica brasileira é fechado, profissionais, pesquisadores, usuários e
familiares, assumem esse modelo como o ideal a ser buscado. Em 2004, realiza-se o
primeiro Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, em São Paulo, que
segundo o Ministério da Saúde reuniu dois mil trabalhadores e usuários de CAPS178. No
âmbito jurídico, a Lei 10.216 também pode ser considerada um marco da retomada da
autonomia e hegemonia psiquiátrica, uma vez que a partir dessa lei esta instituição volta
novamente a ter leis e portarias específicas para sua organização e financiamento. Mais
tarde, inclusive, serão criadas linhas específicas de financiamento pelo Ministério da
Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao modelo manicomial, assim como serão
criadas novas normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos179. E,
finalmente, na esfera acadêmica, por sua vez, o crescimento das pesquisas que se
voltaram para o desenvolvimento de tecnologias para saúde mental,
desinstitucionalização, crítica aos hospitais psiquiátricos etc., seguiu o mesmo
movimento de expansão dos serviços substitutivos.

176
TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:
história e conceitos. p.39. [grifos nossos]
177
Cf.BRASIL. Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental.
178
IDEM. Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de
Caracas. p.08.
179
Isso foi um avanço do ponto de vista da organização e distribuição de recursos, pois até 1992, por
exemplo, o país tinha “208 CAPS, mas cerca de 93% dos recursos do Ministério da Saúde para a Saúde
Mental ainda [eram] destinados aos hospitais psiquiátricos.” BRASIL. Conferência Regional de
Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. p.07.
96

Com relação à esfera acadêmica, o impacto da Lei 10.216 pode ser verificado
pela quantidade de dissertações de mestrado e teses de doutoramento defendidas com
vistas na discussão acerca da saúde mental e reforma psiquiátrica a partir de sua
publicação. Em nosso levantamento das teses de doutorado, por exemplo, encontramos
182 trabalhos registrados no banco de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – CAPES180 entre os anos de 1988 até 2007. Esses trabalhos
são fruto de 45 programas de pós-graduação, os quais tiveram uma produção tímida de
1988 até 2000, com apenas 61 defesas. Contudo, 24 desses programas iniciaram
pesquisas após 2001, ano de aprovação da Lei 10.216, com uma produção muito maior
entre 2001 e 2007: 121 defesas. Os programas que mais produziram foram: a) os de
Enfermagem, sobretudo, da EEUSP (25) e USP – Ribeirão Preto (21); b) Psiquiatria,
Psicanálise e Ciências Médicas, como é o caso da UFRJ (18), UNIFESP (12) e
UNICAMP (10). Juntos, esses programas representam cerca de 42% da produção de
conhecimento. No que se refere à produção teórica da Psicologia, embora saibamos que
os psicólogos estiveram envolvidos em todo o processo que resultou na reforma
psiquiátrica e que têm participado ativamente das instituições substitutivas, no que diz

180
A pesquisa foi realizada a partir dos dados encontrados no banco de teses da CAPES:
http://servicos.capes.gov.br/capesdw/ entre os meses de setembro e novembro de 2008. A tabela com
programas de pós-graduação que produziram teses entre os anos de 1988 e 2007 tendo a saúde mental e
a reforma psiquiátrica como objeto de estudo, pode ser conferida no anexo. Essa busca obviamente
pode apresentar falhas, seja de ordem da ausência de inscrição de alguma tese no banco de dados, seja
pelas palavras chaves utilizadas nas teses e em nossa pesquisa (utilizamos como palavras chaves:
doença mental, saúde mental, psicopatologia, reforma psiquiátrica). Não foi nosso objetivo inicial
utilizar esse tipo de dado, todavia, achamos interessante utilizá-lo para apontar que a ampliação da
ideologia acerca da reforma psiquiátrica atual não fica restrita aos serviços substitutivos. Os programas
de pós-graduação encontrados foram: USP: Psicologia Escolar / USP: Enfermagem / UNICAMP:
Saúde Mental / USP: Medicina Preventiva / UFRJ: Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental / USP:
Psicologia Social / PUCSP: Psicologia clínica / UNIFESP: Psiquiatria e Psicologia Médica / USP:
Saúde Pública / UFRJ: Enfermagem / UNICAMP: Ciências Médicas / FIOCRUZ: Saúde Pública /
UFRJ: Serviço Social / UFBA: Saúde Coletiva / USP: Sociologia / UNICAMP: Saúde Coletiva / USP
Ribeirão Preto: Medicina / PUC Campinas: Psicologia / UFBA: Medicina / UFSC: Direito &
Enfermagem / PUC Rio de Janeiro: Psicologia Clínica & Letras / UFC: Enfermagem / UFRJ: Saúde
Coletiva / GAMA FILHO: Direito / IPUERJ: Sociologia / USP Ribeirão Preto: Enfermagem
Psiquiátrica / UERJ: Saúde Coletiva / UFES: Psicologia / USP Ribeirão Preto: Psicologia / USP:
Psiquiatria / UFRGS: Psicologia / UFMG: Economia / UFMG: Saúde Pública / Universidade de
Brasília: Estudos Comparados sobre as Américas & Psicologia Clínica e Saúde / PUCSP: Direito /
UERJ: Psicologia Social / PUCSP: Psicologia Social / UFRGS: Informática na Educação / UMESP:
Comunicação Social / USP: Psicologia Clínica / UFPE: Serviço Social. Outro importante apontamento
refere-se ao fato que sabemos da existência de uma produção muito significativa também em nível de
Mestrado, que inclusive pode apresentar contribuições da Psicologia Social maiores do que os dados do
Doutorado, todavia, por questões de tempo não nos debruçamos para levantar essas informações.
97

respeito à contribuição teórica na saúde mental em nível de doutorado, todas as


produções dessa área representam apenas 10,5%181.
Tudo isso poderia fazer-nos acreditar que a reforma psiquiátrica tem se
desenvolvido com sucesso, haja vista a distribuição cada vez mais bem sucedida de
recursos e serviços substitutivos para a reforma psiquiátrica182. Entretanto, como
mostram as pesquisas acerca dos problemas com os manicômios do início do século XX
no Brasil e dos CAPS, CAPSad e serviços substitutivos atuais183, as formas de
intervenção no projeto proposto pela instituição psiquiátrica continuam produzindo a
estigmatização e a medicalização dos indivíduos, o que nos faz intuir que a reforma
psiquiátrica tem se dado apenas em nível instrumental, burocrático. A luta pela pretensa
liberdade do louco parece ter se desenvolvido em seu contrário, em novas formas de

181
A Psicologia Clínica da PUCSP (7) e USP (1); Psicologia Social USP (2) e PUCSP (3) e UERJ (1);
Psicologia UFES (3), USP Ribeirão Preto (1) e UFRGS (1).
182
Os gastos com os serviços substitutivos têm chegado a ultrapassar os destinados para os hospitais
psiquiátricos. Em 1997, por exemplo, eram gastos 97,14% dos recursos com os hospitais psiquiátricos e
6,86% com os serviços extra-hospitalares. Em 2006, foram gastos 48,67% dos recursos com os
hospitais psiquiátricos e 51,33% com os serviços extra-hospitalares. O número de CAPS cresceu entre
2003 e 2006, de 500 para 1011, aumentando em mais de 100% em apenas 3 anos. Enquanto isso, no
mesmo período, o número de leitos em Hospitais Psiquiátricos diminuiu mais 22%, caindo de 48 mil
para 39 mil, ou seja, em termos absolutos, entre os anos de 2003 e 2006, foram reduzidos 11.826 leitos
no Brasil e foram instalados 500 CAPS. Ao mesmo tempo foram instalados, no período de 2002 a
2007, 2,4 mil leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais em todo o país. Cf. BRASIL. Saúde Mental no
SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção. Relatório de Gestão 2003-2006 &
ACAYABA, C & PICHONELLI, M. Redução de leitos psiquiátricos é lenta.
183
Citando apenas alguns dos trabalhos encontrados que fizeram críticas ao funcionamento dos
equipamentos substitutivos da reforma atual encontramos, por exemplo: KODA, Myrna Yamazato. Da
negação do manicômio à construção de um modelo substitutivo em saúde mental: o discurso de
usuários e trabalhadores de um Núcleo de Atenção Psicossocial. Nessa dissertação de mestrado a
autora estuda o discurso de profissionais e usuários de um serviço de saúde mental de Santos – SP,
referência para a reforma psiquiátrica, e encontra um confronto entre o discurso político e o discurso
clínico, entre a posição militante e a posição técnica. Koda descreve o olhar clínico como um possível
dispositivo de institucionalização do indivíduo, na medida em que reduz o mesmo à condição de
doente. QUEIROZ, Isabela Saraiva de. Adoção de ações de redução de danos direcionados aos
usuários de drogas: concepções e valores de equipes do programa de saúde da família. Esta autora,
por sua vez, estudou as concepções e valores das equipes do Programa de Saúde da Família – PSF de
Belo Horizonte frente à adoção das ações de Redução de Danos direcionadas aos usuários de drogas,
mostra como existe uma tendência à aceitação da proposta pelas equipes do PSF (por ser uma
imposição superior), ao mesmo tempo em que aponta o fato do desconhecimento dos fundamentos
ideológicos da Redução de Danos e a coexistência de valores tradicionais fundamentados em conceitos
morais e religiosos, o que acaba descaracterizando a proposta. “Viu-se, por exemplo, que a maioria
expressiva dos entrevistados acredita que qualquer uso de drogas leva à dependência e/ou traz
problemas aos usuários, opinião representativa das abordagens que visam a abstinência, próprias dos
modelos moral e médico de doença.” (p.135); Estes dois exemplos mostram que a relação dos
profissionais de saúde mental, sobretudo os psicólogos, ainda não superaram os problemas encontrados
por NADER, Rosa Maria. Psicologia e transformação: caminhos para a prática psi. Dentre eles, o
de que ao graduarem-se psicólogos, os profissionais “dominam um conjunto mínimo de técnicas para a
abordagem da dimensão psi dos indivíduos, seja para compreendê-la, seja para enfrentar situações junto
com eles. Falta-lhes, no entanto, instrumentos teóricos mínimos para fazer uma leitura das dimensões
psicológica do social (como a natural, a física, a econômica, a política, a ética etc.). p.84.
98

dominação. Mesmo com a implementação de Leis e Decretos, a prática dos


profissionais da chamada saúde mental não tem sido a de fortalecimento da auto-
determinação individual como tem sido apregoado pelo movimento de Luta
antimanicomial, pelo contrário, eles têm continuado a tradição de administração de
indivíduos, coletividades e grupos184.
Se considerarmos os elementos históricos trazidos até agora não parece incorreto
afirmar que a persistência da hegemonia psiquiátrica tem relação com a adoção de uma
racionalidade instrumental que passa a ser utilizada como um instrumento útil para os
profissionais da saúde mental, que acreditam possuir, sob forma de monopólio, o único
conhecimento verdadeiro e legítimo sobre a questão da saúde e da doença, além de
acreditarem estar investidos de uma autoridade científico-social que os coloca como
militantes especialistas capazes de prescrever as melhores formas de inclusão daqueles
que eles mesmos carimbam com o diagnóstico excludente. Não estamos dizendo aqui
que não ocorreram mudanças qualitativas, pelo contrário, a reforma psiquiátrica atual é
mais humanizadora que a lógica manicomial. Desse modo, pode-se dizer que com essa
reforma psiquiátrica produz-se certamente uma práxis, todavia, uma práxis reiterativa,
que é ela mesma uma práxis de segunda mão, como defende Adolfo S. Vasquez185.
Reiterativa porque não produz uma mudança qualitativa na realidade presente, “não
transforma criadoramente, ainda que contribua para ampliar a área do já criado e,
portanto, multiplicar quantitativamente uma mudança qualitativa produzida. Não cria;
não faz emergir uma nova realidade humana”186.
Ainda baseados nos elementos históricos podemos inferir, inclusive, que
atualmente o discurso que descreve a identidade pressuposta do doente mental continua
sendo monopolizado pela instituição psiquiátrica, cujo projeto encontra-se muito bem
estruturado e alinhado às necessidades de administração capitalista. Parece que abrir
mão da leitura psiquiátrica acerca do normal e patológico é interpretado como um adeus
à ciência, o que concretamente não é verdade. De todo modo, lembremos que
Horkheimer e Adorno187, assinalavam que para a substituição do curandeiro e do clero
pelo discurso científico exigiu-se uma superação da lógica medieval frente à loucura —
que mantinha a figura da possessão a partir da colonização do imaginário coletivo e
184
Cf. KODA, Myrna Yamazato. Da negação do manicômio à construção de um modelo substitutivo
em saúde mental: o discurso de usuários e trabalhadores de um Núcleo de Atenção Psicossocial.
185
VASQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Práxis. p.258.
186
Ibidem. p.258.
187
Cf. HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento. p.25.
99

legitimava que as mulheres “diagnosticadas” como bruxas fossem caçadas pelos


inquisidores, seus ajudantes e jogadas à fogueira188— o que nos faz pensar que seria
necessário uma descolonização do imaginário coletivo frente aos sentidos que o
discurso dominante da doença mental tem na atualidade. Por enquanto apenas
conseguimos substituir o Malleus Maleficarum189 pelos CID10 e DSM IV. Aqui aparece
de forma explícita nosso ponto de descontentamento com a proposta da Reforma
Psiquiátrica e a postura dos “especialistas” da saúde mental que não assumem de fato
uma postura crítica frente ao seu objeto.
Essa falta de compromisso teórico-crítico nos parece evidente quando
observamos que profissionais, sobretudo os Psicólogos, que tiveram uma participação
efetiva na construção dos movimentos contra as formas desumanas proporcionadas pelo
discurso psiquiátrico, ainda permanecem presos entre a negação e o consentimento com
esse discurso, não considerando que a personagem doente mental passou por
metamorfoses conceituais, mas nunca deixou de ser encarada como uma identidade
pressuposta, uma totalidade, essência ou personalidade do indivíduo que mantém uma
conduta não-convencional. Claro que não é novidade que os especialistas têm fechado
os olhos em momentos oportunos — diagnóstico, faturamento dos serviços e
medicalização — para o fato de que cada vez que os psiquiatras, laboratórios e/ou
centros de pesquisa criam uma nova regra de saúde mental, “criam uma nova classe de
indivíduos mentalmente doentes – assim como, cada vez que os legisladores promulgam
uma nova lei restritiva, criam uma nova categoria de delinqüentes.”190 E que o mesmo
ocorre da parte dos diagnosticados, que quando cumprem as prescrições dadas pelos
técnicos da saúde mental, o fazem porque não querem ser penalizados pelo não
cumprimento, ou porque consideram justas, ou acreditam que devem respeito às
autoridades que tanto dizem que os defendem, ou porque entendem que se não se
submeterem a lógica dominante serão assombrados pelo fantasma do manicômio,
demônio persistente que aparece como única alternativa (em retrocesso) para o modelo
de reforma atual. Além do fato que, uma vez que atualmente a doença mental é uma
forma de existência que possibilita reconhecimento e, principalmente, acesso à renda,

188
Cf. SZASZ, Thomas. A fabricação da Loucura.
189
KRAMER, Henrich & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. “O Martelo das Feiticeiras”.
Escrito em 1484, este texto serviu de instrumentalização, intervenção e solidificação da doutrina
demonológica, principalmente no que tange à identificação dos casos de possessão diabólica, comércio
com o demônio, tornando-se a principal referência dos inquisidores e eclesiásticos em geral.
190
SZASZ, Thomas. A fabricação da Loucura. p.27
100

nega-se também uma pactuação perversa entre a instituição substitutiva e o usuário do


serviço.
Pesquisas atuais como a de Fuad Kirillos Neto, realizada em São Paulo, que
assinala os efeitos da circulação do discurso psiquiátrico em serviços substitutivos de
saúde mental, nos mostra, no exemplo do fenômeno de adesão a práticas
psicofarmacológicas, que tudo se passa como se ao aceitar a narrativa da inclusão
oferecida pelo discurso da saúde mental, “ao conformar seus paradoxos aos próprios
paradoxos da formação delirante, o usuário aceitasse também e, agora, mais docilmente,
o consumo de substâncias ‘antipsicóticas’”191, encaradas agora como um direito e uma
demanda e não mais algo a ser resistido. Em outra pesquisa, realizada no início de 1970
por Szasz já que era assinalada uma certa “atuação” da personagem do doente mental,
possibilitada pelo fato dessa concepção de doença mental ser estabelecida entre um
discurso de autoridade, ampla propaganda e a credulidade popular, a ponto de ocorrer
muitas vezes uma exacerbação das descrições sintomáticas, como “preço que precisam
pagar para conseguir os serviços de um especialista cujos clientes são socialmente
definidos dessa forma”192.
Isso aponta, inclusive, uma das múltiplas dificuldades de superação da
hegemonia psiquiátrica, pois se por um lado concordamos com Szasz e Sarbin com o
fato de que as doenças mentais concretamente não existem, que são mitos ou metáforas
que servem como instrumento de administração de uma realidade normatizadora, por
outro lado não podemos deixar de considerar a influência dos aparelhos ideológicos do
Estado (escola, família, exército, “sistema de saúde”) trazidos por Louis Althusser193,
que produzem um discurso capaz de direcionar as formas de vida para a reprodução da
submissão à ideologia dominante. Em outras palavras, sob forte publicização das
doenças mentais ao longo de nossa colonização, não é incorreto afirmar que após a
colonização do imaginário e representação do indivíduo ideal, essas doenças mentais
estão no mundo da vida, existindo como forma de organização social. Numa outra face
do mesmo problema, a partir do itinerário histórico percorrido vemos que o Estado
aparece e permanece como agente de facilitação do capitalismo tardio, cujas estratégias
transformaram-se ao longo dos tempos, indo das técnicas violentas de contenção para a

191
KYRILLOS NETO, Fuad. Efeitos de circulação do discurso em serviços substitutivos de Saúde
Mental: Uma perspectiva psicanalítica. p.165.
192
SZASZ, Thomas. A fabricação da Loucura. p.22.
193
Cf. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. p.253-294.
101

neutralização das possibilidades de organização social dos indivíduos, que explicitariam


que o problema não pode ser reduzido à humanização no tratamento do doente mental.
Essas estratégias de contenção e neutralização, aperfeiçoadas desde meados de 1950,
por sua vez, desembocam num funcionamento sintomático em tempos de um
capitalismo cuja busca de legitimação tenta, ao mesmo tempo, regular as formas de
interação social e o desenvolvimento da auto-regulação, de um lado, e estimular o
consumo e satisfação irrestrita, de outro.
Ficou evidenciado também que partir da política de oferta de novos serviços
substitutivos, baseados na expansão a partir de dados demográficos e não
necessariamente das demandas locais194, o Estado tem atraído cada vez mais
simpatizantes, principalmente profissionais das áreas “psi”, que enxergam nos espaços
substitutivos possibilidades de atuação profissional garantidas por portarias de
regulamentação do Ministério da Saúde. Sob o deslocamento da raiz do problema da
reforma, o Estado tem promovido diversos cursos de capacitação dos profissionais,
fóruns, congressos, material bibliográfico, áudio-visual e virtual, que socializa o
discurso médico e populariza de forma problemática a saúde mental, como explica
Sérgio Aragaki:

Essa popularização da área, longe de permitir melhor condição de acordos entre


profissionais de saúde e seus pacientes, em busca de melhores possibilidades de
conviver, reafirmam àqueles que dessa área se utilizam, os seus lugares de
poder e de controle social. Todos os comportamentos e sentimentos humanos
podem ser em algum momento sinais de algo que não está bem, que há um
processo patológico já instalado ou se instalando. Tudo pode ser alvo de
tratamento. E tratamento inclui de forma essencial a medicalização.195

O Estado também tem recebido apoio e apoiado sem reservas os movimentos de


luta Antimanicomial, seja porque muito dos representantes do governo são antigos

194
A expansão dos equipamentos substitutivos segue a lógica dos estudos epidemiológicos utilizados nas
doenças orgânicas. A portaria GM no.336, de 19 de fevereiro de 2002, define as modalidades a serem
implantadas da seguinte maneira: CAPS I, para municípios entre 20.000 e 70.000 habitantes; CAPS II
para população entre 70.000 e 200.000 habitantes; CAPS III para municípios com população acima de
200.000; CAPSi (infantil) para municípios com população de cerca de 200.000, ou outro parâmetro
populacional a ser definido pelo gestor local; CAPSad II (álcool e outras drogas) para municípios com
população superior a 70.000. Para garantir o interesse dos gestores na implementação dessa portaria,
criou-se outra a GM n.º1.455, de 31 de julho de 2003, que define o incentivo financeiro da ordem de R$
20.000,00 para cada CAPS I, R$ 30.000,00 para cada CAPS II, R$ 50.000,00 para cada CAPS III e R$
30.000,00 para cada CAPSi habilitados pelo Ministério da Saúde.
195
ARAGAKI, Sérgio Seiji. O aprisionamento de Selves em diagnósticos na área de Saúde Mental.
p.36.
102

militantes, seja porque o apoio às suas políticas representa (pelo menos


hipoteticamente) uma melhoria nos aparelhos públicos de cuidado, garantia de
medicamentos, previdência e aumento de empregos para os técnicos. Embora, de forma
concreta vejamos o doente mental sendo reconhecido apenas como produto,
contribuinte ativo e consumidor de produtos (principalmente medicamentos)196 e
serviços, representando uma cidadania fraca que o torna usuário (dependente) do
serviço de saúde mental, para somente depois promover sua reabilitação e inclusão na
comunidade197, ou como Habermas compreende, para somente depois incorporar, a
partir do controle de comportamento, esses indivíduos no mercado198. A própria
substituição da palavra “doença mental” por “portador de transtorno mental” mascara o
fato de que longe de um reconhecimento do indivíduo como ser complexo — que
expressa as contradições e problemas advindos da colonização cada vez maior do
mundo da vida — o reconhecimento ainda se dá a partir da compreensão de que existe
um sofrimento que necessita ser tratado e medicalizado pelo especialista. Fica claro que
se critica em conjunto o manicômio, em tese produtor da desumanização, e não se
atenta para o fato de que o próprio discurso acerca do normal e do patológico — mesmo
quando esteticamente expressado como possibilidade humana — reforça uma política
de identidade199 que limita as possibilidades de expressão humana à personagens
fetichizadas200 que, por sua vez, fazem com que a identidade humana, que é

196
Basta observar o consumo absurdo de medicamentos controlados no país, oferecidos como se fossem
aspirinas para dor de cabeça. Cf. PASSOS, Ana Cláudia de Brito. Utilização de Psicofármacos entre
os usuários da Atenção Primária do município de Maracanaú, Ceará. Nessa pesquisa, realizada por
Ana Cláudia Passos, ficou evidenciado que a média de consumo de medicamentos dos usuários do
CAPS desse município era de 1,5 por pessoa. A maioria das pessoas (78,3%) utilizavam de forma
contínua os medicamentos e a maioria sequer havia sido informada dos riscos de utilizá-los por tempo
prolongado (73,3%). Dentre os tipos de medicamentos utilizados 36,5% faziam uso de ansiolíticos e
31,5% antidepressivos. Quanto à aquisição desses medicamentos, 41,6% foram adquiridos na farmácia
do CAPS e 24,3% compraram. Os principais motivos que geraram o consumo dos psicofármacos
foram: “nervosismo”, “insônia” e “depressão”.
197
A Lei n.º 10.708 é um curioso exemplo que mostra como o Estado se desresponsabiliza da
cronificação dos indivíduos que ficaram longos anos internados nos asilos invertendo a necessidade de
indenização por dano e oferecendo uma ajuda de custo como “benefício social”. Cf. BRASIL. Lei no.
10.708, de 31 de julho de 2003. Institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes
acometidos de transtornos mentais egressos de internações; BRASIL. Manual do Programa De
Volta para Casa. & BRASIL. Saúde Mental e Economia Solidária: Inclusão Social pelo Trabalho.
198
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. p.230 et seq.
199
As questões teóricas referentes à identidade serão tratadas com maior profundidade no próximo
capítulo. O conceito de política de identidade pode ser encontrado em: CIAMPA, Antonio da Costa.
Políticas de Identidade e Identidades Políticas. & LIMA, Aluísio Ferreira de. Para uma
reconstrução dos conceitos de massa e identidade.
200
Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de
Psicologia Social. p.164 et seq.
103

metamorfose, se reduza à reprodução do papel de doente em recuperação201. Aqui um


questionamento de Žižek nos parece bastante válido:

E se o problema não for a condição frágil dos excluídos, mas, pelo contrário, o
fato de, no nível mais elementar, sermos todos “excluídos” no sentido de nossa
posição “zero” elementar ser a de um objeto de biopolítica, e de alguns
possíveis direitos políticos e de cidadania nos serem dados como um gesto
secundário, de acordo com considerações biopolíticas estratégicas?202

E se a negação da persistência do discurso psiquiátrico no discurso da saúde


mental refletir na verdade numa tentativa de riscar da memória coletiva sua culpa pela
construção do inimigo comum: o manicômio? Se for, podemos defender aqui que essa
tentativa tem sido fracassada, porque o passado que se quer esquecer permanece muito
vivo, o que torna atual a proposição de Adorno, a qual onde o “gesto de tudo esquecer e
perdoar, privativo de quem sofreu injustiça acaba vindo dos partidários daqueles que
praticaram a injustiça”203. Como concretizar uma política antimanicomial se a
concepção de loucura desenvolvida pela instituição psiquiátrica e mantida pelos
técnicos da saúde mental ainda persiste na sociedade e esvaiu-se para além dos muros
do próprio manicômio, tal como escreve Habermas204, e serve de instrumento de
administração social? Vale, inclusive, trazer o questionamento de Kyrillos Neto205:
“como libertar o outro se ele é objeto de um saber de liberdade? Como fazê-lo
reconhecer-se em um saber do qual ele não é, em primeira instância, produtor, mas
reprodutor?” Em outras palavras, como promover um discurso de liberdade quando a
única coisa que a negação do discurso psiquiátrico consegue é sustentar um cinismo que
produz uma opacidade capaz de dificultar que vislumbremos o fato de que o projeto da
instituição psiquiátrica, que construiu a identidade pressuposta do doente mental, desde
sua implementação, nunca foi enfraquecido ou deflacionado?

201
Esse conceito será aprofundado no decorrer da tese, entretanto, já aparece em nossa dissertação de
mestrado: Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de
identidade: possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro.
202
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-Vindo ao deserto do Real! p.115. [grifos do autor]
203
ADORNO, Theodor W. O que significa elaborar o passado. p.29.
204
HABERMAS, Jürgen. O discurso Filosófico da Modernidade. “A libertação do louco, por razões
humanitárias, da situação de abandono a que está sujeito nos locais de internação; a criação de clínicas,
higiênicas com finalidades médicas; o tratamento psiquiátrico dos doentes mentais e o direito que
conseguiram em matéria de compreensão psicológica e cuidado terapêutico torna-se possível pelo
regime institucional que converte o paciente em vigilância contínua, de manipulação, isolamento,
regulamentação e, sobretudo, de pesquisa médica." p.345.
205
KYRILLOS NETO, Fuad. Efeitos de circulação do discurso em serviços substitutivos de Saúde
Mental: Uma perspectiva psicanalítica. p.163.
104

Antes que venham as críticas a esse questionamento, lembremos que projeto é


diferente de plano. Nesse itinerário histórico ficou explícito que o que se
metamorfoseou ao longo dos anos foram os planos frente ao tratamento destinado aos
doentes mentais. Plano é entendido aqui como o momento técnico de uma atividade,
quando se determina a forma de trabalho mais eficiente. Sendo que é a partir do plano
bem delimitado que é possível desenvolver programas. Cornelius Castoriadis206
conceitua programa como “concretização provisória dos objetivos do projeto quanto aos
pontos considerados essenciais nas circunstâncias dadas, na medida em que sua
realização provocaria ou facilitaria, por sua própria dinâmica a realização do conjunto”.
Desse modo, o plano é apenas um momento fragmentário e provisório do projeto. Como
podemos perceber, no que se refere à instituição psiquiátrica, os planos foram criados e
abandonados, os programas passaram, mas o projeto permaneceu. Não ocorreu
nenhuma interrupção na reprodução de um conhecimento a favor da dominação, em que
até mesmo o discurso de multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, tão
belissimamente produzidos, somente se efetivam ou se alinham com a concepção
psiquiátrica — lembremos que a Lei 10.216 foi aprovada com o que interessava ao
Estado e aos donos dos manicômios privados, não aos indivíduos. O que é novo na nova
reforma psiquiátrica são as estratégias de governabilidade, uma vez que o interesse
agora se transfere do indivíduo problemático e se dirige a grupos inteiros, sem que se
possa atribuí-las a instituições ou seres humanos localizados, “fragmentando-se a
possibilidade de resistência e luta contra ele (instituição psiquiátrica), dado o caráter
transitório e fugidio dos relacionamentos e das estruturas que agora lhe são
peculiares”207.
Frente a esse “diagnóstico”, realizado a partir dos escombros acumulados ao
longo da história, que nos mostraram a persistência do discurso psiquiátrico no discurso
da saúde mental e a relação estabelecida com a Psicologia, um questionamento nos
parece inevitável: se enquanto Psicólogos Sociais assumimos como práxis a
explicitação das condições de opressão, impedimento da emancipação e promoção da
autonomia, não estaríamos correndo o perigo de reproduzir a lógica da negação e
consentimento frente ao projeto da instituição psiquiátrica quando não pensamos em
206
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição imaginária da sociedade. p.97. Castoriadis também alerta
para o fato de que pode “ocorrer decadência e degeneração do programa; o programa pode ser tomado
como absoluto, a atividade e os homens podem ser alienados no programa.” Op. cit.. p.98.
207
ARAGAKI, Sérgio Seiji. O aprisionamento de Selves em diagnósticos na área de Saúde Mental.
p.40.
105

uma outra leitura alternativa à alternativa encontrada atualmente para lidar com as
doenças mentais, quando focamos apenas no efeito asilo, quando nos centramos
unicamente nas práticas mais humanizadoras de inclusão, ignorando estar em um
sistema que produz a própria exclusão instituída?
Acreditamos que sim! E o pior equívoco seria continuar sustentando uma
racionalidade cínica frente a essa situação, como, por exemplo, atacar o manicômio e
não direcionar nossa atenção para as novas formas de dominação, para os novos
dispositivos de controle, que em última análise nos leva a considerar que talvez o
próprio doente mental não seja mais o doente mental presente no discurso psiquiátrico
— não podemos ignorar o fato de que atualmente, devido a própria colonização do
imaginário frente às concepção de normal e patológico os indivíduos possam estar
utilizando da doença mental como modelo de construção para suas identidades —, uma
vez é evidente que este nunca foi apenas um sujeito passivo no processo de construção
do discurso psiquiátrico. Afinal, lembremos que essa é uma tese de Psicologia Social
que segue a tradição iniciada no Brasil a partir dos primeiros escritos de Silvia Lane208
frente à crise das Ciências Humanas na década de 60 do século passado (e que pela
análise de teóricos como Boaventura de Souza Santos ainda persiste209) e que nessa
tradição a Psicologia Social debruça-se sobre a realidade brasileira e atravessa a Teoria
Crítica210 buscando elementos que possibilitem a produção de conhecimento voltado
para a emancipação humana. Esse empreendimento, por sua vez, indica assumir
radicalmente a superação da separação entre o indivíduo e a sociedade, insistindo na
permanência em um ponto de tensão entre a Psicologia211, a Sociologia e a Filosofia.

208
Silvia Lane é autora e organizadora dos dois primeiros livros que inauguram essa chamada Psicologia
Social Crítica, são eles: LANE, Sílvia T. Maurer. O que é Psicologia Social. (1981) e LANE, Sílvia T.
Maurer & CODO, Wanderley. Psicologia Social: O homem em movimento. (1984)
209
Boaventura Santos defende a tese de que hoje vivemos a persistência de um problema complicado,
“uma discrepância entre teoria e prática social que é nociva para a teoria e também para a prática. Para
uma teoria cega, a prática social é invisível; para uma prática cega, a teoria social é irrelevante.” Cf.
SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social.
p.20.
210
Adotaremos para fins de diferenciação a utilização de Teoria Crítica (maiúscula) quando nos
referirmos aos autores filiados de alguma forma com a tradição frankfurtiana e teoria crítica
(minúscula) para as teorias que julgamos de vertente crítica da atualidade.
211
Desde sua criação a Psicologia tem realizado o papel de ciência da normatização; todavia, revestida do
discurso científico e, recentemente, da saúde, tenta manter-se como ciência neutra, desvinculada dos
problemas que ela mesma provoca.
106

Acreditamos que a Psicologia Social Crítica assim definida pode assumir-se


como Ciência Social212 e como tal se inserir nas críticas inerentes a esse campo de
conhecimento e nos desafios atuais. Atualidade em que, como apontamos no início do
capítulo, o sentimento de que nossa existência é marcada por uma terrível sensação de
sobrevivência, de sobreviver a um momento histórico de fronteira, em que o horizonte
histórico e utópico, articulação promotora de força revolucionária, parece ter se
desvanecido213, dando lugar a uma modernidade fluida, líquida214, refletindo como um
espelho a famosa frase de Karl Marx de que “tudo que é sólido desmancha no ar”, é o
imperativo dominante. E que até mesmo a “participação social” é materializada como
falsa participação em um sistema que está atento em cooptar os movimentos de
resistência, tal como Slavoj Žižek215 assinala na metáfora do elevador onde o botão de
fechamento das portas serve apenas como placebo para simular a participação dos
indivíduos na rapidez com que a viagem do elevador funciona, ou ainda, a participação
ensinada, sem individualidade e intimidade, apontada por Bader Sawaia216, impõe a
necessidade de se passar para além das narrativas de subjetividades originárias e
focalizar os momentos ou processos em que são produzidos os elementos de dominação
e as emergências de fragmentos de emancipação.
As considerações de Benedict Anderson217, que nos mostram como cada vez
mais as culturas “locais”, “nacionais”, “transnacionais” estão sendo produzidas,
“imaginadas”, a partir do reconhecimento perverso das minorias destituídas, nos força a
perceber que o próprio presente não pode mais ser visto simplesmente como uma
ruptura ou continuidade do passado, mas sim que deve ser analisado, pelo seu
sincretismo, desigualdade e repetições, considerando que o capital ocupa o elemento
central, que é o universal dominante. Estamos convencidos de que a Psicologia Social
de vertente crítica deve ser capaz de identificar a distorção das formas de entendimento,
em uma sociedade capitalista cuja hegemônica “racionalidade instrumental sistêmica”

212
Um artigo interessante discutindo a Psicologia como ciência Social foi escrito por Nikolas Rose,
professor da University of London, e publicado no volume 20 (2) da Revista da ABRAPSO: Psicologia
& Sociedade. Nele o autor trabalha com a tese de que desde sua separação enquanto ciência
independente a Psicologia Social esteve ligada às Ciências Sociais e não às Ciências da Saúde, que
estariam submetidas ao paradigma médico, o que não quer dizer que ela não possa analisar e ajudar o
desenvolvimento dessa última.
213
Cf. HABERMAS, Jürgen. A crise do Estado de bem-estar e o esgotamento das energias utópicas.
214
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida.
215
Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Os Direitos Humanos e o Nosso Descontentamento.
216
Cf. SAWAIA, Bader Burihan. Participação Social e Subjetividade.
217
Cf. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas.
107

— já identificada na Dialética do Esclarecimento218 como a racionalidade única


dominante e analisada por Jürgen Habermas219 como um tipo de racionalidade cuja
crítica deve lhe impor freios — tenta a todo custo colonizar o mundo da vida e impedir
as formas de solidariedade, tão perigosas para a manutenção da realidade instaurada.
Nesse ponto, inclusive, entendemos que a análise dos processos de construção da
identidade (pessoal e coletiva) torna-se imprescindível para a Psicologia Social Crítica,
uma vez que pode evidenciar como as formas de construção das identidades têm se
relacionado com as lutas por reconhecimento que imperam em nossa sociedade220. Aqui
também se torna evidente como pensamos em contribuir com essa Psicologia Social,
uma vez que, como já foi dito anteriormente, o foco principal dessa tese será explicitar,
a partir da teoria de identidade proposta por Antonio da Costa Ciampa, expressada no
sintagma identidade-metamorfose-emancipação, como ocorre a construção da
personagem doente mental, a partir do reconhecimento de diferentes atores sociais e a
relação que essa personagem estabelece com o discurso da saúde mental apoiado pela
reforma psiquiátrica atual. Dito de outra forma, e já preparando o leitor para o que virá a
seguir, a partir da interpretação de que as proposições desenvolvidas por Ciampa fazem
parte do núcleo de uma teoria de identidade capaz de explicitar como o
desenvolvimento da identidade sofre fortes investidas dos discursos técnico-
psicológicos221, mostraremos como determinados indivíduos têm se relacionado com o
discurso da saúde mental, o que explicitará que não podemos mais sustentar
cinicamente que ao utilizar o diagnóstico de doença mental a partir de uma lógica
antimanicomial estamos possibilitando com que esses indivíduos possam se emancipar,
ou dizendo em uma linguagem habermasiana, que ao nos associarmos à política de
identidade antimanicomial estamos colaborando com a descolonização da lógica
sistêmica de sobre o mundo da vida. Sendo assim, prossigamos apresentando como de
fato pensamos que a teoria de Ciampa tem se configurado como uma possibilidade
alternativa para pensar a questão da doença mental.

218
Cf. HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento.
219
Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa: crítica de la razón funcionalista;
Idem. Teoria de la Acción Comunicativa: racionalidad de la acción y racionalización social.
220
Cf. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos socais.
221
Por discursos técnico-psicológicos incluímos aqui o discurso psicanalítico, psicológico e psiquiátrico
acerca do ideal de normal e patológico —, que por sua vez, tendem a reduzir a complexidade da
identidade à personagens fetichizadas, sustentadas por um reconhecimento perverso.
SEGUNDA PARTE

ITINERÁRIO TEÓRICO
II. PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA E IDENTIDADE: AS CONTRIBUIÇÕES
DA TEORIA CRÍTICA NOS ESTUDOS DE ANTONIO DA COSTA
CIAMPA E A POSSIBILIDADE DE PENSAR A DOENÇA MENTAL
COMO UM PROBLEMA DE IDENTIDADE

Se é verdade que uma identidade concretiza uma política,


dá corpo a uma ideologia, fica claro sob que condições
vivemos quando percebemos que na nossa sociedade o
devir homem sujeito é praticamente impossível (ao menos
universalmente).
A metamorfose, ainda quando impedida, ainda quando
oculta, expressa a invencibilidade da substância humana,
como produção histórica e material.

Antonio da Costa Ciampa1

Nesse itinerário mostraremos de que maneira o pensamento de Antonio da Costa


Ciampa se vincula à tradição da Psicologia Social Crítica inaugurada pela Escola de São
Paulo.2 Do mesmo modo, exploraremos a forma como esse autor articula a Teoria
Crítica3, sobretudo a desenvolvida por Jürgen Habermas4, em sua concepção de

1
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.182.
2
Como apresentado brevemente no capítulo anterior, a Psicologia Social brasileira, sobretudo, a teoria de
identidade proposta por Antonio da Costa Ciampa, atravessa e se insere com todas as suas
conseqüências em uma linha de pensamento comprometida na luta contra a opressão histórica frente à
vontade e a autonomia humana inaugurada a partir de meados da década de 70 do século passado por
Silvia Lane e seus colaboradores.
3
Podemos dizer sinteticamente aqui que Teoria Crítica geralmente é o nome dado ao conjunto teórico-
metodológico filosófico de um grupo de intelectuais marxistas não-ortodoxos que estavam ligados ao
Instituto de Pesquisas Sociais filiado a Universidade de Frankfurt na década de 20 do século passado. A
história empírica do Instituto é bastante conhecida. Após a Semana Marxista de Trabalho — realizada
em 1922, reunindo um grupo de intelectuais eminentes concentrados em torno da temática Marxismo e
Filosofia: Georg Lukács, Karl A. Wittfogel, Friedrich Pollock, Max Horkheimer, Paul Massing e outros
— Karl Korsh (associado tradicionalmente à Antonio Gramsci e a Georg Luckács, que foram
considerados como os precursores do ‘marxismo ocidental’) e Felix Weil, idealizadores e organizadores
da semana, decidem fundar um “instituto para estudos marxistas”. No ano seguinte, em fevereiro, o
“Instituto de Pesquisas Sociais” é fundado em Frankfurt. Os principais expoentes desse instituto foram
Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Walter Benjamin. Após a ascensão de Hitler ao
poder, janeiro de 1933, o Instituto é decretado como ilegal, o que faz com que as atividades sejam
deslocadas para as cidades de Genebra (1933), Paris (1933 a 1936) e Londres (1933 a 1934). Após esse
período Adorno e Horkheimer fixam as atividades do Instituto em Nova York (1934) e Los Angeles
(1941), retornando para Frankfurt após 1950. Para um maior aprofundamento da história do Instituto e
dos integrantes associados à Teoria Crítica indicamos a leitura de: FREITAG, Bárbara. A teoria crítica
ontem e hoje. BRONNER, Stephen E. Da teoria crítica e seus teóricos. WIGGERSHAUS, Rouf. A
escola de Frankfurt: História, desenvolvimento teórico, significação política. O ensaio de Erich
Fromm. Método e função de uma Psicologia Social Analítica. Neste trabalho, publicado em 1932,
Fromm mostra o interesse de articular a Teoria Crítica e a Psicologia Social desde os primeiras
publicações do instituto.
4
Embora se distancie das discussões posteriores aos anos 40 feitas por Horkheimer e Adorno, é explícita
a influência dos primeiros escritos destes na obra habermasiana. A função específica do pensamento
112

identidade e apresentaremos nossa tentativa de reatualização, utilizando aqui um termo


de Axel Honneth5, da teoria de identidade; tratar-se-á acima de tudo de um
esclarecimento atualizador do pensamento que Ciampa expressa com sua formulação
dificilmente compreendida6 de que a identidade é metamorfose humana em busca de
emancipação. Tentaremos interpretar essa proposição como o núcleo de uma teoria de
identidade capaz de explicitar como o desenvolvimento da identidade sofre fortes
investidas dos discursos técnico-psicológicos — lembramos que incluímos aqui o
discurso psicanalítico, psicológico e psiquiátrico acerca do ideal de normal e patológico
—, que por sua vez, tendem a reduzir a complexidade da identidade a personagens
fetichizadas, sustentadas por um reconhecimento perverso.

1 – Da identidade social e sua relação com a ideologia ao sintagma identidade-


metamorfose-emancipação

Começamos então dizendo que consideramos Antonio da Costa Ciampa um dos


primeiros a pensar de forma significativa à construção de uma Psicologia Social Crítica
tipicamente brasileira.7 Uma produção que, como vimos no itinerário histórico,
procurava superar a produção de conhecimento feito aos moldes das teorias positivistas
reinantes na década de 60 e 70. Acreditamos que Ciampa conseguiu propor uma teoria

crítico (seu caráter prático) é explorado de modo muito mais aprofundado por Habermas em seus
primeiros trabalhos: Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria y Práxis [publicado em 1963 e publicado
ampliado em 1971]; Idem. Técnica e Ciência como “Ideologia” [publicados em 1968]; Id.
Conhecimento e Interesse [originalmente publicado em 1968]; Id. La lógica de las ciencias sociales
[textos originalmente publicados de 1963 a 1977]. Posteriormente essa discussão vai desvanecendo e
aparece apenas de forma implícita nos textos do autor; todavia, dois ensaios muito interessantes podem
ser encontrados em HABERMAS, J. Teoria de La Acción Comunicativa. Tomo I e II [1981], pois em
dois momentos desse trabalho Habermas retoma a função da Teoria Crítica e o problema da
compreensão nas Ciências Sociais (Cf. op. cit., p.147-196 do primeiro volume e p.527-572 do segundo).
5
Axel Honneth chama atenção para o fato de que ao propormos reatualizações devemos escolher dois
caminhos: ou partimos para a reatualização “direta”, prezando a integridade dos conceitos e sistemas
(nesse caso criticando as possíveis más compreensões), ou realizamos uma reatualização “indireta”
(aqui se justificaria a reconstrução e utilização de certos conceitos em detrimento de outros em função
dos problemas colocados pelo presente). Na tese ficará explícita nossa adoção pela segunda proposição.
Cf. HONNETH, Axel. Sofrimento de Indeterminação: Uma reatualização da Filosofia do Direito
de Hegel.
6
Essa constatação será melhor explorada quando discorrermos acerca da concepção de metamorfose e
articulação de personagens, que difere e singulariza a teoria de identidade desenvolvida por Ciampa das
demais concepções tradicionais e atuais desenvolvidas pela sociologia e psicologia.
7
Juracy Armando Mariano de Almeida, confirma essa proposição em sua tese de doutoramento ao
afirmar que no Brasil, Roberto Cardoso de Oliveira (1976), antropólogo, com seus estudos de identidade
étnica, e Ciampa (1977), psicólogo, com seus estudos sobre a identidade social, personificam marcos
iniciais da utilização da noção de identidade em suas respectivas áreas de estudo.” Cf. ALMEIDA, J. A.
M. Sobre a Anamorfose: Identidade e Emancipação na velhice. p.46.
113

de identidade que espelha a metamorfose de nossa sociedade e as dificuldades de


emancipação. Mais ainda, acreditamos que esse autor conseguiu de forma intuitiva8 (ou
indireta), resgatar e atualizar a teoria desenvolvida por George Mead, seguindo na
contramão das descrições acerca da personalidade e identidade, que tendem à
naturalização do desenvolvimento, ou ainda, daquelas que trabalham com a perspectiva
de personalidade. Na concepção de Ciampa, identidade humana “é construção,
reconstrução e desconstrução constantes, no dia-a-dia do convívio social, na
multiplicidade das experiências vividas”9.
Em 1977, Antonio da Costa Ciampa10 afirmava que “compreender a identidade é
compreender a relação indivíduo-sociedade”, ou seja, já em sua dissertação de
mestrado, a qual discutiu a identidade social e suas relações com a ideologia, a
identidade era entendida como um conceito central para Psicologia Social, que poderia
ajudar a explicar tanto como se dava a construção das desigualdades e problemas
sociais, quanto entender como se formavam as resistências individuais aos processos de
massificação e as buscas emancipatórias. O autor vivenciava nesse período a chamada
crise da Psicologia Social brasileira e estava alinhado às preocupações de tantos outros
autores, sobretudo Silvia Lane, de construir uma proposta teórico-metodológica que não
somente superasse o modelo positivista de psicologia ensinado no Brasil, mas que
refletisse nossa realidade. Ciampa acreditava, ancorado pela influência de Peter Berger
& Thomas Luckmann11, que para solucionar a dicotomia entre indivíduo e sociedade era
necessário o estudo do fenômeno identitário12. Nas palavras do próprio autor, “o que se
tem em mente com estas afirmações que enfocam com mais ênfase o indivíduo, é
compreender a relação indivíduo-sociedade, este objetivo como tentativa de
compreender a realidade social”13.
Em síntese, a dissertação propõe, a partir da articulação das idéias de Berger &
Luckmann e de Karl Scheibe14, assinalar como as teorias de identidade, associadas

8
Essa colocação deve-se ao fato de não notarmos na dissertação de mestrado escrita por Ciampa a ênfase
no potencial teórico de George Mead em suas proposições, Mead aparece indiretamente na análise que
Ciampa faz de Berger & Luckmann, uma vez que aquele influencia estes.
9
KOLYNIAK, Helena Maria Rath. & CIAMPA, Antonio da Costa. Corporeidade e Dramaturgia do
cotidiano. p. 09.
10
CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade Social e suas relações com a ideologia.
11
Principalmente o texto: BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade.
12
CIAMPA, A. C. op.cit. p. 19
13
Ibidem. p. 19
14
Ex-orientando de Theodor Sarbin, criador da Teoria do Papéis. Cf. SARBIN, Theodor R. & SCHEIBE,
Karl E. Studies in Social Identity e SCHEIBE, Karl E. Beliefs and Values.
114

inevitavelmente por interesses sociais, podem tornar-se formas de manipulação


ideológica.15 Para tanto, Ciampa discute as proposições de Sarbin acerca da Identidade
Social chegando a admitir que o modelo proposto por este último, juntamente com
Scheibe, era promissor para a Psicologia Social16, entretanto, reconhece a deficiência
encontrada nesse modelo baseado numa perspectiva funcionalista, que tende a
representar a ideologia dominante. É importante frisar que essa deficiência —
encontrada pela utilização de Berger & Luckmann — preparou o terreno para a guinada
que viria a seguir. O traço mais significante nessa dissertação está no fato de assumir
que a produção científica deve estar diretamente associada com a práxis.
O interesse pela articulação entre teoria e práxis leva Ciampa a buscar
referenciais teórico-metodológicos que pudessem associar a Psicologia Social, a
pesquisa de identidade e a ação política. Durante praticamente uma década, as
impressões e orientações obtidas foram amadurecendo no pensamento de Ciampa, até se
transformarem na convicção de que a identidade é metamorfose humana.17 Para
demonstrar essa tese era preciso primeiro superar os moldes tradicionais de estudar
identidade pela Psicologia Social — abrir mão do caráter descritivo e estatístico — e
assumir uma outra orientação metodológica: a narrativa de história de vida. E de fato
Ciampa realiza um estudo, em que a estória do Severino — personagem ficcional, do
poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto — e a história da
Severina — personagem da vida real —, são articuladas para demonstrar como o
singular pode materializar o universal, “desvendando a ideologia da não transformação
do ser humano como condição para a não transformação da sociedade”18. Nessa tese,
em que é proposta a idéia de que identidade é metamorfose, se delineiam duas
afirmações igualmente fortes: a) faz parte do desenvolvimento da identidade uma
seqüência de formas de reconhecimento; b) este reconhecimento, quando ausente ou
feito de forma desumana, se dá a saber aos indivíduos pela experiência de
aprisionamento à “mesmice”, ao fetiche de uma personagem que impede a
concretização do sentido emancipatório da identidade.
Não é por acaso que em Ciampa encontramos os meios mais apropriados para
compreender a persistência do discurso psiquiátrico e seu uso como instrumento de

15
CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade Social e suas relações com a ideologia. p.37 et seq.
16
Ibidem. p.142.
17
Cf. Idem. A estória do Severino e a História da Severina.
18
LANE, Silvia T. M. Prefácio. p.10.
115

administração da sociedade capitalista. Em seus escritos, Ciampa partilha com Hegel do


período de Jena, Mead e Habermas mais do que uma teoria acerca da socialização e
individualização da identidade. N’A estória do Severino e a História da Severina,
encontramos elementos que demonstram coincidências com a obra de Honneth,
principalmente na parte que focaremos aqui em nossa discussão: ele também procura
demonstrar como a busca por emancipação é em última instância uma luta por
reconhecimento, que por sua vez depende de condições históricas e sociais dadas, o que
insere o autor na tradição da Teoria Crítica. E se por um lado no livro de Ciampa
existem poucas citações de Hegel e de Mead, ou ainda, que o próprio autor diga ter
tomado conhecimento da obra de Habermas apenas no término de sua pesquisa19, por
outro, a apropriação que faz do conteúdo habermasiano permite-lhe ir além das idéias
desenvolvidas na dissertação de mestrado e demonstrar definitivamente que o
desenvolvimento de uma teoria de identidade é essencial para uma Psicologia Social
Crítica.
A Estória do Severino e a História da Severina representou a assunção de uma
concepção de identidade que subvertia as teorias importadas e utilizadas no Brasil até
então (focadas na idéia de identidade natural em que se pressupõe seu desenvolvimento,
ou ainda, sua cristalização), propondo uma concepção que previa um desenvolvimento
dinâmico, de constante metamorfose. Na tese Ciampa propõe que a identidade é a
articulação tanto entre diferença e igualdade (ou semelhança), como entre objetividade e
subjetividade, pois “sem essa unidade, a subjetividade é desejo que não se concretiza, e
a objetividade é finalidade sem realização”20, e passa a defender que é impossível falar
de identidade sem falar em metamorfose, como um processo que se dá desde o
nascimento do indivíduo até sua morte, podendo ultrapassar esses limites biológicos.21
A concepção de identidade proposta por Ciampa apresenta forte influência
hegeliana, uma vez que nela a identidade é a “passagem da indeterminação
indiferenciada à diferenciação, a delimitação e a posição de determinação específica que

19
Em sua tese, Ciampa se vale apenas de dois trabalhos de Habermas: Conhecimento e Interesse e Para
a reconstrução do materialismo histórico.
20
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.145. Embora nessa
citação Ciampa esteja se referindo a articulação que Ciampa faz das teorias de Freud e Marx, podemos
dizer que nela é possível também pensar as proposições meadianas da articulação entre o “eu” e o
“mim” para além do modelo darwinista, incorporando-os ao materialismo histórico.
21
Quando Ciampa afirma isso está se referindo à personagens que mesmo após a morte continuam sendo
utilizadas como referência para a composição de outras personagens, como exemplo podemos citar os
casos das personagens Jesus Cristo, Elvis Presley etc., que continuam influenciando a construção das
identidades.
116

passa a caracterirzar um conteúdo e um objeto”22. O que em certa medida também é


encontrado em Habermas quando este faz a diferenciação entre a singularidade e a
individualidade da identidade. Essa diferenciação, apoiada na influência piagetiana
expressa na teoria de desenvolvimento moral proposta por Kohlberg23, significa que
enquanto singularidade o indivíduo é indiferença de todas as determinidades, de modo
que se exibe enquanto totalidade, ao passo que do ponto de vista ontogenético, enquanto
individualidade, o Eu é a diferença de todas as determinidades, é um vivente formal e
reconhece-se como tal24. A singularidade nos diferencia enquanto sujeitos, ao mesmo
tempo nos iguala nas expectativas em relação à sociedade, enquanto que a
individualidade, construída em contato com a realidade social, sendo a negação de todas
as determinidades nos dá acesso à subjetividade e possibilita uma reconstrução do Eu a
partir das diferenças. Mas somente até esse ponto, pois a forma como Habermas pensa o
desenvolvimento da identidade25, segue um caminho muito diferente do proposto por
Ciampa, como veremos mais adiante. Por enquanto, reforçamos que ao conceber a
identidade dessa forma superamos a discussão de que ela é influenciada pelo social, ela
22
Cf. HEGEL, Georg W. Princípios de Filosofia do Direito. p.14.
23
Habermas justifica a utilização da teoria de Kohlberg pelo fato deste situar-se na tradição do
pragmatismo norte-americano, por ter pensado a ética do discurso na linha desenvolvida por John
Rawls e, sobretudo, por ligar-se “a Kant e ao direito natural racional, para realizar suas concepções
filosóficas, inspiradas inicialmente por Mead, sobre a ‘natureza do juízo moral.” Cf. HABERMAS, J.
Consciência Moral e Agir Comunicativo. p.146. Kohlberg facilita a articulação da teoria da ação
comunicativa com o direito e a moral, que segundo Habermas, são os meios privilegiados na regulação
não violenta da reprodução social. O modelo de desenvolvimento moral desenvolvido por Kohlberg,
cujas noções, segundo Habermas, “satisfazem as condições formais de uma lógica do
desenvolvimento”, ocorrem em três níveis passíveis de verificação: 1) Nível Pré-Convencional: em que
a atitude “correta” é a obediência literal às regras e à autoridade, evitando assim o castigo e o dano
físico; 2) Nível Convencional: em que o desempenho do papel de uma pessoa boa (amável), que
preocupa-se com as outras pessoas e seus sentimentos, que é leal e conserva a confiança dos parceiros,
estando assim, motivado a seguir regras e expectativas, e a atitude “correta” a seguir; e 3) Nível Pós-
Convencional: onde as decisões morais são geradas a partir de direitos, valores ou princípios com os
quais concordam (ou podem concordar) todos os integrantes do discurso ou possibilitando o
desenvolvimento de uma sociedade ética cujas leis são práticas e benéficas. Essa proposta apresentada
por Kohlberg acerca dos estágios ontogenéticos do desenvolvimento moral possibilita Habermas
incorporar em seu arcabouço teórico a compreensão de um desenvolvimento que parte de uma
identidade que é própria do organismo social (hedonista inicialmente), até uma identidade do Eu que
consegue expandir-se até uma identidade pós-convencional (com princípios universais). Cf. Idem. Para
a Reconstrução do Materialismo Histórico. p.55
24
HEGEL, Georg W. F. O sistema de vida ética. p.34 et seq.
25
Seguindo um modelo que poderíamos chamar de determinista, Habermas escreve que a identidade
passa por três momentos: identidade natural, identidade de papel e identidade do Eu, sendo que bem-
sucedida seria a identidade do Eu que conseguisse manter sua autenticidade perante as mudanças
sociais. O Eu, para Habermas, está além da linha constituída por todas as normas e papéis sociais;
tendo de estabilizar-se na capacidade de representar a si mesmo, em qualquer situação, inclusive diante
de expectativas de papel contraditórias. No que se refere aos indivíduos adultos, ela se confirma “na
capacidade de construir novas identidades, integrando nelas as identidades superadas e organizando a
si mesmo e as próprias interações numa biografia inconfundível”. HABERMAS, J. Para a
Reconstrução do materialismo histórico. p.80.
117

é constitutivamente social, e como tal, sujeita às mudanças que a estrutura social


experimenta. Juracy Almeida, referindo-se às proposições de Ciampa, assinala que esse
é um marco decisivo que implica “no abandono da distinção entre ‘identidade pessoal’,
referida às marcas distintas do indivíduo, associadas à sua biografia, e ‘identidade
social’, referida às categorias sociais a que o indivíduo pertence ou mesmo aos seus
papéis sociais”26.
Para explicar como se dá a apresentação da identidade enquanto metamorfose,
Ciampa utiliza elementos da dramaturgia. Metodologicamente isso implica em defender
que a identidade passa a ser vista, expressada empiricamente, por meio de personagens,
e que é a articulação dessas personagens que vai constituir a identidade. Como o próprio
Ciampa explica: “podemos dizer que as personagens são momentos da identidade,
degraus que se sucedem, círculos que se voltam sobre si em um movimento, ao mesmo
tempo, de progressão e de regressão”27. Desse modo, o autor não só relaciona-se com
Hegel, para quem “o conceito de desenvolvimento do espírito consiste em que o seu
extrinsecar-se e o seu cindir-se é simultaneamente o vir a si mesmo”28, como também, e
poderíamos dizer principalmente, relaciona-se com Mead, o qual ao empregar a
categoria “mim” como uma característica da auto-relação originária, o emprega para
mostrar que o “eu” somente consegue se sustentar colocando-se como objeto para si-
mesmo. Vale apontar, inclusive, que a concepção de personagem, desenvolvida por
Ciampa, mostra-se muito próxima da idéia meadiana de articulação “eu” com vários
“mim(s)”, tal como foi apresentado por esse último no ensaio The mechanism of social
consciousness, de 1912. Mead escreve que essa relação (“eu” e “mim”) é semelhante ao
relacionamento entre parceiros de um diálogo, “a consciência de si-mesmo, atualmente
operante no relacionamento social, é um ‘mim’ objetivo ou vários ‘mim(s)’ num
processo contínuo e que implica um ‘eu’ fictício sempre fora de seu campo de visão”29.
Em Ciampa a identidade é expressão de várias personagens e a articulação
dessas personagens é a expressão do Eu. Isso assinala que é impossível viver sem

26
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.60.
A distinção identificada e defendida por Ciampa é entre identidade individual e identidade coletiva,
ambas como identidades sociais. Essa distinção será melhor explorada a partir da próxima sessão desse
capítulo.
27
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.198.
28
HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.63.
29
MEAD, George Herbert. The mechanism of social consciousness. p.406. Tradução nossa: “the self-
conscious, actual self in social intercourse is the objective ‘me’ or ‘me’s’ with the process of response
continually going on and implying a fictitious ‘I’ always out of sight of himself.”
118

personagens, na medida que sempre me apresento como representante de mim mesmo


perante os outros. Essa concepção de identidade implica em entender que a “cada
momento, é impossível expressar a totalidade de mim; posso falar por mim, agir por
mim, mas sempre estou sendo o representante de mim mesmo. O mesmo pode ser dito
do outro frente ao qual compareço (e que comparece frente a mim).”30 Um jogo de
interação que estabelece uma complexidade impossível de estabelecer um fundamento
originário para cada personagem, “não só a identidade de uma personagem constitui a
de outra e vice-versa (o pai do filho e o filho do pai), como também a identidade das
personagens constitui a do autor (tanto quanto a do autor constitui a das
personagens)”31. A idéia de personagem possibilita Ciampa explicitar algo que não foi
apresentado nas teorias de Scheibe & Sarbin: que o papel é uma atividade padronizada
previamente, uma tentativa de controle, administração e reprodução da identidade
pressuposta.32 Um exemplo dessa proposição pode ser encontrado na seguinte
passagem: “Severino é lavrador, mas já não lavra: a personagem Severino-lavrador
torna-se algo como poder sobre o indivíduo, mantendo e reproduzindo sua identidade,
mesmo que ele esteja envolvido em outra atividade”33.
Este princípio dramatúrgico serve para Ciampa esboçar um quadro metodológico
dentro do qual ele pode perseguir seus verdadeiros interesses na pesquisa: de que “a
questão central da psicologia, ou pelo menos para a psicologia social que se propõe
estudar os indivíduos como pessoas, é a ‘metamorfose humana’”34, e que isto posto,
direciona o pesquisador a questionar a idéia de que a identidade pode ser estudada como
algo dado, uma vez que é a articulação da igualdade e da diferença. Dito de outro modo,
a identidade nunca pode ser representada em sua totalidade, pois, também nesse caso,
sempre nos apresentamos como representantes de nós mesmos perante os outros. Se
identidade é metamorfose, como explicar o fato de que muitas vezes permanecemos os
mesmos? Essa questão aparece como outro obstáculo a ser solucionado: é preciso que o
autor explique como se dá a aparência de não-metamorfose. Ciampa nesse momento,
em nossa opinião, atualiza as proposições de Mead acerca da simultaneidade da
socialização e individualização, e avança no sentido de explicar como, a partir da

30
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.170-171.
31
Idem. Identidade. p.60.
32
Cf. Idem. A estória do Severino e a História da Severina. p.136 et seq.
33
Ibidem. p.139.
34
Idem. As metamorfoses da ‘Metamorfose Humana’: Uma utopia emancipatória ainda é possível
hoje? p.1.
119

articulação entre o “mim” e o “eu”, pode ocorrer um tipo de problema que impede o
indivíduo de se auto-determinar.
Marquemos essa atualização da proposição meadiana de constituição identitária.
Para Ciampa, assim como para Mead, a influência do discurso social é determinante na
construção da identidade. A questão que se apresenta para entender a constituição do Eu
é a da compreensão, do entendimento, do jogo lingüístico responsável pela socialização
e individualização do bicho-humano. Não obstante, é preciso captar o jogo das
aparências, a “preocupação é com o que se oculta, fundamentalmente com o
desvelamento do que se mostra velado”35. O fato de Ciampa mostrar com a história da
Severina que é a partir da linguagem, do ser nomeado, que o bicho-humano se
humaniza, se determina36 — ou como ensina Piera Aulagnier37, se aliena de si-mesmo
para futuramente se libertar —, não apresenta novidades frente às idéias de Mead.
Entretanto, no que se refere à discussão acerca das possibilidades de aprisionamento e
impedimento da concretização da auto-determinação, Ciampa amplia a leitura de
desenvolvimento do self proposto por Mead, inclusive, apresentando elementos que não
haviam sido abordados na época por teóricos do reconhecimento como Charles Taylor38
e Axel Honneth39.
Lembremos que Mead já alertava para o fato de enquanto Outros generalizados,
as instituições podem interferir de forma negativa no desenvolvimento dos selves.

As instituições sociais opressivas, estereotipadas e ultra-conservadoras — como


a igreja —, que, com sua antiprogressividade mais ou menos rígida e inflexível
esmagam e borram a individualidade, ou inibem qualquer expressão de conduta
e pensamento distintivos e originais das pessoas ou personalidades individuais
nelas implicadas e a elas submetidas, são produtos indesejáveis mas não
necessários do processo social geral da experiência e do comportamento.40

35
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.139.
36
Ibidem. p.132.
37
AULAGNIER, Piera. Um interprete em busca de sentido I.
38
Cf. TAYLOR, Charles. La politica del riconoscimento.
39
Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais..
40
MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.262.
Tradução nossa: “Oppressive, stereotyped, and ultra-conservative social institutions — like the church
— wich by their more or less rigid and inflexible unprogressiveness crush or blot out individuality, or
discourage any distinctive or original expressions of thought and behavior in the individual selves or
personalities implicated in and subjected to them, are undesirable but not necessary outcomes of the
general social process of experience and behavior.”
120

Entretanto, Ciampa aponta para o perigo de que a personagem se transforme —


assim como ocorre com a forma mercadoria estudada por Marx no Capital41 — em um
fetiche, “que vai explicar a quase impossibilidade de um indivíduo atingir a condição de
ser-para-si e vai ocultar a verdadeira natureza da identidade como metamorfose”42.
Nesse caso, vemos a inversão de um fenômeno que poderíamos chamar de característica
básica — que não deve ser reduzido aqui como algo biológico ou metafísico, mas sim
como necessidade histórica e psicossocial — própria das identidades: a necessidade de
reconhecimento. O jogo do reconhecimento faz com que a identidade seja sempre
pressuposta, abrindo o precedente para que ela seja re-posta.43

Ou seja, sempre há pressuposição de uma identidade; sempre uma identidade é


pressuposta. Podemos até desconhecê-la; mas, pressupomos sua existência. Até
mesmo na pergunta sobre o recém-nascido há um ele (pronome, no lugar do
nome...) indicando a mesma pressuposição em relação àquele pequeno ser
humano.44

O indivíduo, nesse sentido, é um ser com uma determinidade que se articula


com a indeterminação de forma dialética.45 Como assinala Hegel, é um “ser
determinado, enquanto reflexo de em si na sua determinidade, é algo que está-aí,
alguma coisa”46, a unidade entre o ser e o nada que desvanece na determinidade e
também na sua contradição, a negatividade consigo mesmo. Ciampa considera essas
proposições em A estória do Severino e a História da Severina, Hegel aí é citado
diversas vezes ao longo do texto e, tal como no pensamento hegeliano, a identidade é
pensada como resultado de uma contradição superada, “como um ser, mas um ser com a
negação ou a determinidade: é o devir, posto na forma de um dos seus momentos, do
ser”47. A identidade, portanto, se configura para Ciampa na dialética posição-reposição,
que pode ser tanto positiva quanto negativa, uma vez que é resultante da articulação que
o indivíduo faz com o que fizeram/fazem dele em todos os momentos. Os indivíduos,

41
Cf. MARX, Karl. O fetichismo da mercadoria: o seu segredo.
42
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.140.
43
É possível que um leitor atento a tal proposição levante os seguintes questionamentos: O que e como
seria esse ‘jogo do reconhecimento’? De que modo ele faz com que a identidade seja sempre
pressuposta? Por que a pressuposição abre o precedente para que haja reposição? Apesar de essas
questões serem trabalhadas nas páginas que se seguem, elas serão mais detalhadas a partir da página
165 e seguintes, quando trouxermos as contribuições de Honneth, Mead e Winnicott acerca do processo
de socialização e individualização dos indivíduos.
44
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.153.
45
Cf. HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.14 et seq.
46
Idem. Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome. p.143.
47
Ibidem. p.143.
121

como reforça Ciampa, encarnam “múltiplas personagens que ora se conservam, ora se
sucedem; ora coexistem, ora se alternam”48, que indicam como que “modos de
produção da identidade”, ou poderíamos dizer, modos de produção de uma história
pessoal.

Identidade é história. Isto nos permite afirmar que não há personagens fora de
uma história, assim como não há história (ao menos história humana) sem
personagens.
Como é óbvio, as personagens são vividas pelos atores que as encarnam e que
se transformam à medida que vivem suas personagens. Enquanto atores,
estamos sempre em busca de nossas personagens; quando novas não são
possíveis, repetimos as mesmas; quando se tornam impossíveis tanto novas
como velhas personagens, o ator caminha para a morte, simbólica ou
biológica.49

Dessa maneira, se por um lado existe a necessidade de normatização de


determinadas personagens, por outro corre-se o perigo de que essa personagem (que é
percebida como identidade pressuposta) seja transformada em pura determinidade ou
infinita reposição, dando aparência de não-metamorfose, tal como postulado por Gaston
Bachelard, o qual, apoiado nas reflexões de Roupnel, escreve que tudo quanto pode
haver de permanente em um ser é a expressão, “não de uma causa imóvel e constante,
mas uma justaposição de resultados fugitivos e incessantes, cada um com sua base
solitária, e cuja ligação, que não é outra coisa senão um hábito, compõe o indivíduo”50.
Para ajudar a entender como ocorre esse processo, Ciampa propõe dois movimentos,
caracterizados como mesmice e mesmidade. No que se refere ao movimento de
mesmice, ele explica que é um fenômeno decorrente da re-posição da identidade que
pode se dar como consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão à
repetição. Nesse caso, a identidade é pré-suposta como “dada” permanentemente e não
como re-posição de uma identidade que um dia foi posta. Dizemos cotidianamente eu
sou, não estou sendo.

Daí a expectativa generalizada de que alguém deve agir de acordo com suas
predicações e, consequentemente, ser tratado como tal. De certa forma, re-
atualizamos, através de rituais sociais, uma identidade pressuposta, que assim é
vista como algo dado (e não como se dando continuamente através da re-

48
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.156.
49
Ibidem. p.157.
50
BACHELARD, Gaston. La intuición del instante. p.26. Tradução nossa: “no de una causa inmóvil y
constante, sino de una yuxtaposición de huidizos e incesantes, cada uno con su base solitaria, y cuya
ligadura, que no es otra cosa que un hábito, compone o individuo.”
122

posição). Com isso, retira-se o caráter de historicidade da mesma,


aproximando-a mais da noção de um mito que prescreve as condutas corretas,
re-produzindo o social.
O caráter temporal da identidade fica restrito a um momento originário — como
se fosse uma revelação de algo preexistente e permanente —, quando, de fato,
já vimos, nos tornamos nossas predicações; interiorizamos a personagem que
nos é atribuída; identificamo-nos com ela. É discutível o grau de liberdade que
um indivíduo tem de escolher (e de ser escolhido para) uma personagem;
mesmo para adultos, esse grau de liberdade (ou o grau de seletividade da
personagem) parece ter uma relação direta com a quantidade de poder a que a
personagem dá acesso.51

Esse fenômeno oferece ao indivíduo uma experiência de atemporalidade: como


ser social ele é um ser-posto. A temporalidade que é uma sucessão de instantes
acumulados, transforma-se em permanência, em imutabilidade52, e uma vez que a
duração não tem uma força direta, o passado se torna um hábito presente. A mesmice
desse tipo é um hábito restituído de novidade, “uma assimilação rotineira de uma
novidade”53, e será chamada por Ciampa de fetichismo da personagem, que vai explicar
“a quase impossibilidade de um indivíduo atingir a condição de ser-para-si, ocultando a
verdadeira natureza da identidade como metamorfose e gerando o que será chamado
identidade mito”54. Aparece aqui o caráter produtivo da identidade, de sua produção
como mercadoria, lembrando com Jean Baudrillard, que a “acepção original da
‘produção’ não é a da fabricação material, mas a de tornar visível, de fazer aparecer, e
comparecer pro-ducere”55. E tal como ocorre nas mercadorias56, a personagem
fetichizada é reforçada em seu comparecimento pela forma de valor social, que, como
Ciampa lembra, força os indivíduos a reproduzirem-se como réplicas de si mesmos, “a
fim de preservar interesses estabelecidos, situações convenientes, interesses e
conveniências que são, se radicalmente analisados, interesses e conveniências do capital
(e não do ser humano, que assim permanece um ator preso à mesmice imposta)”57.
Desse modo, o fetiche da personagem é percebido como um aprisionamento no mundo

51
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.163-164.
52
BACHELARD, Gaston. La intuición del instante. p.28.
53
Idem. ‘Op.cit.. p.73. Tradução nossa: “como una asimilación rutinaria de una novedad.”
54
CIAMPA, A. C. op.cit. p.140. Para Ciampa a idéia de ser-para-si significa “buscar a autodeterminação
(que não é a ilusão de ausência de determinações exteriores); ‘tornar-se escrava de si própria’ (que de
alguma forma é tentar tornar-se sujeito); procurar a unidade da subjetividade e da objetividade, que faz
agir uma atividade finalizada, relacionando desejo e finalidade, pela prática transformadora de si e do
mundo.” Ibid. p.146.
55
BAUDRILLARD, Jean. Esquecer Foucault. p.31.
56
Cf. MARX, Karl. O fetichismo da mercadoria: o seu segredo. p.79 et seq.
57
CIAMPA, A. C. op.cit. p.165.
123

da mesmice (da não-mesmidade) e da má infinidade (a não superação das contradições),


a atividade que engendra a personagem deixa de ser desempenhada, mas a
representação da personagem persiste, lembremos do exemplo trazido anteriormente:
Severino “é lavrador” mas já “não lavra”.
Entretanto, é preciso apontar aqui um aspecto não muito explorado n’A estória
do Severino e a História da Severina: o caráter positivo da mesmice. Quando Ciampa
trata do “fetiche da personagem”, do aprisionamento à mesmice, seu foco está voltado
para a explicação de como ocorrem os movimentos de regressão e progressão da
história da Severina. Sua discussão da mesmice como re-posição da personagem
pressuposta aparece em contraste com a mesmidade, a alterização58, possibilidade de
tornar-se outro, que no caso da Severina aparece como movimento emancipatório da
identidade, a lição de que “um mundo que não merece ser vivido deve ser recusado,
negado”59. Com isso, corre-se o risco de reduzir a mesmice à um problema que deva ser
superado — o que não é verdade —, pois como vimos, Ciampa compartilha com Mead
o pressuposto de que a constituição do Eu deve ser pautada na articulação entre
socialização e individuação. Ao explorar com maior profundidade essa questão,
Almeida60 lembra que a reposição também pode expressar nossas necessidades, uma
forma de lidar com o mundo, ao ponto de servir de base para lidar com a alteridade,
para representar resistência.

(...) há que se considerar que nem sempre o processo de re-posição da


identidade expressa alienação e heteronomia. Com efeito, ele pode ser fruto de
uma atitude positiva frente à vida, de expressão afetiva do ser, de satisfação
com um modo de vida específico, que se considera suficientemente válido e
digno de manter. Alguns indivíduos chegam a demonstrar uma altivez frente a
dissabores e perdas (doenças, deficiências adquiridas, desemprego, projetos
materiais prejudicados, perda de entes queridos etc.), reafirmando seus
propósitos de uma existência digna e autônoma apesar dos problemas que os
afetam. O que se preconiza, então, é que os indivíduos não se transformem em
prisioneiros do que estão sendo ou têm sido, de seus papéis ou das situações
que vivenciam. A vivência prazerosa não pode ser feita à custa da procura
incessante e alienada da imutabilidade e nem se transformar numa obsessão e
numa luta a todo custo contra a mudança de si, dos outros, das relações e das
situações e, principalmente, à revelia dos outros. Os papéis desempenhados não
podem ser tratados como uma realidade absoluta da pessoa. Ao contrário,
58
O termo alterização, utilizado por Ciampa, quer expressar a idéia de uma mudança significativa — um
salto qualitativo — resultante do acúmulo de mudanças quantitativas, às vezes insignificantes,
invisíveis, mas graduais e não radicais.
59
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.234.
60
Cf. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice.
p.84 et seq.
124

admitida a identidade como metamorfose, os seres humanos devem ser


considerados do ponto de vista de sua potência, seres capazes de ultrapassar
limites, considerados estes limites não como um término.61

Não como término, mas como ponto de partida. O imperativo ético dessa
concepção de identidade é explicitado: não há como determinar um a priori para as
formas de vida. Cada biografia deve adquirir uma história única que possa tanto
identificá-la como uma singularidade dotada de direitos individuais, quanto uma
universalidade que expressa uma coletividade. A doença mental no caso de Severina,
para não generalizar todos os casos de loucura, aparece como única possibilidade de
resistência a um mundo desumanizador. O problema, como é bem frisado em sua
história, é que ao ser diagnosticada como doente mental passa a ser reconhecida como
escrava inutilizada. Visualisamos um paradoxo, aquilo que para os especialistas era
visto como doença mental, por representar a incapacitação para a exploração, do ponto
de vista de Severina tornou-se a possibilidade de finalmente se libertar da escravidão e
ficar livre do encosto62. Se considerarmos que vivemos em uma sociedade desigual e
exploradora, e que a identidade se forma sempre a partir da pressuposição, da re-posição
e alterização, a idéia de que a identidade é metamorfose adquire seu pleno significado,
ou seja, a luta pela emancipação. Isto posto, abre-se espaço para que exploremos o outro
movimento da identidade: a mesmidade. Mas antes de discorrer acerca do conceito de
mesmidade parece-nos, importante algumas das considerações desenvolvidas por
Habermas em Para a reconstrução do materialismo histórico e Conhecimento e
Interesse —, uma vez que será a partir delas que Ciampa concluirá que o impedimento
da emancipação e a manutenção da mesmice não se constituem como algo inevitável.
Em Para a reconstrução do Materialismo Histórico, Habermas afirma que o ser
social apenas se destaca da natureza, emergindo pela primeira vez na história, com o
advento das ações executadas exclusivamente na esfera interativa: o “sistema de
comunicação” progrediu diretamente das “interações mediatizadas de modo gestual”
dos homínidas, por consequência da familização do homem. Com o advento da família,
a ordem hierárquica dos primatas e homínidas (unidimensional) é substituída pela
ordem hierárquica dos homo sapiens (pluridimensional), que passa a ser organizada a
partir de relações intersubjetivas fundadas em expectativas de comportamento e

61
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.92.
62
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.67 et seq.
125

próprias ao modo de reprodução da vida pela interação – a moralização dos motivos de


ação63. Essa “moralização dos motivos de ação” prova que o único elemento próprio ao
ser social é a ação comunicativa, isto é, o estabelecimento de relações com o mundo e
com outros indivíduos a partir de normas sociais compartilhadas intersubjetivamente
pela comunidade linguística.
Para que essas normas sejam compartilhadas é imprescindível que três condições
sejam satisfeitas: a) na interação os indivíduos devem, por meio dos papéis sociais,
assumir não apenas a perspectiva do outro, mas também colocarem-se na perspectiva
dos observadores, pois somente desse modo eles poderiam criar uma relação entre “suas
expectativas recíprocas e colocá-las, enquanto sistema, como fundamento do próprio
agir”64; b) a constituição de papéis sociais, por parte dos indivíduos que participam da
interação, deve pressupor sua conscientização a respeito do tempo, em outras palavras,
os papéis sociais não se esgotam no imediatismo de uma dada relação interativa; c) os
papéis sociais se relacionam apenas a partir de mecanismos de sanção por intermédio
das interpretações das normas vigentes em dada formação social, e não mais por
intermédio da força: as normas sociais linguisticamente fundadas substituem as ameaças
de violência física. É importante ressaltar que o interesse pela relação entre os
diferentes papéis na evolução da ação simbólica ou das estruturas de comunicação, que
agora complementariam o desenvolvimento dos modos de produção ou das esferas
instrumentais de ação, faz com que Habermas desenvolva elementos que poderíamos
chamar de prolegômenos para uma Psicologia Social Crítica. Lembremos que ainda
antes da publicação de Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, Habermas
havia aprofundado a discussão acerca dos limites da proposição marxiana de que o
trabalho (a ação instrumental) era o motor da história65.
A discussão acerca da familização do homem leva Habermas a explorar as
potencialidades da Psicanálise, o que será levado a cabo, sobretudo, em Conhecimento e
Interesse. Trabalho o qual Habermas se ocupa em discutir a psicanálise enquanto prática
terapêutica, que seria, em última análise, um exercício de auto-reflexão. Vale ressaltar
que a apropriação da psicanálise realizada por Habermas, e que leva a redução da
Psicanálise a um exercício de auto-reflexão segue a influência de Alfred Lorenzer e

63
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do Materialismo Histórico. p.115 et seq.
64
Ibidem. p.117.
65
Idem. Técnica e Ciência como Ideologia.
126

Alexander Mitscherlich66, autores que entendem a psicanálise como um procedimento


hermenêutico-materialista das profundidades, correspondente à conceitualização de um
sujeito pertencente a uma teoria materialista da socialização67, o que possibilita colocar
a Psicanálise como instrumento de recuperação e tradução da biografia perdida. Essa
concepção de texto adulterado e a possibilidade de tradução a partir da psicanálise,
inclusive, será para Habermas a brecha para a discussão acerca da fecundidade da
psicanálise enquanto uma teoria crítica que leva ao ato de auto-reflexão que alteraria a
vida e levaria ao movimento de emancipação68. Com vistas em uma hermenêutica
psicanalítica, Habermas prossegue denotando atenção especial aos atos falhos, uma vez
que neles seria possível verificar como nossa intenção lingüística pode ser perturbada,
por erros, apenas na aparência acidentais,

através de omissões ou deformações que, quando se mantém no interior dos


limites da tolerância habitual, podem ser depreciadas como fortuitas e, como
tais, esquecidas. Estes atos falhos, aos quais Freud soma casos de
esquecimento, lapsos de linguagem, de escrita, de leitura, os equívocos no
apanhar um objeto e os chamados atos descuidados, são indicadores do fato de
o texto defeituoso revelar e, simultaneamente, encobrir as auto-ilusões do
autor.69

A caracterização freudiana do sonho70, reforçada por Lorenzer71 como instância


de formação do compromisso é utilizada, na teoria habermasiana, como paradigma para
analisar o sintoma72. O sintoma na leitura psicanalítica ocorre quando as inexatidões do

66
Encontramos a influência de dois grandes psicanalistas alemães na obra habermasiana, são eles:
Alexander Mitscherlich e Alfred Lorenzer. O primeiro é lembrado principalmente no trabalho Texto e
Contexto, o segundo, por sua vez, aparece na obra citada Conhecimento e Interesse. Em nossa
opinião, a leitura da psicanálise realizada por Habermas, principalmente as críticas direcionadas à
psicanalistas como Jacques Lacan (embora Lacan seja reconhecido como um dos grandes autores que
discutem a relação entre linguagem e psicanálise, apenas é rapidamente citado por Habermas no
Discurso Filosófico da Modernidade e Pensamento Pós-metafísico), devem-se à disputa entre
Lorenzer (que articula Wittgenstein e Marx) e Lacan (estruturalismo e Saussure) acerca da apropriação
da Psicanálise lingüisticamente orientada. Para uma melhor compreensão do diálogo entre esses dois
autores sugerimos a leitura da advertência para a reedição da obra El lenguaje destruido y la
reconstrucción psicoanalítica, de Alfred Lorenzer.
67
LORENZER, Alfred. El lenguaje destruído y la reconstrucción psicoanalítica. p.23.
68
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. p.232.
69
Op.cit. p.238. Aqui o autor se refere a FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana.
70
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos.
71
O interesse de Lorenzer pelas idéias de Wittgenstein direcionam esse autor para a correlação da análise
dos sonhos com os símbolos. Wittgenstein achava que o sonho era um desafio para a análise da
linguagem. Em uma palestra sobre psicologia afirma que “se um símbolo num sonho não for
compreendido, não parecerá ser absolutamente um símbolo.” Cf. WITTGENSTEIN, L. Estética,
Psicologia e Religião: Palestras e conversações. p.78.
72
Tanto Lorenzer como Lacan atribuem a Marx novas possibilidades para a leitura da psicanálise. Slavoj
Žižek em sua tese de doutoramento dedica um capítulo específico para discutir como aquele autor
127

texto são mais flagrantes e se situam na esfera do patológico. A conseqüência dessas


proposições leva Habermas a afirmar que para Freud o sonho é o “modelo normal” das
afecções psicopatológicas. Sendo assim, se “a interpretação dos sonhos permaneceu
sempre como modelo de explicação em vista do esclarecimento de complexões de
sentido patológicas deformadas”73, o analista deve assumir uma rigorosa atitude de
intérprete.
Entretanto, se por um lado Habermas apresenta as grandezas da teoria
psicanalítica, por outro — assim como o fez seu parceiro frankfurtiano Erich Fromm74
— trata de assinalar suas limitações, principalmente no que se refere às proposições
marxianas. A primeira delas refere-se ao determinismo psíquico proposto pela
psicanálise, mais precisamente a deformação da linguagem e patologia do
comportamento, que nos inclina a entender que os indivíduos são sujeitos que se auto-
iludem, e que o caso normal é o caso-limite de “uma estrutura de motivação que
depende, concomitantemente, de interpretações que afetam tanto necessidades
comunicadas publicamente quanto necessidades reprimidas e privatizadas”75. Se o
problema encontrado em Marx era a centralização do trabalho e o foco nas questões
produtivas, em Freud a redução do destino humano à socialização das pulsões faz com
que Habermas enxergue um outro limite para pensar a ação comunicativa.

Assim Freud vê também o processo cultural da espécie como uma realidade


presa à dinâmica das pulsões: as forças libidinais e agressivas, potestades pré-
históricas da evolução, perpassam por assim dizer o sujeito da espécie e
determinam sua história. Ocorre que o modelo biológico da filosofia da história
não é outra coisa do que a sombra refletida do modelo teológico, ambos
igualmente pré-críticos. As pulsões como primum movens da história, cultura
como resultado de sua luta — uma tal concepção teria esquecido que acabamos
de adquirir privativamente o conceito do impulso pulsional e da patologia
exclusivamente, a partir da deformação da linguagem e da patologia do
comportamento. No plano antropológico não deparamos com necessidades que
não estejam interpretadas em termos de linguagem e não estejam
simbolicamente fixadas em ações virtuais. A herança da história natural, a qual
consiste em um potencial de impulsos desprovidos de qualquer especialização,
determina as condições iniciais de reprodução da espécie humana, mas os meios
de tal reprodução societária emprestam, de saída, à conservação da espécie a
qualidade da autoconservação.76

entende que Lacan atribui à Marx a criação do sintoma. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. O mais sublime dos
histéricos. O capítulo dessa tese referente à criação do sintoma foi publicado também em ŽIŽEK,
Slavoj. (org.) Um mapa da Ideologia, sob o título: Como Marx inventou o sintoma?
73
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. p.239.
74
Cf. FROMM, Erich. Grandezas e limitações do pensamento de Freud.
75
HABERMAS, Jürgen. Op. cit. p.271.
76
Ibidem. p.298-299.
128

Marx, nesse contexto, será considerado por Habermas como em vantagem frente
à teoria freudiana, por ser “herdeiro de uma tradição idealista, que mantém a síntese
como ponto de referência”, e assinalar que as formas pelas quais as ações são
executadas e os conflitos são decididos “são, pelo contrário, dependentes das condições
culturais de nossa existência: trabalho, linguagem e poder”77. A razão é inerente ao
conhecimento. Sob essas premissas, Habermas não poderia deixar de apontar que Freud,
em sua psicanálise, depara-se com a situação “onde a maiêutica do médico não pode
incentivar a auto-reflexão do doente senão sob o impacto da coerção patológica do
interesse correspondente de a remover”78. A adaptação da natureza externa à sociedade
com a ajuda das forças de produção (instrumentais), e da natureza interna com a ajuda
das estruturas normativas (comunicativas), será entendida como adaptação inteligente à
realidade exterior, frente às crises de legitimação, que se configuram:

Num processo fatal que, apesar de toda a objetividade, simplesmente não se


impõe de fora e não permanece externo à identidade das pessoas colhidas por
ele. A contradição, expressa na combinação catastrófica do conflito, é inerente à
estrutura da ação sistêmica e aos sistemas de personalidade dos principais
caracteres. O fato cumpre-se na revelação de normas conflituais contra as quais
as identidades dos personagens se chocam, a menos que estejam aptos a
mobilizar a força para recuperar a sua liberdade, derrubando o poder mítico do
fato através da formação de novas identidades.79

Conseqüentemente a essas análises vemos que Habermas se distancia da


psicanálise, o que não ocorrerá sem críticas, muitas delas, interpretadas como não
fundamentadas, como foi o caso de sua apropriação da psicanálise como uma
hermenêutica das profundidades, cuja crítica será realizada por Hans-Georg Gadamer,

77
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. p.299.
78
Ibidem. p.301. A relação com a psicanálise será criticada por Hans-Georg Gadamer fortemente em A
universalidade do problema hermenêutico. Nesse texto Gadamer acusa Habermas de seguir uma
lógica de difícil aplicação na realidade, pois diferentemente do sofrimento e desejo de cura presentes
na intervenção terapêutica, que é imputada ao analista por meio de uma autoridade que possibilita que
este esclareça as motivações reprimidas e derrube as resistências, na vida social, cuja “resposta se dá
mediante a autoridade do médico bem informado [...] no âmbito social e político falta uma base
específica para a análise comunicativa, cujo tratamento o doente aceita livremente porque conhece sua
doença”. op. cit., p. 313. Uma série de cautelas institucionais que protegem o paciente frente a um
possível excesso do psicanalista, principalmente frente à interpretação, cuja possibilidade de “um
mascaramento pseudo-comunicativo”, vai ser entendido por Gadamer como um fenômeno que ocorre
no âmbito social, a resistência do oponente e a resistência contra o oponente, uma pressuposição
comum a todos. Em outras palavras, as questões relativas à emancipação no âmbito social e político
não são susceptíveis de um tratamento epistemológico-hermenêutico, pois seguem convenções
político-sociais. Dessa forma, para Gadamer não há, como pretendia Habermas, um paralelo entre a
psicanálise e luta política, ao passo que nesta última o adversário não pode ser considerado como um
dialogante.”
79
HABERMAS, Jürgen. Crise de legitimação no capitalismo tardio. p.12.
129

que acusará Habermas de distorcer o sentido originário da hermenêutica crítica e de


propor como saída a terapia da sociedade80. Para outros, essa compreensão da
psicanálise será interpretada como uma “degradação intelectualista”, que reduz a
psicanálise a uma psicologia do eu, “O eu que a própria psicanálise veio destruir,
mostrando que há necessariamente uma falha no coração do diamante”81. José Luiz
Aidar Prado, por sua vez, lembra que o inconsciente não pode ser reduzido à auto-
reflexão82, a “análise não é processo educativo, em que o paciente aprende a comunicar-
se, a bem-viver, a ter acesso aos bens. O analista não está na escuta para dar ao mal-
falante o que lhe falta”83. Esse “mau-uso” da psicanálise e a sua indicação como um
substituto para a hermenêutica crítica também será criticado fortemente por Gadamer,
que não acredita ser possível atribuir à sociedade conceitos que a psicanálise
desenvolveu na relação terapêutica com o indivíduo, correndo o grave risco, caso seja
transposto o modelo clínico psicanalítico para a sociedade, de patologizar o mundo da
vida.
A busca pela condição ideal de fala (consenso livre de coerção) seria uma
armadilha, segundo esses autores, para a análise crítica da comunicação. Valendo
inclusive o seguinte questionamento: se a violação dos pressupostos gerais da
comunicação (inteligibilidade, verdade, retidão e veracidade) são vistos por Habermas
como distorções do ato de fala comunicativo proporcionadas pela lógica sistêmica, não
poderiam ser as patologias da modernidade uma das dificuldades inerentes encontradas
no mundo da vida que sofre a colonização sistêmica? E não uma exceção à regra que
deveria ser corrigida? Vejamos mais duas citações de Aidar Prado que, longe de
responder essas questões, abrem espaço para mais outras brechas na ação comunicativa:

Digamos com todas as letras: não há padrão estrito de normalidade do uso da


linguagem. Grifo o estrito. Partir da idéia de uma capacidade de uso normal da
linguagem, que deve ser restituída ao neurótico, significa impor à teoria um
grau de idealização ancorado na navalha transcendental. Quem dirá até onde se
estica a faixa do que pode ser considerado normal? O senhor, o mestre, o

80
Para maior aprofundamento nesse debate sugerimos a leitura de nosso trabalho: LIMA, Aluísio Ferreira
de. Hermenêutica das tradições ou Crítica das ideologias? Um debate entre Hans-Georg
Gadamer e Jürgen Habermas, ou ainda, HABERMAS, Jürgen. Pretención de universalidad de la
hemenéutica; HABERMAS, Jürgen. ¿Cómo es posible la metafísica después del historicismo?;
HABERMAS, Jürgen. Sobre “Verdade e Método” de Gadamer; GADAMER, Hans-Georg. A
universalidade do problema hermenêutico; RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias e STEIN,
Ernildo. Dialética e Hermenêutica: Uma controvérsia sobre método em filosofia.
81
PRADO Jr. Bento. Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito? p.23.
82
PRADO, José Luiz Aidar. Teoria da sociedade ou teoria da comunicação? p.233.
83
Ibidem. p.236.
130

expert, o hermeneuta, o policial, o juiz, o professor, o carrasco? Será que não há


juízes psicóticos, filósofos perversos, mestres mentirosos? Quem garante isso?
A comunidade de comunicação como um todo? Que todo? Essa comunidade é o
Outro? Não há posição do simbólico que garante essa normalidade de usar a
linguagem.84

Amar a normalidade ao modo de uma garantia para o entendimento implica em


ficar demasiado atento à não-distorção, ao não-desfiguramento, à não-falha, ao
não-desvio, ao não-defeituoso dos atos linguísticos e à identidade dos
significados.85

O que podemos entender com as duas citações é que a separação realizada por
Habermas, que estabelece um normal-pragmático responsável pelas condições
universais da comunicação, e por sua vez, exclui do padrão o que é considerado
patológico, torna-se problemática em uma sociedade cujo mundo da vida está
submetido a uma razão instrumental/sistêmica. Fenômeno decorrente em uma sociedade
capitalista que se diferencia cada vez mais das sociedades mais tradicionais, lançando
um discurso disciplinar, reforçador de uma identidade única e imutável. Mas que, pelo
contrário, seria uma sociedade que estimularia a proliferação daquilo que Slavoj Žižek
denominou “estruturas normativas duais”86, onde os indivíduos estariam sendo
socializados por meio da internalização simultânea de duas estruturas normativas, que
embora contraditórias, servem como complementares uma à outra.
Sendo assim, mesmo que não tenha sido objeto de reflexão na época da escrita
de A estória do Severino e a História da Severina, parece-nos apropriado transcrever
aqui uma citação de um dos estudos mais atuais de Habermas, que apresenta de forma
sintética o impacto dessa transformação da organização capitalista:

Quanto maior for a complexidade da sociedade e quanto mais se ampliar a


perspectiva restringida etnocentricamente, tanto maior será a pluralização de
formas de vida e a individualização de histórias de vida, as quais inibem as
zonas de sobreposição ou de convergência de convicções que se encontram na
base do mundo da vida; e, na medida de seu desencantamento, decompõem-se
os complexos de convicções sacralizadas em aspectos de validade
diferenciados, formando os conteúdos mais ou menos tematizáveis de uma
tradição diluída comunicativamente. Antes de tudo, porém, os processos de
diferenciação social impõem uma multiplicação de tarefas funcionalmente
especificadas, de papéis sociais e de interesses, que liberam o agir comunicativo

84
PRADO, José Luiz Aidar. Teoria da sociedade ou teoria da comunicação? p.264. [grifos do autor]
85
Ibidem. p.266.
86
Essa estrutura dual se caracterizaria para Žižek a partir da articulação entre a lei simbólica que visa
normatizar, de forma explícita, as interações sociais a partir dos ideais de auto-regulação; e da lei do
supereu que visa impor uma forma de interação pautada na satisfação irrestrita. Cf. ŽIŽEK, Slavoj.
Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia.
131

das amarras institucionais estreitamente circunscritas, ampliando os espaços de


opção, o que implica uma intensificação das esferas do agir orientado pelo
interesse do sucesso individual.87

A colocação de Habermas, que apresenta os elementos que aproximaram


Ciampa dessas ideias e ao mesmo tempo abre espaço para mostrarmos o distanciamento
da teoria da ação comunicativa, indica um duplo discurso presente nas sociedades
complexas: 1) socializar os indivíduos para o mercado, nesse sentido promovendo a
semi-formação; 2) incentivar sua diferenciação, dada a necessidade de que se contemple
os diferentes produtos oferecidos pelo mercado. Dizemos que aqui Ciampa difere de
Habermas porque para este último o problema a ser superado é a proposição de uma
“regulamentação normativa de interações estratégicas”88, enquanto que para Ciampa o
problema está em demonstrar — sendo impossível viver sem personagens, quando
muito permanecemos repondo as mesmas — como ocorre a alterização, a qual em
última instância significa se tornar um ser-para-si. A questão também não está em
demonstrar as dificuldades de um desenvolvimento moral, em nível pós-convencional,
como postulado por Habermas, mas em explicitar como determinadas representações
identitárias anunciam e exigem um reconhecimento pós-convencional89. Novamente o
autor se aproxima das proposições meadianas e explica o processo em que o “eu” se
contrapõe ao “mim”, ou, utilizando as palavras do próprio Ciampa, como ocorre a
“negação” da negação de minha identidade pressuposta.

A negação da negação permite a expressão do outro outro que também sou eu:
isso consiste na alterização da minha identidade, na eliminação de minha
identidade pressuposta (que deixa de ser re-posta) e no desenvolvimento de
uma identidade posta como metamorfose constante, em que toda a humanidade
contida em mim se concretiza. Isso permite me representar (1o sentido) sempre
como diferente de mim mesmo (deixar de presentificar uma representação de
mim que foi cristalizada em momentos anteriores, deixar de repor a identidade
pressuposta).90

Na concepção de Ciampa, o indivíduo não é apenas um receptáculo inofensivo


que incorpora as predicações e as dramatiza no cotidiano, mas também propõe novas

87
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. p.44.
88
Ibidem. p.46. Nos estudos atuais, Habermas tem direcionado seus esforços para propor uma teoria do
direito que possa validar e concretizar sua teoria da ação comunicativa. Ele esclarece que o direito “é
entendido aqui somente sob o ponto de vista funcional da estabilização de expectativas de
comportamento.” Ibid. p.72.
89
Retomaremos essa questão em nosso itinerário empírico.
90
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.181.
132

personagens, se auto-determina; ele não é apenas um cidadão, um membro da


comunidade, ele reage também a essa comunidade e a transforma com suas reações. A
materialidade da identidade se concretiza na manifestação da vontade, que como
assinala Hegel, é “a infinitude ilimitada da abstração e da generalidade absolutas, o puro
pensamento em si mesmo”91. Assim como para Mead, entende-se que a ação espontânea
é capaz de criar um campo comunicacional que atualiza a tradição, a alterização pode
indicar uma possibilidade e uma tendência da conversão das mudanças quantitativas em
mudanças qualitativas. Destacamos que alterização foi um termo utilizado por Ciampa
para dar conta do conceito de “alternação” proposto principalmente por Peter Berger, o
qual considerava as metamorfoses miraculosas, radicais, uma exceção, uma migração de
universo simbólico, em que somente “os loucos ou raros gênios podem habitar sozinhos
em seus mundos de significados”92. Como assinala o próprio Berger:

A experiência daquilo a que demos o nome de ‘alternação’ (que é precisamente


a percepção de si mesmo diante de uma sucessão infinita de espelhos, cada um
dos quais transforma a imagem numa diferente conversão potencial) leva a uma
sensação de vertigem, uma agorafobia metafísica diante dos intermináveis
horizontes do possível ‘eu’.93

Alternação, nesse sentido, referia-se às transformações percebidas nas


identidades individuais que fugiam ao script pré-suposto. Podemos tomar como
exemplo o caso de usuários de drogas que deixam de representar essa atuação ao
converter-se como crente de uma determinada religião94. Para Berger, esse fenômeno
ocorreria porque a identidade de um determinado indivíduo migra de um universo
simbólico (universo simbólico do usuário de droga) radicalmente para outro (universo
simbólico do crente). Nesse sentido, a transformação não é entendida como processual,
ainda como, uma superação dos indivíduos, a metamorfose é entendida como migração
de universos simbólicos entre identidades estáticas, cristalizadas.
O conceito de alterização possibilita Ciampa trabalhar com o que denomina
mesmidade, que se refere à superação da personagem re-posta pelo indivíduo;
mesmidade, que pode ser compreendida como a expressão de um outro outro que
também sou eu, possibilitando a formulação dos projetos de identidade, cujos conteúdos

91
HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.13.
92
BERGER, Peter. Excurso: Alternação e Biografia. p.75-76.
93
Ibidem. p.75.
94
Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. Dependência de drogas e psicologia social: um estudo sobre o
sentido das oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da teoria de identidade.
133

não estejam prévia e autoritariamente definidos. Ciampa assinala que em sua forma
concreta essas identidades alterizadas se definem “pela aprendizagem de novos valores,
novas normas, produzidas no próprio processo em que a identidade está sendo
produzida, como mesmidade de aprender (pensar) e ser (agir)”95. Novamente, fica claro
que nessa perspectiva o desenvolvimento de normas intersubjetivas válidas e a
progressiva concretização da identidade humana depende das possibilidades de acesso à
liberdade de escolha do que seja uma vida boa para cada um. Alteridade e mesmidade
alinham-se à noção de desenvolvimento da liberdade subjetiva hegeliana96, reforçando a
idéia de que a identidade é uma questão política, contra as estratégias de dominação
que, como bem assinalou Slavoj Žižek97, têm como objetivo a produção de indivíduos
ideais, “cínicos privados”, que somente conseguem existir se o sistema está “aí” e se
pode contar com outros ingênuos que “acreditam de verdade”. Acreditamos que seja
interessante transcrever uma citação de Ciampa, um pouco longa, que parece sintetizar
muito bem as proposições trazidas até agora:

É esse o perigo que a adequada compreensão da questão da identidade humana


pode nos ajudar a prevenir. Não ter uma identidade humana é não ser homem.
Pois, como o singular materializa o universal na unidade do particular, quando
o particular (que no nosso caso é a identidade de um indivíduo dado, como
Severina) não concretiza essa unidade, o universal permanece abstrato, falso
(que no nosso caso é a sociedade capitalista). Tudo porque prevalece o interesse
da desrazão, a razão interesseira — que demonstra a irracionalidade substancial
do mundo capitalista em que vivemos, um mundo que não merece ser vivido,
pois ameaça a auto-conservação da espécie, na medida em que cada singular,
em vez de devir homem — como a metamorfose é inevitável —, devém não-
homem, inverte-se no seu contrário: em vez de proprietário das coisas, estas é
que o têm como propriedade; em vez de fazer uso das coisas, estas é que o
usam; em vez de trabalhar com suas ferramentas, com seus instrumentos, estes
é que trabalham com o homem como ferramenta, instrumentalizando-o.
Mas este mesmo mundo que o nega, é um mundo, produzido por ele; por mais
paradoxal que possa parecer, nosso mundo — que é um mundo desumanisador
— é um mundo humano, produzido pelo próprio homem, que assim se faz
homem (como produtor do mundo humano), ao mesmo tempo que se faz não-
homem (como produto do mundo desumanisador). A contradição, enquanto não
for superada, será sempre re-posta como mau infinito. O interesse da razão pede
a negação da negação para que a superação se dê, contendo a má infinidade,
estabelecendo a verdadeira infinitude humana que decorre, a um tempo, de ser o
homem um ser de responsabilidades e, em outro, um ser concreto; por isso,

95
CIAMPA, Antonio da Costa. Políticas de Identidade e Identidades Políticas. p. 241.
96
Cf. HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.16 et seq. É certo que quando Ciampa
trabalha com o conceito de alteridade em sua tese de doutorado o traz a partir das proposições
habermasianas, todavia, fazemos aqui a menção de Hegel e Mead por ser nesses autores que Habermas
irá buscar elementos para pensar essa questão.
97
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.17.
134

concretizável. Um concreto que não é concretizável não é possível. Aí está a


invencibilidade da substância humana, como produção histórica e material.98

Isto posto, resta-nos dizer que com a articulação da psicologia social de Mead, a
filosofia hegeliana e a Teoria Crítica habermasiana, fica evidente que a teoria de
identidade que Ciampa traçou em A estória do Severino e a História da Severina faz
parte de uma Psicologia Social Crítica. Do mesmo modo, acreditamos que tenha ficado
explícito que o propósito dessa teoria é evidenciar que a identidade deve ser
compreendida como metamorfose humana, que é, por sua vez, luta por reconhecimento
frente a uma sociedade capitalista que tende a reduzir a identidade a personagens
fetichizadas que negam sua totalidade em favor do universal dominante: o Capital. O
interesse científico dessa concepção envolve uma dimensão prática e teórica; “interesse
(prático) pela transformação do sistema social, interesse pela libertação da coerção;
interesse (teórico) pela clarificação da situação que se constitui nas condições sob as
quais vivemos”99.
O ponto de partida dessa teoria de identidade é constituído pelo princípio no
qual Ciampa coincidirá com Habermas: o entendimento do desenvolvimento da
sociedade dá-se pela compreensão de como os indivíduos se desenvolvem até o ponto
de se transformarem em pessoas, que podem “afirmar a própria identidade independente
dos papéis concretos e de sistemas particulares de normas”100, transformando-se de fato
em autores de suas histórias de vida. Nesse sentido, o processo de socialização e
individualização da identidade é entendido como sendo sempre algo que pode ser
observado na história da espécie. Em sua forma política está ligado também às formas
de reconhecimento mútuo, que são necessárias, senão inevitáveis para a constituição das
personagens, o que aproxima Ciampa das proposições de Honneth101 e nos permite dizer
que: a história da Severina é a história da luta pelo reconhecimento de sua humanidade e
pelo “tornar-se escrava de si mesma”. A identidade, portanto, é concretizada a partir de
um processo de significações estabelecidas com outros indivíduos, no jogo do
reconhecimento. Isso nos leva a admitir que se identidade manifesta-se a partir de uma
pluralidade de personagens ou se ela torna-se reduzida a uma personagem fetichizada,
ainda assim é pela relação de reconhecimento que ela se mantém estruturada.

98
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.227-228.
99
Ibidem. p.216. grifos do autor.
100
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. p.64.
101
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.
135

Essa concepção diferencia a proposição de Ciampa, para não dizer que


contrapõe, das leituras realizadas pela sociologia e psicologia que postulam a
problemática do não-reconhecimento da identidade, como é o caso Charles Taylor, para
quem é possível pensar em “crise de identidade”102. No caso da teoria de identidade
postulada por Ciampa, estaríamos mais próximos, mas não totalmente como será visto
posteriormente, da concepção habermasiana de distorção sistemática da linguagem, que
é produzida pela manutenção de uma racionalidade instrumental/sistêmica que negaria
as formas de consenso, uma vez que em tais casos, “ao menos um dos participantes
engana a si mesmo ao não se dar conta que está atuando a partir de uma atitude
orientada ao êxito, apenas na aparência uma ação comunicativa”103. Para Habermas, se a
“crítica das auto-ilusões e dos sintomas de uma forma de vida forçada ou alienada
mede-se na idéia de uma vida vivida de modo consciente e coerente”104, as patologias
devem ser medidas pela impossibilidade de viver uma “vida boa”105.
Ao relacionar a alterização como possibilidade de metamorfose, Ciampa
apresenta sua preocupação com a emancipação humana. Todavia, como a emancipação
não era objeto de reflexão da tese vemos que não encontramos em A estória do Severino
e a História da Severina uma discussão aprofundada sobre esse assunto, algo que
trabalhasse com o sentido que a idéia de emancipação ocupa em uma determinada
biografia. Esse aprofundamento será realizado alguns anos depois da publicação da tese
de doutoramento e será anunciado no XXVI Congresso Internacional da Sociedade
Interamericana de Psicologia – SIP, realizado em 1997, evento em que Ciampa fará a
apresentação das pesquisas e orientações que realizou nos dez anos que se passaram e
vai assinalar que têm se deparado com “uma variedade de formas de ‘metamorfose
humana’, [...] em que uma utopia emancipatória sempre surge, seja como meta visada,
seja como falta sentida”106.
Todavia, a temática da emancipação nas pesquisas de identidade passa ocupar a
cena principal após 1999, quando no Encontro Nacional da ABRAPSO, Ciampa propõe

102
TAYLOR, Charles. As fontes do Self: A construção da identidade moderna. p.44 et seq.
103
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I. p.425. Tradução nossa: “al
menos uno de los participantes se engaña a si mesmo al no darse cuenta de que está actuando en
actitud orientada al éxito y manteniendo solo una aparencia de acción comunicativa.”
104
Idem. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. p.41.
105
A idéia de “vida boa” apresentado por Habermas refere-se a forma de vida escolhida de forma não
coercitiva.
106
CIAMPA, Antonio da Costa. As metamorfoses da ‘Metamorfose Humana’: Uma utopia
emancipatória ainda é possível hoje? p.3.
136

ampliar a concepção identidade-metamorfose para o sintagma Identidade-Metamorfose-


Emancipação. É importante destacar que mais do que simplesmente incorporar a
palavra “emancipação” aos já associados identidade-metamorfose, essa proposição
indica que o autor assume que pesquisar identidade é buscar compreendê-la em toda sua
abrangência e complexidade (cognitivo, afetivo, estético, moral, sexual, corpóreo, motor
etc.). É considerar como pressuposto que o indivíduo, à medida que vai adquirindo a
capacidade de agir e de falar, vai também passando a se reconhecer e a ser reconhecido
como alguém que pode afirmar “eu” de si mesmo. Nessa guinada, incorpora-se a
perspectiva habermasiana de que a constituição do humano, a subjetividade do
indivíduo, é vista sempre articulada com a objetividade da natureza, a normatividade da
sociedade e a intersubjetividade da linguagem.

2 – Políticas de identidade e identidades políticas como conceitos necessários para


o entendimento do sentido emancipatório das identidades

A concepção de identidade, entendida como metamorfose em busca de


emancipação, que Ciampa tem desenvolvido desde A estória do Severino e a História
da Severina, pôde exercer uma influência significativa na produção teórica da
Psicologia Social brasileira; haja vista que esta é a centésima orientação realizada por
esse teórico. Como apresentamos até este momento, a corrente de pensamento
caracterizada principalmente por Berger, Luckmann, Freud, Marx, Mead, Hegel e
Habermas acrescentou ao sintagma identidade-metamorfose-emancipação a
possibilidade de elevar a teoria de identidade de uma categoria de análise a uma teoria
de alto teor político. Dissemos anteriormente que Ciampa rompe com a dicotomia
existente entre identidade pessoal e identidade social, pois considera que toda
identidade é social. Lembramos que Mead já havia alertado sobre isso ao postular que
“uma pessoa é uma personalidade porque pertence a uma comunidade, porque incorpora
as instituições da comunidade em sua conduta”107. O que não havíamos explorado na
teoria de Ciampa é a discussão que esse autor propõe ao discorrer acerca da relação dos
indivíduos com outros indivíduos, aquilo que denomina como identidade coletiva.

107
MEAD, George Herbert. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.162.
Tradução nossa: “a person is a personality because he belongs to a community, because he takes the
institutions of the community into his own conduct.”
137

Novamente remetemo-nos A estória do Severino e a História da Severina, e


lembramos que nesse trabalho a discussão da identidade coletiva não aparece como foco
principal. O problema político surge quando o uso dos relatos simbólicos, da memória
coletiva, narrativas de história de vida, aparecem como discursos a favor de uma
autodeterminação excludente e colocam à prova a solidariedade universal. Ciampa,
entretanto, retoma essas questões e avança frente às primeiras proposições
habermasianas e mostra a possibilidade do sintagma identidade-metamorfose-
emancipação avaliar o quanto determinadas identidades coletivas possuem uma
expressão emancipatória ou reacionária (reiterativa)108. Antes de discorrer acerca dessas
contribuições, daremos mais um passo atrás, trazendo algo não dito anteriormente que
julgamos imprescindível a uma reatualização da discussão de Ciampa sobre a luta pela
afirmação e pelo desenvolvimento de identidade coletivas.
Vimos que Ciampa assume algumas das preocupações de Habermas e que isso
possibilitou ampliar a concepção de identidade metamorfose para o sintagma
identidade-metamorfose-emancipação. Acreditamos que na apresentação dessa
apropriação da teoria habermasiana foi possível observar que este último assumiu uma
postura teórica na qual, distanciando-se da Psicanálise, passou a assumir que a
dimensão pragmática está na base de todas as funções da linguagem. O que pode não ter
ficado claro é o fato de que, por conseqüência, essa atitude levará esse autor a
desenvolver uma pragmática universal da linguagem cuja função é identificar,
reconstruir condições universais de possível compreensão mútua (Vertändingung) e
analisar as influências da racionalidade sistêmica como instância que pode neutralizar as
ações comunicativas, levando a uma colonização do mundo da vida. Entendendo a
complexidade da linguistic turn habermasiana, parece apropriado apresentar, mesmo
que de forma simplificada, como Habermas entende os conceitos de ação comunicativa,
lógica sistêmica e mundo da vida, para então avançarmos em nosso texto.
A teoria da ação comunicativa é resultado da leitura realizada da teoria dos atos
de fala postulada por John L. Austin109, que leva Habermas à conclusão de que nos atos

108
Para maior aprofundamento do que seria práxis reiterativa, conferir o trabalho: VASQUEZ, Adolfo
Sánchez. Filosofia da Práxis. De forma sintética podemos adiantar que para Vasquez a práxis pode se
apresentar de duas formas: como práxis reiterativa ou como práxis inovadora. A primeira é aquela que
segue com conformidade as leis traçadas a priori e cujos produtos seguem em conformidade com o
desenvolvimento social; a segunda, por sua vez, questiona as leis previamente determinadas e resulta
em um produto novo e único.
109
Cf. AUSTIN, John L. Cómo hacer cosas con palabras.
138

de fala constatativos estaria contida uma proposta que nos permitiria recorrer à fonte
experimental de onde o falante tira a certeza de que aquilo que afirma é verdade; e que
nos atos de fala regulativos encontramos apenas a proposta por parte do falante de
indicar, se necessário, o contexto normativo que lhe dá convicção de que sua expressão
está certa. Inaugura-se um ideal de normalidade para a linguagem, cujo pressuposto é
que o falante experiencia uma obrigação imanente aos atos de fala, mais concretamente,
a obrigação de provar a verdade, ou seja, demonstrar nas conseqüências de suas ações
o que realmente queria. Nessa perspectiva, a força de um argumento consiste em seu
conteúdo racional, explicitado em sua capacidade de convencimento dos indivíduos
envolvidos na negociação, em outras palavras, na capacidade de fazê-los compreender
as pretensões de validade contidas nos proferimentos postos em questão. Aqui aparece a
criticada “situação ideal de fala”110, em que pressupõe-se o exercício efetivado de uma
estrutura pragmática de comunicação, da prática comunicativa lingüística, isenta de
qualquer tipo de coação externa ou distorção interna111. E a partir dessa concepção,
Habermas designa a estrutura pragmática da comunicação, ou seja, toda a série de
caracteres formais que devem ser contidos nas argumentações discursivas geradoras de
consenso.
No que se refere ao gênero humano, essa concepção leva Habermas a defender
que diferente das espécies naturais, o humano emancipou-se da esfera da natureza por
ser dotado de um atributo inerente: a “competência comunicativa”, entendida como
“competência universal, ou seja, independente desta ou daquela cultura”112. Essa
competência comunicativa criaria todas as possibilidades para a individuação,
socialização e desenvolvimento cultural dos indivíduos. Nesse sentido, importa-lhe
demonstrar que o emprego lingüístico “estratégico”, ou seja, a comunicação que
seguiria uma orientação não para o “entendimento”, mas para o “sucesso”, para o
“conflito”, para a “competição”, está numa relação de dependência com o emprego
lingüístico de “orientação para o entendimento”. Em outras palavras, a Habermas

110
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa. Tomo I. p.46.
111
Sérgio Paulo Rouanet escreve que a situação ideal de fala repele tanto as ideologias como as neuroses,
elementos que prejudicariam a aquisição intersubjetiva de consenso por parte de sujeitos lingüística e
interativamente competentes. Cf. ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. p.294. José
Luiz Aidar, por sua vez, critica essa idealidade por achar que ao não considerar os elementos
inconscientes presentes no discurso, Habermas estaria sendo de certa maneira ingênuo. Cf. PRADO,
José Luiz Aidar. Teoria da Sociedade ou Teoria da Comunicação? p.213 et seq.
112
HABERMAS, Jürgen. Notas sobre el desarrollo de la competencia interactiva. Tradução nossa:
“competencia universal, es decir, independiente de ésta o aquella cultura”. p.161.
139

importa demonstrar que, apesar de empregos lingüísticos estratégicos, qualquer


indivíduo que pretender participar num processo através do qual se procura chegar a um
entendimento, não poderá evitar de apresentar as seguintes (e, no fundo, precisamente
as seguintes) pretensões de validade: a) enunciar de uma forma inteligível; b) dar (ao
ouvinte) algo que compreenderá; c) fazer-se a si mesmo desta forma, entender; e d)
atingir o seu objetivo de compreensão junto ao outro.
A aposta habermasiana está na crença de que essas pretensões de validade
necessárias à ação comunicativa são intranscendíveis e universais, uma vez que não
podem ser negadas nem contestadas sem cair em contradição performativa113. O que
não significa que isso seria uma garantia de entendimento a priori. O próprio Habermas
assinala que “o significado da validade [do discurso] reside no seu valor em termos de
reconhecimento, ou seja, na garantia de que o reconhecimento intersubjetivo pode ser
atingido se as condições forem favoráveis”114. Isso significa assumir que toda pretensão
de validade exige a tomada de posição sim/não115 por parte dos destinatários. A questão
estaria em verificar quatro pretensões de validade, presentes em toda ação
comunicativa, que devem ser apresentadas simultaneamente e reconhecidas como
justas, embora não possam ser tematizadas ao mesmo tempo. A esse respeito Habermas
escreve:

A universalidade das pretensões de validade inerentes à estrutura do discurso


poderá talvez ser explicada através da referência ao lugar sistemático da
linguagem. Esta constitui um meio através do qual falantes e ouvintes fazem
certas demarcações fundamentais: um indivíduo demarca-se (i) de um meio-
ambiente que objectiva numa atitude de terceira pessoa típica de um
observador; (ii) de um meio-ambiente com o qual se coloca em conformidade
ou se afasta na atitude performativa de um participante; (iii) da sua própria
subjectividade, que expressa ou esconde na atitude de primeira pessoa; e,
finalmente, (iv) de um meio da própria linguagem. Para esses domínios da
realidade, propusemos as de alguma forma arbitrariamente escolhidas
designações de natureza externa, sociedade, natureza interna e linguagem.116

A citação assinala que o lugar sistemático da linguagem, de onde surgem as


pretensões de validade dos discursos, está relacionado a quatro tipos de relação com a
realidade, assumindo funções pragmáticas correspondentes de representação,

113
Para maiores detalhes acerca da contradição performativa, consultar o trabalho: Idem. Consciência
moral e agir comunicativo. p.113-114.
114
HABERMAS, Jürgen. O que é a Pragmática universal? p.15. [grifos do autor]
115
Idem. Pensamento pós-metafísico. p.145.
116
Idem. O que é a Pragmática universal? p.98. [grifos do autor]
140

estabelecimento de relações interpessoais e expressão de subjetividade específicas. Por


natureza externa o autor compreende que pode estar explicitamente declarado no
conteúdo dos proferimentos — a objetividade aparece aqui como a medida para avaliar
a veracidade do discurso. A partir do contato com a realidade social (sociedade), tem-se
a possibilidade de incorporar a normatividade, o que possibilitaria questionar as normas
e valores institucionalizados. Do mesmo modo, para Habermas, na natureza interna dos
indivíduos manifesta-se o discurso por meio das intenções do falante. Nesse nível os
indivíduos poderiam avaliar as condições de “correção” (que é a pretensão com a qual
avaliamos a validade de uma expressão em termos normativos) e “veracidade” (que é a
pretensão com que afirmamos a validade da intenção expressa nessa mesma expressão).
Finalmente, por intersubjetividade da linguagem (linguagem), o autor entende o caráter
como a capacidade de exercer os atos de fala por meio de significados idênticos, que
garantiria o reconhecimento de pretensões universais. Nesse último item a pretensão de
validade é garantida pelo grau de compreensibilidade desenvolvida entre os falantes.
A partir dessas considerações em sua Teoria da Ação Comunicativa, Habermas
defenderá que das relações intersubjetivas estabelecidas entre indivíduos lingüística e
interativamente competentes, um verdadeiro processo de “reprodução cultural,
integração social e socialização” é instituído117. Nesse processo verdadeiro as
“estruturas simbólicas do mundo da vida se reproduzem por meio da continuação do
saber válido da estabilização da solidariedade dos grupos e da formação de atores
capazes de responder por suas ações”118. Em outras palavras, a ação comunicativa é
entendida como “um processo cooperativo de interpretação, em que os participantes se
referem simultaneamente a respeito de algo no mundo objetivo, no mundo social e no
mundo subjetivo”119, visando atingir o entendimento por meio de um “reconhecimento
intersubjetivo da pretensão de validade” das emissões proferidas — encontra o seu
complemento no mundo da vida (Lebenswelt)120. Este último, por sua vez, possui três

117
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.
p.196.
118
Ibidem. p.196. Tradução nossa: “estructuras simbólicas del mundo de la vida se reproducen por vía de
la continuación del saber válido de la estabilización de la solidaridad de los grupos y de la formación
de actores capaces de responder de sus acciones.”
119
Ibidem. p.171. Tradução nossa: “la acción comunicativa se basa en un proceso cooperativo de
interpretación en que los participantes se refieren simultaneamente a algo en el mundo objetivo, en el
mundo social y en el mundo subjetivo”.
120
Habermas escreve que introduz o mundo da vida “privisonalmente, y, por cierto, desde la perspectiva
de una investigación reconstrutiva. Constituye un concepto complementario del de acción
comunicativa.”
141

características básicas: a) tem o caráter de “comunidade em sentido radical”, b) possui


um a priori social inscrito intersubjetivamente, e c) forma um contexto em que ele
próprio, sem limites, delineia limites.121 Isso ocorre porque o mundo da vida, tal como
descreve Habermas, é o lugar transcendental:

(...) em que falante e ouvinte se encontram, onde eles podem reciprocamente


colocar a pretensão de que suas declarações se adequam ao mundo (objetivo,
social ou subjetivo) e onde eles podem criticar e conformar a validade de seus
intentos, solucionar seus desacordos e chegar a um acordo. Numa sentença: os
participantes não podem in actu assumir em relação à linguagem e à cultura a
mesma distância que assumem em relação à totalidade dos fatos, normas ou
experiências concernentes sobre os quais é possível um mútuo entendimento.122

Enquanto lugar transcendental, o mundo da vida se manifesta nas infinitas


possibilidades de interação lingüísticas empreendidas socialmente, podendo ser
entendido como um “horizonte” em que os agentes comunicativos se movem “desde
sempre”123. Sendo assim, quando pelo menos dois indivíduos lingüística e
interativamente competentes estiverem presentes travando uma relação dialógica com o
objetivo de alcançar um entendimento sobre algo no mundo, um fragmento do mundo
da vida emergirá, constituindo para eles aquilo que apontamos anteriormente como
“situação ideal de fala”, que é para Habermas “o centro de seu mundo da vida”124. Ao
fundamentar-se na prática comunicativa cotidiana, o conceito habermasiano de mundo
da vida mostra que a ação comunicativa, “sob o aspecto funcional do entendimento (...)
serve à tradição e à renovação do saber cultural; sob o aspecto de coordenação da ação,
serve à integração social e a criação da solidariedade; e, finalmente, sob o aspecto da
socialização, serve à formação de identidades pessoais”125. O mundo da vida
apresentado por Habermas é assim uma espécie de pano de fundo (background)

121
Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.
p.187-188.
122
Ibidem. p.179. Tradução nossa: “en que hablante y oyente se salen el encuentro; en que pueden
plantearse reciprocamente le pretención de que sus emisiones concuerdan con el mundo (con el mundo
objetivo, con el mundo subjetivo y con el mundo social); y en que pueden criticar y exhibir los
fundamentos de esas pretensiones de validez, resolver sus disentimientos y llegar a un acordo. En una
palabra: respecto al lenguaje y a la cultura los participantes no pueden adoptar in actu la misma
distancia que respecto a la totalidad de los hechos, de las normas o de las vivencias, sobre que es
posible el entendimiento.
123
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.p.169.
124
Ibidem. p.175.
125
Ibidem. p.196. Tradução nossa: “bajo el aspecto funcional de entendimiento, la acción comunicativa
sierve a la tradición y a la renovación del saber cultural; bajo el aspecto de coordinación de la acción,
sirve a la integración social y a la creación de solidaridad; y bajo el aspecto de socialización,
finalmente, sirve a la formación de identidades personales.”
142

compartilhado intersubjetivamente. Estruturado a partir de três componentes que


garantem a estabilidade dos processos de socialização e individualização, mediadas pela
linguagem. São eles: a Cultura, compreendida como reserva do conhecimento válido
alimentada pelas interpretações lingüísticas e pela tensão entre os conteúdos da tradição
e da modernidade; a Sociedade, composta por normas, pelas quais os participantes de
processos comunicativos regulam seu pertencimento a grupos sociais; e a
Personalidade126, vista como um conjunto de motivações que inspiram o indivíduo à
ação e é capaz de pruduzir uma identidade, “tão sólida que permite dominar com pleno
sentido de realidade as situações que surgem em seu mundo da vida”127. O mundo da
vida, descrito por Habermas, é o espaço de continuidade e renovação da tradição, ou
seja, “da possibilidade de ordenações legítimas estabilizarem as identidades de grupo e
da socialização dos novos membros que surgem a cada geração, constituindo suas
identidades pessoais”128.
A esta altura se torna evidente que o conceito de mundo da vida aparece em
Habermas como elemento necessário para a compreensão constitutiva da linguagem, da
formação identitária e reprodução social. Todavia, Habermas atenta para o fato de que
devido à crescente racionalização e burocratização da vida, apontada nos trabalhos de
Max Weber e explorada por Herbert Marcuse129, os indivíduos participantes desse
mundo da vida também estariam sujeitos a intervenções sistêmicas que, a partir das
tentativas de neutralização do mundo da vida pela ação instrumental, distorceriam a
comunicação e produziriam as patologias da modernidade. A intervenção sistêmica é

126
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.p.196.
127
Ibidem. p.202. Tradução nossa: “tan sólida que les permite dominar con pleno sentido de la realidad
las situaciones que surgen en su mundo de la vida.”
128
PRADO, José Luiz Aidar. O pódio da normalidade: considerações sobre a teoria da ação
comunicativa e a psicologia social. p.152.
129
O ensaio de Herbert Marcuse, apresentado na Conferência do XV Congresso de Sociólogos da
Alemanha, em Heidelberg, no ano de 1964, intitulado: Industrialização e Capitalismo na obra de
Max Weber, aprofunda essa discussão e inaugura o conceito de razão instrumental, que será resgatado
por Habermas em Ciência e Técnica como “Ideologia” e posteriormente utilizado como elemento
central na construção da Teoria da Ação Comunicativa. De acordo com Herbert Marcuse, o processo
de racionalização descrito por Max Weber não teria implantado a racionalidade propriamente dita, mas
sim, “uma forma determinada de dominação política oculta”. Nesse sentido, a “ação racional referente
a fins” derivada deste tipo de racionalidade nada mais é do que “exercício de controle”. Como explica
Jessé Souza, para Max Weber existe uma diferença entre racionalismo e racionalidade. Esta última
significa “o imperativo de qualquer existência humana de tornar-se uma personalidade na medida em
que a corrente de decisões última que dá, em última instância, o sentido da individualidade de uma
vida, passa a ser conscientemente executada e mantida.” Cf. SOUZA, Jessé. Patologias da
modernidade: um diálogo entre Habermas e Weber. p.69. Racionalismo, por sua vez, “significa a
forma, culturalmente singular, como uma civilização específica, e por extensão também os indivíduos
que constituem sua maneira de pensar e agir a partir desses modelos culturais, interpreta o mundo.”
SOUZA, Jessé. O mundo desencantado. p.8
143

interpretada por Habermas como aquilo “que desconecta a coordenação da ação da


formação linguística comunicativa”, neutralizando-a130, em oposição à integração
social, que proporciona aos participantes o alcance do consenso. O autor reforça que o
sistema pode ser compreendido como o locus das esferas econômica e burocrática, cuja
característica principal é ter como meios de controle o dinheiro e o poder, dois
elementos que tomam o lugar da linguagem nos processos de entendimento, sendo
responsáveis pela tecnicização do mundo da vida131, que, de acordo com a análise
realizada por Habermas, seria hegemônica na atualidade132. A justificação ideológica do
poder, exercido não mais pelo discurso metafísico (como ocorria na Idade Média), nem
pelo sistema de parentesco, mas sim por dispositivos muito mais superiores, são
realizados pelos analistas simbólicos, funcionários públicos suscetíveis de gozarem de
privilégios políticos e econômicos133.
A tarefa da Teoria Crítica habermasiana passa a ser, portanto, apreender o modo
como esta diferenciação entre mundo da vida e lógica sistêmica se efetiva. A crítica se
direciona para o telos do entendimento, ao ponto de Habermas afirmar que as patologias
da sociedade surgem quando os meios a-linguísticos dinheiro e poder — que exercem
seu controle sobre a reprodução social sem recorrer às interações linguísticas — passam
a atacar o espaço intersubjetivo que emerge nas relações entre sujeitos linguística e
interativamente competentes para assim instrumentalizá-lo, configurando uma
verdadeira violência estrutural.

As coações provenientes da reprodução que instrumentalizam o mundo da vida,


sem reduzir a aparência de autarquia deste mundo, têm, por assim dizer, que
ficar ocultas nos poros das ações comunicativas. O resultado disso é uma
violência estrutural que, sem se manifestar como tal, se apodera da forma de

130
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.
p.258. Tradução nossa: desconectan la coordinación de la acción de la formación lingüística de
consenso, neutralizándola”. [grifos do autor] Em outro trabalho, Habermas vai escrever que por via
sistêmica o mundo da vida, que serve como pano de fundo, é neutralizado, principalmente “quando se
trata de vencer situações que caíram sob imperativos do agir orientado pelo sucesso; o mundo da vida
perde sua força coordenadora em relação à ação, deixando de ser fonte garantidora do consenso.”
Idem. Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos. p. 97
131
Idem. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista. p.259.
132
De acordo com o diagnóstico habermasiano, o mundo da vida sofre uma forte influência de uma razão
instrumental que predominaria no "sistema", isto é, nas esferas da economia e da política (Estado) que,
no processo de modernização capitalista, acabou dominando e "colonizando" o mundo da vida. Os
termos ‘pano de fundo’ , ‘primeiro plano’ e ‘recorte do mundo da vida relevante para a situação’, só
fazem sentido se adotarmos a perspectiva de um falante que deseja entender-se com outro sobre algo
no mundo e que pode apoiar a plausibilidade da oferta de seu ato de fala sobre uma massa de saber não
temático, partilhado intersubjetivamente.
133
Cf. Ibidem. p.232 et seq.
144

intersubjetividade do entendimento possível. A violência estrutural se exerce


através de uma restrição sistemática da comunicação.134

Habermas entende que na sociedade capitalista, a instrumentalização e a


violência estrutural do mundo da vida são processos indissociáveis: ambas
desembocariam na redução e ajustamento da prática comunicativa a ações meramente
cognitivo-instrumentais. Viveríamos uma colonização do mundo da vida por
imperativos de subsistemas autonomizados, que não estando mais implicitamente
presentes na sociedade de forma ideológica, invadem de fora o mundo da vida —
“como senhores coloniais em uma sociedade tribal”135 — e impõem a assimilação da
dominação. O resultado dessa colonização é evidente: uma vez que o potencial
comunicativo é neutralizado, as interpretações cognitivas, as expectativas morais, as
expressões de valores, as organizações comunitárias e solidárias, tem de formar um todo
racional por meio de duas tendências interligadas e mutuamente potencializadas que
conduzem “a uma racionalização unilateral ou de uma coisificação da prática
comunicativa cotidiana”136. De um lado, uma reificação conduzida sistematicamente e,
de outro, um empobrecimento cultural.
Entender a ação instrumental como ação não-social leva o autor a afirmar que
“nas deformações do mundo da vida, sintomas de rigidificação combinam-se com
sintomas de devastação”137. Sendo que a primeira tendência é resultado da
racionalização unilateral da comunicação cotidiana, trazendo para o mundo da vida uma
ausência de conteúdo normativo e de tradições vivas138; a segunda, por sua vez, o
resultado da penetração das formas de racionalidade econômica e administrativa no
interior das áreas de ação139. É importante salientar que esse modelo de análise não se
restringe à análise da relação entre dois indivíduos. No contexto institucional, Habermas

134
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.
p.264. Tradução nossa: “las coacciones dinamanantes de la reproducción que instrumentalizan al
mundo de la vida sin menguar la apariencia de autarquía de esse mundo tiene, por así decirlo, que
ocultarse en los poros de la acción comunicativa. El resultado de ello es una violencia estructural que,
sin hacerse manifesta como tal, se apodera de la forma de la intersubjetividad del entendimiento
posible. La violencia estructural se ejerce a través de una restricción sistemática de la comunicación.”
[grifos do autor]
135
Ibidem. p.502.
136
Ibidem. Loc. cit. Tradução nossa: “a una racionalización unilateral o a una cosificación de la prática
comunicativa cotidiana”.
137
Ibidem. p.464. Tradução nossa: “en las deformaciones del mundo de la vida se aúnan síntomas de
anquilosamiento com sintomas de desertización”.
138
Ibidem. p.465.
139
Ibidem. p.469.
145

também enxerga a possibilidade de criação e manutenção de falsos consensos, sendo


necessária uma certa atenção a esse aspecto. Nesse último caso, a questão consiste,
precisamente, em saber como as formas de representação e as práticas de instituições
contemporâneas afetam os ânimos:

(...) se as encenações simbólicas conseguem criar obrigatoriedades através de


suas ficções normativas, ou se elas apenas reforçam pretensões de validade
normativas, ou seja, contribuem para que certas ideias obtidas de modo
racional lancem raízes nos motivos e na consciência dos participantes.140

Essa preocupação justifica-se na medida em que Habermas entende que é


justamente nos espaços públicos, no mundo da vida, que o indivíduos utilizam-se da
tradição, das instituições, para estabelecerem relações comunicativas. E uma vez que
essas instituições, de forma ideológica e/ou perversa, distorçam e impossibilitem a ação
comunicativa, tem-se a semiformação de indivíduos, que “abandonados uns dos outros”,
“tornam-se susceptíveis de serem doutrinados e postos em movimento por chefes
plebiscitários e ser movidos a ações de massa”141. É certo que ao assumir essa postura
teórico-metodológica Habermas apresenta vários problemas, tornando-se alvo de várias
críticas. Dentre elas, as realizadas por Axel Honneth.142
Honneth concorda com a análise realizada por Habermas dos trabalhos de
Adorno e Horkheimer — que atribuíram à racionalidade um caráter exclusivamente
“instrumental” —, considerando como não adequados para os objetivos de uma teoria
crítica da sociedade que se propusesse a transformar as condições sociais. Todavia,
Honneth não concordará plenamente com o resultado da crítica elaborada por Habermas
aos problemas identificados nos autores da primeira geração. A ênfase na colonização
do mundo da vida pela lógica sistêmica e no ideal utópico de consenso livre de coerção
(entendimento) teriam distanciado Habermas da temática central da Teoria Crítica: o
conflito social. Na divisão entre sistema e mundo da vida, o autor da teoria da ação
comunicativa teria cedido demais à teoria dos sistemas, justificando a racionalidade
instrumental como necessária para a coordenação da ação social e reprodução material

140
HABERMAS, Jürgen. Expressão simbólica e comportamento ritual: uma visão retrospectiva
sobre Ernst Cassirer e Arnold Gehlen. p. 86.
141
Idem. Más allá del Estado Nacional. p.161. Tradução nossa: “resultan susceptibles de ser
adoctrinados y puestos en movimiento por cadillos plebiscitarios y ser movidos a acciones de masas.
142
Axel Honneth é conhecido como o mais novo herdeiro frankfurtiano, representando a terceira geração
da Teoria Crítica. Foi assistente de Habermas entre 1984 e 1990, atualmente é professor titular de
filosofia social da Universidade Goethe e diretor do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt.
146

das sociedades complexas, gerando, segundo Honneth, um déficit sociológico: uma


concepção de sociedade que tem duas formas de racionalidade e nenhuma mediação
entre elas143.
Honneth assinala ainda, e concordamos com ele nesse sentido, que a distinção
entre “sistema” e “mundo da vida” é ambígua, oscilando entre uma concepção
meramente analítica e outra “real” entre as esferas sociais, ao ponto de parecer, em
certos momentos da teoria da ação comunicativa, que o autor se refere a dois mundos
distintos. Como conseqüência, no modelo habermasiano, “a dinâmica de transformação
e as patologias sociais passam a ser descritas de forma muito abstrata, mecânica e
funcional”144. O modelo consegue explicar como o mundo da vida pode ser colonizado
pelos imperativos sistêmicos, entretanto, não consegue explicar como isso se reflete nas
experiências dos indivíduos. Isso ocorreria, segundo Honneth, porque Habermas não se
atentou para a dimensão do conflito, que, como já vimos, é entendido por Habermas
como uma violação do “ponto de vista moral” estabelecido entre os falantes e uma
problemática a ser enfrentada pela ética do discurso que busca o ideal de fala (consenso
livre de coerção).

Para desfazer o déficit sociológico, a saída apontada por Honneth é a de


desenvolver o paradigma da comunicação mais em direção aos pressupostos
sociológicos ligados à teoria da intersubjetividade, no sentido de explicitar as
expectativas morais de reconhecimento inseridas nos processos cotidianos de
socialização, de construção da identidade, interação social e reprodução
cultural. Portanto, o paradigma da comunicação, para Honneth, teria de ser
desenvolvido não nos termos de uma teoria da linguagem, mas a partir das
relações de reconhecimento formadoras de identidade. A dinâmica da
reprodução social, os conflitos e a transformação da sociedade poderiam ser
mais bem explicados a partir das pretensões de identidade individual e
coletiva.145

143
Cf. NOBRE, Marcos. Luta por recohecimento: Axel Honneth e a teoria crítica. José Luiz Aidar
Prado realizou uma crítica que segue nesse sentido. Esse autor entende como complicada a divisão
realizada por Habermas entre sistema e mundo da vida, porque este último não teria explicado como
ocorrem os fluxos entre os dois mundos. “A crítica resulta ancorada num paradigma comunicativo que
precisa, para sua definição, de um conceito de ‘uso normal da linguagem’, posição esta que permitiria
a correlação de desvios ideológicos. Essa dupla face da razão, fatiando a sociedade em mundo da vida
e sistema, por um lado, sem especificar de modo satisfatório a relação de negociação diante dos
conflitos entre esses mundos, e a idealização da ação comunicativa, [por outro], fazem com que a saída
habermasiana seja extremamente problemática.” PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do
intelectual: do extrato comunicável ao ato impossível. p.88.
144
WERLE, Denílson Luis & MELO, Rúrion Soares. Teoria crítica, teorias da justiça e a
“reatualização” de Hegel. p.12.
145
Ibidem. p.12-13.
147

A base da interação social, deste modo, desloca-se da proposição habermasiana


de que no mundo da vida a linguagem é o télos do entendimento, para a proposição
elaborada por Honneth de que a linguagem é o télos do reconhecimento, uma vez que
cada vez mais vemos os indivíduos se orientando apenas por “esferas juridicamente
institucionalizadas das práticas comunicativas”146. Para neste momento não nos
determos nessa problemática, faremos uma maior discussão da teoria de luta por
reconhecimento elaborada por Honneth mais adiante. Vale lembrar que com as
considerações feitas até esta altura estamos buscando mais subsídios para discutir as
expressões emancipatórias ou reacionárias de determinadas identidades coletivas.
Daremos agora seguimento apresentando alguns elementos apresentados por Habermas
em Direito e Democracia I e II, uma vez que nesses textos o autor retoma a temática da
esfera pública, abandonada desde a publicação de Mudança estrutural da esfera
pública147, e parece oferecer para Ciampa motivos para desenvolver o que ele denomina
ser a tensão entre as políticas de identidade e as identidades políticas.
Em Direito e Democracia II, Habermas assume que até então havia tratado a
esfera pública como se fosse uma estrutura comunicacional enraizada no mundo148. Ao
espaço público político era creditado o rótulo de caixa de ressonância dos problemas
elaborados pelo sistema. Todavia, a autor alerta para o fato de que a partir do momento
em que passamos a viver em sociedades democráticas, a esfera pública deve superar sua
condição de identificadora dos problemas para assumir a tarefa de “tematizá-los,
problematizá-los e dramatizá-los de modo convincente e eficaz, a ponto de serem
assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar”149. Habemas retoma aqui a
perspectiva ampla de sociedade possibilitadora da constituição do Eu, como foi
desenvolvida por Mead, na qual o processo social promotor de experiência e condutas
que um grupo pode colocar em prática é representado diretamente pela sua própria
experiência comunicada entre os distintos membros150. A esfera pública, nesse sentido,
é o espaço existente em que há mais do que aquilo o próprio Habermas, em sua Teoria
da Ação Comunicativa, denomina de lógica sistêmica, “pois mesmo que seja possível

146
HONNETH, Axel. Patologias da liberdade individual. p.90.
147
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma
categoria da sociedade burguesa.
148
Idem. Direito e Democracia. Volume II. p.91 et seq.
149
Ibidem. p.91.
150
MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.235 et
seq.
148

delinear seus limites internos, exteriormente ela [a esfera pública] se caracteriza através
de horizontes abertos permeáveis e deslocáveis”151, e assemelha-se ao Mundo da Vida,
na medida em que “se reproduz através do agir comunicativo”152.

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a
comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos
comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de condensarem-se em
opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.153

A esfera pública, nessa concepção, torna-se o espaço de debate e validação dos


temas advindos do mundo da vida, o qual, como sabemos, sofre fortes investidas da
lógica sistêmica. Um espaço de luta por influência, não somente de determinadas
instituições, mas também de indivíduos e especialistas, os quais, como Habermas
reconhece, “conquistaram sua influência através de esferas públicas especiais (por
exemplo, a autoridade de membros de igrejas, a notoriedade de literatos e artistas, a
reputação de cientistas, o renome dos astros do esporte, do showbusiness, etc.)”154.
Nesse ponto o espaço público se estende para além do contexto das interações simples
ao ponto de induzir o público privado, que “tem de ser convencido através de
contribuições compreensíveis e interessantes sobre temas que eles sentem como
relevantes”155. Novamente recorremos a Mead, que já alertava para a possibilidade de
uma fusão entre o “mim” e o “eu”, que daria a sensação de que estamos fazendo parte
de uma mesma comunidade156. Para Mead isso ocorreria pelo fato de dependermos de
um outro generalizado, ou instituição, para podermos adotar atitudes socialmente
válidas: “o ‘outro organizado’ presente em nós mesmos, é, pois, uma comunidade de
um diâmetro estreito”157. Ainda citando Mead, e finalmente abrindo espaço para as
proposições de Ciampa acerca das identidades coletivas:

Em geral, o Self tem respondido definitivamente à organização da reação social


que constitui a comunidade enquanto tal; o grau em que o Self se desenvolve

151
HABERMAS, Jürgen. op.cit. p.92.
152
Ibidem. Loc. cit.
153
Ibidem. Loc. cit.
154
Idem. Direito e Democracia. Volume II. p.95-96.
155
Ibidem. p.96. [grifos do autor]
156
MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.260 et
seq.
157
Ibidem. p.265. Tradução nossa: “The ‘organized other’ present in ourselves is then a community of a
narrow diameter.”
149

depende da comunidade, do grau em que o indivíduo provoca em si mesmo esse


grupo de reações institucionalizadas.158

A esfera pública, ou sociedade, aqui apresentada, parece ser a arena em que


Ciampa discute a luta pela afirmação e pelo desenvolvimento de identidades coletivas,
que tanto podem controlar as condições de vida de seus membros quanto podem mediar
e potencializar o desenvolvimento de identidades políticas. Em outras palavras,
articulado de forma dialética, o conceito de identidade política desenvolvido por
Ciampa, por um lado, permite verificar que mesmo dentro de grupos que lutam pelo
reconhecimento legítimo de determinadas políticas de identidade, existem expressões de
opressão à identidade, “políticas de administração competente” citadas por Žižek159, que
aparecem nos momentos em que a individualidade de determinado sujeito é massacrada
pelo grupo que não suporta a não submissão à ideologia grupal, que caso fosse
realizada, resultaria na própria totalidade desse mesmo sujeito. Como bem assinala
Almeida, nessas situações, “as políticas de identidade obedecem a razões político-
estratégicas de determinados atores sociais, direcionando os relacionamentos entre os
indivíduos e entre os diferentes grupos que integram uma dada sociedade”160. Por outro
lado, o conceito de identidade política permite entender as metamorfoses que acontecem
nesses mesmos grupos e enxergá-los como espaços democráticos também, que se
metamorfoseiam na medida em que os interesses individuais mobilizam os grupais.
Como o próprio Ciampa escreve, ao assumirmos essa perspectiva:

Sempre é possível perguntar se movimentos que levam a novas identidades


podem preservar o espaço político como arena de questionamento e tematização
de questões individuais e coletivas, sem que esses movimentos também
incrementem maior racionalização do poder e da dominação. Haveria uma
dialética inevitável entre progresso e desenvolvimento, de um lado e, de outro,
opressão e exploração? Querer desenvolver projetos democráticos não exige
articular a construção e o reconhecimento de novas identidades com a auto-
organização jurídica de cidadãos livres e iguais?161

158
MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.265.
Tradução nossa: “In general, the self has answered definitely to that organization of the social response
which constitutes the community as such; the degree to which the self is developed depends upon the
community, upon the degree to which the individual calls out that institutionalized group of responses
in himself.”
159
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real. p.25
160
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.131.
161
CIAMPA, Antonio da Costa. Políticas de Identidade e Identidades Políticas. p.134.
150

As proposições de Ciampa alinham-se nesse ponto à crítica realizada por


Habermas às identidades nacionais, a qual, como observamos, aponta para a idéia de
que esse tipo de identidade é uma clausura, que subestima o potencial inovador do
presente; são apenas os resultados de reivindicações das tradições que pretendem
renovar o passado, cujo sentido é o problema da não criação autônoma e livre. Em
geral, essas políticas de identidade são, “por conseqüência, políticas regulatórias que
visam cristalizar os papéis e os lugares sociais, assim como as correspondentes
identidades dos indivíduos”162. Vale lembrar que quando trabalhamos as políticas de
identidade como instrumento de regulação, estamos nos referindo às situações onde
essas políticas são utilizadas de forma ideológica para a manutenção de uma
determinada realidade instituída, não possibilitando a expressão da subjetividade
individual. Fazer esse apontamento é importante porque permite que encontremos essas
formas de regulação até mesmo em espaços considerados revolucionários, como é o
caso dos movimentos sociais que ao invés de desestruturar o capital trabalha
contraditoriamente em favor de seu desenvolvimento. Uma boa discussão a esse
respeito é realizada por Žižek no ensaio em que discute as condições do
multiculturalismo na sociedade capitalista. Para Žižek, inclusive, é fácil comprovar que
a promoção de um discurso essencialista sobre a identidade individual realizada pelos
coletivos intervém exclusivamente na produção ideológica e na dimensão cultural da
vida política sem desestabilizar o capital.

Uma vez mais, a necessidade do fracasso é estrutural: o problema não é


simplesmente que, devido à complexidade empírica da situação, nunca haverá
uma união de todas as lutas “progressistas” particulares, que sempre ocorrerão
cadeias de equivalências “erradas” – por exemplo, o encadeamento da luta pela
identidade étnica afro-americana à ideologia patriarcal e homofóbica; trata-se
ao contrário, de que as emergências dos encadeamentos “errados” estão
alicerçadas no próprio princípio estruturante da política “progressista” atual de
criação de “cadeias de equivalências”: o próprio âmbito da multidão de lutas
particulares, com seus deslocamentos e condensações em constante mutação, é
sustentado pela “repressão” do papel chave da luta econômica – a política de
esquerda em relação às “cadeias de equivalências” entre a pluralidade de lutas é
estritamente correlativa ao abandono tácito da análise do capitalismo como
sistema econômico global e à aceitação das relações econômicas capitalistas
como marco inquestionável.163

162
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.132.
163
ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.36.
151

O desafio, que é evidente, surge quando questionamos se os discursos dos


movimentos sociais, espaços pretensamente revolucionários etc., podem desestabilizar
formas ideológicas sem eliminar o propósito prático da auto-determinação. Percebemos
aqui a necessidade do sentido de comunidade para a constituição da identidade, pois,
como Mead havia ensinado, a identidade do “eu” é resultado da identidade coletiva e do
reconhecimento do outro. Ciampa também esclareceu essa questão quando aponta que a
identidade somente se torna possível pelo reconhecimento da humanidade do bicho-
humano, de sua identidade pressuposta que o incorpora ao discurso social. Nesse
sentido, a análise das políticas de identidade requer que analisemos o sentido interno da
coesão grupal que acaba se manifestando em suas práticas públicas.
Tomemos como exemplo a coletividade antimanicomial. Não é novidade que
encontremos nos espaços de discussão dos direitos para esse grupo a presença
esmagadora de profissionais (técnicos) e estudantes, mas uma parcela muito tímida de
usuários dos serviços de saúde mental (o termo usuário aqui é proposital). O espaço de
influência que deveria ser de tomada do poder de uma minoria (silenciada ao longo da
história da loucura) é ocupado por “autoridades”. Àquilo que Nancy Fraser identificou
como uma “identidade de grupo única, drasticamente simplificada, que nega a
complexidade das vidas das pessoas, a multiplicidade de suas identificações eos contra-
golpes de várias afiliações”164. Quando muito, o “usuário”, o “portador de sofrimento
psíquico”, serve de exemplo empírico dos discursos pró-reforma psiquiátrica, e lembra a
todos dos maus tratos advindos de sua vivência nos manicômios (sem perceber que
continua subjugado no mesmo diagnóstico, na mesma personagem). Esse movimento,
que como tantos outros que existem hoje no Brasil e que se alinham com as políticas
implementadas pelo Estado, não tem realizado uma crítica a respeito dessa relação,
muitas vezes mantida a partir da negação e o consentimento com as políticas propostas.
Parecem não querer considerar (agindo de forma cínica) que as políticas sociais do
Estado não têm outra função senão controlar o fluxo e refluxo da força de trabalho no
mercado, para atender às necessidades conjunturais e estruturais do capital privado.
Outro exemplo — que torna explícito como uma identidade coletiva pode se
configurar como uma luta legítima na esfera pública sem que necessariamente possa
estar influenciando a transformação das formas de relação no mundo da vida e ao
mesmo tempo ser utilizada de forma estratégica para lidar com problemas políticos —

164
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? p.117.
152

pode ser encontrado no conteúdo das entrevistas preliminares da pesquisa que temos
orientado de estudantes de graduação do curso de Psicologia da Universidade Federal
do Ceará – UFC.165 Nessa pesquisa, as estudantes envolvidas166 tem se deparado com o
desconhecimento por parte dos transeuntes, donos de estabelecimentos e moradores, do
que é o prédio existente naquela localidade; os que sabem que ali é um CAPS, ao serem
questionados acerca do propósito da instituição e se conseguem se enxergar como
possíveis usuários do serviço, mostram-se confusos e em sua maioria dizem que aquele
é um lugar para tratar das pessoas loucas que podem ser perigosas para a sociedade e
que não freqüentariam o lugar. Vale esclarecer, utilizando-nos da contribuição de
Sampaio e Carneiro167, que a rede de Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral – CE
somente passou a ser implementada a partir de 1999, mais precisamente após a morte
trágica de Damião Ximenes Lopes na Casa de Repouso Guararapes — episódio que fez
com que o Brasil fosse julgado por tribunal internacional —, ou seja, nesse caso fica
aparente que a identidade coletiva do louco, tão preconizada pelos movimentos
antimanicomiais, não foi o elemento que culminou na transformação das formas
desumanas de tratamento do doente mental, a transformação se tratou de uma manobra
política para resolver um problema político (internacional).
O que queremos destacar é o perigo que determinadas políticas de identidade
oferecem ao fragmentar as diferentes formas de preconceito, discriminação etc. e negar
que o problema do negro, da mulher, do índio, do adolescente, do louco etc., é o
problema do reconhecimento da dignidade humana, das necessidades humanas. Se
abandonarmos este pensamento utópico (um projeto de sociedade igualitária), se torna
“difícil sentir-se indignado com a degradação do outro, tanto quanto com a degradação
de si mesmo”168. Para Habermas, que trabalha a questão das políticas de identidade a
partir da perspectiva do desenvolvimento das identidades coletivas, o problema político
surge quando o uso dos relatos simbólicos, da memória coletiva e de narrativas de
história de vida aparece como discursos a favor de uma autodeterminação excludente e

165
A pesquisa tem procurado explicitar o quanto as pessoas que vivem nos arredores do CAPS da cidade
de Sobral – CE têm conhecimento do objetivo dessa instituição.
166
Refiro-me aqui às estudantes do curso de Psicologia da UFC, do Campus Avançado de Sobral: Karina
de Andrade Batista, Lorrana Calíope Castelo Branco Mourão e Tamylle Arruda Prestes.
167
Cf. SAMPAIO, J. J. C. & CARNEIRO, C. Rede de Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral-
CE: Planejamento, supervisão e reflexões críticas.
168
CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social como metamorfose humana em busca de
emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico. p.04.
153

colocam à prova a solidariedade universal169, o que também aparece como problemático


quando determinado membro de uma comunidade incorpora voluntariamente ou
involuntariamente uma determinada identidade coletiva, negando outros componentes
de sua identidade, gerando dúvidas acerca da validade do próprio conceito de
coletividade em que está se apoiando.
O problema da universalidade surge nesse ponto; lembremos que Ciampa,
apoiado em Hegel e Mead, não tem dúvidas que na medida em que um indivíduo adota
a atitude do outro transforma o símbolo resultante disso em um universal: o singular
materializa o universal, mas como pensar uma singularidade que comporte o universal
humano sem excluir nenhum dos participantes? Como Žižek170 nos ajuda a advertir, a
questão aqui não é que estamos lidando com o processo pseudo-hegeliano de
“alienação” e “desalienação”, de como determinada política de identidade é “alienada”,
não conseguindo incorporar o outro como alguém dotado de uma particularidade,
subordinando esse indivíduo à sua ideologia: se trata aqui de apontar que o discurso de
determinada política de identidade pode estar relacionado ao universal dominante, que
na atualidade é o capital. Com isso, a relação de dominação exercida sobre o indivíduo
submetido a uma política de identidade é “compensada” pela promessa de inclusão no
mercado. É por isso que Žižek encontra na crítica aos marxistas ortodoxos realizada por
Mao Tsé-Tung elementos de grande de valia para pensar a questão da universalidade,
uma vez que para este último é justamente na particularidade da contradição que
encontramos a universalidade.

Esse é o argumento principal de Mao: a contradição principal (universal) não se


sobrepõe àquela que deveria ser tratada como a contradição dominante numa
situação particular – a dimensão particular literalmente reside nessa contradição
particular. Em cada situação concreta, uma contradição ‘particular’ diferente é a
predominante, no sentido preciso de que, para vencer a luta pela resolução da
contradição principal, devemos tratar uma contradição particular como a que é
predominante, à qual todas as outras lutas deveriam ser subordinadas.171

Ao que nos parece Ciampa concorda com essa argumentação, e assinala que a
universalidade é representada por uma série de axiomas lógicos, dentre eles de que o
indivíduo deve lidar com a tensão entre projetar uma nova personagem ou fazer a

169
Problema que Ciampa descreve como sendo a ação de uma política de identidade segregadora.
170
ŽIŽEK, Slavoj. Slavoj Žižek apresenta: Mao Tse-Tung “Senhor do Desgoverno” marxista.
171
Ibidem. p.13.
154

manutenção da personagem pressuposta, e que isso desvela tanto o fetiche da


personagem (sua aparência de não metamorfose) como a possibilidade da alteridade
(tornar-se outro). Desse modo, desvela-se que as pressuposições não são universais (ou
somente são universais enquanto papéis pré-estabelecidos). Ciampa compreende isso
muito bem, e como já adiantamos, mostra-nos que para identificar o quanto determinada
política de identidade massacra a individualidade em favor da coletividade é necessário
que vislumbremos a negação da condição de produto da história que determinado grupo
carrega consigo. Assim, o universal deve incorporar a metamorfose. Aqui Ciampa
alinha-se novamente com o pensamento meadiano, o qual ensina que o universal, “para
ser universal, tem que ser continuamente revisado”172. Sendo assim, uma vez que “o
limiar entre a esfera privada e a esfera pública não é definido através de temas ou
relações fixas, porém através de condições de comunicação modificadas”173, fica a lição
de que para apreendermos a expressão de identidades políticas nas coletividades é
necessário que vislumbremos a negação da condição de produto da história que
determinado grupo carrega consigo frente a idéia de multiculturalismo capitalista.
Esse conteúdo potencial das políticas de identidade foi estudado por Neuza
Guareschi. Pela sua análise, na medida em que as identidades coletivas lutam
diretamente por definições, indo além do dinheiro ou poder, podem “iniciar um
processo que visa evitar a discriminação e dominação de determinadas identidades,
fazendo com que novas identidades possam emergir e que outras recusem ser
excluídas”174. Nesse último caso, podemos dizer que as identidades pressupostas
oferecidas por determinadas políticas de identidade podem se tornar um impulso para a
superação de outra personagem posta (segregadora) de forma negativa e limitadora.
Almeida, reforçando essa colocação, assinala que aqui a identidade desejada
contradiz e reposiciona a identidade reposta que até então era vivida como
inevitabilidade. Nesse sentido, ela expressa, “uma metamorfose dotada de
características emancipatórias; as novas pretensões identitárias expressam o assumir de

172
MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.269.
Tradução nossa: “(…) to be universal has had to be continually revised.”
173
HABERMAS, Jürgen. Direto e Democracia II. p.98.
174
GUARESCHI, Neuza M. F. Políticas de identidade: novos enfoques e novos desafios para
psicologia social. p.123.
155

uma nova posição de sujeito, uma alterização”175, o que não significa que deixemos de
lado tudo o que discutimos até agora.

Além disso, se considerarmos que um indivíduo nunca é total e plenamente


integrante de uma única categoria social (por exemplo, uma pessoa pode ser
simultaneamente mulher, mãe, trabalhadora assalariada, praticante de uma dada
religião, migrante, moradora de favela etc.), mas que ele expressa o
entrecruzamento de distintas categorizações e, por extensão, de distintas
contradições sociais, o avanço de determinados projetos é sempre um
fragmento de emancipação. As lutas de distintas categorias sociais pelo
reconhecimento de direitos, por uma maior participação na cena social são
válidas em si mesmo na medida em que alargam o espaço de direitos e de
negociações, na medida em que reduzem diferenças, injustiças e a opressão.
Não implicam, porém, necessariamente, na eliminação de outras condições
sociais de heteronomia e subordinação, coercitivas, que incidem sobre outros
indivíduos e sobre outras categorias e até mesmo sobre seus próprios membros.
Muitas vezes, inclusive, resultam em um deslocamento de injunções,
transferindo os ônus sistêmicos para outros tipos de benefícios existentes ou
desejados e adentrando no terreno da política do “toma lá, dá cá”.176

Claro está que as políticas de identidade servem à formação e manutenção de


determinadas identidades coletivas, e podem representar um sentido emancipatório ou
então regulatório; emancipatório quando ampliam a(s) possibilidade(s) de existência na
sociedade, garantindo direitos para os indivíduos; regulatório quando criam regras
normativas que muitas vezes aprisionam os indivíduos numa única representação
possível de sua identidade, impedindo sua diferenciação. Um tipo de negação, que como
alertava Ervin Goffman, funciona de forma perversa, pois “aparece na orientação feita
ao estigmatizado no sentido de que se ele adotar uma linha correta ele terá boas relações
consigo e será um homem completo, um adulto com dignidade e auto respeito”177.
Nesse sentido, o potencial emancipatório das políticas de identidade reside não
apenas no sentido de uma coalizão de forças, mas também de uma utopia coletiva que
transcenda os particularismos daqueles que lutam contra o status quo. Isso se torna um
problema a ser pensado, pois se seguirmos a compreensão habermasiana que uma utopia
desse tipo envolve considerar a possibilidade do surgimento de identidades pós-
convencionais — que estariam antecipando formas de vida com valores e normas ainda
não estabelecidos, podendo apenas estabilizarem-se “na antecipação de relações

175
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice.
p.137.
176
Ibidem. p.139-140.
177
GOFFMAN, Ervin. Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada. p.134.
156

simétricas de um reconhecimento recíproco isento de coerção”178 —, logo, um


reconhecimento também pós-convencional, como fazer isso sem considerar o conflito e
as lutas existentes frente as políticas de administração e controle da sociedade
capitalista? Frente a essa questão tanto Habermas179 como Ciampa180, concordam que
isso ainda é um desafio frente a um pensamento utópico que tem se desvanecido nos
últimos anos e que precisa ser renovado.
Renovação inclusive da própria crítica, que por sua vez, deve ter a força de
voltar-se contra os nossos próprios referenciais de análise. Como diria Boaventura de
Souza Santos, precisamos de teorias alternativas para as alternativas existentes181. O que
significa nesse caso que a própria idéia de busca pela situação ideal de fala como
pressuposto para a emancipação, ou ainda para a descolonização do mundo da vida,
apresentada por Habermas, deve ser questionada, pois se assumirmos aqui que na esfera
pública as formas de vida podem ser mutiladas a ponto de orientar-se por valores
resultantes de distorções comunicativas não podemos mais guiar-nos por ideais
normativos de justiça e consenso que estariam pré-existentes nas dimensões da vida
social. Se esses ideais existem, devem ser explicitados em meio aos conflitos existentes
no mundo da vida. O desenvolvimento de uma identidade pós-convencional por si só
não é garantia de uma emancipação “completa” ou definitiva do indivíduo; isso seria
“convencionar”, predeterminar o que entendemos por emancipação humana. Seria
ignorar uma lógica sistêmica que a todo instante oferece saídas heterônomas e ilusórias
para todos nós e que o diagnóstico do presente tem se transformado drasticamente.
Ciampa lembra-nos que em tempos de um capitalismo tardio vivemos a inversão
da preocupação com a produção para a preocupação com o consumo — a própria idéia
de metamorfose foi absorvida pelo capitalismo182—, o que traz conseqüências
profundas para a análise da identidade entendida como metamorfose em busca de
emancipação. No que se refere a essa pontuação realizada por Ciampa, acreditamos que

178
HABERMAS, Jürgen. Passado como Futuro. p.222.
179
Idem. A crise do Estado de bem-estar e o esgotamento das energias utópicas.
180
CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social como metamorfose humana em busca de
emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico.
181
SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social.
Passim.
182
Como apontado anteriormente, no Encontro Nacional da ABRAPSO de 1999, Ciampa, ciente acerca
dessa transformação do capitalismo de produção para o capitalismo de consumo, e da cooptação da
idéia de metamorfose pelo mercado, propõe que o conceito do sintagma identidade-metamorfose-
emancipação deve ser analisado a partir do seu potencial de emancipação.
157

valha a pena transcrever um trecho do trabalho realizado por Safatle, uma vez que nele
acreditamos encontrar argumentos essenciais para que continuemos nossa análise:

De maneira esquemática, podemos dizer que o mundo capitalista da produção


estava vinculado à ética do ascetismo, da acumulação (o prazer que submete
todos os prazeres) e pela fixidez identitária que se manifestou como vocação
para funções específicas e especializadas. O mundo do consumo pede, por sua
vez, uma ética do direito ao gozo. Pois o que o discurso do capitalismo
contemporâneo precisa é da procura do gozo que impulsiona a plasticidade
infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do consumo.183

A proposição de Safatle, que assinala a guinada do mundo da produção para o


mundo do consumo, nos obriga a considerar que os elementos identificados por
Habermas como próprios do mundo da vida (a saber: a cultura, a sociedade e a
personalidade) têm sofrido uma nova reconfiguração que passa a anular todo conteúdo
determinado. Não se trata mais de disponibilizar exatamente o conteúdo de
representações sociais por meio do mercado; é justamente a opacidade que possibilita a
manutenção do capital. A partir dessa perspectiva podemos inferir que na esfera pública
o indivíduo produtor devém consumidor de produtos indeterminados. Parece que a
sociedade tardo-capitalista encontraria no consumo o elemento sui generis para
administrar o sofrimento de indeterminação que, valendo-nos da concepção hegeliana
do termo, se refere ao sentimento vivenciado pelo indivíduo frente à impossibilidade de
auto-realização individual184. Consumo que, como assinala Maria de Fátima Severiano,
apresenta-se como um “paliativo para a profunda angústia humana ante uma impotência
generalizada, a qual é substituída pela incorporação fetichizada de objetos que
prometem conferir poder, completude e realização individual”185, “provisoriamente”,
possível após a metamorfose da estética da própria mercadoria186. Isso não quer dizer
que certamente os elementos da tradição tenham desvanecido, pelo contrário, eles

183
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e a falência da crítica. p.126. [grifos do autor]
184
Cf. HEGEL, Georg W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Passim. p.1-35. Confira também o
artigo de Axel Honneth: Patologias da liberdade individual: O diagnóstico hegeliano de época e o
presente. p. 77 et seq.
185
SEVERIANO, Maria de Fátima. Narcisismo e publicidade. p.111.
186
Wolfgang F. Haug acredita que o segredo para a concretização está no fato de o capitalismo começar a
investir na aparência, que em sua forma mais abominável, oferece “uma seqüência interminável de
imagens acerca das pessoas atuando como espelhos, com empatia, observando o seu íntimo, trazendo à
tona os segredos e espalhando-os. Nessas imagens evidenciam-se às pessoas os lados sempre
insatisfeitos de seu ser. A aparência oferece-se como se anunciasse a satisfação; ela descobre alguém, lê
os desejos em seus olhos e mostra-os a superfície das mercadoria.” Idem. Crítica da estética da
mercadoria. p.77.
158

permanecem configurando antigas políticas de identidade. Aliás, vemos na esfera


pública brasileira, dada a multiplicidade de culturas, etnias e classes sociais, uma co-
existência, e porque não uma concorrência, entre as diversas formas de socialização que
expressam desde elementos pós-modernos até formas de vida pré-modernas187.
Essa concorrência entre novas e velhas políticas de identidade faz com que
incorporemos mais uma contribuição antes de prosseguir. Falamos da análise realizada
por Almeida188 do fenômeno denominado “anamorfose”189. Esse autor escreve que se
por um lado as políticas de identidade — resultantes do esforço de incorporação do
discurso social — funcionam como as pinturas com ponto fixo, colocando os indivíduos
em seus “devidos” lugares sociais, impondo limites à participação nos espaços públicos,
por outro lado promovem a negação de qualquer projeto singular e/ou particular.
Qualquer projeto idealizado fora dos parâmetros estabelecidos, não reconhecidos como
metamorfoses das políticas de identidade tradicionais, “são, a partir daí, considerados
como verdadeiras aberrações, como alucinações, como anamorfoses (figuras em

187
Refiro-me aqui à diversidade encontrada em nossa cultura, que espelha desde experiências pré-
modernas como as encontradas em: KRAMER, Henrich & SPRENGER, James. Malleus
Maleficarum. “O Martelo das Feiticeiras”, até outras pós-modernas (como as verificadas nas
comunidades virtuais que excitam novas formas de vida, vistas como patológicas, como as pró-
anorexia e uso de drogas). A própria relação com os serviços substitutivos que em alguns lugares
configuram-se como instituições garantidoras de renda (o que Safatle caracteriza como identificação
irônica e que iremos assinalar como resultado de um reconhecimento perverso), noutros ainda são
espaços entendidos como “depósito”: Cf. BUENO, Austregélino Carrano. O canto dos malditos. A
título de exemplo vale contar que em uma das cidades visitadas durante a realização da pesquisa,
localizada na divisa do Ceará com o Piauí, conhecemos uma família em que todos os filhos eram vistos
como loucos. Estes tinham vivido durante toda infância e adolescência no interior da fazenda, sem
contato com meios de comunicação e ao viajar buscando trabalho no Rio de Janeiro experienciam algo
que foi diagnosticado como psicose por profissionais de saúde mental de um CAPS desse estado, que
os encaminharam para o nordeste novamente com o intuito de que se submetessem ao tratamento.
188
Juracy Almeida conta como foi sua aproximação com o fenômeno da anamorfose: “Meu primeiro
contato com a anamorfose foi através de um painel do Grupo de Identidade José Roberto Malufe
apresentado em um encontro científico da SIP – Sociedade Interamericana de Psicologia, realizado em
São Paulo em 1997. O painel tinha uma superfície espelhada, com uma saliência central em forma de
cone. Observado de diferentes ângulos, o painel apresentava-se como um conjunto de borrões em preto
e branco, desproporcionais entre si, sem um sentido maior, compreensível, despertando a atenção do
público presente à sessão de exposição. Os borrões mudavam de forma, suas proporções se alteravam
com o meu deslocamento. Outras pessoas ao redor também se mostravam perplexas e curiosas com o
significado do painel. Apenas após vários deslocamentos laterais e também de aproximação e
afastamento é que pude vislumbrar, a partir de um ponto determinado (que depois descobri ser único), a
imagem (uma fotografia ampliada) de uma pessoa. Fui informado, então, que se tratava de uma
anamorfose cônica. Mais tarde, encontrei uma explicação para o que acontecera: ‘A anamorfose é uma
figura em perspectiva deformada que, para ser reconhecida, exige do observador um deslocamento, um
abandono de sua posição convencional, e uma busca de um novo ponto de vista. Este ponto é sempre
extremamente preciso mas desconhecido, e sua descoberta revela, na figura até ali incompreensível,
formas finalmente reconhecíveis.’ (Silva Júnior, 2001: 4)”. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a
Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.30-31.
189
Cf. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice.
159

perspectiva deformada) das identidades socialmente idealizadas”190. A anamorfose


apontaria a contradição inerente na disputa entre as políticas de identidade, o conteúdo
ético, como já exposto, que estaria na possibilidade de criar possibilidades de existência
mais justas. A anamorfose representaria, como assinala Almeida apoiado nas reflexões
de Jurandir Freire Costa, formas de resistência que podem se dar:

(...) pelo que ele chama de fraqueza dos excessos (distúrbios psicológicos tais
como desânimo, depressão, síndrome de pânico, insônia, estresse físico,
dependência química, hipocondria, transtornos da imagem corporal etc.), como
também, pela procura e criação de alternativas às idéias dominantes. Estas são
condutas possíveis quando as pessoas sentem as determinações que as afetam
como anamorfoses de algo imaginado e desejado. Há sempre a possibilidade de
alguns indivíduos tentarem emancipar-se da heteronomia e dos enquadramentos
a que estão expostos, buscando um novo ponto de vista que lhes permita
descobrir/estabelecer uma nova proporcionalidade entre as exigências dos
papéis sociais imputados e seus reclamos de coerência, de realização e de
autonomia. Em outras palavras, que lhes permita se (re)posicionarem em
relação a um ponto de vista fixo (comum a todos os que se encontram na
mesma situação que eles) e, neste processo, construírem uma nova
identidade.191

Esse processo dialético de submissão e luta por emancipação pode ser articulado
em Almeida pela tensão entre as esferas pública e privada. No que se refere à esfera
pública — mais especificamente na sua relação com os interesses dominantes, que no
Brasil se configura desde os primórdios da colonização pela tentativa de administração
e controle — essas formas de existência representam aberrações, anormalidades,
anamorfoses dos modelos pressupostos, que impulsionam a existência e permanência
das instituições que visam à adaptação (como é evidente no nosso estudo o caso da
instituição psiquiátrica). No que se refere à esfera privada que, do ponto de vista da
perspectiva normativa do “Outro generalizado”, nos ensina a reconhecer outros
membros da coletividade como portadores de direitos, abre-se aqui a possibilidade de
nos reconhecermos também como pessoas de direito. Fenômeno decorrente da
institucionalização dos direitos civis de liberdade, que inaugurou o processo de
inovação permanente, o qual pressupõe que para poder agir como uma pessoa
moralmente imputável, o indivíduo não precisa apenas da proteção jurídica contra as
interferências em sua esfera de liberdade, “mas também da possibilidade juridicamente

190
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.101.
191
Ibidem. p.112.
160

assegurada de participação no processo público de formação da vontade, da qual ele faz


uso, porém, somente quando lhe compete ao mesmo tempo um certo nível de vida”192.

A nova identidade, desejada ou conquistada, expressa um reposicionamento dos


sujeitos frente àquela a que se espera eles devem se conformar. Expressa, nesse
sentido, um processo de metamorfose dotado de características emancipatórias,
pois as modificações identitárias representam, na busca da autonomia frente aos
preceitos dados, o assumir um lugar de sujeito do olhar, uma (re)colocação do
sujeito ante as condições pessoais e sociais restritivas que lhe são impostas
(vistas, sentidas por ele como anamorfoses, deformações de seus projetos).
Representa um sujeito com capacidade de julgar, isto é, de considerar
hipoteticamente e de fundar normas com base em princípios interiorizados, um
sujeito que não mais se liga a papéis singulares e a normas preexistentes, que vê
como problemática a ligação a papéis dados, pontos de cristalização da própria
biografia (cf. Habermas, 1983). O que caracteriza tal identidade é a capacidade
do sujeito conservá-la mesmo em situações de conflito, organizando a si mesmo
e as suas interações de maneira autônoma e individualizada, numa biografia
original e insubstituível.193

A anamorfose, tal como é explicada por Almeida, aparece como fenômeno


causador de curto-circuito na percepção, uma impossibilidade de representar o exposto
e incorporá-lo no discurso coletivo. E como ocorrem esses curtos-circuitos? Para
entender esse processo temos que retomar algumas pontuações apresentadas
anteriormente. Lembremos que as políticas de identidade estabelecem pontos fixos
(identidades pressupostas, idealizadas, fetichizadas) e que essas políticas de identidade
estabelecem critérios, apresentam orientações, as quais os indivíduos devem seguir caso
queiram ser reconhecidos. Quando o indivíduo submete-se à política de identidade
proposta, diz-se que ajustou-se ao instituído, tornou-se alienado. Por outro lado, existem
indivíduos que resistem ao enquadramento e buscam ser reconhecidos a partir da
coordenada onde estão localizados, nesse caso, se colocando como pontos fixos os quais
a política de identidade deve tensionar-se para reconhecer o que está sendo
representado. Quando os indivíduos assumem essa posição geralmente são considerados
como anormais, desajustados, problemáticos, cujo ajustamento deve ser aplicado, uma
vez que são anamorfoses em relação à política de identidade instituída, são um perigo
para a ordem. Desse modo, não é por um acaso que vemos Almeida defender a tese de
que as identidades pós-covencionais, os projetos emancipatórios, são fundamentais para
a alterização das identidades. Afinal, uma vez que essas identidades pós-vonvencionais

192
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.. p.192-193.
193
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.113.
161

“expressam a busca de um novo ponto de vista que permita aos indivíduos/grupos


estabelecerem uma nova proporcionalidade entre as exigências dos papéis sociais e de
reclamos de autonomia/realização”194.
Sendo assim, podemos então considerar que as identidades anamórficas, em sua
potencialidade emancipatória, trazem uma nova proporcionalidade entre as exigências
de reposição e os reclamos de alterização. Se falamos de uma nova proporcionalidade
entre as exigências de reposição e reclamos de alterização, nos referimos a uma espécie
de deformação em relação ao que estava antes estabelecido, logo, quando falamos de
uma nova proporcionalidade, nos referimos a anamorfose. Assim é importante frisar que
— se as personagens anamórficas são anamorfoses em relação à identidade pressuposta
idealizada por determinada política de identidade — a identidade pressuposta idealizada
por determinada política de identidade é anamorfose em relação às identidades
anamórficas. Assim sendo, quando a identidade anamórfica é considerada ponto fixo, o
ponto preciso e especial, então será a identidade pressuposta e a política de identidade
que a produz e sustenta que deverão efetuar deslocamentos e mudanças de ponto de
vista para se adequar ao ponto preciso que a identidade anamórfica exige. Portanto, para
a personagem anamórfica ser considerada o ponto preciso, é necessário um tipo de
lógica de reconhecimento de uma outra ordem, um reconhecimento que poderíamos
chamar aqui de pós-convencional, ou como assinala Žižek, seria preciso um
reconhecimento efetuado a partir da própria diferença, o que significa não adotar nem o
próprio ponto de vista nem do ponto de vista de outros, encarando a personagem
anamórfica como uma paralaxe195.
Entretanto, não podemos ser ingênuos, esse tipo de reconhecimento que exige o
deslocamento de uma política de identidade de seu ponto fixo para o ponto fixo que
determinada personagem está representando, na esfera pública onde o Capital tem sido
o universal dominante, não é conseguido de forma gratuita. Ele somente pode ser
vislumbrado como uma luta incessante. Essa dificuldade mostra-se aparente na tese de
Almeida, a qual ficou evidenciada como a personagem anamórfica, por se constituir

194
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.109.
195
Cf. ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Na página 32, Žižek nos apresenta o conceito de Paralaxe
da seguinte forma: “é o padrão de deslocamento aparente de um objeto (mudança de sua posição em
relação ao fundo) causado pela mudança do ponto de observação que permite uma nova linha de
visão”. Žižek reforça a importância desse fenômeno ao assinalar que Hegel já alertava para o fato de
“sujeito e objeto são inerentemente ‘mediados’, de modo que uma mudança ‘epistemlógica’ do ponto
de vista do sujeito sempre reflete a mudança ‘ontológica’ do próprio objeto.” Ibidem. p.32.
162

numa divergência do que é idealizado e marcar a saída do ponto fixo em busca de novas
configurações identitárias, representariam formas de resistência ao que é imposto e
lutariam constantemente contra políticas de identidade que a todo instante tentam
cooptar essas anamorfoses e transformá-las em novas mercadorias. O caso dos idosos é
emblemático nesse sentido, uma vez que a grande questão estaria em manter a
indeterminação entre o fato de que a condição do idoso não seriam nem espelhos das
identidades pressupostas tradicionalmente (o velho que espera a morte), nem espelhos
das identidades pressupostas pela lógica sistêmica atual (que impõe convencionalmente
a personagem do velho consumidor). Quanto a isso, parece-nos um ponto chave quando
ele considera que as condições pessoais e sociais restritivas são vistas e sentidas pelos
indivíduos como anamorfoses, isto é, como deformações de seus projetos.

A anamorfose dá conta da constituição de identidades por parte de indivíduos


que procuram superar suas condições identitárias, as quais geram identidades
sem lugar na vida coletiva ou, em outros termos, uma “contraditória identidade
desidentificadora”.196

Dessa maneira, a partir do conceito de anamorfose empregado por Almeida,


podemos vislumbrar empiricamente uma ação política por parte dos indivíduos que
contrastam com o papel original das políticas de identidades (cada um no seu devido
lugar). Nos referimos à ação política que questiona o universal instituído existente em
nome do seu “sintoma”, em nome da expressão de sua identidade, sua personagem, que
embora inerente à ordem universal existente, não encontra nela um lugar próprio. Žižek
entenderá esse tipo de ato como revolucionário, uma vez que ao identificar-se com o
sintoma, o indivíduo executa a necessária inversão do gesto crítico e ideológico
clássico,197 que consiste em buscar reconhecimento para além da noção universal
abstrata (o “velho” tradicional é o representante inverso da juventude, a mulher
trabalhadora o inverso da mãe dedicada; o “doente mental” o inverso do indivíduo
racional etc.). A anamorfose, tal como tem sido interpretada aqui, de certo modo
aproxima-se das proposições apresentadas por Honneth (influenciadas por Mead e
Hegel), e reforça a tese de que a inclusão em um sistema com papéis sociais delineados

196
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.205.
197
ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.41 et seq.
163

a priori é um movimento reverso da autonomia198. A liberdade configura-se como


liberdade negativa, em oposição à liberdade pressuposta pelo mercado, somente
passível de ser concretizada quando ocorrerem “mudanças culturais que acarretam uma
ampliação radical das relações de solidariedade”199.
Isto posto, por outro lado, a discussão do fenômeno da anamorfose nos remete a
alguns questionamentos: se o processo de socialização e individualização nos ensina
que o indivíduo é metamorfose em busca de emancipação — é luta por reconhecimento
frente às tentativas de fetichização e redução a personagens heteronomamente
pressupostas —, como explicar o ato crítico político de um sujeito que está submetido
ao postulado lógico proposto por Wittgenstein de que “os limites de nossa linguagem
significam os limites do nosso mundo”200? Dito de outra forma, como explicar a
possibilidade ou impedimento do ato crítico de um indivíduo, se o mesmo está
submetido à distorções da linguagem que oferecem uma semiformação, negação a
priori dos direitos individuais, que podem configurar uma naturalização da opressão?
Em tempos de um capitalismo tardio, cujo estímulo ao consumo exige metamorfoses
constantes (na verdade modulações da mesmice201), perguntamos aqui: existiria a

198
Em suas considerações finais Juracy Almeida elenca os elementos promissores da noção de
metamorfose para a pesquisa de identidade, são eles: “a) do modo como são interpretados os projetos
individuais ou coletivos de mudança que ultrapassam os limites dos parâmetros socialmente
dominantes, projetos estes que são vistos como deformações daquilo que costumeiramente se considera
como modos de ser e de viver adequados; b) dos modelos de conduta sociais estabelecidos, quando
vistos do ponto de vista dos sujeitos de projetos emancipatórios; deste ponto de vista, tais modelos
surgem a esses sujeitos como deformações daquilo que idealizam; c) da identidade continuamente
reposta através de um trabalho que resulta da acomodação ou sujeição às condições com as quais os
indivíduos se deparam em sua vida cotidiana. De modo geral, as pessoas apresentam-se como idênticas
a si mesmas e, desta maneira, encobrem, ocultam o caráter dinâmico e temporal da identidade. Aqui, a
apresentação de algo que já não se é como algo que se está sendo surge como uma deformação de si
apresentada pelas próprias pessoas (borrões daquilo que se é de fato), como se elas não passassem por
modificações; d) da identidade humana degradada por processos sociais que recusam aos indivíduos a
qualidade de sujeitos, negando-lhes o reconhecimento e o tratamento como tais, vale dizer, que
atribuem a indivíduos a identidade de não-humanos, restringindo-lhes a autonomia pessoal e, mesmo,
sujeitando-os a tutelas”. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e
emancipação na velhice. p.207-208.
199
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.. p.280.
200
Cf. WITTGENSTEIN. Ludwig. Tractatus Logico-philosophicus. p.111.
201
Destacamos aqui as seguintes palavras de Ciampa quando trata da aparência de não-metamorfose da
identidade como resultado do trabalho ode re-posição: “(...) é o trabalho da re-posição que sustenta a
mesmice. Outros são levados a essa situação, involuntariamente, quando seu desenvolvimento é de
alguma forma prejudicado, barrado, impedido; na nossa sociedade, encontramos milhões de exemplos
de pessoas submetidas a condições sócio-econômicas desumanas; às vezes, mesmo com condições
sócio-econômicas favoráveis, milhares, talvez milhões, de pessoas são impedidas de se transformar, são
forçadas a se reproduzir como réplicas de si, involuntariamente, a fim de preservar interesses
estabelecidos, situações convenientes, interesses e conveniências que são, se radicalmente analisados,
interesses e conveniências do capital (e não do ser humano, que assim permanece um ator preso a
164

possibilidade de explicitar, a partir do sintagma identidade-metamorfose-emancipação,


como determinados discursos “revolucionários” são reforçados pelo capital para
promover a manutenção de políticas de identidade segregadoras que neutralizariam a
expressão das anamorfoses, transformando-as de denúncia em mera patologia a ser
tratada pelo olhar do especialista? Que ensinamentos poderiam obter do tipo de
reconhecimento proposto pela reforma psiquátrica? Aparece aqui mais uma
problematização a ser explorada: a dinâmica do sofrimento de indeterminação e
reconhecimento da identidade.

3 – Sofrimento de indeterminação e reconhecimento perverso: a administração da


insatisfação como instrumento de controle da sociedade capitalista.

Quando Ciampa contou a história da Severina, mostrou-nos como ocorre o


processo de metamorfose do ser escrava de alguém até tornar-se escrava de si-própria.
Esse processo configurou-se como uma luta por sua humanidade negada desde sua
infância; o que obrigou Severina a dramatizar personagens pressupostas que negavam a
sua totalidade até chegar a zero, tornando-se louca. Momento em que renasce e, após
alguns ensaios na casa do patrão, volta a buscar alternativas para sua identidade, até
encontrar o budismo e conseguir um reconhecimento que até então jamais havia
experienciado. Ciampa pôde assinalar com essa história o fenômeno de alterização da
identidade: a superação das personagens pressupostas. Também vimos que em 1999, no
Encontro Nacional da ABRAPSO, o autor ampliou o conceito de identidade-
metamorfose, uma vez verificado que o mercado estava apropriando-se desse conceito,
para o sintagma identidade-metamorfose emancipação, o que na prática significou
assumir que era o momento de realizar a análise do sentido que as metamorfoses
estavam seguindo: emancipação ou resignação frente aos ditames do mercado. Dentre
os conceitos analíticos trabalhados por Ciampa, destacamos sua discussão acerca das
políticas de identidade e das identidades políticas e articulamos esses conceitos com o
estudo da anamorfose realizado por Almeida. Levantamos a hipótese de que o potencial
da anamorfose, a qual expressa o sofrimento de indeterminação e denuncia as
contradições sociais, sofre a neutralização na atualidade por conta de um

mesmice imposta).” CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina.


p.165.
165

reconhecimento perverso que reduziria as identidades à personagens fetichizadas, que


representariam o que Ciampa havia denominado identidade mito.
Gostaríamos agora de tirar as primeiras conseqüências dessas proposições — a
serem melhor vislumbradas nas narrativas de história de vida que apresentaremos na
terceira parte de nosso estudo — proposições que têm como ponto de partida o que
Ciampa chamou de trabalho de reposição, só pensado a partir da estabilidade dos signos
que mantêm a mesmice, e como ponto de chegada a assunção de que o trabalho crítico
no estudo da identidade segue o sentido de explicitar aquilo que o capitalismo tardio
tende a manter e reproduzir a partir da dinâmica de reconhecimento das identidades. A
análise de Ciampa mostrou-nos que será necessário incorporar na teoria de identidade as
contribuições da Psicanálise para analisar a lógica que sustenta a forma, para além do
conteúdo e explicitar o sentido não aparente das metamorfoses identitárias. Essa
necessidade de certa maneira já aparece n’A estória do Severino e a História da
Severina, seja nos momentos em que retoma a discussão da teoria freudiana realizada
por Habermas em Conhecimento e Interesse, seja nas passagens na qual o autor lembra-
nos que “assim como a questão da metamorfose se inverte como não-metamorfose, a
questão da consciência se inverte como inconsciente. Num certo sentido, é o
conhecimento invertido como ilusão”202. É importante destacar que Ciampa não avança
nessa discussão, pois como o mesmo lembra, “a narrativa autobiográfica analisada ficou
praticamente restrita às representações conscientes”, embora reforce que isso não
significa o abandono das contribuições psicanalíticas, pelo contrário, “uma psicanálise
livre dos perigos do mecanicismo, do a-historicismo (e de certo positivismo) tem muito
a contribuir”203.
Todavia, parece-nos que essa articulação será muito importante para evoluirmos
na discussão das formas de reconhecimento da identidade dos indivíduos que estão
sujeitos aos diagnósticos da saúde mental, uma vez que temos trazido ao longo de toda a
tese que acreditamos existir uma relação perversa estabelecida entre um indivíduo que
frente ao sofrimento de indeterminação busca reconhecimento de sua personagem
(geralmente uma anamorfose) de um lado, com o discurso de um Outro que reconhece
sua personagem anamórfica a partir de um ponto de vista reducionista da identidade, de
outro. Inclusive, o fio condutor para as reflexões que faremos a seguir encontra-se na

202
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.194.
203
Ibidem. p.195.
166

própria articulação teórica utilizada por Ciampa. Lembremos que A estória do Severino
e a História da Severina é, em última instância, uma tese que insiste na defesa de que é
na relação com o outro que eu posso estabelecer condições de desenvolvimento de mim-
mesmo, a partir daquilo que Mead chamou de outro generalizado, o qual também fora
postulado por Hegel. Considerando os limites da compatibilidade entre as concepções e
conceitos, não é difícil notar uma proximidade com a teoria psicanalítica de Jacques
Lacan, para quem a constituição do sujeito começa a configurar-se no campo da
intersubjetividade como o Outro (grande outro), ou seja, a partir de uma alienação
constitutiva da ordem simbólica frente à figura do Outro204.
No Seminário 11205, Lacan — aqui assinalamos a proximidade da teoria lacaniana
com as proposição de desenvolvimento do si-mesmo de Hegel e Mead —, esforça-se
em demonstrar que essa alienação no Outro deveria ser seguida pela separação do
Outro. Essa separação, na concepção de Lacan, ocorreria na medida em que o sujeito
percebesse que esse Outro é inconsistente, virtual, “barrado”, cuja existência somente se
sustentaria pela fantasia de que nele (Outro) é possível encontrar o preenchimento do
vazio (falta). Esse Outro postulado por Lacan se refere ao senso comum a que chegamos
após o entendimento (a ação comunicativa de Habermas, que preconiza o consenso) e
que estaria se desvanecendo no capitalismo tardio. Uma proposta que de imediato nos
coloca frente a impossibilidade de escolher entre uma razão comunicativa ou uma razão
estratégica, uma vez que sequer teríamos acesso a essas esferas de um modo racional.
Uma das contribuições de Prado, presente em sua crítica da teoria habermasiana a partir
da psicanálise, assinala esses limites da teoria da ação comunicativa da seguinte forma:

(...) ao invés de realizar a transposição conceitual de um modo de ação


estratégico para um modo comunicativo de ação, em que mudaria o tipo de
racionalidade envolvida, pensaríamos a razão crítica como um novo tipo de
discurso, como um espaço político em que se alteraria a partilha do sensível, a
forma de distribuição de vozes, forças e visibilidades passíveis de vir a campo,
de contar no campo. Em outras palavras, seria preciso pensar o modo de

204
Odair Sass mostra-nos que essa associação entre a teoria meadiana e psicanálise não é incoerente.
Sass, em nota de rodapé, ao analisar o trabalho de T. V. Smith, um dos contemporâneos de Mead na
Universidade de Chicago, identificou cinco autores que exerceram forte influência sobre sua teoria
social: Hegel, Marx, Darwin, Adam Smith e Freud. “Em relação ao último autor, Smith constata que a
doutrina freudiana do inconsciente – entendida como uma estruturação de nossa experiência que
ultrapassa aquilo que denominamos por consciência –, ‘era da maior importância para Mead, porque o
princípio serviu como elo mediador entre seu idealismo anterior e seu pragmatismo (...)’ (SMITH,
1931, p.372)”. SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert
Mead. p.111.
205
Cf. LACAN, Jacques. El Seminário. Libro 11.
167

possibilidade do surgimento do ato comunicativo, ou melhor dizer, político, na


esfera fetichizada da ordem instrumental, seu modo de possibilidade enquanto
acontecimento. (...) A razão crítica não seria, nessa óptica, talhada a partir de
uma divisão primordial entre agir instrumental e agir comunicativo, mas como
giro de discurso, como mudança das possibilidades de inscrição simbólica no
espaço social do discursivo.206

Isso nos remete ao que foi trazido anteriormente quando se falou do potencial
emancipatório da identidade anamórfica que, nos termos agora trazidos, por meio de
uma razão crítica, tensionaria na direção de um giro discursivo para mudanças das
possibilidades de inscrição simbólica estabelecidas por determinadas políticas de
identidade. Novamente deparamo-nos com o necessário surgimento das anamorfoses,
uma vez que no processo de luta por reconhecimento da alteridade da identidade, esta
tensiona o social no sentido de sua renovação e atualização, pois obriga essa instância
maior a questionar os conteúdos tradicionais do mundo da vida e, principalmente, a
racionalidade utilizada. Racionalidade que, como observamos, tem sido aquela que nos
força a observar nossa realidade como realidade pressuposta. Ciampa explicita isso
muito bem quando escreve sobre o episódio de Loucura da Severina, “com ênfase
afirma: e daí eu fiquei louca. E fiquei! Identifica-se como louca. É louca! (...) ela
sempre acreditando. E agindo como tal! A realidade simbólica sendo produzida
socialmente”207. Nesse exemplo, Ciampa mostra que a atuação de Severina como louca
se dá justamente porque é o único reconhecimento possível para sua identidade, a
personagem anamorfíca, que antes fora traduzida como encosto no centro espírita. E
agora era traduzida no hospital como doença mental. Ser tratada como Louca, utilizando
aqui uma interpretação lacaniana, é ser excluída do Outro social/simbólico, ou, nos
termos utilizados até então, é ser considerada anamorfose e tensionada para que assuma
uma personagem fetichizada retornando assim ao ponto fixo (uma inscrição simbólica
apriorística), retornando ao seu “devido lugar”. Destaquemos aqui que esse diagnóstico
não vem baseado em fatos concretos, considera-se louco aquele que se mostra
percebendo as coisas “como elas realmente são”. Como diria Lacan, a anamorfose
provocada pela “personagem (ora obsidiada, ora louca)” é uma armadilha para o olhar,
que não suportando a angústia frente ao Real desfere a pressuposição (redução), a
fetichização208. É importante destacar aqui que o “Real” a que Lacan se refere não é a

206
PRADO, José Luiz Aidar. Teoria da Sociedade ou Teoria da Comunicação? p.267-268.
207
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.71.
208
Cf. LACAN, Jacques. La anamorfosis.
168

verdadeira realidade que estaria velada, mas o vazio que mantém a realidade incompleta
e inconsistente, algo próximo àquilo que Mead identificava ser o elemento
impulsionador do surgimento de si-mesmo (self) e que Ciampa entende com sua
concepção de metamorfose, de outro modo, uma vez que para esse autor: “se identidade
é identidade de pensar e ser, a resposta que buscamos é uma resposta sempre vazia,
como um salto, pois é metamorfose”209.
Žižek exemplifica esse surgimento do novo que explicita o instituído ao discorrer
como o episódio de 11 de setembro de 2001 afetou os indivíduos dos países vistos como
desenvolvidos:

(...) antes do colapso do WTC, vivíamos nossa realidade vendo os horrores do


Terceiro Mundo como algo que na verdade não fazia parte de nossa realidade
social, como algo que (para nós) só existia como fantasma espectral na tela do
televisor –, o que aconteceu foi que, no dia 11 de setembro, esse fantasma da
TV entrou na nossa realidade. Não foi a realidade que invadiu a nossa
realidade: foi a imagem que invadiu e destruiu a nossa realidade (ou seja, as
coordenadas simbólicas que determinam o que sentimos como realidade).210

O exemplo de Žižek possibilita que avancemos em nossa análise da condição em


que tem funcionado a racionalidade sistêmica no capitalismo tardio: o Real em que
qualquer ataque é invertido em discurso ideológico. A barbárie promovida pelos
Estados Unidos no Oriente Médio por conta de seu interesse no petróleo é mascarada
pela eleição de um inimigo comum: o terrorista, que passa a ser utilizado como
justificativa para a intensificação da barbárie, agora legitimada. Esse episódio mais uma
vez mostra que em alguns momentos, ao contrário do que Habermas idealizava ao
propor a condição ideal de fala, as palavras não servem ao entendimento e a
solidariedade, mas para em muitos casos a implementação de um estado de exceção
como dispositivo de controle. Isso porque, por sua própria característica, as “palavras
são um recurso que reduz a realidade a uma abstração que nossa razão possa aceitar, e
em seu poder de corroer a realidade, inevitavelmente insinua-se o perigo de que as

209
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.241-242.
210
ŽIŽEK, Slajov. Bem-Vindo ao deserto do Real! p.31. Vivenciamos algo semelhante no último
semestre de 2008 no Brasil, quando o desastre natural ocorrido no Sul do país mobilizou todos a
rapidamente “reconstruir” a imagem de progresso e segurança instaurada. Compartilho aqui o
incomodo que senti ao notar que um estado como o Ceará, que vivia na época o auge da seca (os
noticiários locais notificavam a todo instante as cidades onde haviam pessoas passando sede e que
faltava recursos para levar água para esses lugares), orgulhava-se por enviar caminhões de água para o
Sul. Aparentemente, a pobreza e seca instaurada como “natural” no Nordeste não afetam em nada a
realidade.
169

próprias palavras também sejam corroídas”211. As palavras constroem e corroem a


realidade, ou poderíamos dizer, constroem e desconstroem concepções de mundo. José
Saramago, em um determinado momento do seu Ensaio sobre a cegueira, escreve um
diálogo entre a mulher do médico (a única imune à cegueira branca) e seu marido, que
parece explicitar muito bem essa lógica.

Não me acreditarás se eu te disser o que tenho diante de mim, todas as imagens


da igreja estão com os olhos vendados, Que estranho, por que será, Como hei-
de eu saber, pode ter sido obra de algum desesperado da fé quando
compreendeu que teria de cegar como os outros, pode ter sido o próprio
sacerdote daqui, talvez tenha pensado justamente que uma vez que os cegos não
poderiam ver as imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos,
As imagens não vêem, Engano teu, as imagens vêem com os olhos que as
vêem, só agora a cegueira é para todos, Tu continuas a ver, Cada vez irei vendo
menos, mesmo que não perca a vista tornar-me-ei mais e mais cega cada dia
porque não terei quem me veja (...).212

O trecho citado serve de argumento para assinalarmos aquilo que aprendemos


com os escritos dos autores estudados até agora: que a interpretação que o indivíduo faz
da realidade é antes uma antecipação do discurso internalizado, cuja subversão,
alterização, é dada a partir do reconhecimento de sua individualidade, de sua
anamorfose. Por outro lado, na medida em que esse discurso começa a ser cada vez
mais fetichizado e tornado elemento de administração social e negação do Real,

211
MISHIMA, Yukio. Sol e Aço. p. 09. Essa frase, inclusive, escrita pelo japonês Yukio Mishima, tenta
expor a dificuldade vivenciada por um descendente de samurais, homossexual, escritor, frente a uma
sociedade que prezava a negação do “eu” em favor da sociedade. O autor dizia que ao nascer já estava
condenado a ser estragado pelas palavras. “Na pessoa comum, imagino, o corpo vem antes da
linguagem. No meu caso, antes vieram palavras; então – pé ante pé, com toda a aparência de extrema
relutância, e já vestida de conceitos – veio a carne. Já estava, nem é preciso dizer, estragada pelas
palavras.” op.cit. p.08. Tanto a escrita, como a vida de Mishima expressam a luta do indivíduo para
diferenciar-se do grande número, representar o coletivo pela diferença, encontrando a realidade “em
algum ponto onde as palavras não tivessem nenhum papel a desempenhar.” op.cit. p.09. Podemos
considerar que suas palavras representam o movimento que Almeida descreveu como potencialidade
emancipatória da identidade anamórfica. Mishima acreditava que no pleno exercício do existir as
pessoas se tornavam invisíveis e que somente a morte lhes daria a opaca presença absoluta de um
objeto no mundo. Fiel ao projeto de si-mesmo, Mishima concretizou sua presença, em novembro de
1970, quando, após tomar as dependências do Quartel das Forças Armadas de Tóquio e após ler para a
tropa imperial um texto em que denunciava a violência da ocidentalização e a decadência dos códigos
tradicionais de seu país, cometeu o sepuku — também conhecido popularmente como Harakiri (cortar o
abdômen), preferimos utilizar o termo tradicional pela representação do gesto. O samurai realizava o
ritual do sepuku quando chegava à conclusão de que a vida não tinha mais sentido, ou que a vida que
teria de levar dali em diante seria uma vida que ele não escolheu, uma vida desonrosa. Mishima não
suportaria viver em um país que lhe conferiria uma política de identidade garganta abaixo. Não nos
deteremos na história de Mishima, nem em sua obra, sugerimos para quem quiser conhecer sua obra
que inicie com Sol e Aço. Também indicamos um estudo interessante realizado por BASTIDAS,
Cláudio. A outra Beleza: o estudo da beleza para a Psicanálise.
212
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. p.302.
170

podemos verificar o esgotamento de um certo regime de crítica, ligados àquilo que


Ciampa e Habermas denunciaram como o esvanecimento do horizonte utópico213.
Fenômeno que Zigmunt Bauman identificou como sendo resultado da falta de liberdade
proporcionada pela privação da faculdade de estabelecer significados objetivos e
normas, promovido por uma sociedade cujo “poder consiste no monopólio ou privilégio
do campo da interpretação do significado”214. Agamben trabalhou como a persistência
de um estado de exceção que é “essencialmente um espaço vazio, onde uma ação
humana sem relação com o direito está diante de uma norma sem relação com a vida”215
e Safatle diagnosticou como sendo resultado de uma guinada da sociedade da satisfação
administrada para uma sociedade da insatisfação administrada216, na qual os indivíduos
não acreditam mais nas promessas de emancipação, vinculadas pelo sistema de
mercadorias, e ficam propensos a determinações provisórias (que na verdade não é o
reconhecimento de sua alteridade). No que se refere a esse último autor, inclusive, é
importante assinalar que na sua compreensão do capitalismo atual a metamorfose é
pressuposta como necessária para os indivíduos, que agora ao invés de aprisionados na
reposição de personagens estariam presos à substituição infinita das personagens. O
segredo dessa nova etapa da sociedade capitalista, na visão de Safatle, está naquilo que
o autor denomina como “ironização absoluta dos modos de vida”.

Pois, em uma sociedade da insatisfação administrada, os sujeitos não são mais


chamados a identificar-se com tipos ideais construídos a partir de identidades
fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e certa ética de convicção,
fato impossível em uma situação de crise de legitimidade como a nossa. Na
verdade, eles são cada vez mais chamados a sustentar identificações irônicas,
ou seja, identificações nas quais, a todo momento, o sujeito afirma sua distância
em relação àquilo que ele está representando ou, ainda, em relação a suas
próprias ações. Pois uma exigência irrestrita de gozo que procura realizar-se
através da anulação de toda determinidade “restritiva” encontra sua forma
perfeita na ironia absoluta que reenvia todo vínculo com a determinidade ao
campo inefetivo.217

213
Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social como metamorfose humana em busca de
emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico e HABERMAS, Jürgen. A
crise do Estado de bem-estar e o esgotamento das energias utópicas.
214
BAUMAN, Zigmunt. Para una sociologia crítica. p.197. Tradução nossa: “el poder consiste en el
monopolio o privilegio en el campo de la interpretación del significado”.
215
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p..131.
216
SAFATLE, Vladmir. O cinismo e a falência da crítica. p.133 et seq.
217
Ibidem. p.134.
171

Os resultados negativos dessa guinada nas identidades são evidentes para o autor.
Safatle acredita que esse é o motivo pelo qual os grandes sintomas da
contemporaneidade (obsessividade e conversão histérica) terem sido substituídos pela
depressão e ansiedade, que “pressupõem a consciência tácita da incapacidade de
sustentar escolhas de objeto”218. A sustentação dessa forma de socialização capaz de
manter identificações socialmente disponibilizadas, passa a ser identificada como
“cinismo”, uma vez que esse nome reflete a ironia necessária para se viver em uma
sociedade que se submete a essa administração da insatisfação. Safatle, nesse sentido,
assume plenamente as considerações de Žižek, para quem o indivíduo que acredita no
discurso neoliberal hegemônico “não pode ser ao mesmo tempo inteligente e honesto:
ou é estúpido ou um cínico corrompido”219. O cinismo é aqui identificado como um
movimento duplo no qual saber e não-saber podem coexistir conjuntamente,
caracterizando a forma perversa da negação. Essa condição, por sua vez, inaugura um
novo problema: os indivíduos transformarem-se em objeto do gozo do outro por
contrato, “ser Senhor e escravo por contrato é uma forma absolutamente paródica de
reconhecer a autonomia dos sujeitos”220. Em outras palavras, articulando o conceito de
cinismo com a linguagem habermasiana, poderíamos dizer que com a colonização do
mundo da vida pela lógica sistêmica, que preza os fins econômicos à solidariedade, as
condições as relações de reconhecimento recíproco transformam-se em relações
mercadológicas, cuja própria ação comunicativa não consegue operar.
No nosso caso, fica evidente que indivíduos diagnosticados como doentes
mentais, “portadores de sofrimento mental”, encarnam completamente essa condição,
“a figura do contrato pressupõe previamente o reconhecimento da dignidade dos
sujeitos que deixam de lado sua dignidade a fim de sustentar uma encenação limitada
no tempo e no espaço”221. Ciampa já havia nos mostrado isso n’A estória do Severino e
a História da Severina quando assinala o episódio em que Severina permanece escrava
do discurso médico-psiquiátrico e se vê inutilizada. O reconhecimento médico-
psiquiátrico de sua doença transforma-se naquilo que Charles Taylor denominou como
discriminação invertida não percebida222. Nesse momento, inclusive, Ciampa apresenta
uma artimanha utilizada por Severina frente ao discurso que a negava enquanto pessoa:
218
SAFATLE, Vladmir. O cinismo e a falência da crítica. p.137.
219
ŽIŽEK, Slajov. Bem-Vindo ao deserto do Real! p.90.
220
SAFATLE, Vladmir. Op. cit. p.162.
221
Ibidem. Loc. cit. [grifos do autor]
222
Cf. TAYLOR, Charles. La politica del riconoscimento.
172

enganar o médico para continuar definitivamente afastada pelo INPS de modo a poder
continuar recebendo pensão mensal como “incapacitada” e informalmente trabalhar
“sem registro”. Ele nos adverte, entretanto, quanto aos perigos de fazer uma
interpretação convencional da situação:

É preciso sempre lembrar o significado real da situação para Severina, e não o


aparente. Caso contrário, fica ilógico: Severina tinha parado de trabalhar no
hospital porque se tornara uma doente mental. Logo, o desejável seria que
quisesse deixar de ser doente mental para voltar a trabalhar. Contudo, está
trabalhando e tem medo de não ser mais declarada doente mental; chega até a
enganar o médico do INPS. Certamente, para Severina, deixar de ser doente
mental era continuar sendo declarada doente mental, não voltar para o mundo
que a enlouquecera, e ficar naquele refúgio onde de vez em quando podia fazer
molecagens [seria uma regressão de sua situação – AFL].
O próprio fato de voltar a trabalhar dá a impressão de algo ilógico – pelo menos
do ponto de vista da lógica vigente no mercado de trabalho (...).223

Torna-se claro que essa estratégia de continuar encenando a personagem Louca,


no caso de Severina, serviu como resposta à falta de reconhecimento de sua totalidade,
de sua dignidade, por parte do social224. Ela aceita (estrategicamente) o reconhecimento
perverso que lhe fora atribuído ao ser diagnosticada como doente mental —
reconhecimento perverso não porque a reconhece enquanto alguém que está ali com
uma situação problemática, mas perverso porque desconsidera toda sua história e a
convence de que o problema é uma loucura individual — e dramatiza a personagem
frente ao medico (não como escrava, mas como atriz que espera ser bem sucedida no
papel desempenhado), até ser aposentada. Por invalidez? Não. Poderíamos dizer que foi
por sensatez (contradizendo a condição pressuposta de arrazoada), já que o diagnóstico
não a aprisionou à personagem. Podemos dizer que, no caso de Severina, o
reconhecimento de uma nova personagem (louca) e a possibilidade de representar outra
personagem (moleque) ao mesmo tempo, criaram as condições para sua alterização
futura: o reconhecimento posterior, obtido no budismo, de sua responsabilização por si-
mesma, o que, enfim, concretizou sua condição de humana. No que se refere a essa
última colocação (do reconhecimento institucional), inclusive, Ciampa reforça sua
importância no último episódio da dramaturgia encarnada por Severina:

223
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.89.
224
Ibidem. p.86 et seq.
173

Recorrendo novamente a uma metáfora, poderíamos ver aqui um diretor de


teatro insistindo com um ator para que este viva a personagem que está
representando. Não basta apenas agir como a personagem; é necessário pensar,
sentir, acreditar como ela: ter a fé e a convicção que caracterizam a
personagem. É preciso ingressar no seu mundo, conhecê-lo, migrar para esse
mundo e nele viver como o mundo! Não é só outra personagem, também é
outra peça teatral; é outra personagem e outra história. Não basta simular,
caricaturar. É necessário identificar-se com ela e com seu drama.225

E é recorrendo a esse episódio que podemos encontrar elementos para retomar


nossa discussão acerca do sofrimento de indeterminação e das condições de
reconhecimento da identidade do doente mental. Para tanto, somaremos às
contribuições acerca do reconhecimento da identidade elaborada por Ciampa e
Habermas, as reflexões de Axel Honneth, que considera a identidade como inevitável
luta por reconhecimento. Adiantando que às proposições aqui realizadas por Honnet
acerca da importância do reconhecimento da identidade para o exercício da alteridade
realizadas por esse último não serão contrárias às desenvolvidas por Ciampa. E que isso
se deve ao fato de o próprio Honneth assumir que seu objetivo é atualizar o projeto
hegeliano para fundar uma teoria social com conteúdo normativo; o que pretende
realizar a partir da exploração do que ele chama de déficit sociológico dos autores
frankfurtianos, principalmente Habermas, o qual acusa de ter dedicado muita atenção às
influências sistêmicas no mundo da vida e negligenciado o potencial de transformação
dos movimentos sociais226.
Para Honneth a análise da colonização do mundo da vida pela lógica sistêmica
deve ser direcionada para a explicitação das condições de reconhecimento na sociedade
capitalista. O diagnóstico das patologias da modernidade ao invés de se embasar no
diagnóstico dos impedimentos da fala livre de coerção, direciona-se para o diagnóstico
dos pressupostos intersubjetivos da formação identitária, consolidada na luta por
reconhecimento. O problema do reconhecimento — explorado nas obras do jovem
Hegel e na psicologia social de Mead, e que aparece em Habermas como elemento
necessário para a constituição do Eu —, é retomado em Honneth como conceito central
que possibilita potencializar a Teoria Crítica e redirecioná-la para o entendimento das
mudanças sociais proporcionadas pela imposição do capital, em que mercado e Estado

225
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.107.
226
Estes, como vimos, na perspectiva aqui adotada são considerados os tensionadores do deslocamento
dos pontos fixos (inscrições simbólicas) de determinadas políticas de identidade.
174

fomentam as instituições sociais que são cristalizações dos processos de aprendizado


moral.
A compreensão de que a busca pelas condições ideais de fala, proposta na teoria
da ação comunicativa (pensada por Habermas como prévia ao conflito), deixa para o
segundo plano a dinâmica do conflito social (distanciando a teoria da ação comunicativa
do projeto original da Teoria Crítica), leva Honneth a buscar nos próprios escritos
habermasianos os elementos que teriam sido negligenciados e impedido Habermas de
vislumbrar na luta pelo reconhecimento227 a verdadeira gramática dos conflitos sociais.
Não é por acaso que as referências principais em Luta por reconhecimento — trabalho
em que esse autor elabora o que chama sistematicamente de “teoria social com teor
normativo”228 e “teoria crítica da sociedade”229, apresentando sua “gramática dos
conflitos e da lógica das mudanças sociais” —, sejam os escritos do jovem Hegel e a
psicologia social de Mead. A articulação desses dois autores, segundo o próprio
Honneth, possibilita uma distinção conceitual das diversas etapas do reconhecimento.

Portanto, com a inclusão da psicologia social de Mead, a idéia de que o jovem


Hegel traçou em seus escritos de Jena com rudimentos geniais pode se tornar o
fio condutor de uma teoria social de teor normativo; seu propósito é esclarecer
os processos de mudança social reportando-se às pretensões normativas
estruturalmente inscritas na relação de reconhecimento recíproco.230

Ao retomar os escritos de Jena, Honneth considera válidas as críticas realizadas


por Habermas no Discurso filosófico da modernidade, de que esses escritos trazem
consigo uma retaguarda metafísica, e reforça a tese de que toda abordagem que tentar
buscar uma retomada dessa teoria filosófica encontra-se na obrigação de um contato
direto com as ciências empíricas. Isso, segundo sua concepção, eleva a “luta por
reconhecimento” — identificada por Hegel para além de uma teoria normativa das
instituições, ou ainda, para além de uma teoria da concepção moral ampliada no plano
da teoria da subjetividade — para uma perspectiva teórica com forte teor normativo,
que por sua vez, deve lidar com três problemas: a) explicar como se dá a constituição de
um Eu que depende de um reconhecimento recíproco para assim poder se colocar como

227
Uma ótima discussão acerca do reconhecimento pode ser encontrada em: RICOEUR, Paul. O
Percurso do reconhecimento.
228
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.23.
229
Ibidem. p.24.
230
Ibidem. p.155.
175

autonomamente agente e individuado; b) partindo das premissas da teoria da


intersubjetividade, assinalar como as diversas formas de reconhecimento recíproco
distinguem-se umas das outras segundo o grau de autonomia possibilitando a ação
política autônoma, sendo necessárias e inerentes ao aumento do desenvolvimento
capitalista; e c) demonstrar como no curso da formação identitária, mediada pelas etapas
de uma luta moral, os sujeitos são compelidos a entrar num conflito intersubjetivo, cuja
pretensão é o reconhecimento de sua pretensão de autonomia, até então não confirmada
socialmente. Segundo Honneth, os dois primeiros problemas podem ser resolvidos pela
Psicologia Social de George Mead, uma vez que seus escritos “permitem traduzir a
teoria hegeliana da intersubjetividade em uma linguagem teórica pós-metafísica”231 e
ainda por cima mostram como a luta por reconhecimento é “o ponto referencial de uma
construção teórica que deve explicar a evolução moral da sociedade”232. Honneth233,
assim como Habermas234, defende a tese de que a Psicologia Social de George Mead é a
única capaz de oferecer elementos para uma Teoria Crítica pós-metafísica.
Como já havíamos adiantado, a contribuição de Mead volta a aparecer em
nosso texto, o que nos leva a entender que é importante apresentarmos uma síntese de
seu pensamento. Os dois autores trabalhados até agora concordam que George Mead
conseguiu desenvolver plenamente a compreensão da relação entre o indivíduo e a
sociedade. Nos escritos de Mead a compreensão dos processos de interação social, da
linguagem e dos objetos físicos do mundo material são elementos centrais no processo
de entendimento da formação do self e da construção das identidades sociais. A
consciência para Mead é social, sendo uma função e não uma substância desenvolvida
no cérebro. A comunicação entre sujeitos não aconteceria numa esfera mental, mas num
campo comunicacional, resultante da complexidade dos processos sociais em que os
indivíduos estão imersos. Assim Mead, partindo de uma explicação naturalista, procura
mostrar como, a partir dos gestos, surgem os sinais e os símbolos e, posteriormente, as
convenções semânticas válidas intersubjetivamente.
O sujeito individual surge no momento em que ele incorpora os referenciais
intersubjetivamente compartilhados e pode dizer “Eu” de si mesmo. Esse processo,
longe de ser reduzido a um determinismo fisiológico ou psíquico, segundo Mead,
231
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.123.
232
Ibidem. p.125.
233
Cf. Ibidem. p.125-154.
234
Cf. HABERMAS, Jürgen. Individuação através da socialização. Sobre a teoria da subjetividade
de George Herbert Mead. p.183-234.
176

somente se torna possível num processo de socialização e individuação. Em Mind, Self,


and Society235, o autor ilustra esse processo de desenvolvimento, como se sabe,
recorrendo primeiramente a duas fases da atividade lúdica infantil, que ele denominará
de play e game236. Na primeira fase a criança entra em relação com os objetos e se
apropria do outro por meio de suas próprias atitudes, para depois reagir a isso
complementariamente na própria ação; posteriormente a criança desenvolveria a
capacidade de interagir num jogo com regras. Essa etapa é conhecida por games
justamente pela inclusão das regras que determinam os padrões de comportamento dos
participantes no jogo. Uma vez incorporada a regra, o indivíduo consegue atingir seus
objetivos em conjunto e não mais individualmente, não sendo mais necessária a regra
coletiva para que ela se estabeleça, pois é criada e mudada pelo próprio indivíduo. Esse
resultado é explicado em Mead como o desenvolvimento do “outro generalizado”, que
se caracteriza, como o próprio conceito explicita, como a generalização das
expectativas de comportamento de todos os membros da sociedade, o que possibilita,
como bem descreve Odair Sass, “internalizar conscientemente o mundo exterior, e
suplantar a si mesmo, convertendo a si mesmo, como consciência de si, no seu outro.
(...) o que Mead, e outros autores denominam de diálogo interiorizado”237.

A proposição meadiana acerca do outro generalizado leva Honneth a entender


que:

Se o sujeito, pelo fato de aprender a assumir as normas sociais de ação do


“outro generalizado”, deve alcançar a identidade de um membro socialmente
aceito de sua coletividade, então tem todo o sentido empregar para essa relação
intersubjetiva o conceito de “reconhecimento”: na medida em que a criança em
desenvolvimento reconhece seus parceiros de interação pela via da
interiorização de suas atividades normativas, ela própria pode saber-se
reconhecida como um membro de seu contexto social de cooperação.238

Honneth entende ainda que até esse momento Mead consegue desenvolver uma
versão de psicologia social alternativa à teoria do desenvolvimento da identidade do
jovem Hegel. Entretanto, no que se refere ao conceito de reconhecimento, o autor
representante da Escola de Chicago teria levado a teoria hegeliana para um outro nível.

235
MEAD, George Herbert. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist.
236
Cf. Ibidem. p.152-164.
237
SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.205.
238
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.136.
177

É verdade que falta em Mind, Self and Society qualquer referência a uma etapa
de reconhecimento recíproco como a que Hegel tentou caracterizar com seu
conceito romântico de “amor”; talvez seja essa a razão também de as
explicações de Mead terem poupado a forma elementar de auto-respeito dada
com a formação de uma confiança emocional nas próprias capacidades. Mas,
com vista à relação de reconhecimento que Hegel introduziu em seu modelo
evolutivo com uma segunda etapa, sob o conceito genérico de “direito”, a
concepção de “outro generalizado” não representa apenas uma complementação
teórica, mas também um aprofundamento objetivo: reconhecer-se
reciprocamente como pessoa de direito significa que ambos os sujeitos incluem
em sua própria ação, com efeito de controle, a vontade comunitária incorporada
nas normas intersubjetivamente reconhecidas de uma sociedade. Pois, com a
adoção comum da perspectiva normativa do “outro generalizado”, os parceiros
da interação sabem reciprocamente quais obrigações eles têm de observar em
relação ao respectivo outro; por conseguinte, eles podem se conceber ambos,
inversamente, como portadores de pretensões individuais, a cuja satisfação seu
defrontante sabe que está normativamente obrigado.239

O pensamento de Mead seria compatível com o de Hegel também pela


constatação de que a relação jurídica de reconhecimento se torna incompleta se não
puder expressar as diferenças individuais entre os participantes de uma coletividade.
Todavia, novamente Mead apresentaria uma vantagem frente ao pensamento
hegeliano por incorporar no desenvolvimento da identidade o potencial criativo do
“Eu”. O “Eu” na proposta teórica meadiana é a reação espontânea frente a novas
situações. Como disse o próprio Mead, “é portanto graças ao ‘Eu’ que dizemos nunca
ter consciência plena do que somos, que nos surpreendemos com nossa própria
ação”240, àquilo que Ciampa denominou como expressão do outro outro que também
sou eu. Enquanto na sua relação com o outro generalizado o "mim" expressa a
convencionalidade, a tradição e a adaptação, o "Eu" enquanto instância de liberdade
expressa a novidade, a transgressão e a originalidade. De forma dinâmica, como
explica Mead, “o ‘mim’ é o conjunto organizado das atitudes dos outros que o
indivíduo adota para si mesmo. As atitudes dos outros constituem o mim organizado
e então o indivíduo reage a elas como um ‘eu’”241. Valendo-nos da contribuição de
Sass, podemos dizer que o “Eu” é a fase: “que se exterioriza, reagindo à atitude dos

239
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.138-139.
240
MEAD, George Herbert. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.174.
Tradução nossa: "It is because of the "I" that we say that we are never fully aware of what we are, that
we surprise ourselves by our own action."
241
Ibidem. p. 175. Tradução nossa: ""me" is the organized set of the attitudes of the others which one
himself assumes. The attitudes of the others constitute the organized "me", and then one reacts toward
that as an "I"."
178

outros”, enquanto que o “mim” é a fase “que internaliza aquelas atitudes”242. Para
Honneth, essa contribuição reforça a tese de que o desenvolvimento da identidade, ao
contrário do a priori habermasiano da estabilidade, é conflito.

Se esse potencial de reação criativa do “Eu” é concebido como contraparte


psíquica do “Me”, então salta à vista rapidamente que a mera interiorização da
perspectiva do “outro generalizado” não pode bastar na formação da identidade
moral; pelo contrário, o sujeito sentirá em si, reiteradamente, o afluxo de
exigências incompatíveis com as normas [ponto fixo, inscrição simbólica]
intersubjetivamente reconhecidas de seu meio social, de sorte que ele tem de
pôr em dúvida seu próprio “Me”. Esse atrito interno entre “Eu” e “Me”
representa para Mead as linhas gerais do conflito que deve explicar o
desenvolvimento moral tanto dos indivíduos como das sociedades: o “Me”
incorpora, em defesa da respectiva coletividade, as normas convencionais que o
sujeito procura constantemente ampliar por si mesmo, a fim de poder conferir
expressão social à impulsividade e criatividade do seu “Eu”. Mead insere na
auto-relação prática uma tensão entre vontade global internalizada e as
pretensões da individuação, a qual deve levar a um conflito moral entre o
sujeito e seu ambiente social; pois para poder pôr em prática as exigências que
afluem do íntimo, é preciso em princípio o assentimento de todos os membros
da sociedade, visto que a vontade comum controla a própria ação até mesmo
como norma interiorizada. É a existência do “Me” que força o sujeito a engajar-
se, no interesse de seu “Eu”, por novas formas de reconhecimento social.243

Tendo isso em vista, fica claro que para Mead o indivíduo somente consegue se
diferenciar em face ao meio social, ampliando a extensão de seus direitos e autonomia.
Claro está também que essa concepção já se apresentava nos escritos do jovem Hegel. O
diferencial encontrado na Psicologia Social de Mead, portanto, é que o movimento de
reconhecimento individual está condicionado pela ação incontrolável do “Eu”, que
atualiza continuamente o outro generalizado. O que Mead não teria conseguido
diferenciar muito bem, e que deixaria Hegel com uma vantagem, segundo Honneth,
seria a relação entre a generalização das normas sociais e a ampliação dos direitos à
liberdade individual. Hegel, nesse sentido, “não só fez nos seus primeiros escritos que a
relação amorosa precedesse, na qualidade de uma primeira etapa do reconhecimento, a
relação jurídica, como também distinguiu dela uma outra relação de reconhecimento, na
qual a particularidade do sujeito individual deve obter confirmação”244.

242
SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.231.
243
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.141.
244
Ibidem. p.146.
179

Honneth, inclusive, entende que se Mead tivesse se atentado a essa questão teria
incluído em sua teoria a discussão acerca da eticidade. Lembremos que na obra juvenil
de Hegel a presença do indivíduo se anula em proveito do povo, a identidade é a
unidade que transforma os indivíduos em uma universalidade viva em que todos são
apenas um, “o particular, o indivíduo, é enquanto consciência particular, pura e
simplesmente igual ao universal; e esta universalidade, que sem mais unificou consigo a
particularidade, é a divindade do povo”245. Finalmente, Honneth dirá que Mead de fato
abordou ser nossa tarefa, mas depois abandonou, dotar o outro generalizado com um
common good, que possibilitasse a todos os indivíduos conceberem igualmente seu
próprio valor para a coletividade, sem com isso abrir mão da realização autônoma do
Self. Com isso, volta novamente a se igualar a Hegel no que se refere a não conseguir
demonstrar como as formas de desrespeito podem se tornar experienciáveis para os
atores sociais, “na qualidade de um equivalente negativo das correspondentes relações
de reconhecimento, o fato do reconhecimento negado”246.
Isso faz com que Honneth insista no estudo das três formas distintas de
reconhecimento encontradas em Hegel: a) emotiva, que é responsável pelo
desenvolvimento de confiança em si, indispensável para os projetos da auto-realização
pessoal247; b) jurídico-moral, cuja dimensão é responsável pelas relações baseadas no
direito, possibilitando o auto-respeito; e c) estima social, que, baseada na solidariedade
social, potencializa os projetos de auto-realização a ponto de torná-los universalizáveis.
O reconhecimento assume para Honneth, na sua dimensão mais profunda, uma espécie
de constituição social de base afetiva, primária de cada indivíduo (o amor), que em
Hegel já era explicitado na proposição: ser si-mesmo num estranho248, abrindo espaço
para a retomada da Psicanálise como teoria auxiliar da Teoria Crítica. Como escreve o
próprio Honneth, “é dito das relações primárias afetivas que elas dependem de um
equilíbrio precário entre autonomia e ligação, o qual constitui o interesse diretivo pela
determinação das causas de desvios patológicos na teoria psicanalítica das relações de

245
HEGEL, Georg W. F. O sistema de vida ética. p.55.
246
HONNETH, Axel. Op. cit. p.157.
247
Honneth escreve que com Hegel é possível dizer que “o indivíduo deve aprender em certa medida que
o caráter negativo do direito formal contém ao mesmo tempo a grande vantagem de poder nesse caso
prescindir de todas as relações concretas e papéis sociais, para com isso insistir na própria
indeterminação e abertura.” Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral
dos conflitos sociais. p.90.
248
HEGEL, G. W. F. Op. cit. p.22.
180

objeto”249. Não será, portanto, a linguagem destruída ou o texto deformado que


interessará a Honneth; em seu resgate da Psicanálise esse autor toma um rumo diferente
ao adotado por Habermas. Sua preocupação é pré-linguistica, mais precisamente, recai
sobre os estudos empíricos de Donald W. Winnicott, atualizados por Jessica
Benjamin250.

Não é a ampliação intersubjetiva do quadro explicativo psicanalítico como tal o


que faz a teoria das relações de objeto parecer especialmente apropriada para os
fins de uma fenomenologia das relações de reconhecimento; ela só permite uma
ilustração do amor com uma forma determinada de reconhecimento em virtude
do específico pelo qual o sucesso das ligações afetivas se torna dependente da
capacidade, adquirida na primeira infância, para o equilíbrio da simbiose e a
auto-afirmação. Essa idéia central, na qual as intuições do jovem Hegel
encontram confirmação num grau surpreendente, teve seu caminho preparado
pelo psicanalista inglês Donald W. Winnicott.251

Winnicott escreveu seus trabalhos da perspectiva de um pediatra com postura


psicanalítica que busca esclarecer os distúrbios comportamentais, articulando-os às
condições sociais de desenvolvimento psíquico. Para esse autor interessava esclarecer
os processos por meio dos quais o ser humano começa a existir desde seu próprio ponto
de vista, constituindo-se como um si-mesmo. A teoria psicanalítica nessa perspectiva
não mais se embasaria pela neurose, mas sim pelos sofrimentos de desrealização e
despersonalização, na qual as limitações do individuo não seriam o resultado de cisões
existenciais, mas de uma falha ambiental, que teria impossibilitado o indivíduo perceber
que a vida vale a pena ser vivida — proposições que distinguem de imediato a
abordagem winnicottiana da tradição ortodoxa que remonta a Freud e insere o autor
comodamente nas preocupações teóricas de Honneth embasadas por Hegel e Mead252.
Em relação a esses últimos, inclusive, podemos encontrar vários trechos em que a
Psicanálise serviria de complemento para explicar a socialização e a individuação, como
o reproduzido abaixo:

249
HONNETH, Axel. Op. cit. p.160.
250
Segundo Honneth, Jessica Benjamin empreendeu uma primeira tentativa de interpretar, com os meios
psicanalíticos, a relação amorosa como um processo de reconhecimento recíproco.
251
Ibidem. p.163-164.
252
Salta aos olhos a proximidade teórica referente ao self nas concepções de Mead e Winnicott. Esses
autores nos trazem uma concepção diferenciada de se pensar a constituição do eu, em que o individuo,
ao nascer, precisaria de um outro significativo, que seria responsável pela socialização das pulsões e,
ocorrendo êxito nesse processo, teríamos o surgimento do self, ou nos termos de Winnicott, de um
verdadeiro self.
181

De um modo complexo (que tem sido estudado), o desenvolvimento,


especialmente no início, depende de um suprimento satisfatório. Pode-se dizer
que um ambiente satisfatório é aquele que facilita as várias tendências
individuais herdadas, de tal forma que o desenvolvimento ocorre de acordo
com elas. Herança e meio ambiente são ambos fatores externos, se falamos em
termos do desenvolvimento emocional de cada pessoa, ou seja, da
psicomorfologia. Pode ser muito útil postular que o meio ambiente satisfatório
começa com um alto grau de adaptação às necessidades individuais da
criança.253

Para Winnicott a relação com um outro significativo (mãe) também é vista como
imprescindível, na medida em que somente a partir dessa relação (suficientemente boa),
torna-se possível a integração do bebê, impulsionando-o a “uma categoria unitária, ao
pronome pessoal ‘eu’, ao numero um; isso torna possível o EU SOU, que dá sentido ao
EU FAÇO”254. O ser humano é entendido por Winnicott como um acontecimento, o
resultado de um processo. Ao nascer o ser (que ainda nem é humano) é apenas um soma
(corpo), sem mundo interior (psique); esse ser, chamado pela linguagem que o acolhe de
bebê, necessita de uma mãe, ou substituta desta, capaz de lhe fazer sentir que a vida vale
a pena de ser vivida, proporcionando assim a vivência da ilusão, necessária para que
este possa desenvolver posteriormente objetos subjetivos. Winnicott descreve a fase
anterior à ilusão e ao sentido para a existência, como um momento do “não estar vivo”.
Não estar vivo psiquicamente aponta a necessidade objetiva de um outro para o
desenvolvimento do “eu”.
A constituição do Self, como escreve Tânia Aiello Vaisberg, “é um fenômeno
que se dá no encontro da criança com o mundo humano, com o qual entra em contato,
inicialmente, através da mãe, da família e de quem se encarregue de seu cuidado”255. Se
este for bem sucedido, tem-se a superação da condição de dependência absoluta,
partindo-se para uma dependência relativa, momento em que a criança pode ser aquele
“si-mesmo em um estranho”, proposto por Hegel. Essa fase é importante para Winnicott
na medida em que nela a criança encontra-se em condições de um relacionamento com
os objetos escolhidos, no qual ela suporta a separação da mãe mantendo a confiança na
continuidade do amor desta. Ao ponto de a partir desse sentimento de pertencimento ser
capaz de estar só consigo mesma. Nas palavras do próprio Winnicott, “à medida que o
self se constrói e o indivíduo se torna capaz de incorporar e reter lembranças do cuidado

253
WINNICOTT, Donald W. Tudo começa em casa. p.04.
254
Ibidem. p.11.
255
VAISBERG, Tânia Aiello. Ser e Fazer. p.177.
182

ambiental, e portanto de cuidar de si mesmo, a integração se transforma num estado


cada vez mais confiável”256.
O inverso também interessa para Honneth; a esse respeito vemos o autor buscar
elementos na obra de Jessica Benjamin, que investigou as “deformações patológicas da
relação amorosa”257. Honneth assinala que essa autora consegue demonstrar
empiricamente como as relações “masoquistas” e “sádicas”´eram fruto da não superação
da fase simbiótica que o indivíduo tinha com a mãe. Em uma articulação com o
pensamento da psicanalista, Honneth insiste que nesse caso “a dependência
simbioticamente alimentada de um parceiro da relação amorosa acaba se relacionando
de modo complementar com as fantasias de onipotência de matriz agressivo, às quais se
fixa o outro parceiro”258. Como podemos observar, o desenvolvimento primário da
capacidade de autoconfiança é visto por Honneth como a base das relações sociais entre
adultos. A ponto de o autor sustentar que esse nível de reconhecimento é reponsável não
só pelo auto-respeito como também pela autonomia necessária para a participação na
sociedade.
Parece-nos que é possível acolher as proposições desenvolvidas por Honneth
baseados na história de Severina, onde a importância do reconhecimento de
personagens humanizadoras para a promoção da alteridade humana ficou evidenciada.
Ciampa pode demonstrar empiricamente o que Honneth explora em Luta por
Reconhecimento. Entretanto, é importante lembrar que nem todas as histórias de vida
são “bem sucedidas” como a de Severina, nem todos possuem um patrão que pode
suportar as molecagens e reconhecer um outro outro surgindo pela frente, nem
encontrar uma instituição que reconheça sua humanidade. Chamamos atenção aqui
novamente para o reconhecimento médico-psiquiátrico de Severina. Nele ocorre o
inverso do que Severina vivencia na casa do patrão e na organização budista: no
hospital sua identidade é pressuposta, todas as suas personagens são reduzidas a uma
única personagem fetichizada, uma “identidade de louca”.
Ciampa já assinalava n’A estória do Severino e a História da Severina, que a
história de Severina fala de nós259, que somos vários Severinos e Severinas massacrados
pela sociedade capitalista. Como temos assinalado, sua análise, articulada aos

256
WINNICOTT, Donald W. Natureza Humana. p.137.
257
Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.175.
258
Ibidem. p.176.
259
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p. 125.
183

pressupostos históricos e teóricos trazidos até agora, permite que façamos a afirmação
de que a representação da “personagem louca”, que conferiu à Severina a pressuposição
de uma “identidade louca”, foi resultado de um discurso utilizado com o pretenso
interesse de diagnosticar o sofrimento individual, mas que em sua concretização se
expressou como elemento de administração da insatisfação, configurando ao invés de
um reconhecimento promotor de alterização (reconhecimento pós-convencional), um
reconhecimento perverso, que reduz as infinitas possibilidades de criação das
personagens à representação de uma identidade fetichizada, estigmatizada.
Isto posto, chega o momento de avançarmos para o nosso último itinerário, nele
apresentaremos nossa Severina e nossos Severinos, que serão chamados de forma
fictícia Ana, Gabriel e Francisco. Pessoas cujas narrativas de histórias de vida nos
ajudarão a explicitar empiricamente como as anamorfoses que trazem consigo todas as
contradições da sociedade capitalista, ao invés de serem acolhidas como expressão de
um sofrimento de indeterminação, são cooptadas pelo discurso técnico-psicológico,
configurando o que temos assinalado aqui como reconhecimento perverso. Essas
narrativas darão elementos para analisar criticamente a apropriação da personagem
doente mental atualmente por esses indivíduos, uma vez que ficará evidenciado que a
representação como doente mental tem se concretizado como saída possível para a
impossibilidade de representar personagens que explicitem as condições desumanas de
nossa sociedade.
TERCEIRA PARTE

ITINERÁRIO EMPÍRICO
III – A SAÚDE MENTAL INTERPELADA PELO SINTAGMA IDENTIDADE-
METAMORFOSE-EMANCIPAÇÃO: A (IM)POSSÍVEL RELAÇÃO
ENTRE A MANUTENÇÃO DA IDENTIDADE PRESSUPOSTA DE
DOENTE MENTAL E A LUTA POR RECONHECIMENTO DA
IDENTIDADE HUMANA.

Interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de


tal forma que se torna algo nosso. A tendência é nós
nos predicarmos coisas que os outros nos atribuem.
Até certa fase esta relação é transparente e muito
efetiva; depois de algum tempo, torna-se menos
direta e visível; torna-se mais seletiva, mais velada (e
mais complicada).
Antonio da Costa Ciampa1

Para bem caracterizar o que temos postulado como construção da personagem


doente mental, articulando com o sintagma identidade-metamorfose-emancipação
proposto por Ciampa, torna-se necessário que demonstremos empiricamente como esse
fenômeno tem se apresentado e para quê ele tem sido utilizado. Sendo assim, será
preciso ultrapassar o plano intelectual e compreender como as considerações trazidas
até agora se organizam na vida cotidiana, como estruturam a construção das identidades
em seu processo de metamorfose em busca de emancipação, como são impedidas ou
barradas em seu percurso, ou seja, como o empírico materializa o que até agora
havíamos trazido nos itinerários histórico e teórico. Acreditamos que somente assim a
idéia defendida, que nos parece tão clara, tão simples e, ao mesmo tempo, tão complexa
e pouco discutida pela Psicologia Social (tal como assinalamos no itinerário histórico
quando apresentamos a quantidade de teses de Psicologia que tomaram a saúde mental
como tema de análise e crítica), poderá caracterizar-se como uma proposta teórica frente
àquilo que identificamos como a persistência do discurso psiquiátrico no discurso da
saúde mental.
A maneira que encontramos para fazer isso foi adiantada no início da tese,
momento em que apresentamos nossa discussão acerca do objeto e método: dissemos
que assim como foi proposto por Ciampa na análise da história de Severina,
adotaríamos em nosso terceiro itinerário a narrativa de história de vida como
instrumento para a apresentação empírica de nossas proposições. Reforçamos naquele

1
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.131.
188

instante que quando focalizamos um momento da história de vida de determinado


indivíduo não significa que somente ali é que a metamorfose está se dando.
Acreditamos que seja importante resgatar essa informação pois o mesmo pode ser dito
quanto à escolha das personagens analisadas nas histórias de vida que virão a seguir,
uma vez que por conta do recorte que fizemos em nossa tese as personagens que ficarão
em evidência nas narrativas serão aquelas que foram produzidas pelo discurso da
doença mental, as quais, como poderá ser verificado, aprisionaram os indivíduos na
atuação da identidade pressuposta de doente mental. Temos clareza de que ao escolher
esse recorte assumimos que outras personagens ficarão em segundo plano, ou ainda,
poderão deixar de ser evidenciadas, um preço que pagaremos para não ficarmos
aprisionados na discussão de outras personagens, que embora importantes, nos
desviariam de nosso foco principal.
Frente a essa preocupação, adotamos uma maneira diferente daquela utilizada
por Ciampa para contar a história da Severina2, ou ainda, da maneira como contamos a
história de Lou-Lou em nossa dissertação de mestrado,3 uma vez que nessas duas
pesquisas o interesse foi assinalar como as diferentes personagens foram sendo criadas e
impedidas de se realizar, evidenciando as metamorfoses e o movimento de emancipação
a partir da auto-determinação. Focaremos aqui como foi sendo construída a personagem
doente mental em cada uma das histórias e o que essa personagem representa para os
indivíduos. Isso inevitavelmente nos levará a discutir as condições de reconhecimento a
que esses indivíduos estiveram/estão submetidos, uma vez que, como assinala
Habermas, o indivíduo, enquanto singularidade histórica, “só pode ser acessado
performativamente, a saber, pelo caminho de um reconhecimento da alteridade do
outro, a ser obtido no decorrer de uma interação”4. Nesse momento, o conceito de
anamorfose desenvolvido por Almeida, articulado ao sintagma apresentado por Ciampa,
nesse sentido, mostrar-se-á de extrema valia em nossa empreitada, pois, como vimos no
capítulo anterior, poderá nos ajudar a explicitar como formas de expressão identitárias
presentes no mundo da vida, as personagens que são representadas pelos indivíduos, são
administradas de forma a serem negadas e impedidas de apresentarem-se como
contradições do próprio sistema.

2
Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. Passim.
3
LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de identidade:
possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro. p.158 et seq.
4
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião. p.229
189

Acreditamos que ficará evidente que a diferença de nossa apresentação das


narrativas daquela realizada por Ciampa n’A estória do Severino e a História da
Severina, estará apenas no fato de que daremos maior ênfase de análise aos momentos
de indeterminação da identidade, na forma com que esses indivíduos se relacionaram
com a personagem doente mental e na importância do outro que reconhece essa
personagem (especialmente os especialistas: Psicólogo e Psiquiatra) nesse processo.
Essa estratégia provavelmente fará com que muitos detalhes não fiquem evidenciados,
todavia, faz parte de uma pesquisa dessa natureza lidar com o fato de que nunca
conseguiríamos dar conta de todas as possibilidades de leitura e interpretação. De
qualquer modo, as narrativas de história de vida aparecem aqui como uma vantagem:
nelas é possível trazer à tona as contradições individuais e articulá-las com o universal
dominante, ou utilizando palavras benjaminianas, com essas histórias será possível
explicitar como a concepção de doença mental/saúde mental é mais uma das
“exceções”, que fazem parte do fato de que todos somos “exceções” em um sistema
capitalista tardio, cuja mensagem sustentada é a de que se fossem tomadas as medidas
certas essas exceções poderiam ser eliminadas.
Sem querer adiantar as análises que virão a seguir, vale dizer que essas histórias
de vida demonstrarão como a perspectiva habermasiana de colonização do mundo da
vida pela lógica sistêmica não pode ser empregada de forma dualista, ou de forma
binária como escreve Prado5, uma vez que nas narrativas poderemos observar que essa
colonização instrumental se dá durante o processo de socialização e individualização
das identidades e, como o próprio Habermas reconhece, depende de condições de
reconhecimento (perverso) recíproco. Nas narrativas poderemos verificar como os
discursos “tendem a naturalizar-se, a funcionar como verdades definitivas, até que outro
discurso os questione e cobre ‘verdadeira’ visão dos estados de coisas.”6 Também vale
anunciar que retomaremos as contribuições de Žižek, Aidar Prado e Safatle, que
articulam a Psicanálise (lacaniana) com as ciências sociais e a filosofia e que se
mostraram como referências valiosas para pensar a reatualização do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação.
Isto posto, resta pedir paciência ao leitor, pois as histórias de Ana, Gabriel e
Francisco que traremos à cena não foram apenas difíceis de serem escritas, elas também

5
PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do intelectual: do extrato comunicável ao ato impossível.
p.89.
6
Ibidem. p.93.
190

são difíceis de serem lidas, não somente por sua riqueza e quantidade de matizes, mas
principalmente, pelo insuportável que elas carregam.7 Ficará claro que a idéia de
pesquisador como testemunha, proposta por Gagnebin8, mostrar-se-á extremamente
pertinente, uma vez que ao buscarmos a forma mais apropriada para trabalhar com essas
narrativas pessoais chegamos a uma espécie de intermediário entre a confissão, a
denúncia e o grito silenciado de socorro frente às incontáveis (im)possibilidades de
existência.

1 – A história de Ana: quando assumir uma personagem insustentável de doente


mental se mostra como a única possibilidade frente a uma outra personagem
insuportável

Esses dias fico pensando e choro... penso que eu nunca vou ser o que quero e o
que sempre quis ser... tanto tempo passou mas não tinha dinheiro pra isso... eu
até que tentei, fiz o que pude, trabalhei mas logo parei de andar (por querer ser
magra, apenas isso), hoje estou velha não vai dar tempo de nada mais, não vou
andar... e as cicatrizes que tenho, o que faço? Tudo se perdeu, nunca deixou de
ser um sonho, não quero mais sonhar porque só choro, só quero morrer, não
tem mais lugar aqui pra mim, não tenho o que fazer, nunca vou ser o que quero
ser ou o que um dia achei que poderia... tudo acabou pra mim, acho que não
devia ter vindo pra esse mundo, que tudo não passou de um erro... Na verdade,
queria muito que alguém me desse uma chance de eu mostrar que posso, que
sempre foi isso o que quis, que vou dar tudo de mim, que nada importa a não
ser o que quero... mas, deixa, acho que isso nunca vai acontecer, e vejo que
logo morro.9

Nosso primeiro contato com Ana foi a partir de sua identidade literalmente
virtual, marcada pela citação acima. Essa mensagem, que estava acompanhada de várias
outras, era complementada por fotos onde pedaços de seu corpo estavam expostos. À
primeira vista, a imagem apresentada de suas pernas, coxas e quadril, onde era possível
ver os ossos sob a pele, dava-nos a impressão de que não existiam músculos em seu
corpo, levavam a imaginar que o texto denunciava uma atitude suicida, uma auto-
aniquilação de si mesma. Naquele instante estávamos frente ao monitor de um
computador e havíamos acabado de ser adicionados em sua comunidade de amigos na

7
Talvez fosse desnecessário dizer que os nomes e lugares que poderiam identificar nossos entrevistados
foram todos alterados. Entretanto, alertamos para o fato de que caso exista alguma identificação do
leitor com alguma das histórias apresentadas não será uma mera coincidência, mas sim, uma afirmação
de que o problema ora apresentado é um problema de todos nós.
8
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, História, Testemunho.
9
Texto extraído do Blog da entrevistada, acessado a partir do acesso ao perfil da mesma em um site de
relacionamentos na Internet.
191

Internet, estávamos diante de uma das muitas pessoas que pretendiamos entrevistar para
a tese de doutorado10 e sentíamos o desconforto que todos nós sentimos frente a pessoas
que se denominam anoréxicas, ou melhor dizendo, frente à imagem que as anoréxicas
apresentam. Superado o desconforto inicial, possivelmente por conta do nosso interesse
em saber como era viver naquela situação, passamos a manter contato. Após algumas
semanas de conversas esporádicas, curtas e desconfiadas (Ana sempre dizia que não
queria ser tratada por Psicólogo e que se eu tentasse curá-la cortaria o contato),
finalmente conseguimos desenvolver um mínimo de confiança que fora indispensável
para que pudesse me aproximar e escutar sua história.
Com seu consentimento nos dirigimos à sua casa, que ficava em uma das muitas
periferias de São Paulo. Ana vivia em uma pequena casa de dois cômodos com a mãe e
um cachorro, convivia com o barulho de uma fábrica que ficava ao lado de sua
residência. Na ocasião da entrevista estava sozinha, sua mãe ainda não havia chegado
do trabalho, por isso pediu que pulássemos o muro, pois não podia sair de casa. Até
aquele momento não imaginávamos o que encontraríamos pela frente, uma vez que
sabíamos ser comum os indivíduos construírem nicknames11, personagens fictícios na
rede de computadores, e que nem sempre o indivíduo fora do mundo virtual
correspondia com a personagem virtual. Somente sabíamos que abrir a porta de sua casa
significava tomar contato com uma Ana diferente daquela que havíamos conhecido até
então. E de fato, ao atravessar a porta nos deparamos com uma garota em condições
extremamente vulneráveis, pouco peso, numa cadeira de rodas que sequer possibilitava
que chegasse à porta, haja vista o pouco espaço de locomoção que tinha disponível no
pequeno cômodo. Contrariando os textos e fotos deprimidas de seu Blog, que diziam
querer se afastar de todas as pessoas, recebeu-nos com um sorriso e dizendo que nunca
havia sido entrevistada, nunca havia imaginado que alguém se interessaria por sua vida.
Para contar-nos sua história, Ana faz um movimento que tenta justificar a
personagem que acreditava ser de nosso interesse: a identidade pressuposta que estava
sendo re-posta cotidianamente e que havia sido o elo de ligação entre nós. Acreditava

10
Havia pensado como estratégia de levantamento dos possíveis participantes da pesquisa em participar
de vários grupos que se auto-denominavam de alguma maneira como doentes mentais, pacientes,
usuários de instituições de saúde mental, ou ainda, dependentes de droga, dependentes de sexo,
bulímicos, anoréxicos, hiperativos etc., e de fato fui aceito em diversas comunidades e passei a
conversar com vários candidatos potenciais, entretanto, sempre que o encontro pessoal era anunciado
vivenciava o afastamento do possível entrevistado. Não compreendia muito bem o porquê desse
fenômeno até ter contato com a história de Ana, que me recebeu em sua casa e contou-me sua história.
11
Apelidos utilizados na Internet para preservar o anonimato da identidade do usuário.
192

que poderia nos mostrar como sempre foi anoréxica e como sua condição atual era algo
inevitável. Pergunta-nos se poderia então começar a contar sua história de vida desde o
início, que, semelhante ao relato de Severina trazido por Ciampa, também se mostrou
uma narrativa de alguém que descreve a infância que não teve, ou melhor dizendo, de
sua infância como criança humilhada pelos colegas de escola. Era filha do desejo
apenas de uma mulher (sua mãe) e trazia consigo algo que entende hoje como sendo o
prelúdio de sua história com a anorexia.
Mas não nos enganemos com essa primeira fala de Ana, que acredita que a
personagem que nos interessa é a personagem que conhecemos na Internet, pois
veremos que embora inicie seu relato falando da personagem anoréxica, o simples fato
de nascer prematura, com pouco peso, não será garantia da pressuposição da
personagem fetichizada, que luta ainda hoje para se manter reconhecida. Aliás, o
sentido da proposição anoréxica, a qual normalmente é atribuída a restrição alimentar,
já aparece na apresentação de Ana como uma proposição que explicaria à restrição não
somente de alimentos, mas também dos elementos que são incorporados socialmente
como necessários para o desenvolvimento normal de um indivíduo.

(...) quando eu nasci, a minha mãe falou que tava grávida pro meu pai, ele não
quis. Então minha mãe falou, eu quero e ficou só comigo e se separou dele...
nasci com problema, por causa de ser pequena, fiquei um monte de tempo lá na
incubadora. Pra crescer... minha mãe fala que eu já nasci anoréxica.

Sendo assim, iniciar com o anúncio da personagem que representa atualmente


serve para Ana encontrar um fio condutor para sua narrativa e, como ela mesma
comenta: mostrar como sua vida sempre foi de restrições e privações. Ana, que nesse
primeiro momento de sua vida representava uma criança prematura abandonada pelo
pai, conta-nos que sua infância é vivenciada em condições precárias, reconhecendo que
sua mãe foi a garantia mínima de conforto que pôde obter. Conforto que era conseguido
com a solidão experienciada nos vários dias em que ficou em casa sozinha por conta do
trabalho da mãe. Ana acredita, inclusive, que essa situação a fez aprender que a solidão
era algo normal, somente sendo neutralizada nos momentos em que ficava com sua
mãe, que compensava os momentos em que não estava ao lado de Ana com mimos,
dentre eles uma alimentação cuidadosamente preparada.
193

Minha mãe cuidava muito bem de mim quando estava em casa, aí eu só comia
as coisas que ela fazia pra mim... acho que ela me acostumou assim. Ela
comprava coisa natural pra eu comer, porque eu não conseguia comer as outras
coisas por causa de nojo. Era suco de laranja que minha mãe fazia na hora, era
ovo caipira, arroz integral, feijão, açúcar mascavo, essas coisas. E, sempre foi
assim. (...) salada, esse tipo de coisa (...) comia bastante porcaria, sabe...
bastante sorvete, bastante chocolate, era uma criança normal...

A Ana de hoje, que esforça-se em representar a Ana anoréxica, assinala que a


Ana de ontem mantinha uma relação afetiva com a alimentação que, ao ser oferecida
como algo individualizado, reforçava o amor de sua mãe, compensando de certa
maneira a falta dessa. Ana assinala que durante esse período de sua vida não vive
nenhum problema com a comida, nem com seu corpo. Aliás, o problema com a comida
estava na dificuldade que encontrava em se alimentar por conta das dificuldades
financeiras da mãe, que não podendo comprar lanches para Ana levar para a escola fazia
com que esta última tivesse que lidar com a falta de alimento durante toda sua infância e
adolescência. É importante destacar que a relação alimento x corpo, inclusive, somente
será problema para a Ana de hoje, nesse momento, como ela mesma assinala, nem se
“importava tanto [com a comida] e também não sabia que se não comesse eu ia
emagrecer ou se eu comesse eu ia engordar”. Pelo contrário, ser magra, principalmente
a partir do momento em que começa a ir para a escola, torna-se motivo de humilhação.
Isso porque não era considerada um tipo ideal de indivíduo. Como ela mesma descreve:

Eu por ter o cabelo encaracolado, diferente das meninas que eram da minha rua,
eu por ser magrela, me rebaixavam. Eles botavam apelidos, sabe... eu não
gostava... me sentia mal. Então, eu queria ser diferente, não queria ser daquele
jeito, eu queria ser sempre como... sei lá... como uma menina... não que eu não
me achasse menina... eu queria ser como aquelas que eram amigas deles, esse
tipo de coisa. Não queria ser a excluída ou a apelidada.

Eles me enchiam bastante o saco. E por minha mãe ter o cabelo curto, eles
apelidavam ela e eu não gostava, sabe... desde criança. E pensando bem eu era
meio retraída, quase nunca ficava de cabelo solto e eles me chamavam de leão.
Parece até meio engraçado, mas eu odiava. E eles [os meninos] falavam que
nunca ficariam comigo sabe... porque eu parecia um menino.

A representação de si-mesma era confrontada com um outro generalizado cruel


que lhe apresentava um apavorante paradoxo: representava cotidianamente uma forma
de existência que era rejeitada pelos outros, ao mesmo tempo em que era apresentada
como única existência possível, uma vez que aquilo que era rejeitado era sua própria
194

identidade. Ana de repente percebe que a realidade é extremamente hostil, que para ser
aceita deveria ser uma outra. Esse paradoxo nos leva a adiantar algumas questões: como
criar novas personagens e vivenciar a alteridade quando não conseguia sequer o
reconhecimento de sua existência? A humilhação nesse caso levaria Ana à
impossibilidade de lutar por reconhecimento no futuro tal como Honneth postula em sua
teoria?12 Vejamos como Ana vai lidar com essa problemática, ou ainda, como vai lidar
com as contradições dessa condição objetiva.
A contradição interna que Ana vivenciaria corre o risco de ser vivida
simplesmente como revolta, indivualizar-se, se transformar em “sina”, em vingança
contra os humilhadores — tal como ocorreu com Severina no episódio em que
representava a vingadora que “arquiteta planos para adquirir poder e ‘destruir toda
aquela gente’13” —, e retroceder a patamares de adaptação ou identificação com os
agressores. Isso porque a simples vivência de novas relações (na escola, na comunidade
etc.) não parecem produzir uma contradição, pelo contrário, via de regra geralmente
essas relações parecem corroborar com o fortalecimento e reprodução da humilhação.
Afinal, as relações que constituem o universo simbólico, a intersubjetividade presente
no ambiente escolar, são relações preestabelecidas. Nelas existem uma clara hierarquia
de divisão de estruturas de poder nas quais aquele que sente uma forte necessidade
somente pode realizá-la a partir de sua submissão às regras expressas por um outro
(criança não pode falar alto com seus amigos, não pode brigar, não pode ir ao banheiro
a toda hora, meninos devem brincar de bola, meninas de boneca etc.). O que deflagra
que na escola, as regras de uma sociedade de controle que aparentemente estariam
externas (mas que na verdade são cada vez mais materializadas na colonização
incessante do mundo da vida pela lógica sistêmica), é internalizada de maneira que a
submissão à disciplina escolar é invertida na produção de indivíduos disciplinados (o

12
Honneth entende, apoiado na teoria do reconhecimento hegeliana e na psicanálise winnicottiana, que
caso o indivíduo não consiga ter suas necessidades afetivas e físicas satisfeitas “plenamente”, este não
poderia desenvolver o potencial de lutar por reconhecimento. No ensaio Reconhecimento ou
redistribuição?, ele escreve que: “a relação de reconhecimento está ligada à existência física dos
Outros concretos, que retribuem seus sentimentos de estima especial. A atitude positiva em relação a si
próprio surge desse reconhecimento afetivo, que é o de confiança em si mesmo. (...) esse tipo de
reconhecimento recíproco não pode ser generalizado além do círculo dos relacionamentos sociais
primários, aparente nas ligações afetivas, como de família, amizade ou amor.” Cf. HONNETH, Axel.
Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectiva na ordem moral da sociedade.
p.86
13
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.49 et seq.
195

que é o esperado para o indivíduo que futuramente deverá se submeter ao mundo do


trabalho).
No caso de Ana, a contradição ficaria cada vez mais intensa devido ao fato de
que continuaria a insistir naquilo que não era reconhecido pelos colegas de escola.
Indiferente aos comentários cruéis e as humilhações, continuava a brincar com “coisas
de menino”. Como ela mesma faz questão de frisar, jogava bola o dia inteiro com outros
meninos e seguia na contramão das meninas de sua idade que brincavam com “coisas de
menina”, que “só queriam ficar brincando de boneca (...) e eu [Ana] não tinha paciência
para isso, gostava de jogar futebol, de basquete, de andar de bicicleta, esse tipo de
coisa.” Ana nos fala que tenta identificar-se com coisas que ficam sendo descritas como
pertencentes a lugares divergentes. Esse processo aparece em sua narrativa como
extremamente complexo e confuso, a coordenação entre os elementos de socialização e
individualização ora aparecem como encaixes intercambiáveis, ora aparecem como
peças trocadas de um quebra-cabeça.
Ana passa por um processo de crise que deixa explícita a contradição da
sociedade capitalista a qual insiste em difundir que existe espaço para todas as formas
de existência. Na narrativa de Ana fica aparente que em sua inserção nas relações da
sociedade do capital ela deparou-se com uma contradição entre um valor interiorizado
(o amor de sua mãe) e a objetividade das relações sociais vivenciadas (ser diferente do
que é esperado justifica ser excluída). Eis que, de repente, surge alguém que se parece
com ela, alguém que também diz se reconhecer em Ana. Nesse momento a menina que
parecia menino, percebe que não é a única: a amiga não tinha desenvolvido o corpo, e
não era considerada um menino, por um breve momento “não ter corpo”, como Ana se
refere a esse momento, as diferenciava das outras garotas da escola que já apresentavam
as mudanças da adolescência. O fato de “não ter corpo”, que em um primeiro momento
era vivenciado como motivo de humilhação, tem seu sentido distorcido a ponto de
tornar-se um elemento de diferenciação, de individualização.

E era engraçado porque eu e minha amiga, minha melhor amiga, a gente ficava
espiando as meninas, sabe... aquelas que já tinham corpo, que já tinham seios,
tinham um monte de coisa. Ela [a amiga] falava: (...) “quando eu crescer quero
ser daquele jeito”. Se comparando com uma menina (...) queria ter um peitão e
eu já falei, eu não! Eu não quero ser assim! Não quero ser igual!
196

Novamente, não nos adiantemos em interpretações dessa situação, pois Ana


assinala que nesse momento de sua vida, a menina que parecia menino não quer ser
uma menina para sempre, ela quer algo não vivenciado até então, ela quer a satisfação
de uma necessidade até então não percebida: seu querer ser igual à amiga representava
um querer ser uma menina de família, tal como a amiga que vivia com a mãe e o pai, o
qual Ana nunca havia sequer conhecido o seu próprio. A amiga representava uma
realidade alternativa a que vivia e que passa a ser vista como ideal, como Ana mesmo
reconhece: “hoje eu consigo perceber isso (...) eu queria ser como ela. Não queria o
corpo. Queria ser bonita, queria estar com o meu cabelo liso como ela tinha, queria ser
loira, queria ter pai, mãe e irmão.”
O desejo de ser como a amiga faz com que Ana decida procurar pelo pai que a
abandonara. E quando finalmente decide questionar sua mãe acerca do paradeiro deste,
descobre que ele trabalhava em uma instituição de tratamento e inclusão de portadores
de necessidades especiais. Pensava na ocasião que talvez o pai tivesse se arrependido de
tê-la abandonado e que sua presença poderia fazer alguma diferença. Decide então
procurar pelo pai e descobre algo que não esperava: o pai já havia formado uma outra
família. E se já não bastasse o fato de que essa condição a obrigava a lidar com a
impossibilidade de concretização da sua fantasia14 de reorganização da família, depara-
se com uma coisa que não consegue administrar: as condições que configuraram a
família de seu pai.

(...) ele teve um caso com uma mulher, uma mãe de um paciente, sabe... é
ridículo, ele preferiu ficar com um tetraplégico do que comigo que andava, que
era perfeita. E, nossa, aquilo pra mim foi o fim do mundo.

Mais uma tentativa frustrada de busca por reconhecimento de sua identidade.


Seu corpo novamente mostra-se como um receptáculo que não lhe garantia a existência,
pelo contrário, parecia se tornar um estorvo. Ana diz que após descobrir que seu pai já
tinha outra família e que assumira um tetraplégico como filho passou a ter ódio dos
deficientes. Não suportava a presença de ninguém que tivesse alguma necessidade ao

14
É importante assinalar, como lembra-nos Safalte, “a fantasia não é construção de uma aparência que
seria distorção ou recalcamento de uma realidade psíquica positiva primeira; ela é o modo de defesa
contra a experiência angustiante da inadequação entre desejo e os objetos do mundo empírico. Em
outras palavras, a fantasia é modo de defesa contra a impossibilidade da totalização integral do sujeito e
seu desejo em uma rede de determinações positivas”. SAFATLE, Vladimir. A política do real de
Slavoj Žižek. p.189.
197

seu lado. Que alternativa encontrava frente a essa situação? A saída era mostrar a todos
(ou ao pai) que tem mais valor que um deficiente passando a praticar diversas atividades
esportivas. O corpo, que havia sido foco de humilhação e que na identificação com a
amiga mostrou-se como possibilidade de diferenciação, agora iria ser utilizado como
instrumento de negação dessa situação (da condição de filha que valia menos que um
deficiente). Essa maneira de lidar com essa situação parece fornecer os elementos que
nos ajudam a entender o sentido da representação de sua personagem atual: a Ana
anoréxica.
Para não se tornar uma filha de ninguém, tal como ocorreu com Severina15, ou,
melhor dizendo, para não se contentar com o fato de que era uma filha que valia menos
que um deficiente — o que lhe conferia justificativa para continuar sendo humilhada
socialmente — vemos Ana trabalhar de forma curiosa a construção de duas
personagens, uma que passa a ser vista como uma possibilidade de superação e outra
que serviria como uma personagem de negação: a esportista e a deficiente. A primeira
será construída a partir de uma personagem que outrora era objeto de humilhação, a
menina que parecia um menino, e mostrar-se-á como forma de aceitação no espaço
social (principalmente no momento em que é contratada para trabalhar numa academia);
a segunda, por sua vez, será construída como um inimigo insuportável a ser derrotado (o
preconceito de Ana aparece como outra ambivalência, uma vez que em sua narrativa
vemos os sentimentos de ódio e inveja por essa condição explicitamente aparente na
forma como fala do filho que o pai adotou, que tomou seu “lugar”). Para uma efetiva
representação da esportista será preciso muito esforço, tanto físico como emocional. O
esforço físico será expressado na prática de várias modalidades, o emocional na re-
significação de uma personagem vivida anteriormente: a menina que parecia um
menino.
Ana, que passa a representar a Ana esportista, começa a acreditar que a
representação dessa personagem lhe traria o reconhecimento tanto buscado desde a
infância quando representava uma Ana humilhada. Dessa forma, os músculos que
traziam a infelicidade de ser reconhecida como a menina que parecia um menino
perdem sua condição de foco principal nesse momento de sua vida, o que para a Ana-
de-hoje se torna uma grande contradição para sua auto-descrição como anoréxica. No
momento que nos conta isso, inclusive, faz questão de frisar:

15
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.52 et seq.
198

(...) era ridículo, porque se eu soubesse disso hoje acho que eu não faria (...)
quanto mais eu tentava me livrar deles [os músculos], mais eles ficavam,
porque fazia exercício o dia inteiro, bicicleta, natação, aeróbica, aula de dança
sabe... não parava.

Hoje, ter músculos aparece como um problema para a representação como


anoréxica, entretanto, no momento em que está se referindo, os músculos faziam parte
da composição da personagem esportista que com o esporte mostraria que era alguém
interessante, uma filha que valia mais que um deficiente. E com o passar do tempo
consegue o reconhecimento pela insistência na representação: Ana é convidada para
trabalhar em uma academia de tênis. Sua felicidade em obter o reconhecimento da
personagem vivenciada é tamanha que parecia compensar toda a exploração que
vivenciaria nesse lugar.

Foi o lugar que eu mais amei. [Ana chora nesse momento]


Pegava as bolinhas (...) era raro eu ficar sentada. Só sentava pra comer alguma
coisa que eu dividia com meu amigo. E eu ficava mais, ainda o dia inteiro mais
sem comer andando pra lá pra cá, pra lá pra cá e ai eu comecei a sentir umas
dores, assim, comecei a sentir muitas câimbras.
Eu ia de bicicleta de casa pra escola, da escola às vezes pro trabalho da minha
mãe. E do trabalho dela para o meu trabalho, onde eu ficava o dia todo de pé e
chegava às vezes dez e meia, onze horas em casa, não lembro muito se eu
comia ou não e ia dormir.

Será que Ana finalmente havia conseguido o que queria? Essa resposta Ana
ainda não teria, mas de uma coisa tinha certeza, naquele lugar vivenciaria um outro
reconhecimento para sua identidade, que até então somente haviam lhe possibilitado
vivenciar o sentimento de humilhação. É certo que esse novo reconhecimento traz
novos problemas, se antes era humilhada agora era explorada. Novamente fica explícito
que o fato de não comer estava relacionado às condições concretas que vivia e que a
impediam de ter acesso à comida. Mas isso também não era um problema, pois o fato de
não se alimentar de forma ideal já era visto como normal. Na academia era alguém
necessária e desejável, isso aparecia como possibilidade de superação de antigas
situações em que era humilhada, como eram as vezes em que esperava ser desejada
pelos garotos da escola e, pelo contrário, era vista como menina que parecia menino.
Um episódio que marca essa situação foi o momento em que é cantada por um
freqüentador da academia que dizia estar interessado nela.
199

Um menino falou que eles [outros rapazes da academia] tinham comentado de


mim, aí, ele falou que queria ficar comigo (...) que eu não tinha barriga, que eu
era bonita, sabe... E você sabe como é menina boba né? Eu me achei... me senti
a mais linda do mundo (...).

Finalmente a personagem que tanto lhe incomodava, a menina que parecia


menino, poderia ser atualizada, ou ainda, superada. Todavia, eis que surge algo
inesperado, uma nova cena é apresentada e exigiria uma outra interpretação, que,
inclusive, impediria de forma radical a representação da Ana esportista. De repente, as
dores que sentia constantemente — que eram fruto tanto dos esforços físicos como do
tempo que passava de pé na academia — a surpreendem de uma maneira nunca antes
experimentada. Essa dor insuportável, que em um primeiro momento é vista como uma
dor passageira, em breve se mostraria como um tipo de dor persistente que lhe obrigaria
a resignificar tal identidade. Deixemos que Ana conte como as coisas aconteceram:

Cheguei em casa e a dor não passava. Minha mãe chegou do serviço falando
“Ana, vamos pro hospital!” (...) eu mesmo não querendo, falei: vamos! Só que
antes eu vou tomar um banho (...) Eu não tomei banho [não deu tempo para
isso] como era beliche eu falei que estava com dor de cabeça subi e fiquei
deitada lá um minuto (...) na hora que ela falou vamos, eu fui descer (...) só
cheguei a colocar o corpo pra fora e fiquei me segurando pra não cair de vez no
chão. Minha mãe achou engraçado, [pensava] que era brincadeira, mas a minha
bexiga começou a encher, parecia que tava grávida.
Fui no banheiro, me arrastei toda, me ralei toda (...) bati a cabeça e a barriga na
cama da minha mãe e ela viu que eu não tava brincando (...) e as coisas foram
piorando, minha mãe tentando pedir ajuda e ninguém acreditava nela, sei lá...
não que não acreditavam nela, mas acho que também não estavam nem ai (...)
Não era a filha deles, nem nada, então passou sábado à noite, domingo e eu
fiquei em casa. Só segunda-feira o pai da minha amiga que eu sempre quis ser
igual também, perguntou: conseguiu buscar ajuda? e minha mãe falou: não! Aí
ele falou: então vamos levar ela pro hospital!

Com a ajuda do pai de sua amiga, Ana é levada para o hospital. A descrição que
faz desse lugar lembra-nos aquela realizada por Rainer Maria Rilke, nos Cadernos de
Malte Laurids Brigge16, um lugar destacado como espaço para a busca da vida, mas que
parece ser um lugar onde se vai para morrer. Hospital lotado, pessoas espalhadas pelos
corredores em macas improvisadas. Ana é encaminhada para a emergência, sua mãe é

16
Nessa obra Rilke escreve: “Então é aqui que as pessoas vêm para viver; eu antes diria que aqui se vem
para morrer. Hoje saí de casa. E vi: hospitais. Vi um homem cambalear e cair. As pessoas rodearam-no,
poupando-me o resto. Vi uma mulher grávida. Arrastava-se pesadamente ao longo de um muro alto e
quente, que por vezes apalpava como para certificar-se de que ele ainda estava ali.” Cf. RILKE, Rainer
Maria. Os cadernos de Malte Laurids Brigge. p.05.
200

encaminhada para casa. Logo depois da internação Ana entra em coma, estado em que
iria permanecer por nove dias.
Ao despertar do coma a primeira coisa que pede para sua mãe é um espelho,
com este objeto em mãos nota que não reconhece a si-mesma na imagem refletida,
percebe em seguida que não coordenava as pernas, imaginava que aquele estado era
provisório e que era devido a alguma medicação. Após a primeira visita médica
descobre que o provisório pode ser algo permanente: é informada que havia contraído
um encéfalo vírus. Naquele instante descobre que passara por uma metamorfose radical,
todo o trabalho desenvolvido para conquistar um corpo com o qual pudesse se
identificar parece ter sido em vão ao notar que o corpo refletido no espelho era um
corpo definhado, atrofiado. Tal como Gregor Samsa, personagem d’A metamorfose de
Franz Kafka, que acorda metamorfoseado em algo inumano, naquele momento não
consegue mais descrever quem é: representa uma anamorfose para si mesma. Mas o que
isso quer dizer? Que ela, na condição concreta em que estava, em relação ao ponto de
vista que adotara sobre si mesma, representava uma deformação de imagem?
Considerando isso, não é difícil entender que adotar uma personagem esportista
significava adotar uma imagem ideal sobre si e sobre o próprio corpo, a qual se mostra
distorcida na imagem refletida no espelho.

Minha vida acabou ali, sabe (...) quando eu cai... têm coisas que acontecem que
faz com que a gente não seja mais gente. A única coisa que eu queria saber é se
eu ia voltar a andar.

A partir daquele momento, inclusive, Ana descobriria que não poder andar seria
apenas mais um dos problemas. Devido à fragilidade em que se encontrava, era como se
dali em diante tivesse de começar do zero. Discutimos, e de certa forma adiantamos
esse fenômeno no itinerário teórico, quando Ciampa interpretou o momento em que
Severina esgotou todas as possibilidades de representação das personagens interpretadas
até aquele momento a ponto de chegar a zero, fato que abriu espaço para que ela fosse
reconhecida como doente mental. Havíamos identificado esse fenômeno também em
nossa dissertação de mestrado, onde, a partir da narrativa de Lou-Lou, também ficou
evidenciado que o diagnóstico de doença mental (sob o diagnóstico de dependente-de-
drogas-louca-suicida) viria após a impossibilidade de interpretação de personagens
201

ensaiadas e não reconhecidas17. Já nessas duas histórias de vida era possível observar
que o momento de chegar a zero representava o instante de potencialidade e fragilidade
enfrentada pelo indivíduo frente à indeterminação de sua identidade e as formas
convencionais de reconhecimento. Nas duas histórias foi possível perceber, uma vez
que em ambas narrativas puderam ser observados fragmentos de emancipação —
utilizando aqui o conceito de anamorfose proposto por Almeida —, que somente
quando foi possível suportar e incorporar as anamorfoses expressadas (incorporar o
estranho, o inominável nas identidades de Severina e Lou-Lou) é que a alteridade das
identidades puderam ser concretizadas.
Na narrativa de Ana, como poderemos verificar, o sofrimento de indeterminação
se estenderá por algum tempo, afinal, estava diante de uma situação a qual ainda não era
possível dizer em que condições ficaria: não era conclusivo o fato de que voltaria a
andar ou se tornaria paralítica, era uma anamorfose para si mesma e para os outros.
Entretanto, se na esfera do reconhecimento de sua identidade após a doença ainda não
era possível afirmar quem era, no que se refere ao relacionamento com os outros,
principalmente com a mãe, era como se tivesse regredido ao período de infância.
Devido ao seu estado físico é obrigada a depender da mãe para se alimentar e realizar
coisas que antes lhe eram simples tais como: tomar banho, ir ao banheiro etc.
Após cinco meses de internação chega o momento de Ana voltar para casa,
descobre que tornou-se popular, não por conta de sua melhora, mas porque chamava
atenção por conta de sua condição: Ana não andava mais.

Pois é, voltei para aquele lugar chato onde todo mundo me conhecia, onde era
novidade que eu tinha parado de andar e que eu tinha voltado para casa (...)
É uma coisa doida, primeiro as pessoas não estavam nem aí para mim (...)
acontece uma coisa e vai perguntar pra minha mãe se eu tinha morrido, se ela
tinha se costumado e quando eu volto pra casa está todo mundo lá (...) um
monte de cínicos (...) Aninha! Que bonitinha! Que bom que você ta aí!

Ana conta que passada a recepção inicia o momento de re-adaptação ao mundo.


Novamente tem que lidar com o fato de ter saído prematura do hospital, as feridas
(escaras) ainda estavam abertas, o que denunciava o fato de que não contou com a
solidariedade, muito menos com a ética, das enfermeiras que trabalhavam nessa
17
Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de identidade:
possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro. p.202 et seq e
Idem. Dependência de drogas e psicologia social: um estudo sobre o sentido das oficinas
terapêuticas e o uso de drogas a partir da teoria de identidade.
202

instituição, uma vez que as escaras eram resultado do contato contínuo de seus
membros inferiores sem mobilidade com o leito. Como havia se tornado uma garota
que não andava é encaminhada para uma instituição para pessoas com necessidades
especiais, filial daquela em que havia descoberto que o pai trabalhava no início de sua
adolescência. Estava diante de uma situação no mínimo incômoda, todavia, não havia
outra alternativa, precisava se recuperar.

Eu tive que me recuperar das escaras porque se não era impedida de fazer
fisioterapia e durou muito tempo, porque não adiantava eu correr porque não sei
se você sabe, mas tem aquela deficiência do corpo (...) de uma ferida aberta
roubar nutrientes (...) então eu não ganhava peso para começar fazer a bendita
da fisioterapia e também não sarava. Eu fiquei muito tempo com essas porcarias
dessas escaras, então meus músculos foram atrofiando (...) eu tive escara no
calcanhar, imagina nos dois (...) num monte de lugar, na coluna, nas costas, e
aquela continuava grande na virilha, nossa muita coisa, era horrível, fora que
isso eu também usava frauda.

É importante lembrar aqui que embora estivesse em uma instituição para


deficientes, Ana acreditava que sua estada naquele lugar seria provisória, apenas um
mal necessário que estaria submetida até voltar a andar. Acreditava que apenas tinha
parado de andar, não era uma deficiente. Como ela mesmo assinala, “todo mundo tinha
aquela esperança (...) parou de andar (...) então se começar a fazer algumas coisas vai
voltar a andar (...) Então eu fui para lá, mesmo com algumas dificuldades ainda”. Claro
que a dificuldade de estar em uma instituição como essa — que lhe trazia o perigo de
ser reconhecida como deficiente tal como o filho assumido pelo pai — era constante, a
anamorfose de sua identidade incomodava a instituição, que poderia a qualquer
momento exigir a interpretação da personagem Ana deficiente, algo que para Ana era
insuportável.

Não escondo que eu nunca gostei de deficiente, nunca... desde quando eu


andava e hoje continua a mesma coisa (...) Nunca gostei, sempre tive
preconceito então, eu sonhava em nunca ficar assim [sem andar], então vou
fazer de tudo para continuar sendo independente e fazer o que eu queria.

O sofrimento de indeterminação de sua identidade se torna evidente, não queria


ser deficiente, mas não andava, não queria ter de volta os músculos que poderiam lhe
conferir novamente a personagem menina que parecia menino, mas precisava se
exercitar para combater a atrofia muscular. Tudo isso era somado ao fato de ter que lidar
203

com a grosseria das enfermeiras que a tratavam com o mesmo descaso e humilhação
que Ana direcionava para aqueles que reconhecia como deficientes.

As enfermeiras grossas da instituição trocavam as fraldas (...) eu não tenho


controle [dos esfíncteres], eu não sinto as coisas (...) eu não sabia quando
acontecia, então as pessoas [enfermeiras] ficavam tirando um barato (...)
nossa... aquilo me matava sabe. (...) O tempo foi passando e em 2004 que eu já
estava bem, (...) bem para eles [técnicos], eu estava com trinta e sete [quilos],
ou seja, depois desses anos todos eu consegui chegar nos trinta e sete.

O tempo passava e nada de retornar a andar. A indeterminação tende cada vez


mais para a identidade determinada como deficiente. Ana conta que começa a ficar
cansada com essa situação, ainda mais quando começa a perceber que o interesse da
instituição era fazer com que ela aumentasse seu peso, aumentasse seus músculos, o que
era diferente de seu interesse principal: voltar a andar. Como Ana analisa, o tratamento
começa a ser direcionado para aulas de como se conformar com o problema. O que era
realizado a partir de informações que os usuários da instituição recebiam acerca de sua
condição. Fazer parte delas significava estar ao lado de outros indivíduos com as quais
Ana não queria se identificar. Não queria aceitar a carreira moral que estava sendo
oferecida pela instituição, que Goffman identifica como sendo uma das fases do
processo de socialização dos indivíduos estigmatizados18, ou seja, o momento em que a
pessoa estigmatizada “aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, adquirindo,
portanto, as crenças da sociedade mais ampla em relação à identidade e uma idéia geral
do que significa possuir um estigma particular”19. Embora participasse da rotina
proposta pela instituição, Ana deixa bem claro em sua narrativa: não queria aprender a
ser deficiente.

O que é uma lesão medular, o que afeta (...) e que as pessoas tem que ajudar (...)
as pessoas que convivem tem que saber como lidar (...) que uma pessoa [com
necessidades especiais] pode levar uma vida normal, pode casar, pode ter filhos,
pode trabalhar, pode fazer esporte, pode isso, pode aquilo (...) eles ficavam
falando (...) eu nem ouvia, entrava por um ouvido e saía pelo outro (...) eu não
queria estar naquele lugar, eu odiava e ainda odeio.

18
O conceito de estigma é utilizado por Goffman para se referir às “desgraças” que são expressas pelas
evidências corporais, ou seja, o estigma como referindo a marcas que denunciam a presença de um
indivíduo de segunda categoria. Cf. GOFFMAN, Ervin. Estigma.
19
Ibidem. p.41.
204

Ana participava das atividades, dos ensaios da deficiente, mas não aceitava
representar essa personagem. Mas o que fazia então Ana nesse lugar? Alimentava a
esperança de que na instituição poderia voltar a andar e retomar sua vida. Frente à
possibilidade de retomar à personagem perdida, a esportista, valeria qualquer
sofrimento para retomar o projeto de ser uma Filha que valia mais que um deficiente?
Entretanto, como era de se esperar, chegou o momento em que a indeterminação não
pôde ser mais sustentada.

A fisioterapeuta pegou meu histórico (...) pegou os exames que eu fiz e falou
que eu não ia mais voltar a andar (...) que eu tinha que me acostumar com a
cadeira. (...) Aí pronto! Eu fiquei aquela sessão inteira chorando (...) aí foi uma
seqüência de... de desastre, uma seqüência de frustrações (...) então eu comecei
a não querer ir mais, nem ligar para estar lá para fazer a fisioterapia mesmo (...)
ela me dava só exercício daqui para cima sabe, fazendo musculação e isso e
aquilo. Eu falei, opa! Eu ficar musculosa como esses homens de cadeira de roda
(...) Deus me livre. E ela me deu alta. Então, eu falei, já que me deu alta, não
tenho mais que vir pra cá.

A fisioterapia perdeu o sentido quando passou a ser apenas um conjunto de


exercícios para ajudá-la com a cadeira de rodas. De repente começa a perceber que tudo
o que estava sendo direcionado para ela servia para instrumentalizá-la para a
representação da Ana deficiente. Ana comenta que em uma das reuniões participadas
ficou indignada com o fato de a assistente social lhe dizer que deveria ver o lado bom de
sua condição, pois tendo se tornado uma deficiente havia se tornado uma “privilegiada
para conseguir empregos, todo mundo tem que dar vagas para deficientes”. Nem
precisaríamos dizer aqui que o fato de Ana não aceitar essa condição foi considerado
como uma afronta para a política de identidade proposta pela instituição. Afinal, a
instituição estava oferecendo a possibilidade de ser reconhecida como deficiente e a
vantagem de ser incorporada no mercado de trabalho. Chega o momento em que é
colocada uma escolha para Ana: ou ela aceitava se submeter à política de identidade
proposta pela instituição e passasse a representar a deficiente ou deveria abandonar esse
lugar.

Aquele povo da [instituição para portadores de necessidades especiais] é assim,


se uma pessoa consegue fazer, por que você não? Então, era assim, eu falava
que não queria fazer, que não queria trabalhar [como deficiente], que não queria
fazer nada na cadeira, o que eu continuo falando até hoje (...) e eles ali: não,
você pode, você tem que fazer isso porque o deficiente pode fazer (...) E eu nem
aí (...) então eu saí de lá e me desliguei totalmente de fazer a fisioterapia (...)
205

não que eu não quisesse voltar a andar, mas eu me desliguei sabe (...) além do
que, eu queria ainda pensar (...) eu queria voltar a andar.

O que a instituição não considerou foi o fato de que se Ana aceitasse tal política
de identidade teria que viver representando uma personagem que para ela era
insuportável. Entre a escolha do sofrimento de ser identificada como deficiente e a
permanência do sofrimento de indeterminação, Ana decide pela segunda opção, e
abandona a instituição, afinal, o que esta última poderia lhe oferecer naquele momento
era algo que havia procurado se distanciar durante toda sua vida. Entretanto, abandonar
a instituição significava desistir da possibilidade de voltar a andar. Como Ana lidaria
com isso? Como negar algo que o seu corpo denunciava a todo instante? Eis que surge
uma possibilidade, uma alternativa frente à alternativa oferecida pela instituição. Uma
amiga que havia conhecido nas sessões de terapia havia lhe contado que em alguns
casos de anorexia a pessoa parava de andar. Isso, para Ana, que sempre teve
dificuldades com a alimentação e sempre havia sido magra, surge como uma luz no fim
do túnel, uma possibilidade frente ao sofrimento de indeterminação. Nesse momento,
acreditamos que fica evidenciado que o sofrimento de indeterminação da identidade a
que temos nos referido consiste na não aceitação de uma personagem que conferia uma
identidade pressuposta, o que deixa o indivíduo aparentemente sem opções de criar
novas personagens, representar uma antiga ou sustentar uma expressão anamórfica,
logo, gerando uma indeterminação de si mesmo. Fazendo uma articulação com a teoria
meadiana, podemos dizer que o sofrimento de indeterminação também pode ser
compreendido como uma não identificação do indivíduo com os elementos do “mim”,
que serviriam de contraste para a espontaneidade do “eu”, proporcionando a
impossibilidade de apresentação do self.
Retomemos a história de Ana e vejamos como essa proposição tem sentido. O
simples fato de escutar da amiga que o fato de não andar poderia ser interpretado como
outra coisa, algo que poderia servir como personagem alternativa à deficiente, não
garantiria a adoção dessa nova representação de imediato. Ana precisaria ter certeza que
a nova personagem seria viável. Mas como? Se não saía de casa porque não podia
andar, como faria as pesquisas que precisava? É quando uma solução aparece de forma
inesperada, o pai de sua amiga (aquele que a levara para o hospital) sensibiliza-se com
sua impossibilidade de locomoção e oferece um computador e o pagamento do acesso à
Internet para que ela pudesse passar seu tempo. Ana descobre rapidamente que com a
206

ajuda da Internet poderia verificar a procedência da informação fornecida pela amiga


sem precisar se locomover fisicamente. No ciberespaço pode visitar diversas
comunidades que a “ajudam” no “diagnóstico”, na nova interpretação para seu
sofrimento de indeterminação. Deixemos que Ana fale como foi esse processo de
descoberta.

Quando eu entrei (...) quando eu comecei a entrar na Internet, muitas vezes eu


perguntei se era errado eu ser magra (...) se podia ser normal, porque eu não
andava (...) e também se alguma pessoa que não andasse podia ser daquele jeito
(...) mesmo porque eu não sabia, eu nunca tinha falado nada para ninguém [que
não se alimentava direito] desde que eu andava (...) Então falaram que não tinha
nada a ver [tinha parado de andar por conta do pouco peso].

Encontra uma outra leitura para o não andar, a limitação biológica passa a ser
pensada como limitação psicológica, isso oferecia a possibilidade de negação da
condição de deficiência, de impotência frente ao corpo. Nesse caso, a condição de não
andar não seria uma deficiência, um déficit, mas a eficácia na representação da
personagem, estava de certa maneira no controle da situação. Mas como é possível Ana
prescindir de uma personagem estigmatizada (deficiente) em favor de uma outra
personagem estigmatizada (anoréxica) e com isso pensar que poderia ser aceita
socialmente? Para responder essa questão devemos lembrar o sentido que a personagem
deficiente teria para sua identidade e o sentido que será atribuído para a personagem
anoréxica. Enquanto a primeira personagem aparece como a imposição de uma
identidade pressuposta insuportável, a segunda possilita sustentar a fantasia de que sua
condição é resultado de uma escolha. Portanto, a possibilidade de representação da
personagem anoréxica, sustenta uma aparente escolha entre um “modo de vida” e
doença mental — por exemplo, basta observar imensa quantidade de comunidades pró-
anorexia na Internet que defendem o ser anoréxica como escolha racional pelo não
comer. Entretanto, como veremos a seguir, Ana logo descobre que a possibilidade de
representação dessa personagem gerará uma nova necessidade: se antes já havia
descoberto que não bastava apenas saber que em casos de anorexia um indivíduo
poderia deixar de andar, agora descobre que para representar a personagem anoréxica
não bastava que fosse reconhecida como uma, precisaria compor a personagem e
representá-la de uma forma que não restasse dúvidas quanto a sua autenticidade. A
relação com o diagnóstico é invertida. Se antes, na instituição de portadores de
207

necessidades especiais, resistia às aulas dos especialistas em deficiência, agora


procuraria especialistas em anorexia para ensiná-la como construir essa personagem,
uma Ana anoréxica.

Eu fui visitar minha amiga no Hospital Estadual (...) eu peguei um folheto desse
hospital acho que é um dos especialistas em intoxicação (...) dessas crianças
que tomam cândida [alvejante], esse tipo de coisa (...) e tinha um folheto de que
se a criança, se a pessoa, ingere determinado tipo de coisa tem que fazer ela
vomitar (...) e tinha uma mulher que ensinava num folheto (...) A prefeitura que
colocou isso, sem saber que (...) uma pessoa que nem eu, que sempre pensou
em tudo antes de fazer, estava ajudando [a aprender a vomitar]. Aquelas noções
básicas. Aí eu tentei, tentei com o dedo, tentei com a escova, com a colher, ai
eu comecei a entrar na Internet (...) eu tentei, com detergente, com mostarda,
acho que com um monte de coisa (...) depois que eu entrei [na Internet] é que eu
comecei a conversar com as meninas (...) e aí que elas foram me falando mais
coisas, mais coisas pra eu tentar.

Escondendo seus planos da mãe, Ana vai aprendendo, a partir das tentativas e
erros, a vomitar. Com o passar do tempo já havia conhecido dezenas de outras garotas
que também estavam aprendendo a ser anoréxicas nas comunidades da Internet, todavia,
como Ana faz questão de destacar, ainda era aprendiz, não tinha passado por nenhum
especialista. Foi quando, após dois anos trancada em casa mantendo contato com
pessoas pela Internet, tem uma chance de conhecer uma especialista em anorexia, uma
Psicóloga que se torna “amiga” de Ana e procura tratá-la virtualmente. Ana conta que
havia dito para a amiga psicóloga que vomitava e não andava mais por conta disso, que,
inclusive, enviou algumas fotos tiradas de suas pernas. Certo dia, após pesar-se em uma
balança caseira, que sem saber estava alterada20, Ana conta alegremente para a
Psicóloga que chegara aos 25 quilos. A Psicóloga, mobilizada pelo discurso de Ana,
toma uma atitude que (des)organiza toda a atuação sustentada até aquele momento. Na
verdade, a Psicóloga age da mesma forma que os especialistas criticados por Szasz na
década de 60 do século passado, uma vez que a profissional, a partir de uma atitude
paternalista e ao mesmo tempo de poder (afinal representava a especialista em
anorexia), como se fosse um agente da família ou do Estado, assume responsabilidade
por Ana, “a define como uma paciente contra sua vontade [a coloca em um táxi e leva

20
A balança caseira tinha sido alterada pela mãe de Ana um dia antes sem que a mesma soubesse. O
objetivo da mãe ao fazer a alteração partiu do pressuposto de que se era o pouco peso o objetivo
buscado pela filha, então bastava alterar os números.
208

para o hospital] e a sujeita ao tratamento considerado o melhor para ela, com ou sem o
seu consentimento”21.

Acreditei que eu tava com 25 quilos. E foi isso que eu falei pra minha amiga
[Psicóloga] (...) eu bebi um copo de vinho, era um copo de vinho branco seco
horrível que eu coloquei adoçante. E nesse dia eu comi uma salsicha. Então
conversando com ela, ela ficou preocupada e veio aqui em casa [sem avisar],
veio de táxi e tudo e falou: eu vou levar você para o hospital. (...) Aí pronto, eu
tinha um dia antes tomado um diurético. Então ficou tudo descompensado (...)
Começaram a fazer exame de sangue (...) falaram um monte de coisa, queriam
até passar a sonda mas minha mãe (...) não deixou.

Uma garota com o corpo atrofiado acompanhada de uma especialista em saúde


mental, isso foi o necessário para que Ana fosse internada com suspeita de anorexia,
suspeita porque como a mesma irá nos contar adiante, ainda teria que passar por vários
exames que comprovassem sua personagem. Passa a noite internada, no dia seguinte
visitou novamente a balança, descobre que a balança que utilizou em casa estava errada.

E eu lá (...) certa de que tava com vinte e cinco quilos (...) aquilo na cabeça. (...)
quando eu me pesei deu trinta e um e meio. Você imagina (...) eu fiquei louca
da vida. Eu falei: essa balança está errada, comecei a xingar o enfermeiro, esse
negócio está errado! (...) E eles me colocaram na cadeira para eu voltar para o
consultório e eu chorando, chorando, chorando e vinha comida, vinha café da
manhã, almoço (...) [e Ana dizendo] não vou comer!

O resultado da balança também desequilibra a amizade com a Psicóloga, que de


acordo com a narrativa de Ana ficou muito desapontada. Além de ter descoberto que
não estava com vinte e cinco quilos, descobre também que a condição física de Ana
estava relacionada ao encéfalo vírus que contraíra anos atrás e que causou a atrofia dos
membros inferiores. E como a Psicóloga reage novamente frente à descoberta de que
estava enganada à respeito de Ana? Reage de forma cínica. Lembremos que cinismo,
como Safatle assinala, é o nome correto para essa “posição subjetiva que é capaz de
sustentar identificações socialmente disponibilizadas, ao mesmo tempo em que ironiza
toda e qualquer determinidade (por reconhecer seu caráter descartável)22”. Adotando a
postura cínica, a Psicóloga de aliada torna-se inimiga e alinha-se ao discurso do
Psiquiatra nas interpretações selvagens acerca da condição vivenciada por Ana. Afinal,
se essa última não era de fato anoréxica — nesse sentido deixa de ser uma paciente —,

21
SZASZ, Thomas S. O que a psiquiatria pode e o que não pode fazer. p.87.
22
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.138.
209

sustentar que estava ali enquanto uma especialista em anorexia poderia colocar em risco
sua representação enquanto especialista. De repente, a Psicóloga “nega reflexivamente
aquilo ao qual se vincula, criando um universo social ‘carnavalesco’ de aparências
reflexivas, ou seja, aparências postas como aparências”23. Mas é Ana quem tem a
palavra.

O idiota do psiquiatra chegou a falar pra mim que aquilo era frescura, que eu
queria chamar a atenção da minha mãe. E a Psicóloga falou que eu fazia aquilo
porque, porque eu queria morrer, porque eu não andava (...) você não tem nada
(...) isso aí é pra chamar a atenção. Você está falando que você tinha antes de
parar de andar [não se alimentava] (...) é mentira! Quando você me contou que
tava internada, você nunca me falou disso (...) você não disse que tinha
músculos, que você era fortinha. Pronto, pra que foi falar fortinha na minha
frente. Ai eu comecei a gritar com ela (...) Aí eles falaram que não iam ficar
comigo porque tinham medo de eu morresse, porque eu estava entrando num
caminho que não tinha volta, que era aquilo que eu queria, que isso era uma
doença.

Se sua história era ou não verdade, seria essa a postura de uma profissional que
se considerava uma especialista em saúde mental e havia levado Ana para o hospital
com o discurso de solidariedade e compreensão do outro? Era isso que Ana se
perguntava nesse momento. De nossa parte, não fosse o fato de termos presenciado (o
que?) em nossas visitas a instituições asilares e substitutivas, e se não tivéssemos
conversado com profissionais e escutado de nossos orientandos diversos relatos de
interpretações selvagens como essa, ficaria difícil de compreender o que ouvimos de
Ana. A análise selvagem realizada pelos dois técnicos, inclusive, faz com que
questionemos se as condições de reconhecimento deveriam ser tratadas pela instância da
ética individual, como proposto por Honneth24. Esse episódio deixa claro que o direito à
estima social nem é tematizado, pelo contrário, o discurso do especialista mascara o fato
de que a leitura para a situação de Ana estava baseada na moral da Psicóloga e do
Psiquiatra.25
Ana até tenta encontrar uma forma de sustentar a personagem anoréxica frente
às interpretações dos especialistas, entretanto, agora era denunciada, desmentida por seu

23
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.138.
24
Cf. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. p.157 et seq.
25
Essa utilização do discurso moral como se fosse técnico-psicológico, que denunciam a impossibilidade
de uma ação comunicativa na relação especialista paciente, justifica as críticas de Nancy Fraser, para
quem o reconhecimento deveria ser tratado como instância moral, logo, uma problema de justiça. Cf.
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? p.113.
210

próprio corpo. Agora, mais do que antes, deveria negar qualquer forma de alimentação,
deveria justificar a personagem. Isso obviamente se tornou um problema, pois como a
Psicóloga e o Psiquiatra não reconheceram sua anorexia — pelo contrário,
diagnosticaram sua condição como a de uma deficiente que queria chamar atenção — e
a própria Ana não se reconhecia como deficiente, acaba sendo diagnosticada como
Louca-suicida. Da emergência é encaminhada para a ala psiquiátrica.

Veio o médico, falou comigo, e eu tava tão, tão loca da vida, ele falou assim:
você acha suas pernas bonitas? Falei: eu acho! O que você prefere, ficar assim
ou voltar a andar? Eu falei: ficar assim. (...) Pronto! Aí uns dez minutos depois
já tinha surgido a vaga para a ala psiquiátrica. Era a porta fechada assim,
horrível, não sei se você conhece o hospital. É péssimo! E se você também
conhecer alguém, não indique!

Sua representação como anoréxica não é validada quando tem seu peso aferido
— a condição de anoréxica como doente mental nesse sentido exige um duplo
reconhecimento: de sua condição mental (não querer comer) e de sua condição física
(pouco peso) —, como não quis representar a deficiente com frescura e continua sem
querer se alimentar é diagnosticada como Louca-suicida — uma modulação da
personagem doente mental que não esperava interpretar —, por conta disso é levada
para a ala psiquiátrica do hospital, a qual não apresentava condições de acolher alguém
com limitações físicas. Uma passagem escrita por Thomas Szasz ajuda a elucidar a
lógica desse pensamento: as regras do jogo da doença.

Se o jogo médico reconhece a legitimidade do papel de doente em pessoas


fisicamente doentes, logo os que assumem esse papel sem o estar fisicamente
serão considerados simuladores de doença; ao passo que se o jogo médico
reconhece a legitimidade do papel de doente em pessoas que não estão
fisicamente doentes, logo os que assumem o papel de doentes sem o estar
fisicamente serão considerados doentes mentais.26

Nessa lógica, em que a regra do jogo da doença utiliza-se de um conteúdo moral


para fazer o diagnóstico, torna-se explícita a falência do discurso psiquiátrico frente ao
conteúdo empírico expressado por Ana. Como assinala Habermas, esse discurso “diz

26
SZASZ, Thomas S. O mito da doença mental. p.207.
211

como as pessoas devem se comportar, e não o que se passa com as coisas27”. A


prevalência da leitura moral frente à situação de Ana é percebida por sua mãe, a qual, já
surpreendida pelo “seqüestro” da filha pela Psicóloga e resolve pedir alta administrativa
do hospital. Ana conta que na ocasião sua mãe diz perceber que aquilo que estava sendo
oferecido pelo hospital não era tratamento, mas uma forma de castigo. Deixemos que
Ana conte como foi essa experiência.

Louca da vida e com medo (...) não queria ficar (...) no dia seguinte minha mãe
conseguiu falar com os médicos (...) não tinha condições, a ala não era
adaptada, não tinha como eu tomar banho (...) eu não tomava banho, porque não
tinha lugar (...) a única coisa que eu fazia era lavar o rosto e escovar os dentes
(...) ir no banheiro e me limpar com lencinho umedecido porque banheiro
adaptado [não tinha].

E Ana continua seu relato dizendo que além do diagnóstico recebe uma
sentença. De acordo com a Psicóloga, que primeiro certificava que Ana era anoréxica e
agora dizia que ela era uma suicida, seu caminho não tinha volta. Está claro que os
especialistas não conseguiram suportar a representação de Ana. Fazendo uma analogia
com os casos em que indivíduos cortam seus próprios corpos, trazidos por Žižek,
podemos dizer que: longe de uma atitude suicida, longe de indicar um desejo de auto-
aniquilação, o não comer “é uma tentativa radical de (re)dominar a realidade ou, o que é
outro aspecto do mesmo fenômeno, basear firmemente o ego na realidade do corpo
contra a angústia insuportável de sentir-se inexistente”28. Mais uma vez Ana deveria
lidar com uma interpretação que indica um beco sem saída para sua identidade,
novamente fica frente ao sofrimento de indeterminação e a escolha entre duas únicas
representações: ou assumia a personagem deficiente que tanto negava ou insistia em
uma personagem cuja morte estava anunciada.

Minha mãe conseguiu me tirar de lá. Saí de lá e fui para a parte administrativa,
fizeram minha mãe assinar um termo de responsabilidade e eu também assinei.
Falaram que era caso de polícia, que eu podia morrer, mesmo assim deram a
alta. (...) voltei para casa um pouquinho mais inchada (...) voltei a fazer tudo de
novo.

A experiência no hospital é tomada como parte da aprendizagem, foi um teste


para a personagem que estava há dois anos construindo. Estava certa de que na próxima
27
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. p.269.
28
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. p.24.
212

vez que voltasse para um espaço como aquele não seria surpreendida, não adiantava
mais confiar apenas na balança, muito menos apenas naquilo que dizia, afinal, como ela
mesma comenta: “(...) antes era tudo balela? Eu só queria chamar a atenção das
pessoas? Então eu ia mostrar que aquilo [a personagem anoréxica] era de verdade!” A
obstinação de Ana na construção e representação da personagem anoréxica nos faz
lembrar da obstinação do oficial que toma o lugar do acusado na máquina de tortura
para ter seu corpo submetido a uma nova escrita de Na colônia Penal de Franz Kafka.
Isso nos mostra que mesmo quando uma superfície corporal é reconhecida como
“natural” (não andar = deficiência) pelo Outro, ainda é possível que esse corpo seja
tomado pelo indivíduo como passível de ser transformado em algo dissonante,
performativo, desnaturalizado. É o que acontece com Ana, que assume radicalmente a
personagem, começa a provocar vômito constantemente, faz restrição de alimento, e por
fim, consegue o que queria: em dois meses perde cinco quilos e volta para o hospital,
dessa vez tinha todas as condições para ser identificada como anoréxica.

E eles me deram um encaminhamento para o Hospital das Clínicas, porque


falaram que não iam ficar comigo (...) E o psiquiatra já colocou aquele monte
de CID no encaminhamento. Sabe (...) lembro que estava escrito no
encaminhamento: urgente! Paciente Ana X com estado de anorexia nervosa (...)
tratamento urgente.

Pronto! Ana havia conseguido uma nova chance de mostrar que a personagem
representada era verdadeira. Com o encaminhamento do especialista segue até uma
instituição que é referência para o tratamento e pesquisa da anorexia. Como Ana já
esperava (tinha feito lição de casa para não ser surpreendia de novo) ao chegar na
instituição lhe informam que para ser aceita no programa de tratamento precisava passar
por entrevista e realizar alguns testes, consegue ser aceita sem nenhuma ressalva: a Ana
anoréxica é legitimada.

Engraçado (...) tem teste, eu já sabia, sabia o que responder para ser aceita no
programa, as meninas [das comunidades na Internet que mantinha contato]
tinham me ensinado. Me falaram que o objetivo era o tratamento
medicamentoso e terapia. Então eu comecei a passar com a nutricionista e ela
começou a passar aqueles cardápios que eu fazia com as minhas escolhas. Eles
diziam o que eu tinha que comer e claro que eu não comia, sabia que aquilo era
para eu começar a me alimentar, como eles queriam. E era terapia, era
nutricionista falando o que a gente já sabe: olha o laxante faz isso, o diurético
faz aquilo, vomitar faz tal coisa (...) aquele monte de coisa, aquele monte de
história que eu já sabia.
213

Um primeiro problema havia sido resolvido, como o diagnóstico de anorexia


conseguiu dar sentido ao não andar, podia agora dizer que não andava porque era
anoréxica, negando assim a possibilidade de representar uma Ana deficiente. Nesse
momento, ao nosso ver, Ana consegue finalmente encontrar uma alternativa, na
representação da personagem anoréxica, para criar uma modulação na mesmice da
representação da esportista, que na verdade era uma personagem criada na tentativa de
se tornar filha que valia mais que um deficiente. Aqui nos parece ser possível dizer que
sua representação como anoréxica, mesmo podendo ser confundida com um movimento
de mesmidade, ainda é expressão da mesmice, ou seja, a personagem anoréxica, uma
vez que expressa a repetição da negação da personagem deficiente, pode ser pensada
como uma modulação da mesmice da personagem esportista.
A personagem anoréxica surge como alternativa de continuidade do projeto de
ser uma filha que valia mais que um deficiente. Todavia, outro problema surge, afinal,
essa personagem ao ser reconhecida trazia uma contradição: se a anorexia era entendida
como doença mental, então deveria ser tratada, superada. Essa condição inaugura um
novo conflito na representação dessa personagem, Ana experienciava a imposição da
alimentação e a resistência frente ao que era oferecido. Um mal-estar institucional
começa a se constituir. O lugar que lhe conferiu o reconhecimento de sua personagem
começa a se configurar como o lugar que poderá destituí-la dessa representação. Afinal,
os interesses eram divergentes, a instituição queria que Ana se transformasse numa ex-
anoréxica, Ana, por sua vez, queria permanecer na instituição para administrar a
mesmice da personagem fetichizada.
Se antes já tinha sido complicado o processo de se tornar uma anoréxica, agora
seria mais difícil ainda manter a representação. Nesse momento, inclusive, Ana
vivenciaria um tipo de solidariedade inesperada: no mundo virtual, em blogs e
comunidades, sua história de resistência faz com que seja reconhecida como um
exemplo a ser seguido por outras anoréxicas. Seu blog passa a ser visitado por diversas
garotas que pretendiam seguir seus passos. De aprendiz havia se tornado uma mestra,
finalmente era alguém importante. Fora da Internet, por outro lado, a resistência frente à
alimentação começa a se tornar um problema para sua mãe, que contra a vontade de
Ana começa a levá-la em consultas médicas, até que uma internação é novamente
vivenciada.
214

Eu nunca fui que nem essas meninas que ficam mentindo, quer dizer, a não ser
para minha mãe. Mas para médico eu nunca menti. Quando eles diziam: Ana,
você comeu hoje? Eu dizia: eu não como desde de ontem, ou dizia, o que eu
comi eu vomitei (...) Ele falava: você tem que fazer isso! Eu falava: eu não vou
fazer! Você tem que comer! Eu não vou comer! Aí uma médica falou: você vai
comer, aqui você vai ser obrigada a comer! Isso foi uma das últimas coisas
[faladas] antes de ficar internada (...) eu dizia: eu quero ver quem vai me
obrigar a comer! E eu falei antes: eu não vou comer e também não vou voltar!
(...) Mas também não adiantou (...) porque eu não ando (...) eu dependo da
minha mãe. Então algumas vezes você não tem escolha, você vai mesmo sem
querer. Você não anda? Eu te pego no colo e te levo, sabe... esse tipo de coisa.
E aí eu acabei ficando internada, no dia 24 de novembro. E o meu aniversário é
dia 27. [na internação] Eu não tinha uma reação de chorar que as outras
meninas tinham, a minha reação era cara fechada, não falem comigo. No fundo,
eu não sabia se eu chorava ou se eu continuava com raiva ou se eu queria aquilo
mesmo (...) até mesmo para me livrar ou para mostrar que eles falaram você vai
comer vai fazer isso e eu para mostrar para eles que eu não ia, que eu não ia
fazer aquilo. Que eu não ia ser mandada por nenhuma daquelas pessoas. Então
eu passei meu aniversário lá.

Novamente havia sido internada contra sua vontade, entretanto, a internação, que
em outros momentos de sua vida significou a experiência de solidão, dessa vez é
vivenciada de forma diferente. Dessa vez Ana recebe inesperadamente a visita de
algumas das garotas que mantinha contato pelo site de relacionamentos da Internet e
eram leitoras de seu blog. O interesse delas era colher notícias de sua internação e
atualizar diariamente seu perfil. Mais uma nova descoberta para Ana, pois isso
significava na prática que embora seu corpo estivesse em poder do hospital, sua
identidade virtual permaneceria livre, sendo representada sem maiores problemas. Ana
assinala que a partir desse momento percebe que era importante para alguém além de
sua mãe, uma vez que as garotas reforçavam em todas as visitas que estavam torcendo
por sua saúde e, principalmente, para que continuasse a resistir como anoréxica. O que
não seria uma tarefa fácil de ser cumprida no hospital devido ao tratamento intensivo.
Afinal, ela sabia que se se negasse a comer o que lhe fosse oferecido dessa vez, seria
submetida a uma sonda e já que não adiantaria uma ação comunicativa com os
especialistas, a saída encontrada então seria utilizar um agir estratégico. É quando Ana,
que já representava a anoréxica-problema, soma a essa personagem a adolescente que
não viveu.

Mesmo com a sonda eu tinha que tomar água. Então descobri uma maneira de
não tomar aquilo que me davam, eu guardava os copinhos descartáveis e levava
215

para o meu quarto (...) então quando não tinha ninguém, eu abria a torneirinha
da sonda e descartava, depois eu jogava fora. Sabe (...) eu aprontei muito,
aprontei minha vida (...)

Nesse momento de sua vida era como se tivesse retomado sua adolescência, ou
melhor dizendo, como se tivesse revivido aquilo que entendia como adolescência-
perdida, podendo agora ser exemplo para outras garotas. No hospital especializado
conhece outras meninas com quem se identifica, parecia que tudo estava sob controle
novamente: fazia traquinagens para continuar com o pouco peso, mantinha seu blog
atualizado por conta das fãs que conquistara, fazia bagunça, arrumava sua vida.

O que eu não fiz na minha adolescência, na época de escola, eu fiz lá. (...) na
escola eu não tinha meu grupinho (...) mas lá eu tinha um grupinho, que botava
apelido nas pessoas, que aprontava, que faz isso e aquilo.

Todavia, como era de se esperar, as traquinagens não duraram muito tempo. A


estratégia é descoberta e Ana expulsa do programa de tratamento. Deixemos que Ana
nos conte como essa nova cena se configurou. Ela conta que em um determinado dia,
em que ocorreria a saída de uma interna por conta de uma licença, decide radicalizar
suas traquinagens.

Era uma Mulher casada (...) um dia quando ela saiu eu pedi diurético para ela.
Falei: Traz para mim? Ela não disse nem que sim nem que não mas no dia de
voltar da licença ela me chamou num cantinho e falou: Ana, toma, esconde (...)
Era o remédio... (...) escondi o diurético porque você sabe (...) não pode entrar
esse tipo de coisa, principalmente diurético, laxante. Aí ficou comigo. Eu fiquei
com medo [no início], tinha medo de tomar e ter um treco (...) medo de que se
eu tivesse um treco [descobrissem] que tomei um diurético que não devia e
aquele monte de coisa.

O medo não impede Ana de tomar os comprimidos, afinal, manter a personagem


naquele momento significava não ter que retornar ao sofrimento de indeterminação que
vivera anteriormente. O medo é superado também na medida em que começa a
compreender que o fato de estar em um hospital era um indicativo de que tudo seria
feito para mantê-la viva. E consegue ficar contornando o tratamento mais um tempo, até
que sua estratégia é descoberta por uma outra paciente com quem havia feito amizade.
Com o segredo socializado o medo de passar mal começa a ser transformado em medo
de ser descoberta.
216

Eu fiz amizade com uma menina que todo mundo excluía (...) e ela viu que eu
tinha o diurético (...) então, era tipo daquele jeito: se você me dar eu não conto
que você tem! Então eu dei um e dei outro. E nessas duas vezes, ela chamou
muito a atenção (...) ficava a noite inteira indo no banheiro e era sempre depois
que saía do meu quarto, claro... dá na cara isso (...) Aí eu tive minha primeira
licença, na Páscoa e vim pra casa, fiquei feliz pra caramba (...) perdi dois
quilos, e claro que me ferrei na volta (...) perder dois quilos é uma condição
para não ter outra licença. Um dia eu caí na besteira de perguntar [havia lido
todos os efeitos colaterais presentes na bula do remédio] para o médico da
Mulher casada que me levou o diurético o que significava todas aquelas coisas
e que podia acontecer, então ele me explicou tudo (...) logo em seguida a
enfermeira chefe me chamou. Aí eu pensei: pronto ele deve ter contado para
ela! E eu tava com a Mulher no quarto e ela [a enfermeira] me chamou e eu
fiquei com medo (...) aí eu disse: Mulher toma e guarda pra mim, esconde e
depois eu pego com você! Se for tomar a gente toma, mas um de cada vez, você
me pede, eu dou, não é para ficar com você. E nisso descobri que a enfermeira
só queria meu telefone (...) não era nada.

Não era nada. Parecia que tudo voltaria à rotina, poderia continuar com seu
plano, mas Ana não havia considerado no momento em que acreditava ter sido
descoberta que tinha pedido para o “lobo tomar conta das galinhas”, ou seja, para uma
pessoa que também estava em sua mesma situação para tomar conta de algo que ela
mesma tinha dificuldade de lidar. Foi quando ocorreu uma tragédia.

E já estava com ela [Mulher], quando chegou o jantar (...) eu tive que comer [e
lembrou do remédio], nisso ela pegou o remédio deitou no meu colo e falou:
Ana, me desculpa! E eu falei: desculpa porque? Ela falou: eu tomei! Eu falei:
tomou quantos? Ela falou: sete! Aí eu falei: meu deus [Mulher], porque você
fez isso? Sabe, ela não podia ter feito isso. Eu ficava num quarto sozinha. Então
ela tomou sete e até de noite não tinha acontecido nada, fiquei aliviada porque
nada tinha acontecido e dormi. E nesse que fazia um mês que eu não estava
tomando o remédio (...) eu escondia o remédio, tentei tirar a sonda também, foi
um caos, eu aprontei muito aquele mês. Então nesse dia eu dormi. Acordei com
a [enfermeira] entrando no meu quarto: Ana me fala o nome do remédio que a
[Mulher] está morrendo. Eu mal tinha acordado direito (...) me fala o nome do
remédio! Aí eu falei tudo, um monte de coisa (...) ela estava no soro (...) tinha
dado um revertério forte (...) levaram o aparelho de freqüência cardíaca. Nisso a
[amiga com quem dividia o remédio] vendo que a [Mulher] estava passando
mal, desmaiou também (...) desmaiou e contou que ela tinha levado o diurético
para mim, que eu tinha pedido e que sabia onde estava escondido também se eu
não quisesse devolver, então o enfermeiro foi conversar comigo, pediu para eu
entregar. Falei que eu não ia entregar para ele. Uma hora da tarde, falaram: Ana
você vai ter alta administrativa, você e a [amiga]. A [Mulher] não porque o
médico dela pôs no prontuário como tentativa de suicídio. Então minha mãe foi
me buscar, ela ficou feliz e tudo, eu não fiquei.

Com o ocorrido Ana recebe alta administrativa, não poderia mais fazer o
tratamento proposto pela instituição. A argumentação utilizada na ocasião da expulsão
217

era que ela não tinha perfil para o tratamento proposto pelo hospital de referência para o
tratamento da anorexia. Outro argumento utilizado foi o de que até aquele momento
representava um perigo apenas para si mesma, mas que a partir do que havia feito
tornava-se um perigo para as demais internas, que representavam a demanda
“verdadeira” da instituição — principalmente porque se submetiam à identidade
pressuposta pela instituição e deixavam seus corpos dóceis nas mãos dos especialistas.
É importante assinalar que essa explicação, vinda de uma instituição que se colocava
como a melhor instituição de tratamento para anoréxicas, convence Ana de que não
existia nenhuma alternativa para sua condição, ou seja, a mesma instituição que
reconhece ela como anoréxica assume que não sabe como tratá-la. Claro que aqui fica
explícito que a fragilidade técnica é invertida como um problema individual. Ana é
reconhecida de forma perversa como doente mental sem perfil para tratamento. Esse
diagnóstico, que poderia ser pensado aqui apenas do ponto de vista subjetivo, vindo de
uma instituição entendida como referência para o tratamento da anorexia refletirá de
forma concreta nas futuras tentativas de busca por tratamento. O histórico de
reincidências (recaídas) conferiam à Ana o estigma de intratável.

Depois de uns dois meses e meio depois eu emagreci ainda mais (...) minha mãe
viu que não tinha adiantado muita coisa eu ter saído e porque eu já estava do
mesmo jeito de quando eu entrei, quer dizer, é estava com mesmo peso, então
ela queria que alguém ajudasse (...) a gente perguntou sobre terapia, procurei na
Internet (...) acredita que nem pagando quiseram me atender? Minha mãe
procurou a prefeitura para arrumar psiquiatra e psicólogo e falaram [os técnicos
do serviço de saúde mental que a mãe foi encaminhada] que eu tinha que
procurar um hospital primeiro (...) que eu tinha que me tratar, tinha que me
internar que isso e aquilo, para depois fazer terapia, falaram que não tinha jeito,
falaram que não tinha vaga e eu sabia das conseqüências que não iam me
internar e acabou (...) não tem tratamento.

Mesmo que voltasse a ser internada será que conseguiria o que procurava? O
hospital já havia lhe dito que o que poderia oferecer como tratamento era o aumento de
seu peso. Não era isso que Ana procurava, ninguém havia conseguido entender que sua
personagem tinha uma função de negação de outra personagem insuportável: a
deficiente. Valendo-nos de uma passagem escrita por Žižek, podemos dizer que nenhum
especialista conseguiu entender uma condição básica daquilo que se configura
atualmente como demanda: “a demanda por comida, por parte da criança, por exemplo,
pode articular o desejo de amor, de modo que algumas vezes a mãe pode atender à
218

demanda simplesmente abraçando a criança”29, isso assinala que não basta apenas
corresponder ao que se apresenta como problema, é preciso abrir mão do cinismo —
que traz a anamorfose para o ponto fixo determinado pelo especialista —, e deslocar
nosso olhar para o ponto onde a anamorfose se apresenta — suportando o fato de que
muitas vezes teremos que abrir mão do discurso técnico-psicológico e produzir uma
outra leitura considerando que o desejo envolve a Lei e sua transgressão. Também
nenhum especialista considerou que a personagem anoréxica conferia a Ana um
reconhecimento de sua identidade nunca antes experienciado, pois era finalmente
popular, como se essa representação pudesse reparar algo nunca vivenciado. Ciampa
havia identificado esse fenômeno como o momento em que nos tornamos nossas
predicações, devido ao fato de a representação significar um aumento do poder a que
uma personagem dá acesso30. Aqui nos referimos a possibilidade de paridade31 que essa
personagem confere ao indivíduo frente, pelo menos, àqueles com quem se identifica e
com quem é identificado.
Na narrativa de Ana algumas questões permanecem sem uma resposta
satisfatória: a) se aqueles que deveriam escutar o sofrimento de Ana, compreender sua
história de vida não se dispuseram a reconhecê-la em sua totalidade, reduzindo-a apenas
à personagem fetichizada, como ela poderia lidar com a anamorfose que fazia com que
ficasse aprisionada entre a adoção de uma personagem que poderia se concretizar como
uma metamorfose para a morte e o sofrimento de indeterminação? b) como poderia dar
outros sentidos para a anamorfose materializada por seu corpo se a própria
representação deste sofria a disputa de diferentes instituições que a priori lhe conferiam
apenas um significado, uma identidade pressuposta? Longe de querer responder a essas
indagações, acreditamos, inclusive, que seja necessário mantê-las como um problema
que deve ser pensado por todos. Falemos do que foi/tem sido possível para Ana, que
sem a possibilidade de experienciar um outro outro alternativo a alternativa encontrada
para negar a personagem deficiente, somente encontra como saída uma representação
limitada, a reposição de uma personagem que é reconhecida de forma perversa. Em
última instância, é uma metamorfose para a morte, se não simbólica, física certamente.
Isso fica explícito quando nos conta quais seus planos para o futuro, seu horizonte
29
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.391.
30
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina. p.163-164.
31
Paridade aqui é utilizado no sentido apresentado por Nancy Fraser e que se refere à condição de ser um
par, de estar no mesmo nível que os outros, de estar em pé de igualdade. Cf. FRASER, Nancy.
Reconhecimento sem ética?
219

utópico, o qual vislumbramos algo como a fantasia de poder representar uma


moribunda-que-não-morre ou uma personagem metafísica/sobrenatural que desafia a
Natureza ou Deus32.

Sabe qual o melhor tratamento para mim? Ficar internada de novo, mas não
para comer. Para realmente não comer, entende? (...) para não ter acesso fácil a
comida (...) Você quer saber o que penso para meu futuro? Não existe o futuro!
Não para mim. Eu odeio essa cadeira (...) às vezes me desespero sabe... eu estou
na minha cama e olho para ela, dá uma vontade de jogar ela no chão (...) me dá
vontade de jogar fora (...) sabe... ter vontade de mexer as pernas e não mexer é
horrível. Ano que vem vai fazer sete anos. Sete anos é muita coisa (...) eu não
quero passar oito, não quero viver assim. Sabe, se não é normal eu vou
continuar fazendo como sempre fiz (...), vivo pela Internet. Tanto que eu nem
saio de casa, é muito difícil. E eu sinto um pouquinho de falta, mas agora, para
que eu vou sair de casa? Me fala! Não tem porque. Eu não, eu não gosto de sair.
Fico em casa vinte e quatro horas por dia.

Como propor um tratamento para Ana que não significasse abrir mão da única
personagem que lhe conferiu um reconhecimento desejado para sua identidade? Será
que a expansão dos serviços de saúde mental conseguirá vislumbrar algo além dos
membros atrofiados ou de sua personagem virtual? Será que entenderão algum dia que o
sofrimento passado pelo seu corpo biológico é pequeno quando comparado ao
sofrimento de seu corpo subjetivo? Afinal, não nos parece que Ana queira morrer, sua
história mostra que muitas vezes a realidade se transforma em aparência, que as coisas
simplesmente parecem parecer. Sua história é como um sussurro, um pedido de socorro,
feito por alguém que luta contra a morte simbólica, alguém que resiste em favor da
mínima possibilidade de ser reconhecida, de existir não como um objeto para o outro,
mas como um objeto para si mesma. A narrativa de Ana reforça os argumentos trazidos
na primeira parte de nossa tese, onde questionamos a forma meramente instrumental
que a reforma psiquiátrica tem se concretizado. A explicação de que o problema de Ana
foi o de não se adequar ao perfil, à demanda atendida pela instituição especializada,
deflagra que o interesse da instituição não é pelo desejo do indivíduo (que no caso de

32
Fazemos essa colocação baseando-nos em um hexagrama do I Ching, intitulado “Prover Alimentos”,
cuja primeira linha fala para o consulente: “Você deixa escapar sua tartaruga mágica e olha para mim,
com os lábios caídos”; a seguir vem a explicação: “A tartaruga mágica é um ser dotado de poderes
extraordinários; pode viver do ar e não necessita de alimento material. A imagem indica que uma
pessoa que poderia viver com liberdade e independência abdica dessa autonomia interior e olha com
inveja e desgosto para aqueles que estão externamente em melhor posição”. Cf. WILHELM, Richard. I
Ching: O livro das mutações. p.385-388.
220

Ana aparece como uma re-atualização de toda sua história de vida, da superação do
projeto de querer ser uma filha que valia mais que um deficiente).
Com aquelas últimas palavras Ana termina de nos contar sua história de vida,
sem esperança, sem vislumbrar metamorfoses miraculosas33. Ao cruzar o batente da
porta de sua casa percebemos que a única possibilidade de encontrarmos com ela
novamente, a não ser que ela nos convidasse novamente para uma conversa em sua
casa, seria através de seu blog, da personagem virtual anamorficamente distorcida,
invertida, reduzida, que pelo menos por enquanto representa uma possibilidade e, ao
mesmo tempo, a totalidade de sua identidade. Uma representação que não poderá ser
pensada pelos especialistas da saúde mental enquanto não for pensada para além de uma
demanda psiquiátrica, da transformação de uma anoréxica em ex-anoréxica.

2 – A história de Gabriel: quando assumir uma personagem fetichizada é


vislumbrada como única possibilidade de reconhecimento como pessoa
portadora de direitos

Gabriel também se relaciona com pessoas pela Internet; a personagem que tem
representado também é pressuposta como a de um doente mental, todavia, a forma
como tem dramatizado essa personagem difere daquela apresentada na história de Ana.
Tomamos contato com sua história em uma de nossas viagens cotidianas no transporte
coletivo e depois de uma longa conversa percebemos que sua história de vida poderia
ser interessante para nossa pesquisa. Gabriel trabalha informalmente como técnico de
computadores e é em sua oficina que escutamos sua narrativa de história de vida. Logo
no início de nossa entrevista, ele conta que descobriu interessar-se por esse tipo de
atividade após três anos afastado pelo INSS34 do trabalho que exercia anteriormente por
conta de uma depressão. Antes de seu afastamento trabalhava como motorista em uma
empresa de transporte coletivo de São Paulo. Diferente de Ana, que iniciou seu relato a
partir do seu nascimento, Gabriel começa a nos contar quem é a partir do que fazia, do
seu trabalho e da constituição familiar.

33
Sem vislumbrar metamorfoses miraculosas, prevalecendo a interpretação na linha do I Ching, que ela
deixa escapar a tartaruga mágica ao querer construir uma utopia que consiste em conseguir uma
metamorfose miraculosa, a qual seria viver de ar.
34
Instituto Nacional de Seguridade Social
221

Eu comecei muito cedo, com quatorze anos eu tava namorando, com quinze
anos eu já estava trabalhando, larguei os estudos, fui trabalhar, aos dezessete eu
estava amigado [morando junto com uma companheira]. Tinha juntado as
coisas e vazei [saiu da casa dos pais]. Essa era a idéia de vida mesmo, a que
haviam me ensinado, eu vou trabalhar, montar uma família. Mas uma coisa que
nunca me ensinaram foi que não ia ser fácil. Que no trabalho, principalmente no
trabalho a coisa ia ser difícil, que eu ia ser explorado. Vou contar para você
como foi isso, mas do ponto de vista de alguém que passou pela coisa, que
entende de outro jeito agora o que aconteceu.

Gabriel adianta que sua história será contada do ponto de vista “de alguém que
passou pela coisa”, ou seja, de alguém que atualmente atribui um significado específico
para aquilo que está vivenciando. Sua advertência é importante para que lembremos que
sua narrativa, assim como a de Ana, parte de uma personagem cujo sentido de
manutenção segue a configuração realizada frente às personagens que ora foram se
apresentando, ora foram sendo oprimidas, impedidas de se apresentar, ora foram
resistindo frente às tentativas de aniquilação. Após essa primeira apresentação, Gabriel
fala-nos de sua infância e adolescência, encurtada pelo casamento precoce e entrada no
mundo do trabalho. Acredita que contar sua história dessa forma pode ajudar a entender
o que está reivindicando hoje — que, como poderá ser observado, não se refere ao
reconhecimento como doente mental, mas sim, à indenização de danos pessoais sofridos
por conta da lógica sistêmica presente em seu trabalho.

Para você entender vou contar minha história do começo. Acho minha infância
foi tranqüila. Tirando o fato que eu era só. Na época eu não tinha irmão, fui
filho único até os treze anos de idade e depois dos treze anos minha mãe
engravidou, então, quer dizer, eu fui ter um irmãozinho quando já tinha
quatorze anos. Meus pais sempre se deram bem, nunca vi meus pais brigando,
ao contrário de muitos outros que acontece por aí. Eu cresci tranqüilo mesmo,
morei minha vida todo num bairro da periferia onde sou conhecido até hoje
pelos colegas, não tenho o que me queixar da minha infância, ela foi curta mas
foi boa.

Gabriel diz que tentava se esforçar para aprender o que era oferecido pela escola.
Mas que, com o passar do tempo, começou a perceber que o conteúdo oferecido pela
escola não serviria para nada para a vida que projetava: queria entrar para uma empresa
de ônibus, queria seguir os passos de seu pai migrante nordestino que com pouco estudo
havia conseguido um trabalho em uma empresa de transporte coletivo e tinha lhe
oferecido uma boa infância. Para isso acreditava que não precisaria estudar física,
matemática, história etc., afinal, a própria escola mantinha um discurso ambivalente que
222

ora sustentava que bastava se esforçar, se lançar no mundo do trabalho para que
conseguisse viver com dignidade, ora reforçava que para garotos da periferia não existia
futuro.
Esse relato nos leva a resgatar uma colocação de Jean Baudrillard que assinala o
fato de que atualmente os indivíduos estão “simultaneamente intimados a constituir-se
como sujeitos autônomos, responsáveis, livres e conscientes, e a constituírem-se como
objetos submissos, inertes, obedientes, conformes.”35 Vivenciar essa condição faz com
que Gabriel questione o sentido dessa educação: se não teria condições de entrar em
uma faculdade, se não sairia da periferia, estudaria para quê? Sem um sentido prático
que lhe fizesse encontrar na escola algo necessário para sua vida, torna-se o garoto-
problema.

Eu não tinha nada na cabeça, era bem molecão mesmo. Eu arquitetava as


trapalhadas, aprontava muito na escola. Não agia por impulso (...) a única coisa
que eu estudava, é engraçado, era para fazer uma arte, uma trapalhada.

Passa a ser reconhecido como garoto-problema porque não se submete ao estudo


sem sentido. Essas primeiras falas de Gabriel valem uma provocação: poderíamos
pensar aqui que a escola não estaria cumprindo sua função se não fosse o fato de que ao
mostrar-se como espaço sem sentido ela está contribuindo com a lógica do capital, ou
seja, ao invés de garantir a liberdade subjetiva, a autonomia individual, promove, ao
contrário, práticas disciplinadoras necessárias para uma socialização com vistas no
mercado de trabalho, uma semi-formação. A exigência de disciplina em um lugar sem
sentido é futuramente entendida como o autocontrole necessário para a disciplina no
trabalho. De qualquer modo, o garoto-problema não é representado por muito tempo,
Gabriel prefere deixar as “trapalhadas” em meados de sua adolescência e adiantar o que
era posto como inevitável para um jovem da periferia (trabalhar e constituir família),
afinal, para quê estudar, ficar perdendo seu tempo na escola se seu destino estava
traçado?

Então eu casei muito cedo. E foi difícil foi no começo (...) imagina dois
adolescentes, eu trabalhava, ganhava pouco, minha esposa engravidou (...)
pagava pagar aluguel, ficamos um tempo pagando aluguel. Passamos fases bem
difíceis mesmo, e enfim, e aí você vai começando a enxergar como não é fácil.
Você criar, ter uma família hoje em dia não é fácil, é bem complicado mesmo,
35
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. p.110.
223

mas você cresce ouvindo as historinhas que deve casar e trabalhar. Ninguém
fala que as responsabilidades aumentam assim de maneira assustadora e você
depende mesmo do trabalho, que vira escravo do trabalho. Eu acho que hoje o
ser humano, pra se dar bem, pra tentar ser bem sucedido, porque ele pode se dar
mal, ele só trabalha, ele não faz mais nada (...) ele tem que viver para trabalhar,
só isso.

Gabriel abandona sua adolescência e assume o projeto de tornar-se um homem


de família, as dificuldades começam a aparecer, todavia, ainda eram vistas como
temporárias. Nesse primeiro momento de sua nova representação acreditava que bastava
seguir lançando-se no trabalho, vendendo sua mão-de-obra, para conquistar sua
liberdade da escravidão do trabalho.

As dificuldades pareciam provisórias, parecia que eu é que não tinha me


esforçado o bastante, acreditava que se você não trabalha, não tem como você
morar, não tem como você comer, isso e aquilo, então você tem que trabalhar.
Trabalhar e foda-se o resto. Então ficava com aquilo na minha cabeça, tenho
que trabalhar, tenho que trabalhar, tenho que trabalhar, tenho que conseguir
dinheiro.

Decide ingressar em uma empresa de transporte coletivo, acreditava que nesse


tipo de profissão conseguiria um mínimo de conforto, que se não fosse conquistado
inicialmente seria conseguido até o final de sua vida, tal como acontecera com seu pai,
que era motorista de ônibus aposentado. Sendo assim, o homem de família, não via
outra possibilidade para sua liberdade a não ser uma submissão à escravidão por
contrato, o qual para ser executado deveria abrir mão de trabalhar para viver por um
viver para trabalhar. Não tinha clareza nesse momento de que essa condição
caracterizaria sua futura representação como alguém escravo por contrato, o que Safatle
identifica ser um fenômeno característico de nosso tempo e que expressa a
funcionalidade da estrutura dual de identificação — a absorção do próprio código e sua
negação —, o trabalho ao mesmo tempo como dispositivo disciplinar e instrumento de
libertação36. De qualquer forma, outras possibilidades não haviam sido apresentadas
para Gabriel, que continua sua narrativa.

E foi assim que eu comecei ir nessa empresa, que hoje eu estou afastado dela.
Daí por diante eu comecei a trabalhar na oficina, ali mesmo eu já percebi que a
coisa não era, não era fácil mesmo. Você vê muitas pessoas estranhas, as
atitudes das pessoas começam a te incomodar. Pelo menos a mim, tem muita

36
Cf. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.135 et seq.
224

gente que não está nem aí, para as coisas que vão acontecendo ao redor. Mas
ainda acreditava que poderia melhorar, que era só uma fase. Eu comecei na
oficina, sujando minhas mãos de graxa, enfim, eu era moleque, não tinha
profissão nenhuma, eu estava de ajudante lá e eu via aqueles ônibus (...) os
caras dirigindo, como meu pai era. Então, a gente filho homem sempre tem
aquela coisa também, de seguir o que o pai faz, até mesmo porque eu nunca fui
assim de estudo mesmo (...) eu odiava estar na sala de aula. Mas ali eu
imaginava que o trabalho de motorista seria ótimo.

O que tornava essa condição de ter se tornado um escravo por contrato


suportável? A esperança de que um dia poderia se libertar da escravidão, que parecia
uma etapa a ser superada pelo ajudante de oficina. O garoto-problema, que havia se
tornado um homem de família, traça como objetivo de sua realização pessoal e familiar
a construção da personagem motorista de ônibus.

Então eu fui batalhando, com o tempo, da oficina eu passei para fiscal, de fiscal
eu passei para cobrador e de cobrador eu cheguei a me tornar motorista.
Finalmente tinha conseguido chegar onde queria, onde diziam que eu teria
futuro, que garantiria o sustento de minha família, que teria felicidade.

Gabriel decide pagar o preço anunciado para conquistar sua felicidade, contudo,
não sabia que o preço da felicidade seria permanecer preso à inconstância do desejo.
Uma vez, que como Žižek assinala, na vida diária, “(fingimos) desejar coisas que na
verdade não desejamos, e assim, ao final, o pior que pode nos acontecer é conseguir o
que ‘oficialmente’ desejamos. A felicidade é, portanto, oficialmente hipócrita: é a
felicidade de sonhar com coisas que na verdade não queremos”37. Isso fica claro para
Gabriel assim que percebe que o problema de ser explorado não estava no fato de ser
ajudante de oficina, ou fiscal, ou cobrador, o problema da exploração era estrutural da
própria empresa, que sugava até o último sangue de seus empregados. Nessa época
descobre que mesmo tendo imaginado ter assinado um contrato de escravidão
provisória, essa condição provisória poderia se tornar perpétua. Como era de se esperar,
quando Gabriel passa a perceber isso, as coisas começam a se transformar, o sentido de
sua submissão começa a desvanecer.

Quando cheguei no ponto esperado [se tornar motorista] comecei ver que não
fazia muito sentido aquilo. Não de não trabalhar ou de estar trabalhando, mas
de como você teria que trabalhar, as condições de trabalho. Eu sempre fui
esforçado, sempre fui perfeccionista, tanto na minha vida pessoal em casa

37
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. p.79.
225

mesmo, quanto no meu trabalho. Eu sempre havia ficado mais tempo no


trabalho do que em casa com minha família. Mas lá no trabalho eu comecei a
perceber que ia fazer diferença eu ser perfeccionista ou ser relaxado e tentar
fazer da melhor maneira possível, comecei a perceber que era apenas mais uma
peça da máquina, descartável. E aquilo foi me incomodando porque eu queria
fazer da maneira correta, trabalhar o necessário, para estar bem para tratar as
pessoas, mas eu acabei não tendo condições, eles não me davam condições
adequadas de eu fazer da maneira correta.

Gabriel assinala o fato de que as condições de trabalho não consideravam sua


condição de indivíduo, de pessoa de direito. Se antes imaginava que a partir do seu
trabalho personalizado poderia se libertar da condição de peça descartável, começa a
perceber concretamente que a personalização era algo que não interessava para a
empresa. O que interessava era explorar sua mão-de-obra até as últimas conseqüências.
Para ilustrar como se dava essa exploração Gabriel nos traz um exemplo do que ocorria
em sua rotina de trabalho.

Por exemplo, o nosso horário de almoço era de vinte e cinco minutos, nossa
jornada de trabalho era para ser seis horas e quarenta semanais, mas
aumentaram para sete horas e vinte. Só que na verdade você fazia mais de dez.
Fazia obrigado, porque eles me davam uma tabela, por mim eu fazia minhas
seis horas e quarenta e ia embora pra casa. Mas não. Eles me davam uma tabela
de dez horas e eu tinha que cumprir ela e eu não podia abandonar ela nesse
horário e eu tinha que fazer meu vinte e cinco minutos que era descontado
ainda, com horas-extras fora do contracheque. E detalhe, com uma ferramenta
de trabalho totalmente desapropriada para estar ali onze horas, sem
manutenção, pneus carecas, sem peças de reposição. Horrível, horrível!

E se não bastasse a exploração física ainda havia a exploração emocional, a


humilhação em todos os momentos que tinha de lidar com o autoritarismo dos seus
superiores, que não consideravam suas opiniões acerca das condições a que estava
submetido, o que agravava cada vez mais sua relação com esse lugar, que embora
ficasse cada vez mais hostil era visto como a única possibilidade de sustento para sua
família.

Comecei a perceber que se a pessoa impõe algo para você fazer você tem que
fazer da maneira que ele impôs. Porque ele está acima de você, ele está lá no
topo da cadeia alimentar e você está embaixo, você tem que obedecer mesmo
que seja uma coisa que esteja saindo errado. Isso me deixava louco. É da
maneira deles, dos empresários ou seja lá de quem for, o que estiver por cima,
tem que ser da maneira deles, não consideram suas opiniões. E isso começou a
me incomodar, até hoje me incomoda, pois eu gosto de ter minha opinião
formada, eu gosto de fazer da maneira que eu articule e veja que dá para fazer
226

melhor, mas eu tinha que abrir mão disso porque eu precisava do trabalho.
Precisava pelo menos do dinheiro, precisava garantir o sustento de minha
família. Mas não poder pensar é muito doloroso, e nessa eu fui me desgastando,
fui mesmo.

Não poder pensar! No momento em que Gabriel chega a esse ponto de


submissão e humilhação o limite de representação do motorista de ônibus é
ultrapassado, e outra personagem, não esperada nem desejada, começa a aparecer: o
doente mental. Tal como a Severina da narrativa apresentada por Ciampa, Gabriel
começaria a chegar a zero, deparar-se-ia com o sofrimento de indeterminação. Aqui vale
ressaltar a compreensão de Mead no que concerne à explicação dos comportamentos
patológicos. Antes, vale dizer que acreditamos já ter evidenciado a proximidade que a
concepção meadiana de self tem da concepção de identidade proposta por Ciampa —
para esses dois autores seria esperado, de certa maneira poderíamos dizer que é normal,
uma multiplicidade de representações, ou seja, é importante que essa multiplicidade
tenha unidade38. Como assinala Odair Sass, para Mead “a ruptura [dessa multiplicidade]
pode provocar o fenômeno das dissociações da personalidade”39, o que para Ciampa
evidencia o fetichismo da personagem, o aprisionamento na repetição40.
No caso de Gabriel veremos, inclusive, que antes dessa personagem inesperada
ser reconhecida, dando conta do sofrimento de indeterminação gerado pela
impossibilidade de representar o motorista de ônibus, ocorrerá um processo de
desintegração dessa última personagem.

Chegou uma hora que eu não estava agüentando mais. Depois de treze anos
nessa empresa eu não estava agüentando mais porque eu estava me sentindo um
nada, um lixo, um pano de chão que só é útil enquanto pode ser arrastado pela
sujeira e que depois se torna outro lixo que você tem que jogar fora. Porque se
eu estivesse bem para trabalhar, ótimo para eles, mas se eu estivesse doente,
cansado, estressado, foda-se. Nisso chegou uma hora que eu simplesmente nem
tinha mais vontade de sair de casa, eu não tinha mais nem vontade de acordar.
De levantar e ir pro trabalho. Mas eu olhava de um lado, para o outro, via

38
Cf. MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist.
“Normally, within the sort of community as a whole to wich we belong, there is a unfied self, but that
may be broken up. To a person who is somewhat unstable nervously and in whom there is line of
cleavage, certain activities become impossible, and that set of activities may separate and evolve
another self.” p.143. Tradução da passagem para o português feita por Odair Sass: “Normalmente, na
espécie de comunidade a que pertencemos, há um self unificado, mas que pode ser fragmentado. Uma
pessoa nervosamente instável, e para quem há uma linha de clivagem, certas atividades se tornam
impossíveis, e essa série de atividades pode separar e desenvolver outro self.” Cf. SASS, O. Crítica da
razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.276.
39
SASS, Odair. Op. cit. p.275.
40
Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina. p.157.
227

minha mulher, meu filho, minhas contas para pagar e concluía que eu tinha que
fazer aquilo. Eu era obrigado a fazer aquilo. Porque se eu não fizesse ali, eu
teria que buscar outro, outro trabalho, que possivelmente também me trataria
igual, assim dizia meus amigos quando falava do meu descontentamento, para
eles onde eu estava era maravilhoso, um sonho, então eu tinha que fazer de
qualquer forma. Já que eu estava ali eu não ia sair dali para enfrentar outro
ambiente de trabalho. Passou o tempo e eu não dormia, amanhecia o dia eu já
estava acordado e ainda tinha que trabalhar. Eu comecei a trabalhar chorando,
chorando mesmo, comecei a ficar meio xarope, e todo mundo dizia que era
frescura, e o tempo foi passando e minha vontade de pensar e criticar foi
diminuindo, até mesmo porque eu sabia que eu ia receber um não.

O sofrimento era interpretado como frescura, mais uma vez vemos que a
solidariedade é anulada pelos imperativos morais presentes para justificar e fortalecer a
submissão ao trabalho, o problema coletivo gerado pelas péssimas condições de
trabalho é invertido como problema individual de um funcionário que não estava
disposto a cumprir seu contrato. Embora Gabriel não quisesse abrir mão de uma
personagem que durante toda sua vida acreditou que lhe traria a felicidade, ficava cada
vez mais evidente que onde quer que fosse representar essa personagem deparar-se-ia
com o mesmo palco e o mesmo script. Quando o sentido se desvanece por completo,
quando passou a ter certeza de que não importando a sua reivindicação receberia um
não a priori como resposta — sabia que tudo que falava: “era como se estivesse
pregando no deserto!” —, resgata uma antiga personagem que fora utilizada na época
da escola: o garoto-problema, que, ao ser amalgamado à personagem do motorista de
ônibus, passa a fazer com que seja reconhecido em seu trabalho como motorista-
problema.

Então chegou uma hora que eu já não tava mais agüentando mais, eu tava
assim, eu tava estourando, parecia que eu ia morrer cara. Meu peito estava
horrível, frio no estômago, peito apertado, a cabeça latejando, chorando dia e
noite, não conseguia dormir. Então às vezes abandonava o ônibus no terminal
mesmo e ia embora, faltava e nem justificava. Então comecei a tomar gancho
[suspensão] nessa época, eu tomava gancho um atrás do outro... por
insubordinação. (...) Então eu não estava agüentando mais. Eu perdi mesmo a
noção das coisas (...) uma vez fui pras cabeça e eu cheguei até a agredir um dos
superiores. Sem falar nas agressões verbais, isso aí já tinha virado praxe lá.

As punições iam aumentando na mesma proporção que seu descontentamento,


até que em um determinado dia a personagem motorista-problema finalmente deixa de
ser representada. E como não é possível viver sem personagens, no caso de Gabriel,
sustentar uma indeterminação gerada pela impossibilidade de ser um motorista-que-
228

não-poderia-dirigir, outra personagem lhe é oferecida, o doente mental, uma vez que
seria apenas sob essa condição que a não submissão ao trabalho, sua libertação da
escravidão por contrato, torna-se possível. Aqui a proposição de Žižek acerca da relação
entre liberdade e loucura mostra-se evidenciada, pois “o ato livre em seu abismo é
insuportável, traumático, de modo que, quando realizamos um ato de liberdade, para
sermos capazes de suportá-lo, nós o vivemos como condicionado por alguma motivação
patológica”41. Mas deixemos que Gabriel nos conte como ocorreu essa metamorfose.

Até que chegou o dia que não agüentei mais, pedi para eles me dispensarem
mais cedo porque eu não estava bem, eu estava chorando, eu saí de casa
chorando e até mesmo os passageiros notaram isso. Chegaram até a comentar lá
com um dos meus superiores de que eu não estava bem. Aí eu fui lá na sala do
meu supervisor e conversei com ele, eu falei: olha, eu não estou legal e preciso
ir para casa. Ele falou: O que é que você tem? Eu não sei. Eu não sabia
realmente o que eu tinha. Ele respondeu pra mim: Ah! Hoje não vai dar não. Aí
eu pensei, mas como assim não vai dar? Eu não estou legal, preciso ir no
médico, preciso fazer alguma coisa. E eu diante dele, lá na sala dele, eu estava
em soluços. Eu estava péssimo. Aí eu falei: eu vou fazer umas viagens, mas
arranja alguém para me substituir. Eu entrei... o que? Três e meia da manhã
naquele dia. Pensava que se eu fosse para casa oito horas da manhã estava bom,
não agüentaria ficar até duas horas da tarde. Eu sabia que não ia agüentar
mesmo. Eu falei, até oito horas você vê o que você faz a pra mim, eu falei... Vê
se coloca algum motorista no meu lugar para mim ir embora, a famosa
rendição42. E ele me vendo naquele estado nem pra ele falar assim: vamos fazer
um seguinte, você não está legal mesmo, deixa o carro aí, eu me viro, eu seguro
essa bucha e você vai lá no médico e depois você me trás um atestado, vai lá se
cuidar. E eu fui tentando me segurar, mas sei que depois de ir lá cutucar ele,
pedir umas três vezes, na quarta vez deu vontade de entrar com ônibus e tudo lá
dentro daquela sala. Eu cheguei lá para conversar e aí ele falou: definitivamente
não dá mesmo para te liberar mais cedo, não sobrou ninguém, agüenta as
pontas. Pô! Eu não enxerguei mais nada. Do jeito que eu estava com o a tabela
de horários na mão já joguei na cara dele, fui pra cima dele, eu não lembro
quem estava lá, pegou e me segurou. Aí eu peguei o ônibus, cara, estava
encostado num ponto, eu não tinha aberto aquela porta, então enfiei ali de
baixo, como se fosse uma garagem, guardei o ônibus lá, peguei minhas coisas e
fui embora. Eu cheguei em casa tão mal, tão mal que eu não estava conseguindo
nem andar mais, eu chorava e soluçava, o peito não agüentava mais, eu achei
que eu ia enfartar. Foi quando minha esposa ligou para o meu pai, falou para ele
que parecia que eu tinha saído do serviço, tinha brigado com alguém. Meu pai
foi lá em casa, me colocou no carro, me levou no pronto socorro e de lá já
41
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.128.
42
Rendição é um termo utilizado que se refere à dispensa de um determinado motorista. Essa dispensa
está condicionada à substituição por um outro motorista que (deveria) está como reserva para as
eventuais faltas e problemas médicos que pudessem aparecer, evitando assim que ocorra falta na oferta
de viagens e com isso houvesse prejuízo, atrasos, para os usuários do transporte coletivo. Em uma
linguagem de dicionário esse termo remete ao ato de entregar-se (uma força militar, uma praça de
guerra etc.) incondicionalmente, ou sob condições, a uma força inimiga; passagem de serviço em
rodízio, de um militar para outro. Cf. HOUAISS, Antonio & VILLAR, M. S. Houaiss: Dicionário da
Língua Portuguesa.
229

fazem cinco anos, vai fazer cinco anos, que eu nunca mais fui o mesmo. Fui
diagnosticado com depressão, virei doente mental, já passei por vários
especialistas, psiquiatras nossa! Já perdi as contas.

Nem suplicando rendição Gabriel consegue uma trégua do campo de batalha. O


que lhe restava fazer? Assumir a deserção e não voltar para o trabalho. O preço para
isso, como já adiantamos, será a representação de outra personagem: o depressivo, o
doente mental. Personagem oferecida após ser levado para uma consulta com o
Psiquiatra conveniado ao plano de saúde da empresa. A relação com esse profissional
não poderia ser pior, como assinala Gabriel, uma vez que percebe que sua história de
vida, sua relação com as pessoas na empresa e com o trabalho não são levadas em
consideração por esse profissional. Não interessa para o Psiquiatria os fatores que
poderiam levar Gabriel à depressão, interessa a intensidade da atuação. Como Gabriel já
chorava há vários dias sem parar, tinha insônia, vontade de morrer e não queria sair de
casa, enquadrava-se nos itens necessários para o diagnóstico presente no CID10, era
isso que interessava para o Psiquiatra.
A única vantagem do diagnóstico que recebera e que para alguns indivíduos
levaria à segregação, era a possibilidade que Gabriel encontraria na representação dessa
personagem da libertação de sua condição de escravo. O que ele não contava é que até
para se tornar um escravo inutilizado, afastado pelo INSS, seria tão difícil.

O convênio [médico-hospitalar] da própria empresa, quando eu mais precisei do


convênio, foi quando eu me afastei, foi a primeira coisa que cortaram. Ainda
fiquei alguns meses usando o convênio com determinado psiquiatra, mas a
empresa foi lá e cortou. Então, automaticamente eu tive que mudar de
psiquiatra, eu tive que ir para uma coisa mais pública mesmo (...) mais aí não
consegui (...) não tinha psiquiatra no posto de saúde, psicólogo nem pensar. (...)
Tinha fila de espera, não me davam nenhum direcionamento (...) no CAPS me
disseram que só atendiam loucura grave, que meu caso era para consultório, era
coisa de psiquiatria do trabalho, outros diziam que eu tinha trabalho e recebia
salário e devia procurar particular.

O descomprometimento da empresa diante de sua condição já era esperado por


Gabriel: “tinha muitos colegas de trabalho afastados pelo mesmo motivo por causa da
empresa, todos eles foram abandonados, lá você só é útil trabalhando”, mas não
imaginava que seria abandonado antes de ser acolhido pelo INSS, muito menos que ao
procurar pelo serviço público de saúde mental teria que enfrentar uma fila de espera, ou
ainda, que deveria representar uma personagem mais grave, “o que seria loucura grave?
230

Eu teria que comer merda, matar algum chefe?” Onde estaria a assistência segurada
pelos serviços substitutivos? O que seria necessário para ser enquadrado como uma
demanda pelo CAPS, precisaria primeiro ser internado em um manicômio? É o que se
perguntava frente à postura cínica dos profissionais que encontrou nessa instituição. Se
antes sabia que seria abandonado pela empresa, descobre-se nesse momento
abandonado pelo Estado. Como lidaria com uma situação como essa?
E o problema ainda seria aumentado com a morosidade do pagamento do
benefício previdenciário.

Porque tem essa também, quando você se afasta, você fica um puta tempo para
começar a receber do INSS. Eu não sei se até acabou piorando minha situação
porque eu saí de um problema e caí num outro. Que é do sistema mesmo. Já nos
primeiros meses, no primeiro mês você já sente. Pô! E cadê os meus direitos?
Eu preciso receber. Cadê o INSS que não me paga, cara? Eu tenho que pagar o
psiquiatra, eu preciso comprar medicação, preciso comprar os remédios, preciso
correr atrás dessas coisas. Então, me irritava mais ainda. E enquanto mais me
irritava mais ainda, eu precisava passar urgente, não tinha, precisava de remédio
não tinha. Eu sei que eram crises assim, cara, que achava que não iam ter fim.
Eu achava que não ia acabar nunca. Eu sei que eu fiquei, cara, eu emagreci dez
quilos. Eu fiquei pele e osso. Eu não tinha apetite, eu não dormia, eu não comia
nada, nada, nada, nada. Eu fiquei péssimo, péssimo, péssimo.

Finalmente recebe o dinheiro do INSS e sem encontrar alternativa começa a


pagar tratamento privado, procura um Psicólogo e um Psiquiatra. Afinal, submeter-se ao
tratamento de sua doença mental era inevitável, seja porque queria “curar-se” da
depressão, seja porque teria que encaminhar laudos para os peritos do INSS para
continuar a receber o benefício previdenciário. Assim como Severina, que “recebe
pensão para se manter viva e reproduzir sua identidade de doente mental, encarnação,
concretização da destrutividade de uma sociedade desumanizadora”43, Gabriel tenta
fazer tudo o que lhe é pedido para uma boa representação como doente mental, faz
terapia, toma os medicamentos controlados, todavia, descobre que isso não era garantia
de que o Estado faria sua parte.

Então, como estava dizendo, quando começou sair o pagamento do INSS


comecei a passar no psiquiatra e psicólogo particular. Eu fiz um convênio para
mim particular, já que o da empresa tinham cortado, e comecei a pagar e
comecei a passar com outro psiquiatra. Que nesse caso já era o terceiro, o
primeiro foi do... do convênio que foi cortado, o segundo eu passei assim, no
CAPS que não tava nem aí para meu problema e no outro convênio, o terceiro
43
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina. p.80.
231

psiquiatra, comecei a me tratar com ele, totalmente instável ainda. Eu estava no


começo do tratamento, aí o quê que aconteceu? Minha primeira alta do INSS,
cortaram meu benefício, automaticamente eu não tive dinheiro para pagar
aquele convênio, o convênio foi cancelado. Aí eu acabei piorando mais ainda.

Nem precisaríamos teorizar muito para saber o porque dessa piora: receber alta
significava voltar a trabalhar na empresa, e isso Gabriel não queria, ou melhor dizendo,
não conseguia, pois bastava pensar nessa possibilidade para começar a chorar
novamente, por várias horas.

Nossa, eu não conseguia, eu tinha pesadelos. Incrível, cara, eu tinha pesadelos


com, com o trabalho, com a empresa. Pesadelos mesmo. Eu dormia pouco e
quando eu dormia eu tinha pesadelos. Eu cansei de sonhar coisas bizarras,
estranhas. Era uma neurose, sei lá que porra que era (...) sonhava matando um
fiscal, sonhava saindo na porrada com o supervisor, sonhava capotando um
ônibus, assim, um barato bizarro. Quando acabava era um desconforto total.

Sem precisar voltar para a empresa consegue renovar seu afastamento, isso lhe
dá um novo período para sua recuperação. Nesse período Gabriel nos conta que
intensifica suas consultas com o Psicólogo. Nas consultas encontra espaço para falar
sobre aquilo que não conseguia suportar, aquilo que só de lembrar o levava a chorar.
Mas, Gabriel é quem tem a palavra.

Eu cheguei no consultório e o Psicólogo perguntou para mim o que estava


havendo. Muitas vezes eu dizia: eu não sei o que está havendo. Eu só chorava.
Eu não sabia descrever o que estava acontecendo, só sabia o que eu estava
sentindo, mas porque eu estava sentindo, de onde que vinha, isso eu não sabia.
Eu ficava o tempo todo do atendimento chorando. (...) As consultas com o
Psicólogo foram importantes, eu fui aprendendo com o tempo, as possíveis
ligações, as possíveis coisas que poderiam ter acarretado (...). Isso já foi outra
etapa, a segunda etapa, e teve agora essa terceira, que é você saber o quê que é,
dar nome paras as coisas, e tentar conviver com isso.

É importante grifar o tentar conviver que Gabriel está se referindo, pois não
significa aqui tentar conformar-se com a situação. Com o Psicólogo ele consegue se
apropriar do sentido de seu sofrimento e a relação desse sofrimento com as condições
desumanizadoras a que estava submetido. O Psicólogo, utilizando aqui a linguagem
habermasiana, consegue ser um agente mediador da crítica à “colonização do mundo da
vida que esvaziado pelas intervenções da ciência e da técnica, do mercado e do capital,
232

do direito e da burocracia”44. Como isso foi possível? Nossa hipótese é que esse
Psicólogo abriu mão de uma perspectiva objetivista (discurso técnico-psicológico) e
assumiu que estava diante de uma anamorfose, ou seja, ao invés de entender seu choro
como a simples expressão de um depressivo — o que significaria movimentar a
anamorfose apresentada por Gabriel para um ponto de vista previamente estabelecido
— passou a buscar os elementos que possibilitavam a representação como doente
mental — mudou seu ponto de observação permitindo uma nova linha de visão, uma
visão em paralaxe45.
Essa mudança de perspectiva efetuada pelo Psicólogo possibilitou que Gabriel
articulasse as personagens representadas em sua vida até aquele momento. Obviamente
esse processo não foi instantâneo, em um primeiro momento Gabriel somente sabia o
que seu corpo estava dizendo, ou seja, somente sabia que não conseguia parar de chorar,
não sabia de onde vinha a causa do choro, a única interpretação que tinha dessa
condição era aquela compartilhada socialmente: tornara-se um doente mental. Na
medida em que o tempo foi passando, começa a perceber que o sofrimento vivenciado
tinha relação com as condições de trabalho a que foi submetido pela empresa.

Eu não sei te dizer assim especificamente o que foi, mas foi ali. Também não
sei te dizer especificamente quando começou a afetar. É lógico que depois vai
caindo a ficha e você fala: Merda! Eu já estava assim faz tempo. Tanto é que o
negócio se tornou crônico, hoje percebo que eu já sentia aquelas coisas antes,
aquela angústia, já estava com os sintomas de depressão, eu já estava
depressivo já fazia uns dois, três anos, e que chegou a hora que uma hora uma
última gota d’água fez o copo transbordar...
Porque antes eu não era assim. Eu abaixava a cabeça, eu engolia sapo, como diz
o ditado. (...) Antes eu engolia sapos e abaixava a cabeça para muitas situações,
como o sistema diz que deve ser e deu no que deu: acabei adoecendo.

Como Gabriel mesmo assinala: “Hoje eu sofro e isso é conseqüente de outra


coisa que eu não provoquei, que eu não busquei (..) e a Empresa? E o Estado? Cadê a
responsabilização deles?” Aqui Gabriel assinala o fato de que somente é possível sair da
condição de doente incapacitado ao apropriar-se de modo crítico da sua história de vida,
nesse momento ele não somente compreende quem é e quem gostaria de ser, mas
também aquilo que havia impedido que seu projeto fosse concretizado. Começa a
perceber que o diagnóstico de depressão, que o aprisionou à representação de doente
44
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. p.324.
45
Lembremos que para Žižek essa metáfora do fenômeno óptico apresenta-se como um instrumento
crítico contra as falsas formas de universal. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe.
233

mental, fez com que perdesse tudo que havia construído em sua vida, tudo que havia
projetado para sua vida desde a época de escola. Pode-se perceber que ele havia
projetado um motorista-de-ônibus/homem-de-família-feliz. Como haviam ensinado,
para esse projeto deveria trabalhar incansavelmente. Em busca desse projeto, perdeu-o.
Perdeu-o por que?

Depois que eu adoeci minha vida entortou de uma maneira assim drástica
mesmo. Eu perdi tudo cara. Eu perdi um, assim, para não dizer que um futuro
mesmo. Eu perdi casa, eu perdi esposa, automaticamente eu perdi até muitos
momentos. Eu falo, falo que eu perdi esposa que perdi filho também porque eu
perdi os momentos que eu poderia estar, estar ali com eles e sei lá estão vivendo
uma vida tranqüila até. Mas com certeza porque, depois que eu adoeci as coisas
não, não andou da maneira, a doença é complicado. Não estou legal. Como eu
te falei eu me tornei uma pessoa explosiva e difícil de manusear de diálogo
mesmo. Totalmente anti-social hoje, hoje eu me considero uma pessoa
totalmente anti-social, cara. Eu sei que conseqüência de disso que ocorreu
comigo, eu perdi tudo, eu perdi tudo. Hoje eu estou tentando recuperar grande
parte das coisas que perdi com o problema: minha esposa, meu filho...

Chegar a essa conclusão implicou em tomar uma posição crítica frente à sua
representação como doente mental. Se antes chegou a imaginar que o problema que
vivenciava era de origem pessoal, desse momento em diante passou a entender que seu
problema foi de ordem relacional, mais especificamente, que o diagnóstico de depressão
foi fruto de uma relação exploratória vivenciada na empresa em que trabalhava, cujas
regras ele tentou seguir à risca (pois tinham sido apresentadas durante toda sua vida
como necessárias para seu projeto de vida). O problema agora não era como iria se
recuperar para voltar para a empresa, mas como conseguir reconhecimento da produção
de sua doença mental e a responsabilização daqueles que foram responsáveis por sua
condição: o INSS, como instituição do Estado, em sua concepção, deveria regulamentar
e supervisionar as condições de trabalho das empresas, e já que não o faz, deveria
indenizá-lo pelo impedimento de seu projeto de vida.

Como eu falei para você: Me fizeram engolir vários sapos! Eu engolia mesmo,
eu engoli vários, só que com o passar desses anos os sapos que eu engoli já
vomitei todos e pretendo nunca mais engolir. (...) Então hoje eu já faço
totalmente ao contrário, se o sistema permite que alguém como eu adoeça então
que ele assuma a indenização, então que ele pague o prejuízo, tenho certeza que
se eu estivesse onde eu estava estaria bem pior do que eu já estou. (...) A
empresa quer mais que você se foda, ela diz que quer seu trabalho, a sua mão-
de-obra, que vai pagar seu salário, mas não diz que vai roubar sua vida junto.
Sua opinião não importa, independente se você está bem ou se você está mal, se
234

você tem um ponto de vista diferente, eles querem padronizar. As reuniões, por
exemplo, nessa empresa aí (...) vinha a psicóloga e outro chefe só para falarem:
Vocês tem que tratar bem o passageiro! Vocês não podem ficar faltando muito!
Vocês não podem nem trazer atestado! Dava vontade de abandonar uma
reunião dessa, só pede, só pede, só pede, só pede, vai se foder! Ninguém vinha
dizer que iriam mudar a lógica da empresa, que queriam saber como era
trabalhar doze horas, folgar só um domingo por mês, isso ninguém vinha falar,
só vinham pedir para servirmos bem cliente para gerar mais lucro pro nosso
patrão. (...) Se eu tivesse condições naquela época, de trabalhar legal, sei lá,
acho que não teria acontecido nada disso. Os caras acabaram com meu projeto
de vida, projeto de vida que o sistema diz que devemos seguir para sermos bem
sucedidos. Me enganaram e ninguém hoje quer pagar a conta, dizem que o
problema é meu.

Para Gabriel vai ficando cada vez mais claro que o diagnóstico de doente mental
na prática somente é interessante para os empresários exploradores. O diagnóstico que o
reconhece como doente mental direciona a responsabilidade para o indivíduo e
escamoteia todas as condições desumanas que produziram o adoecimento mental.
Diagnóstico, inclusive, que vai se mostrando cada vez mais subjetivo e desinteressado
por sua condição na medida em que percebe que os laudos e relatórios que encaminhava
para as perícias começam a ser ignorados pelos peritos do INSS. Nesse momento
percebe claramente que quando um indivíduo é apenas visto como organismo “não há
lugar para desejos, temores, esperanças, ou desesperos como tais”46. Vale dizer aqui,
discordando de autores como Charles Taylor e Nancy Fraser, que esse episódio
demonstra que o problema não é o não-reconhecimento, pois o especialista contratado
pelo Estado atualmente reconhece os indivíduos, os doentes cidadãos. O problema está
justamente no fato de que se utilizando apenas da perspectiva técnico-psicológica os
especialistas não conseguem perceber as anamorfoses apresentadas, ou seja, não
percebem na mesma representação diferentes matizes, o que evitaria o psicologismo
apontado por Wittgenstein47. O reconhecimento feito dessa maneira é o que temos
denunciado como sendo um reconhecimento perverso, uma vez que não se interessa de
fato em ser produzido a partir de uma interação onde exista uma paridade, mas sim, a
partir de uma relação de poder na qual o especialista cinicamente utiliza o seu discurso
técnico-psicológico para lidar com os problemas trazidos pelos indivíduos que devem
submeter-se à sua avaliação ou diagnóstico para ter seus direitos de cidadão garantidos.

46
LAING, Ronald David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p.21.
47
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. p.175 e segts.
235

Gabriel continua sua história nos contando que desde essa época começa a
receber alta de sua condição de doente mental e tem que recorrer contra a negação do
benefício concedido pelo INSS: começa sua luta contra a escuta surda e o olhar cego do
especialista.

Você chega no perito lá no INSS, o cara tem ver que você está sem um braço,
sem uma perna, para ele conceder seu benefício, sua indenização, o seu direito.
Eu chego lá com essa história de problema psicológico mal sabe ele o que estou
passando, o que passa pela minha cabeça, sabe, tudo o que já aconteceu, minha
história (...) faço a maior correria, eu passo no médico, no psicólogo, para pegar
os laudos que a lei pede, faço tudo direitinho para chegar lá e o filho da puta do
perito pegar esses papéis, nem ler direito, não perguntar nada e falar: você não
tem nada, é só ir para casa e voltar a trabalhar. Quer dizer, não faz sentido. Não
faz sentido mesmo. A única coisa que me resta é resistir a isso, não é verdade?
Eu tenho que resistir a isso daqui para frente e se isso for meu futuro, eu vou ter
que conviver com isso até minha morte. Porra! E é um fardo terrível de se
carregar.

Como é? É só voltar a trabalhar? E os laudos? E os relatórios? Para que servem


esses papéis na verdade? É o que se questionava Gabriel em todas as vezes que levava
os documentos necessários para a renovação de seu afastamento. Ele estava diante de
mais um dos sintomas de nosso momento histórico: a negociação de direitos que evita a
suspensão de conflitos em benefício do bom funcionamento do capital.

Pois basta que as normas possam ser “flexibilizadas” em seus regimes de


indexação da efetividade para que o conflito seja suspenso. Em outras palavras,
bastam que sejam seguidas de maneira cínica, fazendo com que justifiquem o
contrário do que pareciam indexar. Dessa forma, o “sofrimento de
indeterminação” normativa capaz de provocar sintomas como a ansiedade e a
depressão pode aparecer, no interior do cinismo, como motivo de gozo.48

E não seria justamente isso o que aconteceria muitas vezes com as diversas
reportagens vinculadas nas diferentes mídias ao “denunciar” as tentativas de “fraude”
do INSS? Dito de outra forma, não seriam essas reportagens uma tentativa de convencer
o grande público de que a resistência frente ao retorno para o trabalho é na verdade a
expressão da “preguiça” de cidadãos “criminosos” e não um problema das próprias
condições de trabalho e distribuição de renda (uma vez que muito desses indivíduos
somam ao “benefício” do INSS a renda proveniente de trabalhos informais)?
Lembremos que o mal-humor recentemente tem sido relacionado como uma das

48
SAFATLE, Vladimir.Cinismo e falência da crítica. p.139.[grifos do autor]
236

doenças mentais da moda, sendo classificado no CID10 como distimia (F34.1). Nesse
período de sua vida, que se estende durante três anos, chega a ficar seis meses sem
receber do INSS. Como estratégia de resistência, ou poderíamos dizer, de
sobrevivência, faz um curso e começa a trabalhar com manutenção de computadores
nos fundos de sua casa. O técnico de computadores continua fazendo o tratamento
recomendado, continua com a terapia e com os medicamentos aviados pelo psiquiatra,
continua buscando indenização pela sua condição.

Quando eu falo que quero reativar meu benefício não quer dizer que quero ser
visto como inválido, quero que eles vejam o meu caso como uma indenização,
para que eles saibam [a empresa] que não podem tratar as pessoas como lixo,
como as máquinas, os ônibus deles. Tenho feito coisas que eu aprendi nesse
tempo, coisas que eu gosto de fazer aqui em casa mesmo, que me mostram que
sou uma pessoa ainda. Trabalho com computadores, isso ajuda porque tem dias
que eu nem quero sair da cama. Então não é uma coisa certa, hoje é quinta,
semana passada eu fiquei uma semana na cama, aqui nesse quarto aqui. Fiquei
uma semana aqui dentro de casa, me distraindo com o jogo de vez em quando,
ou com um livro. Eu não queria ver ninguém, não queria falar com ninguém. Só
isso. E pensando justamente nessa coisa aí do INSS, que foi negado mais uma
vez. Tenho que começar a correr tudo de novo, eu tenho que dar nova entrada,
eu vou ter que passar de novo com o Psiquiatra, tenho que conversar com ele,
pegar um relatório dele. A empresa não está louca de me mandar embora
doente, então obviamente eu teria que pedir a conta. Pedir a conta eu não vou
pedir, que eu também estou doente. E eu vou perder muita coisa. Penso que
muitas coisas poderiam ser amenizadas, se as pessoas que estão envolvidas, que
são peritos, psicólogos, médicos, psiquiatras, poderiam amenizar minha
situação, pelo menos reconhecendo e respeitando o que eu estou sentindo, o que
eu estou passando, que é meu problema, falta reconhecer o meu problema.

A preocupação de Gabriel é muito simples e trágica: se ele aceitar a alta dos


peritos do INSS precisará voltar para a empresa. Aqui vemos a funcionalidade do
reconhecimento perverso, que no caso de Gabriel possibilita a desresponsabilização da
empresa e do Estado por sua condição. Uma vez aceitada a alta do INSS, ele poderia
retornar para o trabalho como funcionário recuperado e finalmente ser demitido sem
nenhum problema pela empresa. Se a personagem doente mental já lhe impede de
pensar novos planos e projetos de futuro, como seria lançar-se novamente no mercado
de trabalho sendo reconhecido como o desempregado doente mental? A proposta de
humanização e reconhecimento do louco encontra seu limite nesse ponto, pois o próprio
Honneth admite que diante da desigualdade econômica crescente, “seria perigoso e
arriscado sugerir que o reconhecimento apenas da identidade pessoal ou coletiva
237

pudesse formar o objetivo de uma sociedade justa”49. A narrativa de Gabriel deixa claro
que o inimigo é muito maior do que o manicômio ou a garantia de reconhecimento da
diferença, pelo contrário, ela expressa que o grande desafio é conseguir demonstrar que
vivemos as mesmas contradições de exceção impostas pelo capital, que estamos
submetidos ao mesmo jogo perverso de inclusão no mercado.
Saber que o problema não era de ordem individual fez com que Gabriel não
aceitasse se submeter à lógica da recolocação, não seria tratado da mesma forma que os
ônibus da empresa. Deixemos que ele mesmo fale sobre isso:

A depressão, acho que é essa coisa produzida pela insatisfação, por conta da
pressão de você ter que trabalhar por obrigação, num ambiente que não te dá
condições. E você pode até dizer: Pô! Gabriel! Porque então você não escolheu
outro lugar para trabalhar? Isso eu ouvi de um psicólogo que trabalha na
coordenação de saúde mental de uma cidade aqui perto, ele faz mestrado em na
faculdade que você, acho que no mesmo curso. Ele falou: Porque que você não
se retirou dessa empresa e não foi tentar outra? Eu respondi na mesma hora:
como se eu já estava fodido lá? Eu ia sair dessa empresa para entrar em outra
empresa? Será que ia ser diferente? Não é! (...) ele não tem noção da realidade e
é Psicólogo. Como que eu ia fazer essa escolha? Como se fosse fácil arrumar
emprego, como se na hora que pedissem minhas referências para a empresa eles
não fossem dizer que eu estava afastado, que eu era doente. E readaptar? Não
adianta. Porque não é o cargo, são as mesmas condições de trabalho. Eu vou no
INSS eles falam: é só você se readaptar, trocar de função, mas a coisa não é
física, não é a função de motorista que me deixou assim. É as condições mesmo
ali dentro. (...) Aí eu faço de tudo para mudar de empresa só para ter certeza de
que realmente estou doente, que eu não estou legal? E aí, quem é que vai perder
nessa história? A primeira empresa que eu saí? A segunda que eu entrei e estou
saindo? Não! Nenhuma dessas firmas vão perder. Quem vai perder sou eu. Eu
não vou largar o certo pelo duvidoso, se eu não estou legal, não adianta nem
tentar mesmo.

A resistência frente à alta do INSS, conseguida pela reposição da personagem


doente mental, no caso de Gabriel começa a caracterizar-se como uma “profanação”, no
sentido utilizado por Agamben50, que a entende como estratégia que não consiste mais
em transgredir ou apresentar novas normas, mas na mimetização da própria norma ao
ponto de torná-la sem sentido. O que poderia ser esperado desses profissionais afinal?
Certamente uma visão em paralaxe, cuja concretização estaria em não aceitar “a tarefa
de colaborar com políticos e administradores para aliviar os descontentamentos e
sofrimentos contemporâneos, mas antes se perguntar como esses descontentamentos

49
HONNETH, Axel. Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectiva na ordem moral
da sociedade. p.89.
50
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. p.38-39.
238

subjetivos são gerados pela própria ordem social”51. Como isso ainda não é possível,
pelo menos na relação estabelecida entre Gabriel e os peritos, a saída está na
manutenção paródica/irônica52 dessa personagem, ou seja, se os peritos da saúde mental
insistem de forma cínica em não reconhecer seu problema, que a própria saúde mental
reconhece como legítima (a partir dos laudos do Psicólogo e do Psiquiatra), então o que
resta como alternativa é insistir na representação irônica dessa personagem.

Agora você chegar lá com problema psicológico lá, eu não tenho condições
cara. Não tenho! Não dá! Para mim não dá, não tem cabimento! O sistema fica
utilizando esse negócio de psicológico somente para ajudar os empresários,
para eles sugarem até o último do seu sangue e depois, quando você não
agüenta mais, quando chora, quando fica pirado, em vez de mostrar que esse
mundo não tem lógica, que tem que pensar em outra forma de vida, dizem que
você ta doente mental e pronto, a culpa é sua, e aí te devolvem para empresa do
mesmo jeito dizendo que está curado, a empresa te põe no olho da rua, você
fica mais fodido ainda, e outro cara vai entrar no seu lugar para começar a
sugação de sangue de novo, e não para. Tem dia que eu não quero nem levantar
porra, tem dia que eu choro três, quatro vezes no dia. É normal isso? Não é! Aí
o perito que nem quer saber quem você é vai catar o seu relatório e ler, olha
para sua cara e simplesmente fala: você está apto a volta a trabalhar! Dizem que
você está doente e todo mês te obrigam a correr atrás dos mesmos papéis, fazer
todo o processo, ficar horas na fila da perícia esperando para chegar na frente
de um médico que em dois minutos te mostra que tudo aquilo que você fez não
valeu de nada, então se é para ser filho da puta, se é para brincar de faz de
conta, se é para fingir que não sabe ler os laudos, então assume que ninguém
tem direito a nada, que pobre não tem direito. Cara é tão ridículo que nem dá
para acreditar se você não ver, porque os caras dão alta para neguinho aleijado.
Eu não me conformo com isso! Mas parece que você chega lá com algo físico é
mais fácil, de ser analisar de ser visto, palpável, não?

Se o discurso da saúde mental não serve para reconhecer a produção do


sofrimento e o impedimento dos projetos de vida — que a própria lógica capitalista
apresenta como possíveis de serem conquistados por todos —, então que seja assumido
o fato de que toda essa história de doença mental é uma mentira. Caso contrário que seja
assumido que a opressão não é apenas fruto da imaginação individual, que o sofrimento
não é apenas subjetivo, pelo contrário, tem íntima relação com as condições concretas e
históricas as quais os indivíduos estão submetidos. É nesse sentido que a luta por
reconhecimento de Gabriel se configura, é a partir dessa leitura de realidade que busca
ser indenizado.

51
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.346.
52
Por manutenção paródica, irônica, queremos assinalar o fenômeno trabalhado por Safatle que se refere
a representação de uma determinada personagem sem engajamento ou certa ética de convicção.
239

(...) Hoje eu quero ser ressarcido, indenizado por tudo, de tudo mesmo. E é uma
coisa que é totalmente difícil, praticamente impossível. Porque problema
mental não é visto do mesmo modo que um problema físico. Eu estou com
trinta e um anos, quer dizer, para a sociedade, para o sistema, eu tenho todo
vigor, tenho toda a minha vida ainda para trabalhar, ser explorado e humilhado,
para que na hora que eu estiver morrendo, com uns sessenta anos, setenta anos,
todo ferrado, receber uma aposentadoria. Eles [os técnicos, os peritos] têm que
reconhecer que eu já estou fodido, entendeu? E nada mais justo que eles
pegarem e me ressarcir de tudo isso. Se eu tivesse perdido um braço, uma
perna, porra! O presidente aposentou porque perdeu um dedo, aí ia ser mais
fácil, veriam que a empresa me prejudicou. E eu nem queria uma aposentadoria,
eles tinham que assumir que era uma coisa de indenização mesmo.

E como se concretizaria isso na prática? Aqui Gabriel recorre à mesma estratégia


utilizada por Severina53, representar a personagem doente mental para não retornar ao
ambiente insuportável onde era um escravo por contrato até ser aposentado
definitivamente. Afinal, já havia descoberto que o discurso da saúde mental não
culpabilizaria a empresa por sua condição. Para justificar a insistência na mesmice dessa
personagem, ele se ampara no processo que vivenciou:

Eu penso que as coisas estariam melhor se tivessem me escutado lá no trabalho:


olha cara, não é por nada não, mas esse ônibus está um lixo, sem condições de
trabalho. (...) É demais pedir uma coisa dessas? Trabalhar com dignidade? Se
eu estivesse trabalhado num carro legal, se eu estivesse trabalhado a minha
jornada correta, se eu não fosse obrigado a fazer hora extra, será que não seria
diferente? Eu acho que não teria adoecido se a administração da empresa não
fosse um monte de pilantras que só porque estão em cargos de comando acham
que podem explorar o outro que é igual ele, mora na mesma favela, come as
mesmas marmitas. Peão que explora peão. É lógico que perfeição nunca vai ter,
não estou falando de perfeição pois nunca vai ter, sempre vai ter umas
picuinhas (...) estou falando de condições humanas, para o cara trabalhar
satisfeito. (...) Então, em primeiro lugar, o que me deixaria satisfeito seria
reativar o meu benefício e me manter afastado. Porque eu ainda faço o
tratamento, tomo os medicamentos, tenho realmente um problema que não é
fictício. Dá a entender muitas vezes quando eu passo lá na perícia é que
realmente eles acham que eu estou apto mesmo a voltar a trabalhar, voltar à
minha vida normal como era há uns anos atrás.

Enquanto essa coisa do INSS não se resolver, não irei pra frente, ficarei sempre
com medo de voltar para o lugar que não suporto mais. E parece que é mais
fácil caminhar para trás, mais desiludido, mais pirado, porque cada vez que eu
passo lá no INSS, eu recebo um não, eu recebo uma alta, e fico mais fodido,
mais indignado com tudo isso, cara. Então, primeiro tem que ser resolvido isso,
não importa de que maneira, se eles vão me indenizar, se eles vão me aposentar,
se eles vão manter meu benefício, se eu melhoro ou não, enquanto nada for

53
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.67 et seq.
240

decidido não existe projeto de futuro. Por enquanto eu só tenho o que eu estou
fazendo. O meu projeto de presente é parecido com o de muita gente, ter aquela
oficina de fundo de quintal que o cara conserta televisão e som para se manter.
No meu caso não é televisão claro, é computador, impressora. E é isso que eu
estou fazendo agora, eu conserto computadores, hardware e software. Depois
que tudo for acertado acho que basta o mínimo, no sentido assim, porque no
fundo a gente quer uma coisa simples, realmente as pessoas não querem muito,
querem apenas ser pessoas.

Enquanto isso não acontece deverá manter a representação enquanto doente


mental, que se não é uma garantia de renda para o sustento de sua família (lembremos
que Gabriel tem se organizado sem contar com esse dinheiro), pelo menos deflagra as
condições desumanas a que fora submetido quando representava o motorista de ônibus.
Seus projetos de futuro? Ainda são incertos: o primeiro projeto é o reconhecimento de
sua condição e a subseqüente indenização (que talvez somente venha como uma
aposentadoria precoce), enquanto isso continuará em sua oficina ensaiando novas
possibilidades de representação.
Gabriel finaliza sua narrativa assinalando que não quer muito, “quer apenas ser
uma pessoa”, o que isso significa? Possivelmente aquilo que Habermas, apoiado nas
proposições de Mead, descreveu como condição de uma sociedade sempre maior, a qual
“os indivíduos esperam uns dos outros uma igualdade de tratamento, que parte do
princípio de que cada pessoa considere cada uma das outras como ‘um dos nossos’”54.
Todavia, como esse tipo de sociedade somente seria possível a partir da incorporação
das formas solidárias de interação e reconhecimento recíproco, fica evidente, não
somente na narrativa de Gabriel, mas também na de Ana, que no que se refere a saúde
mental ainda temos muito a caminhar, ainda temos muito o que fazer.

3 – A história de Francisco: quando a deflação da personagem fetichizada serve de


mediação para a construção de uma personagem possibilitadora de auto-
respeito e alteridade

Ser apenas uma pessoa. Isso deveria ser algo possível em nossa sociedade, mas
como vimos nas histórias trazidas até agora, ser uma pessoa é uma luta que deve ser
travada cotidianamente. Muitas vezes a humanidade é conquistada apenas em
fragmentos, a partir do reconhecimento de uma personagem que nos coloca em

54
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do Outro:estudos de teoria política. p.44.
241

condições de reconhecimento recíproco. Esse aspecto poderá ser vislumbrado na


história que traremos a seguir, uma vez que tomamos contato com Francisco por meio
de uma personagem aceita na esfera pública, personagem que sendo representada
cotidianamente mostrou-se-lhe com uma possibilidade para a construção de outras
personagens nunca antes vivenciadas. Sendo assim, para que fique evidenciado a
importância dessa personagem para a identidade de Francisco, iniciaremos a
apresentação de sua narrativa a partir de nosso primeiro contato com ele. Contato que
ocorreu durante um jantar oferecido aos professores recém empossados em uma
universidade do estado do Ceará no primeiro semestre de 2008.
Na ocasião, a reunião dos professores foi realizada em um restaurante muito
conhecido na cidade, que por sinal, estava lotado. De repente, em meio à música,
conversa e gargalhadas, surge um indivíduo sorridente com uma espécie de caixa onde
era possível perceber que haviam vários panfletos de lojas da região. Era Francisco, que
com uma sensibilidade extrema conseguia rapidamente perceber qual o tipo de conversa
que estava sendo estabelecida em determinada mesa, quais as possibilidades de
relacionamento existentes entre as pessoas (namorados, amigos, estudantes etc.), e
oferecia um de seus panfletos de uma forma personalizada. Para as garotas que estavam
à procura de outros garotos, apresentava as ofertas da loja de cosméticos; para os
namorados, as ofertas da casa das alianças; para aqueles que estavam com as chaves em
cima da mesa, apresentava as ofertas da loja de veículos, e assim por diante. Tudo feito
de uma maneira tão dinâmica e agradável que era comum observar pessoas de outras
mesas chamando Francisco para fazer sua performance. Em pouco tempo as mesas
foram visitadas e Francisco se despede caminhando em direção a outros
estabelecimentos.
Francisco vai embora, mas a discussão acerca de sua representação permanece,
pelo menos na mesa dos professores. Uma professora de administração ficou admirada
com tamanha desenvoltura e espontaneidade. Como não era da cidade perguntou para
um dos professores da região para qual empresa Francisco trabalhava. Esse professor
respondeu que ele trabalhava para si mesmo, que aquela era a sua maneira de ser. A
partir desse momento toda a discussão da mesa voltou-se para a habilidade de
Francisco, que claramente era uma agência de publicidade ambulante. Durante a
conversa, uma outra professora, que vivia na cidade há alguns anos falou: — Eh! Mas
nem sempre ele foi assim! Ele já foi muito odiado na cidade. Já foi internado várias
242

vezes como louco violento, vivia tirando a roupa na frente das escolas. Com essa
primeira fala surgiram outras, de professores que lembraram dessa época: — Ele havia
sido traído pela mulher, por isso ficou louco. De repente, a discussão acerca da
personagem representada por Francisco é substituída pela discussão acerca da
personagem que representara anteriormente, o doente mental.
Assim termina nosso primeiro contato com Francisco, que seria o primeiro de
vários outros, em vários lugares. Cruzamos com Francisco diversas vezes e horários no
centro da cidade. Em alguns dias era possível encontrá-lo nas praças anunciando
promoções e inaugurações, em outros o víamos visitando bares e restaurantes à noite.
Em todas as vezes, a forma com que se aproximava das pessoas era personalizada. Até
que certo dia, em uma ocasião onde veio nos entregar um panfleto de uma agência de
carros, perguntamos se poderia nos contar sua história de vida. Sua resposta inicial foi
uma outra pergunta. Queria saber qual era minha formação, pois já tinha fornecido
diversas entrevistas e sabia que cada uma delas se interessava por algo. Quando
dissemos que se tratava de uma entrevista para uma pesquisa de Psicologia Social quis
saber qual era o objetivo, pois não gostava de psicólogos, que sempre procuravam
doenças nas pessoas. Quando explicamos que havíamos ouvido sobre sua vida passada,
mas que queríamos saber dele como tudo havia ocorrido, que acreditávamos que
somente ele poderia dizer quem ele era, nos disse que pensaria sobre o assunto e nos
entregou um de seus cartões comerciais, onde se auto-intitulava o garoto publicidade.
Deveríamos ligar após dois dias e caso ele aceitasse deveríamos nos disponibilizar para
entrevistá-lo em um dia que não estivesse ocupado.
Alguns dias depois marcamos a entrevista em sua casa e gravamos sua narrativa.
A entrevista de Francisco inicia com uma rápida apresentação de si mesmo, que já nos
traz alguns elementos que serão explorados por ele durante todo seu relato: a
dificuldade de representar uma personagem pressuposta.

Com três anos eu vim para cá e ha trinta e sete anos eu moro nessa cidade.
Tenho quarenta, graças a Deus. E, para contar sobre um pouco da minha vida,
que foi assim um pouco complicada, porque foi um pouco difícil na minha
infância, na minha adolescência e também a minha fase de adolescente para
adulto, tenho que dizer do preconceito em relação à minha própria pessoa.
Porque, infelizmente, até que eu comecei a me dar realmente como gente, eu
me achava assim, uma pessoa inútil (...) Inútil porquê? Porque eu era sempre
assim meio azaradão, ou seja, não tinha sorte (...) Eu ia brincar e nessas minhas
brincadeiras acabava me humilhando, quer dizer, meus colegas nessas
brincadeiras acabavam me humilhando. Porquê? Porque realmente eu não sabia
243

brincar, eu era muito tímido, desde minha fase de infância até minha idade de
trinta anos. Foi em noventa e quatro que eu comecei a usufruir realmente,
aprendi a comunicar, como brincar.

Francisco biologicamente tem quarenta e dois anos, entretanto, como está nos
dizendo, somente há quinze anos apenas começou a viver realmente. Francisco
considera esse “estar vivendo” como o momento em que começa a se comunicar com as
outras pessoas: “quando eu comecei a me expor para as pessoas, a querer conversar, a
querer brincar, a querer ir realmente para as festas, paquerar”. Isso não significa que
Francisco não queria se comunicar anteriormente. Pelo contrário, ele conta que tentava
constantemente concretizar essa comunicação, todavia, era um pouco exagerado, tanto
no que se refere às interações felizes quanto às infelizes. Como ele mesmo assinala:
“quando eu realmente ficava alegre, eu ia além da alegria. Ultrapassava aquela alegria,
virava uma euforia. E quando eu tinha realmente decepções, as tristezas, eu caía em
depressão profunda.”
A hipótese que Francisco desenvolveu ao longo desses últimos anos a respeito
desse período de sua vida é a de que as limitações interativas eram advindas de sua
socialização primária. Sua infância foi vivida em uma pequena chácara, sem contato
com outras crianças, a não ser um irmão com síndrome de down, com quem os pais não
deixavam brincar. De acordo com Francisco, seus pais eram muito rígidos e não
permitiam nenhum tipo de brincadeira ou manifestação de afeto, acredita que
possivelmente essa maneira de lidar com os filhos seja por conta da educação que esses
tiveram. Permanece nessa chácara até a idade escolar, quando o pai muda-se para a
cidade atual e monta um pequeno negócio. Como era de se esperar, a rigidez do pai
continuou.

Ele chegou a dizer [o pai] que não ia criar os filhos dele no meio da rua. Ele
dizia que o correto mesmo é educar dentro de casa, ser criado dentro de casa.
Também ele não era uma pessoa estudada, não tinha muitas informações, ou
seja, era uma pessoa bastante ignorante. E eu acho que isso influiu bastante na
minha educação. Quando você é informado, é estudado, facilita muito quando
você vai administrar algo da sua vida, seja realmente no trabalho, seja na
criação dos filhos, seja qualquer coisa. (...) se tem educação aí pode conversar,
dialogar, passar carinho, passar respeito. Com isso eu me sentia assim, como
um patinho feio, desprezado...

Na escola, essa falta de socialização para estar com o outro faz com que
Francisco, sentindo-se como patinho feio, seja tratado como um garoto desprezado.
244

Nem precisaríamos discutir aqui esse problema, que remete mais uma vez às duas
narrativas de história de vida trazidas anteriormente, novamente fica evidente que o
processo de socialização é decisivo. Francisco conta que por conta da insegurança que
tinha em se relacionar com os estudantes e com os professores geralmente ficava no
fundo da sala de aula e não fazia perguntas daquilo que não entendida. Com o tempo a
insegurança foi aumentando a ponto de passar a copiar o que os outros estudantes
escreviam, pois achava que por eles serem mais desinibidos eram mais inteligentes. Nos
intervalos do lanche geralmente era humilhado por outros estudantes, quando não
apanhava destes. Francisco tenta justificar essas humilhações dizendo que tinha uma
certa culpa, afinal, os problemas sempre surgiam quando ele tentava participar de
alguma conversa ou de alguma brincadeira.

Eu não sabia realmente como me expressar. Quando tinha algum debate,


quando me xingavam, ficava travado. Não tinha palavras para realmente
rebater, porque a palavra, sabe, uma boa resposta, ela cala o adversário. Já que
eu não tinha isso, a minha pessoa não tinha essa arma, eu acabava apanhando,
sempre terminava em pancadas e por isso eu apanhava muito. E eu queria
realmente partir pra cima deles [dos agressores], mas não sabia brigar, não sabia
falar. É por isso que na minha infância, na minha adolescência, eu realmente
não saía de casa. Todos os meus colegas saiam assim, para festas, namorava,
paquerava e eu não fazia isso, nada disso. Eu ficava só dentro de casa.

Francisco, que na escola era o garoto desprezado, tenta durante algum tempo
fazer amigos, mas a falta de elementos que pudessem lhe conferir a possibilidade de
representar uma outra personagem além daquela humilhada, faz com que a cada dia que
passava fosse se isolando das pessoas. Não queria mais ser humilhado, a forma como
faria isso nesse momento de sua vida seria passando seus dias em casa, com a mãe, o
pai e o irmão, sem muito contato com outras pessoas. A estratégia funcionava até certo
ponto, pois como Francisco mesmo reconhece: ser um garoto arisco a ponto de não
interagir com os outros impossibilitava desenvolver a habilidade de interação com os
outros. Deixemos que Francisco fale como isso ocorria.

O problema é que eu não conversava e se eu não tinha essa prática como é que
eu ia puxar algum assunto? Realmente não tinha sentido. Porque quando a
pessoa é tímida, ela é uma pessoa medrosa. É uma pessoa insegura e pra fazer
realmente uma coisa, bota logo na cabeça que não vai dar certo aí procura não
fazer, deixa passar. E isso aconteceu várias vezes. Por exemplo, quando eu
estive no tiro de guerra [serviço militar] conheci uma pessoa que adora me
humilhar. E teve uma vez que eu não tinha nada pra falar, mas pediram pra mim
245

falar e falei uma besteira. Ele [o humilhador] aproveitou para tirar o sarro e
ficou dizendo que quando eu abria minha boca era só para falar besteira, ou
seja, eu achava que eu iria falar uma coisa de interessante, mas só me dava mal.
(...) Isso acontece porque quando você fala, você depende da maioria, se a
maioria tiver seguindo uma conversa e se sua conversa também não for no
mesmo caminho você fica descartado, fica sempre parecendo uma besteira, o
que não é necessariamente, mas se os outros elegem como besteira, a maioria
ganha.

No final de sua adolescência Francisco tem de lidar com a morte de seu pai e
com o comércio deixado por esse. Precisaria se relacionar com as pessoas, mas como?
Como assinala Francisco, com muita dificuldade. De qualquer modo, o fato de começar
a se expor para além da rotina (da casa para escola e da escola para casa), chama a
atenção de uma garota. O garoto arisco, mesmo com todas as dificuldades, começa um
namoro com ela e em pouco tempo assumiria uma nova personagem: homem casado.

E rapidamente me casei, um casamento que durou pouco, eu passei quatro anos


casado, quer dizer, casado mesmo talvez dois anos, sem contar que talvez o
casamento sempre foi por só parte dela, ela sempre teve atitude. Eu com vinte e
três e ela vinte e quatro. E a cabeça dela tinha mais estrutura, ela era da cidade,
tinha mais informações. Eu era o quê? Uma pessoa muito ingênua, que vivia
com os pais como criança. Tanto é até ela que realmente começou a tirar sarro
de minha pessoa, de algumas atitudes que eu tinha. Porque ela já me conheceu
como tímido, mas não sabia que era a ponto de não saber nada, de ser virgem
em tudo. E ela casou comigo e dei trabalho, ela teve que ensinar, então ela
realmente achava que eu era uma pessoa e no caso eu era outra pessoa.

Ser “virgem em tudo” na fala de Francisco não significava apenas o fato de


nunca ter feito sexo, ser virgem significava também que não sabia lidar com coisas
simples do cotidiano. Não havia preparado nenhuma outra personagem a não ser a de
garoto arisco, que na leitura da esposa era apenas a expressão da timidez de Francisco.
Isso se tornaria um problema ainda maior porque ainda no primeiro ano de casamento
Francisco, o homem casado se tornaria pai, o que aumentava ainda mais as exigências
de representação que até então eram evitadas por ele: o homem casado que era pai
deveria agir como tal.
Na tentativa de corresponder às exigências dessas novas personagens começa a
tentar desenvolver a interação que até então era vivida como impossível. Francisco
surpreende-se ao perceber que contrariando suas expectativas o lançar-se no mundo lhe
possibilitava acessar emoções muito diferentes do medo que sentia na época da escola.
Começa a acreditar que pode superar a timidez e finalmente não ser mais humilhado.
246

Esse sentimento era reforçado pela esposa que insistia para que Francisco perdesse seu
medo de relacionar-se com as pessoas.

E comecei a gostar daquilo. Porque eu estava tendo aquela liberdade. Eu estava


sentindo aquela sensação de liberdade pela primeira vez, liberdade de conhecer
gente. Como comecei a me dar bem, eu achava que tinha uma força superior me
protegendo, me dando cada vez mais liberdade.

Francisco conta que essa sensação de liberdade é buscada cada vez com maior
intensidade. Isso fazia com que ensaiasse a personagem que achava mais interessante
para cada momento sem se preocupar com o que os outros achariam de sua
performance. Logo os problemas começariam a aparecer, pois como ele mesmo
assinala, nem sempre a personagem que era interessante para ele era a personagem
esperada em determinada situação. Essa incompatibilidade entre a personagem
experimentada e o palco de representação (constituído de expectativas e de
pressuposições) fez com que Francisco passasse por interações desastrosas. Afinal,
como lembra Odair Sass, “as experiências inéditas ocorrem na forma singular (o
indivíduo) mas, para alcançar a universalidade, precisam do reconhecimento dos outros
membros da sociedade.”55 Nessas circunstâncias, como não sabia lidar com as
situações, acabava assumindo uma postura agressiva, uma resposta que o Francisco-de-
hoje também interpreta como expressão de loucura.
Em pouco tempo a liberdade vivenciada é transformada em problema de
conduta, resultando em quatro internações no hospital psiquiátrico da região. Nesse
período, Francisco, que havia fracassado na construção da personagem idealizada pela
esposa, não conseguia representar um homem casado que era pai. Acaba então sendo
reconhecido como doente mental, uma vez que as personagens que ora representava
muitas vezes ficavam fora de contexto. Independentemente das internações, estava
disposto a explorar as possibilidades de novas personagens, entretanto, ainda não
conseguiria construir uma representação capaz de fazer com que fosse reconhecido
como outra coisa que não um doente mental, o que evidencia o fato de as próximas
personagens serem modulações da mesmice, do fetiche que a personagem doente
mental representava. Nesse período, entre as personagens que mais se destacaram foi a

55
SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.261.
247

do dançarino, que nos momentos de atuação anulava completamente a sensação de


timidez que tanto incomodava.

Eu descobri que sabia dançar, e fiquei dançando um bom tempo mesmo e eu


dançava de uma maneira que chamava muito a atenção das pessoas. Onde tinha
som eu sempre procurava, onde tinha MPB, Pop-rock, Axé, Forró, onde tinha
som eu estava junto. Mas era bom e era péssimo isso, ao mesmo tempo, porque
realmente eu estava fora de si. Eu tinha ansiedade de sair, não conseguia
controlar, Eu ia para as portas dos colégios, às vezes as meninas pediam para
tirar a roupa e eu tirava. [Visitava vários bares e restaurantes] (...) ia várias
vezes dançar. Tanto é que alguns achavam que eu estava drogado, às vezes
alguns diziam que eu estava doido, alguns diziam que eu estava bêbado. E
virava problema e era internado [no hospital psiquiátrico]. Eu não trabalhava
nessa época, eu não trabalhava mesmo, o que eu só fazia realmente é ficar por
aí. Tanto é que eu dizia que realmente a minha casa era o centro. Eu ficava mais
no centro, de manhã, tarde, noite e de madrugada...

Francisco conta que nessa fase de sua vida, a qual vivenciava com toda a
intensidade a representação como dançarino, ser doente mental não era um problema,
pelo contrário, essa condição inclusive possibilitava que explorasse até o extremo a
liberdade nunca antes permitida. Aproveitava a representação como dançarino para
estudar as formas de composição das personagens, o que nos leva a acreditar que nessa
representação começam a ser germinadas as sementes de uma mesmidade futura, como
se fosse um esboço56 de uma personagem ainda indeterminada. Entretanto, algumas
condições objetivas farão com que o dançarino tenha que lidar com o problema que a
representação fetichizada de uma personagem traz para qualquer indivíduo: “torna-se
algo com poder sobre o indivíduo, mantendo e reproduzindo sua identidade, mesmo que
ele esteja envolvido em outra atividade”57. Como estava vivenciando o dançarino como
se fosse a totalidade de sua identidade, logo, outras personagens estavam sendo
negadas: o homem casado que era pai, sem uma representação satisfatória, acaba saindo

56
Pensar esse momento de experimentação de novas personagens como preparação de esboços, deve-se
ao fato que estes “não são quadros nem desenhos, pois estes últimos são completos; integram todos os
seus componentes e projetam-nos para além da obra. Já os esboços são sempre incompletos, contornos
parcialmente visíveis de conteúdo indeterminado. Não ditam para o artista como este deve empregar os
contrastes de tons, cores e sombras de uma pintura. Estão abertos para serem utilizados de diferentes
maneiras, a serem redesenhados ou abandonados. Mas isso não significa que um esboço não conte com
uma lógica interna; um esboço bem feito oferece entendimentos construtivos sobre os problemas
internos de uma tarefa artística e também quais condições são necessárias para resolver seus propósitos.
Assim, contraditóriamente, essa indeterminação do esboço dá ao trabalho futuro uma determinação; lhe
confere um sentido de direção”. Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um
problema de identidade: possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de
teatro. p.21-22.
57
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.139.
248

de cena, a esposa pede separação e leva o filho embora. Na época isso geraria uma crise
profunda em Francisco, que hoje diz compreender o que acontecera.

Ela realmente gostava de mim. Mas com o passar do tempo ela foi desgostando.
Sem ter aquele valor mesmo, eu reconheço isso (...) eu realmente não tive um
papel de homem casado. Eu não tive atitudes também. Eu tive umas atitudes a
ponto de ir para o hospital [psiquiátrico]. Se passou quatro anos e quando foi
em [ano de acontecimento] ela não agüentou mais e foi embora com meu filho.
E ao terminar nosso casamento eu realmente passei por uma crise muito forte,
perdi toda a noção.

O trabalho preparatório que estava vivenciando com a representação do


dançarino — que se mantinha como modulação da personagem doente mental — é
desestruturado com o anúncio da separação, a partir de então tudo seria diferente,
perderia totalmente o controle da situação. Sem um lar para onde voltar — o que
denunciava concretamente a impossibilidade de representar a antiga personagem
pressuposta (homem casado que era pai) —, Francisco se “vê abalado ou perdido o
auto-reconhecimento de que ele é o próprio de quem se trata”58, torna-se um andarilho
sem rumo, tenta encontrar um caminho que pudesse oferecer outros sentidos. Nos
parece que nesse momento Francisco acreditava que o dançarino era a personagem que
estava liberada para fazer as loucuras (nesse sentido, fazia loucuras sem ser doente
mental), afinal, tinha sido a própria esposa que havia incentivado a representação de
outras personagens; nesse sentido, é possível pensar que a reação da mulher de se
separar configurou-se como uma “surpresa desagradável”, inesperada, não foi conivente
com a “liberação” que ele esperava ter com a conexão doente mental/dançarino.

Quando me separei andava todos os dias de manhã, à tarde e até de madrugada.


Eu saía daqui sem sentido, sem destino, sem rumo na vida. E aí eu dancei
muitas vezes [nos bares, pizzarias e restaurantes]. Foi uma maneira de agüentar,
porque quando eu dançava me sentia uma autoridade, de uma celebridade,
chegava perto do som fechava meus olhos e começava a dançar. Uma atitude
que eu tinha também era entrar nas igrejas católicas, principalmente na igreja
[X]. E entrava pelo corredor, ia até realmente no altar, virava e ficava olhando
para os fiéis, na posição de algum santo, algumas vezes do lado esquerdo e ou
do lado direito. Aí depois eu ficava andando na igreja, estilo brincadeira [nesse
momento mostra como é esse estilo, anda de forma debochada e fazendo
caretas]. E isso eu fiz várias vezes e algumas vezes parecia que eles estavam
gostando, outras que não estavam, porque acontecia de também ter um pouco
de noção do que eu fazia, quando eu percebia que a pessoa gostava aí eu
investia.

58
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.132.
249

Entre as apresentações indesejadas realizadas pelo andarilho sem rumo existia


uma que seria retomada no futuro: o distribuidor de panfletos. Todavia, nesse momento
de errância, essa personagem apenas seria utilizada como um meio para conseguir matar
a fome de mendigo e suprir sua busca pelo reconhecimento de sua importância,
precisava ser notado. E lembremos com Laing que essa necessidade não se esgota como
questão visual. Ela “estende-se à necessidade geral de ter a própria presença endossada
ou confirmada por outros, a necessidade, de fato, de ser amado”59. É quando num
determinado dia, Francisco, numa ocasião em que pedia comida, é surpreendido com
uma oferta inesperada.

Eu estava sem fazer nada mesmo, andava só pra cima e pra baixo. Sei que eu
cheguei numa loja, cheguei no proprietário e disse que estava com fome, ele me
ofereceu duzentos panfletos e disse que daria dinheiro se eu entregasse. Aí
fiquei animado, eu realmente era uma pessoa muito carente, queria ter relações
com as pessoas, ter contato com as pessoas. Então, naquela carência fui e
aceitei. Duzentos panfletos.

Desse dia em diante se tornaria um distribuidor de panfletos e continua preso à


mesmice dessa personagem durante alguns anos. É interessante assinalar que embora
nessa época estivesse representando essa nova personagem, o reconhecimento que ainda
tinha das pessoas com quem se relacionava ainda era de um doente mental. Sabemos
que Ciampa assinala que à medida que as personagens vão se constituindo, vai se
constituindo também um novo universo simbólico60, mas aqui podemos arriscar dizer
que embora Francisco estivesse representando uma nova personagem, o distribuidor de
panfletos ainda não tinha força suficiente, como se ao invés de preso à mesmice
estivesse “enfeitiçado”, “possuído”.
Podemos dizer baseando-nos no fato de que nesse período a mesmice vivenciada
por Francisco sofrerá uma tentativa de alternação apresentada por sua mãe, que o
convence de que todo o sofrimento que estava vivenciando em sua vida era devido ao
seu distanciamento da religião, assim, a saída era se tornar um Francisco evangélico. E
no começo até que essa representação dá certo, entretanto, se já não era fácil interpretar
uma personagem planejada, ficaria ainda mais difícil sustentar uma personagem
pressuposta cujo script não permitia flexibilidade. Mais problemas surgiriam.

59
LAING, Ronald David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p.131.
60
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.154.
250

Eu realmente passei a ser evangélico. Eu lia muito a bíblia, me formei na leitura


dos textos. Só que foi exagerado. E tanto é que as pessoas aqui realmente não
gostavam de mim. Porquê? Porque eu sempre ficava alterado. Incomodava até
de madrugada, ficava pregando a palavra de Deus. Queria que aprendessem à
força, ou seja, eu achava que teria que ser daquela maneira. Eu achava que
estava realmente ajudando, agradando, mas só que eu estava desagradando a
todos.

Essa forma de estabelecer a vida da personagem de certa maneira concretizava a


possibilidade de comunicação tão procurada, mas a forma extremista como representava
o evangélico fará com que ela seja abandonada em pouco tempo. Afinal, lembremos que
sua representação como doente mental já havia sido incorporada por seus vizinhos
como sua identidade pressuposta, sendo assim, a atuação exagerada, poderíamos dizer
até mesmo forçada, da personagem evengélico não demoraria para ser interpretada
como enganação, como falha de caráter. A representação das duas personagens era
considerada incompatível.

Não tinha quem viesse realmente a me ouvir, a me entender. Como as pessoas


não queriam me conhecer, me xingavam logo, me chamavam de sem vergonha.
Teve uma dessas pessoas que falou: “Ele não é doido não, é sem vergonha!”.
Nisso as pessoas me magoaram, foram me magoando. Realmente que no
momento que eu estava parado das brincadeiras, que eu fiquei na minha, eles
diziam que eu não era doido e sim um sem vergonha. E também, aconteceu
muitas vezes de algumas pessoas quererem me bater, graças a Deus nunca
aconteceu não, só fizeram ameaças.

Francisco, que havia decidido deixar de representar o distribuidor de panfletos,


nesse momento de sua vida não vê outra saída que não fosse abandonar a personagem
evangélico. Vivencia o sofrimento de indeterminação, que, segundo suas próprias
palavras, parece-lhe como um “sentimento de derrota, de tristeza, de desânimo, de
alguém sem esperança, sem fé”. Sem saber qual personagem representar, retoma uma
antiga: como um garoto arisco permanece um ano trancado dentro de casa.

E quando foi nessa época que eu comecei a ficar com depressão, e no caso eu
passei um ano. Foi o motivo de realmente a sociedade não aceitar nenhuma
coisa que eu queira oferecer. Nessa época as pessoas que me conheciam
achavam que eu tinha morrido ou que tava internado. Muitas vezes algumas
pessoas que conheciam mamãe, que sabiam que ela era minha mãe,
perguntavam se eu tinha morrido. Obviamente como eu estava aqui, minha mãe
dizia que não, que era só conversa.
251

Em outros momentos seria levado para tratamento mesmo contra sua vontade,
contudo, nessa época o hospital psiquiátrico havia sido interditado devido a denúncias
maus-tratos e uma nova rede substitutiva começava a ser implementada na cidade. Se
fosse passar por algum tratamento teria que procurar pelo CAPS por vontade própria, o
que naquele momento não conseguiria fazer. A mãe, nesse episódio, ocupa novamente
um lugar significativo na vida de Francisco, uma vez que ficará um ano insistindo para
que o filho procurasse a Psicóloga da instituição, a qual sem sequer ter lhe visto sabia
que estava com depressão.

Fiquei um ano só dentro de casa. Minha mãe me dizia que a doutora falava que
era depressão! E a doutora realmente me deu uma ficha, eu não tinha noção do
que se passava ao meu redor. E quando graças a Deus eu me libertei da
depressão, que eu melhorei bastante, eu fui uns tempos fazer tratamento no
CAPS.

É importante que atentemos para a última fala de Francisco: primeiro melhora da


depressão, depois volta a participar da esfera pública, finalmente decide procurar a
Psicóloga. Nesse momento, tenta representar o distribuidor de panfletos, todavia, essa
representação não oferecia mais as sensações de liberdade e acolhimento experienciadas
anteriormente. Em alguns momentos, assim nos conta, sentia como se estivesse em sua
casa, “derrotado, triste e sem esperança”, em outros momentos até lembrava do
conselho da mãe, do tratamento no CAPS. Sua mãe havia lhe informado que aquele não
era um lugar para loucos, como era o caso do hospital psiquiátrico, e que poderia
oferecer respostas para aquilo que estava sentindo (o sofrimento de indeterminação)
sem que precisasse ficar internado. Mas como ainda não sabia se seria uma alternativa,
resolve retomar novamente o andarilho sem rumo, que algumas vezes até distribuía
panfletos, mas sem nenhum compromisso.

Fazia isso de graça [distribuir panfletos]. Porque quando eu sentia fome,


quando eu sentia fome e sede, eu pedia só pela quantia X. Eu estava só
querendo comprar o pão sem explorar mesmo, eu pedia dez centavos para um
[estabelecimento] e quinze centavos a outro, para dar a quantia do pão e pronto.
Eu não explorava, eu queria viver realmente era daquela euforia. Tá certo que
nessa época eu passei um bom tempo pesando cinqüenta e dois, cinqüenta e
três, hoje eu tenho sessenta e quatro, sessenta e cinco. Então, por aí você tira
que eu era um pouco franzino, era bem feinho.
252

Permanece na errância até que em um determinado dia decide procurar pelo


CAPS. Nessa instituição Francisco conhece duas psicólogas, cuja diferença de
tratamento oferecido por uma e por outra será um divisor de águas entre a continuidade
de sua personagem andarilho sem rumo doente mental e a personagem que representa
atualmente, o garoto publicidade.
De acordo com Francisco, a primeira psicóloga parecia com o psiquiatra que o
recebia no hospital psiquiátrico, que não queria saber de sua vida, de sua história, mas
apenas de sua doença mental. Novamente nos deparamos com o difícil processo de
reconhecimento daquilo que se apresenta como anamorfose. Como profissional da
saúde mental a Psicóloga permanece apoiada no discurso técnico-psicólogico (o
contrário do que observamos na relação estabelecida anteriormente entre Gabriel e o
Psicólogo), que de certa forma oferece o conforto da “certeza”, conseguida por basear-
se em um discurso que organiza as diferenças (anamorfoses) segundo parâmetros pré-
estabelecidos, padronizando aquilo que é singular na história de cada indivíduo. A
adoção de um olhar paraláctico é abandonada em detrimento de uma técnica de ver.
Lembremos com Szasz que o conceito de doença mental “serve principalmente para
obscurecer o fato cotidiano de que a vida, para a maioria das pessoas, é uma luta
contínua, não pela sobrevivência biológica, mas por um ‘lugar ao sol’, ‘paz de espírito’,
ou algum outro significado de valor”61.
É certo que o reconhecimento como doente mental por essa Psicóloga do CAPS
será mais humanizado do que o reconhecimento como doente mental realizado pelo
hospital psiquiátrico, que sempre o recebia como doente mental que precisava ser
contido, entretanto, como ficará evidenciado, o reconhecimento que a Psicóloga
proporcionará será apenas isso: mais humanizado. Um problema que persiste todas as
vezes que o cinismo presente no uso do diagnóstico de doença mental é utilizado e o
reconhecimento perverso é concretizado, como ao nosso ver se evidencia parecer ficar
evidenciado na história de Francisco, que terá as contradições que vivera até então
reduzidas à sua doença mental, à sua depressão.
Isso será mais um problema para Francisco, pois havendo sofrido a hostilidade
da comunidade frente às representações como doente mental, passa a frequentar o
CAPS com medo de ser descoberto como usuário do serviço e de ser reconhecido como
doente mental em tratamento. Aqui vale transcrever um trecho escrito por Goffman no

61
SZASZ, Thomas S. O mito da doença mental. p.28-29.
253

qual assinala que mesmo nos casos em que o indivíduo apresenta sentimentos e crenças
“bastante anormais, é provável que ele tenha preocupações normais e utilize estratégias
bem normais ao tentar esconder essas anormalidades”62. Mas como dissemos, esconder
que estava em tratamento seria apenas um dos problemas, uma vez que Francisco
reconhece que o problema maior nessa época foi corresponder à representação esperada
pela Psicóloga.

Ela descobriu que minha timidez era uma depressão e insistia que eu era doente.
Isso foi bom, mas ela [ficava] me convencendo que era doente. Uma coisa
muito chata mesmo. Tanto é que eu realmente ficava perdido. Depois que
aprendi que era doente comecei todas as vezes que saía daqui de casa, saía
realmente escondido, porque sabia que os outros sabiam que eu ia lá [no
CAPS].

Se antes Francisco procurou o CAPS porque havia lembrado que aquele não
seria um lugar como o manicômio, agora tinha suas dúvidas, uma vez que a partir do
momento em que foi diagnosticado pela Psicóloga perdera a condição de negociar,
questionar as intervenções, sem contar que tinha seu comparecimento semanal cobrado
duramente (precisava ter seu acompanhamento faturado pela instituição). Isso torna
explícito que simplesmente oferecer um modelo alternativo ao manicômio não é
garantia de promoção da alteridade, além disso esse episódio, articulado com os que
vislumbramos anteriormente nas histórias de Ana e Gabriel, evidencia a dupla
incorporação do conteúdo autêntico (o reconhecimento do sofrimento) e sua distorção (a
redução desse sofrimento a categorias simplificadoras), configurando “uma maneira
astuta de controle, já que o verdadeiro controle ocorre quando se impõe a nós a
chantagem de uma escolha forçada”63 (a escolha entre a condição de cidadão doente
mental ou marginal torturável paciente do manicômio).
Como era de se esperar em uma relação estabelecida entre especialista e
paciente, Francisco obedece sem questionar à prescrição64, enquanto para além dos
muros da instituição tentava manter sua “loucura” em segredo. Até quando começa a
perceber que aquilo que era trazido como os problemas de sua vida para a Psicóloga

62
GOFFMAN, Ervin. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. p.142.
63
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.203.
64
Nesses casos se torna evidente que não é possível o estabelecimento de uma ação comunicativa, pois a
relação estabelecida sempre é desigual, enquanto paciente não especialista o indivíduo não tem outra
alternativa a não ser se submeter ao discurso técnico-psicológico.
254

eram recebidos como expressão de um discurso desinteressante, tedioso para a


especialista.

(...) algumas vezes eu percebia que realmente ela estava chateada. Eu me


tratava com ela e percebia que ela realmente estava chateada, que estava
cansada de estar me ouvindo. Acho que isso aí é uma coisa que não devia
acontecer porque ela é uma profissional. Ela pelo menos devia parecer
realmente estar ali gostando, querendo ajudar, não pra atrapalhar. Mas percebia
que ela ficava chateada com as minhas conversas. Falava sempre a mesma
coisa, então eu estava incomodando a pessoa dela, mas como ia falar de outra
coisa se o problema de minha pessoa era o mesmo? Quando eu sentia isso da
pessoa dela aí que eu ficava mau mesmo. Mas aí que eu me preocupava mesmo,
certo, em querer no dia seguinte ir novamente conversar com ela. Isso toda vez
acontecia. Aí, com o passar do tempo, graças a Deus, ela saiu e veio outra.

Mesmo não conhecendo nada de psiquiatria ou psicologia, Francisco estranha


que a Psicóloga fique entediada com seu discurso, chega a dizer que ela pelo menos
poderia ter fingido que estava gostando, ou seja, que pelo menos assumisse o cinismo,
afinal, ele estava se esforçando para ser o paciente que ela queria. Ao mesmo tempo se
perguntava: como falaria de outra coisa se o que imaginava ser importante para essa
Psicóloga era justamente sua doença, sua depressão?
Francisco nos conta que felizmente essa Psicóloga não fica muito tempo no
CAPS. Em seu lugar aparece uma outra profissional que fará toda a diferença para a
construção da personagem que representa atualmente. Como Francisco imaginava que a
nova Psicóloga exigiria a representação de sua identidade pressuposta, procura interagir
com ela da mesma maneira que interagia com a antiga Psicóloga: como um doente
mental e que no CAPS encontraria a solução para os problemas de sua vida. Todavia,
Francisco lembra que é surpreendido no momento dessa representação, a nova
Psicóloga diz algo que impediria a reposição da personagem andarilho sem rumo
doente mental. Deixemos que ele mesmo explique o que aconteceu.

Quando ela percebeu que eu queria realmente que o CAPS solucionasse


realmente meus problemas mesmo, que eu acreditava que estava doente e que
eles sabiam me tratar, que queria deixar só com eles a responsabilidade, ela me
disse: o CAPS é só dez por cento e noventa por cento sou eu, aí que foi a
melhoria. Aí que eu entendi realmente que dependia mais da minha pessoa
mesmo, noventa por cento [eu] e dez por cento o CAPS. Tinha me ensinado [a
Psicóloga antiga] e eu achava realmente que o CAPS poderia resolver, aí
descobri que quem resolvia era minha pessoa.
255

A fantasia que sustentava a fetichização da personagem doente mental é então


desmascarada. Francisco descobre que o CAPS não podia oferecer as respostas que
procurava, que naquele lugar não encontraria o caminho a seguir, repete várias vezes na
entrevista que quando escuta essas palavras finalmente começa a melhorar. A nova
Psicóloga assume o limite da instituição que representa. E ao fazer isso se propõe a
encontrar outras possibilidades de leitura e reconhecimento para a identidade de
Francisco. Mas uma pergunta poderia aparecer aqui: se Francisco descobre que não
encontraria no CAPS as respostas que procurava, que sentido teria continuar seu
tratamento nesse lugar? A resposta para essa questão aparece rapidamente, uma vez que
ele assinala a diferença que encontrava quando saía de sua casa e se dirigia até o CAPS.
Diferentemente das vezes em que ficava angustiado frente à necessidade de
correspondência dos interesses da antiga Psicóloga, nas consultas com a nova Psicóloga
sabia que poderia pensar coisas novas. Não precisaria ficar repetindo um discurso que
justificasse sua representação como doente mental, poderia falar dos esboços de
representações futuras, pois sabia que a Psicóloga escutaria atentamente suas questões.
Acreditava que ela não estava sustentando apenas uma “tolerância para com [sua]
particularidade individual (...), mas também [mostrava] interesse afetivo por essa
particularidade”65. Da mesma maneira, descobre que poderia aprender novas formas de
interação com os outros.

E com ela as vezes que eu ia no CAPS era mais agradável. Principalmente


quando eu simplesmente falava e eu percebia que realmente ela estava ali, que
ela me entendia, me via como pessoa e não como doente (...) E daí por perceber
que ela estava me entendendo aí que eu tinha a melhoria. E aprendi a escutar
também, a ter paciência, sensibilidade. Antes eu fazia as coisas, mas não tinha
noção. Aprendi com ela quando realmente não conseguisse me expressar, devia
me preocupava em me expressar corretamente. E mudou hoje eu acho bom
quando alguma pessoa realmente, quando eu falo alguma coisa errado, uma
palavra errado que ela vem me corrigir. Eu passo a agradecer, mas também
aprendi a saber quando uma pessoa de uma maneira querer realmente me
humilhar, aí eu não aceito, agora não parto pra cima, dou uma resposta e viro as
costas, vou embora, meu silêncio fala por mim.

Francisco deixa explícito o fato de que ser reconhecido como alguém que tem
algo para dizer é uma premissa necessária para que se possa desenvolver a capacidade
de suportar a fala do outro. Utilizando-nos aqui da contribuição habermasiana, podemos

65
HONNETH, Axel. Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectiva na ordem moral
da sociedade. p.211. [grifo nosso]
256

dizer que com a Psicóloga, Francisco “aprende a compreender o próprio comportamento


na perspectiva do outro, ou seja, à luz da reação comportamental e interpretadora do
outro”66. Isso fica ainda mais evidenciado quando ele assinala que em suas conversas
com a Psicóloga nova vai aprendendo como distinguir os tipos de discurso, a
transformar a sensibilidade, que durante tanto tempo foi um problema, em uma
vantagem.
Se em um primeiro momento as mudanças apareceriam apenas na forma como
era estabelecida a relação com a antiga Psicóloga, posteriormente as transformações
foram se ampliando para além da instituição. Francisco muda seu modo de vestir e agir
publicamente, a representação do andarilho sem rumo doente mental começa a se
mostrar insustentável, logo precisaria ser abandonada em favor de uma outra mais
conveniente. Vemos aqui que ao aprender a ser outro, a partir do reconhecimento pós-
convencional proporcionado pela nova Psicóloga, torna-se outro, e com isso força a
comunidade a reconhecê-lo de forma diferenciada. Um exemplo concreto mostra como
isso exterioriza-se na realidade: Francisco assinala que ao mudar sua aparência e sua
forma de interação com os outros, que descaracterizava a mesmice, criou um incômodo
nos lugares onde costumava pedir panfletos para distribuir pela cidade: de andarilho
sem rumo, que distribuía panfletos por um pouco de comida, passa a ser reconhecido
como um homem procurando um trabalho.
Francisco não havia se dado conta da metamorfose de sua identidade pressuposta
até que um proprietário de um dos estabelecimentos (onde trocava a distribuição dos
panfletos por trocados e alimentos) o chama para conversar e pergunta se ele não se
incomodava de trabalhar de graça. Uma surpresa dupla para Francisco, que se descobre
reconhecido como trabalhador e que tinha direito de cobrar pelo trabalho executado.

O dono da farmácia me perguntou sério se eu não gostava, se eu não sentia mal


conviver sem dinheiro. Depois me disse que eu era um ótimo vendedor dos
produtos dele, eu fiquei surpreso. Eu sou um vendedor. Uma coisa que
realmente eu não sabia, até três anos atrás mais ou menos. Em outra ocasião,
quando eu já estava entregando panfleto à noite nos lugares, uma pessoa me
olhou e do nada e foi logo me parabenizando. Disse que eu era um grande
vendedor. E eu agradeci, mas só que no momento que eles disseram isso eu não
me toquei. Eu não me tocava que eu estava vendendo os produtos dos outros.
Mas aí eu passei a saber, passei a me valorizar.

66
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico: estudos filosóficos. p.210.
257

A partir do reconhecimento como trabalhador Francisco passou a se valorizar. O


que isso significou na prática? Que percebeu que poderia representar uma personagem
que garantiria o reconhecimento como alguém que tinha valor social. Uma condição que
reforça a proposição trazida por Žižek: “só quando nos confrontamos com um tal Outro
opaco é que surge a questão do reconhecimento”67. Surgia assim o garoto publicidade,
que expressava a concretização de uma personagem pela qual passaria a se relacionar
com as outras pessoas. Uma forma de representação passível de ser interpretada como
um ato que atravessa a fantasia, tal como descrito por Aidar Prado, onde “o sujeito que
pratica esse ato real não é o sujeito intencional, o sujeito sistêmico que planeja o ato
visando fins segundo uma ação estratégica”68,como ocorreu nas histórias anteriores,
mas um ato que ocorre de forma imprevista, “que sacode a vida dos que praticam e é
revolucionário, no sentido que coloca em xeque a lógica sistêmica, a razão meramente
instrumental, do extrato economicista”69, um fragmento de emancipação.
Claro que para Francisco manter a credibilidade dessa nova representação
precisaria negar a personagem doente mental, que em um momento anterior colocou em
xeque a personagem evangélica. Mas dessa vez Francisco estava atento para esse
perigo, tanto que para continuar seu tratamento cria uma estratégia: procurava sempre
sair do CAPS por uma porta lateral, onde sabia ter pouco movimento e as chances de
cruzar com algum conhecido seria mínima. Fica evidente que para sua nova
representação se tornar legítima era necessário que a representação como doente mental
fosse deflacionada, a ponto de poder ser abandonada.
Dessa vez Francisco não encontrará problemas, pois contava com uma aliada
nesse processo: a nova Psicóloga estava disposta a se assumir dispensável, o que
significava que Francisco poderia assumir sozinho sua vida. Ele nos conta que chega em
um determinado momento a nova Psicóloga anuncia que era chegada a hora de deixar
de freqüentar o CAPS. Se quisesse poderia procurá-la, mas não seria mais na condição
de usuário do CAPS. A despedida da nova Psicóloga marca um período de
aprendizagem para Francisco, que hoje pode até mesmo arriscar a falar sobre a ética que
os Psicólogos que trabalham com saúde mental deveriam ter.

67
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.295.
68
PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do intelectual: do extrato incomunicável ao ato
impossível. p.112.
69
Ibidem. Loc. cit.
258

A doutora realmente mostrou, no mesmo tempo que estive no CAPS, que se


preocupou bastante mesmo com o paciente. Ela demonstrou que ama o que faz,
não o seu trabalho em si, mas as pessoas realmente. Ela é uma pessoa
profissional, uma pessoa realmente que estudou bastante para conhecer os
nossos problemas e mostrar o que é psíquico e o que é da vida mesmo. Ela é
assim, um exemplo. Eu tiro realmente a doutora como uma pessoa mais humana
que tem uma paciência que ajuda os outros a se tornarem humanos. Ela passou
para mim o que a primeira psicóloga realmente não passou. Eu vejo hoje que
para poder realmente trabalhar com pessoas com problemas psíquicos, a pessoa
tem que ter muito amor e muita paciência. Se preocupar é no caso estudar mais,
conversar mais, se dedicar mais, procurar realmente ter mais informações sobre
o que a pessoa está fazendo o que ela tá vivendo. Principalmente para quem
quer trabalhar com seres humanos, tem que ter muita responsabilidade e porque
não é uma máquina, um objeto e sim um ser humano. E eu acho que só dessa
maneira os resultados vão ser louváveis.

Mostrar o que é psíquico e o que é da vida mesmo, uma tarefa difícil que
teremos de assumir se quisermos adotar uma visão paraláctica frente às anamorfoses
apresentadas pelos indivíduos que se representam a partir da personagem doente mental.
Nessa colocação fica registrado que se concordamos com Habermas que qualquer
expressão de identidade que se configure como “pós-convencional não pode
desenvolver-se sem antecipar estruturas comunicativas modificadas”70, ela se torna
diretamente relacionada à nossa capacidade de desenvolver formas de reconhecimento
pós-convencionais. Parece correto dizer que, nesse sentido, a identidade que é
metamorfose em busca de emancipação, também pode ser interpretada como
metamorfose que luta por reconhecimento e emancipação. A nova personagem de
Francisco materializa a análise realizada por Ciampa da loucura de Severina, uma vez
que seu reconhecimento como doente mental (proporcionado pelos outros e por ele
mesmo quando representara o dançarino, o andarilho sem rumo, o distribuidor de
panfletos) mostrou-se como “esforço de criação de um novo universo — louco porque
singular, não compartilhado — consequentemente fuga de uma realidade: a realidade
cotidiana. A loucura, quando bem-sucedida, devidamente reconhecida, é morte para a
vida71. Lembremos aqui o episódio em que Severina representava o moleque-
aprontador. Como Ciampa assinala, nessa ocasião, “se permanecesse isolada no mundo
da loucura, se não conseguisse uma personagem que a ligasse ao mundo quotidiano (e

70
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico: estudos filosóficos. p.234.
71
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.157.
259

por este fosse aceito), concretizaria plenamente a que, atribuída, encarnava: a Severina-
doente-mental”72.
Frente às condições concretas de reconhecimento, então define a construção de
uma nova personagem: o garoto publicidade, que possibilitaria a manutenção da
liberdade que tanto lhe agradava e a continuidade de desenvolvimento da sensibilidade
para com o outro que aprendera durante o tempo que passou com a Psicóloga. Francisco
vai fazendo a afinação da representação na prática e em pouco tempo torna-se
extremamente conhecido, atraindo a atenção de outros comerciantes, que passaram a
contratar os serviços do garoto publicidade. Francisco oferece um exemplo da maneira
como foi realizando esse processo.

Eu fazia uma apresentação, uma brincadeira, aí depois eu pegava minha bolsa e


ia conversar. Algumas pessoas estranhavam no começo, às vezes eu exagerava,
e eu prestava atenção. Como depois as pessoas viam que era sério elas
geralmente gostavam. Uma vez tinha uma das pessoas chegou até a dizer, disse
que ia ser sincero, ele pediu até desculpa. Me disse que no começo, na época
que ele me via lá dançando, ele achava que eu era doido. Mas aí como ele viu a
minha maneira de conversar, de trabalhar ali, então ele viu que realmente eu
não era o que ele estava pensando.

Francisco fica orgulhoso com o fato de seus serviços serem requisitados pelos
melhores estabelecimentos da cidade. Dono atualmente de uma agenda concorridíssima
chega a dizer que em alguns momentos acaba tendo de abrir mão da oferta de trabalho,
pois sua agenda sempre está cheia. Sua popularidade é visível inclusive na Internet,
onde em um site de relacionamentos atualmente conta com quatro comunidades que
juntas somam mais de 3.000 indivíduos auto-cadastrados. É interessante quando
Francisco fala de sua rotina de trabalho como garoto publicidade.

De manhã, [doceria], [fastfood], [churrascaria – as duas lojas]. Antes de


almoçar, passo no vizinho que tem a [loja de comida japonesa], depois eu
almoço e volto pro ponto. Quando eu vejo esses lugares todinhos que realmente
vou me dar bem, aí que eu me sinto bem. Claro que não é sempre que fico bem,
às vezes eu me sinto bem no [restaurante] e na [doceria] não, já no [fastfood]
sim, então compensa. Do começo ao fim, tanto na ida como na volta, posso me
sentir mal, mas sempre acabo me dando bem. Mas agora nunca mais tive crise,
aprendi a controlar a crise.

72
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.157.
260

Nunca mais teve crise, essas palavras contrastam com as de Gabriel, reforçando
novamente que o problema da saúde mental também não pode ser reduzido à inclusão
do doente mental no mundo do trabalho, geração de renda. Antes, qualquer proposta
desse tipo deve-se perguntar que tipo de inclusão é essa que se tem insistido tanto nos
últimos anos. No caso de Gabriel, o retorno para o trabalho se configurava como retorno
à condição de ser escravo por contrato, o que, pelo menos por enquanto, não parece ser
o caso de Francisco. O garoto publicidade não é escravo de ninguém, inclusive, a fama
conquistada permite questionar os comerciantes, a ponto de chegar a negar-se a
representar estabelecimentos que não correspondam ao que anunciam nos panfletos.

Aí passei a me preocupar com todos os produtos que eu represento. Me


preocupar principalmente no caso assim, para saber que o produto realmente é
bom. Porque tem restaurante que eu já peguei panfleto e as pessoas ficavam só
criticando, me deixando triste. Tanto é que quando acontece isso eu passo para
o meu patrão. Digo: olha, eu cheguei com esse produto e algumas pessoas
realmente criticaram seu produto. Disseram que seu produto não é bom não.
Quando eles [os donos dos comércios] respondem: É mesmo Francisco? Então
eu vou procurar melhorar. Então eu fico satisfeito. Por exemplo, você conhece
o [conhecida como a melhor pizzaria da cidade]? Algumas vezes as pessoas
reclamaram da pizza dele, do atendimento, aí quando isso acontece eu passo
para ele [o proprietário], e ele sempre me diz Francisco vamos melhorar isso aí.
Aí quando ele diz que vai melhorar eu fico satisfeito. Agora vender um produto
que as pessoas só criticam e aquele meu cliente não diz nada, ou mesmo que
venha a dizer, vem dizer mentiras e eu vejo que o cliente tem razão, eu
abandono esse patrão. Teve uns três clientes que eu deixei de trabalhar só por
isso. Eu recebia críticas, falava e não mudava, até que eu deixei de trabalhar
para eles. Eu sou conhecido pela minha preocupação realmente com qualidade
não com quantidade, por isso as coisas estão, graças a Deus, acontecendo.

O sucesso na representação dessa personagem permite a Francisco sonhar com


um projeto futuro onde as possibilidades de ampliar suas habilidades de interação se
estendem para o infinito. Isso não significa que não saiba do perigo de ficar escravo
dessa personagem, pelo contrário, Francisco tem clareza do fato que algumas pessoas
fetichizam o garoto publicidade, a ponto de, como ele mesmo assinala, “não me vêem
realmente fazendo outra coisa a não ser o que eu estou fazendo”. Do mesmo modo,
entende que antigas personagens ainda precisam ser atualizadas e outras ainda precisam
ser criadas e construídas. Mas é Francisco quem tem a palavra:

Eu penso em voltar a estudar para poder fazer faculdade, na minha mesma área,
em marketing. Aí ia ser mais fácil. Até porque hoje para você estudar é mais
fácil do que há dez anos atrás e graças a Deus eu já recebi vários apoios de
261

pessoas que me ofereceram para que realmente voltasse a estudar,


principalmente no supletivo. Mas não vou mais adiante que isso não. Tanto que
a pessoa disse que não me via fazendo outra coisa, e eu dou razão a ele. Eu
também não me vejo. Por enquanto eu não me vejo ainda fazendo outras coisas,
namorando, por exemplo. Eu não me vejo. Porque para isso ainda eu me acho
incapaz, eu tenho medo de me decepcionar. Eu já tenho essa coisa, eu já boto
isso na minha cabeça, quando eu desenvolver isso aí eu namoro.

Francisco hoje conhece seus limites e também que a possibilidade de criação das
novas personagens é infinita. Reconhece claramente que o limite para a continuidade de
sua representação depende de um jogo conjunto entre sua vontade de experienciar o
novo e as condições de acolhimento, reconhecimento das novas personagens. A
narrativa de sua história de vida termina por aqui, sua luta cotidiana por reconhecimento
do garoto publicidade continua. Se irá conseguir articular essa personagem a outras no
futuro não é algo que podemos discutir aqui, fazer isso seria mera especulação, profecia.
Por enquanto, Francisco aproveita para viver ao máximo o fragmento de emancipação
que conquistou.
Com o término da narrativa de Francisco encerramos nossos itinerários. É
evidente que cada um deles poderiam ter nos levado para caminhos infindáveis de
análise e que nosso alcance foi limitado. Todavia, acreditamos que com o que foi
exposto tenha sido o suficiente para explicitar como o discurso técnico-psicológico —
que ampara a política de identidade da saúde mental — tem servido como instrumento
de controle em nossa sociedade e que nesse momento histórico o diagnóstico tem sido
utilizado de forma dual (para inclusão dos indivíduos como cidadão doente mental e
para tamponar as contradições sociais explicitadas por esses indivíduos como
anamorfoses do sistema), mascarando o fato que os especialistas da saúde mental têm se
utilizado de uma racionalidade cínica, a partir da qual ao invés de partir de um olhar
paraláctico capaz de identificar as contradições trazidas pelas anamorfoses, acabam
reproduzindo reconhecimentos perversos, onde a anamorfose é reduzida ao olhar do
especialista da saúde mental. A ameaça, portanto, não vêm lá de fora, não está no
fantasma do manicômio, vêm de dentro de nossa impossibilidade de abrir mão do
discurso psiquiátrico, da produção de outras leituras para aquilo que é descrito como
doença mental, de nosso cinismo e descrédito na potencialidade do outro que busca
reconhecimento.
Do mesmo modo, acreditamos que as narrativas de história de vida, analisadas à
luz da teoria de identidade proposta por Ciampa, tenham explicitado que a apropriação
262

do discurso psiquiátrico não ocorre de uma forma padronizada e que cada indivíduo se
apropria da identidade pressuposta de doente mental de uma forma personalizada,
individualizada. Seja ela como negação, evidenciada na narrativa de Ana, em sua
representação da personagem anoréxica que serve para negar a representação de uma
outra personagem insuportável (a deficiente); como ironia, vista na personagem doente
mental da narrativa de Gabriel frente ao cinismo percebido no discurso dos peritos do
INSS (que evidenciou os problemas resultantes da negação do reconhecimento jurídico-
moral e a dinâmica conflituosa causada pela ruptura do contrato social por uma coerção
legal); ou ainda, como esboço, expressada nas vicissitudes que a personagem doente
mental teve para a identidade de Francisco, que na representação com garoto
publicidade expressou fragmentos de emancipação de sua identidade.
Nessa última narrativa, reforçamos a possibilidade e a necessidade de valermo-
nos de um reconhecimento pós-convencional, vimos que somente é possível mediar
criação de personagens que expressam alteridade quando não estivermos somente
preocupados em ter sucesso no mercado ou em sermos fiéis a uma teoria,
principalmente em “pensar e agir politicamente, para mudar a situação em
acontecimento (ou evento). Este ‘agir politicamente’ evita saídas que recusam,
recalcam ou foracluem o antagonismo”73. Afinal, se a identidade é metamorfose em
busca de emancipação e de reconhecimento, mas em nossa sociedade vemos que cada
vez mais essa emancipação é impedida; se a luta por reconhecimento muitas vezes tem
se configurado como reconhecimento perverso; e se de projeto utópico essa
emancipação tem se desvanecido em favor de uma administração do instituído fruto
tanto da colonização do mundo da vida como de uma racionalidade cínica; é preciso
criar novas formas de resistência frente às aparências e insistir na explicitação das
condições que têm impedido que essa emancipação se concretize como uma
necessidade para todos nós.

73
PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do intelectual: do extrato incomunicável ao ato
impossível. p.106. [grifos do autor]
CONSIDERAÇÕES FINAIS

É minha imagem o que desejo multiplicar, mas não


por narcisismo ou por megalomania, como se poderia
facilmente pensar. Ao contrário: é para esconder, em
meio a tantas imagens ilusórias de mim mesmo, o eu
que as faz mover-se. Por isso, se não tivesse receio
de ser mal interpretado, não me oporia a reconstruir
em minha casa um cômodo inteiramente forrado de
espelhos (...) onde eu me veria caminhar no teto, de
cabeça para baixo, e levantar vôo das profundezas do
assoalho.

Italo Calvino1

Finalizada a apresentação dos itinerários chega o momento de apresentar nossas


considerações finais, ou talvez fosse mais correto dizer: chegou o momento de
suspendermos temporariamente nosso diálogo. Com aquilo que foi apresentado de
forma histórica, teórica e empírica, acreditamos que os principais conceitos e análises
tenham sido suficientemente trabalhados ao longo do texto, tornando desnecessário
repeti-los de maneira resumida. Sabemos que certamente ficaram algumas arestas,
pontos cegos e questões não respondidas, todavia, isso não nos parece ser um problema.
Temos plena consciência de que essa tese é o resultado daquilo que foi possível, dentro
de condições subjetivas e objetivas a que estivemos submetidos. Obviamente o possível
a que nos referimos não tem relação com um possível absoluto, mas todo o possível
para nós nesse momento. E pensando melhor, talvez, nem sequer todo o possível para
nós, uma vez que já havíamos assumido no final do itinerário empírico que poderíamos
ter analisado e aprofundado as questões trazidas ao longo da tese a partir de vários
matizes, o que nos faz pensar que esse momento poderia então ser melhor descrito, na
verdade, como considerações iniciais para uma nova fase de reflexões, análises e
itinerários. Sendo assim, parece-nos mais apropriado apresentar o que aprendemos com
a tese, o que não incorporamos na pesquisa e as conseqüências que imaginamos ter esse
estudo para a Psicologia Social, sobretudo, para os estudos da identidade.
Aprendemos que a representação da personagem doente mental, expressão da
persistência e manutenção do discurso técnico-psicológico, tem sido apropriada tanto
pelos indivíduos frente ao sofrimento de indeterminação quanto utilizada como
identidade pressuposta pelos especialistas da saúde mental que não adotam uma visão
1
CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. p.166.
264

paraláctica para reconhecer as anamorfoses expressadas. Ficou explícito nas narrativas


de história de vida que mesmo quando esses especialistas apoiados em posturas mais
progressistas ou ainda quando obrigados pela Lei 10.216 da Reforma Psiquiátrica atual,
que determina um tratamento mais humanizado do doente mental, louco, portador de
sofrimento psíquico ou seja lá qual for o nome utilizado para descrever como anormal
um comportamento indesejado, a manutenção do discurso técnico-psicológico expressa
um dos sintomas de nossa sociedade atual, a qual incorpora os reclamos dos indivíduos
e sua distorção a partir das relações de dominação e exploração, o que foi explicitado
quando assinalamos o fato de que para ser reconhecido como cidadão doente mental o
indivíduo deve abrir mão da possibilidade de representar outras personagens e se
submeter à arbitrariedade do especialista. Também aprendemos durante o processo de
construção da tese que existem possibilidades concretas — tanto por parte dos
indivíduos que estão submetidos ao discurso técnico-psicológico, como para os
especialistas que são procurados para reconhecer a doença mental e adotam uma visão
em paralaxe, um reconhecimento pós-convencional — de subverter esse discurso e
desenvolver personagens que mesmo de forma anamórfica expressam alteridades
passíveis de serem reconhecidas na esfera pública, expressões de fragmentos de
emancipação, como foi o caso de Francisco. Aqui, o reconhecimento, como um ato que
permite a travessia da fantasia, apareceu como uma importante intervenção política.
Como apresentado no prólogo, esse aprendizado foi responsável pela
configuração que a tese tomou em sua finalização. A tese em si é a concretização da
metamorfose teórico-metodológica do pesquisador. Lembremos que no projeto inicial
da tese imaginávamos que poderíamos traçar coordenadas para uma clínica de
identidade; nem precisaríamos dizer aqui que deixamos de enveredar por esse caminho.
Do mesmo modo, no projeto inicial, prevíamos o estudo de doze histórias de vida. De
fato, até realizamos essas entrevistas, mas preferimos explorar apenas três delas, seja
por julgar que já expressavam o que estávamos querendo discutir, seja porque a forma
como analisamos cada uma das histórias deixaria o trabalho extremamente cansativo,
dado o número de páginas que seriam necessárias,caso analisássemos as doze. No que
se refere ao tamanho da tese também vale dizer que escolhemos adotar um formato final
no qual muitos dos esboços escritos (principalmente os apresentados na qualificação da
tese) não foram incorporados, assim como algumas questões trazidas por esses esboços
não foram tematizadas (elas serão publicadas como artigos e ensaios futuramente).
265

Todavia, assinalamos aqui que eles foram e são muito úteis. Como disse Ciampa na
ocasião do exame de qualificação da tese, “eles servem como ensaios para nosso
próprio esclarecimento”.
Esse apontamento abre espaço para discorrer sobre as conseqüências da tese para
os estudos da identidade. De nossa parte podemos dizer que as proposições
desenvolvidas por Ciampa trazidas ao longo da tese foram extremamente pertinentes
para realizar uma análise crítica das condições de controle a que estão submetidos os
indivíduos atualmente e as formas de construção das personagens que compõem a
identidade (aqui nos referimos não somente à personagem doente mental, mas a todas as
personagens que são atribuídas como identidade pressuposta pelas diferentes políticas
de identidade em nossa sociedade). Do mesmo modo, a articulação do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação com os conceitos de cinismo, anamorfose,
paralaxe, reconhecimento perverso e reconhecimento pós-convencional, potencializou
as análises da construção das personagens que compõem a identidade e as relações de
reconhecimento recíproco. As proposições desta tese, inclusive, têm sido
freqüentemente estudadas no projeto de extensão Estudos avançados do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação que coordenamos no curso de Psicologia da
Universidade Federal do Ceará – UFC, Campus Sobral, e no Laboratório de Identidade,
Cultura e Subjetividade – LAICUS, da mesma Universidade. No que se refere ao campo
da Psicologia Social, acreditamos que essa tese possa contribuir tanto para a discussão
do seu lugar na saúde mental, como para a construção de novos referenciais de análise e
intervenção. Finalmente, para o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Identidade-
Metamorfose da PUCSP – NEPIM, acreditamos que o presente estudo possa somar-se
ao corpo teórico desenvolvido por Ciampa e contribuir com a infinita re-atualização que
essa proposta, assim como toda teoria crítica, está submetida.
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ANEXOS
1
MINISTÉRIO DA SAÚDE - Conselho Nacional de Saúde - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP
FOLHA DE ROSTO PARA PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS
( versão outubro/99 ) Para preencher o documento, use as indicações da página 2.
1. Projeto de Pesquisa:
Patologias Mentais e sua relação com as distorções sistemáticas da linguagem: Uma re-leitura a partir do sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação
2. Área do Conhecimento (Ver relação no verso) 3. Código: 4. Nível: ( Só áreas do conhecimento 4 )
PSICOLOGIA 7.07
5. Área(s) Temática(s) Especial (s) (Ver fluxograma no verso) 6. Código(s): 7. Fase: (Só área temática 3) I ( ) II ( )
III ( ) IV ( )
8. Unitermos: ( 3 opções )

SUJEITOS DA PESQUISA
9. Número de sujeitos 10. Grupos Especiais : <18 anos ( ) Portador de Deficiência Mental ( ) Embrião /Feto ( ) Relação de Dependência
No Centro : 12 (Estudantes , Militares, Presidiários, etc ) ( ) Outros (X) Não se aplica ( )
Total: 12

PESQUISADOR RESPONSÁVEL
11. Nome:
Aluísio Ferreira de Lima
12. Identidade: 13. CPF.: 19.Endereço (Rua, n.º ):
22.523.113 –X 192.671.648-56 Rua João Cosmai, 65
14. Nacionalidade: 15. Profissão: 20. CEP: 21. Cidade: 22. U.F.
Brasileira Psicólogo 09340-680 Mauá São Paulo
16. Maior Titulação: 17. Cargo 23. Fone: 24. Fax
Mestre Pesquisador 11 – 8226.2269
18. Instituição a que pertence: 25. Email:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo aluisiolima@hotmai.com
Termo de Compromisso: Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas complementares. Comprometo-me a utilizar os
materiais e dados coletados exclusivamente para os fins previstos no protocolo e a publicar os resultados sejam eles favoráveis ou não. Aceito as
responsabilidades pela condução científica do projeto acima.
Data: _08__/__08___/__2007_ ______________________________________
Assinatura
INSTITUIÇÃO ONDE SERÁ REALIZADO (observar folha anexa)
26. Nome: 29. Endereço (Rua, nº):

27. Unidade/Órgão: 30. CEP: 31. Cidade: 32. U.F.

28. Participação Estrangeira: Sim ( ) Não ( ) 33. Fone: 34. Fax.:


35. Projeto Multicêntrico: Sim ( ) Não ( ) Nacional ( ) Internacional ( ) ( Anexar a lista de todos os Centros Participantes no Brasil )
Termo de Compromisso (do responsável pela instituição) :Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas
Complementares e como esta instituição tem condições para o desenvolvimento deste projeto, autorizo sua execução
Nome:_______________________________________________________ Cargo________________________
Data: _______/_______/_______ ___________________________________
Assinatura
PATROCINADOR Não se aplica ( x )
36. Nome: 39. Endereço

37. Responsável: 40. CEP: 41. Cidade: 42. UF

38. Cargo/Função: 43. Fone: 44. Fax:

COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA – CEP


45. Data de Entrada: 46. Registro no CEP: 47. Conclusão: Aprovado ( ) 48. Não Aprovado ( )
_____/_____/_____ Data: ____/_____/_____ Data: _____/_____/_____
49. Relatório(s) do Pesquisador responsável previsto(s) para:
Data: _____/_____/____ Data: _____/_____/_____
Encaminho a CONEP: 53. Coordenador/Nome
50. Os dados acima para registro ( ) 51. O projeto para Anexar o parecer consubstanciado
apreciação ( ) ________________________________
52. Data: _____/_____/_____ Assinatura

COMISSÃO NACIONAL DE ÉTICA EM PESQUISA - CONEP


54. Nº Expediente : 56.Data Recebimento : 57. Registro na CONEP:

55. Processo :
58. Observações:

1
2

LOCAL ONDE SERÁ REALIZADA A PESQUISA

Para realização da pesquisa seguiremos a proposta apresentada pelo Dr. Antonio da


Costa Ciampa, cujas pesquisas realizadas e orientadas nos últimos anos mostram que a
narrativa de história de vida aparece como o instrumento mais apropriado para obter as
informações que julgamos necessárias para compreender como ocorrem as construções
identitárias, assim como, pode nos ajudar a recuperar as determinações singularizadoras da
individualidade. A escolha por este instrumento se deu também pelo fato de que o mesmo
supera a prática da mera descrição (cujo desafio era obter o maior número de informações
possíveis), e possibilitar a busca pelos significados implícitos presentes na construção dessas
identidades, que serão entendidas como metamorfose humana em busca de emancipação.
Serão realizadas um total de 12 entrevistas de história de vida, divididas em três
grupos de sujeitos: a) que fazem “tratamento” das doenças mentais (4) ; b) que estão na “fila
de espera” para tratamento (4) e, c) aquelas que de alguma forma criaram formas de lidar com
o problema de forma não convencional (4). As entrevistas serão realizadas nas residências dos
sujeitos e/ou lugares que os mesmos sentirem-se mais confortáveis. O pesquisador se
compromete observar a qualidade do local da entrevista, evitando, assim, qualquer
possibilidade de exposição e constrangimento para os entrevistados.
Seguiremos todos os cuidados éticos necessários à realização de uma pesquisa desta
natureza. Adotaremos as normas do Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP) e da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre
Pesquisas Envolvendo seres Humanos. No momento em que entregarmos aos participantes da
pesquisa os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, que serão feitos em duas vias,
serão explicitados os objetivos da pesquisa, o tipo de participação do indivíduo (o relato da
história de vida, o uso do gravador etc.), a garantia do sigilo e de que todos terão uma
devolutiva, se quiserem, com o resultado da pesquisa.

2
Termo de Compromisso do Pesquisador

Pesquisa : Patologias Mentais e sua relação com as distorções sistemáticas da linguagem:


Uma re-leitura a partir do sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação

Os pesquisadores abaixo assinados, conhecedores da Resolução 196/96 e de seu conteúdo


essencialmente de natureza Bioética, centrado na proteção do sujeito de pesquisa, se
comprometem a :

• Atender aos deveres institucionais básicos da honestidade, sinceridade,


competência e discrição ;
• Pesquisar adequada e independente, além de buscar aprimorar e promover o
respeito à sua profissão ;
• Não fazer pesquisas que possam causar riscos não justificados às pessoas
envolvidas ;
• Não violar as normas do consentimento informado ;
• Não converter recursos públicos em benefícios pessoais ;
• Comunicar ao possível participante da pesquisa todas as informações necessárias
para um adequado consentimento informado ;
• Propiciar ao possível participante da pesquisa plena oportunidade e encorajamento
para fazer perguntas ;
• Excluir a possibilidade de engano injustificado, influência indevida e intimidação ;
• Solicitar o consentimento apenas quando o participante tenha conhecimento
adequado dos fatos relevantes e das conseqüências de sua participação e tenha tido
oportunidade suficiente para considerar se quer participar ;
• Obter de cada possível participante um documento assinado como evidência do
consentimento informado, e
• Renovar o consentimento informado de cada participante se houver alterações nas
condições ou procedimentos da pesquisa.

São Paulo, 08 de agosto de 2007.

________________________________ _____________________________
Pesquisador responsável Orientador
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Social
NEPIM – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Identidade

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Este termo de consentimento tem por objetivo informar-lhe sobre o que se trata a pesquisa,
bem como, a partir de seu entendimento, obter a sua autorização explícita para realizá-la.
Espera-se, através deste, possibilitar-lhe uma idéia básica sobre a pesquisa e o que a sua
participação envolverá.

Se você desejar obter mais detalhes sobre algo mencionado, ou informações não incluídas,
sinta-se à vontade para perguntar. Por favor, leia cuidadosamente esse termo e as
informações aqui contidas.

Tema do Projeto de Pesquisa


Patologias Mentais e sua relação com as distorções sistemáticas da linguagem: Uma re-
leitura a partir do sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação

Pesquisador
Aluísio Ferreira de Lima, discente do Doutorado do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica SP.

Objetivo da pesquisa:

Compreender como, no decorrer de suas vidas, indivíduos perceberam-se portadores de


patologia mental e qual a repercussão desse diagnóstico para as suas identidades.

Recrutamento e Seleção dos Participantes

Foram convidadas para a pesquisa pessoas que em algum momento de suas vidas foram
reconhecidas ou se reconheceram como portadoras de transtorno mental, que estariam
fazendo tratamento, em fila de espera ou que encontraram outra forma de lidar com o
problema.

Procedimento

Pretende-se realizar entrevista de história de vida com cada um dos participantes. Estima-
se a realização de 2 entrevistas de, aproximadamente, 3hs de duração, com cada
participante. As entrevistas serão realizadas na residência do sujeito e/ou lugar que o
mesmo entender como mais confortável. O pesquisador se compromete observar a
qualidade do local da entrevista, evitando, assim, qualquer possibilidade de exposição e
2

constrangimento para o entrevistado. As entrevistas serão gravadas para permitir um


registro mais preciso das informações e posteriormente transcritas.

Aspectos Éticos

Em relação aos aspectos éticos é importante ressaltar que o foco do presente estudo é a
história de vida, portanto, só serão apresentados casos cuja autorização prévia para
divulgação seja obtida. Os objetivos da pesquisa serão informados aos participantes e lhes
será dada liberdade de decisão sobre participação no estudo, assim como também lhes será
garantido anonimato.

Risco ou desconforto

Por se tratar de entrevista de história de vida, caso o participante se sinta, em algum


momento, desconfortável pode solicitar a interrupção da entrevista ou até mesmo, o
encerramento de sua participação na pesquisa.

Sigilo

Os nomes dos participantes serão mantidos em absoluto sigilo. Todas as informações


obtidas na pesquisa serão utilizadas, apenas para a análise científica dos dados e em caso
algum os nomes dos participantes constarão nas eventuais publicações.

Consentimento

A sua assinatura neste formulário indica que você leu e entendeu as informações contidas,
que você concorda em participar da pesquisa e ser entrevistado. Você é livre para se
recusar a responder a itens específicos ou questões durante a entrevista. Você é livre para
desistir de ser participante do estudo em qualquer momento, sem nenhuma penalidade.
Sinta-se à vontade para pedir explicações ou esclarecimentos a qualquer momento durante
a pesquisa. Se você tiver outras questões relacionadas a este estudo estou à disposição,
através do telefone (88) 9252.1415 ou pelo e-mail aluisiolima@hotmail.com.

Participante Data

Pesquisador/Testemunha Data
Reprodução do quadro: Ângelus Novus de Paul Klee.

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