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Sofrimento+de+indeterminação+e+reconhecimento+perverso+ +aluisiolima
Sofrimento+de+indeterminação+e+reconhecimento+perverso+ +aluisiolima
Sofrimento de indeterminação e
reconhecimento perverso
Um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação
Sofrimento de indeterminação e
reconhecimento perverso
Um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação
Essa tese pode ser vista como o resultado de suturas realizadas por mim, a partir do
material mais rico que se poderia utilizar: a existência humana, ou ainda, a luta pela
existência humana, oferecida em abundância, a todo instante, por colaboradores
conhecidos, anônimos e material bibliográfico. Tenho a plena convicção de que mesmo se
fosse possível o recolhimento de todo material produzido acerca do tema tratado nessa
pesquisa, tudo teria sido reduzido a nada se ela não fosse a expressão de muitos olhares e
reflexões proporcionados pelas relações que vivenciei. Por esse motivo se o trabalho em
questão não conseguir expressar claramente o que se propõe, o erro estará justamente na
minha inabilidade e ingenuidade, pois esse tipo de material é de difícil manuseio e sua
costura muito delicada.
Sendo assim, embora a escrita de uma tese tenha sido um empreendimento solitário,
sua gestação, assim como as sementes finalmente germinadas, é resultado da complexidade
existente, do equacionamento das interações, dos encontros, dos desencontros, das
descobertas, das renúncias, da poética e do devaneio. O que implica necessariamente em
alguns agradecimentos que, embora tente apresentar aqui, não contemplará todos os
envolvidos na produção intelectual que resulta nesse trabalho. Assumo que serei injusto,
assim como todos que fazem seus agradecimentos, quanto aos nomes que apresentarei a
seguir. Espero sinceramente que aquelas pessoas que porventura não estejam citadas
saibam o quanto sou grato por terem compartilhado fragmentos de suas vidas comigo,
experiências compartilhadas que têm servido de alimento para minha escrita e pensamento.
Algumas pessoas, entretanto, não poderiam deixar de ser citadas, três delas,
inclusive, aparecem inicialmente por terem sido essenciais durante todo esse processo. As
duas primeiras são Meire Silva de Lima e Stephanie Caroline Ferreira de Lima, que
acompanharam de perto as metamorfoses que sofri e em todos os momentos estiveram ao
meu lado, sempre tendo de negociar um pouco de atenção com a imensidão de afazeres
acadêmicos e profissionais. Não tenho palavras para descrever o quanto vocês duas
foram/são importantes em todo esse percurso. Obrigado pelo amor, carinho e paciência
dispensado todos esses anos. Espero que de agora em diante possa dedicar o tempo que
vocês merecem e que possamos viver com intensidade os pequenos e grandes momentos de
nossas vidas.
A terceira trata-se do Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa, ou simplesmente Ciampa,
como costumamos chamá-lo, exemplo de docente e intelectual que pretendo um dia me
tornar. Alguém que consegue viver plenamente aquilo que estuda e ensina. As influências
desse grande mestre que alimentam minhas considerações acerca da Psicologia Social e
identidade humana estão evidenciadas em minha produção acadêmica. Hoje tenho a honra
de chamá-lo também de meu amigo e aproveito essa oportunidade para agradecê-lo pela
acolhida na PUCSP, ainda em término de minha graduação, e por ter suportado as minhas
angústias durante todos esses anos.
Entre aquelas que estiveram ligadas diretamente à confecção dessa tese de
doutoramento, dá-me uma enorme satisfação observar que muitas delas já sentaram comigo
para almoçar, tomar café, jogar videogame etc., participaram comigo em congressos, aulas
e debates, jogaram conversa fora, trocaram angústias, desilusões e sonhos — todo tipo de
coisas que enriquece a nossa vida e fazem com ela seja única e, ao mesmo tempo, um
desafio à imaginação. Uma atmosfera que muitas vezes transformou o relacionamento
acadêmico em amizades duradouras. Entre esses questionadores e co-conspiradores que
conheci e convivi na PUCSP estão: Juraci Armando Mariano de Almeida, que sempre fez a
pergunta certa para (des)organizar minhas certezas; Nadir Lara Junior, com quem realizei
ótimos debates e sempre fui cobrado pela busca da precisão epistemológica; Renato
Ferreira de Souza, pelas leituras primorosas e sua tolerância à discussão por Internet;
Shirley Acioly, sempre disponível para me ajudar com os abstracts; Clodoaldo Leme;
Edileuza Santiago; Helena Kolyniak, com quem tive minha primeira experiência de
docência universitária; Marlene Camargo, que literalmente organizou minha vida no
Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da PUCSP, acolheu minhas
angústias e expectativas frente às possibilidades de bolsa; todos os colegas do Núcleo de
Estudos da Identidade Humana – NEPIM, que debateram todos os assuntos tratados nessa
tese.
Na PUCSP também tive a honra de contar com a contribuição de outros mestres
imprescindíveis para minha formação intelectual. Aqui me refiro a todos os professores do
Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da PUCSP – PSO, por seus textos,
debates, seminários e aulas. Principalmente à professora Maria do Carmo Guedes, que com
seu brilhantismo e paixão ensinou-me ainda no mestrado a importância da pesquisa
histórica. Outros professores, fora do PSO, também contribuíram de forma significativa em
meu processo de formação, me refiro aos professores: Odair Sass, do Programa de
Educação: História, Política e Sociedade que sempre apareceu com um novo
questionamento acerca de minhas proposições e metodologias (sempre paciente com
minhas abordagens nos corredores da PUCSP); Jeane-Marie Gagnebin, do Programa de
Mestrado e Doutorado em Filosofia, pela iniciação nos estudos da hermenêutica,
principalmente pelas brilhantes aulas sobre Walter Benjamin & Paul Ricoeur; e José Luiz
Aidar Prado, do Mestrado e Doutorado em Comunicação e Semiótica, que apresentou
autores críticos até então desconhecidos por mim e pelas ótimas sugestões na banca de
qualificação.
No que se refere às colaborações teórico-metodológicas que recebi fora da PUCSP,
agradeço aos professores: José Mendes (Babi) Fonteles Filho & Gislene Maia de Macêdo,
do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará – UFC, companheiros do
Laboratório de Identidade Cultura e Subjetividade – LAICUS, pelos deliciosos almoços
filosóficos e conversas em(na) rede que contribuíram sobretudo nos momentos de crise da
escrita; José Umbelino Gonçalves Neto, também da UFC, por suas sugestões preciosas,
pela leitura atenta e ajuda na revisão gramatical do texto; Thomas S. Szasz, da State
University of New York’s Upstate Medical University in Syracuse, que não poupou esforços
para ajudar-me na busca de suas obras publicadas no Brasil, por fazer apontamentos
importantes acerca do meu projeto inicial e por me enviar manuscritos recentes de seus
trabalhos; Karl E. Scheibe, da Wesleyan University, por ter me fornecido trabalhos
inacessíveis de Theodor R. Sarbin, alguns inclusive não publicados.
Fora do espaço universitário, não poderia deixar de agradecer aos irmãos e irmãs
que pude escolher, pessoas que representam a amizade verdadeira e o companheirismo que
é essencial para sustentar um projeto ético-político como o que tenho tentado vivenciar.
Não tenho palavras para agradecer a Brendali Dias, companheira de batalhas árduas, saiba
que sempre poderá contar comigo; Marcelo Alves dos Santos, que muito me presenteia
com sua confiança; Rogério Dias, que sempre me atentando para não esquecer das minhas
origens; Ana Paula de Carvalho, sempre me provocando; Simone Souza, por suportar
minhas provocações; Cristiano Caires, que transcreveu as entrevistas com extrema rapidez
e atenção, mesmo estando próximo ao final de sua graduação e envolto com as diversas
exigências acadêmicas. Luciana Guilherme, que me ensinou que não precisamos de anos de
amizade para considerar alguém como grande amigo; Andréia Moassab, que tanto tem me
ajudado a pensar alternativas para as alternativas; Sâmia Malufe, pela solidariedade e pela
alegria; Sonha Malaquias, poeta apaixonada pela vida que muito me orgulho de ter
conhecido e compartilhado minha história de vida e Antonio Maia O. do Vale, parceiro na
coordenação do curso de Psicologia da UFC, sempre disposto para as boas conversas.
Não poderia esquecer de agradecer à minha grande família formada por: Aparecida
Alves Ferreira (minha mãe), Vera (minha sogra), Alexandre, Paulo, Ana Paula, Thiago,
Elisa e João Victor (meus irmãos), Aucilene (Lena), Gisele, Osvano, Mirian e Sérgio (meus
cunhados(as)) e Roger Junior, Beatriz, Luiz, Kevin, Rodrigo, Felipe, Caio, Thamyres,
Giovanna (sobrinhos), que acompanharam de perto as dificuldades de um teimoso jovem da
periferia rumo à formação superior. E a minha segunda família, formada por todos os
companheiros de treino do Judô Mauá e Infight Jiu-Jitsu, principalmente aos Mestres Paulo
Nardy, Leandro Fidelis e Shihan Kaor Okada, esse último, com quem aprendi o Bushidô
(Caminho do Guerreiro).
Agradeço à Universidade Federal do Ceará – UFC, nas figuras do Magnífico Reitor
Jesualdo Pereira Farias e Prof. Dr. Sérgio Armando de Sá e Benevides – Diretor do Campus
Avançado de Sobral da UFC, que não apresentaram nenhuma dificuldade para que eu
pudesse finalizar a tese de doutoramento. Assim como, a todos os amigos conhecidos a
partir de meu ingresso como docente nessa instituição: estudantes a quem ministrei aulas ou
que têm participado de meu projeto de extensão, técnicos administrativos (Jean e Franklin)
e colegas docentes: Luis Achilles Furtado, Franklin Freitas, José Olinda Braga, Érica Atem
Costa, Camilla Vieira, Carlos Roger Ponte, Joyce Di Ciero, Luciane Oliveira, Suely Costa,
Odimar Feitosa Filho, Pablo Benevides, Renata Guimarães e Rita Helena S. F. Gomes.
Finalmente, agradeço ao CNPq pelo financiamento da pesquisa nos dois primeiros
anos de doutoramento — ocasião em que abri mão da bolsa integral para tomar posse do
cargo de professor efetivo do setor de estudo: Psicologia Social, da Universidade Federal
do Ceará – UFC — e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES, de quem fui bolsista nos meses finais de pesquisa, escrita e defesa da tese.
Resumo
LIMA, Aluísio Ferreira de. Sofrimento de indeterminação e reconhecimento perverso:
Um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação. Tese de Doutorado. PUCSP, 2009.
Essa é uma tese de Psicologia Social Crítica, cujo foco principal foi explicitar, a partir da
teoria de identidade proposta por Antonio da Costa Ciampa expressada no sintagma
identidade-metamorfose-emancipação, como ocorre a construção da personagem doente
mental a partir do reconhecimento de diferentes atores sociais, e a relação que essa
personagem estabelece com o discurso da saúde mental proposto pela reforma psiquiátrica.
Dividimos a pesquisa em três capítulos denominados: itinerário histórico, itinerário teórico,
itinerário empírico. No primeiro itinerário fazemos uma apresentação histórica do
desenvolvimento da concepção dualista normal/patológico, que culminou na construção da
identidade pressuposta do doente mental, e analisamos esse desenvolvimento à luz das
diferentes articulações institucionais e políticas (principalmente a relação entre a Psiquiatria
e Psicologia Social) legitimadas a partir de leis e decretos que possibilitaram a Reforma
Psiquiátrica brasileira atual. Em seguida, assinalamos como a teoria de identidade proposta
por Ciampa se insere na tradição da Psicologia Social Crítica e atravessa as contribuições
da Teoria Crítica, principalmente a habermasiana, para pensar as condições de emancipação
humana, a ponto de desvelar como a identidade sofre fortes investidas dos discursos
técnico-psicológicos, que produzem personagens fetichizadas sustentadas por um
reconhecimento perverso. Na seqüência trazemos as narrativas da história de vida de Ana,
Gabriel e Francisco, que nos ofereceram elementos para evidenciar como os indivíduos têm
se apropriado do discurso de doença mental para organizar e representar suas identidades
atualmente. Nesse momento, assinalamos que não podemos mais sustentar cinicamente
que, ao utilizar o discurso de doença mental a partir de uma política de identidade
antimanicomial, estamos possibilitando a emancipação dos indivíduos, sendo necessário
que adotemos um reconhecimento pós-convencional (visão em paralaxe), para não
reproduzirmos reconhecimentos perversos.
This is a thesis of Critical Social Psychology which main focus was to unveil, based on the
theory of identity proposed by Antonio da Costa Ciampa expressed in the identity-
metamorphosis-emancipation sintagma, how the construction of the mentally ill character
occurs considering the recognition of different social actors and the relation set with the
mental health discourse proposed by the psychiatric reform. The research was divided into
tree named routes: historical route, theoretical route, empirical route. In the first route we
make a presentation of the historical development of the dual normal/pathological
conception, which culminated in the construction of the assumed identity of the mentally
ill, and analyze this development in light of the different institutional articulations and
policies (especially the relationship between psychiatry and Social Psychology) legitimized
from laws and decrees that allowed the Brazilian Psychiatric Reform. Then, we point out
how the theory of identity proposed by Ciampa is inserted in the tradition of Critical Social
Psychology and cross the contribution of critical theory, especially the habermasian theory.
All this to think about the conditions for human emancipation to unveil the strong
investment of technical and psychological discourses suffered by the identity and which
produce fetishized characters sustained by perverse recognition. Then, we bring the life
history narratives of Ana, Gabriel and Francisco, which offered evidence of how
individuals have appropriated the discourse of mental illness to organize and represent their
identities today. In this moment, which point out that we can not cynically sustain, by using
the discourse of mental illness from an anti-asylum politics, that we are enabling the
empowerment of individuals. We need to adopt a post-conventional recognition (parallax
view) to not reproduce perverse recognition.
Esa es una tesis de Psicología Social Critica, cuyo enfoque principal fue revelar, a partir de
la teoría de la identidad propuesta por Antonio da Costa Ciampa expresada en el sintagma
identidad-metamorfosis-emancipación, como ocurre a la construcción del personaje
enfermo mental a partir del reconocimiento de diferentes actores sociales, y la relación que
ese personaje establece con el discurso de la salud mental propuesto por la reforma
psiquiátrica. Dividimos a la investigación en tres capitulos denominados: camino histórico,
camino teórico, camino empírico. En el primer camino hacemos una presentación histórica
del desarrollo de la concepción dualista normal/patológico, que culminó en la construcción
de la identidad presupuesta por el enfermo mental, y analizamos ese desarrollo a la luz de
las diferentes articulaciones institucionales y políticas (principalmente a la relación entre la
Psiquiatría y Psicología Social) legitimadas a partir de leyes y decretos que posibilitaron a
la Reforma Psiquiátrica brasileña actual. En seguida, apuntamos como la teoría de identidad
propuesta por Ciampa se pone en la tradición de la Psicología Social Critica y traspasa las
contribuciones de la Teoría Critica, principalmente a la habermasiana, para pensar las
condiciones de la emancipación humana, a punto de revelar como la identidad sufre fuertes
investidas de los discursos técnico-psicológicos, que producen personajes fetichisadas
sostenidas por un reconocimiento perverso. En seguida traemos las narrativas de la historia
de vida de Ana, Gabriel y Francisco, que nos ofrecieron elementos para evidenciar como
los individuos ven apropiado del discurso de enfermedad mental para organizar y
representar sus identidades actuales. En ese momento, defendiemos que no podemos mas
sujetar cinicamente que, al utilizar el discurso de la enfermedad mental a partir de una
política de identidad antimanicomial, estamos posibilitando la emancipación de estos
individuos y enseñando que volverse necesario un reconocimiento pos-convencional, para
que no reproduzcamos reconocimientos perversos.
PRÓLOGO .......................................................................................................................... 23
Max Horkheimer1
1
HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. p.134.
24
Retomar a doença mental como objeto de pesquisa não seria lidar com um problema já
ultrapassado, ou como diria Pierre Bourdieu2, um falso problema?
Confesso que inicialmente pensava que sim! O projeto de tese inicial, inclusive,
procurava produzir um conhecimento que pudesse contribuir com a Reforma
Psiquiátrica, tal como ela tem se configurado no Brasil a partir da Lei 10.216, de 06 de
abril de 2001, mais especificamente, imaginava em tecer os prolegômenos para uma
clínica de identidade3. Acreditava que esse projeto contribuiria de forma crítica para a
transformação do discurso acerca das doenças mentais, certeza que provinha da crença
que compartilhei durante os últimos anos em que estive envolvido com a área4 e que me
fazia sentir sendo parte de um movimento de resistência, de vanguarda. A questão
inicial era como pensar uma clínica mais social, tal como Omar Ardans havia proposto
em sua primeira tentativa de pensar uma clínica de identidade5. Em outras palavras,
2
Cf. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. Passim.
3
O projeto inicial, apresentado na seleção de doutorado Programa de Estudos Pós-graduados em
Psicologia Social (PSO) da PUCSP no 1º semestre de 2006 era intitulado: Patologias mentais e sua
relação com as distorções sistemáticas da linguagem: Uma re-leitura a partir do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação. A proposta recebeu parecer consubstanciado em setembro de
2007 do PSO e foi encaminhado para a comissão de ética da PUCSP, sendo registrado como Protocolo
de Pesquisa n.196/2007 e aprovado na Reunião Ordinária do Comitê de Ética em Pesquisa da PUCSP
do dia 24/09/2007. É importante destacarmos que não submetemos o projeto novamente a este comitê
após a mudança do foco de discussão da tese por acreditarmos que os elementos que garantem o
cumprimento das normas éticas continuam sendo observados e respeitados, inclusive, o objetivo
buscado nas entrevistas de história de vida, assim como o tipo de participantes, continuaram os
mesmos. (os pareceres constam no anexo)
4
Meu envolvimento com o campo da saúde mental dá-se desde o 3º. ano de minha graduação em
Psicologia, momento em que fiz estágio no Espaço Fernando Ramos da Silva, atualmente CAPSad, da
cidade de Diadema – SP. Desde então participei de Redução de Danos e Movimento da Luta
Antimanicomial, atuei como Psicólogo e coordenador de ambulatório de Saúde Mental na Prefeitura de
Rio Grande da Serra e no Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras drogas da Estância
Turística de Ribeirão Pires, ambas em São Paulo; tomei como objeto de pesquisa o uso de drogas e o
tratamento pelas oficinas terapêuticas no Mestrado realizado na PUCSP; cursei especialização em
Saúde Mental na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – USP; participei de dezenas de
Congressos, Fóruns, Encontros etc. no campo da Saúde Mental e Psicologia; e participei como membro
e posteriormente como membro-pesquisador do Consórcio Intermunicipal de Saúde Mental do ABC
Paulista.
5
Refiro-me aqui à influência que recebi na época da proposta apresentada anteriormente por Omar
Ardans, em 2001, no posfácio de sua tese de doutorado intitulada: Apontamentos sobre a
Metamorfose Humana: Um ensaio de Psicologia Social. O autor, nesse texto, ao propor uma
Psicologia Social Clínica, “supõe um movimento inverso àquele inaugurado pela psicanálise; no lugar
do percurso que leva das descobertas na psicologia individual à dimensão coletiva, ir da consideração
das formas espirituais e coletivas da sociabilidade, particularmente a partir do comportamento
desumano, para o individual em torno de sua identidade e de sua metamorfose.” op.cit. p.146. No
projeto inicial de doutorado, Ardans procurou focar seu projeto na Clínica de Identidade, estudando um
grupo de profissionais antroposóficos que desenvolvia um trabalho social em três favelas paulistas;
porém, esse grupo passou por dificuldades e encerrou as atividades, inviabilizando o andamento do
projeto e fazendo com que o pesquisador mudasse o foco inicial e assumisse um caráter teórico que
fornecesse subsídios para a ampliação das discussões sobre metamorfose e das categorias a ela
vinculadas.
25
6
Na dissertação de mestrado que também inicialmente procurei entender o potencial terapêutico das
oficinas de teatro para os usuários de drogas ficou claro que o “terapêutico” dessa oficina não era a
produção artística, mas sim, a possibilidade de reconhecimento do humano por trás do diagnóstico
psiquiátrico. Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de
identidade: possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro e
Dependência de drogas e psicologia social: um estudo sobre o sentido das oficinas terapêuticas e o
uso de drogas a partir da teoria de identidade.
26
continuei com diversas atuações na área da saúde mental. Exerço a docência e pesquisa
na área de Psicologia Social do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará –
UFC e estou preste a defender uma tese de doutoramento. Uma tese resultante do
impacto de um primeiro encontro e que acompanhada das vivências ao longo desses
anos foi se configurando como um projeto não apenas de doutorado, mas também, como
um projeto de trabalho para minha vida. Sendo assim, fica evidente que a pergunta que
remetia ao lugar de onde estava fazendo meus questionamentos foi recorrente em
minhas leituras, ora aparecendo como um demônio inoportuno, ora sendo acolhida e até
mesmo sendo esperada nos lugares certos.
Poderia dizer aqui, de um outro modo, que a tese apresentada a seguir é uma
tentativa de resposta àquela simples pergunta de Ciampa, que não conseguiu ser
respondida e que colocou em xeque tudo o que eu acreditava. Pergunta que hoje
percebo ter incomodado por denunciar a persistência de uma racionalidade psiquiátrica7
em meu próprio discurso, o discurso psicológico, que aprendi em minha formação e que
entrava em consonância com o discurso da Reforma Psiquiátrica brasileira. Tomar
consciência desse fato, como poderá ser observado ao longo da tese, influenciou
radicalmente as metamorfoses frente minha proposta inicial, uma vez que as
dificuldades de implementação efetiva da reforma psiquiátrica, que me parecia no início
da pesquisa ser de ordem meramente instrumental, passaram a ser percebidas de forma
diferenciada quando percebi que no caso da saúde mental, que tem se voltado para
atender objetivos utilitariamente estabelecidos (redução de leitos e ampliação de
serviços substitutivos), estava diante do divórcio entre a teoria e a práxis.
Como se poderia imaginar, essa guinada fez com que a construção da pesquisa
se tornasse um trabalho árduo que encontrou como principal dificuldade a revisão de
meu projeto ético-político de vida. Uma vez que minha formação em Psicologia, que de
certa maneira ainda é hegemônica no Brasil e ao meu ver tem transformado a formação
universitária em deformação profissional, voltou-se muito mais para a reprodução da
prática e aprimoramento de aplicações das teorias e técnicas com vistas no mercado de
7
Racionalidade psiquiátrica e discurso psiquiátrico são entendidos aqui como evidências de não
superação da instituição psiquiátrica, que mais do que uma estrutura concreta que separaria os
indivíduo normais dos anormais, excluindo-os do espaço público, refere-se ao conjunto de
conhecimentos e normas morais revestidas de científicas determinam o que é doença mental. Como
assinala Thomas Szasz, o discurso normativo e classificador da Psicologia e Psiquiatria, que ao
utilizarem-se de metáforas comparativas com as doenças físicas, transformam o sofrimento frente aos
problemas estruturais do capitalismo em doença mental. Cf. SZASZ, Thomas S. O mito da doença
mental.
27
8
É notório o enfraquecimento da figura do militante em nosso momento histórico, indícios e reflexos da
força do militarismo em nosso país. Para mim que nasci no final da ditadura é extremamente difícil
vivenciar a experiência de resistência e encontrar um projeto utópico. Entendo que a socialização para
militância transformou-se em uma socialização para o ativismo (cada vez mais especializado), esse
último entendido como uma ação pragmática que abandona visões totalizadoras em benefício de
implicações mais pontuais. O politicamente correto é pressuposto e visto como postura de vanguarda
(que curiosamente questiona as partes mas alia-se ao todo).
9
Rosa Maria Nader, em sua tese de doutoramento de 1990 descrevia uma realidade que ainda não foi
superada pelos profissionais da psicologia inseridos nos serviços substitutivos. Por escuta surda a
autora entende a onipotência do saber a priori utilizado pelo psicólogo que faz com que sua escuta seja
avaliada pela capacidade de articular a realidade com a teoria, o olhar cego refere-se ao olhar treinado
para a classificação (que por mais que seja questionada acaba cedendo ao CID10 ao mantermos os
conceitos tradicionais) e, finalmente, a fala muda, replicante de um discurso tecnificado ou fetichizado,
muda por não conseguir expressar o verdadeiro sofrimento do indivíduo submetido ao especialista. Cf.
NADER, Rosa Maria. Psicologia e Transformação: Os caminhos para a prática psi. Por ação
reiterativa entendemos a práxis que não produz de fato algo transformador, apenas repõe o que já está
instituído.
28
10
Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia.
29
11
Utilizando-se da retórica científica, que Szasz já mostrou ser extremamente fraca no que se refere ao
conceito de doença mental, os opositores da desconstrução das instituições psiquiátricas asilares
defendem a legitimidade frente ao controle do doente mental, incapaz e abandonado. Ver, por exemplo,
o editorial assinado por Valentim Gentil, do Hospital das Clínicas da FMUSP, publicado na Revista
Brasileira de Psiquiatria.
12
É importante que fique claro que não estou negando o fato explícito de que o discurso da Reforma
Psiquiátrica é mais humanizado e que é um avanço frente a lógica manicomial, a ênfase dada aqui é
para o fato de esse discurso ter se transformado em apenas apenas isso, um discurso mais humanizado,
não questionando a concepção de loucura socialmente estabelecida, simplesmente propondo uma
reabilitação ao instituído.
13
O uso do termo cama de Procusto remete ao mito grego, onde para entrar em Atenas, o viajante tinha
que passar por um portão. Este portão era guardado por Procusto, um monstro poderoso que só deixava
entrar aqueles que correspondiam a um padrão ideal, a uma certa normalidade. Se a pessoa fosse muito
baixa, ele a punha numa cama de ferro para esticá-la; se fosse muito alta, ele a deitava nesta cama e
submetia a vítima a uma cirurgia, cortando-lhe os pés; este leito era conhecido como a Cama de
Procusto.
14
Militantes profissionais é um termo empregado por Jubel Barreto (2005) para designar determinados
pacientes (usuários de serviços substitutivos) que participam em diversos eventos e que atestam as
vantagens de estar fora do manicômio, o que podemos pensar que serve muito mais para reforçar a
política adotada do que para ampliar sua participação no espaço público, ou ainda, questionar os novos
serviços, defendidos como ideais para essas pessoas.
30
Aparente está que ao imergir nesse universo, passei a entender que os problemas
presentes na implantação das instituições substitutivas não são da ordem do treinamento
e organização, mas sim, da própria concepção de “reforma psiquiátrica”, que não se
interessa em libertar os indivíduos do discurso psiquiátrico, o qual continua sendo
fortalecido e pregrado religiosamente a partir da pactuação dos diferentes campos de
conhecimentos que se organizam em torno da concepção de saúde mental com o Estado.
As metamorfoses me fizeram abandonar o objetivo inicial de propor mais uma
tecnologia para aquilo que é pressuposto como discurso de “vanguarda” — o que
colocaria a Psicologia Social a serviço dessa lógica — e buscasse compreender as
influências desse discurso, na construção e manutenção da personagem doente mental,
portador de sofrimento psíquico, louco etc., e sua relação com o capitalismo avançado,
o que por sua vez, propõe o uso da Psicologia Social não como tecnologia de saúde
mental, mas sim, como possibilidade de crítica do discurso psiquiátrico.
Inevitavelmente, também ficará explícito no texto que a análise, constituída a
partir da procura por pontos de sutura entre a Filosofia, Psicanálise, Teoria Crítica,
Teorias da Comunicação e Psicologia Social, focará e não só desvelará o que “está aí”
— a persistência do discurso psiquiátrico mascarado de “novo” discurso de cuidado —,
mas principalmente os perigos que a utilização de um reconhecimento perverso — que
reduz as diversas personagens que compõem a identidade dos indivíduos à uma
representação da personagem fetichizada que impede os mesmos de serem algo mais
que o militante profissional ou doente mental em recuperação — oferece para a
emancipação humana. Valendo-me de uma metáfora comumente utilizada nos textos
que tratam da saúde mental, que diz colocar em xeque a concepção de loucura —
rebatizada pela polissemia que, em última análise, redunda no significado de doença
mental —, acredito que o texto a seguir é uma proposta de leitura alternativa cuja
argumentação defende que enquanto continuarmos apenas colocando em xeque a
instituição psiquiátrica permaneceremos consentindo em jogar a mesma partida. A tese
adquire uma postura frente ao conhecimento o qual segue a proposição de Paul
Feyerabend15, para quem fazer ciência é assumir um empreendimento anárquico, cuja
produção deve ser capaz de avaliar quanto avançamos frente à nossas crenças em
determinadas teorias ou quanto colaboramos com a reposição de uma tecnologia que
serve ao modismo e adequação à sociedade.
15
FEYERABEND, Paul. Contra o Método.
OBJETO E MÉTODO
Ludwig Wittgenstein1
1
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. p.206. [grifos do autor]
2
ECO, Humberto. Como se faz uma tese. p.21.
3
SASS, Odair. Teoria Crítica e investigação empírica na psicologia. p. 147-159.
4
No sentido originário dado por Max Horkheimer em seu artigo de 1937, “Teoria Tradicional e Teoria
Crítica”, a expressão apontava um campo teórico ligado ao marxismo. Esse posicionamento ajuda a
32
entender porque autores como Axel Honneth e Jürgen Habermas, que não compartilham totalmente com
o projeto inicial frankfurtiano, não sejam relacionados à Escola de Frankfurt mas ainda sejam
considerados herdeiros do legado da Teoria Crítica. Uma discussão interessante a esse respeito pode ser
encontrada em: NOBRE, Marcos. Luta por Reconhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crítica.
5
SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. p.11.
6
Nossas críticas ao modelo positivo baseiam-se nas discussões realizadas pelos autores da Escola
Frankfurtiana, sobretudo as críticas realizadas por Jürgen Habermas. Cf. HABERMAS, Jürgen. La
lógica de las ciencias sociales & Idem. Técnica e Ciência como Ideologia.
7
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabele. A nova aliança: A metamorfose da Ciência. p.5 e segts.
33
de uma teoria geral”8 e que somente a partir dessa guinada epistemológica é que
poderemos desenvolver uma Psicologia Social Crítica9. Afinal, já é bem conhecido o
fato de a Psicologia Científica, sobretudo a Psicologia Social, ter tomado forma a partir
de uma cadeia de pretensões de conhecimento acerca dos indivíduos e coletividades que
permitiram o controle e adaptação desses à ordem estabelecida, ou seja, serviu como
instrumento de normalização e administração da sociedade.
Por enquanto adiantamos que o fato de assumirmos a articulação entre a
Psicologia Social e a Teoria Crítica deixa explícita nossa posição frente à produção de
conhecimento numa época em que o capitalismo tardio vive sua globalização em busca
de legitimação10, transformando as formas sociais de interação em relações de consumo
e a cultura em commodities11. O Materialismo Histórico leva-nos a considerar que o
conhecimento do real é uma luta contra a opacidade, nunca é imediato e pleno, em
outras palavras, que o pensamento empírico somente torna-se claro a posteriori, quando
o conjunto de argumentos é enfim explicitados. Isso refletido está na maneira como a
pesquisa foi realizada, que não condiz diretamente com a forma que se encontra
apresentada: itinerário histórico, itinerário teórico, itinerário empírico e itinerários que
se entrecruzam.
Apontamos no prólogo as metamorfoses que o pesquisador sofreu ao longo da
pesquisa, entretanto, não dissemos como essas metamorfoses influenciaram a escrita
desse trabalho. Podemos dizer que a tese foi tomando forma a partir de um movimento
contrário às pesquisas geralmente feitas acerca do tema, que seguem a ideologia
dominante da reforma psiquiátrica e têm como pressuposto o discurso da psiquiatria e
anti-psiquiatria como ponto inicial. Essa é uma pesquisa de identidade entendida como
metamorfose humana, que segue como influencia as proposições teóricas desenvolvidas
8
SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. p.39.
9
Não discutiremos o termo “Psicologia Social Crítica”, sua utilização durante o desenvolvimento da tese
mostrará que se trata de pensar a Psicologia Social articulada com o Materialismo Histórico. É
importante assinalar, entretanto, Psicologia Social Crítica não é uma nomenclatura nova, ela aparece
como configuração de uma proposta para o campo da Psicologia Social na década de 70 do século
passado. Para maiores detalhes sugerimos a leitura dos textos: LANE, Silvia T. M. A Psicologia Social
e uma nova concepção do homem para a Psicologia; Ibidem. O processo grupal & MONTEIRO,
Luís G. M. Objetividade x Subjetividade: da crítica à psicologia à psicologia crítica.
10
Cf. HABERMAS, Jürgen. Crise de legitimação no capitalismo tardio.
11
Cf. HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Harvey escreve que “dentro da lógica da
acumulação do capital, é que o capital possui meios de se apropriar e extrair excedentes das diferenças
locais, das variações culturais locais e dos significados estéticos, não obstante a origem.” p.237.
34
por Antonio da Costa Ciampa12, o que nos leva a considerar que lidamos com algo que
não contém nenhum núcleo duro que garanta sua consistência.
Na concepção de Ciampa, que difere de outros autores da sociologia e psicologia
que tratam a identidade como identidades híbridas13, transnacionais14, líquidas15, pós-
convencionais16, agenciamentos17, zonas de contato e rotas18, subversão e
transgressão19, identização20, ipseidade21, agenciamentos22 etc., a identidade somente é
representada por meio de personagens, que quando são reconhecidas, negam a
totalidade da identidade. Em outras palavras, a identidade é compreendida como uma
interioridade que somente é vista quando exteriorizada. Isso, por sua vez, obriga-nos a
aceitar que a identidade somente é passível de ser estudada em sua aparência, através de
seu auto-reflexo, no jogo de representação entre as diferentes personagens, ou ainda, no
fetiche da representação de algumas delas. Por conta disso, a questão do
reconhecimento mostrar-se-á essencial no decorrer da pesquisa, uma vez que
acreditamos ser justamente nas formas de reconhecimento das identidades que
poderemos vislumbrar como as personagens são superadas, articuladas ou condenadas à
reposição. No que se refere a essa última colocação, assinalaremos tanto como os
efeitos do discurso propagado pela instituição psiquiátrica foi sendo desenvolvido com
o intuito de construir a personagem doente mental, como também evidenciaremos a
função da manutenção desse discurso para a sociedade capitalista atual.
Podemos dizer que a construção da tese foi realizada pelo seu avesso, ou seja,
primeiramente entramos em contato com a realidade que pretendíamos estudar e com
possíveis “informantes”, que eram indivíduos que indicavam pessoas que eram vistas
por eles como “doentes mentais”, “pessoas portadoras de sofrimento mental”, “loucos”
etc., ou ainda, que se descreviam como doentes mentais e/ou usuários de saúde mental.
Esses informantes foram escolhidos aleatoriamente, nos diferentes espaços sociais em
12
A concepção de identidade como metamorfose será explorada na segunda parte do segunda parte, por
enquanto podemos dizer que nos referimos ao trabalho: CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do
Severino e a História da Severina: Um ensaio de Psicologia Social.
13
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura.
14
GILROY, Paul. The Sugar You Stir.
15
BAUMAN, Zygmunt. Identidade.
16
HABERMAS, Jürgen. Para a Reconstrução do Materialismo Histórico.
17
BUTLER, Judith. Agencies of Style for a Liminal Subject.
18
CLIFFORD, James. Taking Identity Politics Seriously: ‘The Contradictory Stony Ground…’.
19
GROSSBERG, Lawrence. History, Imagination and the Politics of Belonging: Between the Death
and Fear of history.
20
MELUCCI, Alberto. O Jogo do Eu.
21
RICOEUR, Paul. O si mesmo como um Outro.
22
TAYLOR, Charles. O que é agência humana?
35
23
A aprovação da Comissão de Ética da PUCSP encontra-se na sessão de anexos.
24
Embora tenhamos realizado as entrevistas com doze pessoas apenas utilizaremos três delas.
25
Principalmente os trabalhos de Jürgen Habermas & Axel Honneth.
26
Principalmente as proposições de Slavoj Žižek e seus interlocutores brasileiros: Vladimir Safatle &
José Luiz Aidar Prado.
27
Cf. FEYERABEND, Paul. Contra o Método.
36
fontes morais e éticas sendo, portanto, um dos grandes males da nossa sociedade.
Naturalismo que tenta impedir que vejamos a hierarquia moral que sempre existe nos
diagnósticos e que serve de pano de fundo para os indivíduos avaliarem uns aos outros.
Essa postura na produção de conhecimento fez com que nos aproximássemos
tanto do que Cecília Minayo28 entende como método hermenêutico-dialético, quanto da
tentativa de reconciliação entre a hermenêutica e a crítica das ideologias proposta por
Paul Ricoeur29. Esses dois modelos, que apresentam mais pontos de encontro do que se
distanciam, nos trazem elementos importantes “na crítica da produção do conhecimento
científico, principalmente no esforço que estes apresentam contra a ameaça da
tecnocracia”30. As narrativas e os discursos dos indivíduos são entendidas como centro
da análise, situadas em seu contexto e o pesquisador tem a tarefa de entender o
fenômeno ou processo social a partir das suas determinações e transformações dadas
pelos indivíduos.31 É importante lembrar que assinalar que nos aproximamos desses
modelos teóricos não significa que nos afastemos do materialismo histórico que, por sua
vez, — aqui nos valemos da interpretação de Slavoj Žižek das teses sobre o conceito de
história de Walter Benjamin —, tem a capacidade “de imobilizar o movimento
histórico, de isolar o detalhe da totalidade histórica”32, possibilitando que vislumbremos
como determinado aspecto tem sido re-posto, retornando como passado “repleto do
presente” por não ter sido revolucionado33.
De forma esquemática, podemos dizer que a partir das narrativas de história de
vida nos colocamos três tarefas: primeira, explorar as concepções tradicionais e
descobrir a serviço de quem determinado conhecimento foi produzido e tem se
28
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde.
29
Essa reconciliação é desenvolvida por esse autor no trabalho: RICOEUR, P. Interpretação e
Ideologias. Nesse trabalho, Ricoeur, após a análise que faz do debate ocorrido entre Habermas e
Gadamer, chega à conclusão que: “A tarefa da hermenêutica das tradições é a de lembrar à crítica das
ideologias que é sobre o fundo da reinterpretação criadora das heranças culturais que o homem pode
projetar sua emancipação e antecipar uma comunicação sem entrave e sem limite. (...) É bem provável
que quem não é capaz de reinterpretar seu passado, também não seja capaz de projetar concretamente
seu interesse pela emancipação.” p.142.
30
LIMA, Aluísio Ferreira de. Hermenêutica da Tradição ou Crítica das Ideologias? O debate entre
Hans-Georg Gadamer & Jürgen Habermas.
31
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Ciência, Técnica e Arte: O desafio da pesquisa social. p. 25 e
segts. [grifos da autora]
32
ŽIŽEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. p.182.
33
Como escreve Žižek, esse é o momento em que “o contínuo se rompe, onde se aniquila a textura da
história prévia, a dos vencedores, e onde, retroativamente, através do sucesso da revolução, todos os
‘atos falhos’, todas as tentativas malogradas do passado, que funcionavam no texto vigente como traço
vazio e desprovido de sentido, são resgatadas, recebem sua significação.” op.cit. p.185.
37
34
Mundo da Vida é citado aqui a partir da apreensão habermasiana do conceito, que se refere ao “lugar
transcedental” do indivíduo, no qual ele está sempre inserido, em relação ao qual é impossível manter
uma distância. “O ‘mundo da vida’ tanto forma o horizonte como o pano de fundo para a comunicação
quotidiana e a experiência quotidiana. O ‘mundo da vida’, enquanto pano de fundo e contexto pouco
temático e levado por acréscimo, forma o pólo oposto para um saber tematizado, que é presenciado,
dentro do seu horizonte, e exposto, sempre de novo, ao risco de dissenção, do poder-dizer-não. Já na
comunicação quotidiana combinamos as nossas enunciações com as exigências de validade, possíveis
de criticar, que transcendem todos os padrões provinciais enquanto meras exigências. Com isto, as
tensões sentidas entre as contingentes limitações e as idealizadoras pressuposições da práxis do
entendimento mútuo invadem o ‘mundo da vida’ propriamente dito – idealizações, essas, que na
realidade se põem em evidência, com totais e antes de mais, nas formas comunicativas das
argumentações. O contrapropendente jogo mútuo entre aquele saber explícito, que depende de
idealizações, e aquele saber de segundo plano, que absorve os riscos, não se pratica, tal como Husserl
julgava, na concorrência entre o saber empírico da ciência, dos especialistas, e as certezas pré-teóricas.
O ‘mundo da vida’ permanece referenciado, muito mais, como pano de fundo e horizonte, numa práxis
quotidiana da vida cujos pressupostos de comunicação dependem, prontamente, de idealizações.”
HABERMAS, Jürgen. Edmund Husserl sobre o “mundo da vida”, filosofia e ciência. p.41
35
Acreditamos que a palavra “explicitar” é a que melhor se encaixa para descrever àquilo que faremos no
decorrer da tese, pois concordamos com posturas como a Slavoj Žižek que no momento atual não se
trata mais de “desvelar”, “descobrir”, “desmistificar”, “desalienar” etc. O problema é o do exercício
hegeliano de negação da negação daquilo que está aí: a aparência. Esse difícil exercício, como bem
assinala Žižek, “não nos leva a uma mera e simples afirmação: assim que as coisas (começam a)
parecer, não só parecem o que não são, criando uma ilusão, como também podem parecer apenas
parecer, ocultando o fato de que são o que parecem ser.” ŽIŽEK, Slavoj. Visão em paralaxe. 48. Nesse
sentido, assumimos que não existem dois pontos de vista (o bem e o mal), mas sim, que existe um
ponto de vista (que na tese mostrar-se-á como o discurso da saúde mental) e o que foge a ele, um outro
ponto de vista que é produzido pelo vazio do que não pode ser visto pelo primeiro ponto de vista (e que
pretendemos explicitar com as narrativas de história de vida de pessoas que organizam suas identidades
a partir da personagem doente mental).
38
gênese de nosso objeto, uma vez que diferentemente das patologias orgânicas em que o
pedido de diagnóstico e tratamento segue o princípio do alívio do sofrimento para o
doente, as chamadas doenças mentais surgem de uma reivindicação de membros da
sociedade que não suportavam o comportamento diferente de determinado membro da
sociedade36.
A escolha pela narrativa de história de vida como elemento empírico utilizado na
tese segue a proposta de pesquisa de identidade inaugurada há 21 anos por Antonio da
Costa Ciampa37, n’A Estória do Severino e a História da Severina. Nesse trabalho, a
história de vida foi um instrumento apropriado para obter as informações necessárias
para compreender como a identidade é metamorfose em busca de emancipação.
Seguindo uma certa influência sartreana38, principalmente a explanação que este faz do
método progressivo regressivo desenvolvido no trabalho Questão de método, Ciampa
nos ensina que a narrativa de história de vida pode demonstrar como o homem se
caracteriza antes de tudo por sua capacidade de superação das circunstâncias dadas, pela
capacidade de criar projetos para si e que isso permite compreender se o resultado de
suas ações promove uma realidade nova e provida de significação própria, em lugar de
ser muito mais do que simplesmente uma média.
Acreditamos que a utilização da narrativa de história de vida possibilita o
surgimento da personagem do narrador, que, segundo Benjamin, estaria em vias de
extinção, há muito esquecido e sufocado, por trazer as contradições do sistema e por
apontar o mal-estar cotidiano, “como se estivéssemos privados de uma faculdade que
nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”39. E uma vez
que não descrevemos o passado simplesmente, mas o articulamos com nosso presente e
projetos futuros, também podemos dizer que essa ação aparece como uma forma de
resistência à massificação e à serialidade. A importância da narrativa encontra-se na
possibilidade de que aquele que conta a história tem de nos mostrar os restos, rastros, de
sua individualidade. Como assinala Jeanne Marie Gagnebin40, a narrativa de história de
36
Cf. SZASZ, Thomas. Cruel compaixão; Idem. Mito da doença mental; Idem. Fabricação da
Loucura e Ideologia e Doença Mental.
37
Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de
Psicologia Social. e CARONE, Iraí. Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da
Costa Ciampa: A estória do Severino e a história da Severina.
38
Cf. SARTRE, Jean-Paul. Questão de Método. p. 155 et seq..
39
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. p. 198.
40
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, História, Testemunho.
39
[é aquele] que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que
suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não
por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão
simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento do indizível, somente
essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo
infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, inventar o presente.42
41
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, História, Testemunho. p.55. [grifos da autora]
42
Ibidem. p.57.
43
ALBERTI, Verena. História Oral: a experiência do CPDOC. p.06.
40
obviamente, não significa dizer que ao adotarmos o uso de narrativas de história de vida
como instrumento é ter em mãos todas as possibilidades de interpretação e análise.
Afinal, faremos o estudo de três narrativas em nossa tese, o que levaria alguns
pesquisadores a questionar a generalidade das análises realizadas. A respeito dessa
última colocação, inclusive, é importante adiantar que na análise da identidade proposta
por Ciampa44, que resgata a lógica hegeliana45, o universal materializa o universal, na
unidade do particular. Iraí Carone46, ao realizar uma análise da tese de doutorado de
Ciampa, explora essa questão da generalização e escreve:
44
CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de
Psicologia Social. p.127.
45
HEGEL, Georg W. F. Princípios de filosofia do Direito. p.15.
46
CARONE, Iraí. Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa: A
estória do Severino e a história da Severina.
47
Ibidem. p.12-13.
48
LANE, Silvia T. M. Prefácio: A estória do Severino e a História da Severina. p.10.
49
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. p.36.
41
os eventos não só acontecem por conta de todas as coisas que o indivíduo vive, mas
sim, por conta de determinados acontecimentos e dos significados que estes adquiriram
no decorrer do tempo.“É a interpretação, o sentido que atribuímos aos fatos, que os faz
existir como tais”50.
Talvez nem fosse preciso dizer que não temos a pretensão de descrever uma
objetividade tal como ela é, pois acreditamos que nunca nos aproximaremos da
realidade pura, pois essa não existe. Como escreve Slavoj Žižek, o “Materialismo não é
a afirmação direta de minha inclusão na realidade objetiva (...); ele reside, antes, na
torção reflexiva por meio da qual e me incluo na imagem constituída por mim”51.
Assume-se na apropriação desse instrumento que a realidade que vemos nunca é
“inteira”, não somente porque grande parte dela me escapa, mas porque existe uma
opacidade inerente que indica minha inclusão nela. Opacidade que nos leva a acreditar
ser mais interessante o instante rememorado do que uma história de vida linear, uma vez
que se compreendemos a identidade como a articulação de várias personagens, o tempo
e a memória também devem ser entendidos como uma articulação de muitos instantes.52
Nos instantes, momentos focalizados pelos indivíduos nas narrativas, podemos
entender como cada personagem que constitui a identidade dos entrevistados foram
sendo reconhecidas, negadas ou repostas, o que reforça a proposição de Ciampa de que
“quando um momento biográfico é focalizado, não é para afirmar que só aí a
metamorfose está se dando; é apenas um recurso para lançar mais luz no episódio onde
é mais visível o que se está afirmando”53. Novamente a contribuição de Ciampa para a
pesquisa de identidade torna-se explícita, na medida em que este autor supera a prática
da mera descrição identitária, cujo desafio era obter o maior número de informações
possíveis e passa a ser a busca pelos significados implícitos presentes na construção
dessa identidade, que é entendida como metamorfose, transformação. A ênfase de nossa
investigação como será verificado, está na importância da ação individual autônoma —
em parte à margem (ou não diretamente ligada à) da instituição psiquiátrica, que
funciona na atualidade como instituição socializadora e político-cultural tradicional —
como geradora de novas estratégias de sobrevivência, novos universos de sentido. Ao
50
AUGRAS, Monique. História Oral e subjetividade. p.36.
51
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.32.
52
Aqui nos referimos a uma aproximação da teoria de identidade com a teoria dos instantes de Roupnel,
trabalhada no texto de BACHELARD, Gaston. La intuición del instante.
53
CIAMPA, Antonio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: Um ensaio de
Psicologia Social. p.141.
42
54
Tal como assinalado por José Luiz Aidar Prado, para quem é necessário um novo tipo de discurso, onde
o espaço político se alteraria, a partir de um ato comunicativo, “do político, na esfera fetichizada da
ordem instrumental, seu modo de possibilidade como acontecimento.” PRADO, J. L. A. Brecha na
comunicação: Habermas, o Outro, Lacan. p.267-268.
43
55
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa. Volumes I e II
56
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe.
57
SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da
Experiência.
58
FEYERABEND, Paul. Contra o Método.
PRIMEIRA PARTE
ITINERÁRIO HISTÓRICO
I. PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA E SAÚDE MENTAL: AS
METAMORFOSES DA CONCEPÇÃO DE DOENÇA MENTAL E SUA
RELAÇÃO COM A SOCIEDADE DA INSATISFAÇÃO ADMINISTRADA
Walter Benjamin1
E mesmo que autores como Eric Hobsbawn digam que “a descoberta de que
estávamos enganados, de que talvez não tenhamos entendido algo direito, deve ser o
ponto de partida de nossas reflexões sobre a história”8, o sentimento de época reinante
parece ser o de pessimismo que fez com que outros autores como Francis Fukuyama9
proclamassem o fim da história e o início da pós-modernidade, que expressa a
consciência de uma burguesia que se vê vencedora e com a possibilidade de finalmente
transformar o tempo em repetição infinita de sua dominação. O que para Michael
Löwy10, por exemplo, apresenta um perigo duplo: “transformar tanto a história do
passado – a tradição dos oprimidos – quanto o sujeito histórico atual – as classes
dominadas, novos destinatários dessa tradição – ou seja, em instrumento nas mãos de
classes dominantes”.
Inserido nesse cenário, o próprio conhecimento, construção humana que aparece
na tentativa de dominar a natureza e que por sua vez acaba por dominar o próprio
humano, afasta-se de sua origem histórica e corre o risco de parecer, ele mesmo, o
conhecimento, uma natureza, como se sua origem fosse ex-nihilo, tornando-se
instrumento de administração da realidade. O que nos leva a arriscar a dizer que essa
negação da história, que temos visto em muitas proposições teóricas, é acompanhada da
empatia com os dominadores e que inseridos nesse pano de fundo chegamos ao ponto
em que o nosso pensamento prefere muito mais confirmar seu saber a explorar aquilo
que o contradiz; ou que prefere mais as respostas do que as perguntas. Não percebemos,
ou fingimos cinicamente não perceber, que as discussões acerca da exclusão são apenas
parte da retórica que reforça a exclusão, que as personagens representadas como
mesmidade são na verdade modulações da mesmice11 de identidades fetichizadas e que
talvez os próprios movimentos sociais, cooptados pelo Capital e/ou Estado, estejam
trabalhando contra o seu projeto emancipatório inicial12.
Slavoj Žižek, de quem nos valemos de algumas considerações, denuncia esse
perigo quando trata de discutir a falência do estado de bem-estar social e a nova
configuração de um Estado que passa agora a transformar em caso “típico”
determinadas personagens tidas como problemáticas (a mãe solteira negra, no exemplo
8
HOBSBAWN, Eric J. O presente como história: Escrever a história de seu próprio tempo. p.112.
9
FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem.
10
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de
História”. p.66. [grifos do autor]
11
Discutiremos essa diferença com maior profundidade na segunda parte da tese.
12
ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.11 et seq.
49
13
Iremos apresentar e discorrer sua utilização ainda nesse capítulo.
14
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p.39.
50
15
SZASZ, Thomas Stephen. A retórica da Rejeição. p.61.
16
Cf. ALMEIDA FILHO, Naomar. For a general theory of Health: Preliminary epistemological and
antropological notes. Nesse ensaio o autor nos mostra que na língua inglesa encontram-se vários
termos: disease, que corresponderia à patologia; illness, à enfermidade; malady, à moléstia; sickness, à
doença; disorder, a transtorno, sendo que conforme a doutrina adotada pelos autores essas mesmas
palavras aparecem com sentidos diferentes.
17
Ao consultar diferentes dicionários encontramos as seguintes definições: DORSCH, Friedrich,
HÄCKER, Hartmut & STAPF, Kurt-Hermann. Dicionário de Psicologia Dorsch. Loucura é próxima
de alienação: Alienação: alienation, termo para designar uma sensação vaga, que tudo parece estranho
e não familiar. Termos semelhantes são: desrealização, despersonalização, síndrome de
despersonalização. Ibidem. p.30 Já Loucura: psicose; perturbação dos processos mentais, onde ocupam
o primeiro plano representações delirantes e ilusões (patológicas) dos sentidos. Doença mental em
sentido estrito. (em Medicina Legal) estado em que, pela psicose, faltam consciência e responsabilidade
das próprias ações e suas conseqüências. Ibidem. p.541; ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
Filosofia. Alienação: 1) na linguagem comum significa perda ou posse, de um afeto ou dos poderes
mentais. 2) idade média; grau de ascensão mística em direção a Deus; Rousseau como cessão de
direitos naturais à comunidade, efetuada com o contrato social; Hegel como alhear-se à consciência de
si mesma, em Marx como distanciamento do homem de sua consciência das coisas que produz. (p. 26)
Loucura: dois modos diferentes: 1º. Como inspiração ou dom divino, 2º. Como amor à vida e tendência
a vivê-la em simplicidade; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. A Alienação é ato ou efeito de
alienar(-se); alheação, alheamento, alienamento (seguida de uma descrição dos conceitos listados
anteriormente nos dicionários de filosofia e psicologia). Loucura é explicada como um distúrbio,
51
permanece enfeitiçada pela “ideologia da saúde perfeita”, tal como foi postulada por
Lucien Sfez18. Lembremos também que essa mesma polissemia serve de referencial
para disciplinas acadêmicas que explicam a anormalidade psíquica nos currículos de
graduação em Psicologia, Medicina, Enfermagem, Terapia Ocupacional etc.; assim
como esses conceitos são utilizados como base para a classificação e faturamento do
“doente mental” (Código Internacional de Doenças – CID1019 e Diagnostic and
Statistical Manual – DSMIV20) pelo Ministério da Saúde; bandeira nos movimentos de
Luta Antimanicomial; na própria linguagem cotidiana para apontar as contravenções
frente às formas de conduta convencionais. Fenômeno que nos remete às proposições
apresentadas por Jürgen Habermas, para quem quando um discurso científico, com sua
forma objetivante, passa a imperar na sociedade estamos diante de uma “colonização do
mundo da vida”21, resultante da pressão de imperativos econômicos e burocráticos que
introduzem distorções reificantes em nossa compreensão individual e coletiva.
alteração mental caracterizada pelo afastamento mais ou menos prolongado do indivíduo de seus
métodos habituais de pensar; de seu sentir e agir; também é relacionado à paixão, a quando as coisas
fogem do controle pessoal e a atitude, comportamento que denota falta de senso, de juízo, de
discernimento. Os outros conceitos somente podem ser articulados conjuntamente, uma vez que
nenhuma delas encontram-se unidas no dicionário: a palavra Mental, na rubrica referente a psiquiatria
diz respeito ao psiquismo, às características psíquicas de um indivíduo; Doença é a alteração biológica
do estado de saúde de um ser (homem, animal etc.), manifestada por um conjunto de sintomas
perceptíveis ou não; enfermidade, mal, moléstia (em sua extensão é compreendida como alteração do
estado de espírito ou do ânimo de um ser); Patologia qualquer desvio anatômico e/ou fisiológico, em
relação à normalidade, que constitua uma doença ou caracterize determinada doença; Transtorno,
conceito da moda associado à mente: no dicionário é descrito como ato ou efeito de transtornar,
situação que causa incômodo a outrem (contratempo; situação imprevista e desfavorável; contrariedade,
decepção); Saúde, finalmente, é concebida em sua característica tradicional: estado de equilíbrio
dinâmico entre o organismo e seu ambiente, o qual mantém as características estruturais e funcionais do
organismo dentro dos limites normais para a forma particular de vida (raça, gênero, espécie) e para a
fase particular de seu ciclo vital (estado de boa disposição física e psíquica; bem-estar).
18
Lucien Sfez defende em seu livro A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia, a tese de que
vivenciamos o surgimento de uma ideologia, mais global que a comunicação, onde prega-se que seria
possível alcançarmos uma nova utopia em que a saúde seria conquistada plenamente. Embasa suas
considerações nas teorias da comunicação e nos avanços da engenharia genética. Em uma das
passagens desse trabalho Sfez escreve que “o inimigo não está mais no exterior, não tem mais de ser
combatido ou civilizado. Não é mais o selvagem, o negro, o amarelo, o judeu, o proletário para o
burguês, o burguês para o proletário. O inimigo está por toda parte e em lugar nenhum, anônimo, sem
fronteiras, no eletronicon sem rosto como na camada esburacada de ozônio, na droga e no colesterol.”
Ibidem. p.25.
19
Um Simpósio da Organização Mundial de Saúde realizado em Londres, 2001, concluiu que as
próximas edições do código estariam suspensas até 2010.
20
DSM (manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais) é a classificação elaborada pela
American Psychiatry Association. Tem como objetivo a unificação de critérios descritivos com fins de
diagnóstico e estatística dos transtornos mentais. A primeira edição data de 1952.
21
Daremos maior atenção às proposições de Habermas no segunda parte da tese. A discussão acerca da
ciência e técnica como ideologia e colonização do mundo da vida podem ser aprofundados nos
trabalhos: Cf. HABERMAS, J. Técnica e ciência como “Ideologia”; Idem. Crise de legitimação no
capitalismo tardio; e Idem. Teoria de la acción comunicativa. 2 volumes.
52
Essa polissemia frente ao conceito, inclusive, nos levou a abrir mão de querer
encontrar um conceito que abarcasse todos os sentidos que a concepção de saúde mental
poderia representar e escolhesse utilizar simplesmente os conceitos “doença mental” e
“Loucura” para identificar a utilização de um discurso “técnico-psicológico” —
incluímos aqui os discursos psicanalítico, psicológico e psiquiátrico acerca do ideal de
normal e patológico, para diagnosticar as expressões identitárias não-convencionais,
indesejadas. É importante assinalar que ao utilizar os dois conceitos não estamos
deflacionando sua importância ou ignorando o fato de que pessoas possam ser
diferentes umas das outras, que possam tomar atitudes não esperadas ou que algumas
vezes necessitem de medicamentos para diminuir sentimentos de angústia, solidão, ou
deixar de ver e ouvir vozes, pelo contrário, defendemos que as diferenças individuais e
as formas de sofrimento devem ser reconhecidas e acolhidas como problema a ser
trabalhado.
Ficará explícito no decorrer do texto que o que queremos apontar com o uso
desses conceitos ao longo da tese é a cooptação a priori dessas expressões humanas
pelo discurso da instituição psiquiátrica, inaugurado desde o alienismo de Philipe
Pinel22 e ainda hoje utilizado pela saúde mental e sua utilização no reconhecimento
perverso dos indivíduos — que assim como em outras políticas de identidade atuais
devem submeter-se ao diagnóstico (abrir mão de sua totalidade) como pré-condição
para a inclusão como “cidadão” em programas governamentais — explicitando a
presença de uma lógica disciplinar na qual esses indivíduos passam a orientar “seu
modo de agir a partir de uma lógica de anulação paradoxal de contradições e de
amaciamento de contrários exigida pela racionalidade das sociedades capitalistas
contemporâneas”23.
Uma última advertência antes de encerrarmos nossa apresentação se refere à
maneira como nos apropriamos da história, uma vez que não apresentaremos nesse
22
O Traité Médico-Philosophique sur L’Aliénation Mentale ou La Manie, publicado em 1800 na França,
será a bíblia do alienismo e dará a Philipe Pinel o título de pai do alienismo. Muitas das biografias
descreviam Pinel como um herói que literalmente arrancou as correntes e libertou os alienados do
encarceramento. Todavia, sabe-se hoje que esses gestos nunca existiram, foram construídos após sua
morte por pessoas próximas, que idealizavam sua atuação nos manicômios. Se existiu algum mérito no
gesto de Pinel é, segundo Foucault, o de ter introduzido, junto a William Tuke, “uma personagem,
cujos poderes atribuíam a esse saber apenas um disfarce ou, no máximo, sua justificativa.”
FOUCAULT, Michael. História da Loucura na Idade Clássica. p. 498. Uma análise mais
aprofundada da desmistificação do gesto de Pinel encontra-se em WEINER, Dora. Le geste de Pinel:
The history of a psychiatric myth. p.232-247. Para maior aprofundamento das idéias de Pinel sugerimos
conferir: PINEL, Philippe. Tratado médico-philosófico sobre a alienação mental ou a mania.
23
SAFATLE, Vladimir. O cinismo e a falência da crítica. p.24.
53
capítulo uma história da loucura. Por outro lado, poderá ser encontrada ao longo do
texto diversas indicações de ótimas tradições que realizaram o estudo aprofundado
desse tema. Nosso foco histórico estará na gênese e desenvolvimento da concepção
dicotômica normal/patológico e da identidade pressuposta do doente mental —
materializada nas políticas e normas legitimadas pelas diferentes formas de governo
experienciadas no Brasil (aqui pediremos paciência para o leitor, pois retornaremos até
o final do século XVIII) — e nas vicissitudes de uma Psicologia Social que sempre
manteve relações com essa temática. Certamente ao utilizar esta estratégia correremos o
risco de apresentar limites e falhas em nosso percurso, todavia, voltamos a dizer que
não nos propomos aqui a fazer uma nova história da loucura ou da psiquiatria.
24
VIANNA, Oliveira. Pequenos Estudos de Psychologia Social. p.08-09.
25
São raros os relatos sobre as formas de diagnóstico e os métodos de tratamento desse período. A
informação que pudemos encontrar é extremamente sucinta e encontra-se em um livro de história da
54
produções ou preocupações com o que seria denominado como alienação nos primeiros
300 anos da colônia portuguesa26.
A ausência de registros, ao nosso ver, pode ser atribuída ao tipo de atenção que
era dada a esse tipo de indivíduos pelas instituições religiosas antes da transferência da
Corte para o Brasil, que até então era apenas uma colônia de exploração praticamente
abandonada. Até meados do século XVIII, a ocupação do território brasileiro era feita
por meio da iniciativa privada dos colonos. “Enquanto os interesses políticos e
econômicos desses colonos coincidiram com os do reino, as cidades se comportaram
com a expectativa do Estado”27. Junto à expansão das cidades e ao surgimento de uma
elite formada por negociantes, militares, funcionários públicos, religiosos e outros que
se opunham à extorsão portuguesa, aparecem as ações de sabotagem econômica e
rebeldia, fazendo com que Portugal decida dominar a situação, chegando a transferir o
Vice-Reinado da Bahia para o Rio de Janeiro.
Com a chegada da corte Portuguesa em 1808, a vida privada dos indivíduos será
associada ao destino político de uma determinada classe social, sendo assim, o
imperativo de controle da “barbárie” será ainda maior. Sabia-se que não era possível
contar com a Igreja (durante todo período colonial o clero defendeu seus próprios
interesses e foi um opositor em várias ocasiões), nem com a corporação militar (além do
perigo de armar a população, ocorreram vários episódios em que os militares se
envolveram em disputas políticas contra o Governo português). Perante essa fragilidade
política no controle da população, causada pela falta de apoio de instituições aliadas que
tivessem legitimação frente à sociedade, a instituição médica encontrou a brecha
esperada para tornar-se instituição de referência, como nos mostra Jurandir Freire
Costa28:
psiquiatria produzido por cerca de 40 historiadores franceses, cada um focando uma etapa histórica ou
ramo da psiquiatria. Nele atribui-se as casas de doidos das Santas Casas de Misericórdia da Bahia como
os primeiros dispositivos de atenção aos indesejáveis, sendo que o primeiro grande asilo somente
surgirá após 1822. Cf. POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la
Psiquiatría. p.462 et seq.
26
A ausência de registros também foi reforçada quando tomamos contato com o belíssimo trabalho de
José Souza e Agostinho Lima que em 1900 publicaram um livro em dois volumes onde apresentavam
resenhas de todas as publicações brasileiras e textos importantes desde a colonização até 1900. O
segundo capítulo é dedicado ao balanço do desenvolvimento das ciências médicas no Brasil. Cf.
SOUZA, José Eduardo Teixeira de & LIMA, Agostinho José de Souza. O livro do centenário (1500-
1900).
27
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.20.
28
Ibidem. p.28 e segts.
55
A medicina que, desde o início do século XIX, lutava contra a tutela jurídico-
administrativa herdada da Colônia, deu um largo passo em direção à sua
independência, aliando-se ao novo sistema contra a antiga ordem colonial. Este
progresso fez-se através da higiene, que incorporou a cidade e a população ao
campo do saber médico. Articulando antigas técnicas de submissão, formulando
novos conceitos científicos, transformando uns e outros em táticas de
intervenção, a higiene congregou harmoniosamente interesses da corporação
médica e objetivos da elite agrária.29
Com um novo e forte aliado, o Estado sabia pela experiência européia que para
tal empreitada não bastava apenas criar formas de controle dos corpos mais rígidas, ou a
criação de leis, tampouco inculcar ideológica, filosófica ou politicamente idéias que
fizessem os indivíduos mudarem suas visões de mundo. Era preciso colonizar o
imaginário da esfera privada e para que essa colonização tivesse efeito seria necessário
que ela operasse em um outro nível. Primeiramente, despolitiza-se o mundo da vida, o
cotidiano, o senso comum, e apresenta-se uma nova leitura acerca dos seus problemas,
ou seja, inverte-se a preocupação social e direciona-se a mesma preocupação para o
indivíduo, descrito de forma fragmentada nos discursos sobre o corpo, o sexo, a
subjetividade. Tal despolitização, por sua vez, não é possível sem um agente que seja
socialmente legitimado, o que não era o caso vivenciado até então. Lembremos que a
esfera pública brasileira havia se tornado um foco permanente de contestação do poder
real desde o século XVIII.
O meio utilizado para essa colonização do imaginário foi a imprensa, que não
por acaso chegou junto com a Corte portuguesa em 1808. Nem precisaríamos dizer aqui
como esta influenciará toda a formação intelectual no país30. Com a aliança entre o
Estado e a Medicina, começam a aparecer as primeiras publicações acerca da
normalidade e das patologias, “logo no primeiro anno da sua fundação, conhecem-se 37
publicações, no segundo (1809) 62, no terceiro (1810) 99, e até 1822 catalogou Valle
Cabral 1154 impressos varios das suas officinas saídas”31. A imprensa da Corte
publicará, em 1808, a primeira regulamentação especial do serviço sanitário e o
primeiro trabalho médico impresso no país. Em 182232 surge a primeira publicação
médica, no Estado do Maranhão, com o título de Folha Medicinal, que apesar desse
nome tinha como conteúdo da primeira edição uma forte discussão política. Em
29
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.28.
30
SOUZA, José Eduardo Teixeira de & LIMA, Agostinho José de Souza. A Imprensa. p.31 e segts.
31
Ibidem. p.34.
32
IDEM. As sciencias medico-pharmaceuticas. p.130.
56
33
POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la Psiquiatría. p.462.
34
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.16.
57
35
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. p.33.
36
SOUZA, José Eduardo Teixeira de & LIMA, Agostinho José de Souza. As sciencias medico-
pharmaceuticas. p.81.
37
O termo “ideal” aqui empregado poderia ser atrelado ao uso kantiano do termo, que quer dizer uma
idéia in individuo, ou seja, uma coisa individual só determinável ou só determinada através da idéia.
Ideal, ainda mais distante da realidade que a idéia, um protótipo, uma cópia, diretriz normativa de ação.
38
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.38.
58
A idéia de medicina social como ciência positiva ocupa nesse período um papel
político fundamental, o de ordenar o mundo da vida de uma forma que garanta o
progresso inevitável da sociedade. De forma emblemática, os trabalhos de José
Francisco Xavier Sigaud40 e Luiz Vicente De-Simoni41 expressam os desejos pelas
ações de contenção da desordem social. O primeiro autor criticou a falta de
providências para retirar das ruas os tipos populares que perambulavam pelas ruas da
cidade do Rio de Janeiro, indivíduos que “embuçados em grotescos andrajos excitam as
risadas dos viandantes, e provocam apenas um sorriso de compaixão de envolta com a
torrente de grosseiras injúrias e ridículos apítetos com que são amofinados”42, e o
segundo defendeu a criação urgente de asilos com seu ensaio enfático denominado A
importância e necessidade de um manicômio ou estabelecimento especial para o
tratamento dos alienados, publicado em 1839, que fundamentalmente defende os
princípios do tratamento moral como método eficaz no tratamento dos alienados.
Com a ajuda de autores como os citados anteriormente, o positivismo e o
eugenismo passam a ser as ciências primeiras, fazendo com que as epistemologias de
caráter mais metafísico sofram repressões, fato visível na reforma do ensino proposta
pelo ministro Benjamin Constant em 1891. Uma passagem da tese de Pereira Barreto
apresentada à faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1865, intitulada Teorias das
Gastralgias e das Nevroses em Geral, oferece uma ótima síntese do espírito de época,
em que o pressuposto básico é o mesmo para todo conhecimento científico: “todos os
fenômenos quaisquer, astronômicos ou físicos, químicos ou biológicos, sociais ou
39
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.38-39.
40
SIGAUD, José Francisco Xavier. Reflexões acerca do trânsito livre dos doidos pelas ruas da cidade
do Rio de Janeiro. p.559-562.
41
DE-SIMONI, Luiz Vicente. Importância e necessidade de criação de um manicômio ou
estabelecimento especial para o tratamento dos alienados. p.142-159.
42
SIGAUD, José Francisco Xavier. Op. cit. 560.
59
A população não seria doente porque era miserável. Pelo contrário, a miséria do
povo é que seria fruto tanto da doença, da escravidão do homem ao verme,
quanto da ignorância, plasma dos males que empobreciam a terra e
enfraqueciam o povo, fazendo-o mergulhar na incapacidade.44
77 negros e 41 mulatos. [O estado de] São Paulo tinha cerca de 2 milhões de habitantes,
com um percentual de: 30% estrangeiros, 11% negros e 13% mulatos”47. É importante
apontar um fato apresentado por Romero: nesse período São Paulo era descrita como o
despejo de loucos estrangeiros. “Clamava-se por maior rigor das autoridades, que
permitiam a entrada no país de tarados, débeis mentais, criminosos e prostitutas”48. E se
considerarmos que as internações nesses hospícios eram realizadas sem nenhuma
regulamentação até o final do século XIX, podemos inferir que muitos dos brancos
internados eram estrangeiros.
Na sociedade a qual o discurso técnico-científico exigia a implementação da
disciplina que garantiria a ordem e o progresso, a alienação tornou-se um conceito útil
para explicar a ruptura do equilíbrio individual e coletivo. Conceito que, por sua vez,
inicia o período de ampliação da ação do Estado na esfera privada que seguirá até
meados da Segunda Guerra Mundial. O tratamento moral, por sua vez, passou a ser
utilizado como intervenção científica para o controle e correção dos indivíduos não
convencionais repetindo a história dos países europeus. As causas da alienação passam
a ser relacionadas a fatores predisponentes — o clima, a sexualidade, a idade, o
temperamento, a profissão e o modo de vida — e às causas determinantes, ou seja,
fatores físicos (comportamentos hereditários de distúrbios patológicos) e emocionais
(devido a problemas familiares). Os fenômenos que mais despertam a atenção dos
médicos alienistas são o amor e a sexualidade, o ciúme, a tristeza ou melancolia. De
acordo com Massimi49, muitos dos autores enfatizam “a origem social da alienação
mental: os indivíduos que não conseguem acompanhar os movimentos rápidos do
progresso da civilização, sobretudo nas sociedades industrializadas, são mais sujeitos à
doença.” E como nos mostra Mariza Romero50, a medida para a normalidade segue uma
perspectiva estética:
47
POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la Psiquiatría. p.466. Tradução
nossa: “había, en 1895, 376 enfermos, distribuidos de la manera siguiente: 258 blancos, 77 negros y 41
mulatos. São Paulo tenía cerca de dos millones de habitantes, con um porcentaje de: 30% de
extranjeros, 11% de negros y 13% de mulatos.” Esta é a população do Estado, mais precisamente
2.282.279, segundo o Censo de 1900. A cidade tinha 239.820 habitantes.
48
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.93.
49
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.53.
50
ROMERO, Mariza. Op. cit. p.90.
61
51
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.92. [grifos
da autora]
52
Cf. ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O Alienista.
53
Guilherme Messas escreve que Teixeira Brandão foi a principal figura do período inicial da psiquiatria
brasileira, sua influência era tamanha que elegeu-se deputado para aprovar o Decreto 1.132 de 1903.
Cf. MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento
legislativo brasileiro em saúde mental. p.73 e segts.
62
54
RODRIGUES, Raimundo Nina. O alienado no direito civil brasileiro: apontamentos medico-legaes
ao projecto de código civil.
55
Ibidem. p.228.
56
Ibidem. p.231.
57
MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento
legislativo brasileiro em saúde mental. p.66.
58
BRASIL. Decreto n.º 1132 - de 22 de dezembro de 1903: Reorganiza a assistencia a Alienados.
Essa lei será inspirada na legislação francesa sobre os alienados de 1838, promulgada por Jean-Étienne
Esquirol (fiel discípulo de Pinel).
59
Respectivamente: Decreto n.º 206. Aprova as instruções a que se refere o Decreto 142A, de 11 de
janeiro último e cria a Assistência Médica e Legal de Alienados. 15 fev. 1890; BRASIL. Decreto
n.º 508. Aprova o regulamento para a assistência Médico-Legal de Alienados. 21 jun. 1890;
BRASIL. Decreto n.º 896. Consolida as disposições em vigor relativas aos diferentes serviços da
Assistência Médico-Legal de Alienados. 29 jun. 1892.
63
A idéia de que o progresso passava pela qualidade da raça foi adotada pela
maioria dos nossos intelectuais e, após a Proclamação da República, tornou-se
praticamente uma obsessão definir o “tipo nacional” que garantisse o rumo à
civilização, fazendo frente às visões pessimistas que davam o país como
60
BRASIL. Decreto n.º 206. Aprova as instruções a que se refere o Decreto 142A, de 11 último e cria
a Assistência Médica e Legal de Alienados.
61
Cf. Idem. Decreto n.º 508. Aprova o regulamento para a assistência Médico-Legal de Alienados.
62
Lembremos que o Decreto 791, publicado em 1890, criou a Escola Profissional de Enfermeiros e
Enfermeiras dentro do Hospício Nacional de Alienados.
63
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.39.
64
Cf. POSTEL, Jacques & QUÉTEL, Claude. (orgs) Nueva Historia de la Psiquiatría. p.467 e segs.
65
Cf. MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento
legislativo brasileiro em saúde mental. p.75 e segts.
64
66
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.112. [grifos
nossos]
67
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. p.120.
68
BARRETO, Luís Pereira. As três filosofias. In, BARROS, R. S. M. Obras Filosóficas de Luís Pereira
Barreto. p.128
65
A influência dessa nova ideologia dominante pode ser vista no caso da criação
da Liga Brasileira de Higiene Mental73, em 1923, na cidade do Rio de Janeiro, por
Gustavo Riedel. A instituição trabalhava com os aportes da psicologia e mantinha um
laboratório e um “Seminário Brasileiro de Psicologia” que se reunia semanalmente e
anualmente organizava as “Jornadas Brasileiras de Psicologia”. O objetivo inicial da
Liga era pensar a melhoria da assistência ao doente mental. Contudo, a partir de 1926,
69
A proposta teórica de Teixeira Brandão era de certa maneira original, uma vez que desenvolve sua
própria classificação das doenças mentais, em um momento histórico cuja teoria Kraepeliniana era
hegemônica mundialmente. Cf. BRANDÃO, João Carlos Teixeira. Elementos fundamentaes de
psychiatria e clinica forense.
70
MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das Leis e as Leis do espírito: a evolução do pensamento
legislativo brasileiro em saúde mental. p.77.
71
A criação do DNSP, marco legislativo que estabeleceu o regime entre Estado e indivíduo deu-se com o
Decreto 3.987. 2 de jan., 1920. Entre as atribuições desse novo órgão, estavam: “a) os serviços de
hygiene no Districto Federal que deverão abranger a prophylaxia geral e específica das doenças
transmissiveis, a execução de providencias de natureza, agressiva ou defensiva, as que tiverem por fim
a hygiene domiciliaria, a policia sanitaria das habitações privadas e collectivas, das fabricas, das
officinas, dos collegios, dos estabelecimentos commerciaes e industriaes, dos hospitaes, casas de saude,
maternidade, matadouros, mercados, logares ou logradouros publicos, hotéis, restaurantes e fiscalização
dos gêneros alimenticios.”
72
BARRETO, Jubel. O umbigo da reforma psiquiátrica. p.130-131.
73
Decretada instituição de utilidade pública pelo Decreto 4.778 de 27 de dez. de 1923. De acordo com
Mário Yahn, “As Ligas acabavam por se reduzir a um ambulatório, onde eram atendidos neuróticos e
psicóticos menos graves, que recebiam, especialmente, tratamentos medicamentosos.” Cf. YAHN, M.
Higiene Mental. p.40.
66
esse objetivo foi cedendo lugar para a ideologia eugênica, a profilaxia e a adaptação dos
indivíduos por meio da educação. “A preocupação transferiu-se do indivíduo ‘doente’
para o ‘normal’, da cura para a prevenção, ampliando seu raio de ação para a sociedade
como um todo, definindo a ação psiquiátrica como prática higiênica, apoiada na noção
de eugenia”74. Inicia-se o combate ao alcoolismo, à prostituição, ao jogo e ao crime.
Estes se tornaram temas de destaque no interior da Psiquiatria, que passou a articular
doença mental e criminalidade, com base na teoria da degenerescência. Sendo que o
auge desse higienismo eugênico na legislação brasileira ocorre em 1927, com a
publicação do Decreto 5.14875, de 10 de janeiro de 1927, que passou a considerar como
“assistência aos psicopatas” as ações que até então eram nomeadas como “assistência
aos alienados”. Já havia sido importada dos portugueses uma leitura psiquiátrica que
possibilitava associar loucura e crime, tais como o Manual de Enfermidades Mentais, de
Benedict Morel e Os alienados nos tribunais e a loucura, de Cesare Lombroso, que
reforçavam o argumento “do determinismo biológico quanto aos papéis desempenhados
pelos autores e seu ambiente: os atores obedecem à sua natureza inata”76.
E tal como propunha Nina Rodrigues, aqueles indivíduos que não se adequassem
deveriam ser vistos como ameaças sociais e deveriam ser retirados da sociedade,
independentemente de sua raça, ainda que por razões diferentes: “os negros porque
eram historicamente defasados em relação a ela, os brancos por não terem se adaptado
às normas de conduta que eles próprios produziram”77. Essa forma de interpretação
possibilitará uma arbitrariedade em relação ao que seria considerado crime, imputando
ao criminoso a etiologia da criminalidade associada à idéia da mentalidade primitiva,
isentando assim, a influência das condições sociais na construção do criminoso, ao
mesmo tempo que a sociedade era entendida como vítima do indivíduo criminoso, o que
referendava a exclusão dos degenerados e a regeneração dos indivíduos.
74
ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A Psicologia no Brasil: Leitura histórica sobre sua
constituição. p.50.
75
Cf. BRASIL. Decreto 5.148. Reorganiza a Assistência a Psicopatas no Distrito Federal. 10 de jan.,
1927.
76
GOLD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. p.135.
77
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil.
p.142.
67
A sua adaptação ao real é nulla. (...) é o pensamento que não busca a adaptação
á realidade; tem as suas leis próprias, que só dizem respeito ao indivíduo,
esquecido completamente da vida exterior, despida, para o interiorizado, de
qualquer interesse.80
78
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil.
p.141-142.
79
Arthur Ramos foi discípulo de Nina Rodrigues e pode ser considerado um dos mais importantes e
veementes defensores da teoria da degenerescência no Brasil. Produtor de várias obras que procuravam
enfocar a inferioridade racial e a degeneração psíquica, assim como as formas de expressão afro-
brasileiras, vistas a partir da concepção de manifestações primitivas, pode ser considerado um dos
pioneiros da Psicologia Social no Brasil, embora autores como Mariza Corrêa (Op. cit.), por exemplo,
digam que este reduziu ainda mais a teoria de seu mestre, caindo em distorções da própria teoria de
Nina Rodrigues, como simplesmente substituir os termos raça por cultura e mestiçamento por
aculturação.
80
RAMOS, Arthur. Loucura e Crime: Questões de Psychiatria, Medicina Forense e Psychologia
Social. p.16-17.
81
Embora tenhamos na literatura acadêmica uma propensão a indicar o trabalho de Arthur Ramos como
um marco histórico para a Psicologia Social, sua obra não foi a pioneira no país nessa área. Já haviam
sido publicados, em 1921, os Pequenos Estudos de Psychologia Social, de Oliveira Vianna e, em
1935, Psicologia Social, de Raul Briquet, que era catedrático da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo e professor de Psicologia Social da Escola Livre de Sociologia e Política de
São Paulo. Nesse último trabalho, como explica Briquet, foram reunidas as lições do curso de
Psicologia Social que ministrou no segundo semestre de 1933, na Escola Livre de Sociologia e Política.
Arthur Ramos foi responsável pelo segundo curso de psicologia social do Brasil, ministrado em 1935
na Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, experiência que resultou na escrita e publicação
de seu livro célebre publicado em 1936: Introdução à Psicologia Social. Dado o prestígio da Escola de
Obstetrícia, coube a Edgard Braga o primeiro livro que relacionava a articulação entre essa Psicologia
Social e as práticas de higiene e saúde. O livro, intitulado O homem errado, resultado da coletânea de
vários artigos publicados por esse último autor em 1936, foi muito divulgado e alcançou várias edições,
popularizando-se em todo o país, principalmente no Nordeste. Cf. COELHO, Maria Cecília Simões de
Oliveira. Edgard Braga: O jovem velho poeta das metamorfoses.
68
controle da sociedade. Sob sua orientação a psicologia social (até então amalgamada no
interior da medicina) pela primeira vez aparecerá como ciência diferenciada. Entretanto,
sua ação não aparecerá como crítica ao modelo adotado, pelo contrário, ela seguirá a
tradição inaugurada no país, positiva e normativa, como ciência auxiliar da Psiquiatria e
do Direito.
A importância dada a Arthur Ramos aqui não se deve apenas ao impacto de sua
Psicologia Social83, mas sim, à sua ação política a partir dessas concepções. Após ser
nomeado chefe da Sessão Técnica de Ortofrenia e Higiene Mental, por Anísio Teixeira,
em 193484, Arthur Ramos coloca em ação seu plano de higiene mental. E passa a ditar
os parâmetros de comportamento social sadio e doentio. Esse teórico orientou os adultos
a fugir das cartomantes e curandeiros — incentivando a procura do médico quando era
preciso alguma orientação —, a se adaptarem de bom humor a seu trabalho, a repousar
nas férias e a evitar o álcool e outros tóxicos. Às mães, lembrava, em primeiro lugar que
“a infância é a idade de ouro para a higiene mental” e que a “maior responsabilidade
dessa educação higiênica cabe às mães”. Um de seus conselhos célebres é assim
fraseado: “Dê à criança a maior liberdade vigiada”85.
82
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil.
p.283.
83
A Psicologia Social de Arthur Ramos segue o modelo apresentado originalmente por Floyd H. Allport,
que considerava o comportamento social e suas relações com o biológico. Arthur Ramos adota certos
conceitos freudianos, embora os “behavioriza” e individualiza. Sendo assim, fala de “motivações anti-
sociais” no lugar de pulsões instintivas, de “pulsões socializadas” no lugar de superego e substitui os
instintos descritos por McDougall por “reações nervosas”, determinadas pela herança biológica, mas
modificáveis pelo condicionamento social. É importante apontar aqui que a Psicanálise brasileira desse
período (embora com algumas tensões) também seguirá esse mesmo movimento de ajustamento, uma
vez que se deu sobretudo pela importação da leitura norte-americana da teoria freudiana.
84
Ano em que foi publicado o decreto que resistiu por mais tempo no campo da doença/saúde mental,
uma vez que somente foi reformado após a publicação da Lei de 6 de abril de 2001.O Decreto 24.559,
de 3 de julho de 1934, tinha como finalidade, como o próprio título nos mostra, dar “proteção à pessoa
e bens dos psicopatas”. Composto por 8 artigos, o Decreto marca uma forma de organização que tem
sua imagem melhor descrita no “O alienista” de Machado de Assis.
85
Maria Cecília Coelho lembra que desde os anos 20 desse período uma grande significativa de mão-de-
obra industrial era de mulheres e crianças, assim como, era o momento de organização e expansão da
indústria farmacêutica e de alimentos. Estas “provavelmente, como conseqüência, passam a produzir os
reclames inspirados nas matérias médicas. A Publicidade nos meios de comunicação – jornais, revistas
69
e mais rádio difusora.” Cf. COELHO, Maria Cecília Simões de Oliveira. Edgard Braga: o jovem
velho poeta das metamorfoses. p.76-78.
86
Discordando de Marina Massimi (1990; 1994; 2000) que vê nessas produções o desenvolvimento do
pensamento psicológico e a consolidação da psicologia como ciência independente, vemos nesses
trabalhos o fortalecimento e validação da medicina social, do higienismo e, principalmente, da
instituição psiquiátrica. As pesquisas realizadas nesse período eram relacionadas com neurologia,
psiquiatria, higiene mental, criminologia e psiquiatria forense. Dentre os autores encontrados que
discutem essas temáticas, podemos destacar: Henrique Roxo de Brito Belfort (1877-1969), autor da
tese “Duração dos Atos Psíquicos Elementares”, apresentada na Escola Médica do Rio de Janeiro em
1900, considerada o primeiro grande trabalho de psicologia experimental publicado no Brasil; Antonio
Austregésilo (1876-1960), neurologista atuante da Faculdade do Rio de Janeiro, que se destaca por sua
contribuição à psicoterapia, principalmente nas obras “A Cura dos Nervosos (1918)” e “Pequenos
Males (1919)”; Maurício Medeiros (1885-1966), possivelmente o primeiro brasileiro estudante de
psicologia experimental no exterior (Paris), autor da tese sobre os “Métodos em Psicologia”,
apresentada no Rio de Janeiro em 1907, fundador e diretor do Laboratório de Psicologia Experimental e
Clínica Psiquiátrica do Hospício Nacional; Miguel Álvaro Branca Osório, especialista em fisiologia
nervosa e psicofisiologia do Laboratório de Fisiologia do Rio de Janeiro.
87
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p.67-68.
70
considerado um dos pioneiros da psiquiatria social na América Latina, junto com seus
colaboradores, desenvolveu uma modalidade de atendimento aos alienados que era
extremamente revolucionária. Enquanto a hegemonia dos pesquisadores e técnicos
estavam voltados para as formas de controle da sociedade e melhoria das tecnologias
utilizadas nos manicômios, Ulisses Pernambucano pensou em criar
(...) serviços para doentes mentais não alienados, com hospital aberto; serviços
para doentes mentais alienados, com hospital para doentes agudos e colônia
para doentes crônicos; Manicômio Judiciário; Serviço de Higiene Mental, com
Serviço de Prevenção das Doenças Mentais e Instituto de Psicologia.88
88
ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A Psicologia no Brasil: Leitura histórica sobre sua
constituição. p.53.
89
Ibidem.
90
Embora Antunes na obra citada, ressalte que a pouca divulgação de seu pensamento e obra (talvez por
conta da ideologia dominante na época) não tenha permitido que tal movimento reconhecesse seu
trabalho. Mário Yahn escreve que “iam adiantados os trabalhos e as pesquisas, quando, em 1935,
modificou-se a orientação política do Governo Federal. Ulisses Pernambucano foi perseguido e o grupo
se desmembrou.” YAHN, Mário. Higiene Mental. p.42.
91
Vale a pena lembrar as duas obras de destaque desse período na Psicologia Social: “Psicologia Social”,
de Raul Briquet, e “Introdução à Psicologia Social” de Arthur Ramos. Nos dois trabalhos vemos uma
tentativa de leitura das principais tendências mundiais. Para o primeiro, a Psicologia Social deveria
evidenciar a relevância dos fatores psíquicos no entendimento do comportamento dos indivíduos, para
o segundo, era a ciência intermediária entre a psicologia e a sociologia, que poderia ajudar a desvelar as
deformidades hereditárias da personalidade, seguindo a influência de Nina Rodrigues. No seu livro,
Arthur Ramos destaca a obra de Floyd Allport, desde 1921 co-editor do Journal of Abnormal and
Social Psychology, que como o próprio título sugere, aproxima o social do anormal.
71
utilizada como discurso de autoridade que tentava a todo custo adequar os “bárbaros” ao
ideal de “civilização” que foi se delineando. Em 1923, por exemplo, o Hospital de
Engenho de Dentro montou seu Laboratório de Psicologia92, dirigido por Gustavo
Riedel, então Diretor da “Colônia de Psicopátas”. Com a mudança na direção, o
Laboratório foi assumido por Waclaw Radecki em 1924, que ampliou as atividades de
pesquisa e os cursos de especialização para médicos da Colônia93. Em 1932, o
Laboratório de Psicologia muda novamente sua direção, Nilton Campos que estudara
com W. Köhler na Alemanha permanece no cargo até 1934, quando assume o ensino da
Psicologia na Universidade do Brasil. Ainda no Laboratório de Psicologia formou
pesquisadores em várias áreas, desde a psicofisiologia até a Psicologia Social,
publicando em 1930, Psicologia da vida afetiva. A Psicologia, principalmente a
Psicologia Social, mesmo sendo ensinada como disciplina complementar dos cursos de
Biologia e Neurologia, ofereceria o suporte necessário para o projeto que viria a seguir,
uma vez que ainda não existiam as cátedras de Psiquiatria94. Todavia, o auge do
higienismo eugênico só se torna possível após a publicação do Decreto 24.559, de 3 de
julho de 193495, que será o ato legislativo que resistirá por mais tempo, sendo renovado
apenas pela lei de 6 de abril de 200196.
92
Este laboratório contava com instrumental capaz de medir sensações, reflexos, atenção, associações,
discriminação, memória etc. adquirido na França e Alemanha.
93
O Laboratório é transformado em 1932 pelo Decreto Lei n° 21.173, no Instituto de Psicologia da
Secretaria de Estado da Educação e Saúde Pública, onde deveria ser organizado o primeiro curso de
psicologia. “Todavia, provavelmente devido a problemas financeiros, o instituto sobrevive apenas
poucos meses, sendo incorporado, em junho de 1937 (Lei n° 452), à Universidade do Brasil.” Cf.
MASSIMI, Marina. História da Psicologia Brasileira: da época colonial até 1934. p. 66.
94
De acordo com Isaías Pessotti: “Até as gestões de Décio de Souza, em 1950, para se criarem cadeiras
de Psicologia nos cursos de Medicina, os médicos, nesse campo, eram autodidatas e mesmo o ensino de
Psiquiatria durava apenas um ano.” Cf. Pessotti, I. Dados para uma história da Psicologia no Brasil.
p.127.
95
No ano de 1934 também teremos a criação da Universidade de São Paulo – USP que incorporou a
cátedra de Psicologia do Instituto de Educação Caetano de Campos, antiga Escola Normal de São Paulo
e no ano seguinte cria-se a Universidade do Brasil, proposta como padrão para outras universidades. Na
USP a disciplina de psicologia torna-se obrigatória nos três primeiros anos do currículo de Filosofia. De
1935 até 1944 essa cadeira ficou a cargo de Jean Maugüé, sendo substituído em 1945 por Otto
Klineberg, que havia publicado, em 1940, um manual “Social Psychology”, que por sua vez fica no
cargo até 1947 quando a disciplina passa a ser ministrada por Annita de Castilho e Marcondes Cabral
que trabalhava com Noemi Silveira Rudofler no Serviço de Psicologia Aplicada. Em 1954 os estudos
mudam de direção novamente e será a vez da psicologia experimental ocupar o palco com os trabalhos
de Arrigo Leonardo Angelini.
96
O único ato legislativo significativo no período que vai da constituição da República brasileira até a
Segunda Guerra Mundial será o Decreto-Lei 3.138, de 24 de janeiro de 1941, que Dispõe sobre a
assistência médica, pelos Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões, dos doentes mentais que
forem seus segurados ou associados.
72
97
Com esse Decreto a Psicologia começa a perder seu lugar no seio da medicina social e vai se tornando
uma ciência auxiliar para uma psiquiatria que passa a ser vista como auto-suficiente para o
entendimento das patologias mentais. O artigo 5 do Decreto 24.559 expressa claramente quem são os
responsáveis pelo psicopata: “É considerado profissional habilitado a dirigir estabelecimento
psiquiátrico, público ou particular, quem possuir o título de professor de clínica psiquiátrica ou de
docente livre desta disciplina em uma das Faculdades de Medicina da República, oficiais ou
oficialmente reconhecidas, ou quem tiver, pelo menos durante dois anos, exercido efetivamente o lugar
de psiquiatra ou de assistente de serviço psiquiátrico no Brasil ou no estrangeiro, em estabelecimento
psiquiátrico, público ou particular, autorizado.”
98
BRASIL. Decreto n.º 24.559. Dispõe sôbre a profilaxia mental, a assistência e proteção á pessôa e
aos bens dos psicopatas, a fiscalização dos serviços psiquiátricos e dá outras providências. 3 de jul.
1934., Art.25.
99
IDEM. Decreto 24.559, Art.26.
73
(...) não ponho em dúvida que ele seja desequilibrado, talvez perigoso para si
mesmo e para os outros, e exija atenção e cuidados num hospital para doentes
mentais. Ao mesmo tempo, estou cônscio de que, em minha opinião, existem
outras pessoas consideradas sadias, cuja mente é radicalmente doentia, podendo
100
A saúde, escreve Canguilhem, está justamente na possibilidade de “ultrapassar a norma que define o
normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas
em situações novas”. Cf. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. p.148.
101
SZAZ, Thomas S. Cruel Compaixão. p.193.
74
102
LAING, Ronald David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p.27.
103
É importante assinalar aqui que no eixo Rio-São Paulo, somente três estabelecimentos estarão filiados
a International Psychoanalitical Association – IPA, fundada por Freud em 1910. Nesses três apenas a
de São Paulo – SBPSP, desde seus primeiros Estatutos, abre possibilidade para que pessoas não
médicas se submetam a formação, o que é contraditório, uma vez que é conhecida as diversas
denúncias de charlatania realizadas por médicos psiquiatras e neurologistas à essas associações.
104
Isso não impede o desenvolvimento da Psicologia, como nos mostram os estudos de Massimi (1990;
2000; 2004); Antunes (2005), Coimbra (1995), Pessotti (2004), Jacó-Vilela & Rodrigues (2004). A
Psicologia que já se desenvolvia no país mesmo antes do uso da instituição psiquiátrica como aparelho
ideológico do Estado, entre meados de 1940 até o início dos anos de 1970, desenvolve-se nas diferentes
abordagens. A título de ilustração, podemos dizer que as principais escolas que se desenvolvem nesse
período são: a Psicanálise, a Fenomenologia, o Funcionalismo, o Behaviorismo e a Psicologia Social. A
Psicanálise divulgada no Brasil desde os anos 10 até os 30, é fortalecida com a fundação da primeira
Sociedade Brasileira de Psychanalise, em 1927 e, iniciando a artir daí a formação nos moldes
freudianos, psicanalistas a partir de 1937; o movimento fenomenológico e a filosofia existencial por sua
vez, teve sua origem a partir da fundação da Universidade de São Paulo, em 1934, tendo inicialmente
forte influência francesa e posteriormente, a americana a partir de 1959 e o primeira programa de
formação em Gestalt-Terapia oferecido em 1977 por Walter Ribeiro, em Brasília; o funcionalismo que
passará por três fases: de 1900-1930, preocupava-se em explorar as possibilidades de estudo da
Psicologia em instituições de saúde mental e educação do país, de 1930-1940, com as primeiras
tentativas de aplicação desses conhecimentos aos problemas sociais (educação, trabalho e saúde
mental), 1940-1960, período em que coincide com a fase em que se inicia a formação universitária em
Psicologia e que corresponde à expansão da pesquisa científica no país na área, 1960-1990, com o
debate entre cultura e cognição, da hipótese de carência cultural, marginalidade e na explicação de
algumas formas de fracasso escolar e doença mental e, finalmente, a partir de 1990 até atualmente, com
a consolidação dos grupos de pesquisa formados entre 1970-1980 e com a expansão da pós-graduação
no país; já o behaviorismo radical no Brasil, inicia-se a partir da primeira viagem de Fred Keller ao
Brasil, em 1961, embora os contatos entre este teórico e o Brasil tenham se iniciado a partir de 1959.
Durante sua estada no Brasil, este teórico ofereceu um curso de curta duração na Sociedade de
Psicologia de São Paulo, e tornou-se professor visitante da USP. A presença de Keller possibilitou com
que gerassem os primeiros trabalhos de análise do comportamento no Brasil, publicados no Journal of
the Experimental Analysis of Behavior. Dentre os pioneiros da análise do comportamento no Brasil
pode-se destacar a Dra. Carolina Bori, principal responsável pela continuidade da pesquisa em análise
do comportamento no Brasil. A consolidação da institucionalização da Psicologia também se dá com a
publicação da Lei n.º 4.119, de 27 de agôsto de 1962, que Dispõe sôbre os cursos de formação em
psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo, e do Decreto n.º 53.464, de 21 de janeiro de 1964,
que Regulamenta a Lei n.º 4.119, de 27 de agôsto de 1962, que dispõe sôbre a profissão de psicólogo.
75
casamento, profilaxia do divórcio etc., a ponto de deixar o campo apto para as ações de
higiene mental105.
Os muros dos asilos e manicômios começam a tornarem-se pequenos frente às
necessidades de intervenção no corpo social. Os propósitos psicanalíticos, advindos de
uma prática adaptacionista de psicanálise, que disseminavam sua atuação na articulação
entre esfera pública e privada não poderiam mais ser realizados no interior de grandes
hospícios. As ações voltadas para o ajustamento deveriam ser fruto da evolução dos
olhares desses dois campos de conhecimento: da medicina exige-se um olhar para além
da doença, do psicanalista uma articulação com a pedagogia. Essa “clínica do social”
que ampliou com a Psicanálise sua possibilidade de diagnosticar o normal e o
patológico pôde “cuidar de toda população desajustada”, como nos mostra Yahn ao
discorrer sobre a orientação dada às educadoras sanitárias acerca de como seria a
identificação do doente mental:
105
Cf. YAHN, Mário. Higiene Mental. p.15-16.
106
YAHN, Mário. Higiene Mental. p.15. Em outra passagem esse autor escreve que o Centro de Saúde,
como ambulatório, “passa a funcionar, como verdadeiro cérebro orientador, para os pacientes. Não se
estabelece mais uma diferença tão radical entre os doentes que precisam ou não precisam ser
internados; e o ambulatório tem duas frentes: — Uma voltada para o meio social, atendendo os
pacientes que ali podem permanecer, e outra voltada para dentro do hospital psiquiátrico, onde o
paciente continua a ser atendido, sem que se modifique radicalmente a orientação que vinha sendo
seguida.” Cf. Ibidem. p.302.
107
No início da década de 70 do século passado, Leão Cabernite, presidente da SPRJ, será um dos vários
psicanalistas que farão críticas a esse modelo de Psicanálise. Os artigos acerca da “poluição da
psicanálise” feita pelo bando de “invasores”, os psicólogos e a segunda geração de psicanalistas
argentinos, serão voltadas para o conteúdo fascista e reacionário das práticas desenvolvidas. Para
maiores detalhes dessa tensão sugerimos o trabalho: COIMBRA, Cecília. Os guardiães da ordem.
p.60 et seq.
76
108
YAHN, Mário. Op. cit. p.16.
109
SZASZ, Thomas. Cruel Compaixão. p.193.
110
ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia. p.55.
111
Cf. MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das leis e as leis do espírito. p.88 e sgts.
77
112
Seu Governo perdura de 1956 à 1961.
113
BRASIL. Decreto nº 49.974-a. Regulamenta, sob a denominação de Código Nacional de Saúde, a
Lei nº 2.312, de 3 de setembro de 1954, de Normas Gerais Sôbre Defesa e Proteção da Saúde".
114
Ibidem. Artigo 83: O Ministério da Saúde promoverá investigações epidemiológicas, sôbre a
prevalência e a incidência das doenças mentais no país.
115
A Liga das Nações, criada após a guerra de 1918, havia criado em seu Departamento de Saúde uma
sessão de Higiene Mental, universalizando o termo. Posteriormente, tal como estava proposto desde
1946 pela Organização Mundial de Saúde (departamento especializado da Organização das Nações
Unidas, fundada em 1945), higiene mental é substituído por um termo mais abrangente que articulava
com a concepção de saúde como “um estado de bem estar completo, físico, mental e social”.
78
Mario Yahn, com forte influência psicanalítica e cultural dos problemas mentais, não
consideravam os manicômios espaços que possibilitavam uma intervenção efetiva. Para
a efetivação dessa orientação cabia ao Ministério da Saúde fomentar “a criação de
‘centros de elucidação de diagnóstico’ como organizações para-hospitalares, de
‘hospitais de dia’, e de serviços de ‘assistência aberta’, públicos ou privados, aos quais
poderá dar cooperação técnica e material”116. A cobertura da assistência extra-hospitalar
previa intervenções desde o psicopata indigente até o dependente de drogas, assim como
previa também estratégia de reintegração social117.
116
BRASIL. Decreto 49.974-A, de 21de janeiro de 1961. artigo. 77, § 1º.
117
Ibidem.
118
YAHN, Mário. Higiene Mental. p.17.
119
Ibidem. p.28.
79
Todavia, vai se tornando cada vez mais aparente que a reforma psiquiátrica
firmada por meio do Decreto 49.974, efetivamente, apenas promoveu a simples
substituição do termo “doença mental” por “saúde mental” e efetuou um upgrade na
tecnologia psiquiátrica tradicional, que poderia agora abrir as portas da instituição
psiquiátrica para que outros saberes se tornassem parceiros, como foi o caso, por
exemplo, da Psicologia Social120. Isso mostra que o projeto de desinstitucionalização —
que na verdade foi apenas de desinternação, ao passo que não se questionava a
instituição psiquiátrica — proposta a partir de 1961 no Brasil, não foi um resultado a
posteriori de nenhum movimento social, pelo contrário, foi a priori mais uma estratégia
de ajuste político-econômico. Esse tipo de racionalidade instrumental proporcionou para
essa proposta durante um curto período de tempo uma perspectiva promissora, muito
próxima, inclusive, ao que se espera atualmente conseguir com a Lei 10.216 de 6 de
abril de 2001. Todavia, surgiram alguns problemas que impediram sua implementação
prática do decreto de 1961.
120
Os primeiros trabalhos que discutem a relação da Psicologia Social com a Saúde Mental e tentam
definir esse “novo campo” foram publicados a partir de 1958. Entre os trabalhos que se destacaram e
que posteriormente foram objeto de análise no ensaio de FREEMAN, Howard E. & GIOVANNONI,
Jeanne M. intitulado: Social Psychology and Mental Health, publicado na segunda edição do
Handbook of Social Psychology são: SCOTT, W. A. Research definitions of mental health and
mental illness, 1958.; JAHODA, M. Current concepts of mental health, 1958.; SMITH, M. B.
Research strategies toward a conception of positive mental health, 1961. Em todos eles a
preocupação era contribuir com o entendimento do desajustamento social e com os métodos de
adaptação e adequação.
121
Cf. BORGES, Célia Regina Congilio. Através do Brasil: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo.
80
(profissionais que atuavam com técnicas não reconhecidas)122 como inaptas para
desenvolver intervenções. Existia o consenso de que essas práticas influenciavam o
psiquismo da população, todavia, o código não impediu que as comunidades
terapêuticas proliferassem em todo país. Por último, o código desconsiderou a
hegemonia da instituição psiquiátrica e sua íntima relação com o desenvolvimento
capitalista brasileiro.
122
BRASIL. Decreto 49.974-A. Art. 80. É vedada, quer nos estabelecimentos destinados à assistência a
psicopatas, quer fora dêles, a pratica de quaisquer atos litúrgicos de religião, culto ou seita, com
finalidade terapêutica, ainda que a título filantrópico e exercida gratuitamente; Art. 81. É vedada a
pessoas sem habilitação legal para o exercício da profissão, a prática de técnicas psicológicas com
fundamento nos processos de sugestão capazes de infundar o estado mental de indivíduos ou de
coletividades, ainda que sem finalidades de proteção ou de recuperação da saúde; Art. 82. Qualquer
autoridade pública local tem o dever de notificar, imediatamente, às autoridades sanitárias competentes,
a eclosão de "epidemia de crendice terapêutica" de qualquer natureza, com aspectos de contágio
psíquico, propiciando psicoses induzidas, fanatismo de multidões ou loucura coletiva.
123
Aqui aparece uma particularidade brasileira que ajuda a entender a viabilidade atual da reforma e a
inviabilidade dos anos de 1960. Quando Szasz realizou sua pesquisa acerca da reforma psiquiátrica nos
EUA pós Segunda Guerra Mundial, foi associada a possibilidade desse feito com o desenvolvimento
dos medicamentos antipsicóticos, os estimulantes e antidepressivos. No Brasil, tal como apresentado no
relatório de Mário Yahn, em 1952, em Santiago do Chile, o uso de medicamentos psiquiátricos ainda
era muito restrito. Cf. SZASZ, T. Cruel Compaixão. e YAHN, M. Higiene Mental.
124
O Decreto-Lei 8.550, de 3 de janeiro de 1946, autorizava o Ministério da Educação e Saúde a
“celebrar Acordos, visando a intensificação da assistência psiquiátrica no território nacional”,
otimizando a assistência psiquiátrica “nas regiões em que os estudos (...) revelarem deficiencias” Art.1.
e o Decreto 22.561, de 7 de fevereiro de 1947, por sua vez concede favores fiscais aos
Estabelecimentos Hospitalares que se construírem no Distrito Federal.
81
125
LUZ, Madel T. As instituições médicas no Brasil: Instituição e estratégia de hegemonia. p.19.
126
Ibidem. p.19-20.
127
Cf. FIGUEIREDO, Gabriel. Ética e reforma da assistência psiquiátrica no Brasil. p.1-14.
128
O Plano Salte (Saúde, Alimentação, Trabalho e Energia), foi mais uma tentativa frustrada de
desenvolvimento. Os gastos foram mal elaborados e não faziam relação com os resultados obtidos. Cf.
BRASIL. Lei n.1102. Aprova o Plano Salte e dispõe sobre sua execução. 18 de mai., 1950.
82
129
MESSAS, Guilherme Peres. O espírito das leis e as leis do espírito. p.95.
130
AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. p. 91.
Nesse trabalho Amarante diz que no “Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais
concretamente e principalmente a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970,
fundado não apenas na crítica conjuntural do subsistema nacional de saúde mental, mas também, e
principalmente, na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas (...).” Nos parece
que aceitar a idéia de que a reforma somente inicia-se nesse período seria negar todos os outros
momentos de metamorfose da instituição psiquiátrica. Claro que aqui está em jogo nossa compreensão
de instituição, que está para além da idéia de estrutura física e saber técnico de um determinado período
e entende que o manicômio e as técnicas utilizadas fazem parte de um período de aperfeiçoamento da
instituição psiquiátrica, não tendo sido, portanto, superadas, mas sim aperfeiçoadas.
131
Cf. SZASZ, Thomas S. Cruel Compaixão. Passim.
132
Achamos útil trazer o conceito de comunidade imaginada desenvolvido por Benedict Anderson. Para
esse historiador as comunidades são imaginadas no sentido de que se organizam a partir de um discurso
heterogêneo, possibilitando planejamento e projeções. Cf. ANDERSON, Benedict. Comunidades
Imaginadas.
83
133
COIMBRA, Cecília. Guardiães da Ordem: Uma viagem pelas práticas psi no Brasil do
“Milagre”. p.3.
134
“(...) semanas antes e depois do golpe de 31 de março de 1964, em muitas capitais do país, são
organizadas as Marchas da Família com Deus e Propriedade. Multidões de senhoras e suas famílias de
classe média e média alta desfilam pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro e São Paulo e, juntamente
com a cúpula da Igreja Católica, denunciam a ‘comunização’ da sociedade brasileira e exigem um
governo forte.” Ibidem. p.5.
135
BORGES, Célia Regina Congilio. Através do Brasil: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo. p.21.
136
HABERMAS, Jürgen. Ciência e técnica como “Ideologia”. p. 49 et seq.
137
ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. p.60 et seq.
138
Fernando Tenório mostra que foram “sobretudo os governos militares que consolidaram a articulação
entre internação asilar e privatização da assistência, com a crescente contratação de leitos as clínicas e
hospitais conveniados. O direcionamento do financiamento público para a esfera privada durante o
84
regime militar deixa-se ver, por exemplo, no fato de que entre 1965 e 1970 a população internada em
hospitais diretamente públicos permaneceu a mesma, enquanto a clientela das instituições conveniadas
remuneradas pelo poder público saltou de 14 mil, em 196, para trinta mil, em 1970.” TENÓRIO,
Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e
conceitos. p.34.
139
LUZ, Madel T. As instituições médicas no Brasil: Instituição e estratégia de hegemonia. p.205 e
segts.
140
COIMBRA, Cecília. Op. cit. p.24.
141
Ibidem. p.40.
85
142
BRASIL. Lei nº 4.119. Dispõe sôbre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a
profissão de psicólogo. de 27 de agôsto de 1962, regulamentada pelo Decreto nº 53.464, de 21 de
janeiro de 1964. O artigo 4º. Referente ao exercício profissional do Psicólogo deixa explícito sua
função a resolução de problemas de ajustamento.
143
Domenico U. Hur assinala que a atuação política “estava capturada pela repressão do Estado. O
contrato social dos psicólogos compactuava com tal captura e não esboçava reação. A maneira de
compactuar com o Estado foi o mecanismo de negação de que tal atuação fosse política e afirmá-la
como meramente técnica-profissional. A entidade de classe, por meio do mecanismo de cisão, cindiu o
político e o profissional, criando uma atuação meramente técnica. À profissão referia-se apenas a
questões da teoria e técnica; a política era outra coisa, representada por posicionamentos ideológicos
referentes à macropolítica”. Cf. HUR, Domênico Uhng. Políticas da psicologia de São Paulo : as
entidades de classe durante o período do regime militar à redemocratização do país. p.197.
144
No ano de 1964, havia no Rio de Janeiro apenas na PUC o curso de Psicologia (desde 1957). Em São
Paulo existiam três cursos: USP, inciado em 1958; PUC São Bento iniciado em 1962 e o Sedes
Sapientiae. Ainda em 1964 são criados o curso de Psicologia na UFRJ; em 1965 na UEG (atual UERJ).
145
COIMBRA, Cecília. Guardiães da Ordem: Uma viagem pelas práticas psi no Brasil do
“Milagre”. p.118.
86
146
CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social e suas relações com a ideologia. p.12.
147
Para maiores detalhes Cf. LANE, Silvia T. M. Histórico e fundamento da psicologia comunitária
no Brasil. p.17 et seq.
87
148
Cf. ANDERY, Alberto Abib. Psicologia na comunidade. p.205 et seq. Sugerimos também o artigo
publicado originalmente em 1985: GOIS, César Wagner de Lima. O paciente pobre. p.71 et seq.
149
CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social e suas relações com a ideologia. p.13.
150
Na Psicologia Social constata-se que a literatura hegemônica até então era a norte-americana, ou seja,
quando se falava em Psicologia Social, falava-se em psicologia social desenvolvida nos Estados
Unidos. Nesse sentido, começou-se a entender que muitos dos problemas estudados no Brasil eram na
verdade problemas da sociedade norte-americana. Surge aquilo que será denominado por diversos
autores (Triandis, 1977; Ianni, 1971; Zajonc, 1969; Moscovici, 1972) como a “crise da Psicologia
Social”. Embora seja apontada por Ciampa como existente a partir de 1972, o marco dessa nova postura
teórico-epistemológica ocorrerá em 1976, no Congresso da Sociedade Interamericana de Psicologia –
SIP que ocorrera em Miami, quando Silvia Lane, alinhada aos questionamentos europeus à respeito da
crise da Psicologia, declara a assunção de um novo empreendimento: a construção de uma Psicologia
Social Crítica que lidasse com as complexidades brasileiras e que buscasse a emancipação das classes
dominadas. O lócus de desenvolvimento dessa “nova” Psicologia Social foi a Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, universidade cuja Psicologia foi a primeira área a instalar a Pós-Graduação, e
que “embora iniciada com um curso de Psicologia da Educação (1969), teve desde o início estudantes
cujas pesquisas lidavam com objetos e métodos da Psicologia Social. Por exemplo, a dissertação de
Mestrado de José Roberto Malufe “Caça ao tesouro: experimento de campo em Psicologia Social”.”
(PEPG-PS, 2002, p. 16) Com a abertura democrática nos fins dos anos 70 e início dos anos 80, os
trabalhos produzidos durante os anos anteriores começaram a tomar mais visibilidade e de um trabalho
associado a clandestinidade, a “psicologia comunitária” passa a ser vista como uma atividade
consagrada, adotada por vários profissionais, gerando debates e reflexões. Com o surgimento da
ABRAPSO em julho de 1980, legitima-se um espaço de interlocução e troca de experiências entre os
Psicólogos Sociais. A PUCSP (conhecida internacionalmente como escola de São Paulo), a PUCRS, a
UFRGS e a UFMG ainda hoje servem como pólos de produção teórica para esse campo, seja nos
trabalhos com grupos, a análise da ideologia, representações sociais, mediando a consciência crítica e o
desenvolvimento de identidades políticas. No que se refere aos estudos e intervenções, a UFPB e a
UFC se tornaram locais de referencia. A Psicanálise, inserida nessa discussão, teve com os trabalhos de
Joel Birman, Jurandir Freire Costa, Luis Cláudio Figueiredo e Suely Rolnik, por exemplo, uma guinada
frente ao seu lugar na lógica discursiva de ajustamento para o desvelamento das condições onde são
produzidos e mantidos esses discursos.
88
151
GOFFMAN, Ervin. Manicômios, Prisões e Conventos. Publicado em 1961, o trabalho de Goffman
demonstra como as práticas realizadas nas instituições totais (manicômios, prisões e conventos) são
práticas de mortificação dos indivíduos
152
SZASZ, Thomas Stephen. The Myth of Mental Illness. Os esforços de Szasz ao longo de todos os
anos seguintes têm se voltado para a tarefa de encontrar elementos que pudessem demonstrar que o
conceito de “doença mental” é uma invenção médica do século XIX, tornada popular devido às
potencialidades de utilização como instrumento de administração político-econômica, que muitas de
suas proposições são atos violentos contra os direitos humanos, uma ameaça para a liberdade e
emancipação humana. N’O Mito da Doença Mental, livro publicado no ano seguinte ao artigo citado
(1961), Szasz nos oferece uma forma de análise do desenvolvimento do comportamento desviante e/ou
da doença mental, que o aproxima tanto das discussões de Ervin Goffman como da Psicologia Social de
George Herbert Mead. O último trabalho publicado por Szasz chama-se Psychiatry: the Science of
Lies, onde segue defendendo a utilização ideológica da concepção de doença mental.
153
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. É importante assinalar que a genealogia da Loucura de
Michel Foucault, além de uma genealogia da loucura, também será um estudo detalhado sobre a
transformação das formas de exclusão individual. Para Foucault após a revolução industrial ocorreu
uma transformação na forma de marginalização do louco que passou a ser realizada a partir da
ideologia do trabalho (louco é aquele inapto para o trabalho). Em outro trabalho, ele sintetiza essa
transformação ao dizer que os “indivíduos identificados como ‘anormais’ passam a ser segregados
entre os séculos XVI e XIX na França, e somente a partir do desenvolvimento do capitalismo e a
necessidade de um exército de reserva da força de trabalho retornam para o espaço público.” Cf.
FOUCAULT, M. Loucura e Sociedade. p.262.
154
LAING, Ronald David. O Eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. Ronald Laing,
cujo trabalho teve um tremendo impacto na revolução cultural de 1960, seguia o sentido das críticas
realizadas pelos teóricos apresentados anteriormente, que ficaram conhecidas como antipsiquiatria, e
sua atuação, serviu como modelo alternativo de atenção aos desviantes. Laing confrontou a
racionalidade entendida como “normal” com as formas de irracionalidade mantidas pela sociedade.
Assim, guerra, violência urbana, cultura de consumo etc., são colocadas lado a lado com os casos de
pessoas internadas nos manicômios, o que leva Laing a defender a tese de que o isolamento humano é
irracional e que a loucura é uma característica comum no desenvolvimento humano, sendo, portanto,
anormal” o olhar direcionado para o humano que tende a caracterizá-lo como doente mental.
155
BASAGLIA, Franco. Che cos’è la psichiatria? Franco Basaglia foi reconhecido como um ícone da
Luta Antimanicomial, principalmente no Brasil onde é referência hegemônica no projeto de
desinstitucionalização. Com a ajuda de colaboradores publicou, em 1963, Che cos’è la psichiatria?,
onde incorpora as discussões trazidas por Goffman, Foucault, Szasz, Laing e outros mais, e desde então
parte para a elaboração de uma proposta alternativa aos modelos de tratamento. Para Basaglia a
etiologia da doença mental deveria ser pensada como uma complexa interação entre a experiência do
“paciente” e sua localização social, os métodos médicos de intervenção, valores culturais e ideologia
dominante. Nesse sentido, era mister que as diferentes abordagens trabalhassem interdisciplinarmente
para que os sistemas científicos pudessem ser contestados. A apresentação desse texto e outros do autor
podem ser encontros nos escritos selecionados por Paulo Amarante. Cf. BASAGLIA, Franco. Escritos
selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica.
156
Cf. SARBIN, Theodor R. & JUHASZ, J. B. The concept of mental illnesss: A historical
perspective. Sarbin & Juhasz traz a discussão da doença mental para o campo da Psicologia Social,
incorpora a teoria de Goffman, as críticas de Szasz, aplica os conceitos de Psicologia Social as
categorias tradicionais de doença mental e conclui nesse trabalho que o estigma tradicional e o
tratamento de indivíduos diagnosticados dessa maneira eram metáforas que serviam à administração
social.
89
movimentos sociais que realizam fortes críticas ao modelo manicomial financiado pelo
Estado e às políticas de saúde implementadas de forma autoritária, que resultam na
elaboração de propostas alternativas que vieram a chamar-se de reforma sanitária:
movimento pela reformulação do Sistema Nacional de Saúde.
É importante assinalar aqui que a política de identidade desse movimento foi se
configurando em torno de uma proposta que não cindia com a ideologia da doença
mental desenvolvida desde o alienismo até a teoria psiquiátrica kraepeliniana157. O
saber psiquiátrico não é contestado, como aconteceria nas obras de autores da
antipsiquiatria como Goffman158, Laing159 e Szasz160, mas visto como possível de ser
reformado a partir de uma psiquiatria democrática, menos radical em relação às teorias
técnico-psicológicas, tal como é encontrada na obra de Franco Basaglia161. Apontar essa
escolha entre as diferentes leituras críticas à instituição psiquiátrica e a subseqüente
escolha teórico-metodológica adotada pelo movimento pró-reforma psiquiátrica nos
possibilita entender muitos dos problemas vivenciados pela própria saúde mental atual,
157
Kraepelin, assim como Pinel, terá sua obra reconhecida e será apontado como o pai da reforma
psiquiátrica moderna.
158
Goffman criticava além da forma asilar a forma como está configurada a sociedade, uma vez que havia
percebido que as relações mantidas no interior dos manicômios reproduziam as formas de interação
social realizadas fora desse lugar. Para Goffman, “quaisquer que sejam os refinamentos dos
diagnósticos psiquiátricos dos vários pacientes, e quaisquer que sejam as maneiras específicas pelas
quais se singulariza a vida ‘no interior’, o pesquisador pode verificar que está participando de uma
comunidade que não é significativamente diferente de qualquer outra que já tenha estudado.”
GOFFMAN, Ervin. Manicômios, Prisões e Conventos. p.113.
159
Para Laing o problema estava em como adotar a noção de “homem visto como pessoa” em
substituição à pregada pela psiquiatria tradicional de “homem visto como organismo”. LAING, Ronald
David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p. 19 et seq.
160
Para Szasz, o mais radical dos autores da antipsiquiatria, a própria concepção de doença mental seria
um engodo, uma vez que não é possível atribuir às condições mentais os mesmos critérios das
condições orgânicas, o que desvelaria que a manutenção da concepção de doença mental, pelo que ele
chama de falsa-ciência psiquiátrica, serviria apenas aos interesses do Estado e sua relação com o
capital. Cf. SZASZ, Thomas Stephen. Psychiatry: the Science of Lies.
161
Basaglia não questionou o estatuto técnico-científico da psiquiatria, sua preocupação voltou-se para a
abolição dos “manicômios”, entendidos como instituições promotoras da desumanidade, dizia que o
problema da doença mental era algo a ser trabalhado após a efetivação de uma abolição dos
manicômios, enquanto isso não acontecia a concepção de doença deveria ser colocada “entre
parênteses”. Seus esforços fizeram com que surgisse, em 1970, uma associação de caráter nacional: a
Psiquiatria Democrática, cuja representação possibilitou que fosse aprovada a Lei 180, em 1978, que
trazia novamente a psiquiatria para o corpo médico e a integrava na reforma sanitária global. Esse
episódio, inclusive, tornou-se polêmico, pois como nos mostra Étienne Trillat: “Basaglia, a quem se
deu a satisfação com o fechamento dos hospitais psiquiátricos, não desaprovou a Lei; o que nos explica
a amargura dos militantes da Psiquiatria Democrática, que protestaram contra a medicalização da
loucura”. Cf. TRILLAT, Étienne. Una Historia de la psiquiatria no século XX. p.344. Tradução
nossa: “Basaglia, a quien se dio satisfacción con el cierre de los hospitales psiquiátricos, no desaprobó
la Ley; lo que nos explica a amargura de los militantes de Psichiatria Democrática, que protestaron
contra esta medicalización de la locura.” Basaglia colocou a loucura entre parênteses, garantiu a
participação de outros especialistas no tratamento do doente mental, mas não propôs uma subversão do
conceito.
90
que convive com o resultado de ter escolhido, ao invés de uma revolução psiquiátrica,
uma proposta conciliadora onde a identidade pressuposta do doente mental torna-se
elemento de disputa, ou ainda, de utilização dual em um capitalismo tardio que na
tentativa de conciliar a tensão entre os interesses do mundo da vida e da lógica sistêmica
incorpora pelo menos dois conteúdos particulares para cada expressão identitária
(cidadão doente mental e paciente doente mental), como escreve Žižek, da expressão de
seu conteúdo popular autêntico e sua distorção pelas relações de dominação e
exploração162. Isso significa que a escolha pelas políticas de reforma apareceram como
ideais para essa fase de desenvolvimento capitalista no Brasil, que a partir de novas
estruturas disciplinares deixa evidente que “a mola do poder não é a imposição de uma
norma de conduta, mas a organização das possibilidades de escolha”163.
162
ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.11 et seq.
163
SAFATLE, Slavoj. Cinismo e falência da crítica. p.202.
164
Ibidem. Loc. cit.
165
Uma discussão interessante a esse respeito pode ser encontrada no debate entre Axel Honneth e Nancy
Fraser acerca das políticas de reconhecimento e redistribuição. Os dois teóricos concordam com o fato
de que existiu uma tendência mundial em se assumir as políticas de reconhecimento das diferenças em
detrimento das políticas de redistribuição igualitária. Cf. FRASER, Nancy & HONNETH, Axel.
Redistribution or Recognition?
91
166
SANTOS, Boaventura de Souza (org.) A Globalização e as Ciências Sociais. p.13.
167
Cf. AMARANTE, Paulo. Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate em Torno da Reforma
Psiquiátrica. p.492.
168
Cf. TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:
história e conceitos. p.33-34.
92
psiquiátrica espaçada, mais refeição e remédios, deixa como lucro uma parte
menor da diária do que uma internação acompanhada por psicólogo, atividades
corporais, lazer assistido etc.). (...) A proposta de Política de Saúde Mental da
Nova República, de 1985, mostrava que a crítica germinada nos dez ou 15 anos
anteriores não mudara a política de financiamento de internações: dos recursos
gastos pelo Inamps em serviços contratados junto às clínicas privadas, 81,96%
destinavam-se à área hospitalar, e 4% à assistência ambulatorial.
169
A experiência de Santos foi retratada na dissertação de mestrado defendida em 1994 no Instituto de
Medicina Social da UERJ por Erotildes Leal sob o título: A noção de cidadania como eixo da prática
clínica: uma análise do programa de saúde mental de Santos. As críticas a essa mesma instituição,
principalmente no que se refere à contradição existente entre o discurso militante (em favor da
autonomia do louco) e o discurso técnico-psicológico (que contribui com a heteronomia e dependência
do doente mental à instituição), reforçando a idéia da existência nesses serviços de uma racionalidade
cínica onde saber e não saber convivem sem problema, podem ser encontradas na dissertação de
mestrado defendida no Instituto de Psicologia da USP por Myrna Yamazato Koda, em 2002, intitulada:
Da negação do manicômio à construção de um modelo substitutivo em saúde mental: o discurso
de usuários e trabalhadores de um Núcleo de Atenção Psicossocial.
170
TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:
história e conceitos. p.40.
93
Com a difusão do “sucesso” cada vez maior desse novo modelo as condições
para a concretização do movimento pela “nova” Reforma Psiquiátrica tornam-se
possíveis. Dois eventos ocorridos em 1987, inclusive, serão o marco dessa
consolidação, são eles: a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Encontro
Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental. Esse último é planejado durante a I
Conferência, após a constatação de que a perspectiva sanitarista de incorporar as
propostas reformistas nas políticas do período vinha sofrendo a resistência da rede
hospitalar privada. Fernando Tenório afirma que a I Conferência representa o marco da
desinternação.
O encontro que a ela se segue institui um novo lema: “Por uma sociedade sem
Manicômios”. Estabelece um novo horizonte de ação: não apenas as
macroreformas, mas a preocupação com o “ato de saúde”, que envolve
profissional e cliente; não apenas as instituições psiquiátricas, mas a cultura, o
cotidiano, as mentalidades. E incorpora novos aliados: entre eles, os usuários e
familiares, que, seja na relação direta com os cuidadores, seja através de suas
organizações, passam a ser verdadeiros agentes críticos e impulsionadores do
processo.171
171
TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:
história e conceitos. p.35. Colocamos os grifos com o intuito de assinalar a concepção de agente
crítico, que aqui nos parece se referir àquele que concorda com o discurso psiquiátrico e assume a nova
política de reforma psiquiátrica. Vamos discutir com melhor profundidade essa questão ao longo deste
trabalho.
172
O projeto 3.657/89, de autoria do deputado Paulo Delgado, que viria a ser conhecido como a Lei da
Reforma Psiquiátrica, era simples, contendo apenas três artigos em seu conteúdo: o primeiro impedia a
construção ou contratação de novos hospitais psiquiátricos pelo poder público; o segundo previa
direcionamento de recursos para equipamentos “não-manicomiais”; e o terceiro obrigava a
comunicação das internações compulsórias à autoridade judiciária, que por sua vez, emitiria parecer
sobre a legalidade da internação. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas encontrou
dificuldade no Senado, que aprovou, no ano 2000, uma versão menos radical no que se refere a
substituição dos hospitais. Essa versão foi repudiada quando voltou para a Câmara dos Deputados, uma
94
deputado Paulo Delgado (que somente será aprovada em 2001 com ressalvas) e a Lei
no. 10.216 de 6 de abril de 2001173 (Lei da Reforma Psiquiátrica atual), esta última
contemplando a Declaração de Caracas de 14 de novembro de 1990174. A qual, segundo
Paulo Amarante, “tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de
propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria”175, em
outras palavras, a redução dos leitos psiquiátricos, dos manicômios e a garantia de ser
reconhecido publicamente como louco e tratado na comunidade.
Com o que foi trazido até agora possível observar que nunca no Brasil se propôs
uma “revolução” ou “emancipação” psiquiátrica. Apenas é possível dizer que, ao longo
dos anos com as transformações teórico-políticas, somou-se à identidade pressuposta do
paciente doente mental, proposta pela instituição psiquiátrica, uma identidade
pressuposta do cidadão doente mental, pelos militantes da saúde mental, que culminou
no desenvolvimento da política de saúde mental brasileira, que vivenciamos atualmente,
a qual assume o discurso de que o produtor da desumanização do doente mental é o
manicômio e que a solução para essa desumanização está na ampliação, a partir de
dados demográficos, as instituições substitutivas, isto é, dos novos dispositivos de
controle que promoverão a inclusão do louco na sociedade. De forma concreta, como
bem assinala Fernando Tenório:
vez que chegava a autorizar explicitamente a construção de hospitais e contratação de novos leitos “nas
regiões onde não existia estrutura assistencial”, que suprimiu o artigo referente à construção e
contratação de leitos. Cf. DELGADO, Paulo. Projeto de Lei n.3657/89.
173
BRASIL. Lei no. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Duas
coisas nos chamam atenção nessa lei, a primeira está no item II do 2º. Parágrafo: no qual o indivíduo
portador de sofrimento mental deve receber o maior número possível de informações a respeito de sua
doença e seu tratamento (que não é clara nem para os profissionais, uma vez que a premissa da reforma
é criar formas alternativas) e a segunda está no item I do 6º Artigo: cuja internação voluntária é descrita
como aquela em que o indivíduo dá o consentimento (baseado no que lhe dizem ser sua doença).
174
A Declaração de Caracas avalia o hospital psiquiátrico como insuficiente e redireciona a organização
dos serviços, como serão expostos na Lei 10.216.
175
AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. p.91
95
De qualquer modo, vale reforçar aqui que a Lei 10.216, aprovada em 2001,
tornou finalmente possível à execução do plano que, como vimos, já era visualizado em
1961, o que é possível observar no desenvolvimento que a “nova” reforma psiquiátrica
terá a partir do momento em que a nova lei começou a vigorar. No mesmo ano, por
exemplo, foi convocada a III Conferência Nacional de Saúde Mental177, que segundo o
relatório elaborado ao final do evento, as etapas municipal e estadual envolveram cerca
de 23.000 pessoas, e a etapa final contou com 1.480 delegados, entre representantes de
usuários, movimentos sociais, familiares e profissionais. Com o evento, o novo ciclo da
reforma psiquiátrica brasileira é fechado, profissionais, pesquisadores, usuários e
familiares, assumem esse modelo como o ideal a ser buscado. Em 2004, realiza-se o
primeiro Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, em São Paulo, que
segundo o Ministério da Saúde reuniu dois mil trabalhadores e usuários de CAPS178. No
âmbito jurídico, a Lei 10.216 também pode ser considerada um marco da retomada da
autonomia e hegemonia psiquiátrica, uma vez que a partir dessa lei esta instituição volta
novamente a ter leis e portarias específicas para sua organização e financiamento. Mais
tarde, inclusive, serão criadas linhas específicas de financiamento pelo Ministério da
Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao modelo manicomial, assim como serão
criadas novas normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos179. E,
finalmente, na esfera acadêmica, por sua vez, o crescimento das pesquisas que se
voltaram para o desenvolvimento de tecnologias para saúde mental,
desinstitucionalização, crítica aos hospitais psiquiátricos etc., seguiu o mesmo
movimento de expansão dos serviços substitutivos.
176
TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais:
história e conceitos. p.39. [grifos nossos]
177
Cf.BRASIL. Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental.
178
IDEM. Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de
Caracas. p.08.
179
Isso foi um avanço do ponto de vista da organização e distribuição de recursos, pois até 1992, por
exemplo, o país tinha “208 CAPS, mas cerca de 93% dos recursos do Ministério da Saúde para a Saúde
Mental ainda [eram] destinados aos hospitais psiquiátricos.” BRASIL. Conferência Regional de
Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. p.07.
96
Com relação à esfera acadêmica, o impacto da Lei 10.216 pode ser verificado
pela quantidade de dissertações de mestrado e teses de doutoramento defendidas com
vistas na discussão acerca da saúde mental e reforma psiquiátrica a partir de sua
publicação. Em nosso levantamento das teses de doutorado, por exemplo, encontramos
182 trabalhos registrados no banco de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – CAPES180 entre os anos de 1988 até 2007. Esses trabalhos
são fruto de 45 programas de pós-graduação, os quais tiveram uma produção tímida de
1988 até 2000, com apenas 61 defesas. Contudo, 24 desses programas iniciaram
pesquisas após 2001, ano de aprovação da Lei 10.216, com uma produção muito maior
entre 2001 e 2007: 121 defesas. Os programas que mais produziram foram: a) os de
Enfermagem, sobretudo, da EEUSP (25) e USP – Ribeirão Preto (21); b) Psiquiatria,
Psicanálise e Ciências Médicas, como é o caso da UFRJ (18), UNIFESP (12) e
UNICAMP (10). Juntos, esses programas representam cerca de 42% da produção de
conhecimento. No que se refere à produção teórica da Psicologia, embora saibamos que
os psicólogos estiveram envolvidos em todo o processo que resultou na reforma
psiquiátrica e que têm participado ativamente das instituições substitutivas, no que diz
180
A pesquisa foi realizada a partir dos dados encontrados no banco de teses da CAPES:
http://servicos.capes.gov.br/capesdw/ entre os meses de setembro e novembro de 2008. A tabela com
programas de pós-graduação que produziram teses entre os anos de 1988 e 2007 tendo a saúde mental e
a reforma psiquiátrica como objeto de estudo, pode ser conferida no anexo. Essa busca obviamente
pode apresentar falhas, seja de ordem da ausência de inscrição de alguma tese no banco de dados, seja
pelas palavras chaves utilizadas nas teses e em nossa pesquisa (utilizamos como palavras chaves:
doença mental, saúde mental, psicopatologia, reforma psiquiátrica). Não foi nosso objetivo inicial
utilizar esse tipo de dado, todavia, achamos interessante utilizá-lo para apontar que a ampliação da
ideologia acerca da reforma psiquiátrica atual não fica restrita aos serviços substitutivos. Os programas
de pós-graduação encontrados foram: USP: Psicologia Escolar / USP: Enfermagem / UNICAMP:
Saúde Mental / USP: Medicina Preventiva / UFRJ: Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental / USP:
Psicologia Social / PUCSP: Psicologia clínica / UNIFESP: Psiquiatria e Psicologia Médica / USP:
Saúde Pública / UFRJ: Enfermagem / UNICAMP: Ciências Médicas / FIOCRUZ: Saúde Pública /
UFRJ: Serviço Social / UFBA: Saúde Coletiva / USP: Sociologia / UNICAMP: Saúde Coletiva / USP
Ribeirão Preto: Medicina / PUC Campinas: Psicologia / UFBA: Medicina / UFSC: Direito &
Enfermagem / PUC Rio de Janeiro: Psicologia Clínica & Letras / UFC: Enfermagem / UFRJ: Saúde
Coletiva / GAMA FILHO: Direito / IPUERJ: Sociologia / USP Ribeirão Preto: Enfermagem
Psiquiátrica / UERJ: Saúde Coletiva / UFES: Psicologia / USP Ribeirão Preto: Psicologia / USP:
Psiquiatria / UFRGS: Psicologia / UFMG: Economia / UFMG: Saúde Pública / Universidade de
Brasília: Estudos Comparados sobre as Américas & Psicologia Clínica e Saúde / PUCSP: Direito /
UERJ: Psicologia Social / PUCSP: Psicologia Social / UFRGS: Informática na Educação / UMESP:
Comunicação Social / USP: Psicologia Clínica / UFPE: Serviço Social. Outro importante apontamento
refere-se ao fato que sabemos da existência de uma produção muito significativa também em nível de
Mestrado, que inclusive pode apresentar contribuições da Psicologia Social maiores do que os dados do
Doutorado, todavia, por questões de tempo não nos debruçamos para levantar essas informações.
97
181
A Psicologia Clínica da PUCSP (7) e USP (1); Psicologia Social USP (2) e PUCSP (3) e UERJ (1);
Psicologia UFES (3), USP Ribeirão Preto (1) e UFRGS (1).
182
Os gastos com os serviços substitutivos têm chegado a ultrapassar os destinados para os hospitais
psiquiátricos. Em 1997, por exemplo, eram gastos 97,14% dos recursos com os hospitais psiquiátricos e
6,86% com os serviços extra-hospitalares. Em 2006, foram gastos 48,67% dos recursos com os
hospitais psiquiátricos e 51,33% com os serviços extra-hospitalares. O número de CAPS cresceu entre
2003 e 2006, de 500 para 1011, aumentando em mais de 100% em apenas 3 anos. Enquanto isso, no
mesmo período, o número de leitos em Hospitais Psiquiátricos diminuiu mais 22%, caindo de 48 mil
para 39 mil, ou seja, em termos absolutos, entre os anos de 2003 e 2006, foram reduzidos 11.826 leitos
no Brasil e foram instalados 500 CAPS. Ao mesmo tempo foram instalados, no período de 2002 a
2007, 2,4 mil leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais em todo o país. Cf. BRASIL. Saúde Mental no
SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção. Relatório de Gestão 2003-2006 &
ACAYABA, C & PICHONELLI, M. Redução de leitos psiquiátricos é lenta.
183
Citando apenas alguns dos trabalhos encontrados que fizeram críticas ao funcionamento dos
equipamentos substitutivos da reforma atual encontramos, por exemplo: KODA, Myrna Yamazato. Da
negação do manicômio à construção de um modelo substitutivo em saúde mental: o discurso de
usuários e trabalhadores de um Núcleo de Atenção Psicossocial. Nessa dissertação de mestrado a
autora estuda o discurso de profissionais e usuários de um serviço de saúde mental de Santos – SP,
referência para a reforma psiquiátrica, e encontra um confronto entre o discurso político e o discurso
clínico, entre a posição militante e a posição técnica. Koda descreve o olhar clínico como um possível
dispositivo de institucionalização do indivíduo, na medida em que reduz o mesmo à condição de
doente. QUEIROZ, Isabela Saraiva de. Adoção de ações de redução de danos direcionados aos
usuários de drogas: concepções e valores de equipes do programa de saúde da família. Esta autora,
por sua vez, estudou as concepções e valores das equipes do Programa de Saúde da Família – PSF de
Belo Horizonte frente à adoção das ações de Redução de Danos direcionadas aos usuários de drogas,
mostra como existe uma tendência à aceitação da proposta pelas equipes do PSF (por ser uma
imposição superior), ao mesmo tempo em que aponta o fato do desconhecimento dos fundamentos
ideológicos da Redução de Danos e a coexistência de valores tradicionais fundamentados em conceitos
morais e religiosos, o que acaba descaracterizando a proposta. “Viu-se, por exemplo, que a maioria
expressiva dos entrevistados acredita que qualquer uso de drogas leva à dependência e/ou traz
problemas aos usuários, opinião representativa das abordagens que visam a abstinência, próprias dos
modelos moral e médico de doença.” (p.135); Estes dois exemplos mostram que a relação dos
profissionais de saúde mental, sobretudo os psicólogos, ainda não superaram os problemas encontrados
por NADER, Rosa Maria. Psicologia e transformação: caminhos para a prática psi. Dentre eles, o
de que ao graduarem-se psicólogos, os profissionais “dominam um conjunto mínimo de técnicas para a
abordagem da dimensão psi dos indivíduos, seja para compreendê-la, seja para enfrentar situações junto
com eles. Falta-lhes, no entanto, instrumentos teóricos mínimos para fazer uma leitura das dimensões
psicológica do social (como a natural, a física, a econômica, a política, a ética etc.). p.84.
98
188
Cf. SZASZ, Thomas. A fabricação da Loucura.
189
KRAMER, Henrich & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. “O Martelo das Feiticeiras”.
Escrito em 1484, este texto serviu de instrumentalização, intervenção e solidificação da doutrina
demonológica, principalmente no que tange à identificação dos casos de possessão diabólica, comércio
com o demônio, tornando-se a principal referência dos inquisidores e eclesiásticos em geral.
190
SZASZ, Thomas. A fabricação da Loucura. p.27
100
191
KYRILLOS NETO, Fuad. Efeitos de circulação do discurso em serviços substitutivos de Saúde
Mental: Uma perspectiva psicanalítica. p.165.
192
SZASZ, Thomas. A fabricação da Loucura. p.22.
193
Cf. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. p.253-294.
101
194
A expansão dos equipamentos substitutivos segue a lógica dos estudos epidemiológicos utilizados nas
doenças orgânicas. A portaria GM no.336, de 19 de fevereiro de 2002, define as modalidades a serem
implantadas da seguinte maneira: CAPS I, para municípios entre 20.000 e 70.000 habitantes; CAPS II
para população entre 70.000 e 200.000 habitantes; CAPS III para municípios com população acima de
200.000; CAPSi (infantil) para municípios com população de cerca de 200.000, ou outro parâmetro
populacional a ser definido pelo gestor local; CAPSad II (álcool e outras drogas) para municípios com
população superior a 70.000. Para garantir o interesse dos gestores na implementação dessa portaria,
criou-se outra a GM n.º1.455, de 31 de julho de 2003, que define o incentivo financeiro da ordem de R$
20.000,00 para cada CAPS I, R$ 30.000,00 para cada CAPS II, R$ 50.000,00 para cada CAPS III e R$
30.000,00 para cada CAPSi habilitados pelo Ministério da Saúde.
195
ARAGAKI, Sérgio Seiji. O aprisionamento de Selves em diagnósticos na área de Saúde Mental.
p.36.
102
196
Basta observar o consumo absurdo de medicamentos controlados no país, oferecidos como se fossem
aspirinas para dor de cabeça. Cf. PASSOS, Ana Cláudia de Brito. Utilização de Psicofármacos entre
os usuários da Atenção Primária do município de Maracanaú, Ceará. Nessa pesquisa, realizada por
Ana Cláudia Passos, ficou evidenciado que a média de consumo de medicamentos dos usuários do
CAPS desse município era de 1,5 por pessoa. A maioria das pessoas (78,3%) utilizavam de forma
contínua os medicamentos e a maioria sequer havia sido informada dos riscos de utilizá-los por tempo
prolongado (73,3%). Dentre os tipos de medicamentos utilizados 36,5% faziam uso de ansiolíticos e
31,5% antidepressivos. Quanto à aquisição desses medicamentos, 41,6% foram adquiridos na farmácia
do CAPS e 24,3% compraram. Os principais motivos que geraram o consumo dos psicofármacos
foram: “nervosismo”, “insônia” e “depressão”.
197
A Lei n.º 10.708 é um curioso exemplo que mostra como o Estado se desresponsabiliza da
cronificação dos indivíduos que ficaram longos anos internados nos asilos invertendo a necessidade de
indenização por dano e oferecendo uma ajuda de custo como “benefício social”. Cf. BRASIL. Lei no.
10.708, de 31 de julho de 2003. Institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes
acometidos de transtornos mentais egressos de internações; BRASIL. Manual do Programa De
Volta para Casa. & BRASIL. Saúde Mental e Economia Solidária: Inclusão Social pelo Trabalho.
198
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. p.230 et seq.
199
As questões teóricas referentes à identidade serão tratadas com maior profundidade no próximo
capítulo. O conceito de política de identidade pode ser encontrado em: CIAMPA, Antonio da Costa.
Políticas de Identidade e Identidades Políticas. & LIMA, Aluísio Ferreira de. Para uma
reconstrução dos conceitos de massa e identidade.
200
Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de
Psicologia Social. p.164 et seq.
103
E se o problema não for a condição frágil dos excluídos, mas, pelo contrário, o
fato de, no nível mais elementar, sermos todos “excluídos” no sentido de nossa
posição “zero” elementar ser a de um objeto de biopolítica, e de alguns
possíveis direitos políticos e de cidadania nos serem dados como um gesto
secundário, de acordo com considerações biopolíticas estratégicas?202
201
Esse conceito será aprofundado no decorrer da tese, entretanto, já aparece em nossa dissertação de
mestrado: Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de
identidade: possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro.
202
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-Vindo ao deserto do Real! p.115. [grifos do autor]
203
ADORNO, Theodor W. O que significa elaborar o passado. p.29.
204
HABERMAS, Jürgen. O discurso Filosófico da Modernidade. “A libertação do louco, por razões
humanitárias, da situação de abandono a que está sujeito nos locais de internação; a criação de clínicas,
higiênicas com finalidades médicas; o tratamento psiquiátrico dos doentes mentais e o direito que
conseguiram em matéria de compreensão psicológica e cuidado terapêutico torna-se possível pelo
regime institucional que converte o paciente em vigilância contínua, de manipulação, isolamento,
regulamentação e, sobretudo, de pesquisa médica." p.345.
205
KYRILLOS NETO, Fuad. Efeitos de circulação do discurso em serviços substitutivos de Saúde
Mental: Uma perspectiva psicanalítica. p.163.
104
uma outra leitura alternativa à alternativa encontrada atualmente para lidar com as
doenças mentais, quando focamos apenas no efeito asilo, quando nos centramos
unicamente nas práticas mais humanizadoras de inclusão, ignorando estar em um
sistema que produz a própria exclusão instituída?
Acreditamos que sim! E o pior equívoco seria continuar sustentando uma
racionalidade cínica frente a essa situação, como, por exemplo, atacar o manicômio e
não direcionar nossa atenção para as novas formas de dominação, para os novos
dispositivos de controle, que em última análise nos leva a considerar que talvez o
próprio doente mental não seja mais o doente mental presente no discurso psiquiátrico
— não podemos ignorar o fato de que atualmente, devido a própria colonização do
imaginário frente às concepção de normal e patológico os indivíduos possam estar
utilizando da doença mental como modelo de construção para suas identidades —, uma
vez é evidente que este nunca foi apenas um sujeito passivo no processo de construção
do discurso psiquiátrico. Afinal, lembremos que essa é uma tese de Psicologia Social
que segue a tradição iniciada no Brasil a partir dos primeiros escritos de Silvia Lane208
frente à crise das Ciências Humanas na década de 60 do século passado (e que pela
análise de teóricos como Boaventura de Souza Santos ainda persiste209) e que nessa
tradição a Psicologia Social debruça-se sobre a realidade brasileira e atravessa a Teoria
Crítica210 buscando elementos que possibilitem a produção de conhecimento voltado
para a emancipação humana. Esse empreendimento, por sua vez, indica assumir
radicalmente a superação da separação entre o indivíduo e a sociedade, insistindo na
permanência em um ponto de tensão entre a Psicologia211, a Sociologia e a Filosofia.
208
Silvia Lane é autora e organizadora dos dois primeiros livros que inauguram essa chamada Psicologia
Social Crítica, são eles: LANE, Sílvia T. Maurer. O que é Psicologia Social. (1981) e LANE, Sílvia T.
Maurer & CODO, Wanderley. Psicologia Social: O homem em movimento. (1984)
209
Boaventura Santos defende a tese de que hoje vivemos a persistência de um problema complicado,
“uma discrepância entre teoria e prática social que é nociva para a teoria e também para a prática. Para
uma teoria cega, a prática social é invisível; para uma prática cega, a teoria social é irrelevante.” Cf.
SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social.
p.20.
210
Adotaremos para fins de diferenciação a utilização de Teoria Crítica (maiúscula) quando nos
referirmos aos autores filiados de alguma forma com a tradição frankfurtiana e teoria crítica
(minúscula) para as teorias que julgamos de vertente crítica da atualidade.
211
Desde sua criação a Psicologia tem realizado o papel de ciência da normatização; todavia, revestida do
discurso científico e, recentemente, da saúde, tenta manter-se como ciência neutra, desvinculada dos
problemas que ela mesma provoca.
106
212
Um artigo interessante discutindo a Psicologia como ciência Social foi escrito por Nikolas Rose,
professor da University of London, e publicado no volume 20 (2) da Revista da ABRAPSO: Psicologia
& Sociedade. Nele o autor trabalha com a tese de que desde sua separação enquanto ciência
independente a Psicologia Social esteve ligada às Ciências Sociais e não às Ciências da Saúde, que
estariam submetidas ao paradigma médico, o que não quer dizer que ela não possa analisar e ajudar o
desenvolvimento dessa última.
213
Cf. HABERMAS, Jürgen. A crise do Estado de bem-estar e o esgotamento das energias utópicas.
214
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida.
215
Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Os Direitos Humanos e o Nosso Descontentamento.
216
Cf. SAWAIA, Bader Burihan. Participação Social e Subjetividade.
217
Cf. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas.
107
218
Cf. HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento.
219
Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa: crítica de la razón funcionalista;
Idem. Teoria de la Acción Comunicativa: racionalidad de la acción y racionalización social.
220
Cf. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos socais.
221
Por discursos técnico-psicológicos incluímos aqui o discurso psicanalítico, psicológico e psiquiátrico
acerca do ideal de normal e patológico —, que por sua vez, tendem a reduzir a complexidade da
identidade à personagens fetichizadas, sustentadas por um reconhecimento perverso.
SEGUNDA PARTE
ITINERÁRIO TEÓRICO
II. PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA E IDENTIDADE: AS CONTRIBUIÇÕES
DA TEORIA CRÍTICA NOS ESTUDOS DE ANTONIO DA COSTA
CIAMPA E A POSSIBILIDADE DE PENSAR A DOENÇA MENTAL
COMO UM PROBLEMA DE IDENTIDADE
1
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.182.
2
Como apresentado brevemente no capítulo anterior, a Psicologia Social brasileira, sobretudo, a teoria de
identidade proposta por Antonio da Costa Ciampa, atravessa e se insere com todas as suas
conseqüências em uma linha de pensamento comprometida na luta contra a opressão histórica frente à
vontade e a autonomia humana inaugurada a partir de meados da década de 70 do século passado por
Silvia Lane e seus colaboradores.
3
Podemos dizer sinteticamente aqui que Teoria Crítica geralmente é o nome dado ao conjunto teórico-
metodológico filosófico de um grupo de intelectuais marxistas não-ortodoxos que estavam ligados ao
Instituto de Pesquisas Sociais filiado a Universidade de Frankfurt na década de 20 do século passado. A
história empírica do Instituto é bastante conhecida. Após a Semana Marxista de Trabalho — realizada
em 1922, reunindo um grupo de intelectuais eminentes concentrados em torno da temática Marxismo e
Filosofia: Georg Lukács, Karl A. Wittfogel, Friedrich Pollock, Max Horkheimer, Paul Massing e outros
— Karl Korsh (associado tradicionalmente à Antonio Gramsci e a Georg Luckács, que foram
considerados como os precursores do ‘marxismo ocidental’) e Felix Weil, idealizadores e organizadores
da semana, decidem fundar um “instituto para estudos marxistas”. No ano seguinte, em fevereiro, o
“Instituto de Pesquisas Sociais” é fundado em Frankfurt. Os principais expoentes desse instituto foram
Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Walter Benjamin. Após a ascensão de Hitler ao
poder, janeiro de 1933, o Instituto é decretado como ilegal, o que faz com que as atividades sejam
deslocadas para as cidades de Genebra (1933), Paris (1933 a 1936) e Londres (1933 a 1934). Após esse
período Adorno e Horkheimer fixam as atividades do Instituto em Nova York (1934) e Los Angeles
(1941), retornando para Frankfurt após 1950. Para um maior aprofundamento da história do Instituto e
dos integrantes associados à Teoria Crítica indicamos a leitura de: FREITAG, Bárbara. A teoria crítica
ontem e hoje. BRONNER, Stephen E. Da teoria crítica e seus teóricos. WIGGERSHAUS, Rouf. A
escola de Frankfurt: História, desenvolvimento teórico, significação política. O ensaio de Erich
Fromm. Método e função de uma Psicologia Social Analítica. Neste trabalho, publicado em 1932,
Fromm mostra o interesse de articular a Teoria Crítica e a Psicologia Social desde os primeiras
publicações do instituto.
4
Embora se distancie das discussões posteriores aos anos 40 feitas por Horkheimer e Adorno, é explícita
a influência dos primeiros escritos destes na obra habermasiana. A função específica do pensamento
112
crítico (seu caráter prático) é explorado de modo muito mais aprofundado por Habermas em seus
primeiros trabalhos: Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria y Práxis [publicado em 1963 e publicado
ampliado em 1971]; Idem. Técnica e Ciência como “Ideologia” [publicados em 1968]; Id.
Conhecimento e Interesse [originalmente publicado em 1968]; Id. La lógica de las ciencias sociales
[textos originalmente publicados de 1963 a 1977]. Posteriormente essa discussão vai desvanecendo e
aparece apenas de forma implícita nos textos do autor; todavia, dois ensaios muito interessantes podem
ser encontrados em HABERMAS, J. Teoria de La Acción Comunicativa. Tomo I e II [1981], pois em
dois momentos desse trabalho Habermas retoma a função da Teoria Crítica e o problema da
compreensão nas Ciências Sociais (Cf. op. cit., p.147-196 do primeiro volume e p.527-572 do segundo).
5
Axel Honneth chama atenção para o fato de que ao propormos reatualizações devemos escolher dois
caminhos: ou partimos para a reatualização “direta”, prezando a integridade dos conceitos e sistemas
(nesse caso criticando as possíveis más compreensões), ou realizamos uma reatualização “indireta”
(aqui se justificaria a reconstrução e utilização de certos conceitos em detrimento de outros em função
dos problemas colocados pelo presente). Na tese ficará explícita nossa adoção pela segunda proposição.
Cf. HONNETH, Axel. Sofrimento de Indeterminação: Uma reatualização da Filosofia do Direito
de Hegel.
6
Essa constatação será melhor explorada quando discorrermos acerca da concepção de metamorfose e
articulação de personagens, que difere e singulariza a teoria de identidade desenvolvida por Ciampa das
demais concepções tradicionais e atuais desenvolvidas pela sociologia e psicologia.
7
Juracy Armando Mariano de Almeida, confirma essa proposição em sua tese de doutoramento ao
afirmar que no Brasil, Roberto Cardoso de Oliveira (1976), antropólogo, com seus estudos de identidade
étnica, e Ciampa (1977), psicólogo, com seus estudos sobre a identidade social, personificam marcos
iniciais da utilização da noção de identidade em suas respectivas áreas de estudo.” Cf. ALMEIDA, J. A.
M. Sobre a Anamorfose: Identidade e Emancipação na velhice. p.46.
113
8
Essa colocação deve-se ao fato de não notarmos na dissertação de mestrado escrita por Ciampa a ênfase
no potencial teórico de George Mead em suas proposições, Mead aparece indiretamente na análise que
Ciampa faz de Berger & Luckmann, uma vez que aquele influencia estes.
9
KOLYNIAK, Helena Maria Rath. & CIAMPA, Antonio da Costa. Corporeidade e Dramaturgia do
cotidiano. p. 09.
10
CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade Social e suas relações com a ideologia.
11
Principalmente o texto: BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade.
12
CIAMPA, A. C. op.cit. p. 19
13
Ibidem. p. 19
14
Ex-orientando de Theodor Sarbin, criador da Teoria do Papéis. Cf. SARBIN, Theodor R. & SCHEIBE,
Karl E. Studies in Social Identity e SCHEIBE, Karl E. Beliefs and Values.
114
15
CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade Social e suas relações com a ideologia. p.37 et seq.
16
Ibidem. p.142.
17
Cf. Idem. A estória do Severino e a História da Severina.
18
LANE, Silvia T. M. Prefácio. p.10.
115
19
Em sua tese, Ciampa se vale apenas de dois trabalhos de Habermas: Conhecimento e Interesse e Para
a reconstrução do materialismo histórico.
20
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.145. Embora nessa
citação Ciampa esteja se referindo a articulação que Ciampa faz das teorias de Freud e Marx, podemos
dizer que nela é possível também pensar as proposições meadianas da articulação entre o “eu” e o
“mim” para além do modelo darwinista, incorporando-os ao materialismo histórico.
21
Quando Ciampa afirma isso está se referindo à personagens que mesmo após a morte continuam sendo
utilizadas como referência para a composição de outras personagens, como exemplo podemos citar os
casos das personagens Jesus Cristo, Elvis Presley etc., que continuam influenciando a construção das
identidades.
116
26
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.60.
A distinção identificada e defendida por Ciampa é entre identidade individual e identidade coletiva,
ambas como identidades sociais. Essa distinção será melhor explorada a partir da próxima sessão desse
capítulo.
27
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.198.
28
HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.63.
29
MEAD, George Herbert. The mechanism of social consciousness. p.406. Tradução nossa: “the self-
conscious, actual self in social intercourse is the objective ‘me’ or ‘me’s’ with the process of response
continually going on and implying a fictitious ‘I’ always out of sight of himself.”
118
30
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.170-171.
31
Idem. Identidade. p.60.
32
Cf. Idem. A estória do Severino e a História da Severina. p.136 et seq.
33
Ibidem. p.139.
34
Idem. As metamorfoses da ‘Metamorfose Humana’: Uma utopia emancipatória ainda é possível
hoje? p.1.
119
articulação entre o “mim” e o “eu”, pode ocorrer um tipo de problema que impede o
indivíduo de se auto-determinar.
Marquemos essa atualização da proposição meadiana de constituição identitária.
Para Ciampa, assim como para Mead, a influência do discurso social é determinante na
construção da identidade. A questão que se apresenta para entender a constituição do Eu
é a da compreensão, do entendimento, do jogo lingüístico responsável pela socialização
e individualização do bicho-humano. Não obstante, é preciso captar o jogo das
aparências, a “preocupação é com o que se oculta, fundamentalmente com o
desvelamento do que se mostra velado”35. O fato de Ciampa mostrar com a história da
Severina que é a partir da linguagem, do ser nomeado, que o bicho-humano se
humaniza, se determina36 — ou como ensina Piera Aulagnier37, se aliena de si-mesmo
para futuramente se libertar —, não apresenta novidades frente às idéias de Mead.
Entretanto, no que se refere à discussão acerca das possibilidades de aprisionamento e
impedimento da concretização da auto-determinação, Ciampa amplia a leitura de
desenvolvimento do self proposto por Mead, inclusive, apresentando elementos que não
haviam sido abordados na época por teóricos do reconhecimento como Charles Taylor38
e Axel Honneth39.
Lembremos que Mead já alertava para o fato de enquanto Outros generalizados,
as instituições podem interferir de forma negativa no desenvolvimento dos selves.
35
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.139.
36
Ibidem. p.132.
37
AULAGNIER, Piera. Um interprete em busca de sentido I.
38
Cf. TAYLOR, Charles. La politica del riconoscimento.
39
Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais..
40
MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.262.
Tradução nossa: “Oppressive, stereotyped, and ultra-conservative social institutions — like the church
— wich by their more or less rigid and inflexible unprogressiveness crush or blot out individuality, or
discourage any distinctive or original expressions of thought and behavior in the individual selves or
personalities implicated in and subjected to them, are undesirable but not necessary outcomes of the
general social process of experience and behavior.”
120
41
Cf. MARX, Karl. O fetichismo da mercadoria: o seu segredo.
42
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.140.
43
É possível que um leitor atento a tal proposição levante os seguintes questionamentos: O que e como
seria esse ‘jogo do reconhecimento’? De que modo ele faz com que a identidade seja sempre
pressuposta? Por que a pressuposição abre o precedente para que haja reposição? Apesar de essas
questões serem trabalhadas nas páginas que se seguem, elas serão mais detalhadas a partir da página
165 e seguintes, quando trouxermos as contribuições de Honneth, Mead e Winnicott acerca do processo
de socialização e individualização dos indivíduos.
44
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.153.
45
Cf. HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.14 et seq.
46
Idem. Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome. p.143.
47
Ibidem. p.143.
121
como reforça Ciampa, encarnam “múltiplas personagens que ora se conservam, ora se
sucedem; ora coexistem, ora se alternam”48, que indicam como que “modos de
produção da identidade”, ou poderíamos dizer, modos de produção de uma história
pessoal.
Identidade é história. Isto nos permite afirmar que não há personagens fora de
uma história, assim como não há história (ao menos história humana) sem
personagens.
Como é óbvio, as personagens são vividas pelos atores que as encarnam e que
se transformam à medida que vivem suas personagens. Enquanto atores,
estamos sempre em busca de nossas personagens; quando novas não são
possíveis, repetimos as mesmas; quando se tornam impossíveis tanto novas
como velhas personagens, o ator caminha para a morte, simbólica ou
biológica.49
Daí a expectativa generalizada de que alguém deve agir de acordo com suas
predicações e, consequentemente, ser tratado como tal. De certa forma, re-
atualizamos, através de rituais sociais, uma identidade pressuposta, que assim é
vista como algo dado (e não como se dando continuamente através da re-
48
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.156.
49
Ibidem. p.157.
50
BACHELARD, Gaston. La intuición del instante. p.26. Tradução nossa: “no de una causa inmóvil y
constante, sino de una yuxtaposición de huidizos e incesantes, cada uno con su base solitaria, y cuya
ligadura, que no es otra cosa que un hábito, compone o individuo.”
122
51
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.163-164.
52
BACHELARD, Gaston. La intuición del instante. p.28.
53
Idem. ‘Op.cit.. p.73. Tradução nossa: “como una asimilación rutinaria de una novedad.”
54
CIAMPA, A. C. op.cit. p.140. Para Ciampa a idéia de ser-para-si significa “buscar a autodeterminação
(que não é a ilusão de ausência de determinações exteriores); ‘tornar-se escrava de si própria’ (que de
alguma forma é tentar tornar-se sujeito); procurar a unidade da subjetividade e da objetividade, que faz
agir uma atividade finalizada, relacionando desejo e finalidade, pela prática transformadora de si e do
mundo.” Ibid. p.146.
55
BAUDRILLARD, Jean. Esquecer Foucault. p.31.
56
Cf. MARX, Karl. O fetichismo da mercadoria: o seu segredo. p.79 et seq.
57
CIAMPA, A. C. op.cit. p.165.
123
Não como término, mas como ponto de partida. O imperativo ético dessa
concepção de identidade é explicitado: não há como determinar um a priori para as
formas de vida. Cada biografia deve adquirir uma história única que possa tanto
identificá-la como uma singularidade dotada de direitos individuais, quanto uma
universalidade que expressa uma coletividade. A doença mental no caso de Severina,
para não generalizar todos os casos de loucura, aparece como única possibilidade de
resistência a um mundo desumanizador. O problema, como é bem frisado em sua
história, é que ao ser diagnosticada como doente mental passa a ser reconhecida como
escrava inutilizada. Visualisamos um paradoxo, aquilo que para os especialistas era
visto como doença mental, por representar a incapacitação para a exploração, do ponto
de vista de Severina tornou-se a possibilidade de finalmente se libertar da escravidão e
ficar livre do encosto62. Se considerarmos que vivemos em uma sociedade desigual e
exploradora, e que a identidade se forma sempre a partir da pressuposição, da re-posição
e alterização, a idéia de que a identidade é metamorfose adquire seu pleno significado,
ou seja, a luta pela emancipação. Isto posto, abre-se espaço para que exploremos o outro
movimento da identidade: a mesmidade. Mas antes de discorrer acerca do conceito de
mesmidade parece-nos, importante algumas das considerações desenvolvidas por
Habermas em Para a reconstrução do materialismo histórico e Conhecimento e
Interesse —, uma vez que será a partir delas que Ciampa concluirá que o impedimento
da emancipação e a manutenção da mesmice não se constituem como algo inevitável.
Em Para a reconstrução do Materialismo Histórico, Habermas afirma que o ser
social apenas se destaca da natureza, emergindo pela primeira vez na história, com o
advento das ações executadas exclusivamente na esfera interativa: o “sistema de
comunicação” progrediu diretamente das “interações mediatizadas de modo gestual”
dos homínidas, por consequência da familização do homem. Com o advento da família,
a ordem hierárquica dos primatas e homínidas (unidimensional) é substituída pela
ordem hierárquica dos homo sapiens (pluridimensional), que passa a ser organizada a
partir de relações intersubjetivas fundadas em expectativas de comportamento e
61
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.92.
62
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.67 et seq.
125
63
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do Materialismo Histórico. p.115 et seq.
64
Ibidem. p.117.
65
Idem. Técnica e Ciência como Ideologia.
126
66
Encontramos a influência de dois grandes psicanalistas alemães na obra habermasiana, são eles:
Alexander Mitscherlich e Alfred Lorenzer. O primeiro é lembrado principalmente no trabalho Texto e
Contexto, o segundo, por sua vez, aparece na obra citada Conhecimento e Interesse. Em nossa
opinião, a leitura da psicanálise realizada por Habermas, principalmente as críticas direcionadas à
psicanalistas como Jacques Lacan (embora Lacan seja reconhecido como um dos grandes autores que
discutem a relação entre linguagem e psicanálise, apenas é rapidamente citado por Habermas no
Discurso Filosófico da Modernidade e Pensamento Pós-metafísico), devem-se à disputa entre
Lorenzer (que articula Wittgenstein e Marx) e Lacan (estruturalismo e Saussure) acerca da apropriação
da Psicanálise lingüisticamente orientada. Para uma melhor compreensão do diálogo entre esses dois
autores sugerimos a leitura da advertência para a reedição da obra El lenguaje destruido y la
reconstrucción psicoanalítica, de Alfred Lorenzer.
67
LORENZER, Alfred. El lenguaje destruído y la reconstrucción psicoanalítica. p.23.
68
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. p.232.
69
Op.cit. p.238. Aqui o autor se refere a FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana.
70
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos.
71
O interesse de Lorenzer pelas idéias de Wittgenstein direcionam esse autor para a correlação da análise
dos sonhos com os símbolos. Wittgenstein achava que o sonho era um desafio para a análise da
linguagem. Em uma palestra sobre psicologia afirma que “se um símbolo num sonho não for
compreendido, não parecerá ser absolutamente um símbolo.” Cf. WITTGENSTEIN, L. Estética,
Psicologia e Religião: Palestras e conversações. p.78.
72
Tanto Lorenzer como Lacan atribuem a Marx novas possibilidades para a leitura da psicanálise. Slavoj
Žižek em sua tese de doutoramento dedica um capítulo específico para discutir como aquele autor
127
entende que Lacan atribui à Marx a criação do sintoma. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. O mais sublime dos
histéricos. O capítulo dessa tese referente à criação do sintoma foi publicado também em ŽIŽEK,
Slavoj. (org.) Um mapa da Ideologia, sob o título: Como Marx inventou o sintoma?
73
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. p.239.
74
Cf. FROMM, Erich. Grandezas e limitações do pensamento de Freud.
75
HABERMAS, Jürgen. Op. cit. p.271.
76
Ibidem. p.298-299.
128
Marx, nesse contexto, será considerado por Habermas como em vantagem frente
à teoria freudiana, por ser “herdeiro de uma tradição idealista, que mantém a síntese
como ponto de referência”, e assinalar que as formas pelas quais as ações são
executadas e os conflitos são decididos “são, pelo contrário, dependentes das condições
culturais de nossa existência: trabalho, linguagem e poder”77. A razão é inerente ao
conhecimento. Sob essas premissas, Habermas não poderia deixar de apontar que Freud,
em sua psicanálise, depara-se com a situação “onde a maiêutica do médico não pode
incentivar a auto-reflexão do doente senão sob o impacto da coerção patológica do
interesse correspondente de a remover”78. A adaptação da natureza externa à sociedade
com a ajuda das forças de produção (instrumentais), e da natureza interna com a ajuda
das estruturas normativas (comunicativas), será entendida como adaptação inteligente à
realidade exterior, frente às crises de legitimação, que se configuram:
77
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. p.299.
78
Ibidem. p.301. A relação com a psicanálise será criticada por Hans-Georg Gadamer fortemente em A
universalidade do problema hermenêutico. Nesse texto Gadamer acusa Habermas de seguir uma
lógica de difícil aplicação na realidade, pois diferentemente do sofrimento e desejo de cura presentes
na intervenção terapêutica, que é imputada ao analista por meio de uma autoridade que possibilita que
este esclareça as motivações reprimidas e derrube as resistências, na vida social, cuja “resposta se dá
mediante a autoridade do médico bem informado [...] no âmbito social e político falta uma base
específica para a análise comunicativa, cujo tratamento o doente aceita livremente porque conhece sua
doença”. op. cit., p. 313. Uma série de cautelas institucionais que protegem o paciente frente a um
possível excesso do psicanalista, principalmente frente à interpretação, cuja possibilidade de “um
mascaramento pseudo-comunicativo”, vai ser entendido por Gadamer como um fenômeno que ocorre
no âmbito social, a resistência do oponente e a resistência contra o oponente, uma pressuposição
comum a todos. Em outras palavras, as questões relativas à emancipação no âmbito social e político
não são susceptíveis de um tratamento epistemológico-hermenêutico, pois seguem convenções
político-sociais. Dessa forma, para Gadamer não há, como pretendia Habermas, um paralelo entre a
psicanálise e luta política, ao passo que nesta última o adversário não pode ser considerado como um
dialogante.”
79
HABERMAS, Jürgen. Crise de legitimação no capitalismo tardio. p.12.
129
80
Para maior aprofundamento nesse debate sugerimos a leitura de nosso trabalho: LIMA, Aluísio Ferreira
de. Hermenêutica das tradições ou Crítica das ideologias? Um debate entre Hans-Georg
Gadamer e Jürgen Habermas, ou ainda, HABERMAS, Jürgen. Pretención de universalidad de la
hemenéutica; HABERMAS, Jürgen. ¿Cómo es posible la metafísica después del historicismo?;
HABERMAS, Jürgen. Sobre “Verdade e Método” de Gadamer; GADAMER, Hans-Georg. A
universalidade do problema hermenêutico; RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias e STEIN,
Ernildo. Dialética e Hermenêutica: Uma controvérsia sobre método em filosofia.
81
PRADO Jr. Bento. Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito? p.23.
82
PRADO, José Luiz Aidar. Teoria da sociedade ou teoria da comunicação? p.233.
83
Ibidem. p.236.
130
O que podemos entender com as duas citações é que a separação realizada por
Habermas, que estabelece um normal-pragmático responsável pelas condições
universais da comunicação, e por sua vez, exclui do padrão o que é considerado
patológico, torna-se problemática em uma sociedade cujo mundo da vida está
submetido a uma razão instrumental/sistêmica. Fenômeno decorrente em uma sociedade
capitalista que se diferencia cada vez mais das sociedades mais tradicionais, lançando
um discurso disciplinar, reforçador de uma identidade única e imutável. Mas que, pelo
contrário, seria uma sociedade que estimularia a proliferação daquilo que Slavoj Žižek
denominou “estruturas normativas duais”86, onde os indivíduos estariam sendo
socializados por meio da internalização simultânea de duas estruturas normativas, que
embora contraditórias, servem como complementares uma à outra.
Sendo assim, mesmo que não tenha sido objeto de reflexão na época da escrita
de A estória do Severino e a História da Severina, parece-nos apropriado transcrever
aqui uma citação de um dos estudos mais atuais de Habermas, que apresenta de forma
sintética o impacto dessa transformação da organização capitalista:
84
PRADO, José Luiz Aidar. Teoria da sociedade ou teoria da comunicação? p.264. [grifos do autor]
85
Ibidem. p.266.
86
Essa estrutura dual se caracterizaria para Žižek a partir da articulação entre a lei simbólica que visa
normatizar, de forma explícita, as interações sociais a partir dos ideais de auto-regulação; e da lei do
supereu que visa impor uma forma de interação pautada na satisfação irrestrita. Cf. ŽIŽEK, Slavoj.
Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia.
131
A negação da negação permite a expressão do outro outro que também sou eu:
isso consiste na alterização da minha identidade, na eliminação de minha
identidade pressuposta (que deixa de ser re-posta) e no desenvolvimento de
uma identidade posta como metamorfose constante, em que toda a humanidade
contida em mim se concretiza. Isso permite me representar (1o sentido) sempre
como diferente de mim mesmo (deixar de presentificar uma representação de
mim que foi cristalizada em momentos anteriores, deixar de repor a identidade
pressuposta).90
87
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. p.44.
88
Ibidem. p.46. Nos estudos atuais, Habermas tem direcionado seus esforços para propor uma teoria do
direito que possa validar e concretizar sua teoria da ação comunicativa. Ele esclarece que o direito “é
entendido aqui somente sob o ponto de vista funcional da estabilização de expectativas de
comportamento.” Ibid. p.72.
89
Retomaremos essa questão em nosso itinerário empírico.
90
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.181.
132
91
HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.13.
92
BERGER, Peter. Excurso: Alternação e Biografia. p.75-76.
93
Ibidem. p.75.
94
Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. Dependência de drogas e psicologia social: um estudo sobre o
sentido das oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da teoria de identidade.
133
não estejam prévia e autoritariamente definidos. Ciampa assinala que em sua forma
concreta essas identidades alterizadas se definem “pela aprendizagem de novos valores,
novas normas, produzidas no próprio processo em que a identidade está sendo
produzida, como mesmidade de aprender (pensar) e ser (agir)”95. Novamente, fica claro
que nessa perspectiva o desenvolvimento de normas intersubjetivas válidas e a
progressiva concretização da identidade humana depende das possibilidades de acesso à
liberdade de escolha do que seja uma vida boa para cada um. Alteridade e mesmidade
alinham-se à noção de desenvolvimento da liberdade subjetiva hegeliana96, reforçando a
idéia de que a identidade é uma questão política, contra as estratégias de dominação
que, como bem assinalou Slavoj Žižek97, têm como objetivo a produção de indivíduos
ideais, “cínicos privados”, que somente conseguem existir se o sistema está “aí” e se
pode contar com outros ingênuos que “acreditam de verdade”. Acreditamos que seja
interessante transcrever uma citação de Ciampa, um pouco longa, que parece sintetizar
muito bem as proposições trazidas até agora:
95
CIAMPA, Antonio da Costa. Políticas de Identidade e Identidades Políticas. p. 241.
96
Cf. HEGEL, Georg W. F. Introdução à História da Filosofia. p.16 et seq. É certo que quando Ciampa
trabalha com o conceito de alteridade em sua tese de doutorado o traz a partir das proposições
habermasianas, todavia, fazemos aqui a menção de Hegel e Mead por ser nesses autores que Habermas
irá buscar elementos para pensar essa questão.
97
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.17.
134
Isto posto, resta-nos dizer que com a articulação da psicologia social de Mead, a
filosofia hegeliana e a Teoria Crítica habermasiana, fica evidente que a teoria de
identidade que Ciampa traçou em A estória do Severino e a História da Severina faz
parte de uma Psicologia Social Crítica. Do mesmo modo, acreditamos que tenha ficado
explícito que o propósito dessa teoria é evidenciar que a identidade deve ser
compreendida como metamorfose humana, que é, por sua vez, luta por reconhecimento
frente a uma sociedade capitalista que tende a reduzir a identidade a personagens
fetichizadas que negam sua totalidade em favor do universal dominante: o Capital. O
interesse científico dessa concepção envolve uma dimensão prática e teórica; “interesse
(prático) pela transformação do sistema social, interesse pela libertação da coerção;
interesse (teórico) pela clarificação da situação que se constitui nas condições sob as
quais vivemos”99.
O ponto de partida dessa teoria de identidade é constituído pelo princípio no
qual Ciampa coincidirá com Habermas: o entendimento do desenvolvimento da
sociedade dá-se pela compreensão de como os indivíduos se desenvolvem até o ponto
de se transformarem em pessoas, que podem “afirmar a própria identidade independente
dos papéis concretos e de sistemas particulares de normas”100, transformando-se de fato
em autores de suas histórias de vida. Nesse sentido, o processo de socialização e
individualização da identidade é entendido como sendo sempre algo que pode ser
observado na história da espécie. Em sua forma política está ligado também às formas
de reconhecimento mútuo, que são necessárias, senão inevitáveis para a constituição das
personagens, o que aproxima Ciampa das proposições de Honneth101 e nos permite dizer
que: a história da Severina é a história da luta pelo reconhecimento de sua humanidade e
pelo “tornar-se escrava de si mesma”. A identidade, portanto, é concretizada a partir de
um processo de significações estabelecidas com outros indivíduos, no jogo do
reconhecimento. Isso nos leva a admitir que se identidade manifesta-se a partir de uma
pluralidade de personagens ou se ela torna-se reduzida a uma personagem fetichizada,
ainda assim é pela relação de reconhecimento que ela se mantém estruturada.
98
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.227-228.
99
Ibidem. p.216. grifos do autor.
100
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. p.64.
101
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.
135
102
TAYLOR, Charles. As fontes do Self: A construção da identidade moderna. p.44 et seq.
103
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I. p.425. Tradução nossa: “al
menos uno de los participantes se engaña a si mesmo al no darse cuenta de que está actuando en
actitud orientada al éxito y manteniendo solo una aparencia de acción comunicativa.”
104
Idem. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. p.41.
105
A idéia de “vida boa” apresentado por Habermas refere-se a forma de vida escolhida de forma não
coercitiva.
106
CIAMPA, Antonio da Costa. As metamorfoses da ‘Metamorfose Humana’: Uma utopia
emancipatória ainda é possível hoje? p.3.
136
107
MEAD, George Herbert. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.162.
Tradução nossa: “a person is a personality because he belongs to a community, because he takes the
institutions of the community into his own conduct.”
137
108
Para maior aprofundamento do que seria práxis reiterativa, conferir o trabalho: VASQUEZ, Adolfo
Sánchez. Filosofia da Práxis. De forma sintética podemos adiantar que para Vasquez a práxis pode se
apresentar de duas formas: como práxis reiterativa ou como práxis inovadora. A primeira é aquela que
segue com conformidade as leis traçadas a priori e cujos produtos seguem em conformidade com o
desenvolvimento social; a segunda, por sua vez, questiona as leis previamente determinadas e resulta
em um produto novo e único.
109
Cf. AUSTIN, John L. Cómo hacer cosas con palabras.
138
de fala constatativos estaria contida uma proposta que nos permitiria recorrer à fonte
experimental de onde o falante tira a certeza de que aquilo que afirma é verdade; e que
nos atos de fala regulativos encontramos apenas a proposta por parte do falante de
indicar, se necessário, o contexto normativo que lhe dá convicção de que sua expressão
está certa. Inaugura-se um ideal de normalidade para a linguagem, cujo pressuposto é
que o falante experiencia uma obrigação imanente aos atos de fala, mais concretamente,
a obrigação de provar a verdade, ou seja, demonstrar nas conseqüências de suas ações
o que realmente queria. Nessa perspectiva, a força de um argumento consiste em seu
conteúdo racional, explicitado em sua capacidade de convencimento dos indivíduos
envolvidos na negociação, em outras palavras, na capacidade de fazê-los compreender
as pretensões de validade contidas nos proferimentos postos em questão. Aqui aparece a
criticada “situação ideal de fala”110, em que pressupõe-se o exercício efetivado de uma
estrutura pragmática de comunicação, da prática comunicativa lingüística, isenta de
qualquer tipo de coação externa ou distorção interna111. E a partir dessa concepção,
Habermas designa a estrutura pragmática da comunicação, ou seja, toda a série de
caracteres formais que devem ser contidos nas argumentações discursivas geradoras de
consenso.
No que se refere ao gênero humano, essa concepção leva Habermas a defender
que diferente das espécies naturais, o humano emancipou-se da esfera da natureza por
ser dotado de um atributo inerente: a “competência comunicativa”, entendida como
“competência universal, ou seja, independente desta ou daquela cultura”112. Essa
competência comunicativa criaria todas as possibilidades para a individuação,
socialização e desenvolvimento cultural dos indivíduos. Nesse sentido, importa-lhe
demonstrar que o emprego lingüístico “estratégico”, ou seja, a comunicação que
seguiria uma orientação não para o “entendimento”, mas para o “sucesso”, para o
“conflito”, para a “competição”, está numa relação de dependência com o emprego
lingüístico de “orientação para o entendimento”. Em outras palavras, a Habermas
110
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa. Tomo I. p.46.
111
Sérgio Paulo Rouanet escreve que a situação ideal de fala repele tanto as ideologias como as neuroses,
elementos que prejudicariam a aquisição intersubjetiva de consenso por parte de sujeitos lingüística e
interativamente competentes. Cf. ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. p.294. José
Luiz Aidar, por sua vez, critica essa idealidade por achar que ao não considerar os elementos
inconscientes presentes no discurso, Habermas estaria sendo de certa maneira ingênuo. Cf. PRADO,
José Luiz Aidar. Teoria da Sociedade ou Teoria da Comunicação? p.213 et seq.
112
HABERMAS, Jürgen. Notas sobre el desarrollo de la competencia interactiva. Tradução nossa:
“competencia universal, es decir, independiente de ésta o aquella cultura”. p.161.
139
113
Para maiores detalhes acerca da contradição performativa, consultar o trabalho: Idem. Consciência
moral e agir comunicativo. p.113-114.
114
HABERMAS, Jürgen. O que é a Pragmática universal? p.15. [grifos do autor]
115
Idem. Pensamento pós-metafísico. p.145.
116
Idem. O que é a Pragmática universal? p.98. [grifos do autor]
140
117
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.
p.196.
118
Ibidem. p.196. Tradução nossa: “estructuras simbólicas del mundo de la vida se reproducen por vía de
la continuación del saber válido de la estabilización de la solidaridad de los grupos y de la formación
de actores capaces de responder de sus acciones.”
119
Ibidem. p.171. Tradução nossa: “la acción comunicativa se basa en un proceso cooperativo de
interpretación en que los participantes se refieren simultaneamente a algo en el mundo objetivo, en el
mundo social y en el mundo subjetivo”.
120
Habermas escreve que introduz o mundo da vida “privisonalmente, y, por cierto, desde la perspectiva
de una investigación reconstrutiva. Constituye un concepto complementario del de acción
comunicativa.”
141
121
Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.
p.187-188.
122
Ibidem. p.179. Tradução nossa: “en que hablante y oyente se salen el encuentro; en que pueden
plantearse reciprocamente le pretención de que sus emisiones concuerdan con el mundo (con el mundo
objetivo, con el mundo subjetivo y con el mundo social); y en que pueden criticar y exhibir los
fundamentos de esas pretensiones de validez, resolver sus disentimientos y llegar a un acordo. En una
palabra: respecto al lenguaje y a la cultura los participantes no pueden adoptar in actu la misma
distancia que respecto a la totalidad de los hechos, de las normas o de las vivencias, sobre que es
posible el entendimiento.
123
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.p.169.
124
Ibidem. p.175.
125
Ibidem. p.196. Tradução nossa: “bajo el aspecto funcional de entendimiento, la acción comunicativa
sierve a la tradición y a la renovación del saber cultural; bajo el aspecto de coordinación de la acción,
sirve a la integración social y a la creación de solidaridad; y bajo el aspecto de socialización,
finalmente, sirve a la formación de identidades personales.”
142
126
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.p.196.
127
Ibidem. p.202. Tradução nossa: “tan sólida que les permite dominar con pleno sentido de la realidad
las situaciones que surgen en su mundo de la vida.”
128
PRADO, José Luiz Aidar. O pódio da normalidade: considerações sobre a teoria da ação
comunicativa e a psicologia social. p.152.
129
O ensaio de Herbert Marcuse, apresentado na Conferência do XV Congresso de Sociólogos da
Alemanha, em Heidelberg, no ano de 1964, intitulado: Industrialização e Capitalismo na obra de
Max Weber, aprofunda essa discussão e inaugura o conceito de razão instrumental, que será resgatado
por Habermas em Ciência e Técnica como “Ideologia” e posteriormente utilizado como elemento
central na construção da Teoria da Ação Comunicativa. De acordo com Herbert Marcuse, o processo
de racionalização descrito por Max Weber não teria implantado a racionalidade propriamente dita, mas
sim, “uma forma determinada de dominação política oculta”. Nesse sentido, a “ação racional referente
a fins” derivada deste tipo de racionalidade nada mais é do que “exercício de controle”. Como explica
Jessé Souza, para Max Weber existe uma diferença entre racionalismo e racionalidade. Esta última
significa “o imperativo de qualquer existência humana de tornar-se uma personalidade na medida em
que a corrente de decisões última que dá, em última instância, o sentido da individualidade de uma
vida, passa a ser conscientemente executada e mantida.” Cf. SOUZA, Jessé. Patologias da
modernidade: um diálogo entre Habermas e Weber. p.69. Racionalismo, por sua vez, “significa a
forma, culturalmente singular, como uma civilização específica, e por extensão também os indivíduos
que constituem sua maneira de pensar e agir a partir desses modelos culturais, interpreta o mundo.”
SOUZA, Jessé. O mundo desencantado. p.8
143
130
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.
p.258. Tradução nossa: desconectan la coordinación de la acción de la formación lingüística de
consenso, neutralizándola”. [grifos do autor] Em outro trabalho, Habermas vai escrever que por via
sistêmica o mundo da vida, que serve como pano de fundo, é neutralizado, principalmente “quando se
trata de vencer situações que caíram sob imperativos do agir orientado pelo sucesso; o mundo da vida
perde sua força coordenadora em relação à ação, deixando de ser fonte garantidora do consenso.”
Idem. Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos. p. 97
131
Idem. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista. p.259.
132
De acordo com o diagnóstico habermasiano, o mundo da vida sofre uma forte influência de uma razão
instrumental que predominaria no "sistema", isto é, nas esferas da economia e da política (Estado) que,
no processo de modernização capitalista, acabou dominando e "colonizando" o mundo da vida. Os
termos ‘pano de fundo’ , ‘primeiro plano’ e ‘recorte do mundo da vida relevante para a situação’, só
fazem sentido se adotarmos a perspectiva de um falante que deseja entender-se com outro sobre algo
no mundo e que pode apoiar a plausibilidade da oferta de seu ato de fala sobre uma massa de saber não
temático, partilhado intersubjetivamente.
133
Cf. Ibidem. p.232 et seq.
144
134
HABERMAS, Jürgen. Teoria de La Acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista.
p.264. Tradução nossa: “las coacciones dinamanantes de la reproducción que instrumentalizan al
mundo de la vida sin menguar la apariencia de autarquía de esse mundo tiene, por así decirlo, que
ocultarse en los poros de la acción comunicativa. El resultado de ello es una violencia estructural que,
sin hacerse manifesta como tal, se apodera de la forma de la intersubjetividad del entendimiento
posible. La violencia estructural se ejerce a través de una restricción sistemática de la comunicación.”
[grifos do autor]
135
Ibidem. p.502.
136
Ibidem. Loc. cit. Tradução nossa: “a una racionalización unilateral o a una cosificación de la prática
comunicativa cotidiana”.
137
Ibidem. p.464. Tradução nossa: “en las deformaciones del mundo de la vida se aúnan síntomas de
anquilosamiento com sintomas de desertización”.
138
Ibidem. p.465.
139
Ibidem. p.469.
145
140
HABERMAS, Jürgen. Expressão simbólica e comportamento ritual: uma visão retrospectiva
sobre Ernst Cassirer e Arnold Gehlen. p. 86.
141
Idem. Más allá del Estado Nacional. p.161. Tradução nossa: “resultan susceptibles de ser
adoctrinados y puestos en movimiento por cadillos plebiscitarios y ser movidos a acciones de masas.
142
Axel Honneth é conhecido como o mais novo herdeiro frankfurtiano, representando a terceira geração
da Teoria Crítica. Foi assistente de Habermas entre 1984 e 1990, atualmente é professor titular de
filosofia social da Universidade Goethe e diretor do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt.
146
143
Cf. NOBRE, Marcos. Luta por recohecimento: Axel Honneth e a teoria crítica. José Luiz Aidar
Prado realizou uma crítica que segue nesse sentido. Esse autor entende como complicada a divisão
realizada por Habermas entre sistema e mundo da vida, porque este último não teria explicado como
ocorrem os fluxos entre os dois mundos. “A crítica resulta ancorada num paradigma comunicativo que
precisa, para sua definição, de um conceito de ‘uso normal da linguagem’, posição esta que permitiria
a correlação de desvios ideológicos. Essa dupla face da razão, fatiando a sociedade em mundo da vida
e sistema, por um lado, sem especificar de modo satisfatório a relação de negociação diante dos
conflitos entre esses mundos, e a idealização da ação comunicativa, [por outro], fazem com que a saída
habermasiana seja extremamente problemática.” PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do
intelectual: do extrato comunicável ao ato impossível. p.88.
144
WERLE, Denílson Luis & MELO, Rúrion Soares. Teoria crítica, teorias da justiça e a
“reatualização” de Hegel. p.12.
145
Ibidem. p.12-13.
147
146
HONNETH, Axel. Patologias da liberdade individual. p.90.
147
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma
categoria da sociedade burguesa.
148
Idem. Direito e Democracia. Volume II. p.91 et seq.
149
Ibidem. p.91.
150
MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.235 et
seq.
148
delinear seus limites internos, exteriormente ela [a esfera pública] se caracteriza através
de horizontes abertos permeáveis e deslocáveis”151, e assemelha-se ao Mundo da Vida,
na medida em que “se reproduz através do agir comunicativo”152.
A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a
comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos
comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de condensarem-se em
opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.153
151
HABERMAS, Jürgen. op.cit. p.92.
152
Ibidem. Loc. cit.
153
Ibidem. Loc. cit.
154
Idem. Direito e Democracia. Volume II. p.95-96.
155
Ibidem. p.96. [grifos do autor]
156
MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.260 et
seq.
157
Ibidem. p.265. Tradução nossa: “The ‘organized other’ present in ourselves is then a community of a
narrow diameter.”
149
158
MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.265.
Tradução nossa: “In general, the self has answered definitely to that organization of the social response
which constitutes the community as such; the degree to which the self is developed depends upon the
community, upon the degree to which the individual calls out that institutionalized group of responses
in himself.”
159
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real. p.25
160
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.131.
161
CIAMPA, Antonio da Costa. Políticas de Identidade e Identidades Políticas. p.134.
150
162
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.132.
163
ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.36.
151
164
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? p.117.
152
pode ser encontrado no conteúdo das entrevistas preliminares da pesquisa que temos
orientado de estudantes de graduação do curso de Psicologia da Universidade Federal
do Ceará – UFC.165 Nessa pesquisa, as estudantes envolvidas166 tem se deparado com o
desconhecimento por parte dos transeuntes, donos de estabelecimentos e moradores, do
que é o prédio existente naquela localidade; os que sabem que ali é um CAPS, ao serem
questionados acerca do propósito da instituição e se conseguem se enxergar como
possíveis usuários do serviço, mostram-se confusos e em sua maioria dizem que aquele
é um lugar para tratar das pessoas loucas que podem ser perigosas para a sociedade e
que não freqüentariam o lugar. Vale esclarecer, utilizando-nos da contribuição de
Sampaio e Carneiro167, que a rede de Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral – CE
somente passou a ser implementada a partir de 1999, mais precisamente após a morte
trágica de Damião Ximenes Lopes na Casa de Repouso Guararapes — episódio que fez
com que o Brasil fosse julgado por tribunal internacional —, ou seja, nesse caso fica
aparente que a identidade coletiva do louco, tão preconizada pelos movimentos
antimanicomiais, não foi o elemento que culminou na transformação das formas
desumanas de tratamento do doente mental, a transformação se tratou de uma manobra
política para resolver um problema político (internacional).
O que queremos destacar é o perigo que determinadas políticas de identidade
oferecem ao fragmentar as diferentes formas de preconceito, discriminação etc. e negar
que o problema do negro, da mulher, do índio, do adolescente, do louco etc., é o
problema do reconhecimento da dignidade humana, das necessidades humanas. Se
abandonarmos este pensamento utópico (um projeto de sociedade igualitária), se torna
“difícil sentir-se indignado com a degradação do outro, tanto quanto com a degradação
de si mesmo”168. Para Habermas, que trabalha a questão das políticas de identidade a
partir da perspectiva do desenvolvimento das identidades coletivas, o problema político
surge quando o uso dos relatos simbólicos, da memória coletiva e de narrativas de
história de vida aparece como discursos a favor de uma autodeterminação excludente e
165
A pesquisa tem procurado explicitar o quanto as pessoas que vivem nos arredores do CAPS da cidade
de Sobral – CE têm conhecimento do objetivo dessa instituição.
166
Refiro-me aqui às estudantes do curso de Psicologia da UFC, do Campus Avançado de Sobral: Karina
de Andrade Batista, Lorrana Calíope Castelo Branco Mourão e Tamylle Arruda Prestes.
167
Cf. SAMPAIO, J. J. C. & CARNEIRO, C. Rede de Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral-
CE: Planejamento, supervisão e reflexões críticas.
168
CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social como metamorfose humana em busca de
emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico. p.04.
153
Ao que nos parece Ciampa concorda com essa argumentação, e assinala que a
universalidade é representada por uma série de axiomas lógicos, dentre eles de que o
indivíduo deve lidar com a tensão entre projetar uma nova personagem ou fazer a
169
Problema que Ciampa descreve como sendo a ação de uma política de identidade segregadora.
170
ŽIŽEK, Slavoj. Slavoj Žižek apresenta: Mao Tse-Tung “Senhor do Desgoverno” marxista.
171
Ibidem. p.13.
154
172
MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.269.
Tradução nossa: “(…) to be universal has had to be continually revised.”
173
HABERMAS, Jürgen. Direto e Democracia II. p.98.
174
GUARESCHI, Neuza M. F. Políticas de identidade: novos enfoques e novos desafios para
psicologia social. p.123.
155
uma nova posição de sujeito, uma alterização”175, o que não significa que deixemos de
lado tudo o que discutimos até agora.
175
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice.
p.137.
176
Ibidem. p.139-140.
177
GOFFMAN, Ervin. Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada. p.134.
156
178
HABERMAS, Jürgen. Passado como Futuro. p.222.
179
Idem. A crise do Estado de bem-estar e o esgotamento das energias utópicas.
180
CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social como metamorfose humana em busca de
emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico.
181
SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social.
Passim.
182
Como apontado anteriormente, no Encontro Nacional da ABRAPSO de 1999, Ciampa, ciente acerca
dessa transformação do capitalismo de produção para o capitalismo de consumo, e da cooptação da
idéia de metamorfose pelo mercado, propõe que o conceito do sintagma identidade-metamorfose-
emancipação deve ser analisado a partir do seu potencial de emancipação.
157
valha a pena transcrever um trecho do trabalho realizado por Safatle, uma vez que nele
acreditamos encontrar argumentos essenciais para que continuemos nossa análise:
183
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e a falência da crítica. p.126. [grifos do autor]
184
Cf. HEGEL, Georg W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Passim. p.1-35. Confira também o
artigo de Axel Honneth: Patologias da liberdade individual: O diagnóstico hegeliano de época e o
presente. p. 77 et seq.
185
SEVERIANO, Maria de Fátima. Narcisismo e publicidade. p.111.
186
Wolfgang F. Haug acredita que o segredo para a concretização está no fato de o capitalismo começar a
investir na aparência, que em sua forma mais abominável, oferece “uma seqüência interminável de
imagens acerca das pessoas atuando como espelhos, com empatia, observando o seu íntimo, trazendo à
tona os segredos e espalhando-os. Nessas imagens evidenciam-se às pessoas os lados sempre
insatisfeitos de seu ser. A aparência oferece-se como se anunciasse a satisfação; ela descobre alguém, lê
os desejos em seus olhos e mostra-os a superfície das mercadoria.” Idem. Crítica da estética da
mercadoria. p.77.
158
187
Refiro-me aqui à diversidade encontrada em nossa cultura, que espelha desde experiências pré-
modernas como as encontradas em: KRAMER, Henrich & SPRENGER, James. Malleus
Maleficarum. “O Martelo das Feiticeiras”, até outras pós-modernas (como as verificadas nas
comunidades virtuais que excitam novas formas de vida, vistas como patológicas, como as pró-
anorexia e uso de drogas). A própria relação com os serviços substitutivos que em alguns lugares
configuram-se como instituições garantidoras de renda (o que Safatle caracteriza como identificação
irônica e que iremos assinalar como resultado de um reconhecimento perverso), noutros ainda são
espaços entendidos como “depósito”: Cf. BUENO, Austregélino Carrano. O canto dos malditos. A
título de exemplo vale contar que em uma das cidades visitadas durante a realização da pesquisa,
localizada na divisa do Ceará com o Piauí, conhecemos uma família em que todos os filhos eram vistos
como loucos. Estes tinham vivido durante toda infância e adolescência no interior da fazenda, sem
contato com meios de comunicação e ao viajar buscando trabalho no Rio de Janeiro experienciam algo
que foi diagnosticado como psicose por profissionais de saúde mental de um CAPS desse estado, que
os encaminharam para o nordeste novamente com o intuito de que se submetessem ao tratamento.
188
Juracy Almeida conta como foi sua aproximação com o fenômeno da anamorfose: “Meu primeiro
contato com a anamorfose foi através de um painel do Grupo de Identidade José Roberto Malufe
apresentado em um encontro científico da SIP – Sociedade Interamericana de Psicologia, realizado em
São Paulo em 1997. O painel tinha uma superfície espelhada, com uma saliência central em forma de
cone. Observado de diferentes ângulos, o painel apresentava-se como um conjunto de borrões em preto
e branco, desproporcionais entre si, sem um sentido maior, compreensível, despertando a atenção do
público presente à sessão de exposição. Os borrões mudavam de forma, suas proporções se alteravam
com o meu deslocamento. Outras pessoas ao redor também se mostravam perplexas e curiosas com o
significado do painel. Apenas após vários deslocamentos laterais e também de aproximação e
afastamento é que pude vislumbrar, a partir de um ponto determinado (que depois descobri ser único), a
imagem (uma fotografia ampliada) de uma pessoa. Fui informado, então, que se tratava de uma
anamorfose cônica. Mais tarde, encontrei uma explicação para o que acontecera: ‘A anamorfose é uma
figura em perspectiva deformada que, para ser reconhecida, exige do observador um deslocamento, um
abandono de sua posição convencional, e uma busca de um novo ponto de vista. Este ponto é sempre
extremamente preciso mas desconhecido, e sua descoberta revela, na figura até ali incompreensível,
formas finalmente reconhecíveis.’ (Silva Júnior, 2001: 4)”. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a
Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.30-31.
189
Cf. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice.
159
(...) pelo que ele chama de fraqueza dos excessos (distúrbios psicológicos tais
como desânimo, depressão, síndrome de pânico, insônia, estresse físico,
dependência química, hipocondria, transtornos da imagem corporal etc.), como
também, pela procura e criação de alternativas às idéias dominantes. Estas são
condutas possíveis quando as pessoas sentem as determinações que as afetam
como anamorfoses de algo imaginado e desejado. Há sempre a possibilidade de
alguns indivíduos tentarem emancipar-se da heteronomia e dos enquadramentos
a que estão expostos, buscando um novo ponto de vista que lhes permita
descobrir/estabelecer uma nova proporcionalidade entre as exigências dos
papéis sociais imputados e seus reclamos de coerência, de realização e de
autonomia. Em outras palavras, que lhes permita se (re)posicionarem em
relação a um ponto de vista fixo (comum a todos os que se encontram na
mesma situação que eles) e, neste processo, construírem uma nova
identidade.191
Esse processo dialético de submissão e luta por emancipação pode ser articulado
em Almeida pela tensão entre as esferas pública e privada. No que se refere à esfera
pública — mais especificamente na sua relação com os interesses dominantes, que no
Brasil se configura desde os primórdios da colonização pela tentativa de administração
e controle — essas formas de existência representam aberrações, anormalidades,
anamorfoses dos modelos pressupostos, que impulsionam a existência e permanência
das instituições que visam à adaptação (como é evidente no nosso estudo o caso da
instituição psiquiátrica). No que se refere à esfera privada que, do ponto de vista da
perspectiva normativa do “Outro generalizado”, nos ensina a reconhecer outros
membros da coletividade como portadores de direitos, abre-se aqui a possibilidade de
nos reconhecermos também como pessoas de direito. Fenômeno decorrente da
institucionalização dos direitos civis de liberdade, que inaugurou o processo de
inovação permanente, o qual pressupõe que para poder agir como uma pessoa
moralmente imputável, o indivíduo não precisa apenas da proteção jurídica contra as
interferências em sua esfera de liberdade, “mas também da possibilidade juridicamente
190
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.101.
191
Ibidem. p.112.
160
192
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.. p.192-193.
193
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.113.
161
194
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.109.
195
Cf. ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Na página 32, Žižek nos apresenta o conceito de Paralaxe
da seguinte forma: “é o padrão de deslocamento aparente de um objeto (mudança de sua posição em
relação ao fundo) causado pela mudança do ponto de observação que permite uma nova linha de
visão”. Žižek reforça a importância desse fenômeno ao assinalar que Hegel já alertava para o fato de
“sujeito e objeto são inerentemente ‘mediados’, de modo que uma mudança ‘epistemlógica’ do ponto
de vista do sujeito sempre reflete a mudança ‘ontológica’ do próprio objeto.” Ibidem. p.32.
162
numa divergência do que é idealizado e marcar a saída do ponto fixo em busca de novas
configurações identitárias, representariam formas de resistência ao que é imposto e
lutariam constantemente contra políticas de identidade que a todo instante tentam
cooptar essas anamorfoses e transformá-las em novas mercadorias. O caso dos idosos é
emblemático nesse sentido, uma vez que a grande questão estaria em manter a
indeterminação entre o fato de que a condição do idoso não seriam nem espelhos das
identidades pressupostas tradicionalmente (o velho que espera a morte), nem espelhos
das identidades pressupostas pela lógica sistêmica atual (que impõe convencionalmente
a personagem do velho consumidor). Quanto a isso, parece-nos um ponto chave quando
ele considera que as condições pessoais e sociais restritivas são vistas e sentidas pelos
indivíduos como anamorfoses, isto é, como deformações de seus projetos.
196
ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e emancipação na velhice. p.205.
197
ŽIŽEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. p.41 et seq.
163
198
Em suas considerações finais Juracy Almeida elenca os elementos promissores da noção de
metamorfose para a pesquisa de identidade, são eles: “a) do modo como são interpretados os projetos
individuais ou coletivos de mudança que ultrapassam os limites dos parâmetros socialmente
dominantes, projetos estes que são vistos como deformações daquilo que costumeiramente se considera
como modos de ser e de viver adequados; b) dos modelos de conduta sociais estabelecidos, quando
vistos do ponto de vista dos sujeitos de projetos emancipatórios; deste ponto de vista, tais modelos
surgem a esses sujeitos como deformações daquilo que idealizam; c) da identidade continuamente
reposta através de um trabalho que resulta da acomodação ou sujeição às condições com as quais os
indivíduos se deparam em sua vida cotidiana. De modo geral, as pessoas apresentam-se como idênticas
a si mesmas e, desta maneira, encobrem, ocultam o caráter dinâmico e temporal da identidade. Aqui, a
apresentação de algo que já não se é como algo que se está sendo surge como uma deformação de si
apresentada pelas próprias pessoas (borrões daquilo que se é de fato), como se elas não passassem por
modificações; d) da identidade humana degradada por processos sociais que recusam aos indivíduos a
qualidade de sujeitos, negando-lhes o reconhecimento e o tratamento como tais, vale dizer, que
atribuem a indivíduos a identidade de não-humanos, restringindo-lhes a autonomia pessoal e, mesmo,
sujeitando-os a tutelas”. ALMEIDA, Juracy Armando M. Sobre a Anamorfose: identidade e
emancipação na velhice. p.207-208.
199
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais.. p.280.
200
Cf. WITTGENSTEIN. Ludwig. Tractatus Logico-philosophicus. p.111.
201
Destacamos aqui as seguintes palavras de Ciampa quando trata da aparência de não-metamorfose da
identidade como resultado do trabalho ode re-posição: “(...) é o trabalho da re-posição que sustenta a
mesmice. Outros são levados a essa situação, involuntariamente, quando seu desenvolvimento é de
alguma forma prejudicado, barrado, impedido; na nossa sociedade, encontramos milhões de exemplos
de pessoas submetidas a condições sócio-econômicas desumanas; às vezes, mesmo com condições
sócio-econômicas favoráveis, milhares, talvez milhões, de pessoas são impedidas de se transformar, são
forçadas a se reproduzir como réplicas de si, involuntariamente, a fim de preservar interesses
estabelecidos, situações convenientes, interesses e conveniências que são, se radicalmente analisados,
interesses e conveniências do capital (e não do ser humano, que assim permanece um ator preso a
164
202
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.194.
203
Ibidem. p.195.
166
própria articulação teórica utilizada por Ciampa. Lembremos que A estória do Severino
e a História da Severina é, em última instância, uma tese que insiste na defesa de que é
na relação com o outro que eu posso estabelecer condições de desenvolvimento de mim-
mesmo, a partir daquilo que Mead chamou de outro generalizado, o qual também fora
postulado por Hegel. Considerando os limites da compatibilidade entre as concepções e
conceitos, não é difícil notar uma proximidade com a teoria psicanalítica de Jacques
Lacan, para quem a constituição do sujeito começa a configurar-se no campo da
intersubjetividade como o Outro (grande outro), ou seja, a partir de uma alienação
constitutiva da ordem simbólica frente à figura do Outro204.
No Seminário 11205, Lacan — aqui assinalamos a proximidade da teoria lacaniana
com as proposição de desenvolvimento do si-mesmo de Hegel e Mead —, esforça-se
em demonstrar que essa alienação no Outro deveria ser seguida pela separação do
Outro. Essa separação, na concepção de Lacan, ocorreria na medida em que o sujeito
percebesse que esse Outro é inconsistente, virtual, “barrado”, cuja existência somente se
sustentaria pela fantasia de que nele (Outro) é possível encontrar o preenchimento do
vazio (falta). Esse Outro postulado por Lacan se refere ao senso comum a que chegamos
após o entendimento (a ação comunicativa de Habermas, que preconiza o consenso) e
que estaria se desvanecendo no capitalismo tardio. Uma proposta que de imediato nos
coloca frente a impossibilidade de escolher entre uma razão comunicativa ou uma razão
estratégica, uma vez que sequer teríamos acesso a essas esferas de um modo racional.
Uma das contribuições de Prado, presente em sua crítica da teoria habermasiana a partir
da psicanálise, assinala esses limites da teoria da ação comunicativa da seguinte forma:
204
Odair Sass mostra-nos que essa associação entre a teoria meadiana e psicanálise não é incoerente.
Sass, em nota de rodapé, ao analisar o trabalho de T. V. Smith, um dos contemporâneos de Mead na
Universidade de Chicago, identificou cinco autores que exerceram forte influência sobre sua teoria
social: Hegel, Marx, Darwin, Adam Smith e Freud. “Em relação ao último autor, Smith constata que a
doutrina freudiana do inconsciente – entendida como uma estruturação de nossa experiência que
ultrapassa aquilo que denominamos por consciência –, ‘era da maior importância para Mead, porque o
princípio serviu como elo mediador entre seu idealismo anterior e seu pragmatismo (...)’ (SMITH,
1931, p.372)”. SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert
Mead. p.111.
205
Cf. LACAN, Jacques. El Seminário. Libro 11.
167
Isso nos remete ao que foi trazido anteriormente quando se falou do potencial
emancipatório da identidade anamórfica que, nos termos agora trazidos, por meio de
uma razão crítica, tensionaria na direção de um giro discursivo para mudanças das
possibilidades de inscrição simbólica estabelecidas por determinadas políticas de
identidade. Novamente deparamo-nos com o necessário surgimento das anamorfoses,
uma vez que no processo de luta por reconhecimento da alteridade da identidade, esta
tensiona o social no sentido de sua renovação e atualização, pois obriga essa instância
maior a questionar os conteúdos tradicionais do mundo da vida e, principalmente, a
racionalidade utilizada. Racionalidade que, como observamos, tem sido aquela que nos
força a observar nossa realidade como realidade pressuposta. Ciampa explicita isso
muito bem quando escreve sobre o episódio de Loucura da Severina, “com ênfase
afirma: e daí eu fiquei louca. E fiquei! Identifica-se como louca. É louca! (...) ela
sempre acreditando. E agindo como tal! A realidade simbólica sendo produzida
socialmente”207. Nesse exemplo, Ciampa mostra que a atuação de Severina como louca
se dá justamente porque é o único reconhecimento possível para sua identidade, a
personagem anamorfíca, que antes fora traduzida como encosto no centro espírita. E
agora era traduzida no hospital como doença mental. Ser tratada como Louca, utilizando
aqui uma interpretação lacaniana, é ser excluída do Outro social/simbólico, ou, nos
termos utilizados até então, é ser considerada anamorfose e tensionada para que assuma
uma personagem fetichizada retornando assim ao ponto fixo (uma inscrição simbólica
apriorística), retornando ao seu “devido lugar”. Destaquemos aqui que esse diagnóstico
não vem baseado em fatos concretos, considera-se louco aquele que se mostra
percebendo as coisas “como elas realmente são”. Como diria Lacan, a anamorfose
provocada pela “personagem (ora obsidiada, ora louca)” é uma armadilha para o olhar,
que não suportando a angústia frente ao Real desfere a pressuposição (redução), a
fetichização208. É importante destacar aqui que o “Real” a que Lacan se refere não é a
206
PRADO, José Luiz Aidar. Teoria da Sociedade ou Teoria da Comunicação? p.267-268.
207
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.71.
208
Cf. LACAN, Jacques. La anamorfosis.
168
verdadeira realidade que estaria velada, mas o vazio que mantém a realidade incompleta
e inconsistente, algo próximo àquilo que Mead identificava ser o elemento
impulsionador do surgimento de si-mesmo (self) e que Ciampa entende com sua
concepção de metamorfose, de outro modo, uma vez que para esse autor: “se identidade
é identidade de pensar e ser, a resposta que buscamos é uma resposta sempre vazia,
como um salto, pois é metamorfose”209.
Žižek exemplifica esse surgimento do novo que explicita o instituído ao discorrer
como o episódio de 11 de setembro de 2001 afetou os indivíduos dos países vistos como
desenvolvidos:
209
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.241-242.
210
ŽIŽEK, Slajov. Bem-Vindo ao deserto do Real! p.31. Vivenciamos algo semelhante no último
semestre de 2008 no Brasil, quando o desastre natural ocorrido no Sul do país mobilizou todos a
rapidamente “reconstruir” a imagem de progresso e segurança instaurada. Compartilho aqui o
incomodo que senti ao notar que um estado como o Ceará, que vivia na época o auge da seca (os
noticiários locais notificavam a todo instante as cidades onde haviam pessoas passando sede e que
faltava recursos para levar água para esses lugares), orgulhava-se por enviar caminhões de água para o
Sul. Aparentemente, a pobreza e seca instaurada como “natural” no Nordeste não afetam em nada a
realidade.
169
211
MISHIMA, Yukio. Sol e Aço. p. 09. Essa frase, inclusive, escrita pelo japonês Yukio Mishima, tenta
expor a dificuldade vivenciada por um descendente de samurais, homossexual, escritor, frente a uma
sociedade que prezava a negação do “eu” em favor da sociedade. O autor dizia que ao nascer já estava
condenado a ser estragado pelas palavras. “Na pessoa comum, imagino, o corpo vem antes da
linguagem. No meu caso, antes vieram palavras; então – pé ante pé, com toda a aparência de extrema
relutância, e já vestida de conceitos – veio a carne. Já estava, nem é preciso dizer, estragada pelas
palavras.” op.cit. p.08. Tanto a escrita, como a vida de Mishima expressam a luta do indivíduo para
diferenciar-se do grande número, representar o coletivo pela diferença, encontrando a realidade “em
algum ponto onde as palavras não tivessem nenhum papel a desempenhar.” op.cit. p.09. Podemos
considerar que suas palavras representam o movimento que Almeida descreveu como potencialidade
emancipatória da identidade anamórfica. Mishima acreditava que no pleno exercício do existir as
pessoas se tornavam invisíveis e que somente a morte lhes daria a opaca presença absoluta de um
objeto no mundo. Fiel ao projeto de si-mesmo, Mishima concretizou sua presença, em novembro de
1970, quando, após tomar as dependências do Quartel das Forças Armadas de Tóquio e após ler para a
tropa imperial um texto em que denunciava a violência da ocidentalização e a decadência dos códigos
tradicionais de seu país, cometeu o sepuku — também conhecido popularmente como Harakiri (cortar o
abdômen), preferimos utilizar o termo tradicional pela representação do gesto. O samurai realizava o
ritual do sepuku quando chegava à conclusão de que a vida não tinha mais sentido, ou que a vida que
teria de levar dali em diante seria uma vida que ele não escolheu, uma vida desonrosa. Mishima não
suportaria viver em um país que lhe conferiria uma política de identidade garganta abaixo. Não nos
deteremos na história de Mishima, nem em sua obra, sugerimos para quem quiser conhecer sua obra
que inicie com Sol e Aço. Também indicamos um estudo interessante realizado por BASTIDAS,
Cláudio. A outra Beleza: o estudo da beleza para a Psicanálise.
212
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. p.302.
170
213
Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A identidade social como metamorfose humana em busca de
emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico e HABERMAS, Jürgen. A
crise do Estado de bem-estar e o esgotamento das energias utópicas.
214
BAUMAN, Zigmunt. Para una sociologia crítica. p.197. Tradução nossa: “el poder consiste en el
monopolio o privilegio en el campo de la interpretación del significado”.
215
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. p..131.
216
SAFATLE, Vladmir. O cinismo e a falência da crítica. p.133 et seq.
217
Ibidem. p.134.
171
Os resultados negativos dessa guinada nas identidades são evidentes para o autor.
Safatle acredita que esse é o motivo pelo qual os grandes sintomas da
contemporaneidade (obsessividade e conversão histérica) terem sido substituídos pela
depressão e ansiedade, que “pressupõem a consciência tácita da incapacidade de
sustentar escolhas de objeto”218. A sustentação dessa forma de socialização capaz de
manter identificações socialmente disponibilizadas, passa a ser identificada como
“cinismo”, uma vez que esse nome reflete a ironia necessária para se viver em uma
sociedade que se submete a essa administração da insatisfação. Safatle, nesse sentido,
assume plenamente as considerações de Žižek, para quem o indivíduo que acredita no
discurso neoliberal hegemônico “não pode ser ao mesmo tempo inteligente e honesto:
ou é estúpido ou um cínico corrompido”219. O cinismo é aqui identificado como um
movimento duplo no qual saber e não-saber podem coexistir conjuntamente,
caracterizando a forma perversa da negação. Essa condição, por sua vez, inaugura um
novo problema: os indivíduos transformarem-se em objeto do gozo do outro por
contrato, “ser Senhor e escravo por contrato é uma forma absolutamente paródica de
reconhecer a autonomia dos sujeitos”220. Em outras palavras, articulando o conceito de
cinismo com a linguagem habermasiana, poderíamos dizer que com a colonização do
mundo da vida pela lógica sistêmica, que preza os fins econômicos à solidariedade, as
condições as relações de reconhecimento recíproco transformam-se em relações
mercadológicas, cuja própria ação comunicativa não consegue operar.
No nosso caso, fica evidente que indivíduos diagnosticados como doentes
mentais, “portadores de sofrimento mental”, encarnam completamente essa condição,
“a figura do contrato pressupõe previamente o reconhecimento da dignidade dos
sujeitos que deixam de lado sua dignidade a fim de sustentar uma encenação limitada
no tempo e no espaço”221. Ciampa já havia nos mostrado isso n’A estória do Severino e
a História da Severina quando assinala o episódio em que Severina permanece escrava
do discurso médico-psiquiátrico e se vê inutilizada. O reconhecimento médico-
psiquiátrico de sua doença transforma-se naquilo que Charles Taylor denominou como
discriminação invertida não percebida222. Nesse momento, inclusive, Ciampa apresenta
uma artimanha utilizada por Severina frente ao discurso que a negava enquanto pessoa:
218
SAFATLE, Vladmir. O cinismo e a falência da crítica. p.137.
219
ŽIŽEK, Slajov. Bem-Vindo ao deserto do Real! p.90.
220
SAFATLE, Vladmir. Op. cit. p.162.
221
Ibidem. Loc. cit. [grifos do autor]
222
Cf. TAYLOR, Charles. La politica del riconoscimento.
172
enganar o médico para continuar definitivamente afastada pelo INPS de modo a poder
continuar recebendo pensão mensal como “incapacitada” e informalmente trabalhar
“sem registro”. Ele nos adverte, entretanto, quanto aos perigos de fazer uma
interpretação convencional da situação:
223
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.89.
224
Ibidem. p.86 et seq.
173
225
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.107.
226
Estes, como vimos, na perspectiva aqui adotada são considerados os tensionadores do deslocamento
dos pontos fixos (inscrições simbólicas) de determinadas políticas de identidade.
174
227
Uma ótima discussão acerca do reconhecimento pode ser encontrada em: RICOEUR, Paul. O
Percurso do reconhecimento.
228
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.23.
229
Ibidem. p.24.
230
Ibidem. p.155.
175
Honneth entende ainda que até esse momento Mead consegue desenvolver uma
versão de psicologia social alternativa à teoria do desenvolvimento da identidade do
jovem Hegel. Entretanto, no que se refere ao conceito de reconhecimento, o autor
representante da Escola de Chicago teria levado a teoria hegeliana para um outro nível.
235
MEAD, George Herbert. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist.
236
Cf. Ibidem. p.152-164.
237
SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.205.
238
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.136.
177
É verdade que falta em Mind, Self and Society qualquer referência a uma etapa
de reconhecimento recíproco como a que Hegel tentou caracterizar com seu
conceito romântico de “amor”; talvez seja essa a razão também de as
explicações de Mead terem poupado a forma elementar de auto-respeito dada
com a formação de uma confiança emocional nas próprias capacidades. Mas,
com vista à relação de reconhecimento que Hegel introduziu em seu modelo
evolutivo com uma segunda etapa, sob o conceito genérico de “direito”, a
concepção de “outro generalizado” não representa apenas uma complementação
teórica, mas também um aprofundamento objetivo: reconhecer-se
reciprocamente como pessoa de direito significa que ambos os sujeitos incluem
em sua própria ação, com efeito de controle, a vontade comunitária incorporada
nas normas intersubjetivamente reconhecidas de uma sociedade. Pois, com a
adoção comum da perspectiva normativa do “outro generalizado”, os parceiros
da interação sabem reciprocamente quais obrigações eles têm de observar em
relação ao respectivo outro; por conseguinte, eles podem se conceber ambos,
inversamente, como portadores de pretensões individuais, a cuja satisfação seu
defrontante sabe que está normativamente obrigado.239
239
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.138-139.
240
MEAD, George Herbert. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist. p.174.
Tradução nossa: "It is because of the "I" that we say that we are never fully aware of what we are, that
we surprise ourselves by our own action."
241
Ibidem. p. 175. Tradução nossa: ""me" is the organized set of the attitudes of the others which one
himself assumes. The attitudes of the others constitute the organized "me", and then one reacts toward
that as an "I"."
178
outros”, enquanto que o “mim” é a fase “que internaliza aquelas atitudes”242. Para
Honneth, essa contribuição reforça a tese de que o desenvolvimento da identidade, ao
contrário do a priori habermasiano da estabilidade, é conflito.
Tendo isso em vista, fica claro que para Mead o indivíduo somente consegue se
diferenciar em face ao meio social, ampliando a extensão de seus direitos e autonomia.
Claro está também que essa concepção já se apresentava nos escritos do jovem Hegel. O
diferencial encontrado na Psicologia Social de Mead, portanto, é que o movimento de
reconhecimento individual está condicionado pela ação incontrolável do “Eu”, que
atualiza continuamente o outro generalizado. O que Mead não teria conseguido
diferenciar muito bem, e que deixaria Hegel com uma vantagem, segundo Honneth,
seria a relação entre a generalização das normas sociais e a ampliação dos direitos à
liberdade individual. Hegel, nesse sentido, “não só fez nos seus primeiros escritos que a
relação amorosa precedesse, na qualidade de uma primeira etapa do reconhecimento, a
relação jurídica, como também distinguiu dela uma outra relação de reconhecimento, na
qual a particularidade do sujeito individual deve obter confirmação”244.
242
SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.231.
243
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.141.
244
Ibidem. p.146.
179
Honneth, inclusive, entende que se Mead tivesse se atentado a essa questão teria
incluído em sua teoria a discussão acerca da eticidade. Lembremos que na obra juvenil
de Hegel a presença do indivíduo se anula em proveito do povo, a identidade é a
unidade que transforma os indivíduos em uma universalidade viva em que todos são
apenas um, “o particular, o indivíduo, é enquanto consciência particular, pura e
simplesmente igual ao universal; e esta universalidade, que sem mais unificou consigo a
particularidade, é a divindade do povo”245. Finalmente, Honneth dirá que Mead de fato
abordou ser nossa tarefa, mas depois abandonou, dotar o outro generalizado com um
common good, que possibilitasse a todos os indivíduos conceberem igualmente seu
próprio valor para a coletividade, sem com isso abrir mão da realização autônoma do
Self. Com isso, volta novamente a se igualar a Hegel no que se refere a não conseguir
demonstrar como as formas de desrespeito podem se tornar experienciáveis para os
atores sociais, “na qualidade de um equivalente negativo das correspondentes relações
de reconhecimento, o fato do reconhecimento negado”246.
Isso faz com que Honneth insista no estudo das três formas distintas de
reconhecimento encontradas em Hegel: a) emotiva, que é responsável pelo
desenvolvimento de confiança em si, indispensável para os projetos da auto-realização
pessoal247; b) jurídico-moral, cuja dimensão é responsável pelas relações baseadas no
direito, possibilitando o auto-respeito; e c) estima social, que, baseada na solidariedade
social, potencializa os projetos de auto-realização a ponto de torná-los universalizáveis.
O reconhecimento assume para Honneth, na sua dimensão mais profunda, uma espécie
de constituição social de base afetiva, primária de cada indivíduo (o amor), que em
Hegel já era explicitado na proposição: ser si-mesmo num estranho248, abrindo espaço
para a retomada da Psicanálise como teoria auxiliar da Teoria Crítica. Como escreve o
próprio Honneth, “é dito das relações primárias afetivas que elas dependem de um
equilíbrio precário entre autonomia e ligação, o qual constitui o interesse diretivo pela
determinação das causas de desvios patológicos na teoria psicanalítica das relações de
245
HEGEL, Georg W. F. O sistema de vida ética. p.55.
246
HONNETH, Axel. Op. cit. p.157.
247
Honneth escreve que com Hegel é possível dizer que “o indivíduo deve aprender em certa medida que
o caráter negativo do direito formal contém ao mesmo tempo a grande vantagem de poder nesse caso
prescindir de todas as relações concretas e papéis sociais, para com isso insistir na própria
indeterminação e abertura.” Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral
dos conflitos sociais. p.90.
248
HEGEL, G. W. F. Op. cit. p.22.
180
249
HONNETH, Axel. Op. cit. p.160.
250
Segundo Honneth, Jessica Benjamin empreendeu uma primeira tentativa de interpretar, com os meios
psicanalíticos, a relação amorosa como um processo de reconhecimento recíproco.
251
Ibidem. p.163-164.
252
Salta aos olhos a proximidade teórica referente ao self nas concepções de Mead e Winnicott. Esses
autores nos trazem uma concepção diferenciada de se pensar a constituição do eu, em que o individuo,
ao nascer, precisaria de um outro significativo, que seria responsável pela socialização das pulsões e,
ocorrendo êxito nesse processo, teríamos o surgimento do self, ou nos termos de Winnicott, de um
verdadeiro self.
181
Para Winnicott a relação com um outro significativo (mãe) também é vista como
imprescindível, na medida em que somente a partir dessa relação (suficientemente boa),
torna-se possível a integração do bebê, impulsionando-o a “uma categoria unitária, ao
pronome pessoal ‘eu’, ao numero um; isso torna possível o EU SOU, que dá sentido ao
EU FAÇO”254. O ser humano é entendido por Winnicott como um acontecimento, o
resultado de um processo. Ao nascer o ser (que ainda nem é humano) é apenas um soma
(corpo), sem mundo interior (psique); esse ser, chamado pela linguagem que o acolhe de
bebê, necessita de uma mãe, ou substituta desta, capaz de lhe fazer sentir que a vida vale
a pena de ser vivida, proporcionando assim a vivência da ilusão, necessária para que
este possa desenvolver posteriormente objetos subjetivos. Winnicott descreve a fase
anterior à ilusão e ao sentido para a existência, como um momento do “não estar vivo”.
Não estar vivo psiquicamente aponta a necessidade objetiva de um outro para o
desenvolvimento do “eu”.
A constituição do Self, como escreve Tânia Aiello Vaisberg, “é um fenômeno
que se dá no encontro da criança com o mundo humano, com o qual entra em contato,
inicialmente, através da mãe, da família e de quem se encarregue de seu cuidado”255. Se
este for bem sucedido, tem-se a superação da condição de dependência absoluta,
partindo-se para uma dependência relativa, momento em que a criança pode ser aquele
“si-mesmo em um estranho”, proposto por Hegel. Essa fase é importante para Winnicott
na medida em que nela a criança encontra-se em condições de um relacionamento com
os objetos escolhidos, no qual ela suporta a separação da mãe mantendo a confiança na
continuidade do amor desta. Ao ponto de a partir desse sentimento de pertencimento ser
capaz de estar só consigo mesma. Nas palavras do próprio Winnicott, “à medida que o
self se constrói e o indivíduo se torna capaz de incorporar e reter lembranças do cuidado
253
WINNICOTT, Donald W. Tudo começa em casa. p.04.
254
Ibidem. p.11.
255
VAISBERG, Tânia Aiello. Ser e Fazer. p.177.
182
256
WINNICOTT, Donald W. Natureza Humana. p.137.
257
Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. p.175.
258
Ibidem. p.176.
259
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p. 125.
183
pressupostos históricos e teóricos trazidos até agora, permite que façamos a afirmação
de que a representação da “personagem louca”, que conferiu à Severina a pressuposição
de uma “identidade louca”, foi resultado de um discurso utilizado com o pretenso
interesse de diagnosticar o sofrimento individual, mas que em sua concretização se
expressou como elemento de administração da insatisfação, configurando ao invés de
um reconhecimento promotor de alterização (reconhecimento pós-convencional), um
reconhecimento perverso, que reduz as infinitas possibilidades de criação das
personagens à representação de uma identidade fetichizada, estigmatizada.
Isto posto, chega o momento de avançarmos para o nosso último itinerário, nele
apresentaremos nossa Severina e nossos Severinos, que serão chamados de forma
fictícia Ana, Gabriel e Francisco. Pessoas cujas narrativas de histórias de vida nos
ajudarão a explicitar empiricamente como as anamorfoses que trazem consigo todas as
contradições da sociedade capitalista, ao invés de serem acolhidas como expressão de
um sofrimento de indeterminação, são cooptadas pelo discurso técnico-psicológico,
configurando o que temos assinalado aqui como reconhecimento perverso. Essas
narrativas darão elementos para analisar criticamente a apropriação da personagem
doente mental atualmente por esses indivíduos, uma vez que ficará evidenciado que a
representação como doente mental tem se concretizado como saída possível para a
impossibilidade de representar personagens que explicitem as condições desumanas de
nossa sociedade.
TERCEIRA PARTE
ITINERÁRIO EMPÍRICO
III – A SAÚDE MENTAL INTERPELADA PELO SINTAGMA IDENTIDADE-
METAMORFOSE-EMANCIPAÇÃO: A (IM)POSSÍVEL RELAÇÃO
ENTRE A MANUTENÇÃO DA IDENTIDADE PRESSUPOSTA DE
DOENTE MENTAL E A LUTA POR RECONHECIMENTO DA
IDENTIDADE HUMANA.
1
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.131.
188
2
Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. Passim.
3
LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um problema de identidade:
possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro. p.158 et seq.
4
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião. p.229
189
5
PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do intelectual: do extrato comunicável ao ato impossível.
p.89.
6
Ibidem. p.93.
190
são difíceis de serem lidas, não somente por sua riqueza e quantidade de matizes, mas
principalmente, pelo insuportável que elas carregam.7 Ficará claro que a idéia de
pesquisador como testemunha, proposta por Gagnebin8, mostrar-se-á extremamente
pertinente, uma vez que ao buscarmos a forma mais apropriada para trabalhar com essas
narrativas pessoais chegamos a uma espécie de intermediário entre a confissão, a
denúncia e o grito silenciado de socorro frente às incontáveis (im)possibilidades de
existência.
Esses dias fico pensando e choro... penso que eu nunca vou ser o que quero e o
que sempre quis ser... tanto tempo passou mas não tinha dinheiro pra isso... eu
até que tentei, fiz o que pude, trabalhei mas logo parei de andar (por querer ser
magra, apenas isso), hoje estou velha não vai dar tempo de nada mais, não vou
andar... e as cicatrizes que tenho, o que faço? Tudo se perdeu, nunca deixou de
ser um sonho, não quero mais sonhar porque só choro, só quero morrer, não
tem mais lugar aqui pra mim, não tenho o que fazer, nunca vou ser o que quero
ser ou o que um dia achei que poderia... tudo acabou pra mim, acho que não
devia ter vindo pra esse mundo, que tudo não passou de um erro... Na verdade,
queria muito que alguém me desse uma chance de eu mostrar que posso, que
sempre foi isso o que quis, que vou dar tudo de mim, que nada importa a não
ser o que quero... mas, deixa, acho que isso nunca vai acontecer, e vejo que
logo morro.9
Nosso primeiro contato com Ana foi a partir de sua identidade literalmente
virtual, marcada pela citação acima. Essa mensagem, que estava acompanhada de várias
outras, era complementada por fotos onde pedaços de seu corpo estavam expostos. À
primeira vista, a imagem apresentada de suas pernas, coxas e quadril, onde era possível
ver os ossos sob a pele, dava-nos a impressão de que não existiam músculos em seu
corpo, levavam a imaginar que o texto denunciava uma atitude suicida, uma auto-
aniquilação de si mesma. Naquele instante estávamos frente ao monitor de um
computador e havíamos acabado de ser adicionados em sua comunidade de amigos na
7
Talvez fosse desnecessário dizer que os nomes e lugares que poderiam identificar nossos entrevistados
foram todos alterados. Entretanto, alertamos para o fato de que caso exista alguma identificação do
leitor com alguma das histórias apresentadas não será uma mera coincidência, mas sim, uma afirmação
de que o problema ora apresentado é um problema de todos nós.
8
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, História, Testemunho.
9
Texto extraído do Blog da entrevistada, acessado a partir do acesso ao perfil da mesma em um site de
relacionamentos na Internet.
191
Internet, estávamos diante de uma das muitas pessoas que pretendiamos entrevistar para
a tese de doutorado10 e sentíamos o desconforto que todos nós sentimos frente a pessoas
que se denominam anoréxicas, ou melhor dizendo, frente à imagem que as anoréxicas
apresentam. Superado o desconforto inicial, possivelmente por conta do nosso interesse
em saber como era viver naquela situação, passamos a manter contato. Após algumas
semanas de conversas esporádicas, curtas e desconfiadas (Ana sempre dizia que não
queria ser tratada por Psicólogo e que se eu tentasse curá-la cortaria o contato),
finalmente conseguimos desenvolver um mínimo de confiança que fora indispensável
para que pudesse me aproximar e escutar sua história.
Com seu consentimento nos dirigimos à sua casa, que ficava em uma das muitas
periferias de São Paulo. Ana vivia em uma pequena casa de dois cômodos com a mãe e
um cachorro, convivia com o barulho de uma fábrica que ficava ao lado de sua
residência. Na ocasião da entrevista estava sozinha, sua mãe ainda não havia chegado
do trabalho, por isso pediu que pulássemos o muro, pois não podia sair de casa. Até
aquele momento não imaginávamos o que encontraríamos pela frente, uma vez que
sabíamos ser comum os indivíduos construírem nicknames11, personagens fictícios na
rede de computadores, e que nem sempre o indivíduo fora do mundo virtual
correspondia com a personagem virtual. Somente sabíamos que abrir a porta de sua casa
significava tomar contato com uma Ana diferente daquela que havíamos conhecido até
então. E de fato, ao atravessar a porta nos deparamos com uma garota em condições
extremamente vulneráveis, pouco peso, numa cadeira de rodas que sequer possibilitava
que chegasse à porta, haja vista o pouco espaço de locomoção que tinha disponível no
pequeno cômodo. Contrariando os textos e fotos deprimidas de seu Blog, que diziam
querer se afastar de todas as pessoas, recebeu-nos com um sorriso e dizendo que nunca
havia sido entrevistada, nunca havia imaginado que alguém se interessaria por sua vida.
Para contar-nos sua história, Ana faz um movimento que tenta justificar a
personagem que acreditava ser de nosso interesse: a identidade pressuposta que estava
sendo re-posta cotidianamente e que havia sido o elo de ligação entre nós. Acreditava
10
Havia pensado como estratégia de levantamento dos possíveis participantes da pesquisa em participar
de vários grupos que se auto-denominavam de alguma maneira como doentes mentais, pacientes,
usuários de instituições de saúde mental, ou ainda, dependentes de droga, dependentes de sexo,
bulímicos, anoréxicos, hiperativos etc., e de fato fui aceito em diversas comunidades e passei a
conversar com vários candidatos potenciais, entretanto, sempre que o encontro pessoal era anunciado
vivenciava o afastamento do possível entrevistado. Não compreendia muito bem o porquê desse
fenômeno até ter contato com a história de Ana, que me recebeu em sua casa e contou-me sua história.
11
Apelidos utilizados na Internet para preservar o anonimato da identidade do usuário.
192
que poderia nos mostrar como sempre foi anoréxica e como sua condição atual era algo
inevitável. Pergunta-nos se poderia então começar a contar sua história de vida desde o
início, que, semelhante ao relato de Severina trazido por Ciampa, também se mostrou
uma narrativa de alguém que descreve a infância que não teve, ou melhor dizendo, de
sua infância como criança humilhada pelos colegas de escola. Era filha do desejo
apenas de uma mulher (sua mãe) e trazia consigo algo que entende hoje como sendo o
prelúdio de sua história com a anorexia.
Mas não nos enganemos com essa primeira fala de Ana, que acredita que a
personagem que nos interessa é a personagem que conhecemos na Internet, pois
veremos que embora inicie seu relato falando da personagem anoréxica, o simples fato
de nascer prematura, com pouco peso, não será garantia da pressuposição da
personagem fetichizada, que luta ainda hoje para se manter reconhecida. Aliás, o
sentido da proposição anoréxica, a qual normalmente é atribuída a restrição alimentar,
já aparece na apresentação de Ana como uma proposição que explicaria à restrição não
somente de alimentos, mas também dos elementos que são incorporados socialmente
como necessários para o desenvolvimento normal de um indivíduo.
(...) quando eu nasci, a minha mãe falou que tava grávida pro meu pai, ele não
quis. Então minha mãe falou, eu quero e ficou só comigo e se separou dele...
nasci com problema, por causa de ser pequena, fiquei um monte de tempo lá na
incubadora. Pra crescer... minha mãe fala que eu já nasci anoréxica.
Minha mãe cuidava muito bem de mim quando estava em casa, aí eu só comia
as coisas que ela fazia pra mim... acho que ela me acostumou assim. Ela
comprava coisa natural pra eu comer, porque eu não conseguia comer as outras
coisas por causa de nojo. Era suco de laranja que minha mãe fazia na hora, era
ovo caipira, arroz integral, feijão, açúcar mascavo, essas coisas. E, sempre foi
assim. (...) salada, esse tipo de coisa (...) comia bastante porcaria, sabe...
bastante sorvete, bastante chocolate, era uma criança normal...
Eu por ter o cabelo encaracolado, diferente das meninas que eram da minha rua,
eu por ser magrela, me rebaixavam. Eles botavam apelidos, sabe... eu não
gostava... me sentia mal. Então, eu queria ser diferente, não queria ser daquele
jeito, eu queria ser sempre como... sei lá... como uma menina... não que eu não
me achasse menina... eu queria ser como aquelas que eram amigas deles, esse
tipo de coisa. Não queria ser a excluída ou a apelidada.
Eles me enchiam bastante o saco. E por minha mãe ter o cabelo curto, eles
apelidavam ela e eu não gostava, sabe... desde criança. E pensando bem eu era
meio retraída, quase nunca ficava de cabelo solto e eles me chamavam de leão.
Parece até meio engraçado, mas eu odiava. E eles [os meninos] falavam que
nunca ficariam comigo sabe... porque eu parecia um menino.
identidade. Ana de repente percebe que a realidade é extremamente hostil, que para ser
aceita deveria ser uma outra. Esse paradoxo nos leva a adiantar algumas questões: como
criar novas personagens e vivenciar a alteridade quando não conseguia sequer o
reconhecimento de sua existência? A humilhação nesse caso levaria Ana à
impossibilidade de lutar por reconhecimento no futuro tal como Honneth postula em sua
teoria?12 Vejamos como Ana vai lidar com essa problemática, ou ainda, como vai lidar
com as contradições dessa condição objetiva.
A contradição interna que Ana vivenciaria corre o risco de ser vivida
simplesmente como revolta, indivualizar-se, se transformar em “sina”, em vingança
contra os humilhadores — tal como ocorreu com Severina no episódio em que
representava a vingadora que “arquiteta planos para adquirir poder e ‘destruir toda
aquela gente’13” —, e retroceder a patamares de adaptação ou identificação com os
agressores. Isso porque a simples vivência de novas relações (na escola, na comunidade
etc.) não parecem produzir uma contradição, pelo contrário, via de regra geralmente
essas relações parecem corroborar com o fortalecimento e reprodução da humilhação.
Afinal, as relações que constituem o universo simbólico, a intersubjetividade presente
no ambiente escolar, são relações preestabelecidas. Nelas existem uma clara hierarquia
de divisão de estruturas de poder nas quais aquele que sente uma forte necessidade
somente pode realizá-la a partir de sua submissão às regras expressas por um outro
(criança não pode falar alto com seus amigos, não pode brigar, não pode ir ao banheiro
a toda hora, meninos devem brincar de bola, meninas de boneca etc.). O que deflagra
que na escola, as regras de uma sociedade de controle que aparentemente estariam
externas (mas que na verdade são cada vez mais materializadas na colonização
incessante do mundo da vida pela lógica sistêmica), é internalizada de maneira que a
submissão à disciplina escolar é invertida na produção de indivíduos disciplinados (o
12
Honneth entende, apoiado na teoria do reconhecimento hegeliana e na psicanálise winnicottiana, que
caso o indivíduo não consiga ter suas necessidades afetivas e físicas satisfeitas “plenamente”, este não
poderia desenvolver o potencial de lutar por reconhecimento. No ensaio Reconhecimento ou
redistribuição?, ele escreve que: “a relação de reconhecimento está ligada à existência física dos
Outros concretos, que retribuem seus sentimentos de estima especial. A atitude positiva em relação a si
próprio surge desse reconhecimento afetivo, que é o de confiança em si mesmo. (...) esse tipo de
reconhecimento recíproco não pode ser generalizado além do círculo dos relacionamentos sociais
primários, aparente nas ligações afetivas, como de família, amizade ou amor.” Cf. HONNETH, Axel.
Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectiva na ordem moral da sociedade.
p.86
13
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.49 et seq.
195
E era engraçado porque eu e minha amiga, minha melhor amiga, a gente ficava
espiando as meninas, sabe... aquelas que já tinham corpo, que já tinham seios,
tinham um monte de coisa. Ela [a amiga] falava: (...) “quando eu crescer quero
ser daquele jeito”. Se comparando com uma menina (...) queria ter um peitão e
eu já falei, eu não! Eu não quero ser assim! Não quero ser igual!
196
(...) ele teve um caso com uma mulher, uma mãe de um paciente, sabe... é
ridículo, ele preferiu ficar com um tetraplégico do que comigo que andava, que
era perfeita. E, nossa, aquilo pra mim foi o fim do mundo.
14
É importante assinalar, como lembra-nos Safalte, “a fantasia não é construção de uma aparência que
seria distorção ou recalcamento de uma realidade psíquica positiva primeira; ela é o modo de defesa
contra a experiência angustiante da inadequação entre desejo e os objetos do mundo empírico. Em
outras palavras, a fantasia é modo de defesa contra a impossibilidade da totalização integral do sujeito e
seu desejo em uma rede de determinações positivas”. SAFATLE, Vladimir. A política do real de
Slavoj Žižek. p.189.
197
seu lado. Que alternativa encontrava frente a essa situação? A saída era mostrar a todos
(ou ao pai) que tem mais valor que um deficiente passando a praticar diversas atividades
esportivas. O corpo, que havia sido foco de humilhação e que na identificação com a
amiga mostrou-se como possibilidade de diferenciação, agora iria ser utilizado como
instrumento de negação dessa situação (da condição de filha que valia menos que um
deficiente). Essa maneira de lidar com essa situação parece fornecer os elementos que
nos ajudam a entender o sentido da representação de sua personagem atual: a Ana
anoréxica.
Para não se tornar uma filha de ninguém, tal como ocorreu com Severina15, ou,
melhor dizendo, para não se contentar com o fato de que era uma filha que valia menos
que um deficiente — o que lhe conferia justificativa para continuar sendo humilhada
socialmente — vemos Ana trabalhar de forma curiosa a construção de duas
personagens, uma que passa a ser vista como uma possibilidade de superação e outra
que serviria como uma personagem de negação: a esportista e a deficiente. A primeira
será construída a partir de uma personagem que outrora era objeto de humilhação, a
menina que parecia um menino, e mostrar-se-á como forma de aceitação no espaço
social (principalmente no momento em que é contratada para trabalhar numa academia);
a segunda, por sua vez, será construída como um inimigo insuportável a ser derrotado (o
preconceito de Ana aparece como outra ambivalência, uma vez que em sua narrativa
vemos os sentimentos de ódio e inveja por essa condição explicitamente aparente na
forma como fala do filho que o pai adotou, que tomou seu “lugar”). Para uma efetiva
representação da esportista será preciso muito esforço, tanto físico como emocional. O
esforço físico será expressado na prática de várias modalidades, o emocional na re-
significação de uma personagem vivida anteriormente: a menina que parecia um
menino.
Ana, que passa a representar a Ana esportista, começa a acreditar que a
representação dessa personagem lhe traria o reconhecimento tanto buscado desde a
infância quando representava uma Ana humilhada. Dessa forma, os músculos que
traziam a infelicidade de ser reconhecida como a menina que parecia um menino
perdem sua condição de foco principal nesse momento de sua vida, o que para a Ana-
de-hoje se torna uma grande contradição para sua auto-descrição como anoréxica. No
momento que nos conta isso, inclusive, faz questão de frisar:
15
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.52 et seq.
198
(...) era ridículo, porque se eu soubesse disso hoje acho que eu não faria (...)
quanto mais eu tentava me livrar deles [os músculos], mais eles ficavam,
porque fazia exercício o dia inteiro, bicicleta, natação, aeróbica, aula de dança
sabe... não parava.
Será que Ana finalmente havia conseguido o que queria? Essa resposta Ana
ainda não teria, mas de uma coisa tinha certeza, naquele lugar vivenciaria um outro
reconhecimento para sua identidade, que até então somente haviam lhe possibilitado
vivenciar o sentimento de humilhação. É certo que esse novo reconhecimento traz
novos problemas, se antes era humilhada agora era explorada. Novamente fica explícito
que o fato de não comer estava relacionado às condições concretas que vivia e que a
impediam de ter acesso à comida. Mas isso também não era um problema, pois o fato de
não se alimentar de forma ideal já era visto como normal. Na academia era alguém
necessária e desejável, isso aparecia como possibilidade de superação de antigas
situações em que era humilhada, como eram as vezes em que esperava ser desejada
pelos garotos da escola e, pelo contrário, era vista como menina que parecia menino.
Um episódio que marca essa situação foi o momento em que é cantada por um
freqüentador da academia que dizia estar interessado nela.
199
Cheguei em casa e a dor não passava. Minha mãe chegou do serviço falando
“Ana, vamos pro hospital!” (...) eu mesmo não querendo, falei: vamos! Só que
antes eu vou tomar um banho (...) Eu não tomei banho [não deu tempo para
isso] como era beliche eu falei que estava com dor de cabeça subi e fiquei
deitada lá um minuto (...) na hora que ela falou vamos, eu fui descer (...) só
cheguei a colocar o corpo pra fora e fiquei me segurando pra não cair de vez no
chão. Minha mãe achou engraçado, [pensava] que era brincadeira, mas a minha
bexiga começou a encher, parecia que tava grávida.
Fui no banheiro, me arrastei toda, me ralei toda (...) bati a cabeça e a barriga na
cama da minha mãe e ela viu que eu não tava brincando (...) e as coisas foram
piorando, minha mãe tentando pedir ajuda e ninguém acreditava nela, sei lá...
não que não acreditavam nela, mas acho que também não estavam nem ai (...)
Não era a filha deles, nem nada, então passou sábado à noite, domingo e eu
fiquei em casa. Só segunda-feira o pai da minha amiga que eu sempre quis ser
igual também, perguntou: conseguiu buscar ajuda? e minha mãe falou: não! Aí
ele falou: então vamos levar ela pro hospital!
Com a ajuda do pai de sua amiga, Ana é levada para o hospital. A descrição que
faz desse lugar lembra-nos aquela realizada por Rainer Maria Rilke, nos Cadernos de
Malte Laurids Brigge16, um lugar destacado como espaço para a busca da vida, mas que
parece ser um lugar onde se vai para morrer. Hospital lotado, pessoas espalhadas pelos
corredores em macas improvisadas. Ana é encaminhada para a emergência, sua mãe é
16
Nessa obra Rilke escreve: “Então é aqui que as pessoas vêm para viver; eu antes diria que aqui se vem
para morrer. Hoje saí de casa. E vi: hospitais. Vi um homem cambalear e cair. As pessoas rodearam-no,
poupando-me o resto. Vi uma mulher grávida. Arrastava-se pesadamente ao longo de um muro alto e
quente, que por vezes apalpava como para certificar-se de que ele ainda estava ali.” Cf. RILKE, Rainer
Maria. Os cadernos de Malte Laurids Brigge. p.05.
200
encaminhada para casa. Logo depois da internação Ana entra em coma, estado em que
iria permanecer por nove dias.
Ao despertar do coma a primeira coisa que pede para sua mãe é um espelho,
com este objeto em mãos nota que não reconhece a si-mesma na imagem refletida,
percebe em seguida que não coordenava as pernas, imaginava que aquele estado era
provisório e que era devido a alguma medicação. Após a primeira visita médica
descobre que o provisório pode ser algo permanente: é informada que havia contraído
um encéfalo vírus. Naquele instante descobre que passara por uma metamorfose radical,
todo o trabalho desenvolvido para conquistar um corpo com o qual pudesse se
identificar parece ter sido em vão ao notar que o corpo refletido no espelho era um
corpo definhado, atrofiado. Tal como Gregor Samsa, personagem d’A metamorfose de
Franz Kafka, que acorda metamorfoseado em algo inumano, naquele momento não
consegue mais descrever quem é: representa uma anamorfose para si mesma. Mas o que
isso quer dizer? Que ela, na condição concreta em que estava, em relação ao ponto de
vista que adotara sobre si mesma, representava uma deformação de imagem?
Considerando isso, não é difícil entender que adotar uma personagem esportista
significava adotar uma imagem ideal sobre si e sobre o próprio corpo, a qual se mostra
distorcida na imagem refletida no espelho.
Minha vida acabou ali, sabe (...) quando eu cai... têm coisas que acontecem que
faz com que a gente não seja mais gente. A única coisa que eu queria saber é se
eu ia voltar a andar.
A partir daquele momento, inclusive, Ana descobriria que não poder andar seria
apenas mais um dos problemas. Devido à fragilidade em que se encontrava, era como se
dali em diante tivesse de começar do zero. Discutimos, e de certa forma adiantamos
esse fenômeno no itinerário teórico, quando Ciampa interpretou o momento em que
Severina esgotou todas as possibilidades de representação das personagens interpretadas
até aquele momento a ponto de chegar a zero, fato que abriu espaço para que ela fosse
reconhecida como doente mental. Havíamos identificado esse fenômeno também em
nossa dissertação de mestrado, onde, a partir da narrativa de Lou-Lou, também ficou
evidenciado que o diagnóstico de doença mental (sob o diagnóstico de dependente-de-
drogas-louca-suicida) viria após a impossibilidade de interpretação de personagens
201
ensaiadas e não reconhecidas17. Já nessas duas histórias de vida era possível observar
que o momento de chegar a zero representava o instante de potencialidade e fragilidade
enfrentada pelo indivíduo frente à indeterminação de sua identidade e as formas
convencionais de reconhecimento. Nas duas histórias foi possível perceber, uma vez
que em ambas narrativas puderam ser observados fragmentos de emancipação —
utilizando aqui o conceito de anamorfose proposto por Almeida —, que somente
quando foi possível suportar e incorporar as anamorfoses expressadas (incorporar o
estranho, o inominável nas identidades de Severina e Lou-Lou) é que a alteridade das
identidades puderam ser concretizadas.
Na narrativa de Ana, como poderemos verificar, o sofrimento de indeterminação
se estenderá por algum tempo, afinal, estava diante de uma situação a qual ainda não era
possível dizer em que condições ficaria: não era conclusivo o fato de que voltaria a
andar ou se tornaria paralítica, era uma anamorfose para si mesma e para os outros.
Entretanto, se na esfera do reconhecimento de sua identidade após a doença ainda não
era possível afirmar quem era, no que se refere ao relacionamento com os outros,
principalmente com a mãe, era como se tivesse regredido ao período de infância.
Devido ao seu estado físico é obrigada a depender da mãe para se alimentar e realizar
coisas que antes lhe eram simples tais como: tomar banho, ir ao banheiro etc.
Após cinco meses de internação chega o momento de Ana voltar para casa,
descobre que tornou-se popular, não por conta de sua melhora, mas porque chamava
atenção por conta de sua condição: Ana não andava mais.
Pois é, voltei para aquele lugar chato onde todo mundo me conhecia, onde era
novidade que eu tinha parado de andar e que eu tinha voltado para casa (...)
É uma coisa doida, primeiro as pessoas não estavam nem aí para mim (...)
acontece uma coisa e vai perguntar pra minha mãe se eu tinha morrido, se ela
tinha se costumado e quando eu volto pra casa está todo mundo lá (...) um
monte de cínicos (...) Aninha! Que bonitinha! Que bom que você ta aí!
instituição, uma vez que as escaras eram resultado do contato contínuo de seus
membros inferiores sem mobilidade com o leito. Como havia se tornado uma garota
que não andava é encaminhada para uma instituição para pessoas com necessidades
especiais, filial daquela em que havia descoberto que o pai trabalhava no início de sua
adolescência. Estava diante de uma situação no mínimo incômoda, todavia, não havia
outra alternativa, precisava se recuperar.
Eu tive que me recuperar das escaras porque se não era impedida de fazer
fisioterapia e durou muito tempo, porque não adiantava eu correr porque não sei
se você sabe, mas tem aquela deficiência do corpo (...) de uma ferida aberta
roubar nutrientes (...) então eu não ganhava peso para começar fazer a bendita
da fisioterapia e também não sarava. Eu fiquei muito tempo com essas porcarias
dessas escaras, então meus músculos foram atrofiando (...) eu tive escara no
calcanhar, imagina nos dois (...) num monte de lugar, na coluna, nas costas, e
aquela continuava grande na virilha, nossa muita coisa, era horrível, fora que
isso eu também usava frauda.
com a grosseria das enfermeiras que a tratavam com o mesmo descaso e humilhação
que Ana direcionava para aqueles que reconhecia como deficientes.
O que é uma lesão medular, o que afeta (...) e que as pessoas tem que ajudar (...)
as pessoas que convivem tem que saber como lidar (...) que uma pessoa [com
necessidades especiais] pode levar uma vida normal, pode casar, pode ter filhos,
pode trabalhar, pode fazer esporte, pode isso, pode aquilo (...) eles ficavam
falando (...) eu nem ouvia, entrava por um ouvido e saía pelo outro (...) eu não
queria estar naquele lugar, eu odiava e ainda odeio.
18
O conceito de estigma é utilizado por Goffman para se referir às “desgraças” que são expressas pelas
evidências corporais, ou seja, o estigma como referindo a marcas que denunciam a presença de um
indivíduo de segunda categoria. Cf. GOFFMAN, Ervin. Estigma.
19
Ibidem. p.41.
204
Ana participava das atividades, dos ensaios da deficiente, mas não aceitava
representar essa personagem. Mas o que fazia então Ana nesse lugar? Alimentava a
esperança de que na instituição poderia voltar a andar e retomar sua vida. Frente à
possibilidade de retomar à personagem perdida, a esportista, valeria qualquer
sofrimento para retomar o projeto de ser uma Filha que valia mais que um deficiente?
Entretanto, como era de se esperar, chegou o momento em que a indeterminação não
pôde ser mais sustentada.
A fisioterapeuta pegou meu histórico (...) pegou os exames que eu fiz e falou
que eu não ia mais voltar a andar (...) que eu tinha que me acostumar com a
cadeira. (...) Aí pronto! Eu fiquei aquela sessão inteira chorando (...) aí foi uma
seqüência de... de desastre, uma seqüência de frustrações (...) então eu comecei
a não querer ir mais, nem ligar para estar lá para fazer a fisioterapia mesmo (...)
ela me dava só exercício daqui para cima sabe, fazendo musculação e isso e
aquilo. Eu falei, opa! Eu ficar musculosa como esses homens de cadeira de roda
(...) Deus me livre. E ela me deu alta. Então, eu falei, já que me deu alta, não
tenho mais que vir pra cá.
não que eu não quisesse voltar a andar, mas eu me desliguei sabe (...) além do
que, eu queria ainda pensar (...) eu queria voltar a andar.
O que a instituição não considerou foi o fato de que se Ana aceitasse tal política
de identidade teria que viver representando uma personagem que para ela era
insuportável. Entre a escolha do sofrimento de ser identificada como deficiente e a
permanência do sofrimento de indeterminação, Ana decide pela segunda opção, e
abandona a instituição, afinal, o que esta última poderia lhe oferecer naquele momento
era algo que havia procurado se distanciar durante toda sua vida. Entretanto, abandonar
a instituição significava desistir da possibilidade de voltar a andar. Como Ana lidaria
com isso? Como negar algo que o seu corpo denunciava a todo instante? Eis que surge
uma possibilidade, uma alternativa frente à alternativa oferecida pela instituição. Uma
amiga que havia conhecido nas sessões de terapia havia lhe contado que em alguns
casos de anorexia a pessoa parava de andar. Isso, para Ana, que sempre teve
dificuldades com a alimentação e sempre havia sido magra, surge como uma luz no fim
do túnel, uma possibilidade frente ao sofrimento de indeterminação. Nesse momento,
acreditamos que fica evidenciado que o sofrimento de indeterminação da identidade a
que temos nos referido consiste na não aceitação de uma personagem que conferia uma
identidade pressuposta, o que deixa o indivíduo aparentemente sem opções de criar
novas personagens, representar uma antiga ou sustentar uma expressão anamórfica,
logo, gerando uma indeterminação de si mesmo. Fazendo uma articulação com a teoria
meadiana, podemos dizer que o sofrimento de indeterminação também pode ser
compreendido como uma não identificação do indivíduo com os elementos do “mim”,
que serviriam de contraste para a espontaneidade do “eu”, proporcionando a
impossibilidade de apresentação do self.
Retomemos a história de Ana e vejamos como essa proposição tem sentido. O
simples fato de escutar da amiga que o fato de não andar poderia ser interpretado como
outra coisa, algo que poderia servir como personagem alternativa à deficiente, não
garantiria a adoção dessa nova representação de imediato. Ana precisaria ter certeza que
a nova personagem seria viável. Mas como? Se não saía de casa porque não podia
andar, como faria as pesquisas que precisava? É quando uma solução aparece de forma
inesperada, o pai de sua amiga (aquele que a levara para o hospital) sensibiliza-se com
sua impossibilidade de locomoção e oferece um computador e o pagamento do acesso à
Internet para que ela pudesse passar seu tempo. Ana descobre rapidamente que com a
206
Encontra uma outra leitura para o não andar, a limitação biológica passa a ser
pensada como limitação psicológica, isso oferecia a possibilidade de negação da
condição de deficiência, de impotência frente ao corpo. Nesse caso, a condição de não
andar não seria uma deficiência, um déficit, mas a eficácia na representação da
personagem, estava de certa maneira no controle da situação. Mas como é possível Ana
prescindir de uma personagem estigmatizada (deficiente) em favor de uma outra
personagem estigmatizada (anoréxica) e com isso pensar que poderia ser aceita
socialmente? Para responder essa questão devemos lembrar o sentido que a personagem
deficiente teria para sua identidade e o sentido que será atribuído para a personagem
anoréxica. Enquanto a primeira personagem aparece como a imposição de uma
identidade pressuposta insuportável, a segunda possilita sustentar a fantasia de que sua
condição é resultado de uma escolha. Portanto, a possibilidade de representação da
personagem anoréxica, sustenta uma aparente escolha entre um “modo de vida” e
doença mental — por exemplo, basta observar imensa quantidade de comunidades pró-
anorexia na Internet que defendem o ser anoréxica como escolha racional pelo não
comer. Entretanto, como veremos a seguir, Ana logo descobre que a possibilidade de
representação dessa personagem gerará uma nova necessidade: se antes já havia
descoberto que não bastava apenas saber que em casos de anorexia um indivíduo
poderia deixar de andar, agora descobre que para representar a personagem anoréxica
não bastava que fosse reconhecida como uma, precisaria compor a personagem e
representá-la de uma forma que não restasse dúvidas quanto a sua autenticidade. A
relação com o diagnóstico é invertida. Se antes, na instituição de portadores de
207
Eu fui visitar minha amiga no Hospital Estadual (...) eu peguei um folheto desse
hospital acho que é um dos especialistas em intoxicação (...) dessas crianças
que tomam cândida [alvejante], esse tipo de coisa (...) e tinha um folheto de que
se a criança, se a pessoa, ingere determinado tipo de coisa tem que fazer ela
vomitar (...) e tinha uma mulher que ensinava num folheto (...) A prefeitura que
colocou isso, sem saber que (...) uma pessoa que nem eu, que sempre pensou
em tudo antes de fazer, estava ajudando [a aprender a vomitar]. Aquelas noções
básicas. Aí eu tentei, tentei com o dedo, tentei com a escova, com a colher, ai
eu comecei a entrar na Internet (...) eu tentei, com detergente, com mostarda,
acho que com um monte de coisa (...) depois que eu entrei [na Internet] é que eu
comecei a conversar com as meninas (...) e aí que elas foram me falando mais
coisas, mais coisas pra eu tentar.
Escondendo seus planos da mãe, Ana vai aprendendo, a partir das tentativas e
erros, a vomitar. Com o passar do tempo já havia conhecido dezenas de outras garotas
que também estavam aprendendo a ser anoréxicas nas comunidades da Internet, todavia,
como Ana faz questão de destacar, ainda era aprendiz, não tinha passado por nenhum
especialista. Foi quando, após dois anos trancada em casa mantendo contato com
pessoas pela Internet, tem uma chance de conhecer uma especialista em anorexia, uma
Psicóloga que se torna “amiga” de Ana e procura tratá-la virtualmente. Ana conta que
havia dito para a amiga psicóloga que vomitava e não andava mais por conta disso, que,
inclusive, enviou algumas fotos tiradas de suas pernas. Certo dia, após pesar-se em uma
balança caseira, que sem saber estava alterada20, Ana conta alegremente para a
Psicóloga que chegara aos 25 quilos. A Psicóloga, mobilizada pelo discurso de Ana,
toma uma atitude que (des)organiza toda a atuação sustentada até aquele momento. Na
verdade, a Psicóloga age da mesma forma que os especialistas criticados por Szasz na
década de 60 do século passado, uma vez que a profissional, a partir de uma atitude
paternalista e ao mesmo tempo de poder (afinal representava a especialista em
anorexia), como se fosse um agente da família ou do Estado, assume responsabilidade
por Ana, “a define como uma paciente contra sua vontade [a coloca em um táxi e leva
20
A balança caseira tinha sido alterada pela mãe de Ana um dia antes sem que a mesma soubesse. O
objetivo da mãe ao fazer a alteração partiu do pressuposto de que se era o pouco peso o objetivo
buscado pela filha, então bastava alterar os números.
208
para o hospital] e a sujeita ao tratamento considerado o melhor para ela, com ou sem o
seu consentimento”21.
Acreditei que eu tava com 25 quilos. E foi isso que eu falei pra minha amiga
[Psicóloga] (...) eu bebi um copo de vinho, era um copo de vinho branco seco
horrível que eu coloquei adoçante. E nesse dia eu comi uma salsicha. Então
conversando com ela, ela ficou preocupada e veio aqui em casa [sem avisar],
veio de táxi e tudo e falou: eu vou levar você para o hospital. (...) Aí pronto, eu
tinha um dia antes tomado um diurético. Então ficou tudo descompensado (...)
Começaram a fazer exame de sangue (...) falaram um monte de coisa, queriam
até passar a sonda mas minha mãe (...) não deixou.
E eu lá (...) certa de que tava com vinte e cinco quilos (...) aquilo na cabeça. (...)
quando eu me pesei deu trinta e um e meio. Você imagina (...) eu fiquei louca
da vida. Eu falei: essa balança está errada, comecei a xingar o enfermeiro, esse
negócio está errado! (...) E eles me colocaram na cadeira para eu voltar para o
consultório e eu chorando, chorando, chorando e vinha comida, vinha café da
manhã, almoço (...) [e Ana dizendo] não vou comer!
21
SZASZ, Thomas S. O que a psiquiatria pode e o que não pode fazer. p.87.
22
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.138.
209
sustentar que estava ali enquanto uma especialista em anorexia poderia colocar em risco
sua representação enquanto especialista. De repente, a Psicóloga “nega reflexivamente
aquilo ao qual se vincula, criando um universo social ‘carnavalesco’ de aparências
reflexivas, ou seja, aparências postas como aparências”23. Mas é Ana quem tem a
palavra.
O idiota do psiquiatra chegou a falar pra mim que aquilo era frescura, que eu
queria chamar a atenção da minha mãe. E a Psicóloga falou que eu fazia aquilo
porque, porque eu queria morrer, porque eu não andava (...) você não tem nada
(...) isso aí é pra chamar a atenção. Você está falando que você tinha antes de
parar de andar [não se alimentava] (...) é mentira! Quando você me contou que
tava internada, você nunca me falou disso (...) você não disse que tinha
músculos, que você era fortinha. Pronto, pra que foi falar fortinha na minha
frente. Ai eu comecei a gritar com ela (...) Aí eles falaram que não iam ficar
comigo porque tinham medo de eu morresse, porque eu estava entrando num
caminho que não tinha volta, que era aquilo que eu queria, que isso era uma
doença.
Se sua história era ou não verdade, seria essa a postura de uma profissional que
se considerava uma especialista em saúde mental e havia levado Ana para o hospital
com o discurso de solidariedade e compreensão do outro? Era isso que Ana se
perguntava nesse momento. De nossa parte, não fosse o fato de termos presenciado (o
que?) em nossas visitas a instituições asilares e substitutivas, e se não tivéssemos
conversado com profissionais e escutado de nossos orientandos diversos relatos de
interpretações selvagens como essa, ficaria difícil de compreender o que ouvimos de
Ana. A análise selvagem realizada pelos dois técnicos, inclusive, faz com que
questionemos se as condições de reconhecimento deveriam ser tratadas pela instância da
ética individual, como proposto por Honneth24. Esse episódio deixa claro que o direito à
estima social nem é tematizado, pelo contrário, o discurso do especialista mascara o fato
de que a leitura para a situação de Ana estava baseada na moral da Psicóloga e do
Psiquiatra.25
Ana até tenta encontrar uma forma de sustentar a personagem anoréxica frente
às interpretações dos especialistas, entretanto, agora era denunciada, desmentida por seu
23
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.138.
24
Cf. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. p.157 et seq.
25
Essa utilização do discurso moral como se fosse técnico-psicológico, que denunciam a impossibilidade
de uma ação comunicativa na relação especialista paciente, justifica as críticas de Nancy Fraser, para
quem o reconhecimento deveria ser tratado como instância moral, logo, uma problema de justiça. Cf.
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? p.113.
210
próprio corpo. Agora, mais do que antes, deveria negar qualquer forma de alimentação,
deveria justificar a personagem. Isso obviamente se tornou um problema, pois como a
Psicóloga e o Psiquiatra não reconheceram sua anorexia — pelo contrário,
diagnosticaram sua condição como a de uma deficiente que queria chamar atenção — e
a própria Ana não se reconhecia como deficiente, acaba sendo diagnosticada como
Louca-suicida. Da emergência é encaminhada para a ala psiquiátrica.
Veio o médico, falou comigo, e eu tava tão, tão loca da vida, ele falou assim:
você acha suas pernas bonitas? Falei: eu acho! O que você prefere, ficar assim
ou voltar a andar? Eu falei: ficar assim. (...) Pronto! Aí uns dez minutos depois
já tinha surgido a vaga para a ala psiquiátrica. Era a porta fechada assim,
horrível, não sei se você conhece o hospital. É péssimo! E se você também
conhecer alguém, não indique!
Sua representação como anoréxica não é validada quando tem seu peso aferido
— a condição de anoréxica como doente mental nesse sentido exige um duplo
reconhecimento: de sua condição mental (não querer comer) e de sua condição física
(pouco peso) —, como não quis representar a deficiente com frescura e continua sem
querer se alimentar é diagnosticada como Louca-suicida — uma modulação da
personagem doente mental que não esperava interpretar —, por conta disso é levada
para a ala psiquiátrica do hospital, a qual não apresentava condições de acolher alguém
com limitações físicas. Uma passagem escrita por Thomas Szasz ajuda a elucidar a
lógica desse pensamento: as regras do jogo da doença.
26
SZASZ, Thomas S. O mito da doença mental. p.207.
211
Louca da vida e com medo (...) não queria ficar (...) no dia seguinte minha mãe
conseguiu falar com os médicos (...) não tinha condições, a ala não era
adaptada, não tinha como eu tomar banho (...) eu não tomava banho, porque não
tinha lugar (...) a única coisa que eu fazia era lavar o rosto e escovar os dentes
(...) ir no banheiro e me limpar com lencinho umedecido porque banheiro
adaptado [não tinha].
E Ana continua seu relato dizendo que além do diagnóstico recebe uma
sentença. De acordo com a Psicóloga, que primeiro certificava que Ana era anoréxica e
agora dizia que ela era uma suicida, seu caminho não tinha volta. Está claro que os
especialistas não conseguiram suportar a representação de Ana. Fazendo uma analogia
com os casos em que indivíduos cortam seus próprios corpos, trazidos por Žižek,
podemos dizer que: longe de uma atitude suicida, longe de indicar um desejo de auto-
aniquilação, o não comer “é uma tentativa radical de (re)dominar a realidade ou, o que é
outro aspecto do mesmo fenômeno, basear firmemente o ego na realidade do corpo
contra a angústia insuportável de sentir-se inexistente”28. Mais uma vez Ana deveria
lidar com uma interpretação que indica um beco sem saída para sua identidade,
novamente fica frente ao sofrimento de indeterminação e a escolha entre duas únicas
representações: ou assumia a personagem deficiente que tanto negava ou insistia em
uma personagem cuja morte estava anunciada.
Minha mãe conseguiu me tirar de lá. Saí de lá e fui para a parte administrativa,
fizeram minha mãe assinar um termo de responsabilidade e eu também assinei.
Falaram que era caso de polícia, que eu podia morrer, mesmo assim deram a
alta. (...) voltei para casa um pouquinho mais inchada (...) voltei a fazer tudo de
novo.
vez que voltasse para um espaço como aquele não seria surpreendida, não adiantava
mais confiar apenas na balança, muito menos apenas naquilo que dizia, afinal, como ela
mesma comenta: “(...) antes era tudo balela? Eu só queria chamar a atenção das
pessoas? Então eu ia mostrar que aquilo [a personagem anoréxica] era de verdade!” A
obstinação de Ana na construção e representação da personagem anoréxica nos faz
lembrar da obstinação do oficial que toma o lugar do acusado na máquina de tortura
para ter seu corpo submetido a uma nova escrita de Na colônia Penal de Franz Kafka.
Isso nos mostra que mesmo quando uma superfície corporal é reconhecida como
“natural” (não andar = deficiência) pelo Outro, ainda é possível que esse corpo seja
tomado pelo indivíduo como passível de ser transformado em algo dissonante,
performativo, desnaturalizado. É o que acontece com Ana, que assume radicalmente a
personagem, começa a provocar vômito constantemente, faz restrição de alimento, e por
fim, consegue o que queria: em dois meses perde cinco quilos e volta para o hospital,
dessa vez tinha todas as condições para ser identificada como anoréxica.
Pronto! Ana havia conseguido uma nova chance de mostrar que a personagem
representada era verdadeira. Com o encaminhamento do especialista segue até uma
instituição que é referência para o tratamento e pesquisa da anorexia. Como Ana já
esperava (tinha feito lição de casa para não ser surpreendia de novo) ao chegar na
instituição lhe informam que para ser aceita no programa de tratamento precisava passar
por entrevista e realizar alguns testes, consegue ser aceita sem nenhuma ressalva: a Ana
anoréxica é legitimada.
Engraçado (...) tem teste, eu já sabia, sabia o que responder para ser aceita no
programa, as meninas [das comunidades na Internet que mantinha contato]
tinham me ensinado. Me falaram que o objetivo era o tratamento
medicamentoso e terapia. Então eu comecei a passar com a nutricionista e ela
começou a passar aqueles cardápios que eu fazia com as minhas escolhas. Eles
diziam o que eu tinha que comer e claro que eu não comia, sabia que aquilo era
para eu começar a me alimentar, como eles queriam. E era terapia, era
nutricionista falando o que a gente já sabe: olha o laxante faz isso, o diurético
faz aquilo, vomitar faz tal coisa (...) aquele monte de coisa, aquele monte de
história que eu já sabia.
213
Eu nunca fui que nem essas meninas que ficam mentindo, quer dizer, a não ser
para minha mãe. Mas para médico eu nunca menti. Quando eles diziam: Ana,
você comeu hoje? Eu dizia: eu não como desde de ontem, ou dizia, o que eu
comi eu vomitei (...) Ele falava: você tem que fazer isso! Eu falava: eu não vou
fazer! Você tem que comer! Eu não vou comer! Aí uma médica falou: você vai
comer, aqui você vai ser obrigada a comer! Isso foi uma das últimas coisas
[faladas] antes de ficar internada (...) eu dizia: eu quero ver quem vai me
obrigar a comer! E eu falei antes: eu não vou comer e também não vou voltar!
(...) Mas também não adiantou (...) porque eu não ando (...) eu dependo da
minha mãe. Então algumas vezes você não tem escolha, você vai mesmo sem
querer. Você não anda? Eu te pego no colo e te levo, sabe... esse tipo de coisa.
E aí eu acabei ficando internada, no dia 24 de novembro. E o meu aniversário é
dia 27. [na internação] Eu não tinha uma reação de chorar que as outras
meninas tinham, a minha reação era cara fechada, não falem comigo. No fundo,
eu não sabia se eu chorava ou se eu continuava com raiva ou se eu queria aquilo
mesmo (...) até mesmo para me livrar ou para mostrar que eles falaram você vai
comer vai fazer isso e eu para mostrar para eles que eu não ia, que eu não ia
fazer aquilo. Que eu não ia ser mandada por nenhuma daquelas pessoas. Então
eu passei meu aniversário lá.
Novamente havia sido internada contra sua vontade, entretanto, a internação, que
em outros momentos de sua vida significou a experiência de solidão, dessa vez é
vivenciada de forma diferente. Dessa vez Ana recebe inesperadamente a visita de
algumas das garotas que mantinha contato pelo site de relacionamentos da Internet e
eram leitoras de seu blog. O interesse delas era colher notícias de sua internação e
atualizar diariamente seu perfil. Mais uma nova descoberta para Ana, pois isso
significava na prática que embora seu corpo estivesse em poder do hospital, sua
identidade virtual permaneceria livre, sendo representada sem maiores problemas. Ana
assinala que a partir desse momento percebe que era importante para alguém além de
sua mãe, uma vez que as garotas reforçavam em todas as visitas que estavam torcendo
por sua saúde e, principalmente, para que continuasse a resistir como anoréxica. O que
não seria uma tarefa fácil de ser cumprida no hospital devido ao tratamento intensivo.
Afinal, ela sabia que se se negasse a comer o que lhe fosse oferecido dessa vez, seria
submetida a uma sonda e já que não adiantaria uma ação comunicativa com os
especialistas, a saída encontrada então seria utilizar um agir estratégico. É quando Ana,
que já representava a anoréxica-problema, soma a essa personagem a adolescente que
não viveu.
Mesmo com a sonda eu tinha que tomar água. Então descobri uma maneira de
não tomar aquilo que me davam, eu guardava os copinhos descartáveis e levava
215
para o meu quarto (...) então quando não tinha ninguém, eu abria a torneirinha
da sonda e descartava, depois eu jogava fora. Sabe (...) eu aprontei muito,
aprontei minha vida (...)
Nesse momento de sua vida era como se tivesse retomado sua adolescência, ou
melhor dizendo, como se tivesse revivido aquilo que entendia como adolescência-
perdida, podendo agora ser exemplo para outras garotas. No hospital especializado
conhece outras meninas com quem se identifica, parecia que tudo estava sob controle
novamente: fazia traquinagens para continuar com o pouco peso, mantinha seu blog
atualizado por conta das fãs que conquistara, fazia bagunça, arrumava sua vida.
O que eu não fiz na minha adolescência, na época de escola, eu fiz lá. (...) na
escola eu não tinha meu grupinho (...) mas lá eu tinha um grupinho, que botava
apelido nas pessoas, que aprontava, que faz isso e aquilo.
Era uma Mulher casada (...) um dia quando ela saiu eu pedi diurético para ela.
Falei: Traz para mim? Ela não disse nem que sim nem que não mas no dia de
voltar da licença ela me chamou num cantinho e falou: Ana, toma, esconde (...)
Era o remédio... (...) escondi o diurético porque você sabe (...) não pode entrar
esse tipo de coisa, principalmente diurético, laxante. Aí ficou comigo. Eu fiquei
com medo [no início], tinha medo de tomar e ter um treco (...) medo de que se
eu tivesse um treco [descobrissem] que tomei um diurético que não devia e
aquele monte de coisa.
Eu fiz amizade com uma menina que todo mundo excluía (...) e ela viu que eu
tinha o diurético (...) então, era tipo daquele jeito: se você me dar eu não conto
que você tem! Então eu dei um e dei outro. E nessas duas vezes, ela chamou
muito a atenção (...) ficava a noite inteira indo no banheiro e era sempre depois
que saía do meu quarto, claro... dá na cara isso (...) Aí eu tive minha primeira
licença, na Páscoa e vim pra casa, fiquei feliz pra caramba (...) perdi dois
quilos, e claro que me ferrei na volta (...) perder dois quilos é uma condição
para não ter outra licença. Um dia eu caí na besteira de perguntar [havia lido
todos os efeitos colaterais presentes na bula do remédio] para o médico da
Mulher casada que me levou o diurético o que significava todas aquelas coisas
e que podia acontecer, então ele me explicou tudo (...) logo em seguida a
enfermeira chefe me chamou. Aí eu pensei: pronto ele deve ter contado para
ela! E eu tava com a Mulher no quarto e ela [a enfermeira] me chamou e eu
fiquei com medo (...) aí eu disse: Mulher toma e guarda pra mim, esconde e
depois eu pego com você! Se for tomar a gente toma, mas um de cada vez, você
me pede, eu dou, não é para ficar com você. E nisso descobri que a enfermeira
só queria meu telefone (...) não era nada.
Não era nada. Parecia que tudo voltaria à rotina, poderia continuar com seu
plano, mas Ana não havia considerado no momento em que acreditava ter sido
descoberta que tinha pedido para o “lobo tomar conta das galinhas”, ou seja, para uma
pessoa que também estava em sua mesma situação para tomar conta de algo que ela
mesma tinha dificuldade de lidar. Foi quando ocorreu uma tragédia.
E já estava com ela [Mulher], quando chegou o jantar (...) eu tive que comer [e
lembrou do remédio], nisso ela pegou o remédio deitou no meu colo e falou:
Ana, me desculpa! E eu falei: desculpa porque? Ela falou: eu tomei! Eu falei:
tomou quantos? Ela falou: sete! Aí eu falei: meu deus [Mulher], porque você
fez isso? Sabe, ela não podia ter feito isso. Eu ficava num quarto sozinha. Então
ela tomou sete e até de noite não tinha acontecido nada, fiquei aliviada porque
nada tinha acontecido e dormi. E nesse que fazia um mês que eu não estava
tomando o remédio (...) eu escondia o remédio, tentei tirar a sonda também, foi
um caos, eu aprontei muito aquele mês. Então nesse dia eu dormi. Acordei com
a [enfermeira] entrando no meu quarto: Ana me fala o nome do remédio que a
[Mulher] está morrendo. Eu mal tinha acordado direito (...) me fala o nome do
remédio! Aí eu falei tudo, um monte de coisa (...) ela estava no soro (...) tinha
dado um revertério forte (...) levaram o aparelho de freqüência cardíaca. Nisso a
[amiga com quem dividia o remédio] vendo que a [Mulher] estava passando
mal, desmaiou também (...) desmaiou e contou que ela tinha levado o diurético
para mim, que eu tinha pedido e que sabia onde estava escondido também se eu
não quisesse devolver, então o enfermeiro foi conversar comigo, pediu para eu
entregar. Falei que eu não ia entregar para ele. Uma hora da tarde, falaram: Ana
você vai ter alta administrativa, você e a [amiga]. A [Mulher] não porque o
médico dela pôs no prontuário como tentativa de suicídio. Então minha mãe foi
me buscar, ela ficou feliz e tudo, eu não fiquei.
Com o ocorrido Ana recebe alta administrativa, não poderia mais fazer o
tratamento proposto pela instituição. A argumentação utilizada na ocasião da expulsão
217
era que ela não tinha perfil para o tratamento proposto pelo hospital de referência para o
tratamento da anorexia. Outro argumento utilizado foi o de que até aquele momento
representava um perigo apenas para si mesma, mas que a partir do que havia feito
tornava-se um perigo para as demais internas, que representavam a demanda
“verdadeira” da instituição — principalmente porque se submetiam à identidade
pressuposta pela instituição e deixavam seus corpos dóceis nas mãos dos especialistas.
É importante assinalar que essa explicação, vinda de uma instituição que se colocava
como a melhor instituição de tratamento para anoréxicas, convence Ana de que não
existia nenhuma alternativa para sua condição, ou seja, a mesma instituição que
reconhece ela como anoréxica assume que não sabe como tratá-la. Claro que aqui fica
explícito que a fragilidade técnica é invertida como um problema individual. Ana é
reconhecida de forma perversa como doente mental sem perfil para tratamento. Esse
diagnóstico, que poderia ser pensado aqui apenas do ponto de vista subjetivo, vindo de
uma instituição entendida como referência para o tratamento da anorexia refletirá de
forma concreta nas futuras tentativas de busca por tratamento. O histórico de
reincidências (recaídas) conferiam à Ana o estigma de intratável.
Depois de uns dois meses e meio depois eu emagreci ainda mais (...) minha mãe
viu que não tinha adiantado muita coisa eu ter saído e porque eu já estava do
mesmo jeito de quando eu entrei, quer dizer, é estava com mesmo peso, então
ela queria que alguém ajudasse (...) a gente perguntou sobre terapia, procurei na
Internet (...) acredita que nem pagando quiseram me atender? Minha mãe
procurou a prefeitura para arrumar psiquiatra e psicólogo e falaram [os técnicos
do serviço de saúde mental que a mãe foi encaminhada] que eu tinha que
procurar um hospital primeiro (...) que eu tinha que me tratar, tinha que me
internar que isso e aquilo, para depois fazer terapia, falaram que não tinha jeito,
falaram que não tinha vaga e eu sabia das conseqüências que não iam me
internar e acabou (...) não tem tratamento.
Mesmo que voltasse a ser internada será que conseguiria o que procurava? O
hospital já havia lhe dito que o que poderia oferecer como tratamento era o aumento de
seu peso. Não era isso que Ana procurava, ninguém havia conseguido entender que sua
personagem tinha uma função de negação de outra personagem insuportável: a
deficiente. Valendo-nos de uma passagem escrita por Žižek, podemos dizer que nenhum
especialista conseguiu entender uma condição básica daquilo que se configura
atualmente como demanda: “a demanda por comida, por parte da criança, por exemplo,
pode articular o desejo de amor, de modo que algumas vezes a mãe pode atender à
218
demanda simplesmente abraçando a criança”29, isso assinala que não basta apenas
corresponder ao que se apresenta como problema, é preciso abrir mão do cinismo —
que traz a anamorfose para o ponto fixo determinado pelo especialista —, e deslocar
nosso olhar para o ponto onde a anamorfose se apresenta — suportando o fato de que
muitas vezes teremos que abrir mão do discurso técnico-psicológico e produzir uma
outra leitura considerando que o desejo envolve a Lei e sua transgressão. Também
nenhum especialista considerou que a personagem anoréxica conferia a Ana um
reconhecimento de sua identidade nunca antes experienciado, pois era finalmente
popular, como se essa representação pudesse reparar algo nunca vivenciado. Ciampa
havia identificado esse fenômeno como o momento em que nos tornamos nossas
predicações, devido ao fato de a representação significar um aumento do poder a que
uma personagem dá acesso30. Aqui nos referimos a possibilidade de paridade31 que essa
personagem confere ao indivíduo frente, pelo menos, àqueles com quem se identifica e
com quem é identificado.
Na narrativa de Ana algumas questões permanecem sem uma resposta
satisfatória: a) se aqueles que deveriam escutar o sofrimento de Ana, compreender sua
história de vida não se dispuseram a reconhecê-la em sua totalidade, reduzindo-a apenas
à personagem fetichizada, como ela poderia lidar com a anamorfose que fazia com que
ficasse aprisionada entre a adoção de uma personagem que poderia se concretizar como
uma metamorfose para a morte e o sofrimento de indeterminação? b) como poderia dar
outros sentidos para a anamorfose materializada por seu corpo se a própria
representação deste sofria a disputa de diferentes instituições que a priori lhe conferiam
apenas um significado, uma identidade pressuposta? Longe de querer responder a essas
indagações, acreditamos, inclusive, que seja necessário mantê-las como um problema
que deve ser pensado por todos. Falemos do que foi/tem sido possível para Ana, que
sem a possibilidade de experienciar um outro outro alternativo a alternativa encontrada
para negar a personagem deficiente, somente encontra como saída uma representação
limitada, a reposição de uma personagem que é reconhecida de forma perversa. Em
última instância, é uma metamorfose para a morte, se não simbólica, física certamente.
Isso fica explícito quando nos conta quais seus planos para o futuro, seu horizonte
29
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.391.
30
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina. p.163-164.
31
Paridade aqui é utilizado no sentido apresentado por Nancy Fraser e que se refere à condição de ser um
par, de estar no mesmo nível que os outros, de estar em pé de igualdade. Cf. FRASER, Nancy.
Reconhecimento sem ética?
219
Sabe qual o melhor tratamento para mim? Ficar internada de novo, mas não
para comer. Para realmente não comer, entende? (...) para não ter acesso fácil a
comida (...) Você quer saber o que penso para meu futuro? Não existe o futuro!
Não para mim. Eu odeio essa cadeira (...) às vezes me desespero sabe... eu estou
na minha cama e olho para ela, dá uma vontade de jogar ela no chão (...) me dá
vontade de jogar fora (...) sabe... ter vontade de mexer as pernas e não mexer é
horrível. Ano que vem vai fazer sete anos. Sete anos é muita coisa (...) eu não
quero passar oito, não quero viver assim. Sabe, se não é normal eu vou
continuar fazendo como sempre fiz (...), vivo pela Internet. Tanto que eu nem
saio de casa, é muito difícil. E eu sinto um pouquinho de falta, mas agora, para
que eu vou sair de casa? Me fala! Não tem porque. Eu não, eu não gosto de sair.
Fico em casa vinte e quatro horas por dia.
Como propor um tratamento para Ana que não significasse abrir mão da única
personagem que lhe conferiu um reconhecimento desejado para sua identidade? Será
que a expansão dos serviços de saúde mental conseguirá vislumbrar algo além dos
membros atrofiados ou de sua personagem virtual? Será que entenderão algum dia que o
sofrimento passado pelo seu corpo biológico é pequeno quando comparado ao
sofrimento de seu corpo subjetivo? Afinal, não nos parece que Ana queira morrer, sua
história mostra que muitas vezes a realidade se transforma em aparência, que as coisas
simplesmente parecem parecer. Sua história é como um sussurro, um pedido de socorro,
feito por alguém que luta contra a morte simbólica, alguém que resiste em favor da
mínima possibilidade de ser reconhecida, de existir não como um objeto para o outro,
mas como um objeto para si mesma. A narrativa de Ana reforça os argumentos trazidos
na primeira parte de nossa tese, onde questionamos a forma meramente instrumental
que a reforma psiquiátrica tem se concretizado. A explicação de que o problema de Ana
foi o de não se adequar ao perfil, à demanda atendida pela instituição especializada,
deflagra que o interesse da instituição não é pelo desejo do indivíduo (que no caso de
32
Fazemos essa colocação baseando-nos em um hexagrama do I Ching, intitulado “Prover Alimentos”,
cuja primeira linha fala para o consulente: “Você deixa escapar sua tartaruga mágica e olha para mim,
com os lábios caídos”; a seguir vem a explicação: “A tartaruga mágica é um ser dotado de poderes
extraordinários; pode viver do ar e não necessita de alimento material. A imagem indica que uma
pessoa que poderia viver com liberdade e independência abdica dessa autonomia interior e olha com
inveja e desgosto para aqueles que estão externamente em melhor posição”. Cf. WILHELM, Richard. I
Ching: O livro das mutações. p.385-388.
220
Ana aparece como uma re-atualização de toda sua história de vida, da superação do
projeto de querer ser uma filha que valia mais que um deficiente).
Com aquelas últimas palavras Ana termina de nos contar sua história de vida,
sem esperança, sem vislumbrar metamorfoses miraculosas33. Ao cruzar o batente da
porta de sua casa percebemos que a única possibilidade de encontrarmos com ela
novamente, a não ser que ela nos convidasse novamente para uma conversa em sua
casa, seria através de seu blog, da personagem virtual anamorficamente distorcida,
invertida, reduzida, que pelo menos por enquanto representa uma possibilidade e, ao
mesmo tempo, a totalidade de sua identidade. Uma representação que não poderá ser
pensada pelos especialistas da saúde mental enquanto não for pensada para além de uma
demanda psiquiátrica, da transformação de uma anoréxica em ex-anoréxica.
Gabriel também se relaciona com pessoas pela Internet; a personagem que tem
representado também é pressuposta como a de um doente mental, todavia, a forma
como tem dramatizado essa personagem difere daquela apresentada na história de Ana.
Tomamos contato com sua história em uma de nossas viagens cotidianas no transporte
coletivo e depois de uma longa conversa percebemos que sua história de vida poderia
ser interessante para nossa pesquisa. Gabriel trabalha informalmente como técnico de
computadores e é em sua oficina que escutamos sua narrativa de história de vida. Logo
no início de nossa entrevista, ele conta que descobriu interessar-se por esse tipo de
atividade após três anos afastado pelo INSS34 do trabalho que exercia anteriormente por
conta de uma depressão. Antes de seu afastamento trabalhava como motorista em uma
empresa de transporte coletivo de São Paulo. Diferente de Ana, que iniciou seu relato a
partir do seu nascimento, Gabriel começa a nos contar quem é a partir do que fazia, do
seu trabalho e da constituição familiar.
33
Sem vislumbrar metamorfoses miraculosas, prevalecendo a interpretação na linha do I Ching, que ela
deixa escapar a tartaruga mágica ao querer construir uma utopia que consiste em conseguir uma
metamorfose miraculosa, a qual seria viver de ar.
34
Instituto Nacional de Seguridade Social
221
Eu comecei muito cedo, com quatorze anos eu tava namorando, com quinze
anos eu já estava trabalhando, larguei os estudos, fui trabalhar, aos dezessete eu
estava amigado [morando junto com uma companheira]. Tinha juntado as
coisas e vazei [saiu da casa dos pais]. Essa era a idéia de vida mesmo, a que
haviam me ensinado, eu vou trabalhar, montar uma família. Mas uma coisa que
nunca me ensinaram foi que não ia ser fácil. Que no trabalho, principalmente no
trabalho a coisa ia ser difícil, que eu ia ser explorado. Vou contar para você
como foi isso, mas do ponto de vista de alguém que passou pela coisa, que
entende de outro jeito agora o que aconteceu.
Gabriel adianta que sua história será contada do ponto de vista “de alguém que
passou pela coisa”, ou seja, de alguém que atualmente atribui um significado específico
para aquilo que está vivenciando. Sua advertência é importante para que lembremos que
sua narrativa, assim como a de Ana, parte de uma personagem cujo sentido de
manutenção segue a configuração realizada frente às personagens que ora foram se
apresentando, ora foram sendo oprimidas, impedidas de se apresentar, ora foram
resistindo frente às tentativas de aniquilação. Após essa primeira apresentação, Gabriel
fala-nos de sua infância e adolescência, encurtada pelo casamento precoce e entrada no
mundo do trabalho. Acredita que contar sua história dessa forma pode ajudar a entender
o que está reivindicando hoje — que, como poderá ser observado, não se refere ao
reconhecimento como doente mental, mas sim, à indenização de danos pessoais sofridos
por conta da lógica sistêmica presente em seu trabalho.
Para você entender vou contar minha história do começo. Acho minha infância
foi tranqüila. Tirando o fato que eu era só. Na época eu não tinha irmão, fui
filho único até os treze anos de idade e depois dos treze anos minha mãe
engravidou, então, quer dizer, eu fui ter um irmãozinho quando já tinha
quatorze anos. Meus pais sempre se deram bem, nunca vi meus pais brigando,
ao contrário de muitos outros que acontece por aí. Eu cresci tranqüilo mesmo,
morei minha vida todo num bairro da periferia onde sou conhecido até hoje
pelos colegas, não tenho o que me queixar da minha infância, ela foi curta mas
foi boa.
Gabriel diz que tentava se esforçar para aprender o que era oferecido pela escola.
Mas que, com o passar do tempo, começou a perceber que o conteúdo oferecido pela
escola não serviria para nada para a vida que projetava: queria entrar para uma empresa
de ônibus, queria seguir os passos de seu pai migrante nordestino que com pouco estudo
havia conseguido um trabalho em uma empresa de transporte coletivo e tinha lhe
oferecido uma boa infância. Para isso acreditava que não precisaria estudar física,
matemática, história etc., afinal, a própria escola mantinha um discurso ambivalente que
222
ora sustentava que bastava se esforçar, se lançar no mundo do trabalho para que
conseguisse viver com dignidade, ora reforçava que para garotos da periferia não existia
futuro.
Esse relato nos leva a resgatar uma colocação de Jean Baudrillard que assinala o
fato de que atualmente os indivíduos estão “simultaneamente intimados a constituir-se
como sujeitos autônomos, responsáveis, livres e conscientes, e a constituírem-se como
objetos submissos, inertes, obedientes, conformes.”35 Vivenciar essa condição faz com
que Gabriel questione o sentido dessa educação: se não teria condições de entrar em
uma faculdade, se não sairia da periferia, estudaria para quê? Sem um sentido prático
que lhe fizesse encontrar na escola algo necessário para sua vida, torna-se o garoto-
problema.
Então eu casei muito cedo. E foi difícil foi no começo (...) imagina dois
adolescentes, eu trabalhava, ganhava pouco, minha esposa engravidou (...)
pagava pagar aluguel, ficamos um tempo pagando aluguel. Passamos fases bem
difíceis mesmo, e enfim, e aí você vai começando a enxergar como não é fácil.
Você criar, ter uma família hoje em dia não é fácil, é bem complicado mesmo,
35
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. p.110.
223
mas você cresce ouvindo as historinhas que deve casar e trabalhar. Ninguém
fala que as responsabilidades aumentam assim de maneira assustadora e você
depende mesmo do trabalho, que vira escravo do trabalho. Eu acho que hoje o
ser humano, pra se dar bem, pra tentar ser bem sucedido, porque ele pode se dar
mal, ele só trabalha, ele não faz mais nada (...) ele tem que viver para trabalhar,
só isso.
E foi assim que eu comecei ir nessa empresa, que hoje eu estou afastado dela.
Daí por diante eu comecei a trabalhar na oficina, ali mesmo eu já percebi que a
coisa não era, não era fácil mesmo. Você vê muitas pessoas estranhas, as
atitudes das pessoas começam a te incomodar. Pelo menos a mim, tem muita
36
Cf. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.135 et seq.
224
gente que não está nem aí, para as coisas que vão acontecendo ao redor. Mas
ainda acreditava que poderia melhorar, que era só uma fase. Eu comecei na
oficina, sujando minhas mãos de graxa, enfim, eu era moleque, não tinha
profissão nenhuma, eu estava de ajudante lá e eu via aqueles ônibus (...) os
caras dirigindo, como meu pai era. Então, a gente filho homem sempre tem
aquela coisa também, de seguir o que o pai faz, até mesmo porque eu nunca fui
assim de estudo mesmo (...) eu odiava estar na sala de aula. Mas ali eu
imaginava que o trabalho de motorista seria ótimo.
Então eu fui batalhando, com o tempo, da oficina eu passei para fiscal, de fiscal
eu passei para cobrador e de cobrador eu cheguei a me tornar motorista.
Finalmente tinha conseguido chegar onde queria, onde diziam que eu teria
futuro, que garantiria o sustento de minha família, que teria felicidade.
Gabriel decide pagar o preço anunciado para conquistar sua felicidade, contudo,
não sabia que o preço da felicidade seria permanecer preso à inconstância do desejo.
Uma vez, que como Žižek assinala, na vida diária, “(fingimos) desejar coisas que na
verdade não desejamos, e assim, ao final, o pior que pode nos acontecer é conseguir o
que ‘oficialmente’ desejamos. A felicidade é, portanto, oficialmente hipócrita: é a
felicidade de sonhar com coisas que na verdade não queremos”37. Isso fica claro para
Gabriel assim que percebe que o problema de ser explorado não estava no fato de ser
ajudante de oficina, ou fiscal, ou cobrador, o problema da exploração era estrutural da
própria empresa, que sugava até o último sangue de seus empregados. Nessa época
descobre que mesmo tendo imaginado ter assinado um contrato de escravidão
provisória, essa condição provisória poderia se tornar perpétua. Como era de se esperar,
quando Gabriel passa a perceber isso, as coisas começam a se transformar, o sentido de
sua submissão começa a desvanecer.
Quando cheguei no ponto esperado [se tornar motorista] comecei ver que não
fazia muito sentido aquilo. Não de não trabalhar ou de estar trabalhando, mas
de como você teria que trabalhar, as condições de trabalho. Eu sempre fui
esforçado, sempre fui perfeccionista, tanto na minha vida pessoal em casa
37
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. p.79.
225
Por exemplo, o nosso horário de almoço era de vinte e cinco minutos, nossa
jornada de trabalho era para ser seis horas e quarenta semanais, mas
aumentaram para sete horas e vinte. Só que na verdade você fazia mais de dez.
Fazia obrigado, porque eles me davam uma tabela, por mim eu fazia minhas
seis horas e quarenta e ia embora pra casa. Mas não. Eles me davam uma tabela
de dez horas e eu tinha que cumprir ela e eu não podia abandonar ela nesse
horário e eu tinha que fazer meu vinte e cinco minutos que era descontado
ainda, com horas-extras fora do contracheque. E detalhe, com uma ferramenta
de trabalho totalmente desapropriada para estar ali onze horas, sem
manutenção, pneus carecas, sem peças de reposição. Horrível, horrível!
Comecei a perceber que se a pessoa impõe algo para você fazer você tem que
fazer da maneira que ele impôs. Porque ele está acima de você, ele está lá no
topo da cadeia alimentar e você está embaixo, você tem que obedecer mesmo
que seja uma coisa que esteja saindo errado. Isso me deixava louco. É da
maneira deles, dos empresários ou seja lá de quem for, o que estiver por cima,
tem que ser da maneira deles, não consideram suas opiniões. E isso começou a
me incomodar, até hoje me incomoda, pois eu gosto de ter minha opinião
formada, eu gosto de fazer da maneira que eu articule e veja que dá para fazer
226
melhor, mas eu tinha que abrir mão disso porque eu precisava do trabalho.
Precisava pelo menos do dinheiro, precisava garantir o sustento de minha
família. Mas não poder pensar é muito doloroso, e nessa eu fui me desgastando,
fui mesmo.
Chegou uma hora que eu não estava agüentando mais. Depois de treze anos
nessa empresa eu não estava agüentando mais porque eu estava me sentindo um
nada, um lixo, um pano de chão que só é útil enquanto pode ser arrastado pela
sujeira e que depois se torna outro lixo que você tem que jogar fora. Porque se
eu estivesse bem para trabalhar, ótimo para eles, mas se eu estivesse doente,
cansado, estressado, foda-se. Nisso chegou uma hora que eu simplesmente nem
tinha mais vontade de sair de casa, eu não tinha mais nem vontade de acordar.
De levantar e ir pro trabalho. Mas eu olhava de um lado, para o outro, via
38
Cf. MEAD, George H. Mind, Self, & Society: from the standpoint of a Social Behaviorist.
“Normally, within the sort of community as a whole to wich we belong, there is a unfied self, but that
may be broken up. To a person who is somewhat unstable nervously and in whom there is line of
cleavage, certain activities become impossible, and that set of activities may separate and evolve
another self.” p.143. Tradução da passagem para o português feita por Odair Sass: “Normalmente, na
espécie de comunidade a que pertencemos, há um self unificado, mas que pode ser fragmentado. Uma
pessoa nervosamente instável, e para quem há uma linha de clivagem, certas atividades se tornam
impossíveis, e essa série de atividades pode separar e desenvolver outro self.” Cf. SASS, O. Crítica da
razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.276.
39
SASS, Odair. Op. cit. p.275.
40
Cf. CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina. p.157.
227
minha mulher, meu filho, minhas contas para pagar e concluía que eu tinha que
fazer aquilo. Eu era obrigado a fazer aquilo. Porque se eu não fizesse ali, eu
teria que buscar outro, outro trabalho, que possivelmente também me trataria
igual, assim dizia meus amigos quando falava do meu descontentamento, para
eles onde eu estava era maravilhoso, um sonho, então eu tinha que fazer de
qualquer forma. Já que eu estava ali eu não ia sair dali para enfrentar outro
ambiente de trabalho. Passou o tempo e eu não dormia, amanhecia o dia eu já
estava acordado e ainda tinha que trabalhar. Eu comecei a trabalhar chorando,
chorando mesmo, comecei a ficar meio xarope, e todo mundo dizia que era
frescura, e o tempo foi passando e minha vontade de pensar e criticar foi
diminuindo, até mesmo porque eu sabia que eu ia receber um não.
O sofrimento era interpretado como frescura, mais uma vez vemos que a
solidariedade é anulada pelos imperativos morais presentes para justificar e fortalecer a
submissão ao trabalho, o problema coletivo gerado pelas péssimas condições de
trabalho é invertido como problema individual de um funcionário que não estava
disposto a cumprir seu contrato. Embora Gabriel não quisesse abrir mão de uma
personagem que durante toda sua vida acreditou que lhe traria a felicidade, ficava cada
vez mais evidente que onde quer que fosse representar essa personagem deparar-se-ia
com o mesmo palco e o mesmo script. Quando o sentido se desvanece por completo,
quando passou a ter certeza de que não importando a sua reivindicação receberia um
não a priori como resposta — sabia que tudo que falava: “era como se estivesse
pregando no deserto!” —, resgata uma antiga personagem que fora utilizada na época
da escola: o garoto-problema, que, ao ser amalgamado à personagem do motorista de
ônibus, passa a fazer com que seja reconhecido em seu trabalho como motorista-
problema.
Então chegou uma hora que eu já não tava mais agüentando mais, eu tava
assim, eu tava estourando, parecia que eu ia morrer cara. Meu peito estava
horrível, frio no estômago, peito apertado, a cabeça latejando, chorando dia e
noite, não conseguia dormir. Então às vezes abandonava o ônibus no terminal
mesmo e ia embora, faltava e nem justificava. Então comecei a tomar gancho
[suspensão] nessa época, eu tomava gancho um atrás do outro... por
insubordinação. (...) Então eu não estava agüentando mais. Eu perdi mesmo a
noção das coisas (...) uma vez fui pras cabeça e eu cheguei até a agredir um dos
superiores. Sem falar nas agressões verbais, isso aí já tinha virado praxe lá.
não-poderia-dirigir, outra personagem lhe é oferecida, o doente mental, uma vez que
seria apenas sob essa condição que a não submissão ao trabalho, sua libertação da
escravidão por contrato, torna-se possível. Aqui a proposição de Žižek acerca da relação
entre liberdade e loucura mostra-se evidenciada, pois “o ato livre em seu abismo é
insuportável, traumático, de modo que, quando realizamos um ato de liberdade, para
sermos capazes de suportá-lo, nós o vivemos como condicionado por alguma motivação
patológica”41. Mas deixemos que Gabriel nos conte como ocorreu essa metamorfose.
Até que chegou o dia que não agüentei mais, pedi para eles me dispensarem
mais cedo porque eu não estava bem, eu estava chorando, eu saí de casa
chorando e até mesmo os passageiros notaram isso. Chegaram até a comentar lá
com um dos meus superiores de que eu não estava bem. Aí eu fui lá na sala do
meu supervisor e conversei com ele, eu falei: olha, eu não estou legal e preciso
ir para casa. Ele falou: O que é que você tem? Eu não sei. Eu não sabia
realmente o que eu tinha. Ele respondeu pra mim: Ah! Hoje não vai dar não. Aí
eu pensei, mas como assim não vai dar? Eu não estou legal, preciso ir no
médico, preciso fazer alguma coisa. E eu diante dele, lá na sala dele, eu estava
em soluços. Eu estava péssimo. Aí eu falei: eu vou fazer umas viagens, mas
arranja alguém para me substituir. Eu entrei... o que? Três e meia da manhã
naquele dia. Pensava que se eu fosse para casa oito horas da manhã estava bom,
não agüentaria ficar até duas horas da tarde. Eu sabia que não ia agüentar
mesmo. Eu falei, até oito horas você vê o que você faz a pra mim, eu falei... Vê
se coloca algum motorista no meu lugar para mim ir embora, a famosa
rendição42. E ele me vendo naquele estado nem pra ele falar assim: vamos fazer
um seguinte, você não está legal mesmo, deixa o carro aí, eu me viro, eu seguro
essa bucha e você vai lá no médico e depois você me trás um atestado, vai lá se
cuidar. E eu fui tentando me segurar, mas sei que depois de ir lá cutucar ele,
pedir umas três vezes, na quarta vez deu vontade de entrar com ônibus e tudo lá
dentro daquela sala. Eu cheguei lá para conversar e aí ele falou: definitivamente
não dá mesmo para te liberar mais cedo, não sobrou ninguém, agüenta as
pontas. Pô! Eu não enxerguei mais nada. Do jeito que eu estava com o a tabela
de horários na mão já joguei na cara dele, fui pra cima dele, eu não lembro
quem estava lá, pegou e me segurou. Aí eu peguei o ônibus, cara, estava
encostado num ponto, eu não tinha aberto aquela porta, então enfiei ali de
baixo, como se fosse uma garagem, guardei o ônibus lá, peguei minhas coisas e
fui embora. Eu cheguei em casa tão mal, tão mal que eu não estava conseguindo
nem andar mais, eu chorava e soluçava, o peito não agüentava mais, eu achei
que eu ia enfartar. Foi quando minha esposa ligou para o meu pai, falou para ele
que parecia que eu tinha saído do serviço, tinha brigado com alguém. Meu pai
foi lá em casa, me colocou no carro, me levou no pronto socorro e de lá já
41
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.128.
42
Rendição é um termo utilizado que se refere à dispensa de um determinado motorista. Essa dispensa
está condicionada à substituição por um outro motorista que (deveria) está como reserva para as
eventuais faltas e problemas médicos que pudessem aparecer, evitando assim que ocorra falta na oferta
de viagens e com isso houvesse prejuízo, atrasos, para os usuários do transporte coletivo. Em uma
linguagem de dicionário esse termo remete ao ato de entregar-se (uma força militar, uma praça de
guerra etc.) incondicionalmente, ou sob condições, a uma força inimiga; passagem de serviço em
rodízio, de um militar para outro. Cf. HOUAISS, Antonio & VILLAR, M. S. Houaiss: Dicionário da
Língua Portuguesa.
229
fazem cinco anos, vai fazer cinco anos, que eu nunca mais fui o mesmo. Fui
diagnosticado com depressão, virei doente mental, já passei por vários
especialistas, psiquiatras nossa! Já perdi as contas.
Eu teria que comer merda, matar algum chefe?” Onde estaria a assistência segurada
pelos serviços substitutivos? O que seria necessário para ser enquadrado como uma
demanda pelo CAPS, precisaria primeiro ser internado em um manicômio? É o que se
perguntava frente à postura cínica dos profissionais que encontrou nessa instituição. Se
antes sabia que seria abandonado pela empresa, descobre-se nesse momento
abandonado pelo Estado. Como lidaria com uma situação como essa?
E o problema ainda seria aumentado com a morosidade do pagamento do
benefício previdenciário.
Porque tem essa também, quando você se afasta, você fica um puta tempo para
começar a receber do INSS. Eu não sei se até acabou piorando minha situação
porque eu saí de um problema e caí num outro. Que é do sistema mesmo. Já nos
primeiros meses, no primeiro mês você já sente. Pô! E cadê os meus direitos?
Eu preciso receber. Cadê o INSS que não me paga, cara? Eu tenho que pagar o
psiquiatra, eu preciso comprar medicação, preciso comprar os remédios, preciso
correr atrás dessas coisas. Então, me irritava mais ainda. E enquanto mais me
irritava mais ainda, eu precisava passar urgente, não tinha, precisava de remédio
não tinha. Eu sei que eram crises assim, cara, que achava que não iam ter fim.
Eu achava que não ia acabar nunca. Eu sei que eu fiquei, cara, eu emagreci dez
quilos. Eu fiquei pele e osso. Eu não tinha apetite, eu não dormia, eu não comia
nada, nada, nada, nada. Eu fiquei péssimo, péssimo, péssimo.
Nem precisaríamos teorizar muito para saber o porque dessa piora: receber alta
significava voltar a trabalhar na empresa, e isso Gabriel não queria, ou melhor dizendo,
não conseguia, pois bastava pensar nessa possibilidade para começar a chorar
novamente, por várias horas.
Sem precisar voltar para a empresa consegue renovar seu afastamento, isso lhe
dá um novo período para sua recuperação. Nesse período Gabriel nos conta que
intensifica suas consultas com o Psicólogo. Nas consultas encontra espaço para falar
sobre aquilo que não conseguia suportar, aquilo que só de lembrar o levava a chorar.
Mas, Gabriel é quem tem a palavra.
É importante grifar o tentar conviver que Gabriel está se referindo, pois não
significa aqui tentar conformar-se com a situação. Com o Psicólogo ele consegue se
apropriar do sentido de seu sofrimento e a relação desse sofrimento com as condições
desumanizadoras a que estava submetido. O Psicólogo, utilizando aqui a linguagem
habermasiana, consegue ser um agente mediador da crítica à “colonização do mundo da
vida que esvaziado pelas intervenções da ciência e da técnica, do mercado e do capital,
232
do direito e da burocracia”44. Como isso foi possível? Nossa hipótese é que esse
Psicólogo abriu mão de uma perspectiva objetivista (discurso técnico-psicológico) e
assumiu que estava diante de uma anamorfose, ou seja, ao invés de entender seu choro
como a simples expressão de um depressivo — o que significaria movimentar a
anamorfose apresentada por Gabriel para um ponto de vista previamente estabelecido
— passou a buscar os elementos que possibilitavam a representação como doente
mental — mudou seu ponto de observação permitindo uma nova linha de visão, uma
visão em paralaxe45.
Essa mudança de perspectiva efetuada pelo Psicólogo possibilitou que Gabriel
articulasse as personagens representadas em sua vida até aquele momento. Obviamente
esse processo não foi instantâneo, em um primeiro momento Gabriel somente sabia o
que seu corpo estava dizendo, ou seja, somente sabia que não conseguia parar de chorar,
não sabia de onde vinha a causa do choro, a única interpretação que tinha dessa
condição era aquela compartilhada socialmente: tornara-se um doente mental. Na
medida em que o tempo foi passando, começa a perceber que o sofrimento vivenciado
tinha relação com as condições de trabalho a que foi submetido pela empresa.
Eu não sei te dizer assim especificamente o que foi, mas foi ali. Também não
sei te dizer especificamente quando começou a afetar. É lógico que depois vai
caindo a ficha e você fala: Merda! Eu já estava assim faz tempo. Tanto é que o
negócio se tornou crônico, hoje percebo que eu já sentia aquelas coisas antes,
aquela angústia, já estava com os sintomas de depressão, eu já estava
depressivo já fazia uns dois, três anos, e que chegou a hora que uma hora uma
última gota d’água fez o copo transbordar...
Porque antes eu não era assim. Eu abaixava a cabeça, eu engolia sapo, como diz
o ditado. (...) Antes eu engolia sapos e abaixava a cabeça para muitas situações,
como o sistema diz que deve ser e deu no que deu: acabei adoecendo.
mental, fez com que perdesse tudo que havia construído em sua vida, tudo que havia
projetado para sua vida desde a época de escola. Pode-se perceber que ele havia
projetado um motorista-de-ônibus/homem-de-família-feliz. Como haviam ensinado,
para esse projeto deveria trabalhar incansavelmente. Em busca desse projeto, perdeu-o.
Perdeu-o por que?
Depois que eu adoeci minha vida entortou de uma maneira assim drástica
mesmo. Eu perdi tudo cara. Eu perdi um, assim, para não dizer que um futuro
mesmo. Eu perdi casa, eu perdi esposa, automaticamente eu perdi até muitos
momentos. Eu falo, falo que eu perdi esposa que perdi filho também porque eu
perdi os momentos que eu poderia estar, estar ali com eles e sei lá estão vivendo
uma vida tranqüila até. Mas com certeza porque, depois que eu adoeci as coisas
não, não andou da maneira, a doença é complicado. Não estou legal. Como eu
te falei eu me tornei uma pessoa explosiva e difícil de manusear de diálogo
mesmo. Totalmente anti-social hoje, hoje eu me considero uma pessoa
totalmente anti-social, cara. Eu sei que conseqüência de disso que ocorreu
comigo, eu perdi tudo, eu perdi tudo. Hoje eu estou tentando recuperar grande
parte das coisas que perdi com o problema: minha esposa, meu filho...
Chegar a essa conclusão implicou em tomar uma posição crítica frente à sua
representação como doente mental. Se antes chegou a imaginar que o problema que
vivenciava era de origem pessoal, desse momento em diante passou a entender que seu
problema foi de ordem relacional, mais especificamente, que o diagnóstico de depressão
foi fruto de uma relação exploratória vivenciada na empresa em que trabalhava, cujas
regras ele tentou seguir à risca (pois tinham sido apresentadas durante toda sua vida
como necessárias para seu projeto de vida). O problema agora não era como iria se
recuperar para voltar para a empresa, mas como conseguir reconhecimento da produção
de sua doença mental e a responsabilização daqueles que foram responsáveis por sua
condição: o INSS, como instituição do Estado, em sua concepção, deveria regulamentar
e supervisionar as condições de trabalho das empresas, e já que não o faz, deveria
indenizá-lo pelo impedimento de seu projeto de vida.
Como eu falei para você: Me fizeram engolir vários sapos! Eu engolia mesmo,
eu engoli vários, só que com o passar desses anos os sapos que eu engoli já
vomitei todos e pretendo nunca mais engolir. (...) Então hoje eu já faço
totalmente ao contrário, se o sistema permite que alguém como eu adoeça então
que ele assuma a indenização, então que ele pague o prejuízo, tenho certeza que
se eu estivesse onde eu estava estaria bem pior do que eu já estou. (...) A
empresa quer mais que você se foda, ela diz que quer seu trabalho, a sua mão-
de-obra, que vai pagar seu salário, mas não diz que vai roubar sua vida junto.
Sua opinião não importa, independente se você está bem ou se você está mal, se
234
você tem um ponto de vista diferente, eles querem padronizar. As reuniões, por
exemplo, nessa empresa aí (...) vinha a psicóloga e outro chefe só para falarem:
Vocês tem que tratar bem o passageiro! Vocês não podem ficar faltando muito!
Vocês não podem nem trazer atestado! Dava vontade de abandonar uma
reunião dessa, só pede, só pede, só pede, só pede, vai se foder! Ninguém vinha
dizer que iriam mudar a lógica da empresa, que queriam saber como era
trabalhar doze horas, folgar só um domingo por mês, isso ninguém vinha falar,
só vinham pedir para servirmos bem cliente para gerar mais lucro pro nosso
patrão. (...) Se eu tivesse condições naquela época, de trabalhar legal, sei lá,
acho que não teria acontecido nada disso. Os caras acabaram com meu projeto
de vida, projeto de vida que o sistema diz que devemos seguir para sermos bem
sucedidos. Me enganaram e ninguém hoje quer pagar a conta, dizem que o
problema é meu.
Para Gabriel vai ficando cada vez mais claro que o diagnóstico de doente mental
na prática somente é interessante para os empresários exploradores. O diagnóstico que o
reconhece como doente mental direciona a responsabilidade para o indivíduo e
escamoteia todas as condições desumanas que produziram o adoecimento mental.
Diagnóstico, inclusive, que vai se mostrando cada vez mais subjetivo e desinteressado
por sua condição na medida em que percebe que os laudos e relatórios que encaminhava
para as perícias começam a ser ignorados pelos peritos do INSS. Nesse momento
percebe claramente que quando um indivíduo é apenas visto como organismo “não há
lugar para desejos, temores, esperanças, ou desesperos como tais”46. Vale dizer aqui,
discordando de autores como Charles Taylor e Nancy Fraser, que esse episódio
demonstra que o problema não é o não-reconhecimento, pois o especialista contratado
pelo Estado atualmente reconhece os indivíduos, os doentes cidadãos. O problema está
justamente no fato de que se utilizando apenas da perspectiva técnico-psicológica os
especialistas não conseguem perceber as anamorfoses apresentadas, ou seja, não
percebem na mesma representação diferentes matizes, o que evitaria o psicologismo
apontado por Wittgenstein47. O reconhecimento feito dessa maneira é o que temos
denunciado como sendo um reconhecimento perverso, uma vez que não se interessa de
fato em ser produzido a partir de uma interação onde exista uma paridade, mas sim, a
partir de uma relação de poder na qual o especialista cinicamente utiliza o seu discurso
técnico-psicológico para lidar com os problemas trazidos pelos indivíduos que devem
submeter-se à sua avaliação ou diagnóstico para ter seus direitos de cidadão garantidos.
46
LAING, Ronald David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p.21.
47
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. p.175 e segts.
235
Gabriel continua sua história nos contando que desde essa época começa a
receber alta de sua condição de doente mental e tem que recorrer contra a negação do
benefício concedido pelo INSS: começa sua luta contra a escuta surda e o olhar cego do
especialista.
Você chega no perito lá no INSS, o cara tem ver que você está sem um braço,
sem uma perna, para ele conceder seu benefício, sua indenização, o seu direito.
Eu chego lá com essa história de problema psicológico mal sabe ele o que estou
passando, o que passa pela minha cabeça, sabe, tudo o que já aconteceu, minha
história (...) faço a maior correria, eu passo no médico, no psicólogo, para pegar
os laudos que a lei pede, faço tudo direitinho para chegar lá e o filho da puta do
perito pegar esses papéis, nem ler direito, não perguntar nada e falar: você não
tem nada, é só ir para casa e voltar a trabalhar. Quer dizer, não faz sentido. Não
faz sentido mesmo. A única coisa que me resta é resistir a isso, não é verdade?
Eu tenho que resistir a isso daqui para frente e se isso for meu futuro, eu vou ter
que conviver com isso até minha morte. Porra! E é um fardo terrível de se
carregar.
E não seria justamente isso o que aconteceria muitas vezes com as diversas
reportagens vinculadas nas diferentes mídias ao “denunciar” as tentativas de “fraude”
do INSS? Dito de outra forma, não seriam essas reportagens uma tentativa de convencer
o grande público de que a resistência frente ao retorno para o trabalho é na verdade a
expressão da “preguiça” de cidadãos “criminosos” e não um problema das próprias
condições de trabalho e distribuição de renda (uma vez que muito desses indivíduos
somam ao “benefício” do INSS a renda proveniente de trabalhos informais)?
Lembremos que o mal-humor recentemente tem sido relacionado como uma das
48
SAFATLE, Vladimir.Cinismo e falência da crítica. p.139.[grifos do autor]
236
doenças mentais da moda, sendo classificado no CID10 como distimia (F34.1). Nesse
período de sua vida, que se estende durante três anos, chega a ficar seis meses sem
receber do INSS. Como estratégia de resistência, ou poderíamos dizer, de
sobrevivência, faz um curso e começa a trabalhar com manutenção de computadores
nos fundos de sua casa. O técnico de computadores continua fazendo o tratamento
recomendado, continua com a terapia e com os medicamentos aviados pelo psiquiatra,
continua buscando indenização pela sua condição.
Quando eu falo que quero reativar meu benefício não quer dizer que quero ser
visto como inválido, quero que eles vejam o meu caso como uma indenização,
para que eles saibam [a empresa] que não podem tratar as pessoas como lixo,
como as máquinas, os ônibus deles. Tenho feito coisas que eu aprendi nesse
tempo, coisas que eu gosto de fazer aqui em casa mesmo, que me mostram que
sou uma pessoa ainda. Trabalho com computadores, isso ajuda porque tem dias
que eu nem quero sair da cama. Então não é uma coisa certa, hoje é quinta,
semana passada eu fiquei uma semana na cama, aqui nesse quarto aqui. Fiquei
uma semana aqui dentro de casa, me distraindo com o jogo de vez em quando,
ou com um livro. Eu não queria ver ninguém, não queria falar com ninguém. Só
isso. E pensando justamente nessa coisa aí do INSS, que foi negado mais uma
vez. Tenho que começar a correr tudo de novo, eu tenho que dar nova entrada,
eu vou ter que passar de novo com o Psiquiatra, tenho que conversar com ele,
pegar um relatório dele. A empresa não está louca de me mandar embora
doente, então obviamente eu teria que pedir a conta. Pedir a conta eu não vou
pedir, que eu também estou doente. E eu vou perder muita coisa. Penso que
muitas coisas poderiam ser amenizadas, se as pessoas que estão envolvidas, que
são peritos, psicólogos, médicos, psiquiatras, poderiam amenizar minha
situação, pelo menos reconhecendo e respeitando o que eu estou sentindo, o que
eu estou passando, que é meu problema, falta reconhecer o meu problema.
pudesse formar o objetivo de uma sociedade justa”49. A narrativa de Gabriel deixa claro
que o inimigo é muito maior do que o manicômio ou a garantia de reconhecimento da
diferença, pelo contrário, ela expressa que o grande desafio é conseguir demonstrar que
vivemos as mesmas contradições de exceção impostas pelo capital, que estamos
submetidos ao mesmo jogo perverso de inclusão no mercado.
Saber que o problema não era de ordem individual fez com que Gabriel não
aceitasse se submeter à lógica da recolocação, não seria tratado da mesma forma que os
ônibus da empresa. Deixemos que ele mesmo fale sobre isso:
A depressão, acho que é essa coisa produzida pela insatisfação, por conta da
pressão de você ter que trabalhar por obrigação, num ambiente que não te dá
condições. E você pode até dizer: Pô! Gabriel! Porque então você não escolheu
outro lugar para trabalhar? Isso eu ouvi de um psicólogo que trabalha na
coordenação de saúde mental de uma cidade aqui perto, ele faz mestrado em na
faculdade que você, acho que no mesmo curso. Ele falou: Porque que você não
se retirou dessa empresa e não foi tentar outra? Eu respondi na mesma hora:
como se eu já estava fodido lá? Eu ia sair dessa empresa para entrar em outra
empresa? Será que ia ser diferente? Não é! (...) ele não tem noção da realidade e
é Psicólogo. Como que eu ia fazer essa escolha? Como se fosse fácil arrumar
emprego, como se na hora que pedissem minhas referências para a empresa eles
não fossem dizer que eu estava afastado, que eu era doente. E readaptar? Não
adianta. Porque não é o cargo, são as mesmas condições de trabalho. Eu vou no
INSS eles falam: é só você se readaptar, trocar de função, mas a coisa não é
física, não é a função de motorista que me deixou assim. É as condições mesmo
ali dentro. (...) Aí eu faço de tudo para mudar de empresa só para ter certeza de
que realmente estou doente, que eu não estou legal? E aí, quem é que vai perder
nessa história? A primeira empresa que eu saí? A segunda que eu entrei e estou
saindo? Não! Nenhuma dessas firmas vão perder. Quem vai perder sou eu. Eu
não vou largar o certo pelo duvidoso, se eu não estou legal, não adianta nem
tentar mesmo.
49
HONNETH, Axel. Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectiva na ordem moral
da sociedade. p.89.
50
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. p.38-39.
238
subjetivos são gerados pela própria ordem social”51. Como isso ainda não é possível,
pelo menos na relação estabelecida entre Gabriel e os peritos, a saída está na
manutenção paródica/irônica52 dessa personagem, ou seja, se os peritos da saúde mental
insistem de forma cínica em não reconhecer seu problema, que a própria saúde mental
reconhece como legítima (a partir dos laudos do Psicólogo e do Psiquiatra), então o que
resta como alternativa é insistir na representação irônica dessa personagem.
Agora você chegar lá com problema psicológico lá, eu não tenho condições
cara. Não tenho! Não dá! Para mim não dá, não tem cabimento! O sistema fica
utilizando esse negócio de psicológico somente para ajudar os empresários,
para eles sugarem até o último do seu sangue e depois, quando você não
agüenta mais, quando chora, quando fica pirado, em vez de mostrar que esse
mundo não tem lógica, que tem que pensar em outra forma de vida, dizem que
você ta doente mental e pronto, a culpa é sua, e aí te devolvem para empresa do
mesmo jeito dizendo que está curado, a empresa te põe no olho da rua, você
fica mais fodido ainda, e outro cara vai entrar no seu lugar para começar a
sugação de sangue de novo, e não para. Tem dia que eu não quero nem levantar
porra, tem dia que eu choro três, quatro vezes no dia. É normal isso? Não é! Aí
o perito que nem quer saber quem você é vai catar o seu relatório e ler, olha
para sua cara e simplesmente fala: você está apto a volta a trabalhar! Dizem que
você está doente e todo mês te obrigam a correr atrás dos mesmos papéis, fazer
todo o processo, ficar horas na fila da perícia esperando para chegar na frente
de um médico que em dois minutos te mostra que tudo aquilo que você fez não
valeu de nada, então se é para ser filho da puta, se é para brincar de faz de
conta, se é para fingir que não sabe ler os laudos, então assume que ninguém
tem direito a nada, que pobre não tem direito. Cara é tão ridículo que nem dá
para acreditar se você não ver, porque os caras dão alta para neguinho aleijado.
Eu não me conformo com isso! Mas parece que você chega lá com algo físico é
mais fácil, de ser analisar de ser visto, palpável, não?
51
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.346.
52
Por manutenção paródica, irônica, queremos assinalar o fenômeno trabalhado por Safatle que se refere
a representação de uma determinada personagem sem engajamento ou certa ética de convicção.
239
(...) Hoje eu quero ser ressarcido, indenizado por tudo, de tudo mesmo. E é uma
coisa que é totalmente difícil, praticamente impossível. Porque problema
mental não é visto do mesmo modo que um problema físico. Eu estou com
trinta e um anos, quer dizer, para a sociedade, para o sistema, eu tenho todo
vigor, tenho toda a minha vida ainda para trabalhar, ser explorado e humilhado,
para que na hora que eu estiver morrendo, com uns sessenta anos, setenta anos,
todo ferrado, receber uma aposentadoria. Eles [os técnicos, os peritos] têm que
reconhecer que eu já estou fodido, entendeu? E nada mais justo que eles
pegarem e me ressarcir de tudo isso. Se eu tivesse perdido um braço, uma
perna, porra! O presidente aposentou porque perdeu um dedo, aí ia ser mais
fácil, veriam que a empresa me prejudicou. E eu nem queria uma aposentadoria,
eles tinham que assumir que era uma coisa de indenização mesmo.
Enquanto essa coisa do INSS não se resolver, não irei pra frente, ficarei sempre
com medo de voltar para o lugar que não suporto mais. E parece que é mais
fácil caminhar para trás, mais desiludido, mais pirado, porque cada vez que eu
passo lá no INSS, eu recebo um não, eu recebo uma alta, e fico mais fodido,
mais indignado com tudo isso, cara. Então, primeiro tem que ser resolvido isso,
não importa de que maneira, se eles vão me indenizar, se eles vão me aposentar,
se eles vão manter meu benefício, se eu melhoro ou não, enquanto nada for
53
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.67 et seq.
240
decidido não existe projeto de futuro. Por enquanto eu só tenho o que eu estou
fazendo. O meu projeto de presente é parecido com o de muita gente, ter aquela
oficina de fundo de quintal que o cara conserta televisão e som para se manter.
No meu caso não é televisão claro, é computador, impressora. E é isso que eu
estou fazendo agora, eu conserto computadores, hardware e software. Depois
que tudo for acertado acho que basta o mínimo, no sentido assim, porque no
fundo a gente quer uma coisa simples, realmente as pessoas não querem muito,
querem apenas ser pessoas.
Ser apenas uma pessoa. Isso deveria ser algo possível em nossa sociedade, mas
como vimos nas histórias trazidas até agora, ser uma pessoa é uma luta que deve ser
travada cotidianamente. Muitas vezes a humanidade é conquistada apenas em
fragmentos, a partir do reconhecimento de uma personagem que nos coloca em
54
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do Outro:estudos de teoria política. p.44.
241
vezes como louco violento, vivia tirando a roupa na frente das escolas. Com essa
primeira fala surgiram outras, de professores que lembraram dessa época: — Ele havia
sido traído pela mulher, por isso ficou louco. De repente, a discussão acerca da
personagem representada por Francisco é substituída pela discussão acerca da
personagem que representara anteriormente, o doente mental.
Assim termina nosso primeiro contato com Francisco, que seria o primeiro de
vários outros, em vários lugares. Cruzamos com Francisco diversas vezes e horários no
centro da cidade. Em alguns dias era possível encontrá-lo nas praças anunciando
promoções e inaugurações, em outros o víamos visitando bares e restaurantes à noite.
Em todas as vezes, a forma com que se aproximava das pessoas era personalizada. Até
que certo dia, em uma ocasião onde veio nos entregar um panfleto de uma agência de
carros, perguntamos se poderia nos contar sua história de vida. Sua resposta inicial foi
uma outra pergunta. Queria saber qual era minha formação, pois já tinha fornecido
diversas entrevistas e sabia que cada uma delas se interessava por algo. Quando
dissemos que se tratava de uma entrevista para uma pesquisa de Psicologia Social quis
saber qual era o objetivo, pois não gostava de psicólogos, que sempre procuravam
doenças nas pessoas. Quando explicamos que havíamos ouvido sobre sua vida passada,
mas que queríamos saber dele como tudo havia ocorrido, que acreditávamos que
somente ele poderia dizer quem ele era, nos disse que pensaria sobre o assunto e nos
entregou um de seus cartões comerciais, onde se auto-intitulava o garoto publicidade.
Deveríamos ligar após dois dias e caso ele aceitasse deveríamos nos disponibilizar para
entrevistá-lo em um dia que não estivesse ocupado.
Alguns dias depois marcamos a entrevista em sua casa e gravamos sua narrativa.
A entrevista de Francisco inicia com uma rápida apresentação de si mesmo, que já nos
traz alguns elementos que serão explorados por ele durante todo seu relato: a
dificuldade de representar uma personagem pressuposta.
Com três anos eu vim para cá e ha trinta e sete anos eu moro nessa cidade.
Tenho quarenta, graças a Deus. E, para contar sobre um pouco da minha vida,
que foi assim um pouco complicada, porque foi um pouco difícil na minha
infância, na minha adolescência e também a minha fase de adolescente para
adulto, tenho que dizer do preconceito em relação à minha própria pessoa.
Porque, infelizmente, até que eu comecei a me dar realmente como gente, eu
me achava assim, uma pessoa inútil (...) Inútil porquê? Porque eu era sempre
assim meio azaradão, ou seja, não tinha sorte (...) Eu ia brincar e nessas minhas
brincadeiras acabava me humilhando, quer dizer, meus colegas nessas
brincadeiras acabavam me humilhando. Porquê? Porque realmente eu não sabia
243
brincar, eu era muito tímido, desde minha fase de infância até minha idade de
trinta anos. Foi em noventa e quatro que eu comecei a usufruir realmente,
aprendi a comunicar, como brincar.
Francisco biologicamente tem quarenta e dois anos, entretanto, como está nos
dizendo, somente há quinze anos apenas começou a viver realmente. Francisco
considera esse “estar vivendo” como o momento em que começa a se comunicar com as
outras pessoas: “quando eu comecei a me expor para as pessoas, a querer conversar, a
querer brincar, a querer ir realmente para as festas, paquerar”. Isso não significa que
Francisco não queria se comunicar anteriormente. Pelo contrário, ele conta que tentava
constantemente concretizar essa comunicação, todavia, era um pouco exagerado, tanto
no que se refere às interações felizes quanto às infelizes. Como ele mesmo assinala:
“quando eu realmente ficava alegre, eu ia além da alegria. Ultrapassava aquela alegria,
virava uma euforia. E quando eu tinha realmente decepções, as tristezas, eu caía em
depressão profunda.”
A hipótese que Francisco desenvolveu ao longo desses últimos anos a respeito
desse período de sua vida é a de que as limitações interativas eram advindas de sua
socialização primária. Sua infância foi vivida em uma pequena chácara, sem contato
com outras crianças, a não ser um irmão com síndrome de down, com quem os pais não
deixavam brincar. De acordo com Francisco, seus pais eram muito rígidos e não
permitiam nenhum tipo de brincadeira ou manifestação de afeto, acredita que
possivelmente essa maneira de lidar com os filhos seja por conta da educação que esses
tiveram. Permanece nessa chácara até a idade escolar, quando o pai muda-se para a
cidade atual e monta um pequeno negócio. Como era de se esperar, a rigidez do pai
continuou.
Ele chegou a dizer [o pai] que não ia criar os filhos dele no meio da rua. Ele
dizia que o correto mesmo é educar dentro de casa, ser criado dentro de casa.
Também ele não era uma pessoa estudada, não tinha muitas informações, ou
seja, era uma pessoa bastante ignorante. E eu acho que isso influiu bastante na
minha educação. Quando você é informado, é estudado, facilita muito quando
você vai administrar algo da sua vida, seja realmente no trabalho, seja na
criação dos filhos, seja qualquer coisa. (...) se tem educação aí pode conversar,
dialogar, passar carinho, passar respeito. Com isso eu me sentia assim, como
um patinho feio, desprezado...
Na escola, essa falta de socialização para estar com o outro faz com que
Francisco, sentindo-se como patinho feio, seja tratado como um garoto desprezado.
244
Nem precisaríamos discutir aqui esse problema, que remete mais uma vez às duas
narrativas de história de vida trazidas anteriormente, novamente fica evidente que o
processo de socialização é decisivo. Francisco conta que por conta da insegurança que
tinha em se relacionar com os estudantes e com os professores geralmente ficava no
fundo da sala de aula e não fazia perguntas daquilo que não entendida. Com o tempo a
insegurança foi aumentando a ponto de passar a copiar o que os outros estudantes
escreviam, pois achava que por eles serem mais desinibidos eram mais inteligentes. Nos
intervalos do lanche geralmente era humilhado por outros estudantes, quando não
apanhava destes. Francisco tenta justificar essas humilhações dizendo que tinha uma
certa culpa, afinal, os problemas sempre surgiam quando ele tentava participar de
alguma conversa ou de alguma brincadeira.
Francisco, que na escola era o garoto desprezado, tenta durante algum tempo
fazer amigos, mas a falta de elementos que pudessem lhe conferir a possibilidade de
representar uma outra personagem além daquela humilhada, faz com que a cada dia que
passava fosse se isolando das pessoas. Não queria mais ser humilhado, a forma como
faria isso nesse momento de sua vida seria passando seus dias em casa, com a mãe, o
pai e o irmão, sem muito contato com outras pessoas. A estratégia funcionava até certo
ponto, pois como Francisco mesmo reconhece: ser um garoto arisco a ponto de não
interagir com os outros impossibilitava desenvolver a habilidade de interação com os
outros. Deixemos que Francisco fale como isso ocorria.
O problema é que eu não conversava e se eu não tinha essa prática como é que
eu ia puxar algum assunto? Realmente não tinha sentido. Porque quando a
pessoa é tímida, ela é uma pessoa medrosa. É uma pessoa insegura e pra fazer
realmente uma coisa, bota logo na cabeça que não vai dar certo aí procura não
fazer, deixa passar. E isso aconteceu várias vezes. Por exemplo, quando eu
estive no tiro de guerra [serviço militar] conheci uma pessoa que adora me
humilhar. E teve uma vez que eu não tinha nada pra falar, mas pediram pra mim
245
falar e falei uma besteira. Ele [o humilhador] aproveitou para tirar o sarro e
ficou dizendo que quando eu abria minha boca era só para falar besteira, ou
seja, eu achava que eu iria falar uma coisa de interessante, mas só me dava mal.
(...) Isso acontece porque quando você fala, você depende da maioria, se a
maioria tiver seguindo uma conversa e se sua conversa também não for no
mesmo caminho você fica descartado, fica sempre parecendo uma besteira, o
que não é necessariamente, mas se os outros elegem como besteira, a maioria
ganha.
No final de sua adolescência Francisco tem de lidar com a morte de seu pai e
com o comércio deixado por esse. Precisaria se relacionar com as pessoas, mas como?
Como assinala Francisco, com muita dificuldade. De qualquer modo, o fato de começar
a se expor para além da rotina (da casa para escola e da escola para casa), chama a
atenção de uma garota. O garoto arisco, mesmo com todas as dificuldades, começa um
namoro com ela e em pouco tempo assumiria uma nova personagem: homem casado.
Esse sentimento era reforçado pela esposa que insistia para que Francisco perdesse seu
medo de relacionar-se com as pessoas.
Francisco conta que essa sensação de liberdade é buscada cada vez com maior
intensidade. Isso fazia com que ensaiasse a personagem que achava mais interessante
para cada momento sem se preocupar com o que os outros achariam de sua
performance. Logo os problemas começariam a aparecer, pois como ele mesmo
assinala, nem sempre a personagem que era interessante para ele era a personagem
esperada em determinada situação. Essa incompatibilidade entre a personagem
experimentada e o palco de representação (constituído de expectativas e de
pressuposições) fez com que Francisco passasse por interações desastrosas. Afinal,
como lembra Odair Sass, “as experiências inéditas ocorrem na forma singular (o
indivíduo) mas, para alcançar a universalidade, precisam do reconhecimento dos outros
membros da sociedade.”55 Nessas circunstâncias, como não sabia lidar com as
situações, acabava assumindo uma postura agressiva, uma resposta que o Francisco-de-
hoje também interpreta como expressão de loucura.
Em pouco tempo a liberdade vivenciada é transformada em problema de
conduta, resultando em quatro internações no hospital psiquiátrico da região. Nesse
período, Francisco, que havia fracassado na construção da personagem idealizada pela
esposa, não conseguia representar um homem casado que era pai. Acaba então sendo
reconhecido como doente mental, uma vez que as personagens que ora representava
muitas vezes ficavam fora de contexto. Independentemente das internações, estava
disposto a explorar as possibilidades de novas personagens, entretanto, ainda não
conseguiria construir uma representação capaz de fazer com que fosse reconhecido
como outra coisa que não um doente mental, o que evidencia o fato de as próximas
personagens serem modulações da mesmice, do fetiche que a personagem doente
mental representava. Nesse período, entre as personagens que mais se destacaram foi a
55
SASS, Odair. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p.261.
247
Francisco conta que nessa fase de sua vida, a qual vivenciava com toda a
intensidade a representação como dançarino, ser doente mental não era um problema,
pelo contrário, essa condição inclusive possibilitava que explorasse até o extremo a
liberdade nunca antes permitida. Aproveitava a representação como dançarino para
estudar as formas de composição das personagens, o que nos leva a acreditar que nessa
representação começam a ser germinadas as sementes de uma mesmidade futura, como
se fosse um esboço56 de uma personagem ainda indeterminada. Entretanto, algumas
condições objetivas farão com que o dançarino tenha que lidar com o problema que a
representação fetichizada de uma personagem traz para qualquer indivíduo: “torna-se
algo com poder sobre o indivíduo, mantendo e reproduzindo sua identidade, mesmo que
ele esteja envolvido em outra atividade”57. Como estava vivenciando o dançarino como
se fosse a totalidade de sua identidade, logo, outras personagens estavam sendo
negadas: o homem casado que era pai, sem uma representação satisfatória, acaba saindo
56
Pensar esse momento de experimentação de novas personagens como preparação de esboços, deve-se
ao fato que estes “não são quadros nem desenhos, pois estes últimos são completos; integram todos os
seus componentes e projetam-nos para além da obra. Já os esboços são sempre incompletos, contornos
parcialmente visíveis de conteúdo indeterminado. Não ditam para o artista como este deve empregar os
contrastes de tons, cores e sombras de uma pintura. Estão abertos para serem utilizados de diferentes
maneiras, a serem redesenhados ou abandonados. Mas isso não significa que um esboço não conte com
uma lógica interna; um esboço bem feito oferece entendimentos construtivos sobre os problemas
internos de uma tarefa artística e também quais condições são necessárias para resolver seus propósitos.
Assim, contraditóriamente, essa indeterminação do esboço dá ao trabalho futuro uma determinação; lhe
confere um sentido de direção”. Cf. LIMA, Aluísio Ferreira de. A dependência de drogas como um
problema de identidade: possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de
teatro. p.21-22.
57
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.139.
248
de cena, a esposa pede separação e leva o filho embora. Na época isso geraria uma crise
profunda em Francisco, que hoje diz compreender o que acontecera.
Ela realmente gostava de mim. Mas com o passar do tempo ela foi desgostando.
Sem ter aquele valor mesmo, eu reconheço isso (...) eu realmente não tive um
papel de homem casado. Eu não tive atitudes também. Eu tive umas atitudes a
ponto de ir para o hospital [psiquiátrico]. Se passou quatro anos e quando foi
em [ano de acontecimento] ela não agüentou mais e foi embora com meu filho.
E ao terminar nosso casamento eu realmente passei por uma crise muito forte,
perdi toda a noção.
58
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.132.
249
Eu estava sem fazer nada mesmo, andava só pra cima e pra baixo. Sei que eu
cheguei numa loja, cheguei no proprietário e disse que estava com fome, ele me
ofereceu duzentos panfletos e disse que daria dinheiro se eu entregasse. Aí
fiquei animado, eu realmente era uma pessoa muito carente, queria ter relações
com as pessoas, ter contato com as pessoas. Então, naquela carência fui e
aceitei. Duzentos panfletos.
59
LAING, Ronald David. O eu dividido: Estudo existencial da sanidade e da loucura. p.131.
60
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.154.
250
E quando foi nessa época que eu comecei a ficar com depressão, e no caso eu
passei um ano. Foi o motivo de realmente a sociedade não aceitar nenhuma
coisa que eu queira oferecer. Nessa época as pessoas que me conheciam
achavam que eu tinha morrido ou que tava internado. Muitas vezes algumas
pessoas que conheciam mamãe, que sabiam que ela era minha mãe,
perguntavam se eu tinha morrido. Obviamente como eu estava aqui, minha mãe
dizia que não, que era só conversa.
251
Em outros momentos seria levado para tratamento mesmo contra sua vontade,
contudo, nessa época o hospital psiquiátrico havia sido interditado devido a denúncias
maus-tratos e uma nova rede substitutiva começava a ser implementada na cidade. Se
fosse passar por algum tratamento teria que procurar pelo CAPS por vontade própria, o
que naquele momento não conseguiria fazer. A mãe, nesse episódio, ocupa novamente
um lugar significativo na vida de Francisco, uma vez que ficará um ano insistindo para
que o filho procurasse a Psicóloga da instituição, a qual sem sequer ter lhe visto sabia
que estava com depressão.
Fiquei um ano só dentro de casa. Minha mãe me dizia que a doutora falava que
era depressão! E a doutora realmente me deu uma ficha, eu não tinha noção do
que se passava ao meu redor. E quando graças a Deus eu me libertei da
depressão, que eu melhorei bastante, eu fui uns tempos fazer tratamento no
CAPS.
61
SZASZ, Thomas S. O mito da doença mental. p.28-29.
253
qual assinala que mesmo nos casos em que o indivíduo apresenta sentimentos e crenças
“bastante anormais, é provável que ele tenha preocupações normais e utilize estratégias
bem normais ao tentar esconder essas anormalidades”62. Mas como dissemos, esconder
que estava em tratamento seria apenas um dos problemas, uma vez que Francisco
reconhece que o problema maior nessa época foi corresponder à representação esperada
pela Psicóloga.
Ela descobriu que minha timidez era uma depressão e insistia que eu era doente.
Isso foi bom, mas ela [ficava] me convencendo que era doente. Uma coisa
muito chata mesmo. Tanto é que eu realmente ficava perdido. Depois que
aprendi que era doente comecei todas as vezes que saía daqui de casa, saía
realmente escondido, porque sabia que os outros sabiam que eu ia lá [no
CAPS].
Se antes Francisco procurou o CAPS porque havia lembrado que aquele não
seria um lugar como o manicômio, agora tinha suas dúvidas, uma vez que a partir do
momento em que foi diagnosticado pela Psicóloga perdera a condição de negociar,
questionar as intervenções, sem contar que tinha seu comparecimento semanal cobrado
duramente (precisava ter seu acompanhamento faturado pela instituição). Isso torna
explícito que simplesmente oferecer um modelo alternativo ao manicômio não é
garantia de promoção da alteridade, além disso esse episódio, articulado com os que
vislumbramos anteriormente nas histórias de Ana e Gabriel, evidencia a dupla
incorporação do conteúdo autêntico (o reconhecimento do sofrimento) e sua distorção (a
redução desse sofrimento a categorias simplificadoras), configurando “uma maneira
astuta de controle, já que o verdadeiro controle ocorre quando se impõe a nós a
chantagem de uma escolha forçada”63 (a escolha entre a condição de cidadão doente
mental ou marginal torturável paciente do manicômio).
Como era de se esperar em uma relação estabelecida entre especialista e
paciente, Francisco obedece sem questionar à prescrição64, enquanto para além dos
muros da instituição tentava manter sua “loucura” em segredo. Até quando começa a
perceber que aquilo que era trazido como os problemas de sua vida para a Psicóloga
62
GOFFMAN, Ervin. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. p.142.
63
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p.203.
64
Nesses casos se torna evidente que não é possível o estabelecimento de uma ação comunicativa, pois a
relação estabelecida sempre é desigual, enquanto paciente não especialista o indivíduo não tem outra
alternativa a não ser se submeter ao discurso técnico-psicológico.
254
Francisco deixa explícito o fato de que ser reconhecido como alguém que tem
algo para dizer é uma premissa necessária para que se possa desenvolver a capacidade
de suportar a fala do outro. Utilizando-nos aqui da contribuição habermasiana, podemos
65
HONNETH, Axel. Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectiva na ordem moral
da sociedade. p.211. [grifo nosso]
256
66
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico: estudos filosóficos. p.210.
257
67
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. p.295.
68
PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do intelectual: do extrato incomunicável ao ato
impossível. p.112.
69
Ibidem. Loc. cit.
258
Mostrar o que é psíquico e o que é da vida mesmo, uma tarefa difícil que
teremos de assumir se quisermos adotar uma visão paraláctica frente às anamorfoses
apresentadas pelos indivíduos que se representam a partir da personagem doente mental.
Nessa colocação fica registrado que se concordamos com Habermas que qualquer
expressão de identidade que se configure como “pós-convencional não pode
desenvolver-se sem antecipar estruturas comunicativas modificadas”70, ela se torna
diretamente relacionada à nossa capacidade de desenvolver formas de reconhecimento
pós-convencionais. Parece correto dizer que, nesse sentido, a identidade que é
metamorfose em busca de emancipação, também pode ser interpretada como
metamorfose que luta por reconhecimento e emancipação. A nova personagem de
Francisco materializa a análise realizada por Ciampa da loucura de Severina, uma vez
que seu reconhecimento como doente mental (proporcionado pelos outros e por ele
mesmo quando representara o dançarino, o andarilho sem rumo, o distribuidor de
panfletos) mostrou-se como “esforço de criação de um novo universo — louco porque
singular, não compartilhado — consequentemente fuga de uma realidade: a realidade
cotidiana. A loucura, quando bem-sucedida, devidamente reconhecida, é morte para a
vida71. Lembremos aqui o episódio em que Severina representava o moleque-
aprontador. Como Ciampa assinala, nessa ocasião, “se permanecesse isolada no mundo
da loucura, se não conseguisse uma personagem que a ligasse ao mundo quotidiano (e
70
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico: estudos filosóficos. p.234.
71
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.157.
259
por este fosse aceito), concretizaria plenamente a que, atribuída, encarnava: a Severina-
doente-mental”72.
Frente às condições concretas de reconhecimento, então define a construção de
uma nova personagem: o garoto publicidade, que possibilitaria a manutenção da
liberdade que tanto lhe agradava e a continuidade de desenvolvimento da sensibilidade
para com o outro que aprendera durante o tempo que passou com a Psicóloga. Francisco
vai fazendo a afinação da representação na prática e em pouco tempo torna-se
extremamente conhecido, atraindo a atenção de outros comerciantes, que passaram a
contratar os serviços do garoto publicidade. Francisco oferece um exemplo da maneira
como foi realizando esse processo.
Francisco fica orgulhoso com o fato de seus serviços serem requisitados pelos
melhores estabelecimentos da cidade. Dono atualmente de uma agenda concorridíssima
chega a dizer que em alguns momentos acaba tendo de abrir mão da oferta de trabalho,
pois sua agenda sempre está cheia. Sua popularidade é visível inclusive na Internet,
onde em um site de relacionamentos atualmente conta com quatro comunidades que
juntas somam mais de 3.000 indivíduos auto-cadastrados. É interessante quando
Francisco fala de sua rotina de trabalho como garoto publicidade.
72
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a História da Severina. p.157.
260
Nunca mais teve crise, essas palavras contrastam com as de Gabriel, reforçando
novamente que o problema da saúde mental também não pode ser reduzido à inclusão
do doente mental no mundo do trabalho, geração de renda. Antes, qualquer proposta
desse tipo deve-se perguntar que tipo de inclusão é essa que se tem insistido tanto nos
últimos anos. No caso de Gabriel, o retorno para o trabalho se configurava como retorno
à condição de ser escravo por contrato, o que, pelo menos por enquanto, não parece ser
o caso de Francisco. O garoto publicidade não é escravo de ninguém, inclusive, a fama
conquistada permite questionar os comerciantes, a ponto de chegar a negar-se a
representar estabelecimentos que não correspondam ao que anunciam nos panfletos.
Eu penso em voltar a estudar para poder fazer faculdade, na minha mesma área,
em marketing. Aí ia ser mais fácil. Até porque hoje para você estudar é mais
fácil do que há dez anos atrás e graças a Deus eu já recebi vários apoios de
261
Francisco hoje conhece seus limites e também que a possibilidade de criação das
novas personagens é infinita. Reconhece claramente que o limite para a continuidade de
sua representação depende de um jogo conjunto entre sua vontade de experienciar o
novo e as condições de acolhimento, reconhecimento das novas personagens. A
narrativa de sua história de vida termina por aqui, sua luta cotidiana por reconhecimento
do garoto publicidade continua. Se irá conseguir articular essa personagem a outras no
futuro não é algo que podemos discutir aqui, fazer isso seria mera especulação, profecia.
Por enquanto, Francisco aproveita para viver ao máximo o fragmento de emancipação
que conquistou.
Com o término da narrativa de Francisco encerramos nossos itinerários. É
evidente que cada um deles poderiam ter nos levado para caminhos infindáveis de
análise e que nosso alcance foi limitado. Todavia, acreditamos que com o que foi
exposto tenha sido o suficiente para explicitar como o discurso técnico-psicológico —
que ampara a política de identidade da saúde mental — tem servido como instrumento
de controle em nossa sociedade e que nesse momento histórico o diagnóstico tem sido
utilizado de forma dual (para inclusão dos indivíduos como cidadão doente mental e
para tamponar as contradições sociais explicitadas por esses indivíduos como
anamorfoses do sistema), mascarando o fato que os especialistas da saúde mental têm se
utilizado de uma racionalidade cínica, a partir da qual ao invés de partir de um olhar
paraláctico capaz de identificar as contradições trazidas pelas anamorfoses, acabam
reproduzindo reconhecimentos perversos, onde a anamorfose é reduzida ao olhar do
especialista da saúde mental. A ameaça, portanto, não vêm lá de fora, não está no
fantasma do manicômio, vêm de dentro de nossa impossibilidade de abrir mão do
discurso psiquiátrico, da produção de outras leituras para aquilo que é descrito como
doença mental, de nosso cinismo e descrédito na potencialidade do outro que busca
reconhecimento.
Do mesmo modo, acreditamos que as narrativas de história de vida, analisadas à
luz da teoria de identidade proposta por Ciampa, tenham explicitado que a apropriação
262
do discurso psiquiátrico não ocorre de uma forma padronizada e que cada indivíduo se
apropria da identidade pressuposta de doente mental de uma forma personalizada,
individualizada. Seja ela como negação, evidenciada na narrativa de Ana, em sua
representação da personagem anoréxica que serve para negar a representação de uma
outra personagem insuportável (a deficiente); como ironia, vista na personagem doente
mental da narrativa de Gabriel frente ao cinismo percebido no discurso dos peritos do
INSS (que evidenciou os problemas resultantes da negação do reconhecimento jurídico-
moral e a dinâmica conflituosa causada pela ruptura do contrato social por uma coerção
legal); ou ainda, como esboço, expressada nas vicissitudes que a personagem doente
mental teve para a identidade de Francisco, que na representação com garoto
publicidade expressou fragmentos de emancipação de sua identidade.
Nessa última narrativa, reforçamos a possibilidade e a necessidade de valermo-
nos de um reconhecimento pós-convencional, vimos que somente é possível mediar
criação de personagens que expressam alteridade quando não estivermos somente
preocupados em ter sucesso no mercado ou em sermos fiéis a uma teoria,
principalmente em “pensar e agir politicamente, para mudar a situação em
acontecimento (ou evento). Este ‘agir politicamente’ evita saídas que recusam,
recalcam ou foracluem o antagonismo”73. Afinal, se a identidade é metamorfose em
busca de emancipação e de reconhecimento, mas em nossa sociedade vemos que cada
vez mais essa emancipação é impedida; se a luta por reconhecimento muitas vezes tem
se configurado como reconhecimento perverso; e se de projeto utópico essa
emancipação tem se desvanecido em favor de uma administração do instituído fruto
tanto da colonização do mundo da vida como de uma racionalidade cínica; é preciso
criar novas formas de resistência frente às aparências e insistir na explicitação das
condições que têm impedido que essa emancipação se concretize como uma
necessidade para todos nós.
73
PRADO, José Luiz Aidar. O lugar crítico do intelectual: do extrato incomunicável ao ato
impossível. p.106. [grifos do autor]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Italo Calvino1
Todavia, assinalamos aqui que eles foram e são muito úteis. Como disse Ciampa na
ocasião do exame de qualificação da tese, “eles servem como ensaios para nosso
próprio esclarecimento”.
Esse apontamento abre espaço para discorrer sobre as conseqüências da tese para
os estudos da identidade. De nossa parte podemos dizer que as proposições
desenvolvidas por Ciampa trazidas ao longo da tese foram extremamente pertinentes
para realizar uma análise crítica das condições de controle a que estão submetidos os
indivíduos atualmente e as formas de construção das personagens que compõem a
identidade (aqui nos referimos não somente à personagem doente mental, mas a todas as
personagens que são atribuídas como identidade pressuposta pelas diferentes políticas
de identidade em nossa sociedade). Do mesmo modo, a articulação do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação com os conceitos de cinismo, anamorfose,
paralaxe, reconhecimento perverso e reconhecimento pós-convencional, potencializou
as análises da construção das personagens que compõem a identidade e as relações de
reconhecimento recíproco. As proposições desta tese, inclusive, têm sido
freqüentemente estudadas no projeto de extensão Estudos avançados do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação que coordenamos no curso de Psicologia da
Universidade Federal do Ceará – UFC, Campus Sobral, e no Laboratório de Identidade,
Cultura e Subjetividade – LAICUS, da mesma Universidade. No que se refere ao campo
da Psicologia Social, acreditamos que essa tese possa contribuir tanto para a discussão
do seu lugar na saúde mental, como para a construção de novos referenciais de análise e
intervenção. Finalmente, para o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Identidade-
Metamorfose da PUCSP – NEPIM, acreditamos que o presente estudo possa somar-se
ao corpo teórico desenvolvido por Ciampa e contribuir com a infinita re-atualização que
essa proposta, assim como toda teoria crítica, está submetida.
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272
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pessôa e aos bens dos psicopatas, a fiscalização dos serviços psiquiátricos e dá outras
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ANEXOS
1
MINISTÉRIO DA SAÚDE - Conselho Nacional de Saúde - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP
FOLHA DE ROSTO PARA PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS
( versão outubro/99 ) Para preencher o documento, use as indicações da página 2.
1. Projeto de Pesquisa:
Patologias Mentais e sua relação com as distorções sistemáticas da linguagem: Uma re-leitura a partir do sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação
2. Área do Conhecimento (Ver relação no verso) 3. Código: 4. Nível: ( Só áreas do conhecimento 4 )
PSICOLOGIA 7.07
5. Área(s) Temática(s) Especial (s) (Ver fluxograma no verso) 6. Código(s): 7. Fase: (Só área temática 3) I ( ) II ( )
III ( ) IV ( )
8. Unitermos: ( 3 opções )
SUJEITOS DA PESQUISA
9. Número de sujeitos 10. Grupos Especiais : <18 anos ( ) Portador de Deficiência Mental ( ) Embrião /Feto ( ) Relação de Dependência
No Centro : 12 (Estudantes , Militares, Presidiários, etc ) ( ) Outros (X) Não se aplica ( )
Total: 12
PESQUISADOR RESPONSÁVEL
11. Nome:
Aluísio Ferreira de Lima
12. Identidade: 13. CPF.: 19.Endereço (Rua, n.º ):
22.523.113 –X 192.671.648-56 Rua João Cosmai, 65
14. Nacionalidade: 15. Profissão: 20. CEP: 21. Cidade: 22. U.F.
Brasileira Psicólogo 09340-680 Mauá São Paulo
16. Maior Titulação: 17. Cargo 23. Fone: 24. Fax
Mestre Pesquisador 11 – 8226.2269
18. Instituição a que pertence: 25. Email:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo aluisiolima@hotmai.com
Termo de Compromisso: Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas complementares. Comprometo-me a utilizar os
materiais e dados coletados exclusivamente para os fins previstos no protocolo e a publicar os resultados sejam eles favoráveis ou não. Aceito as
responsabilidades pela condução científica do projeto acima.
Data: _08__/__08___/__2007_ ______________________________________
Assinatura
INSTITUIÇÃO ONDE SERÁ REALIZADO (observar folha anexa)
26. Nome: 29. Endereço (Rua, nº):
55. Processo :
58. Observações:
1
2
2
Termo de Compromisso do Pesquisador
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Pesquisador responsável Orientador
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Social
NEPIM – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Identidade
Este termo de consentimento tem por objetivo informar-lhe sobre o que se trata a pesquisa,
bem como, a partir de seu entendimento, obter a sua autorização explícita para realizá-la.
Espera-se, através deste, possibilitar-lhe uma idéia básica sobre a pesquisa e o que a sua
participação envolverá.
Se você desejar obter mais detalhes sobre algo mencionado, ou informações não incluídas,
sinta-se à vontade para perguntar. Por favor, leia cuidadosamente esse termo e as
informações aqui contidas.
Pesquisador
Aluísio Ferreira de Lima, discente do Doutorado do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica SP.
Objetivo da pesquisa:
Foram convidadas para a pesquisa pessoas que em algum momento de suas vidas foram
reconhecidas ou se reconheceram como portadoras de transtorno mental, que estariam
fazendo tratamento, em fila de espera ou que encontraram outra forma de lidar com o
problema.
Procedimento
Pretende-se realizar entrevista de história de vida com cada um dos participantes. Estima-
se a realização de 2 entrevistas de, aproximadamente, 3hs de duração, com cada
participante. As entrevistas serão realizadas na residência do sujeito e/ou lugar que o
mesmo entender como mais confortável. O pesquisador se compromete observar a
qualidade do local da entrevista, evitando, assim, qualquer possibilidade de exposição e
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Aspectos Éticos
Em relação aos aspectos éticos é importante ressaltar que o foco do presente estudo é a
história de vida, portanto, só serão apresentados casos cuja autorização prévia para
divulgação seja obtida. Os objetivos da pesquisa serão informados aos participantes e lhes
será dada liberdade de decisão sobre participação no estudo, assim como também lhes será
garantido anonimato.
Risco ou desconforto
Sigilo
Consentimento
A sua assinatura neste formulário indica que você leu e entendeu as informações contidas,
que você concorda em participar da pesquisa e ser entrevistado. Você é livre para se
recusar a responder a itens específicos ou questões durante a entrevista. Você é livre para
desistir de ser participante do estudo em qualquer momento, sem nenhuma penalidade.
Sinta-se à vontade para pedir explicações ou esclarecimentos a qualquer momento durante
a pesquisa. Se você tiver outras questões relacionadas a este estudo estou à disposição,
através do telefone (88) 9252.1415 ou pelo e-mail aluisiolima@hotmail.com.
Participante Data
Pesquisador/Testemunha Data
Reprodução do quadro: Ângelus Novus de Paul Klee.