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A Epopeia Ignorada Oto Marques Da Silva Corrigido PDF
A Epopeia Ignorada Oto Marques Da Silva Corrigido PDF
Estela egípcia da XIX Dinastia: o porteiro de nome Roma faz oferendas à Deusa Astarte
Síria (acervo da Glyptotek Ny Carlsberg--Copenhague, Dinamarca).
Dados Catalográficos
Para Nely
Ana Maria
Otto, Filho
José Gustavo
pela força que sempre me transmitem.
PRIMEIRA PARTE
A POSIÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NAS SOCIEDADES DE ONTEM E DE
HOJE
Capítulo Primeiro
A Pessoa Deficiente no Mundo Primitivo...
O homem neolítico no Brasil de hoje - As primeiras civilizações do mundo...
1. O Alvorecer da Humanidade...
Os males incapacitantes de sempre - O ambiente físico - Os desafios para a vida do homem
primitivo. O cuidado para com doentes e a incipiente medicina - As fraturas na Pré-História
- O que nos ensinam os ossos pré-históricos -- Freqüência do reumatismo -- A origem dos
males que afetavam os homens - O tratamento primitivo e as deficiências – O destino das
pessoas deficientes na Pré-História.
Capítulo Segundo
A Pessoa Deficiente dentro das Culturas Antigas...
1. Os Egípcios e seus Vizinhos...
A atenção médica no Egito Antigo - A medicina egípcia e os males incapacitantes - Os
famosos papiros e os problemas de deficiências – As deficiências físicas no Antigo Egito -
Os males que levavam a deficiências físicas - Casos concretos de lesões incapacitantes - A
incidência de fraturas e outros problemas - Os anões na vida e na arte egípcias - Uma estela
votiva dedicada à deusa Astarte da Síria por um porteiro - As especialidades médicas e o
problema das deficiências no Egito - Conceitos da medicina egípcia na Odisséia de Homero
- Anisis, faraó cego da IV Dinastia: século XXV a.C. - A deficiência visual na mitologia
egípcia - Um coral de homens cegos para Amenhotep IV - As penas mutiladoras no Egito
Antigo - Médico egípcio especializado em males da visão na corte de reis persas - Gaumata,
um famoso mago de orelhas amputadas - Zópiro: tudo pela vitória de Dario I em Babilônia -
A Escola de Anatomia da cidade de Alexandria: século IV a.C. - Os egípcios sob os olhos
críticos de um Imperador romano.
2. O Hebreus...
Noé: a primeira pessoa com deficiência? -- As deficiências físicas entre os hebreus -- A
cegueira de Isaac por 80 anos - Moisés e suas sérias dificuldades em falar com clareza -As
leis criadas no deserto do Sinai – O Código de Hamurabi: severidade vizinha dos hebreus -
Sedecias, rei de Judá: cego por Nabucodonosor - O preço da paz: um olho de cada habitante
- Mais normas e o papel do médico - As causas das deficiências entre os hebreus - A
medicina dos hebreus - Tobias fica cego e recupera a visão: caso de leucoma? - Os cegos na
cultura hebréia antiga - Zacarias castigado por não ter acreditado em Gabriel - As pessoas
deficientes nos Evangelhos - Os milagres de Jesus e as pessoas deficientes - A cegueira de
São Paulo, Apóstolo.
3. Os Gregos...
As deficiências na mitologia grega - Lenda e realidade: Hefesto na vida dos gregos - Outros
seres mitológicos e as deficiências físicas e sensoriais - As deficiências físicas na realidade
da vida militar grega – As principais causas de deficiências na Grécia Antiga - Tirteu, poeta
lírico com deficiência física - As leis que favoreciam as pessoas deficientes - A medicina
grega e as deficiências físicas - A medicina de Hipócrates e as deficiências - Hipócrates e
suas idéias quanto à epilepsia – Adaptações para prevenir deformações em crianças -
Cláudio Galeno e sua importância - Demócrito e Homero: homens cegos e muito famosos -
Demóstenes e seus pouco conhecidos problemas - Pessoas deficientes trabalhando citadas
em obras gregas - Creso, o mais feliz dos homens – A importância dos oráculos e adivinhos
na vida grega - A história de um adivinho famoso que era cego - As próteses de
Hegesístrato, adivinho grego - Peste Ateniense: o terror generalizado – A atenção a soldados
feridos ou doentes: Anábase, de Xenofonte - Homens com sérias luxações nas pernas:
sapateiros, ferreiros, seleiros - Alexandre, o Grande: sua atenção a soldados com deficiência
- Asclepéia de Epidauros: seu significado para pessoas deficientes - As famosas instalações
de Epidauros - O sistema de funcionamento de Epidauros - Plutão, deus da riqueza, curado
por Asclépios - Os testemunhos das muitas curas - "Apothetai" do monte Taygetos, em
Esparta - Como era o ambiente de Esparta - Outras formas de eliminar crianças defeituosas
na Grécia Antiga - A história de Labda, mãe de um rei de Corinto - Os costumes em Atenas
face a deficiências físicas – O legado da Grécia Antiga.
4. Os Romanos...
O problema da forma humana no direito e nos costumes de Roma - O destino das crianças
deficientes em Roma -- O deus da medicina: Esculápio--Horácio Cocles, um herói com
deficiências--Ápio Cláudio, Censor: século IV a.C - Amputação como penalidade nas
legiões romanas--Caio Júlio César: atitudes face a seus males--Ferimentos graves e
deficiências físicas em batalhas -- Cláudio I, um imperador bastante controvertido -- Galba,
imperador romano com diversas deficiências - Othon, um imperador nascido com
malformações - Vitélio, imperador romano por oito meses--Os milagres de Vespasiano - As
deficiências citadas por Plínio, em sua "História Natural" -As automutilações para dispensa
do serviço militar--Males incapacitantes e soluções paliativas - O problema da surdez na
opinião de Cícero--Deficiências múltiplas e morte - A medicina grega e sua infiltração no
Império Romano - Médicos romanos famosos e os males incapacitantes - Os serviços
médicos e os hospitais militares romanos - As "valetudinaria" descobertas em estudos
arqueológicos - Os auxiliares de médicos nas legiões romanas O sistema hospitalar romano -
O ensino da medicina no Império Romano Categorias de médicos em Roma - Implantação
de serviços de assistência médica - A higiene e os banhos públicos—As pessoas deficientes
nas artes romanas - Valores espirituais em pessoas deficientes.
Capítulo Terceiro
O Cristianismo, o Império Bizantino e a Idade Média face as Pessoas Deficientes ...
1. O Advento do Cristianismo ...
As perseguições aos cristãos nos primeiros séculos - Sétimo Severo, o sábio e firme
imperador - "Praecepta Medica" e os males incapacitantes - Galério, imperador que morre
com deficiência séria—Mutilações em cristãos: a Língua de São Romão - Alterações
substanciais provocadas pelo Cristianismo -- Um bispo com deficiência: Castigo de Deus? -
Dídimo, teólogo cego: Diretor da Escola de Alexandria -- Os primeiros hospitais cristãos e
as pessoas deficientes - Fabíola e Pammachius associados num hospital de caridade - A
hospitalidade cristã e o papel dos bispos - Notícias de organizações para pessoas deficientes
- A questão das deficiências físicas em sacerdotes cristãos - Papel dos mosteiros na
assistência aos miseráveis.
Capítulo Quarto
A Pessoa Deficiente do Renascimento até o Século XIX ...
O problema dos hospitais e abrigos ao início da Renascença - Os problemas dos deficientes
auditivos no século XVI - A pintura renascentista e as pessoas com deficiências - Ambroise
Paré: os primeiros passos da futura "ortopedia" - Antonio de Cabezón: compositor cego –
Goetz von Berlichingen, o "Mão de Ferro" - O problema da mendicância organizada nos
séculos XVI e XVII - A grande malha organizacional dos miseráveis na França - O
problema da mendicância organizada em outros países - Deficientes mentais no século XVI:
entidades não-humanas - A "Lei dos Pobres" e as pessoas deficientes na Inglaterra – O
atendimento às crianças deficientes na Inglaterra: século XVI – O "Grand Bureau des
Pauvres" da França Classificação de indigentes na França no século XVI – Luiz de Camões,
o poeta épico português por excelência - Pintor mudo decora El Escorial, na Espanha –
Continua a epopéia dos hospitais nos séculos XVI e XVII - Galileo Galilei, matemático,
astrônomo e físico - O contínuo problema dos soldados mutilados - Os trabalhos com os
deficientes auditivos no século XVII - Johannes Kepler, astrônomo alemão - Padre Lejeune,
maior pregador do século XVII - Novas formas de utilizar os hospitais - As deficiências
físicas em peças de Shakespeare - A superação de deficiências no século XVII: um exemplo
- John Milton: o significado de sua cegueira - São Vicente de Paulo: suas obras face às
tendências do século XVII - A "Velha Lei dos Pobres" da Inglaterra - O nascer da ortopedia
como especialidade -- Quatro cegos brilhantes: Sauderson, Metcalf, Euler e Blacklock -
Alexandre Pope: um poeta com deficiências físicas - A reformulação hospitalar inglesa - A
"Ortopedia" de Nicholas Andry - Maria Tereza von Paradis: pianista e compositora cega - A
assistência aos cegos: final do século XVIII - Valentin Haüy, "Pai e Apóstolo dos Cegos" --
Educação dos deficientes auditivos no século XVIII - Os primeiros sinais de assistência nas
Américas - O desencontro de atitudes na Europa - Inovações nas "Leis dos Pobres" -
Bloqueios ao sacerdócio para pessoas deficientes - Hospitais públicos na França: final do
século XVIII -- Progressos no campo do atendimento à cegueira: século XIX - Ludwig van
Beethoven: a trágica surdez -Nelson, herói da Marinha Britânica - Os progressos nos
Estados Unidos da América do Norte - Os sinais de melhor compreensão dos problemas dos
deficientes - Uma iniciativa de Napoleão Bonaparte - Madre Agostinha, fundadora das Irmãs
Irlandesas da Caridade - Lord Byron, poeta e satirista inglês - Antônio Feliciano de Castilho,
um dos maiores literatos portugueses - Outros cegos do século XIX que ficaram famosos - A
ortopedia do século XIX e as deficiências físicas - Atendimento mais especializado aos
cegos - A pessoa deficiente vista com potencial para o trabalho - O problema dos surdos e
dos surdos-mudos e suas soluções – Proteção ao acidentado de trabalho por legislação
recente – A modernização da cirurgia ortopédica e as pessoas deficientes - Reabilitação
desabrocha num Centro de Atendimento, em Cleveland - Helen Keller, cega, surda e muda:
um marco indelével.
Capítulo Quinto
A Pessoa Deficiente no Brasil Colonial e Imperial...
Os primeiros hospitais do Brasil Colonial - Anchieta e seu exemplo de assistência aos
doentes -- Males incapacitantes nos primeiros anos de Brasil -- Cegueira noturna no Brasil
dos séculos XVI e XVII -- Os problemas médicos nos séculos XVI e XVII no Brasil
--Médico com deficiência física na História de Pernambuco - O problema das paralisias no
Brasil do século XVII -- A medicina do século XVIII entre nós – Males limitadores que
afetavam muito os negros escravos - Deficiências físicas e sensoriais entre nossos índios
--Antônio Francisco Lisboa, o "Aleijadinho" -- Uma primeira tentativa em projeto de lei:
ajuda a cegos e aos surdos -- O problema das amputações do século XVI ao XIX – A
influência européia no Brasil -- Organizações para pessoas deficientes criadas por Dom
Pedro II.
Capítulo Sexto
O Século XX e os Caminhos da Reabilitação no Mundo...
O panorama europeu da assistência a deficientes no início do século--EUA: um primeiro
congresso mundial de deficientes auditivos--A gradativa implantação da reabilitação--As
tentativas iniciais para a solução do problema de trabalho--Implantação de serviços de
naturezas diversas--Os esforços de pós-guerra--Surge a "Easter Seal Society" - O Código de
Direito Canônico e os bloqueios a homens deficientes--Reconhecimento das verdadeiras
necessidades das pessoas deficientes—A previdência social e os acidentes de trabalho--A
reabilitação de jovens veteranos da Marinha e do Exército--A retração dos anos trinta e as
pessoas deficientes nos EUA--A influência da Segunda Guerra Mundial na reabilitação -- A
criação de sociedades internacionais privadas - O envolvimento das organizações
intergovernamentais -- Centros de demonstração de técnicas de reabilitação--O Instituto de
Reabilitação: vida e morte--A evolução mais recente da reabilitação.
Capítulo Sétimo
1981--Ano Internacional das Pessoas Deficientes...
As declarações de direitos e sua importância --O significado de um "Ano Internacional" --
O Ano Internacional das Pessoas Deficientes: trabalhos iniciais -- O conteúdo básico das
idéias consensuais para um plano de ação mundial - As recomendações para atividades a
nível nacional -- O Ano Internacional das Pessoas Deficientes a nível de Brasil -- A
Comissão do Estado de São Paulo e seu relatório - As propostas para ação em São Paulo --
As realizações da Secretaria Executiva da Comissão Estadual -- Dois Encontros Regionais
discutem as propostas da Comissão Estadual--Conscientização: a meta para 1981 --O apagar
das luzes para o Ano Internacional -- Recomendações finais de todas as Comissões: um
desafio para o futuro.
SEGUNDA PARTE
A INTEGRAÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NA SOCIEDADE -- O DESAFIO
DE NOSSOS DIAS
Introdução ...
Capítulo Primeiro
As Causas da Marginalidade das Pessoas Deficientes ...
Normal ou anormal: Eis o problema -- As "diferenças" assimiláveis ou inaceitáveis -- A
questão em termos de Brasil -- A visibilidade da deficiência -- O problema do "comum" e do
"normal" -- A grande variedade de condições marginalizantes -- Como classificar as
condições marginalizantes (desvios intelectuais, desvios motores, desvios sensoriais, desvios
funcionais, desvios orgânicos, desvios de personalidade, desvios sociais e problemas de
idade avançada) - Outras condições que levam à marginalidade--Deficiência e incapacidade:
distinção importante.
Capítulo Segundo
O Significado da Integração Social das Pessoas Deficientes...
A complexidade do desafio--A integração social e seus "porquês" (O elevado número de
pessoas consideradas como "deficientes", o valor próprio do ser humano, o valor econômico
da mão-de-obra não utilizada)--Os princípios básicos da reabilitação -- O despreparo nos
programas reabilitacionais -- A complexidade do trabalho de equipe em reabilitação--Os
programas necessários em nosso meio.
Capítulo Terceiro
Adequação Pessoal -- O Objetivo Último da Reabilitação ...
Impedimento, deficiência e incapacidade -- Programas de reabilitação global --
Condicionamento físico em reabilitação -- O ajustamento psico-social no processo de
reabilitação -- Ajustamento à vida de trabalho --Hábitos, atitudes e comportamentos--A
adequação pessoal e seu significado -- Adequação pessoal-fator decisório na integração
social -- Anexo I (Indicativo para Identificação de Comportamentos) -- Anexo II (Lista de
Comportamentos ou Hábitos Inadequados).
Capítulo Quarto
Preparo para a Vida de Trabalho
Aconselhamento para a vida de trabalho (Características pessoais, experiência educacional
e profissional, aptidões e potencialidades, interesses, capacidade física, capacidade mental)
-- Avaliação e ajustamento ao trabalho (potencial do indivíduo para o trabalho, significado
para o indivíduo, o processo de ajustamento à vida de trabalho, a importância dos
instrumentais de avaliação) -- O treinamento profissional em programas de reabilitação--
Colocação em emprego--Anexo I (Relatório de Aconselhamento em Reabilitação-
instrumental) -- Anexo II (Relatório de Avaliação Inicial-instrumental)--Anexo III (Relatório
Evolutivo do Caso-instrumental).
Capítulo Quinto
Equipes de Reabilitação nos Programas de Hoje ...
trabalho de equipe em reabilitação--As garantias para um verdadeiro trabalho de equipe --A
liderança de uma equipe de reabilitação--A ausência da coordenação formal de uma equipe
-- As dificuldades principais em coordenar uma equipe--Problemas típicos encontrados num
trabalho de equipe (falta de confiança e respeito mútuos, excesso de importância à própria
atuação, desconhecimento das demais profissões, falta de atitudes de cooperação sistemática,
comportamentos inadequados numa equipe, falta de experiência em trabalho de equipe,
estilo inadequado de relatório, metodologia de cooperação quase inexistente, jogos de
prestígio e de poder e seus malefícios, ausência de uma boa política de pessoal)--A
necessidade de tratamento global do cliente --Superposição de atividades em equipes de
reabilitação -- O trabalho de equipe: perspectivas.
Capítulo Sexto
A Avaliação e o Controle nos Programas de Reabilitação...
Os profissionais envolvidos em reabilitação--A falta de especialização e suas
conseqüências--Métodos de avaliação em centros de reabilitação- Modelos de avaliação--
Sistemas de avaliação (O “público” em geral, o "público" financiador, o "público" clientela,
o "público" das famílias da clientela, o "público" das entidades) - Conseqüências de uma
avaliação (decisão política, decisão estratégica, decisão tática) –Controle num centro de
reabilitação--Sistemas de controle utilizáveis em centros de reabilitação--Características do
sistema de controle.
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
APRESENTAÇÃO
Uma boa porcentagem de nossa população ficou muito surpresa com dados divulgados
por todos os meios de comunicação ao final de 1980 quanto ao universo das pessoas que
viviam as conseqüências de males incapacitantes, tanto no Brasil quanto no resto do mundo.
Esse esforço de divulgação aconteceu devido aos preparativos para 1981, o Ano
Internacional das Pessoas Deficientes. Até então muito pouca divulgação tinha ocorrido
quanto à verdadeira extensão de problemas dessa natureza e de repente atirava-se à
população uma assustadora porcentagem: 10% de nossa população têm deficiências!
Enquanto muitos espantavam-se com o incrível volume de pessoas envolvidas na questão
de deficiências físicas, sensoriais, orgânicas e mentais, os céticos, que estão sempre muito
desconfiados de porcentagens mal calculadas e por vezes improvisadas para assustar os
incautos, não chegaram a se impressionar. Comentavam eles, que se essas estimativas mal
fundamentadas fossem rigorosamente levadas a sério, nem 10% de nossa população estaria
livre de problemas graves ou de estigmas, tais como alcoolismo, abuso de drogas,
prostituição, deficiência mental, psicopatia, neurose, tuberculose, tensão grave, cegueira,
surdez, reumatismo, câncer, tantas são as porcentagens alegadas.
Pode bem ser verdade que não temos 10% de nossa população com deficiência certamente
que poderemos ter mais ou ter menos! Não há dados oficiais a respeito, não sendo possível
contestar ou confirmar. A precisão da cifra, que não passa de uma estimativa internacional
para dar o toque inicial a uma campanha de conscientização, não tem muita relevância, na
verdade. O que importa é que todos fiquemos muito cônscios das dificuldades sentidas pelas
pessoas que não têm a capacidade máxima de uso do seu corpo ou de sua inteligência, ao
tentar seu pequeno lugar ao sol. E mais ainda, é fundamental que todos saibamos que um
bom volume de providências para eliminação das desvantagens que elas sentem depende do
envolvimento de cada um, individualmente, e não apenas de figuras abstratas e impessoais
de "entidades" ou do "governo".
Na verdade, essas estimativas mundiais,que foram divulgadas por documentos formais da
ONU e de suas Agências Especializadas, têm alertado muita gente para a existência de um
certo percentual de pessoas que são marginalizadas injustamente devido a problemas físicos
ou mentais, todas elas detentoras de seus direitos fundamentais como seres humanos que
são.
Todos aqueles que sentem na própria carne essa rejeição e que tem parentes ou amigos
nessa situação, abismam-se com a lentidão incrível de reação da sociedade como um todo
em aceitar sua parcela de responsabilidade na solução desses problemas, sem atinar com as
causas dessa espécie de imobilismo. Alega-se sempre falta de informações oficiais, falta de
um posicionamento político, falta de condições para o estabelecimento de prioridades por
parte dos órgãos do governo. E justifica-se a falta de um envolvimento maior chamando a
atenção para o vasto programa de reabilitação profissional mantido pelo INPS em muitas
capitais e cidades maiores do Brasil e seus suntuosos e caríssimos centros de reabilitação
que dão atendimento apenas a casos de acidentados do trabalho.
No entanto, não é só por inexistirem informações precisas que a nossa sociedade quase
que ignora o problema. Há, bem no fundo, um sentimento velado de rejeição contra tudo o
que é diferente, que é "defeituoso" e que causa certo mal-estar. Rejeita-se, afasta-se do
convívio de um lado, mas procura-se também, de outro, manter algumas organizações que se
dedicam ao problema sob pretextos os mais variados. Alguns trabalham e lutam pela causa
das crianças carentes e portadoras de deficiências porque têm um parente com deficiência;
outros o fazem devido a uma formação profissional; outros envolvem-se para recuperar
investimentos financeiros em pequenos centros de finalidade lucrativa. E, embora em
número reduzido, encontraremos também aqueles que se dedicam ao trabalho com pessoas
deficientes devido a um posicionamento pessoal sério e muito bem pensado.
Precisamos, todavia, ceder à evidência e reconhecer que faltam requisitos básicos para o
desenvolvimento seguro de programas mais significativos do que aqueles que nossa
sociedade tem mantido. Dentre esses requisitos inexistentes destacamos o seguinte: não há
entre nós uniformidade e solidez de conhecimentos quanto à seriedade da situação, mesmo
entre algumas pessoas mais envolvidas. Há por vezes uma noção deturpada quanto à
realidade dos problemas e suas melhores e mais recomendáveis soluções por parte daqueles
que são detentores de condições para muito sérias tomadas de posição e que certamente
poderiam dar às pessoas deficientes tudo aquilo de que elas precisam para uma participação
social efetiva.
Aqueles que trabalham em programas reabilitacionais de caráter global ou que têm uma
formação técnica adequada detectam com muita precisão atitudes descabidas, programas
superados, posicionamentos desastrosos, que levam à confusão, ao fracasso técnico, ao
descrédito e, pior do que tudo, ao atendimento falho e inadequado.
A análise do quadro completo da evolução, do progresso ou do retrocesso no atendimento
a pessoas deficientes no Brasil é uma tarefa impossível, enquanto que um simples olhar para
o futuro poderá nos parecer nebuloso e sinistro, se algo de decisivo não for feito com
urgência. Talvez o que realmente poderá nos ajudar seja um olhar demorado para o passado,
pois sempre houve pessoas deficientes no mundo e as que sobreviveram fizeram-no de
alguma forma com a ajuda de alguém, além de um enorme esforço pessoal.
A sobrevivência das pessoas com deficiências aqui no Brasil e em boa parte do mundo, na
grande maioria dos casos, tem sido uma verdadeira epopéia. Essa epopéia nunca deixou de
ser uma luta quase que fatalmente ignorada pela sociedade e pelos governos como um todo--
uma verdadeira saga melancólica--assim como o foi em todas as culturas pelos muitos
séculos da existência do homem. Ignorada, não por desconhecimento acidental ou por falta
de informações, mas por não se desejar dela tomar conhecimento.
Ao tentarmos voltar no tempo, todavia, algumas questões afloram de imediato: O que
pensavam nossos antepassados distantes de pessoas que tinham defeitos físicos ou
problemas mentais? O que faziam as sociedades hoje inexistentes com pessoas portadoras de
deficiências?
E talvez as suposições do que seriam as respostas a essas perguntas indiquem uma certa
posição nossa cultural, ou quem sabe pessoal, velada, secreta, muito íntima - e
preconceituosa!
Muitas outras perguntas podem ser levantadas, como, por exemplo: Qual tem sido o
destino de crianças nascidas com deformações entre culturas primitivas que ainda hoje
existem? Qual terá sido o destino de soldados com seus braços ou mãos decepados nos
violentos combates corpo a corpo das campanhas romanas, gregas, egípcias, hebréias? Como
foi possível a alguns poucos homens passar para a História, apesar de suas deficiências?
Mesmo que poucos, o que tornou esses homens e mulheres diferentes para serem aceitos,
assimilados e respeitados?
Anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações traumáticas, doenças
graves e de conseqüências incapacitantes, sejam elas de natureza transitória ou permanente,
são tão antigas quanto a própria humanidade. Através dos muitos séculos da vida do homem
sobre a Terra, os grupos humanos de uma forma ou de outra tiveram que parar e analisar o
desafio que significavam seus membros mais fracos e menos úteis, tais como as crianças e
os velhos de um lado, e aqueles que, vítimas de algum mal por vezes misterioso ou de algum
acidente, passavam a não enxergar mais as coisas, a não andar mais, a não dispor da mesma
agilidade anterior, a se comportar de forma estranha, a depender dos demais para sua
movimentação, para alimentação,
para abrigo e agasalho.
Muitos dos que começam a estudar o assunto deduzem apressadamente que o indivíduo
doente, deficiente ou portador de um problema sério qualquer, era exterminado pelo grupo
primitivo. Outros acham que não. Apresentam como prova eventual o aparecimento e a
evolução da medicina, a existência de esqueletos com sinais de fraturas solidificadas e o
achado de crânios trepanados.
O levantamento histórico apresentado na primeira parte desta obra, cobrindo desde os
tempos sem registro da Pré-História até o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981)
não teria muita utilidade nem justificativa sem objetivos mais amplos e mais ambiciosos. Ele
poderá, por exemplo, levar a um entendimento de certas atitudes e de muitas das
preocupações de nossos dias quanto a deficiências que atingem o ser humano, pois de acordo
com a incisiva afirmação do historiador Will Durant, "o estudo da Antigüidade perde o
valor, exceto quando se torna um drama vivo, ou quando lança luz em nosso viver
contemporâneo".
Há, no entanto, outros motivos para o trabalho apresentado na primeira parte deste livro, e
dentre eles um poderá ser expresso com palavras escritas por Flávio Josefo, historiador
judeu do primeiro século da Era Cristã: "Aqueles que se determinam a escrever história a
isso nem sempre são levados pela mesma razão". E, ao alinhar algumas dessas possíveis
razões, indica como última a seguinte: “... e outros, por fim, o fazem porque não podem
tolerar que coisas dignas de serem conhecidas fiquem sepultadas no silêncio".
No entanto, não é apenas a curiosa, tocante e por vezes trágica referência histórica que
tem relevância neste trabalho sobre as pessoas deficientes no mundo de ontem e de hoje.
Ressaltemos que, dentre os variados aspectos de toda a questão que não podem de maneira
alguma ficar "sepultados no silêncio", esquecidos, deturpados ou minimizados, estão aqueles
que retratam a maneira como a humanidade de hoje vê as pessoas portadoras de deficiências
e também aqueles relacionados com os caminhos novos - técnicos, bem cuidados e
criteriosos da chamada "reabilitação" - para colaborar com essas mesmas pessoas para
poderem ser inseridas em determinado contexto, assumindo seu papel com dignidade e
competência.
PRIMEIRA PARTE
A POSIÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NAS SOCIEDADES DE ONTEM E
DE HOJE
"O estudo da antigüidade perde o valor, exceto quando se torna um drama vivo, ou
quando lança luz em nosso viver contemporâneo" (Durant)
CAPÍTULO PRIMEIRO
A PESSOA DEFICIENTE NO MUNDO PRIMITIVO
1. O Alvorecer da Humanidade.
Nada de concreto existe quanto à vida de pessoas com deficiências físicas ou mentais, do
velho e do doente nos primeiros nebulosos e muitas vezes enigmáticos milênios da vida do
homem sobre a Terra, a não ser supostas situações que estão baseadas em indícios
extremamente tênues. É evidente que fatos concretos ou situações comprovadas de vida, em
toda a fase pré-histórica da História da Humanidade, são impossíveis de serem
estabelecidos, mesmo com o magnífico concurso dos sábios que dominam muito bem toda a
ciência arqueológica e áreas afins.
Poderemos, sim, tentar imaginar o ambiente de então e o que ele poderia significar para a
sobrevivência dos grupos humanos como um todo, elaborando um pouco quanto às
hipotéticas situações a serem enfrentadas por um eventual portador de alguma deficiência
limitadora de suas funções básicas daquelas mesmas épocas.
Para vários dos males indicados poderemos de alguma forma imaginar as soluções dadas
durante aquelas longínquas épocas, por paralelos ou comparações que fazemos com
populações de cultura primitiva ainda existentes. Para alguns males é muito difícil
elaborarmos qualquer quadro, como em casos de ósteoartrite. Existe evidência de sua ação
não só no esqueleto de um homem de Neanderthal, de mais de 40.000 anos atrás, mas
também de sua devastadora existência em dinossauros do período Mesozóico.
- *O ambiente físico*
Há muitos milhares de anos o homem vivia desprotegido num mundo hostil, habitando em
abrigos naturais de pedra ou em cavernas. O número dessas cavernas era exíguo para toda a
humanidade francamente em expansão e às vezes imobilizada por invernos rigorosos. É
praticamente certo que as melhores e mais protegidas cavernas foram sendo ocupadas e
defendidas por muitas gerações de um mesmo grupo.
Dentre os primeiros habitantes de cavernas que povoaram esparsamente a Europa pré-
histórica, devemos destacar o Homem de Neanderthal, que viveu há uns 70.000 anos. Pelos
achados ocorridos em cavernas da Europa utilizadas naquelas épocas, podemos chegar a
algumas conclusões. Uma delas é que em geral tratava-se de grupos humanos que adotavam
cuidados básicos muito rudimentares com tudo. Em boa parte dos casos estudados, eram
seres humanos pouco dados à ordem ou à limpeza de seus ambientes. Praticamente tudo o
que utilizavam ou que deixavam de usar por ser considerado como inútil, e mesmo restos de
animais devorados eram jogados fora em cantos das cavernas habitadas, o que levava à
formação gradativa de camadas de depósitos de detritos, incluindo neles pedaços de armas,
ossos, cinzas de fogueiras destinadas ao aquecimento ou ao preparo de alimentos.
Algumas das cavernas utilizadas pelo homem primitivo eram grandes, escuras e um tanto
tenebrosas, mesmo para os dias de hoje. Mas seus ocupantes viviam apenas nas áreas
próximas à entrada, como bem o demonstram os estudos arqueológicos. Lá eles se sentiam
não só protegidos do vento, da chuva, do calor e do frio, como também das incertezas da
noite, das grandes tempestades, dos animais ferozes e dos inimigos que continuamente
procuravam desalojá-los.
Os homens hoje conhecidos como Cro-Magnon, surgidos ao final da Idade do Gelo há
mais ou menos 30.000 anos e muito parecidos com algumas raças de homens da atualidade,
começaram a povoar esparsamente diversas partes da Europa, pois aos poucos tinham
conseguido explorar e descobrir locais mais longínquos de seus abrigos originais,
permanentemente ameaçados por tribos rivais. Tinham aprendido a construir abrigos
provisórios de peles de animais abatidos e tinham também descoberto sítios mais adequados
para caçadas mais promissoras. Esses foram os homens que começaram a documentar o
mundo que os cercava, os animais que caçavam ou que os ameaçavam nas caçadas sem fim,
para as quais plena agilidade, força e domínio do corpo eram fundamentais, num esforço de
grupo. Bisões, mamutes, ursos, velozes javalis e ágeis cervos foram desenhados, entalhados
e mesmo pintados com pormenores de cores vivas em pedras, pedaços de osso, paredes e
tetos das cavernas. Esses desenhos e peças entalhadas são encontradiços principalmente nas
cavernas ao sul da França e ao norte da Espanha.
O interessante é que essas obras, em quase sua totalidade, não estão nem foram
encontradas na boca das cavernas, mas em pontos bem mais afastados do ambiente habitado,
e às vezes à beira de grandes buracos, em pontos de difícil acesso até para os nossos recursos
de hoje, inclusive nos tetos das cavernas.
Para lá trabalhar nas muitas horas e dias de dedicação à obra, durante os longos invernos,
o supersticioso homem primitivo certamente precisou primeiro vencer o medo que sentia
pela escuridão sempre povoada por seres tenebrosos e o próprio ambiente mais profundo e
misterioso das cavernas que refletiam sombras confusas à luz de tochas fumarentas.
Junto aos desenhos desses bisões e demais animais da época, existem contornos de mãos
-- muitas mãos --inclusive diversas com dedos visivelmente em falta!
a) Pythecanthropus Erectus - Existem poucos ossos do tipo conhecido por esse nome
científico: uma calota craniana, três dentes e um fêmur. O fêmur apresenta uma espécie de
tumor ósseo bem volumoso no terço superior, próximo à sua cabeça, atribuído pelos
estudiosos a uma fratura ou a um aneurisma.
b) Homem de Neanderthal -- Há ossos do chamado Homem de Neanderthal que
apresentam traços de traumatismo. Há, por exemplo, no úmero esquerdo, uma cicatriz que
corresponde a uma lesão séria. No esqueleto desta espécie, descoberto em Krapina, existe
um sinal de fratura solidificada na clavícula. O esqueleto de La Chapelle-aux-Saints mostra
sinais de artrite deformante.
c) O esqueleto analisado por Raymond - O fêmur com grande desvio citado mais atrás, foi
descoberto por Raymond na gruta de Baye. É interessante notar que ossos provenientes
dessa mesma caverna apresentam, quase todos, sinais de osteoartrite de natureza reumática.
Segundo alguns especialistas, essa afecção apresenta-se como um real obstáculo à boa
solidificação de uma fratura.
d) Homem Cro-Magnon -- A espondilose foi encontrada num esqueleto de homem pré-
histórico conhecido como Cro-Magnon. Trata-se de um mal de efeitos muito limitadores,
pois a espinha dorsal em geral fica com uma curvatura bastante acentuada, a cabeça inclina-
se para a frente e as coxas flexionam-se.
e) Freqüência do reumatismo -- O reumatismo foi muito freqüente e devastador na Pré-
História. Havia casos que iam desde a chamada osteopatia peri-articular, até a total
imobilização do homem primitivo. Um exemplo marcante é encontrado em ossos do Homem
de Neanderthal, descobertos em La Chapelle-aux-Saints, na França. Pela análise dos
mesmos, especialistas constataram sinais claros de articulações coxo-femurais com artrite
seca e com poli-artrite.
Na Era Neolítica a presença média do reumatismo é estimada em 20% dos esqueletos ou
ossos encontrados. A incidência do mal talvez esteja relacionada à má qualidade da
alimentação (que pode também ter causado muitos casos de cegueira), devido a infecções e
também devido à exposição à umidade e ao frio. Convém que lembremos ter o homem
primitivo vivido muito exposto às alterações do clima, muitas vezes em cavernas cheias de
umidade. Assim, os casos de reumatismo não aconteciam apenas em faixas etárias mais
elevadas; ocorriam também muito antes dos 30 anos de idade (Ver Goldstein, Guthrie,
Gonzales, Stephen-Chauvet e Dastugue).
-- Aona: Os Aona residem ainda hoje à beira do lago salgado de Rudolf, no Quênia, numa
ilha conhecida como Elmolo. De nômades que eram, transformaram-se em pescadores.
Segundo eles acreditam, os cegos mantêm relação direta com o sobrenatural e os espíritos do
sobrenatural moram no fundo do lago salgado e previnem diretamente os cegos quanto aos
locais onde há peixe. Assim, os cegos sempre participam das pescarias primitivas, levando
em consideração a lança atirada por eles que são sempre bem tratados e respeitados.
-- Azande: Trata-se de um povo muito primitivo que habita as florestas situadas entre o sul
do Sudão e o Congo, caracterizando-se pelo seu nomadismo esporádico. Todos os
componentes dessa raça acreditam muito em feitiçaria. No entanto, não chegam a relacionar
defeitos físicos e anomalias com intervenções sobrenaturais. Crianças anormais nunca são
abandonadas ou mortas. Não lhes falta carinho dos pais ou de parentes mais próximos.
Segundo antropólogos estudiosos de seus costumes, dedos adicionais nas mãos ou nos pés
são bastante comuns e eles se orgulham de os possuir.
-- Ashanti: Habitam a parte sul de Gana, a oeste da África, totalizando mais de um milhão
de membros. Quando constituíam um reino próprio era costumeiro enviar à corte crianças
com defeitos físicos para serem treinadas como arautos do rei. Esses mensageiros com
deficiência física eram destacados para missões delicadas, como, por exemplo, a iminência
de guerras com tribos vizinhas. Em geral a mensagem do rei Ashanti era incisiva e
terminava com um recado do arauto: "se esses termos não forem aceitos, poderei ser morto
agora mesmo".
No entanto, parece que isso não acontecia, pois limitavam-se os inimigos a cortar um dos
dedos do arauto, o que equivalia a uma declaração de guerra. Além dessa perigosa missão,
os arautos eram também utilizados como inspetores sanitários ou coletores de impostos.
Eram igualmente usados como bufões e tinham o privilégio de dizer a seus mestres o que
bem entendiam. Foram também usados como espiões.
-- Dahomey: Entre os habitantes mais antigos do Dahomey atual, localizado na África
Ocidental, sempre foi considerado como fato costumeiro -- apesar de singular na grande
maioria dos povos primitivos – que as autoridades conhecidas como "condestáveis do
Estado" fossem selecionadas principalmente entre pessoas portadoras de deficiências físicas
ou sensoriais. Em várias aldeias do país crianças nascidas com anomalias físicas sérias eram
tidas como protegidas por agentes sobrenaturais especiais. Segundo crença popular, essas
crianças existem para trazer sorte à aldeia. No entanto, em tempos passados, o destino de
muitas delas dependia de alguns sinais supostamente sobrenaturais que podiam decretar seu
abandono à beira de um rio.
-- Macri: Pessoas deformadas ou portadoras de deficiências não são mortas nem
abandonadas nas aldeias dos Macri, nativos da Nova Zelândia. Elas sobrevivem, embora
com dificuldades, pois não encontram muito apoio e chegam mesmo a receber tratamento ou
apelidos de natureza desagradável.
-- Pés Negros: Tribo praticamente extinta da América do Norte, entre os Pés Negros
cuidava-se bem de familiares com deficiência. Essas pessoas eram responsabilidade do
próprio grupo familiar, mesmo que isso chegasse a acarretar sacrifícios.
-- Ponapé: Nas ilhas Carolinas Orientais, entre seus primitivos habitantes pertencentes à
tribo dos Ponapé, crianças com defeitos físicos ou evidentes sinais de retardo mental sempre
foram bem tratadas como se fossem normais.
-- Semang: Entre os nativos da raça Semang, habitantes de parte da Malásia, só pessoas que
se movem com o auxilio de um bastão ou de uma muleta, devido a um defeito físico ou à
cegueira, é que são procuradas para conselhos ou para decidir disputas. Trata-se de uma
tribo Negrito, muito primitiva, que ainda vive em cavernas ou em abrigos de folhas.
-- Truk: Para os nativos da ilha Truk -- uma das Carolinas -- as pessoas portadoras de
deficiências das mais diversas naturezas e também as pessoas muito idosas que não podem
prover seu próprio sustento ou que dependem necessariamente dos outros -- são
consideradas como supérfluas. No entanto, esses aborígenes não tomam qualquer
providência para sua segregação ou eliminação.
-- Xagga (ou Chaggal): Nas fraldas do monte Kilimanjaro, ao norte da Tanzânia (leste da
África), vivem os nativos do grupo Xagga. No seio dessa tribo primitiva ninguém se atreve a
prejudicar ou a matar crianças ou adultos com deficiências, pois segundo acreditam, os maus
espíritos habitam nessas pessoas e nelas se aquietam e se deliciam, o que torna a
normalidade possível a todos os demais.
-- Tupinambás -- Entre os nossos antigos índios da grande raça Tupinambá do século XVI,
o adulto doente ou deficiente por ferimentos graves de guerra, de caça ou devido a acidentes
da vida na floresta era deixado à vontade em sua cabana, praticamente sem contato algum
com o restante da tribo. Ficava sem comer se assim o desejasse, pois podia pedir alimentos,
que lhe seria fornecido pelo tempo que achasse necessário, mesmo que pelo resto de sua
vida. O que em geral acontecia, porém, por posicionamento do guerreiro ferido, era que
acabava morrendo à míngua.
Dos três papiros relacionados à arte médica no Egito o mais importante é o de Edwin
Smith, que fala sobre cirurgia no Antigo Egito, em especial da cirurgia dos ossos, em casos
de sérios problemas ortopédicos. Os casos e exemplos são citados sistematicamente nesta
ordem: queixa, exame, diagnóstico e veredicto.
Esse papiro, incompleto como foi achado, pertence à Sociedade Histórica de New York e
tem apenas quatro metros e 68 centímetros de comprimento. Foi adquirido em Luxor, no ano
de 1862, pelo próprio Edwin Smith. Segundo seus analistas, foi copiado há 3.600 anos atrás,
embora contenha matéria já conhecida no Egito há mais de 4.000 anos. Seu autor parece ter
sido um hábil cirurgião, além de um perfeito observador. Supõe-se que o tratado original
lidava com a cirurgia de todo o corpo, mas o fragmento encontrado analisa apenas cirurgias
da cabeça, do pescoço e do peito. O autor menciona fraturas tratadas com talas, fala sobre
redução de deslocamentos da bacia e sobre sutura de ferimentos. Acham alguns autores que
o papiro de Edwin Smith foi escrito pelo médico Imhotep, que séculos após sua morte foi
transformado no padroeiro egípcio da arte de curar, e mesmo no deus da medicina.
2. Os Hebreus
Cumpre notar que a literatura sobre o Talmud ((O ensinamento de toda a cultura hebréia
tem alcançado todas as gerações por dois canais: a lei escrita (a Bíblia) e a oral (a Tradição).
Esta foi aos poucos compilada pelos sábios e desse esforço surgiu o Talmud, com seus dois
livros principais: O Mishnah (aprendizado) e o Guemara (esclarecimento).)) fala de quando
em quando sobre a sabedoria de alguns mestrês e mesmo de alguns juízes cegos. Dentre as
limitações de atuação a eles impostas, não lhes era permitido ler o Torá (Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números e Deuteronômio) nem oficiar serviços religiosos públicos. Não tinham
também nenhuma obrigação de ir até Jerusalém para suas orações, nem de cumprir
obrigações religiosas que demandassem o uso da visão. O Talmud referia-se a esses sábios
mestrês e juízes cegos por meio de um apelido afetuoso, ou seja, de "saguí Nehor" (ricos em
luz, ou videntes).
3. Os Gregos
Em grande parte devido à inexistência de bases científicas para melhor compreender a
vida e a natureza, o homem grego antigo sentia-se envolvido por muita fantasia e por uma
infinidade de pequenas crenças e, conseqüentemente por centenas de deidades. A variedade
de deuses e deusas que habitavam o portentoso e, nas palavras de Homero, "nevoso
Olimpo", ou que o haviam abandonado em busca de mais tranqüilidade e da proximidade
dos ambientes a eles dedicados, é bem indicativo desse estado de espírito. Na fantástica
mitologia de tantos deuses de vários escalões e de tantos seres fantasiosos, o homem grego,
além de dedicar altares a um Deus Desconhecido -- conforme comenta o Apóstolo Paulo --
acabou não se esquecendo de um ser portentoso prejudicado por uma deficiência física séria,
bastante competente em seus misteres, mas que sempre foi de certa maneira ridicularizado,
além de envolvido pela estrondosa risada da maioria de seus fisicamente magníficos colegas
do Olimpo. Tratava-se de Hefesto (Hephaestos, em grego), o deus do fogo, das artes
manuais, da metalurgia e das indústrias, que era filho de Zeus e de Hera.
No entanto, de fato Aquiles não tinha mais armas, pois o corpo de Pátroclo havia sido
despojado de todos os magníficos apetrechos de guerra que tornara o filho de Tétis um
incrível herói. É Tétis que observa:
"Mas tuas belas armas estão nas mãos dos Troianos, tuas armas de coruscante bronze; o
próprio Heitor de fúlgido capacete tem-nas sobre os ombros e com elas se paramenta"...
Tétis, muito chocada com a tragédia de seu filho-herói, considerou a determinação de
Aquiles e foi à procura do único "imortal" capaz de fazer armas próprias e dignas para ele:
Hefesto. Quando chegou ao Olimpo, notou nas oficinas um deus trabalhador, suado, um
verdadeiro operário da metalurgia com deficiência física.
"Encontrou-o suando; apressando-se à volta dos foles, empenhado no fabrico de nada
menos de vinte trípodes, para encostar à parede, em torno de uma sala bem construída"...
Homero apresenta neste poema Hefesto casado com a belíssima Cáris ("Cáris de brilhante
toucado, a formosa Cáris, esposa do insigne coxo"), a deusa da primavera. Após acomodar a
veneranda deusa Tétis em um trono cravejado de prata, Cáris chama o marido:
-- "Hefesto, vem como estás; Tétis precisa de ti".
"respondeu o ilustre coxo:--Sim, é uma deusa temida e veneranda que está em minha casa;
que me acudiu quando o sofrimento me acometeu, depois da longa queda provocada por
minha mãe de olhos caninos, que queria esconder-me porque eu era coxo. Eu teria, então,
sofrido muito, se Eurínome e Tétis não me tivessem recebido em seu seio; Eurínome, filha
do Oceano, que volta sobre si mesmo. Ao pé dela, durante nove anos, forjei muitas jóias
bem feitas em profunda gruta, além de presilhas, espirais de formosas curvas, cálices de
flores e colares".
Hefesto, agradecido por ter sido amparado e amado, e por ter com elas aprendido um
verdadeiro ofício, mostra-se mais do que disposto a pagar pelo imenso favor recebido
durante anos a fio.
"... da bigorna ergueu-se manquejando o ser monstruoso, enorme; debaixo dele agitavam-
se-lhe as pernas finas" ... "Vestiu uma túnica, empunhou um grande cetro e encaminhou-se
para a porta, coxeando".
A pedido da desesperada mãe de Aquiles, Hefesto fabricou então um escudo que Homero
chega a descrever com muitos pormenores. E continuando com a descrição das fabulosas
peças de armamento, afirma:
"E depois de ter forjado o escudo grande e robusto, fabricou para Aquiles uma couraça,
mais brilhante do que o esplendor do fogo; fabricou-lhe espesso capacete adaptado as
têmporas, belo, feito com arte, encimando-o um penacho de ouro; e fabricou-lhe "cnêmides",
com o estanho que se modela bem ("Ilíada", de Homero, trechos do Canto XVIII). ( *
“Cnêmides” eram perneiras usadas pelos gregos. Protegiam a parte dianteira da perna até o
joelho. Eram forradas interiormente de couro e amarradas à perna por correias. A parte
externa era de bronze ou de estanho, segundo Homero.)
Na Odisséia, Homero apresenta Hefesto casado com Afrodite, a deusa do amor (a Vênus
dos romanos), furiosamente ciumento, magoado e ardiloso, mostrando todo o seu
ressentimento devido à deficiência nas pernas de uma forma bem franca e muito aberta.
O que havia sucedido para tanto? De fato o assunto era sério, pois Ares, deus da guerra
(Marte para os romanos), havia-se enamorado de Afrodite e começara a encontrar-se com
ela em sua própria casa, logo após Hefesto sair para trabalhar em suas oficinas. Sabedor do
adultério de sua mulher, Hefesto planejou com muito cuidado a armadilha para o
estabelecimento de um flagrante incontestável: fabricou uma rede quase invisível, mas de
"laços inquebráveis, inextricáveis, para que neles ficassem retidos os dois amantes". E, de
fato, a rede foi colocada cuidadosamente sobre o leito e prendeu os dois na hora exata;
deixou-os debatendo-se no ar, sem qualquer possibilidade de escapar, pois o engenhoso
Hefesto preparara tudo para a invisível rede ser puxada para o alto, sem qualquer apelação.
Hefesto, que havia acionado a armadilha por suas próprias mãos, sentia-se vilmente traído
devido à sua deficiência física e explodiu para todo o Olimpo ouvir: -- "Zeus, pai, e todos os
deuses restantes, bem-venturados e sempiternos, vinde aqui presenciar uma cena ridícula e
monstruosa; por eu ser coxo, Afrodite, filha de Zeus, de contínuo me cobre de desonra; ela
ama Ares, o destruidor, porque é belo e tem as pernas direitas, ao passo que eu sou
defeituoso de nascença. Mas a culpa não é minha, apenas de meus genitores, que melhor
teriam procedido se não me houvessem gerado"... "a minha rede os reterá cativos até que o
pai dela me restitua todos os presentes que lhe dei por sua descarada filha. Pode ser bela,
mas não tem vergonha".
Homero entra em alguns pormenores quanto ao vexame imposto a Ares e Afrodite, presos
na rede invisível que os puxara para o alto, sendo observados por outros deuses -- todos eles
do sexo masculino, uma vez que as deusas, por pudor, haviam preferido ficar fora. Todos
eles riram muito dos dois amantes e no meio dos comentários bastante humanos para os
portentosos imortais, surgiu uma observação de alta valorização das habilidades de Hefesto,
o artífice deficiente: -- "De que aproveitam as más ações? Um coxo alcança o que é ágil,
como agora aconteceu: este cambeta Hefesto, lento como é, apanhou com seus artifícios a
Ares, o mais veloz dos deuses, habitantes do Olimpo" (trechos do Canto VIII da "Odisséia",
de Homero).
Naturalmente que estamos apenas analisando cenas de pura ficção, mas que foram escritas
diversos séculos antes da Era Cristã. Acresce a isso dizer também que Homero, segundo a
tradição, foi um escritor cego. Não deixam de ser palavras de certa forma indicativas da
crença na utilidade de um homem competente, mesmo que porta dor de uma séria
deficiência e na justa explosão desse mesmo homem face à traição e à desonra de que foi
vítima. Demonstram elas também uma posição já arraigada no seio do povo grego de que
crianças com defeitos de nascimento não deveriam sobreviver, sendo obrigação dos pais não
as deixar viver, tomando para tanto medidas práticas, conforme verificaremos mais adiante.
Dentre os acidentes da vida civil (na vida industrial e também na forte construção civil
gregas) os acidentes de trabalho ocorriam com bastante freqüência devido à falta de medidas
de segurança ou de proteções especiais. Um caso que passou para a História Grega ocorreu
com o famoso arquiteto Mnésicles, que no ano 435 a.C., ao inspecionar as obras de
construção da monumental propiléia da Acrópole de Atenas, caiu de um dos andaimes.
Segundo nos relatam os historiadores e analistas da História Grega, Mnésicles não ficou
paralisado pelo resto de seus dias por mera sorte. Entretanto o misticismo grego conta-nos
uma história interpretativa diferente, afirmando que quem o salvou foi a deusa Athena
(Minerva para os romanos), pois ela apareceu num sonho a Péricles, que àquela
oportunidade comandava os destinos da cidade-estado de Atenas. A ele a deusa sugeriu um
misterioso tratamento que deveria ser aplicado no famoso arquiteto acidentado. Com a sua
recuperação miraculosa, tão vital para a glória da poderosa Atenas, Péricles mandou erigir
uma linda estátua de bronze da deusa salvadora no próprio lugar da queda, e em seu pedestal
mandou gravar estas palavras reconhecidas que só foram descobertas muitos séculos após,
devido às escavações: THEY ATHENAI HIGIEIAI (A Athena Salvadora)
Carion, outro personagem da comédia, encarregado de levar Plutão até então disfarçado
em mendigo cego ao templo de Asclépios, volta muito feliz de sua viagem e conta à esposa
como havia ocorrido a cura. Usa uma linguagem pitoresca e por vezes muito irreverente.
Vejamos, numa tradução em prosa, os pontos que mais nos interessam em sua narrativa e
lembremo-nos de que ela foi escrita quatro séculos antes do nascimento de Jesus Cristo. Ela
nos fala de perto a respeito dos problemas das pessoas com deficiência à busca de cura para
seus males, para os quais os médicos de então não encontravam soluções.
"Carion (dirigindo-se à esposa) - Ouça, eu vou lhe contar todo esse negócio incrível, dos
pés até a cabeça"... ... "Logo atingimos o templo do deus, levando o homem muito infeliz
então, mas tão feliz e tão rico agora. Imediatamente levamo-lo até o mar e lá o
banhamos"... ..."Depois, levamo-lo ao recinto sagrado. Lá, sobre o altar, bolos de mel e
guloseimas eram oferecidos, alimento para a chama de Hefesto"...
"Esposa - Não havia outros para serem curados?"
"Carion - Neocleides era um deles; o pobre cego que durante seus furtos havia furado seu
próprio olho. E muitos outros, doentes com todas as formas de doenças. Logo o servidor do
templo apagou as luzes e mandou-nos dormir, sem nos movermos ou falarmos a qualquer
barulho que ouvíssemos. Assim sendo, deitamo-nos num repouso tranqüilo".
Carion, muito observador, muito irreverente e muito curioso do que ali poderia suceder,
vê na penumbra do "abaton" a figura de um sacerdote coletando e levando as oferendas que
estavam sobre o altar, colocando-as todas num saco. E após algumas peripécias no ambiente
de recolhimento pretendido pelos sacerdotes, conta o aparecimento de Asclépios,
acompanhado das deusas Panacéia e laso. O deus vai de paciente a paciente, muito calmo,
estudando cada um deles.
Perto do cego Neocleides um servente coloca ao lado do deus um pequeno pilão e uma
caixa de medicamentos; o deus faz a mistura com vários ingredientes e coloca-a nos olhos
de Neocleides, sem curá-lo, mais para castigá-lo por seus furtos do que para livrá-lo da
cegueira parcial.
A seguir, dá atenção ao cego Plutão:
"Carion - Depois, sentou-se ao lado de Plutão e primeiro apalpou a cabeça do paciente e
depois, tomando um lenço de linho, limpo e branco, limpou seus lábios e os secou. Então,
Panacéia, com um manto vermelho, cobriu seu rosto e sua cabeça; o deus assobiou e duas
grandes serpentes saíram do santo altar. E escondidas sob o manto vermelho, elas lamberam
seus olhos, segundo me parece. E, querida, antes mesmo que você pudesse tomar dez cálices
de vinho, Plutão levantou-se e enxergou" (Apud Edelstein).
O leitor talvez tenha curiosidade de saber a natureza de mais algumas dessas fantásticas
curas, consideradas como milagrosas, ocorridas em Epidauros, da mesma forma como
aconteceram em muitos outros dos templos de Asclépios. Apenas nas colunas votivas citadas
acima pudemos constatar:
12 curas de oftalmias sérias, incluindo a cegueira total
9 curas de defeitos nas pernas, incluindo paralisias
3 curas de afasia
2 curas de casos de surdez
1 cura de tuberculose
1 cura de convulsões (talvez epilepsia)
2 curas de casos de gota
2 curas de enxaquecas
1 cura de picada de tarântula
1 cura de infecção por piolhos.
Além disso, há citações de diversos casos de gravidez problemática, que era uma
verdadeira especialidade de Epidauros, de partos difíceis e também de diversos casos
curados por intervenções cirúrgicas que chegam a totalizar mais de uma dúzia.
Naturalmente que os casos mais graves ou que não poderiam encontrar solução nem pela
fé nem pela intervenção dos médicos-sacerdotes, abrigavam-se pelas imediações em
alojamentos ou, muito mais próximo do aparecimento do Cristianismo como nova força,
num "hospital"construído por Antonino Pio (86 a 161 d.C. e lá, depois de muito sofrimento
ou de um definhar continuo, muitos deles acabavam morrendo. O problema da grande
afluência de mulheres em adiantado estado de gravidez e também de doentes desenganados
por médicos e à beira da morte levaram também à construção de uma espécie de hotel ou
abrigo. Essas instalações ficaram conhecidas como "Katagógion", tendo mais ou menos 160
quartos.
Existem ainda hoje alguns trechos da estrada entre as ruínas de Epidauros e o porto da
Palaia Epidhavros que fazem parte do chamado "caminho sagrado", todo ele ladeado por
túmulos daqueles distantes séculos.
De acordo com alguns autores, Epidauros e alguns outros templos de Asclépios tiveram
durante séculos a influência talvez correspondente àquela que hoje em dia tem Lourdes, na
França e vários outros lugares considerados como milagrosos. Os tratamentos nesses
templos de Asclépios funcionaram da mesma forma como ainda hoje funcionam os
tratamentos ministrados em templos na ilha grega de Tenos, que são prescritos através das
interpretações de sonhos ou de visões ocorridas durante a noite num recinto considerado
sagrado do templo.
A forte influência de Asclépios, seja em Epidauros, seja em muitos outros templos
espalhados pelo mundo greco-romano, só foi cedendo muito vagarosamente aos ataques do
Cristianismo que procurava sistematicamente anular o significado da miríade de deuses e
deusas do mundo pagão.
4. Os Romanos
O legado de Roma ao mundo tem sido de extremo valor através dos séculos em
praticamente todos os campos. Dentre eles cumpre que destaquemos a arquitetura, a saúde
pública, as artes, as leis, a literatura e a medicina.
Dos assuntos que mais nos interessam neste estudo e rápido passar pela História, o das
leis é dos mais relevantes. Ninguém jamais poderá negar que uma significativa porcentagem
de todo o acervo de leis que chegou até nós e foi por nós de certa forma absorvido, derivou
do cuidadoso e muito esmerado trato que os romanos sempre deram ao assunto. Nem tudo,
porém, foi bom ou aceitável para nós na legislação romana; nem tudo foi adaptado ou seria
adaptável à nossa realidade ou ao nosso sistema de leis. O mundo de então era bem diverso
daquele em que hoje vivemos.
No que diz respeito a pessoas com deficiências, não é fácil encontrarmos referências
precisas, mas se nos dispusermos a exercícios cuidadosos de estudo da História Romana,
encontraremos não apenas leis, mas também fatos, costumes, obras de arte que nos
surpreenderão. Veremos, por exemplo, que tanto a história da evolução da medicina romana,
tão intimamente ligada à medicina grega, quanto a dos gradativos progressos em termos de
saúde pública (por exemplo, abundância de água potável, latrinas públicas, rede de esgotos)
garantiram a prevenção de muitos males incapacitantes. E ficaremos espantados ao
reconhecer dentre os Césares, dois com sérias deficiências físicas; reconheceremos também
um famoso censor romano que foi cego; e leremos páginas que nos falam da competência de
pessoas deficientes...
Em nossa língua:
"Táboa IV - Sobre o Direito do Pai e Direito do Casamento
Lei III - O pai imediatamente matará o filho monstruoso e contrário à forma do gênero
humano, que lhe tenha nascido há pouco".
Sêneca (Lucius Annaeus Seneca - 4 a.C. a 65 d.C.) indica que os recém--nascidos com
deformidades físicas eram mortos por afogamento. O grande pensador e filósofo romano não
analisa, em seus comentários, a validade da lei em si mesma. Analisa apenas a necessidade
de, em nossas vidas, fazermos tudo, mesmo as coisas desagradáveis e chocantes, sem ira,
sem ódio. Segundo Sêneca, devemos fazer tudo o que precisamos fazer com naturalidade,
eliminando da obrigação o aspecto ódio. Ele cita alguns exemplos que, segundo deduzimos,
eram bastante óbvios para os romanos daquela época, quando o Cristianismo começava a
desabrochar e seus principais apóstolos atingiam Roma pela primeira vez. Vejamos o que
afirma Sêneca:
"... Riscai, então, do número dos vivos a todo culpado que ultrapasse o limite dos demais,
terminai com seus crimes do único modo viável, mas fazei-o sem ódio"
... "Não se sente ira contra um membro gangrenado que se manda amputar; não o
cortamos por ressentimento, pois, trata-se de um rigor salutar. Matam-se cães quando estão
com raiva; exterminam-se touros bravios; cortam-se as cabeças das ovelhas enfermas para
que as demais não sejam contaminadas; matamos os fetos e os recém-nascidos monstruosos;
se nascerem defeituosos e monstruosos, afogamo-los; não devido ao ódio, mas à razão, para
distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis" ("De Ira", de Sêneca).
O trecho latino pertinente é o seguinte:
"... portentosos fetus extinguimus, liberos quoque; si debiles monstrosique editi sunt,
mergimus; nec ira sed ratio est, a sanis inutilia secernere" ("De Ira", de Sêneca).
1. O Advento do Cristianismo
A eventual "latinização" das palavras não disfarça de maneira alguma sua origem grega.
Os radicais "kómeion" e "dócheion" correspondiam a abrigo, proteção, cuidado, recipiente,
enquanto que o radical "trópheion" relacionava-se à idéia de alimentação e de educação.
Observe-se que o "Orphanotróphium" de Constantinopla foi tão importante e tão
magnificamente construído e montado que levou o Império a manter o título honorífico de
"orphanotróphus" para seu diretor, geralmente outorgado a um sacerdote ou bispo da Igreja.
"Pergunta-se como esse costume atroz, cuja crueldade refinada supõe uma perversão do
senso moral, pôde ser introduzido na sociedade bizantina", comenta Bréhier ao analisar as
mutilações. Segundo o famoso historiador, o gosto pela mutilação pode ter sido o resultado
do ambiente que cercava a sociedade local, ao redor do século VII, e a influência da
imigração de consideráveis contingentes de turcos, árabes, sírios e outros, dentre os quais o
suplício era prática corrente desde muitos séculos (Apud Bréhier).
Em algumas culturas européias de hoje o nome Belisário é muito utilizado para fazer
referência simbólica a uma pessoa cega de boa educação e de refinadas maneiras.
- *Notícia sobre uma prótese no século IV*
Nos muitos documentos encontrados na pujante nova capital do Império Bizantino, e que
escaparam à fúria destruidora dos seus muitos invasores, principalmente dos turcos, foram
encontradas algumas referências a próteses. Mencionam essas citações eventuais casos de
braços de metal, pernas de madeira e até mesmo casos de nariz ou de orelhas artificiais.
George Kredinos, escritor grego do século XI, narra-nos o seguinte caso que nos informa
da fabricação de uma importante prótese:
"Uma pessoa da Macedônia, de nome Basílio, afirmava falsamente que era Constantino,
filho de Dukas. Tendo maliciosamente persuadido muita gente a segui-lo, reuniu-a ao seu
redor e, viajando a pé, causou distúrbios nas cidades e instou com a população para se
levantar contra o imperador de Constantinopla. E, tendo sido aprisionado por um general
chamado Elefantino, e levado ao imperador bizantino, foi condenado a ter um dos seus
braços cortado. Depois de sua libertação da prisão, colocou no lugar do braço cortado um
outro artificial feito de cobre e, fazendo uma enorme espada, perambulou pelo país
ludibriando outra vez os cidadãos mais ingênuos" (Apud Pournaropoulos).
Dos anos 500 até o final do século X, mergulhada num generalizado estado de ignorância,
uma leve e quase imperceptível chama de cultura clássica era conservada na Europa e em
muitos pontos do Oriente Médio. Os povos invasores e desmanteladores do antes
inexpugnável Império Romano mantinham-se em franca e obscura atitude contrária aos
ensinamentos deixados pelos grandes pensadores gregos e romanos, enquanto que no
Oriente Médio, numa situação bem diversa daquela encontradiça na Europa, os povos
árabes, igualmente invasores e expansionistas, procuravam desvendar todo o mistério de
conteúdo da propalada sabedoria grega e dos seus mais renomados filósofos e cientistas.
E no meio do caos do destroçado Império Romano, a Igreja Cristã demonstrava sua
pujança e sua rigidez: ela passou a ser quase que o único baluarte capaz de manter a cultura
clássica que ela preservava com segurança nas bibliotecas dos mosteiros e dentro de seus
fortes muros organizacionais.
Com alguma sorte e com o apoio de sua família poderia conseguir um lugar num
“lazareto” ou “leprosário”. Caso contrário passaria a vida toda espalhando o terror da
doença, mendigando por comida e por bebida. Muitas vezes identificando-se por roucos
gritos de “impuro, impuro” o temido “leproso” era também reconhecido por sinetas,
matracas ou pequenas cornetas. A esmola a eles destinada era colocada às carreiras no meio
das vielas ou dos campos.
Foram por séculos marcados e a marca mais forte e evidente ficava nas roupas que eram
obrigados a usar, nas cores cinza ou preta. Deviam usar chapéus ou capuzes e às vezes faixas
vermelhas. Épocas houve na Europa durante as quais eles eram obrigados a levar ao peito
um tecido vermelho com desenhos característicos.
Só na França dos séculos XII e XIII havia em torno de 2.000 “lazaretos” que se
destinavam apenas à segregação e nunca ao tratamento dos doentes. Na Europa inteira,
devido à extensão do problema, havia aproximadamente 19.000 desses abrigos, todos
separando duramente seus doentes da sociedade e deixando que morressem sem qualquer
assistência.
Dentro desse ambiente e devido ao fato de não poder contar com meios para garantir sua
sobrevivência de maneira digna, restou ao portador de defeitos físicos ou sensoriais a
posição de elemento marginalizado e o recurso à esmola diária, sistemática, para com isso
ganhar seu sustento. Pelas estradas e caminhos mais importantes da Europa Medieval, por
onde passavam de quando em quando nobres cortejos e os bem ajaezados cavaleiros e
cruzados, sujos e por vezes asquerosos seres humanos, com seus membros deformados ou
suas feridas à mostra, defendiam-se como podiam para garantir seu infeliz sustento.
Chegaram a organizar-se em verdadeiras redes para angariação de esmolas e de donativos.
De seu lado, a população ligada aos vassalos e seus senhores, aos reis e à nobreza toda,
bem como os comerciantes e homens enriquecidos pela sorte ou pela aventura - e mesmo o
povo mais simples - todos temerosos dos invisíveis e fantasiosos poderes malignos que esses
seres deformados poderiam ter, faziam de tudo para os afastar, mantendo-os longe de si em
todas as ocasiões e por vezes até pagando por isso com comida ou com esmolas.
Uma observação final quanto aos hospitais existentes na Idade Média: Segundo diversos
autores, eles existiam mais para o cuidado do que para a cura das pessoas; menos para alívio
do corpo e de suas dores do que para assistência da alma e sua preparação, considerada
indispensável pelas religiosas que dentro deles trabalhavam, para a vida futura.
Na verdade, não havia na quase totalidade dos hospitais medievais qualquer conhecimento
científico ou preparo técnico, mas outros ingredientes, tais como o amor ao próximo e a fé
na outra vida, na vida após a morte.
Parece, todavia, que médicos treinados em universidades, principalmente as inglesas,
eram muito mais comuns de se encontrar nos hospitais da época do que se poderia supor.
Dessa forma podemos também imaginar que, apesar dos relatos transmitidos pelos
historiadores menos avisados, todos os pacientes internados em hospitais europeus de certa
qualidade, seja por doença, seja por pobreza atroz, seja por deficiências muito graves,
recebiam mais cuidado profissional do que o imaginado.
De outra parte pode-se também afirmar que ao final da Idade Média as sociedades
existentes na Europa deram seus primeiros passos no sentido do reconhecimento de sua
responsabilidade face aos pobres em geral. Inseridos no contexto estavam todos aqueles que
eram, além de pobres, deficientes e impossibilitados de se sustentar.
No final do século XV os problemas específicos das pessoas deficientes ainda não eram
nem entendidos nem atendidos com propriedade, uma vez que faziam essas pessoas parte de
um grupo bem maior e de uma problemática mais séria ainda, ou seja, aquela representada
pelos pobres, pelos enfermos, pelos mendigos. Ela marcou e chegou mesmo a caracterizar os
ambientes das cidades e dos campos europeus do final da Idade Média.
Na penosa história do homem portador de deficiência começava a findar uma longa e
muito obscura etapa. Iniciava a humanidade mais esclarecida os tempos conhecidos como
"Renascimento" - época dos primeiros direitos dos homens postos à margem da sociedade,
dos passos decisivos da medicina na área de cirurgia ortopédica e outras, do estabelecimento
de uma filosofia humanista e mais voltada para o homem, e também da sedimentação de
atendimento mais científico ao ser humano em geral.
CAPÍTULO QUARTO
A PESSOA DEFICIENTE DO RENASCIMENTO ATÉ O SÉCULO XIX
Todas as pessoas que estudaram um pouco de História Universal sabem que entre os
séculos XV e XVII ocorreu no mundo europeu cristão uma paulatina e inquestionável
mudança, com o surgimento do chamado "espírito científico", e com o parcial
desmoronamento das concepções muito tradicionais de "natureza", muito afastadas que eram
da realidade.
O que sucedia era que o homem estava vivendo num mundo difícil e repleto de problemas
no qual os homens ligados ao poder espiritual taxavam muito do que era "natural" e
relacionado ao dia-a-dia - ou seja, bens e/ou comportamentos - como desprezível, miserável,
pecaminoso face ao destino imortal do homem, sua vida eterna e as idéias de paraíso,
purgatório e inferno. No entanto o homem, no fundo de seu coração, não podia negar que
achava bons, bonitos e agradáveis essas coisas e esses comportamentos considerados como
proibidos e pecaminosos.
Evidentemente que essa ambivalência é multissecular, e dela alguns homens da Idade
Média procuraram escapar sem ferir seus princípios e seu modo de viver cristãos das mais
variadas maneiras.
Segundo sabemos, alguns utilizaram-se da pintura, outros da poesia ou do canto, enquanto
uns poucos procuraram derivativos na arquitetura. o fato é que o aceno do paraíso como
recompensa por uma vida mortificada, sacrificada e miserável, e a contrapartida das ameaças
do inferno e do castigo eterno, continuavam a deixar na alma do homem medieval grandes e
doloridas dúvidas.
O mundo europeu foi sentindo de várias maneiras que era necessário alterar essa situação
e dar um corajoso mergulho na direção da luz, da cultura, das coisas novas e desconhecidas
e - por que não? - também das coisas tidas como proibidas.
Há um versinho popular do século XII que expressa muito bem esse forte conflito vivido
pela humanidade e que diz:
"Vita mundi, res morbosa,
Magis fragilis quam rosa;
Cum sis tota lacrimosa,
Cur est mihi gratiosa? . . . " (Apud Taylor)
Ou seja: Vida terrena, coisa doentia, mais frágil que a rosa; por que me parece tão
graciosa, se és toda lacrimosa?
Conforme a incômoda situação do homem medieval ia sendo definida, mesmo que por
meio de modinhas ou versinhos populares de um latim também popular um tanto
universalizado, surgiam contos em verso ou em linguagem corrente, divulgados cada vez
mais, não graças aos arautos que sempre se limitaram a ler aos berros as ordens régias ou as
imposições dos senhores e dos governantes, mas graças à invenção da imprensa, por
Gutenberg.
Pensadores começaram a ser mais popularizados e a se impor. A cultura, tão confinada
que era e tão restrita a certas áreas especiais do mundo feudal, foi sendo espalhada por toda a
Europa. E com ela chegou também a sede pela sabedoria dos clássicos gregos e latinos,
muito famosos e praticamente esquecidos pelo povo, e que acabaram se transformando numa
espécie de paixão dos estudiosos.
Além disso tudo, outras alterações caminhavam celeremente pela Europa com a
descoberta de novas terras no final do século XV e início do século XVI; com a contínua
chegada de sábios de Constantinopla, que não suportavam a pressão dos turcos invasores;
com a proteção que reis e nobres davam aos artistas da época. Esses fatos de inegável valor
foram - somados a muitos outros de menor e menos significativo vulto - os verdadeiros
incentivadores da nova onda intelectual e cultural que, iniciada na Itália, passou logo para a
França, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Holanda e alguns outros países.
Nomes famosos que antecederam imediatamente esse período foram os de Dante,
Bocaccio, Giotto e Petrarca. Durante essa importante onda de mudanças e de progressos,
depois universalmente aceita e batizada como "Renascença", nomes destacados e muito
representativos foram os de Donatello, Ariosto, Machiavel, Leonardo da Vinci,
Michelangelo, Raffaelo, Calvino, Montaigne, Erasmo, Cervantes, Camões e muitos outros
escultores, escritores, pintores, arquitetos, filósofos humanistas e homens voltados para a
religião.
Nesse movimento novo e muito renovador, o reconhecimento do valor do homem era a
nota dominante - era o Humanismo que surgia e se fortificava. Por meio dele, pelo menos no
campo das idéias, o homem se sentiria mais livre, menos oprimido, mais valorizado, não
mais um mero escravo dos poderes da Terra, nem mesmo preso à crença de que tinha que
fazer o bem para merecer o céu ou simplesmente para escapar às torturas do inferno.
Revolucionário sob muitos aspectos, esse novo modo de ser alteraria a vida do homem
menos privilegiado também, ou seja, a imensa legião dos pobres, dos enfermos, enfim, dos
marginalizados. E dentre eles, sempre e sem sombra de dúvidas, os portadores de problemas
físicos, sensoriais ou mentais.
A Renascença surgia no mundo para tirar o homem de uma era de trevas, ignorância e
superstição, que foram os séculos da Idade Média.
b) Anões inseridos em cenas variadas: "Os Anões",de Johann Van Kessel (1626 a 1679);
"Cilene como a Bacante", de Rubens (1577 a 1640); "A Ceia na Casa dos Fariseus", de
Moretto da Brescia (1490 a 1555); "Núpcias de Caná", de Paulo Veronese (1528 a 1588);
"Estudo sobre Anões", de Tiepolo ( 1693 a 1770).
A primeira categoria tinha direito a empregos sem dificuldades; a segunda recebia ajuda
em seu próprio domicilio; a terceira - a dos inválidos sem lar - era recolhida a um abrigo.
A deficiência, que poderia ter arruinado a vida de um jovem galante, não prejudicou nem
a vida guerreira e aventuresca, nem a vida literária de Luís de Camões que muitos anos mais
tarde, após infindáveis viagens para Goa, Calabar, Meca, Índia, China, Málaca, ilhas de
Malásia, Moçambique e outros lugares, escreveu a epopéia portuguesa que intitulou de "Os
Lusíadas".
O Deputado Cornélio Ferreira França, seu autor, devido a motivos políticos não
esclarecidos, nem chegou a ver seu projeto devidamente discutido em plenário. Seu mérito,
porém, e incontestável. Apesar da restrita distribuição da notícia, chegou a chamar a atenção
da sociedade para o assunto e despertar o interesse dos familiares das pessoas cegas, surdas e
surdas-mudas.
Vamos nos limitar, todavia, a uma pequena análise dos chamados "defeitos corporais" e
seu relacionamento à irregularidade ou impedimento canônico que torne ilícita a recepção do
sacramento da Ordem, de um modo direto, ou o exercício das funções sacerdotais, de um
modo indireto. Segundo a disciplina da Igreja Católica, a irregularidade não é um castigo,
mas um dos meios encontrados através dos séculos para preservar a dignidade do estado
sacerdotal e para a exclusão daqueles que não tem capacidade ou aptidão para o mesmo.
Enquanto a irregularidade é permanente, o impedimento é transitório.
Dentro dos regulamentos e normas vigentes na Igreja, são considerados como irregulares,
além dos casos citados mais acima, os "corporalmente defeituosos que por fraqueza não
podem exercer as funções do altar com segurança ou que por deformidade não o puderem
fazer com dignidade. Quem se torna defeituoso depois de legitimamente ordenado, só pode
ser impedido no exercício de suas funções se o defeito for
notável. Não se proíbem, porém, atos que, apesar dos defeitos, puderem ser exercidos
convenientemente" ("Compêndio de Moral Católica", de Jone-Fox).
Os mesmos autores enumeram com exemplos pormenorizados os defeitos que tornam um
candidato ao sacerdócio "irregular", da mesma forma que o faz o Padre João Pedro Gury em
sua memorável obra "Compêndio de Teologia Moral", ao analisar o Código de Direito
Canônico e jurisprudência encontrada. Segundo eles, são "irregulares" aqueles que não têm
um dedo polegar ou um indicador, ou ambos; que usam uma perna mecânica ou que estão
impossibilitados de usar as mãos; aqueles que tremem tanto que poderiam "derramar o
preciosíssimo Sangue"; os cegos ou que tenham deficiência visual tão grave que não
conseguem ler o conteúdo do missal; os casos de surdez que não consigam ouvir a voz do
ajudante de um ato litúrgico; os que gaguejam de tal maneira que provoquem riso e
desprezo; os que são vítimas de paralisias ou deformações que causem o andar típico de um
"coxo", e que não conseguem ficar no altar sem bengala ou muleta; os que estão
desfigurados por mutilações ou por outra causa (por agenesias de qualquer natureza ou por
defeitos causados por males degenerativos); os que têm corcunda muito grande que
provoque riso ou que os impeça de se colocar em posição ereta.
As normas relacionadas a defeitos corporais entram em pormenores quanto a problemas
de visão. Assim, a falta da vista esquerda não caracteriza casos de irregularidade, se o
defeito for disfarçado por uma prótese ocular. O olho esquerdo, considerado como o Olho do
Canon, é necessário para o sacerdote ler o Canon da Missa; se o sacerdote conseguir fazê-lo
sem maiores problemas, a irregularidade poderá ser dispensada. Quem se torna surdo
"depois da recepção das ordens", não fica proibido de celebrar os atos litúrgicos.
Ainda para casos de ocorrência de uma deficiência após a ordenação as normas são
bastante condescendentes. Vejamos alguns casos:
- Quem estiver quase cego, segundo Jone-Fox, poderá obter do Papa dispensa para
celebrar a chamada missa "de Beata", ou a missa cotidiana dos defuntos. Se um sacerdote
ficar completamente cego, só poderá rezar a missa com a assistência de outro sacerdote.
- O sacerdote que não consegue ficar de pé junto ao altar, ou que puder assim permanecer
apenas com o uso de muletas ou apoio especial, só poderá celebrar missa privadamente e
nunca em público. Isso também é verdadeiro para o sacerdote que sofrer de hanseníase ou
doença grave.
- Nos casos de epilepsia e de psicopatias ocorre também a irregularidade, dependendo do
bispo local ou das autoridades eclesiásticas constituídas a permissão do exercício de suas
funções sacerdotais, depois de curados ou de terem o mal sob controle.
É evidente que existe nesses regulamentos da Igreja Católica grande preocupação pela
aparência física de seus ministros, mas muito mais do que isso, o firme propósito de não
levar os fiéis a se distrair ou a desconsiderar seus serviços, sua palavra e os atos litúrgicos.
Em diversas cerimônias litúrgicas da Igreja Católica é fundamental no sacerdote poder
ajoelhar-se e levantar-se diversas vezes, em atos de adoração; é básico também que tenha a
mão direita para distribuir a comunhão ou para dar a bênção. (* Quando em meus dez ou
doze anos fui "coroinha" de um sacerdote que pessoalmente considero um mártir do câncer:
Pe. Luiz Alves de Siqueira. Lembro-me perfeitamente bem quando chegou de volta a
paróquia sem o braço esquerdo, amputado por um tumor maligno. Celebrava
missa, desenvolvia todos os atos requeridos - e fora disso tudo, ainda guiava automóvel por
algumas ruas do bairro. Colocado o braço artificial, continuou da mesma forma atuante,
usando o braço mecânico para segurar o cibório na distribuição da comunhão a seus
paroquianos...)
O trabalho em pauta, que foi devidamente liberado pela ONU antes de sua apresentação
quanto ao seu conteúdo e análise das atuações das Agências citadas em seu corpo, continua,
estudando os fatores comuns encontradiços em seu trabalho, e que caracterizavam as
organizações inter-governamentais. Só para informação do leitor, esses pontos comuns eram
os seguintes:
a) todas as organizações internacionais de caráter inter-governamental, inseridas na
família de Agências das Nações Unidas, estavam e estão preparadas para prestar assistência
técnica, mas apenas quando fossem apresentadas solicitações pelos governos;
b) essa assistência técnica tanto poderia ser dirigida a órgãos ou programas oficiais,
quanto àqueles da área privada;
c) todas elas praticamente prestam serviços de consultoria de técnicos especializados ou
provêm bolsas de estudos para o treinamento de pessoal local, sendo que uma boa parte
delas ainda prepara literatura básica (monografias, estudos, pesquisas e outras publicações);
d) elas organizam seminários inter-regionais ou internacionais, cursos intensivos e viagens
de estudos, conforme programação aprovada com antecipação e notificação aos governos;
e) elas de um modo geral procuram envolver outras agências internacionais nos
programas desenvolvidos em determinado país.
Para obter a almejada coordenação, até hoje cabe à ONU uma série de providências
práticas, tais como a organização periódica de Reuniões Inter-Agências, a freqüente troca de
informações e também as publicações conhecidas como "Summary of Information on
Projects and Activities in the Field of Rehabilitation of the Disabled Throughout the World"
(Sumário de Informações sobre Projetos e Atividades no Campo da Reabilitação do
Deficiente através do Mundo). Pessoalmente vivenciamos não só a preparação dessas
publicações mas também seu significado para as organizações Inter-Governamentais e as
Não- Governamentais envolvidas, uma vez que foi nossa responsabilidade direta sua
elaboração do volume V (relacionado a atividades de 1963) até o volume IX (sobre
atividades de 1967), correspondendo exatamente aos cinco anos de trabalho nosso na
Unidade de Reabilitação das Pessoas Deficientes da O N U, em New York.
O chamado "programa internacional coordenado" que havia sido recomendado pela
Assembléia Geral da ONU ao seu Secretário-Geral, sempre foi levado a efeito por meio de
um trabalho burocrático silencioso e persistente (e por que não o dizer, paciente) do qual
percebíamos os resultados por vezes promissores, por vezes extremamente desoladores.
Personalidades envolvidas dificultavam muitas vezes o andamento usual de processos;
atitudes de ciúme de antigos funcionários internacionais barravam o dinamismo de pessoal
mais novo; surgiam pruridos por "avanços" milimétricos nas conhecidas e muito disputadas
"áreas cinzentas"; ocorriam bloqueios velados a projetos - mesmo que de boa qualidade -
elaborados por alguma cabeça de origem "ocidental" quando a cabeça "oriental" estava no
poder, e vice-versa ... e tantos problemas mais! Olhando daquele prisma que costumávamos
olhar (ou seja, de dentro da ONU para fora), considerávamos um verdadeiro prodígio
ninguém de fora perceber o drama que significava lutar sob a égide da bandeira azul e
branca da ONU, na qualidade de funcionário público internacional, procurando dar ao barco
de tantas velas desencontradas um rumo que era de fato esperado por todos os que se
envolviam em reabilitação. Foram anos muito difíceis, e no trabalho que citamos há um
desabafo velado nas entrelinhas, nos dois últimos parágrafos que dizem o seguinte:
"Por todos esses meios e outros que podem surgir no correr do tempo, e também por meio
da experiência acumulada, espera-se continuamente que a plena coordenação torna-se-á útil
na manutenção de um programa internacional de reabilitação para todos os tipos de pessoas
deficientes, com a eliminação de toda a duplicação desnecessária, sobreposições ou
antagonismos, que normalmente surgem devido à ignorância quanto às atribuições e às
atividades dos outros".
"Certamente que muitos anos deverão passar antes que tal programa – e outros que
possam ser organizados no futuro - traga completo alivio para a pessoa deficiente no mundo
todo. Cada ano esperamos ver grandes progressos na direção de nosso objetivo último em
reabilitação, de um plano claro e objetivo que possa ser seguido desde agora".
Muita gente que se diz conhecedora da Organização das Nações Unidas faz dela a idéia de
um órgão político, no qual se ressaltam dois constantemente citados setores: a Assembléia
Geral e o Conselho de Segurança. No entanto, a ONU mantém, através de seu Executivo,
que é o Secretariado (funciona no prédio que todos conhecem, localizado em New York, às
margens do East River, e que é todo envidraçado em todos os seus 38 andares) uma incrível
programação em contínua expansão, que levou a uma descentralização inicial, dentro da
própria cidade de New York. Toda a área de Desenvolvimento Social, Defesa Social,
Reabilitação da Pessoa Deficiente e outras, foi transferida para alguns andares do Chrysler
Building. Anos após, num audacioso momento de decisão do Secretário Geral Kurt
Waldheim, esses assuntos todos passaram para o Centre for Social Development and
Humanitarian Affairs (Centro para Desenvolvimento Social e Assuntos Humanitários), em
Viena, na Áustria, onde se localiza hoje.
Muitos, dessa forma, não tem a mínima idéia do montante de atividades que são
programadas e desenvolvidas para o benefício da humanidade que vive nos países em
desenvolvimento.
Gostaríamos de documentar a pujança das programações e o seu inquestionável alcance,
no campo da reabilitação apenas, durante um curto período de tempo, já pertencente ao
passado, mas muito ilustrativo. Responsabilizamo-nos pessoalmente pela informação, pois
delas participamos num trabalho diuturno.
Período de 1964 a 1966 apenas:
*Técnicos* - Vinte e oito técnicos em reabilitação em diversos aspectos foram enviados
pelas Nações
Unidas para missões em vinte e dois países em desenvolvimento. A grande maioria dessas
missões internacionais foram de curta duração e destinadas a pesquisas iniciais para que o
governo pudesse tomar uma posição face à problemática das pessoas deficientes. No
entanto, algumas dessas missões, especialmente nos campos de fisioterapia e de próteses,
duraram mais de um ano.
*Bolsas de treinamento* - A ONU concedeu 45 bolsas de treinamento para estudos de
diferentes aspectos de reabilitação. Os bolsistas eram oriundos de 17 países e tiveram uma
duração entre 3 e 14 meses seus respectivos treinamentos. Foram também concedidas 96
bolsas de treinamento para a participação de profissionais de alto nível em seminários
internacionais ou viagem de estudo, organizados pela ONU ou contando com sua
colaboração, no campo da reabilitação. Com essas bolsas de curta duração, 45 países em
desenvolvimento foram beneficiados.
*Seminários internacionais* -
a) Seminário Internacional das Nações Unidas sobre Próteses para Pessoas Deficientes -
Este Seminário foi organizado pelas Nações Unidas com a cooperação da Sociedade e Lar
para Aleijados na Dinamarca (Society and Home for Cripples in Denmark) e do Comitê
Internacional de Próteses e Órteses da Sociedade Internacional para Reabilitação do
Deficiente (hoje Rehabilitation International). Foi realizado em Copenhague, de 5 de julho a
15 de agosto de 1964 (um curso intensivo, portanto), com a presença de 32 participantes de
26 países em desenvolvimento na América Latina, África, Ásia, Oriente Médio e Europa. Os
participantes foram selecionados entre candidatos designados pelos governos e, em sua
grande maioria, eram diretores ou gerentes de importantes oficinas de próteses em seus
países. Do Brasil tivemos dois participantes de São Paulo, ligados a projeto do Centro de
Demonstração a que nos referimos um pouco mais adiante, neste mesmo capítulo.
Participamos na qualidade de Diretor, em nome das Nações Unidas.
Durante este Seminário - organizado como um curso intensivo e com firmes propósitos de
elevar os conhecimentos dos participantes - foram dados certificados de sua conclusão
apenas para aqueles que tivessem passado nos exames finais. Ao encerrar-se o Seminário,
diversas recomendações foram aprovadas. E a mais relevante foi, sem dúvida, aquela que
indicava a necessidade de se organizar outro Seminário da ONU para o estabelecimento de
padrões mínimos para treinamento de pessoal. A recomendação foi aprovada logo em
seguida pela Comissão Social do Conselho Econômico e Social da ONU, e incluída no
programa de trabalho da Unidade de Reabilitação para 1968.
Após exaustivos estudos e muitas consultas, os quatro pontos foram escolhidos de comum
acordo com os governos interessados. Os Centros de Demonstração de Técnicas de
Reabilitação foram instalados na lugoslávia (Skopje), Egito (Alexandria), Índia (Bombaim)
e . . . Brasil (São Paulo). Criava-se em nossa Pátria um recurso altamente promissor que
deveria ser o elemento catalítico do desenvolvimento da reabilitação em nosso meio: o
Instituto Nacional de Reabilitação (INAR) da Universidade de São Paulo!
CAPÍTULO SÉTIMO
1981 - ANO INTERNACIONAL DAS PESSOAS DEFICIENTES
Desde os primeiros dias do estabelecimento da Organização das Nações Unidas tem
havido uma ênfase especial a programas destinados a encontrar soluções para toda a gama
de problemas sociais sérios causados pela guerra e pelo sub-desenvolvimento, conforme
vimos anteriormente. E, como analisamos no capítulo anterior, o problema de deficiências
ocasionadas pelas atividades de guerra era tão significativo que demandou a concentração de
esforços em programas de reabilitação das pessoas deficientes, quer tivessem elas sido
envolvidas na guerra como integrantes das forças em conflito, quer como vítimas civis.
No entanto, os esforços internacionais dirigidos para esse objetivo acabaram sendo muito
pouco eficazes devido à sua falta de coordenação - na verdade não havia um plano mundial
para dar cobertura a toda a magnitude de dificuldades. E descobriu-se rapidamente que,
devido à dispersa - apesar de grande - quantidade de esforços na tentativa de remediar
problemas de deficiências instaladas, pouca atenção estava sendo devotada à prevenção de
outras deficiências - situação que perdurou por vários anos do pós-guerra.
Assim, hoje em dia não é muito de espantar que o mundo tenha um total de
aproximadamente 500 milhões de pessoas que sofrem com algum tipo de restrição séria à
sua atuação, devido a deficiências de naturezas variadas. Percebemos hoje que as guerras,
apesar de serem uma das causadoras mais sérias de deficiências, certamente que não são
nem jamais foram as únicas. As sociedades continuam, talvez por falta de atenção ou por
mera negligência, a produzir as pessoas com deficiências físicas e mentais, e aquelas que
sofrem com os bloqueios de problemas sensoriais, orgânicos, comportamentais e sociais dos
mais sérios.
Ações preventivas são imperativamente importantes - talvez sejam mesmo tão
importantes quanto a própria reabilitação. E uma importante razão para dar ênfase à
prevenção de males é evitar o desperdício de recursos humanos, que são um componente
básico de qualquer processo de desenvolvimento, somados que devem ser aos recursos
naturais e financeiros.
Esta Resolução foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em sua trigésima sessão, no
dia 9 de dezembro de 1975, levando o número XXX/3447.
“17. Alguns membros afirmaram que estava ocorrendo uma dramática mudança nas
atitudes das próprias pessoas deficientes. Elas estavam assumindo cada vez mais o papel de
um grupo consumidor que tinha seus próprios pontos de vista quanto à forma como as
melhorias de suas condições de vida deveria ser efetivada e desejavam que esses pontos de
vista fossem conhecidos daqueles que tomavam decisões. Alguns membros
sugeriram que essa tendência deveria ser encorajada, e que os representantes de pessoas
deficientes deveriam desfrutar de plena participação não apenas no planejamento de
programas a elas relacionados, mas também no planejamento do desenvolvimento social e
econômico da sociedade em geral. Foi também sugerido que as organizações internacionais
deveriam dar exemplo nesse sentido”.
"24. Diversos membros expressaram sua preferência por programas práticos para o Ano
Internacional, que deverão incluir o uso de tecnologia apropriada para a reabilitação do
deficiente, a concessão de bolsas de estudos para especialização, o desenvolvimento de um
banco de equipamentos e outros programas que possam trazer benefícios diretos para as
pessoas deficientes e assim tornar a observância do Ano mais significativa.
25. Alguns membros indicaram que pessoas deficientes, de fato, formavam um grupo
bastante variado, dentro do qual havia pessoas com deficiências diferentes e que havia, em
conseqüência, grandes diferenças nas necessidades e nos requisitos para serviços. Foi
sugerido que o programa para o Ano deverá levar em conta diferentes deficiências e prover
meios para assegurar a implantação dos objetivos do Ano para todas as pessoas deficientes".
"III. RECOMENDAÇÕES
A - Introdução - Princípios básicos adotados para as recomendações
De posse dessa documentação, tomamos providências pessoais para tradução dos trechos
mais relevantes para o português, com o intuito de iniciar uma série de discussões sobre seu
conteúdo, e de chegar ao final do ano de 1980 com algumas idéias bem estabelecidas.
A primeira oportunidade surgiu em maio de 1980 quando um incipiente movimento de
São Paulo, até então conhecido como "Coalizão de Pessoas Deficientes" e hoje conhecido
como "Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes" reuniu-se numa manhã de sábado
e discutiu as "proposições a nível nacional", contidas no documento. Os quase trinta
participantes da reunião distribuíram-se em quatro grupos de trabalho e discutiram as vinte e
sete proposições, elaborando propostas novas para aplicação local daquilo que, no
documento original, parecia mais uma colcha de retalhos de idéias.
A segunda oportunidade para estudar essas proposições surgiu durante o Segundo
Congresso Brasileiro de Reintegração Social, organizado em São Paulo, no mês de julho de
1980. O tema "Ano Internacional das Pessoas Deficientes" foi incluído no programa para
debates durante uma tarde toda de trabalhos. O congresso aprovou uma série de conclusões
dos grupos de trabalho, bem mais profundas e mais incisivas do que as primeiras, devido à
heterogeneidade dos grupos, à diversidade de sua composição, ao acervo de experiências de
seus debatedores e também devido ao fato de estar contando com os resultados das primeiras
discussões durante o mês de maio, o que muito ajudou os membros integrantes dos grupos
de trabalho.
Também no início do mês de julho de 1980 surgiu em São Paulo um grupo conhecido
como "de apoio e estímulo ao Ano Internacional das Pessoas Deficientes". Logo após sua
primeira reunião, convocada por Dona Dorina de Gouvêa Nowill, foi tomada a deliberação
de remeter ao Senhor Presidente da República ofício co-assinado por entidades participantes,
para que ele desse ao Ano Internacional o nome correto, ao assinar o decreto criando a
Comissão Nacional ao mesmo destinada. Ouvia-se falar de traduções inaceitáveis, tais como
"Ano Internacional do Incapacitado", "Ano Internacional do Excepcional" e outros nomes
que estavam sendo fortemente tentados. A mensagem, juntamente com outras de locais e
iniciativas diferentes, parece que chegou ao destino, pois em 16 de julho de 1980 o
Presidente da República assinava decreto criando a Comissão Nacional do Ano Internacional
das Pessoas Deficientes, vinculando-a ao Ministério da Educação e Cultura. Seus membros
foram nomeados por Portarias do Senhor Ministro da Educação em 28 de agosto e 17 de
setembro de 1980.
INTRODUÇÃO
Aqueles que se defrontaram com a problemática das pessoas portadoras de algum tipo de
deficiências pela primeira vez durante o ano de 1981 - por ter sido o Ano Internacional das
Pessoas Deficientes – talvez não tenham tido oportunidade alguma de parar um pouco em
sua própria vida e pensar sobre o assunto. Mas todos aqueles que têm algum tipo de
problema limitador que pode levar em muitos casos à deficiência, seus familiares e todos os
que de alguma forma trabalham ou se dedicam ao seu atendimento e à sua assistência sabem
muito bem que tem havido uma inacreditável lentidão da sociedade e do governo em aceitar
as reais dimensões do complexo de situações enfeixadas nas deficiências físicas, sensoriais,
orgânicas e mentais.
Podemos imaginar que essa atitude quase de imobilidade prevaleça devido à inexistência
de dados entre nós. Nossos recenseamentos nacionais não têm inserido estudos dessa
natureza em seus questionários. Diga-se de passagem que desde o ano de 1959, quando o
General Lott ocupava provisoriamente a Presidência do Brasil, gestões tem sido feitas para
tal fim, mas sem o menor vislumbre de sucesso.
De outra parte, estimativas mundiais só começaram a ser profusamente divulgadas
durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, que foi expressamente criado pela
Organização das Nações Unidas para alertar o mundo todo a respeito da existência de um
certo percentual de pessoas marginalizadas por problemas físicos ou sensoriais, seus direitos,
deveres e aspirações.
Mas não é somente por falta de dados que a sociedade em geral e nossos governantes tem
se omitido. Existe uma certa dose oculta de rejeição, consciente ou não, que é muito
ponderável nesse panorama todo que envolve pessoas com deficiências no mundo de hoje.
Face a esses fatores é muito importante chamarmos a atenção para o fato de que,
exatamente por haver desconhecimento quanto às verdadeiras dimensões dos problemas
relacionados a deficiências entre nós, e por ocorrer uma evidente rejeição das pessoas que
são diferentes devido a uma anomalia física ou mental, a maneira como o Brasil está
encaminhando programas e atividades voltadas para pessoas deficientes - salvo raras e mui
distintas exceções - tem sido na melhor das hipóteses limitada. Na pior, poderá ser
inadequada, talvez inócua, irrelevante e mal fundamentada, quando não contra-producente.
As conseqüências da falta de conhecimento e de convicção quanto à gravidade da situação
e à dimensão do problema, mesmo por pessoas altamente envolvidas, levará fatalmente
nossos planejadores de governo, nossas organizações privadas, nossas repartições públicas e
nossa população em geral a não dar atenção própria, a eliminar possibilidades de
estabelecimento de qualquer nível de prioridade, a preterir a adequada assistência a pessoas
deficientes por outros programas e a não apoiar qualquer tipo de ênfase nesse campo.
Acresce a tudo isso que, por estarem mal informados ou desinformados por completo sobre a
verdadeira natureza do problema, todos aqueles que não estão diretamente envolvidos
tentam ignorá-lo, evitá-lo ou simplesmente pretender que ele não existe. Quase toda a
responsabilidade pelo atendimento dos casos concretos tem ficado nas mãos de algumas
entidades privadas, bem ou mal preparadas para a tarefa, ou de órgãos governamentais,
lamentando-se de quando em quando, ao se deparar com situações mais chocantes, a
inviabilidade de melhor ajudar a família que literalmente vive a dificuldade permanente.
Temos visto e ouvido muito em nosso meio que as famílias "atingidas" acabam sentindo o
problema como exclusivamente seu.
Muitas delas procuram esconder seu membro deficiente, a fim de evitar também situações
sociais embaraçosas, tais como contínuas interpretações quanto à natureza e gravidade do
mal, esclarecimentos quanto a providências já tomadas, elucidações quanto a este ou àquele
médico especializado que resolveu casos semelhantes e tantas mais.
Os documentos das organizações internacionais mais categorizadas indicam-nos que pelo
menos 10%, da população de qualquer país do mundo em tempos de paz sofrem as
conseqüências de algum tipo de problema físico ou mental ou da combinação de males, de
tal maneira que precisam de serviços especiais de alguma natureza. No entanto, se fizermos
uma superficial análise da distribuição geográfica das populações no mundo e dos recursos
disponíveis para ajudar as pessoas portadoras de deficiências, verificaremos que a maioria
delas, por estarem localizadas em países sub-desenvolvidos, não teve, não tem e não terá
qualquer oportunidade de acesso aos mesmos.
A Rehabilitation International, em sua farta documentação para o Ano Internacional das
Pessoas Deficientes e também para a Década de Oitenta, afirma categoricamente que as
modernas e por vezes palacianas instalações que costumamos chamar de "centros de
reabilitação" ficam tão distanciadas de suas vidas quanto um carro de luxo de último tipo. E
um dos motivos é que a maioria das deficiências ocorre nas áreas mais pobres com muita
probabilidade de complicações adicionais devido à falta de assistência. Nessas realidades o
que conta é a sobrevivência, o pão, o teto e não as aspirações "mais altas". Como pensar em
reabilitação quando não há dinheiro para a alimentação ou vestuário?
As dimensões verdadeiras e realistas das deficiências no Brasil não podem ser
estabelecidas apenas por números de pessoas atingidas, conforme indicamos anteriormente.
O claro estabelecimento da verdadeira extensão desses problemas deverá levar em conta
os efeitos das deficiências sobre a vida das pessoas, tanto a vida daqueles que são
diretamente atingidos, quanto a de alguns dos membros de seu grupo familiar, do povo, da
comunidade e da sociedade em geral.
Por estudos realizados em países mais avançados que o nosso, sabemos que por causa da
deficiência física ou mental, 1/4 da população de uma nação poderá estar, de uma maneira
ou de outra, limitada ou bloqueada quanto à plena utilização de suas capacidades e de seu
potencial.
É evidente que existe o reverso da situação. A sociedade, a comunidade, os círculos de
vizinhança ou de amizade, o grupo de referência familiar, têm uma reconhecida influência
no eventual agravamento da situação, ou seja, na transformação daquilo que é um
"impedimento" físico, sensorial, orgânico ou mental numa "deficiência". E isso ocorre
devido a atitudes, receios, estigmas, comportamentos, preconceitos e também à
discriminação, que são mantidos consciente ou inconscientemente para com pessoas que
apresentam essas limitações. As dificuldades que cada um de nós individualmente cria para
a sua educação, participação na vida social ou colocação em empregos, adicionais que
sempre são às barreiras de acesso a edifícios, ao transporte, aos recursos relacionados à
recreação e ao lazer, geram problemas que tornam sua solução cada vez mais difícil.
Ressaltemos, a bem da verdade, que não são poucos os segmentos da sociedade
diretamente atingidos por deficiências físicas ou mentais. Adicione-se que há outros que são
responsáveis pelas conseqüências negativas das limitações acima referidas.
Uma redução objetiva dessas conseqüências poderá ser garantida por uma ação conjunta,
dirigida a cada uma de suas origens. Como exemplo vale lembrar um maior provimento de
serviços adequados de reabilitação para pessoas deficientes, incluindo nele serviços com
tecnologia mais simplificada ou serviços baseados em recursos já existentes na comunidade.
É fundamental que tenhamos programas de reabilitação mais dinâmicos, cujos
profissionais não trabalhem apenas no físico, mas também nas atitudes e no comportamento
das pessoas – tanto aquelas que são deficientes quanto as que não são portadoras de
deficiências – quer individualmente, quer em grupo. Estaremos dessa forma dando àqueles
que chamamos hoje, com uma certa despreocupação e sem medir bem o significado da
palavra, de “deficientes”, oportunidades para superar o complexo de problemas que os
afligem e passar a ser muito mais “eficientes” na sociedade.
Analisarmos o quadro completo de evolução dessas situações no Brasil é tarefa
impossível nos dias de hoje. Um olhar para o futuro poderá nos sugerir que o volume de
problemas trazidos pelas deficiências continuará existindo e estará sempre vinculado às
tendências mais gerais de evolução social e humana de nosso país.
Essas tendências nos dias que correm mostram-nos taxas assustadoras de desemprego e
num crescendo quase sem barreiras, o imenso acervo de pessoas sobrevivendo em situações
de sub-emprego, o que deixa – aparentemente – as pessoas deficientes numa dificuldade
ainda maior para serem absorvidas pelo mercado aberto de trabalho.
Continua existindo a migração de pessoas provenientes de regiões mais pobres para áreas
mais promissoras, caindo quase sempre em favelas, em cortiços que se encontram super-
povoados, ou em outros tipos de habitações infra-humanas. Boa porcentagem da população,
em vez de estar trabalhando em produção de alimentos, volta-se para ocupações não
qualificadas do meio urbano, tangida pela ambição de obter melhores condições de vida. A
tudo isso acrescentemos o imenso abismo, em continua expansão, que existe entre a nossa
população que possui bens daquela população que não os possui. Procuremos, deste ponto
em diante, analisar a situação das pessoas chamadas deficientes, dentro do final do século
XX e dentro de nossa realidade brasileira. Tentaremos iniciar discussões quanto aos motivos
que poderão levar pessoas portadoras de deficiências a uma situação de marginalidade.
Elaboraremos também um pouco quanto ao verdadeiro significado e às implicações
daquilo que é verbalizado muito facilmente como "integração social das pessoas
deficientes".
O que é que significam essas palavras bonitas em termos práticos?
Como é que podemos traduzi-las para o nosso dia-a-dia?
Analisaremos a importância do ajustamento do indivíduo portador de deficiência como
pessoa, pois é a adequação pessoal o objetivo último do processo reabilitacional. É por meio
dela que a pessoa poderá ter condições suficientes para sair de uma situação de dependência
e marginalidade para uma outra de auto-suficiência na sociedade em que vive.
Focalizaremos também um pouco mais pormenorizadamente os componentes do
ajustamento à vida de trabalho, ou seja, a adequação da pessoa portadora de deficiência a
uma situação concreta de produção de bens e serviços.
Por não podermos de forma alguma desconsiderar a importância de uma consagrada ação
que, sem a menor sombra de dúvida, desde os seus primórdios se caracterizou como um
trabalho multi-profissional que extrapola em muito às atuações de um só profissional,
teremos um capítulo especial de discussão quanto às características e as dificuldades do
trabalho de equipe nos programas reabilitacionais de hoje. E finalmente iniciaremos pontos
de discussão com o objetivo de dar uma visão de como poderá ser viável a avaliação e o
controle das atividades de nossos centros e de nossos programas de reabilitação,
considerados tão dispendiosos para nossa sociedade, tão aparentemente fora de nossa
realidade, mas tão fundamentais para aqueles que precisam de serviços especiais para terem
condições mínimas a fim de tentar a grande aventura da integração completa na sociedade,
pois têm o direito de desfrutar de tudo aquilo que está implícito nos temas básicos do Ano
Internacional das Pessoas Deficientes, ou seja, "participação plena e igualdade".
CAPÍTULO PRIMEIRO
AS CAUSAS DA MARGINALIDADE DAS PESSOAS DEFICIENTES
- *A visibilidade da deficiência*
A visibilidade de uma diferença física menos agradável sempre dificulta tentativas de
integração da pessoa humana atingida ao seu grupo, principalmente devido às dúvidas e à
ansiedade que ela provoca.
Há receios ocultos quanto às prováveis conseqüências das vinculações ou da convivência
com o ser humano deficiente. A maioria das pessoas ditas normais não se sente à vontade na
presença de pessoas gravemente deficientes que passam a ser tratadas como gente estranha e
numa razoável distância social.
As amputações de membros superiores (e em alguns casos as de membro inferior
também), a paraplegia, a hemiplegia, a paralisia cerebral, as deformações congênitas em
geral, todas tem grande visibilidade, enquanto que os males orgânicos, alguns sensoriais, os
desvios psicológicos e sociais chamam muito menos a atenção e levam a menos
significativas reações. Provocam em contrapartida menor índice de boa vontade por parte do
público em termos de causas, de programas ou de campanhas.
A visibilidade das alterações do padrão médio de normalidade física, às vezes precisa ser
muito bem ponderada e cuidadosamente considerada por pais e educadores quando
formulam planos educacionais para uma criança. E uma das perguntas mais cruciais é esta:
"Até que ponto poderá uma criança diferente - portadora de algum tipo de deficiência mais
facilmente perceptível - beneficiar-se de uma escola segregada ou de uma escola integrada?"
- *Desvios intelectuais*
Existem estudos muito interessantes a respeito de problemas intelectuais que levam a
certos desvios, tanto para o lado positivo quanto para o negativo, partindo sempre de um
ponto médio. A preocupação básica de nossa sociedade, entretanto, tem-se centralizado nos
desvios para menos, ou seja, nos casos de deficiências mentais de vários graus, incluindo os
limítrofes, os educáveis, os treináveis e todos aqueles que não conseguem ser absorvidos
pela sociedade devido a um rebaixamento intelectual.
- *Desvios motores*
Agrupados sob este tipo de desvio de normalidade encontraremos todos os casos de
amputações, as malformações motoras congênitas ou adquiridas, os problemas ortopédicos
de gravidade e provocadores de seqüelas incapacitantes, os males neurológicos com os
mesmos tipos de conseqüências, dentre os muitos que poderiam ser aqui inseridos. Na
verdade são os problemas que mais chamam a atenção quando se fala em reabilitação ou
quando se menciona o problema das deficiências de um modo genérico.
- *Desvios sensoriais*
Sendo normal o uso de todos os sentidos, o ser humano que se vê privado de um só deles
pode facilmente ser vítima de séria marginalização se não souber como superar o problema
vivido. Assim é que, dentre os casos mais notórios, temos os cegos ou deficientes visuais, os
surdos e casos afins, conhecidos como deficientes auditivos, com diminuição ou gradativa
perda do sentido da audição. A perda ou redução de outros sentidos como o olfato, o paladar
e o tato não é comum nem causadora de sérias dificuldades sociais, apesar de poderem ser
arroladas as muitas exceções que acabarão por confirmar a regra.
- *Desvios funcionais*
Certas funções do organismo, quando prejudicadas por um defeito, por uma doença ou por
um acidente poderão trazer sérios problemas para o indivíduo. Assim temos o caso dos
afásicos ou daqueles que têm dificuldades de comunicação que é o tipo mais facilmente
encontradiço neste grupo.
- *Desvios orgânicos*
Dentre os desvios orgânicos que mais trazem problemas ao homem estão aqueles
ocasionados por vários tipos de cardiopatias sérias e por males da respiração, incluindo-se
nos mesmos os casos de tuberculose, dentre muitos outros.
- *Desvios de personalidade*
Este tipo de dificuldade está diretamente ligado a problemas emocionais ou distúrbios
mais graves como as neuroses e as psicoses. Vários males relacionados à saúde mental
podem também levar as pessoas a situações de marginalização.
- *Desvios sociais*
Os delinqüentes juvenis, os criminosos adultos, certos tipos de contestadores, os viciados
em drogas, os alcoólatras, os fármaco-dependentes são alguns tipos que ilustram o chamado
desvio social. Muitos deles não têm absolutamente nada em comum e os programas
montados para sua assistência são muitas vezes totalmente separados ou alheios uns aos
outros.
São também muito ponderáveis os problemas causados por certos tipos de rótulos
estigmatizadores aplicados a indivíduos ou a populações que vivem em condições diferentes
daquelas consideradas como aceitáveis, ou seja os "favelados", os "aleijados", os
"paralíticos", os "loucos" e tantos mais.
As dificuldades, entretanto, não se limitam a essa questões ou a esses ângulos, pois aos
problemas ocasionados pela existência de uma deficiência qualquer ou pela ocorrência de
estigmas rotuladores, eventualmente deve-se também adicionar uma série de situações
causadas por fatores pessoais ou sociais. Dentre os fatores pessoais convém que não nos
esqueçamos dos males provocados pelo analfabetismo, pelas crendices e superstições, pela
ignorância generalizada, pela inabilidade de resolver problemas e pela miséria material.
Dos fatores sociais mais significativos causadores eventuais de situações de
marginalização cumpre que destaquemos o crescimento vertiginoso e desordenado de nossas
grandes cidades, a falta ou a inoperância dos recursos humanos ou dos equipamentos sociais
da comunidade, o evidente descompasso existente entre a educação e o desenvolvimento
tecnológico, além dos preconceitos e das atitudes discriminatórias.
- *Deficiência e incapacidade: distinção importante*
Segundo consenso internacionalmente existente, quando, em conseqüência de algum mal,
o ser humano é vítima de um certo impedimento de ordem física, por exemplo, temos a
instalação de uma deficiência. Essa deficiência poderá levar ou não a uma incapacidade, ou
seja, a uma situação de desvantagem, de inferioridade. Claro que um impedimento sempre
poderá causar uma deficiência inócua, pouco significativa e sem maiores conseqüências para
o indivíduo afetado. Por exemplo, no caso de um auxiliar de caminhão perder o dedo
mínimo da mão esquerda. Esse mesmo impedimento, fisicamente observado e
diagnosticado, trará conseqüências marcantes para um pianista, para um datilógrafo, para um
clarinetista profissional.
O que sucede é que quando essa deficiência é tomada como uma desvantagem
significativa para com os demais, ou quando ela é rejeitada sem que o indivíduo atente para
suas conseqüências práticas, em geral a pessoa portadora da deficiência começa a agir e a
desenvolver hábitos e atitudes tais que o grupo social se vê forçado a deixá-la de lado e cada
vez mais à sua margem.
Consideradas as circunstâncias em que acontecem e muitas vezes as pessoas que atingem,
certas deficiências não podem nem devem ser tidas como "incapacidades", pois estas são
realmente problemáticas e estão presentes sempre que ocorrer a somatória de três tipos de
limitações:
- a limitação objetiva, imposta pelo impedimento ou desvio (por exemplo, um paraplégico
não consegue mais andar e tomar uma condução pública sem a ajuda de muletas ou de uma
cadeira de rodas; um cego não poderá ler instruções em planilhas de trabalho; um amputado
de mão, por mais hábil que procure ser, não poderá ser um violinista);
- a limitação estabelecida por segmentos da sociedade com os quais o indivíduo se
relaciona (por exemplo, clubes não aceitam pessoas com deficiências físicas, a sociedade
evita contatos próximos com vítimas de paralisia cerebral, ou procura manter os hansenianos
fora de seu alcance);
- a limitação que o próprio indivíduo atingido estabelece (por exemplo, o paraplégico que
acha estar liquidado para a vida de trabalho ou a vida social; o cego que não se dispõe a
aprender o Braille ou a andar sem a ajuda dos outros por medo de não o conseguir).
- *A complexidade do desafio*
Por mais paradoxal e estranho que possa parecer, certos segmentos da sociedade em que
vivemos colocam de lado o homem indesejável e que consideram fora dos padrões de
aceitabilidade, enquanto que, ao mesmo tempo e muitas vezes dentro de uma idêntica área
geográfica restrita, outros setores da mesma sociedade procuram montar programas de
assistência e proteção a esse mesmo homem. Dependendo muito do grau de
desenvolvimento da área em que as situações concretas acontecem esses pretendidos
programas de atendimento podem chegar a ser bastante diversificados, indo desde a mera
assistência segregativa e estigmatizadora, até modernos e sofisticados centros de reabilitação
ou serviços de integração social.
Que motivos poderiam ser tão fortes e tão ponderáveis para levar uma sociedade toda, ou
alguns de seus setores, a canalizar esforços, recursos financeiros, voluntariado e outros
programas das mais variadas naturezas para o desenvolvimento dessas atividades? Que tipo
de raciocínio lógico poderia ser tão convincente para levar autoridades a dar prioridade a
programas tão complexos e de tão difícil concretização? Estaria a sociedade apenas
investindo em reabilitação devido à sua preocupação com a solidariedade para com seus
membros mais fracos? Estaria ela preocupada com a magnanimidade que precisa demonstrar
para com os mais fracos?
As injustiças que assolam nossa sociedade e a ameaça que elas representam levaram o
Papa João Paulo II a assim se expressar em São Paulo no seu famoso encontro com os
operários: "O bem comum da sociedade requer, como exigência fundamental, que a
sociedade seja justa! A persistência da injustiça, a falta de justiça, ameaça a existência da
sociedade de dentro para fora, da mesma maneira que tudo quanto atenta contra a soberania
ou procura impor-lhe ideologias e modelos, toda chantagem econômica e política, toda força
das armas pode ameaçá-la de fora para dentro. Esta ameaça a partir do interior existe
realmente quando, no domínio da distribuição de bens, se confia unicamente nas leis
econômicas do crescimento e do maior lucro; quando os resultados do progresso tocam
apenas marginalmente, ou não tocam em absoluto, as vastas camadas da população; ela
existe também, enquanto persiste um abismo profundo entre uma minoria muito grande de
ricos de um lado, e a maioria dos que vivem na necessidade e na miséria, de outro lado.
Todo aquele que trabalha em programas de promoção humana ou desenvolve atividades
de atendimento - profissionais ou voluntárias - a grupos marginalizados, e basicamente todos
aqueles que vivem uma situação concreta de marginalidade, prefeririam que a sociedade se
envolvesse nessas atividades principalmente devido ao reconhecimento quanto ao valor do
homem - mas isso nem sempre ocorre, uma vez que a sociedade dos homens mobiliza-se
apenas de acordo com as circunstâncias, os interesses de grupos e as pressões que sobre ela
são feitas.
A sociedade mobiliza-se, por exemplo, diante de grandes desastres, de acontecimentos
especiais ou anormais, de catástrofes, porque esses eventos provocam mal-estar
generalizado, trazem desconforto, ameaçam a estabilidade da família e da sociedade, pondo
em risco a propriedade.
As sociedades mais evoluídas têm demonstrado uma crescente preocupação não apenas
com seus membros mais problemáticos ou anormais, mas também com grupos minoritários
que acabam sendo prejudicados por atitudes preconceituosas. A despeito dessa preocupação
crescente, nossa civilização tem dado mostras de suas fraquezas e de suas inconseqüências.
Todos nós estamos acostumados e mesmo cansados de ouvir palavras ponderadas e
altamente recomendáveis, ou ler estudos muito bem elaborados e louváveis quanto ao valor
do homem, em contraposição a atuações de caráter aviltante e desumano. Tem-se a nítida
impressão de que o indivíduo é visto por prismas que provocam espectros distorcidos,
irreconhecíveis e que não correspondem a um mínimo desejável e mesmo esperado.
"Talvez uma das mais evidentes debilidades da civilização atual esteja na inadequada
visão do homem. A nossa época é, sem dúvida, aquela em que mais se escreveu e falou
sobre o homem, a época dos humanismos e do antropocentrismo. Entretanto,
paradoxalmente, é também a época das mais profundas angústias do homem com respeito à
sua identidade e destino, do rebaixamento do homem a níveis antes insuspeitados, época de
valores humanos espezinhados como jamais o foram antes" (João Paulo II - no Encontro
com os Construtores da Sociedade Pluralista, em Salvador, no dia 7 de julho de 1980).
Os programas destinados à adequada assistência ao homem marginalizado ou em franco
processo de marginalização, e à sua integração à correnteza principal da sociedade, muito
embora dispendiosos e de difícil concretização, sempre foram verdadeiras e inquestionáveis
demonstrações da existência de uma sociedade voltada para os valores do ser humano e
também da objetividade de seus propósitos. Segundo alguns autores, mede-se o nível de
desenvolvimento e o grau de cultura de um povo pelo tipo e pela qualidade de preocupação
que demonstra para com os seus grupos minoritários e marginalizados, ou para com os
pobres.
Mas por que falarmos em "integração social" que é tão complexa e problemática? Não
seria suficiente para a sociedade falar apenas em "assistência social", em "abrigo", em
"institucionalização"? Por que não a separação pura e simples desses marginalizados ou
marginalizáveis, como se faz, institucionalmente, com todos os elementos que podem causar
perigo ou preocupação séria à sociedade? Talvez a sociedade tivesse muito mais
tranqüilidade se pudesse colocar, internar, segregar em organizações especiais aqueles que
são rotulados como "débeis mentais", "leprosos", "tuberculosos", "cancerosos", "paralíticos",
"cegos", "surdos" e ainda os "maloqueiros", "favelados", "pedintes", "trombadinhas",
"viciados em drogas" e outros mais que, sob os olhos dessa sociedade comodista constituem
a legião dos miseráveis, ou dos assim chamados "carenciados", "excepcionais", dos dias em
que vivemos.
ANEXO I
Nome do cliente:
Treinamento na área de:
Data do início:
Encaminhado por:
Observações deste Indicativo válidas na data:
Levantamento feito por:
CONCEITOS: A = Ótimo, sem problemas; B = Deve ser melhorado; C = Deve ser
modificado; D = Inaceitável.
CATEGORIAS
1. Aparência pessoal;
2. Hábitos irritantes;
3. Dificuldades de comunicação;
4. Assiduidade às atividades;
5. Pontualidade em geral;
6. Capacidade de resolver problemas;
7. Queixas pessoais;
8. Vitalidade nas atividades;
9. Resistência à fadiga;
10. Persistência na atividade;
11. Capacidade de seguir regulamentos;
12. Distração durante atividade;
13. Reações à mudança de tarefas;
14. Reações à monotonia;
15. Habilidade social com colegas;
16. Requer supervisão após tarefa nova;
17. Aceitação da supervisão;
18. Tensão devido à proximidade da supervisão;
19. Necessidade de ajuda da supervisão;
20. Reação à crítica ou pressão da supervisão;
21. Organização com equipamentos e materiais;
22. Comportamentos estranhos;
ANEXO II.
LISTA DE COMPORTAMENTOS OU HÁBITOS INADEQUADOS
(Esta lista está parcialmente baseada em levantamento contido em trabalhos de Luís Carlos
Dutra - Ver Bibliografia)
CAPÍTULO QUARTO
PREPARO PARA A VIDA DE TRABALHO
d) Interesses: O interesse pelo trabalho, por parte de uma pessoa deficiente em processo
de reabilitação, poderá ser consideravelmente aumentado com a obtenção de certas
satisfações pessoais, conseqüentes à constante participação nas atividades a esse fim
destinadas no centro de reabilitação. O nível de interesse aumentará conforme crescer o seu
prazer diante do trabalho, isto é, além de desenvolver bem as atividades, ela deve ver essas
atividades com resultados que lhes sejam favoráveis.
O interesse não depende, todavia, "in totum", da qualidade do trabalho executado. A
pessoa deficiente poderá ter interesse por certos tipos de trabalho ou atividade que não
consegue executar com perfeição, devido a circunstâncias várias, inclusive devido a uma
deficiência adicional até então não considerada.
Para alguns clientes de reabilitação, a dificuldade de certos tipos de tarefa significa
desafio, sendo esse um motivo mais do que suficiente para tentar executá-la bem, dedicando-
se ao máximo a ela. O pessoal que trabalha em oficinas de reabilitação na qualidade de
avaliador de atividades precisa ter condições para distinguir o que a pessoa deficiente faz
apenas para superar um desafio e aquilo que ela faz por puro interesse. A atitude para com
um desafio é de extrema importância no processo de integração social, principalmente ao se
analisar, em confronto, suas atitudes em outras atividades no programa. Se essa atitude for
adequada e equilibrada, a equipe poderá ponderar melhor as suas possibilidades de sucesso
na vida após terminado o processo de reabilitação.
O reabilitando demonstra interesse no trabalho pela sua aplicação e dedicação a certos
tipos de função, bem como pelo esforço intelectual e físico dispendido na obtenção de
melhorias ou de aperfeiçoar os resultados até então conseguidos. Essas demonstrações de
interesse ficam patenteadas de várias formas, como, por exemplo, pela vontade de dedicar
mais tempo do que o indicado na tarefa, pela curiosidade e desejo de aprender mais, pelo
desagrado ao ter que interromper sua atividade na oficina, pela ordem, pelo cuidado, pela
limpeza que demonstra na bancada, pela atitude de permanente colaboração com o instrutor
de oficina.
O conselheiro de reabilitação deve estar informado quanto a alterações nos interesses
expressos pela pessoa deficiente e o avaliador de oficina é o profissional mais indicado para
discutir o assunto, na área de trabalho, especialmente se tiver um preparo especial, como o
de terapeuta ocupacional, por exemplo.
Cursos dessa natureza que os centros de reabilitação possam desejar manter, precisarão
conter exigências adicionais devido ao fato de serem mais flexíveis em alguns aspectos, a
fim de que obtenham o reconhecimento oficial e para que tenham o nível requerido. Centros
de reabilitação que dão atendimento a deficientes visuais, por exemplo, também podem
organizar treinamentos profissionais válidos em certas funções próprias para tais casos,
usando técnicas especiais de comunicação.
Não se pode, entretanto, confundir o treinamento profissional que prepara profissionais
para áreas definidas (como tornearia mecânica, fabricação de calçados, eletrônica,
eletrotécnica, artes gráficas, funilaria e outras) com os meros adestramentos para algumas
funções existentes especialmente no grande e variado mundo dos serviços (tais como
telefonistas, consertadores de eletro-domésticos, barbeiros, sapateiros, consertadores de
rádio e tantos mais) que realmente podem ser mantidos por centros de reabilitação.
Seja num, seja noutro caso, porém, o importante é que o cliente de reabilitação aprenda
que ele não poderá ser aceito simplesmente pelo diploma ou certificado que tiver em mãos,
mas pela competência como "trabalhador" que domina uma área de conhecimentos
específicos que nunca poderá ser dissociada de sua atuação como "pessoa humana". Seu
sucesso estará muito mais na dependência desse tipo de competência pessoa!/profissional do
que de outros fatores.
- *Colocação em emprego*
A finalização do processo de reabilitação total é a colocação da pessoa deficiente em
algum tipo de trabalho condizente com seu potencial, suas aspirações e seu preparo, e poderá
sempre ter sucesso se trabalharmos dentro dos princípios que se aplicam ao emprego de
pessoas não-deficientes, ou seja, dos demais trabalhadores. No entanto, são freqüentes os
casos em que se requer a aplicação de métodos especiais na escolha de empregos para
pessoas portadoras de deficiências.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, dever-se-á sempre levar em conta
certos fatores particulares que tornam mais difícil a colocação de pessoas deficientes
reabilitadas. Deve se procurar uma colocação que corresponda, não às deficiências do
candidato, mas às aptidões, como é feito, aliás, com boa parte de todo o contingente de mão-
de-obra assimilado pelo mundo de trabalho. Será necessário considerar não apenas sua
qualificação profissional ou suas qualidades pessoais, seus conhecimentos e sua disposição
ou preferências, mas também - e com cuidado todo especial - sua capacidade física para
desenvolver o trabalho indicado.
Não se deve esquecer que a pessoa deficiente precisa sentir que tem uma tarefa a
desenvolver e que poderá fazê-lo com a mesma chance de sucesso que seus demais colegas,
sem perigo para si mesma e sem que se tema um agravamento de suas condições físicas ou
suas limitações.
Para se determinar o trabalho e as condições mais adequadas para cada pessoa deficiente
em situações de trabalho, é necessário que o conselheiro de reabilitação ou o profissional
encarregado de promover sua colocação faça a indispensável análise de diferentes postos,
comparando seus requisitos às capacidades residuais e qualidades da pessoa que procura
emprego, ou seja, uma "análise de trabalho".
"Análise de trabalho é usada para vários propósitos na empresa, e pode ser utilizada de
maneira mais significativa na área de reabilitação humana e nas oficinas de reabilitação. Seu
uso maior é como um instrumento através do qual os atributos e as exigências do trabalho
podem ser combinados com os traços comprovados dos clientes, que vieram à tona e foram
posteriormente desenvolvidos durante sua estada nas oficinas de reabilitação. Um estudo
cuidadoso dos traços característicos de um dado trabalho ou trabalhos, e os traços
característicos verificados no cliente, resultará em uma colocação melhor e mais
satisfatória". ("Análise de Trabalho (Job Analysis)", de Vieira).
Numa análise de trabalho não podem deixar de constar os requisitos de educação,
aptidões, interesses, traços de personalidade, exigências físicas ou mentais, e também
condições de trabalho, tais como temperatura, poluição ambiental, barulho e muitas mais.
É fundamental que sejam feitos levantamentos de ocupações disponíveis, com o cuidado
de não caracterizá-las como "funções para deficientes". Dentre os profissionais que atuam
em reabilitação, há aqueles que visualizam seus clientes em funções não-qualificadas,
sedentárias e despidas de maiores envolvimentos, independentemente do nível intelectual, da
formação, dos planos e aspirações, ou mesmo do potencial do indivíduo. Essa posição
profissional não deixa de ser injusta, demonstrando a descrença no processo de reabilitação.
Ela é também encontradiça entre dirigentes empresariais e predomina entre selecionadores
de pessoal.
Apesar de sempre ser trazido à baila o momento de recessão do mercado como fator
decisivo para a não-abertura da contratação de pessoas deficientes, encontramos nas
empresas uma atitude de reserva quanto à colocação aberta, indiscriminada de pessoas
portadoras de deficiências. Há temores que elas possam se tornar pontos de atrito na
empresa, ou que assumam atitudes inadequadas; há também uma generalizada propensão a
julgar que pessoas deficientes têm mais possibilidade de se acidentar no trabalho e que seu
rendimento e produtividade sejam menores.
Muitos desses receios e tendências são plenamente justificáveis, pois o mundo
empresarial tem seus canais de comunicação formais e informais e os sucessos ou insucessos
de pessoas deficientes no trabalho correm muito velozmente. E nesse sentido é fácil deduzir
que más experiências em política de pessoal - no que se relaciona a empregados com
deficiências, evidentemente chegam a todos os cantos.
Uma das causas dos eventuais fracassos na colocação de pessoas deficientes vem do fato
muito simples de muitas delas não terem condições de trabalho, seja devido a atitudes
inaceitáveis, seja devido à falta de condições físicas ou psicológicas para o trabalho.
A conquista dos empregadores e de seus gerentes de pessoal, diretores de relações
industriais, diretores de produção chefes de seleção e outros elementos categorizados numa
empresa não dependerá nunca de campanhas inconseqüentes por meio de programas de
comunicação de massa, como sucedeu durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes,
através de um canal de televisão no Brasil todo. A idéia "empregue um deficiente" é péssima
sob todos os ângulos e traz dentro de seus termos a própria condição para seu fracasso, pois
o termo "deficiente" em si já é depreciativo e tem conotações de insucesso, de perda, de
fracasso. Se qualquer um de nós for um empregador convicto de sua função e do seu papel
no mundo da produção de bens e serviços, levantaria a questão: "Empregar um deficiente
por que? Eu preciso de empregados produtivos e não de deficientes que sempre são
problemáticos, cheios de dificuldades, revoltados, limitados, criadores de problemas" ... Essa
é a imagem que a grande maioria tem de pessoas deficientes - até que provemos o contrário
por casos bem colocados e de sucesso.
O envolvimento do mundo empresarial deverá se dar pela competência que as pessoas
portadoras de alguma deficiência poderão mostrar - e essa "competência" elas precisam
adquirir através de uma educação adequada em casa e na escola, ou num centro de
reabilitação que não seja apenas um simulacro de centro. Aliás, é um requisito que é válido e
é aplicado a toda a mão-de-obra, sem qualquer exceção. Pessoas incompetentes, criadoras de
problemas, sem escolaridade ou preparo de natureza profissional, sem experiência, sem
documentação em ordem, são pessoas consideradas inaceitáveis. quer tenham, quer não
tenham qualquer tipo de deficiência.
Por mais incrível que possa nos parecer o grande problema que temos no Brasil é a
existência de muitas entidades que trabalham em reabilitação e, seja devido a dificuldades
financeiras, seja devido à verdadeira noção das implicações desse processo complexo de
trabalho com o ser humano portador de deficiências, não conseguem atingir plenamente os
objetivos propostos. Elas sabem que a reabilitação finaliza o processo com vida de trabalho e
fazem a promoção da colocação do indivíduo sem tê-lo realmente preparado para tanto.
E entramos num círculo vicioso no qual o elemento mais prejudicado é o ser humano
diretamente envolvido numa colocação inadequada que ele logo perde; mas a longo prazo
temos prejuízos muito mais sérios e lamentáveis para a própria causa da reabilitação, pelo
descrédito do processo reabilitacional.
Assim, vislumbramos um caminho apenas: a conquista individual de cada empresa,
oferecendo a ela mão-de-obra bem preparada, conhecedora das implicações da vida de
trabalho, pronta para uma atuação normal. E essa conquista individual funciona muito bem -
sempre funcionou, aliás.
O problema da absorção da mão-de-obra de pessoas portadoras de deficiências é muito
sério e já mereceu estudos profundos em países mais evoluídos que o nosso. Entre nós
mereceria também um estudo crítico, pois não é em duas ou três páginas de considerações
que ele poderá ser dissecado com propriedade.
ANEXO I
ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL
ACONSELHAMENTO DE REABILITAÇÃO
RELATÓRIO.
I. IDENTIFICAÇÃO
1. Dados pessoais: Sexo; Estado Civil; Data de Nascimento; Local/Nascimento; Filiação:
Pai; Mãe.
2. Localização: Endereço residencial; Bairro; CEP; Cidade; Endereço Atual; Bairro; CEP;
Cidade.
3. Documentação: Carteira Identidade RG n°; Est; Carteira de Trabalho n°; Série; Est;
Título de Eleitor n°; Zona Eleitoral; C.P.F. n°; Outros.
4. Problema físico:
5. Situação familiar/social:
6. Procedência (encaminhado por):
7. Observações especiais:
Nome do cliente:
Anexo II.
ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL
AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO
IV. ATITUDES
Motivação; iniciativa; independência; relacionamento.
Anexo III
ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL
AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO
FATORES PROFISSIONAIS
Quantidade de trabalho;
Qualidade de trabalho;
Aceitação de crítica do supervisor;
Aceitação de crítica de colegas;
Organização da bancada de trabalho;
Ordem e limpeza no trabalho;
Relacionamento com colegas;
Relacionamento com superiores;
Trabalho em situações difíceis;
Assiduidade;
Pontualidade;
Outros conceitos poderão ser dados por extenso, no verso deste instrumental, chamando o
avaliador a atenção para o mesmo ponto relevante.
OBSERVAÇÃO: Outros fatores poderão ser inseridos, à vontade, tais como: Persistência
na atividade de trabalho; Vitalidade no desempenho; Disciplina em trabalho; Cuidado com
materiais e ferramentas; Perseverança nas atividades; Resistência à fadiga.
O trabalho de equipe, conforme deve ser aplicado num centro de reabilitação, é a união
próxima, democrática e multidisciplinar, devotada a um propósito comum, ou seja, o
tratamento mais completo possível do indivíduo portador de deficiência, com base em suas
capacidades, necessidades e aspirações.
A equipe de reabilitação não deixa nunca de ser um grupo distinto em suas partes, que age
como uma unidade. Tanto isso é verdade que nenhuma ação importante quanto ao cliente
deve ser adotada pelos membros de uma profissão sem que haja a ciência e mesmo a
concordância da equipe como um todo.
Para que isso venha a acontecer, é necessário que todos os que fazem parte da equipe
dominem um embasamento técnico que inclua não apenas pontos fundamentais do processo
de reabilitação, mas também:
- o reconhecimento dos limites de sua atuação profissional;
- a compreensão da linha básica de funcionamento do centro de reabilitação onde atuam;
- o conhecimento essencial das práticas e o alcance das diversas ciências ou técnicas que,
no trabalho de equipe, se fazem companheiras.
Claro que são relatórios que precisam ser interpretados para aqueles profissionais que não
são versados em terminologia ou abreviaturas de origem médica. Mais do que isso, precisam
ser reformulados face aos objetivos do processo de reabilitação.
Estudos desenvolvidos em países mais evoluídos no atendimento a pessoas deficientes
mostram que profissionais de formação equilibrada e seguros de sua própria atuação ou de
suas posições em geral, conseguem explicá-las, interpretá-las e elucidar dúvidas, podendo
com essa atitude educar e ser educados.
h) Metodologia de cooperação quase inexistente: Embora prejudicial para todos os
programas destinados ao atendimento global da pessoa deficiente, nenhum grupo
profissional dele participante tem desenvolvido qualquer tentativa válida para o ensino de
métodos de cooperação com as demais profissões. Em alguns programas de reabilitação
sabe-se de tentativas e esforços isolados de alguns profissionais para fomento dessa
indispensável cooperação, mas a eventualidade do esforço não o torna consagrado para todas
as situações.
i) Jogos de prestígio e de poder e seus malefícios: Os chamados jogos de poder, do
prestigio político ou pessoal, e dos compromissos já assumidos existe muito forte e
impregna toda nossa realidade, e não apenas a reabilitação. A atitudes conseqüentes a esses
tipos de expediente afetam seriamente um trabalho que precisa ser desenvolvido em equipe.
Exemplos dessas inadequacidades de atuação podem ser facilmente encontrados, como por
exemplo, a influência indevida de quem controla a situação financeira da entidade
mantenedora do centro de reabilitação; a pressão de certos políticos; a influência do prestígio
de certos membros da equipe; o sutil e desagradável efeito da atuação de profissionais que
não se preocupam ou nunca se conscientizaram quanto a certos princípios éticos, e que com
isso procuram manter situações sob seu controle indevido.
j) Ausência de uma boa política de pessoal: Uma administração ou direção de entidade
que não adota uma boa política de pessoal pode surgir - como de fato tem surgido - como
um bloqueio dos mais sérios à atuação da equipe de reabilitação. O interesse autêntico de
profissionais, o envolvimento constante, a vitalidade do processo, as possibilidades de
crescimento profissional, precisam ser garantidos pela direção do centro, em dosagens
adequadas.
Em resumo, uma equipe de técnicos de muito boa qualidade individual num centro de
reabilitação terá valor apenas limitado para as pessoas deficientes, a menos que, além de
dominar com segurança os princípios fundamentais e os propósitos da reabilitação, os
diversos técnicos que dela tomam parte se vejam como membros de uma equipe
multiprofissional, onde cada um tem seu papel específico e um determinado valor. Trabalhar
em diversas direções, ou pior ainda, trabalhar em direções antagônicas, mesmo que seja com
habilidade e grande virtuosismo, não levará nunca à reabilitação e certamente prejudicará o
reabilitando.
Não resta dúvida que o trabalho de equipe num centro de reabilitação é um ideal a ser
atingido em sua plenitude. No entanto, há muito que se aprender dentro de nossa realidade
de atuação. Experiências já vividas nunca deixarão de ser de valor muito concreto, podendo
levar-nos a uma cuidadosa análise da realidade que nos cerca, pois essa realidade mostrar-
nos-á como é importante um trabalho cooperativo.
Àqueles que trabalham em programas de reabilitação restará o desafio de bem utilizar
essas experiências, para o bem-estar de todos aqueles que pretendem dedicar-se à
reabilitação e para benefício de todas as pessoas deficientes que dela necessitarem.
CAPÍTULO SEXTO
A AVALIAÇÃO E O CONTROLE NOS PROGRAMAS DE REABILITAÇÃO
Ninguém pode negar que um centro de reabilitação pode determinar, por iniciativa
própria, a ênfase que deseja dar aos seus trabalhos. Encontramos, por exemplo,
organizações que dão maior volume de atendimento médico e para-médico, outras que dão
ênfase aos aspectos profissionais da reabilitação, procurando levar o indivíduo a um
ajustamento significativo em sua vida de trabalho. No entanto, ao nos aprofundarmos no
estudo de alguns recursos existentes aqui no Brasil, notamos que há iniciativas que denotam
menos uma opção de ênfase técnica do que um real desconhecimento do que seja
reabilitação.
Encontramos em nossa realidade centros de reabilitação que trabalham muito mais como
ambulatório médico para males ortopédicos do que como centro destinado à reabilitação do
indivíduo. Há clínicas de fisioterapia que se intitulam centros de reabilitação. A própria
palavra "reabilitação" é utilizada indiscriminadamente pelos próprios profissionais que nela
atuam, patenteando um desconhecimento real do assunto.
Aberrações dessa natureza ocorrem à nossa volta com certa insistência, causando à
reabilitação muito mais mal do que bem. Em centros de reabilitação de caráter geral
encontramos, via de regra, todos os profissionais e serviços usualmente requeridos. Na
verdade, há vários serviços que são óbvios em termos de utilidade prática imediata, enquanto
que outros ainda permanecem como grandes dúvidas e são tolerados principalmente devido
ao fato de que sem eles a entidade passaria a ser mal conceituada ou, então, teria seus
convênios com organizações financiadoras cancelados. Essa seria uma das poucas razões
para manterem seu lugar ao sol.
- *Modelos de avaliação*
Não existe nenhum modelo de avaliação que seja adequado a todas as situações. Uma
avaliação que transmita a informação pura e simples da adequacidade ou da impropriedade
de uma atividade num centro de reabilitação, além de quase que infalivelmente inútil, acaba
sendo prejudicial trazendo em geral conseqüências indesejáveis. Assim sendo, é
aconselhável que o modelo de avaliação adotado e os avaliadores (que devem ser
profissionais de alto gabarito e grande vivência de reabilitação) tenham muito mais a dizer e
a sugerir do que simplesmente relatar que a atividade está ou não atingindo seus objetivos
parcial ou integralmente. A avaliação precisa contribuir com os tipos de dados que dêem aos
diretores de um centro de reabilitação a possibilidade de fazer suas opções dentro do
contexto em que atuam. Tais considerações a respeito de avaliação podem, evidentemente,
ser aplicáveis a programas gerais de reabilitação ou a centros de reabilitação como
empreendimento isolado, e também a entidades sociais afins.
- *Sistemas de avaliação*
Não é fácil nem prático indicar qual seria o melhor sistema para avaliar um centro de
reabilitação. Dentre alguns dos sistemas reconhecidos pelos estudiosos do assunto o mais
aplicável poderá ser, em nossa opinião, o do claro estabelecimento do grau de
responsabilidade perante seus "públicos". Verifiquemos então, qual o grau de
responsabilidade de um centro de reabilitação perante seus públicos, e quais seriam esses
públicos.
Há diferentes tipos de "público" para um centro de reabilitação:
a) O "público" em geral ou seja, os componentes da comunidade onde o centro atua, a
sociedade da qual faz parte. Embora entre nós, brasileiros, esse tipo de responsabilidade seja
um tanto relativa e bastante diluída (indefinida talvez seja o melhor termo) e as entidades
sociais não a sintam nem se preocupem com ela, é ela de considerável importância. O que
sucede no Brasil é que as entidades sociais acham que pelo simples fato de existirem já
fazem muito. Entretanto, a comunidade merece uma atenção, e esse tipo de responsabilidade
precisa ser gradativamente bem estabelecido e enfatizado. As equipes de profissionais que
trabalham em centros de reabilitação precisam se voltar para ela e ficar alertas a esse
respeito.
b) O "público" financiador - é aquele do qual provém o numerário destinado à cobertura
das despesas de todos os gêneros, ao desenvolvimento dos programas, à construção ou
reformas. Pode ser o governo federal, estadual, ou municipal; pode ser o usuário que retribui
remunerativamente pelos serviços prestados; podem ser empresas participantes, entidades
conveniadas, doadores, sócios beneméritos. Seja qual for o público financiador, ele tem
direito a certa atenção e o centro tem definitivamente certo grau de responsabilidade para
com ele.
c) O "público" clientela - pode parecer espantoso para certos tipos de entidades
voluntárias dever satisfações ao público-clientela, pois muitas vezes encontramos
exatamente no seio delas as maiores distorções quanto aos princípios básicos de sua atuação.
No entanto, por não acreditarmos em reabilitação a não ser que seja sedimentada nos
princípios de respeitabilidade, dignidade e potencialidade do ser humano, achamos tal tipo
de posicionamento muito correto. A clientela tem direito aos serviços de um certo padrão.
d) O "público" das famílias da clientela - O centro de reabilitação tem uma séria
responsabilidade para com as famílias dos clientes, não apenas nos casos de crianças como
também de adultos das mais variadas idades. O "modus fasciendi" brasileiro coloca as
entidades sociais e médicas num pedestal inatingível, inquestionável. No entanto, as famílias
dos clientes de um centro de reabilitação merecem consideração e respeito e assim devem
ser tratadas. O grau de responsabilidade de um centro para com as famílias pode ser
facilmente delineado.
e) O "público" das entidades - Sejam essas entidades conveniadas ou não, que usam os
serviços do centro, para ele encaminhando casos ou dele recebendo encaminhamentos,
também merecem respeito, havendo inquestionável grau de responsabilidade para com elas.