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P A R A E N T E N D E R

ÍNDICE

Introdução........................................................... 5
Pietistas e ilustrados ........................................... 9
Fundamentalismo Pietismo ........................................................ 9
Ilustração ..................................................... 28
Século XIX ....................................................... 45
Século longo ............................................... 45
Revolução Francesa .................................... 47
Da Revolução ao Congresso de Viena ........ 52
Martin N. Dreher Estado e igreja na Prússia ........................... 53
Questão social ............................................. 54
Catolicismo romano .................................... 58
Pio IX e o Concílio Vaticano I (1869-70)... 60
Kulturkämpfe juramento antimodernista......... 61
Teologia no século XIX .................................... 65
Schleiermacher............................................ 65
Reavivamento ............................................. 68
Teologia protestante .................................... 70
Teologia liberal ........................................... 74
Fundamentalismo ............................................. 81
Leituras complementares .................................. 95

São Leopoldo
Sinodal
2006
Pgs 5 a 8 para justificar seus atos, que a maioria chama de loucura. Muitas vezes (na
INTRODUÇÃO maioria das vezes?), quando procuramos argumentos para definir nossos
fundamentos, procuramos por inimigos. Os proprietários e os acionistas da
"Você é fundamentalista?" Se a pergunta fosse dirigida a nós, indústria de armamentos precisam de argumentos para dizer que são
certamente responderíamos com um sonoro "não". 0 conceito fundamentais. Então o bom passa a ser mau, e o mau passa a ser bom. Quando
fundamentalismo tem sua origem na palavra fundamento. Não há casa que Saddam Hussein usou armas químicas contra curdos e iranianos era bom, e
possa ser construída sem fundamento, não há argumento que possa ser boas eram as armas químicas. Quando passou a criticar os fornecedores dessas
formulado sem fundamentos, não há existência humana sem fundamento. Por mesmas armas, passou a ser mau, e más eram as armas químicas. Bom era
esse último aspecto, somos todos fundamentalistas, pois todos necessitamos Osama Bin Laden no tempo em que, em Hollywood, se filmava Rambo 3. Então
de fundamentos, de alicerces para a nossa existência, e quem desistir deles os afegãos muçulmanos eram bons. Nas palavras de Ronald Reagan, eram
estará desistindo de si mesmo. Porém o trágico das formulações de nossos dias heróis semelhantes aos pais fundadores dos Estados Unidos da América do
é que "fundamentalistas" são sempre os outros, jamais nós próprios. Norte. Treze anos depois, são maus. Em 11 de setembro de 1973, 28 anos
É bom lembrar que a palavra "fundamentalismo" tem sua origem no antes de 11 de setembro de 2001, o palácio presidencial de Santiago de Chile
Ocidente cristão e é fruto e decorrência do que se convencionou chamar de ardeu em chamas e o presidente Salvador Allende foi assassinado. 0 ato foi
Modernidade. Os maiores fundamentalismos encontram-se no Ocidente. Foram considerado bom, pois, segundo Henry Kissinger, o país "se havia tornado
gestados aqui em oposição à Ilustração1 e ao liberalismo2 e são filhos diletos marxista em decorrência da irresponsabilidade de seu povo". Todos os
do Romantismo1. Na época do Romantismo, contemporâneo do colonialismo fundamentalistas se parecem: os religiosos e os do mercado. Os religiosos
do século XIX e da primeira metade do século XX, o fundamentalismo foi porque vivem dos dogmas da fé; os do mercado porque, para eles, o mais
exportado para os continentes colonizados pelas potências do Atlântico Norte. importante são as leis que regem a compra e a venda de seus produtos.
A temática do fundamentalismo voltou a ser atual após os Desprezam vidas humanas. 0 trágico é que, enquanto desprezam vidas
acontecimentos de 11 de setembro de 2001, quando aviões foram lançados humanas, fazem-no em nome da Verdade Única. As crueldades do movimento
intencionalmente contra o coração financeiro norte-americano em Nova guerrilheiro Sendero Luminoso, no Peru, prepararam as crueldades do
Iorque e contra o coração militar norte-americano, o Pentágono, em presidente Fujimori. As atrocidades do Oriente Médio prepararam as atro-
Washington. Fundamentalistas islâmicos foram acusados de ser os autores do cidades do terrorismo feito em nome de Alá. Não é Alá quem comete os
atentado. crimes feitos em seu nome. Não foi Deus quem encomendou aos nazistas o
As pessoas que planejaram os ataques suicidas de Nova Iorque e holocausto judeu; não foi Deus quem encomendou a expulsão dos palestinos
Washington certamente estavam convencidas de que faziam isso em nome da de suas terras. 0 maniqueísmo do olho por olho e dente por dente deixa o
luta do bem contra o mal. Essa sua convicção é chamada de maniqueísmo2, mundo cego, sem olhos e desdentado. Depois que as vacas ficaram loucas, os
típico das pessoas que não vislumbram mais o arco-íris, mas só vêem preto e seres humanos enlouqueceram. Os seres humanos criaram um sistema que
branco, luz e trevas... Seus argumentos não precisam ter sido religiosos. Os provoca loucuras em nome da Verdade Única.
argumentos do presidente Bush ao jurar vingança foram semelhantes: "Vamos É nesse contexto que procuramos acompanhar a gênese do
eliminar o mal deste mundo". Bush não fez suas colocações forçosamente a fundamentalismo. Fazemo-lo no contexto da Modernidade, dos anos que
partir de convicções religiosas. Nossos fundamentais não são necessariamente começam no século XVII e dos quais alguns afirmam que estariam chegando a
religiosos. Não são apenas fanáticos religiosos que precisam de argumentos seu final. Será? Para o leitor poderá parecer que privilegiamos pensadores
protestantes. No entanto, é bom lembrar que desde o século XVI houve
1 Movimento que substituiu a Ilustração e os antigos modelos clássicos, procurando situar a existência humana num todo que
progressiva hegemonia do pensamento protestante no Ocidente, mesmo que o
envolvesse céus e terra. Daí que privilegiou os mitos da Antigüidade, da Idade Média e, não raro, da Reforma, culminando, fato tenha tido poucos reflexos no Brasil.
muitas vezes, num movimento de Restauração de valores poéticos, religiosos e políticos.
2 Doutrina desenvolvida pelo persa Mani (século III), segundo o qual o universo foi criado e está dominado por dois princípios

antagônicos: Deus e diabo. Por isso só há dois princípios opostos: bem e mal.
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vocou mudanças na teologia e na igreja. Não ficou restrito a um país ou a uma
PIETISTAS E ILUSTRADOS
denominação. Talvez o pietismo seja o primeiro movimento transconfessional,
nome usado para descrever movimentos que perpassam as denominações,
Duas formas de pensamento moldaram-nos no Ocidente mais do que igrejas e grupos religiosos.
possamos imaginar e fizeram com que alguns se considerassem piedosos Nem o pietismo tampouco a Ilustração podem ser compreendidos sem
enquanto julgavam os outros ilustrados; os outros, os ilustrados, consideravam se conhecer o contexto de seu nascedouro no século XVII. Ao acentuar o
os demais pietistas. individualismo e a espiritualização da fé, o pietismo procurou superar o
confessionalismo3, representante de uma religião fossilizada, da "pura e reta
Pietismo doutrina", ao qual julgava estéril em conseqüência das discussões teológicas
dogmáticas, do acento das hierarquias, sem nada fazer contra a frouxidão
Pietismo e Ilustração são as duas faces de uma mesma moeda, cunhada ética. Acentuou a teologia da experiência da fé contra a teologia do mero
para um o período da história do Ocidente marcado pelo cristianismo. Trata-se conhecimento. Lutou pela regeneração pessoal contra a preocupação com o
do período que se convencionou chamar de Modernidade. Nele há numerosos dogma correto, que levava a controvérsias nada edificantes. O desespero de
indicadores religiosos, políticos, sociais e intelectuais apontando para um um dos precursores do pietismo, ChristianHoburg{\607'-1675), com a situação do
novo espírito. Se perguntarmos por anos, devemos situar-nos entre a Paz da confessionalismo expressa-se nas palavras: "Justificação é ficção;
Westfália, em 1648, e o ano de 1806, quando chegou a seu final o Sacro renascimento é fato". Criticava com essa afirmação os teólogos da época, que
Império Romano Germânico, iniciado em tempos medievais. No início do viviam reproduzindo a tese de Lutero (1483-1546) de que o ser humano é
período, situamos um teólogo, Felipe Jacó Spener; em seu final, encontramos um "justificado pela fé", sem tirar dessa tese conseqüências práticas para o
filósofo: Immanuel Kant. Em 1675, Spener publicou um livreto: Pia Desidéria cotidiano do cristão. Por isso os pietistas foram incansáveis em afirmar o
(Desejos Piedosos); em 1793, Kant publicou A Religião nos Limites da Razão Pura. pecado pessoal, a conversão provocada pelo Espírito Santo e a manifestação
Politicamente, no início do período, chegou a seu auge na França de desse acontecimento em vida santificada. Houve períodos em que o destaque
Luís XIV (1643-1715) o absolutismo. A política de então era pragmática, dado à vida santificada era um chamado à perfeição, pois, se a relação íntima
racional, centrada em cortes, funcionários públicos e exércitos permanentes. O com Deus não culminasse em santificação, em vida santificada, a fé seria mera
governo era feito a partir de critérios de política que dispensavam, cons- aparência. Então surgiu nos meios pietistas uma série de frases de efeito, nas
cientemente, aspectos ético-religiosos. O novo espírito político estava quais se dizia que "vida é melhor do que doutrina", "religião é questão de
caracterizado por homens como Thomas Hobbes (1588-1679), NiccolòMachiavelliX coração e não de cabeça", "tornar-se não ser" etc. Além disso, acentuava-se a
1469-1527) e Jean Armand duPlessisdeRichelieu{\585-1642). Guerras religiosas ha- internalização da fé contra a exteriorização representada por pia batismal,
viam devastado a sociedade. Verdades haviam sido colocadas contra verdades; púlpito, confessionário e altar. Ao acentuarem aspectos da Reforma radical do
algumas eram católicas, outras eram protestantes. Famílias inteiras haviam século XVI, que fora combatida a ferro e fogo por católicos e por protestantes,
sido destruídas, restando apenas indivíduos. Era necessário reconstruir. No os pietistas entendiam-se como uma continuação da Reforma religiosa do
processo de reconstrução, a igreja teve um papel importante e com ele século XVI, movimento que dera origem a luteranos, calvinistas e católico-
surgiram o pietismo e a Ilustração. romanos tridentinos. No século XVI, os reformadores radicais, conhecidos por
O pietismo e a Ilustração são irmãos, sendo o mais velho deles o sua negação ao batismo de crianças, pelo destaque que davam à liberdade de
pietismo, que surgiu no século XVII e explodiu no século XIX. Ele acentuou e consciência, à separação de igreja e Estado e à necessidade de reforma social,
acelerou a individualização e a interiorização da vida religiosa, desenvolvendo tiveram suas idéias sufocadas. Estas retornavam no movimento pietista.
novas formas de piedade pessoal e de vida em sociedade. Além disso, pro 3 Conceito que designa a acentuação unilateral de determinado credo, tido como regra para a teologia e para a vida religiosa

ou cultural. As peculiaridades são consideradas básicas, buscando-se impô-las aos demais.


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Segundo os pietistas, no século XVI somente a doutrina fora reformada. dado ao "sentimento" vem do pietismo. Lutando contra o que designava de
Importava, agora, reformar a vida. deturpação do verdadeiro cristianismo, o pietismo foi o maior dos preparadores
Vejamos algumas das características do pietismo. 0 ideal de perfeição, da Modernidade.
já mencionado, dever-se-ia manifestar em renovação espiritual e ética. Ambas Vejamos alguns líderes pietistas:
estão centradas no indivíduo. Em razão desse acento, houve alteração no
conceito de igreja: os reformadores protestantes haviam acentuado o lado Felipe Jacó Spener (1635-1705)
"objetivo" da igreja - a palavra e os sacramentos. Neles se tem a verdadeira
igreja. Já o pietismo acentuou o lado "subjetivo": a congregação, a Spener recebeu profundas influências de JohannArndt (1555-1621), um
comunidade. A igreja é, então, uma associação de pessoas regeneradas ou luterano ortodoxo que, por sua vez, recebera influências da mística medieval.
renovadas. Com isso foi estimulada a tendência ao separatismo e à formação De sua lavra são as obras Quatro Livros sobre o verdadeiro Cristianismo (1605) e O
de conventículos, designados de ecclesiola in ecclesiae (a igrejinha na igreja). Pequeno Jardim do Paraíso (1610). Se observarmos o conteúdo desses e de outros
Como a igreja centrada em palavra e sacramento estava ligada ao Estado, escritos de Arndt, verificaremos que esse autor dá destaque à conversão, à unidade
muitas vezes surgiu entre pietistas o acento radical na concepção da separação com Cristo, à vida santificada, centrada no morrer para o mundo e para si mesmo e
entre igreja e Estado. 0 acento na renovação ética gerou uma série de no viveria. Deus. Seus escritos foram muito populares. Em 1675, os Quatro Livros
iniciativas para a renovação da sociedade. Como, no entanto, o pietismo sobre o Verdadeiro Cristianismo já haviam tido mais de cinqüenta edições e haviam
acentuava a necessidade de renovação do indivíduo, a tônica sempre foi que a sido traduzidos para quase todas as línguas européias. Além de Arndt, Spener
renovação da sociedade dependia da renovação do indivíduo. Com isso, as teve influências do puritano inglês Lewis Bayly. Quando de seus estudos teológi-
propostas de reforma social jamais foram além de obras de caridade, cos em Estrasburgo, leu Lutero e, posteriormente, Jean de Labadie{\ 610-167'4),
individuais ou na forma de associações livres. Finalmente, ao criticar o que calvinista e iniciador de um movimento de piedade separatista nos Países
chamava de formalismo da ortodoxia, o pietismo acentuou a recepção do Baixos. Já em Tübingen, leu e discutiu a obra de TheophilGrossgebauer{ 1627-
Espírito Santo e a experiência religiosa, questões que retornam em nossos dias 1661), Voz do atalaia de Sião, na qual o autor lamentava a falta de acento no novo
em movimentos pentecostais ou carismáticos. Com o tempo, porém, viu-se nascimento na teologia ortodoxa contemporânea. Além disso, criticou a
confrontado com a pergunta: Como separar o Espírito de outros "espíritos"? prática do Batismo de infantes e exigiu uma experiência de conversão, da qual
Felipe Jacó Spener já propusera o uso da razão para tal. Foi isso que o se pudesse apresentar dia e hora. Em 1664, Spener tornou-se doutor em
pietismo acabou fazendo. Assim encontramos no pietismo as raízes do Teologia pela Universidade de Estrasburgo e, desde 1666, pastor em Frankfurt
incipiente racionalismo. sobre o Meno. Ali destacou-se no aconselhamento pastoral, na catequese e na
Se observarmos essa última questão e a juntarmos aos demais aspectos pregação. Desde 1670, reunia pessoas nos collegia pietatis (colégios de piedade),
que já enumeramos, poderemos constatar facilmente que o pietismo é a outra nos quais se discutiam o sermão dominical, literatura edificante e a renovação
face da Ilustração e do racionalismo. 0 ilustrado ou ilustre, aquela pessoa que da igreja.
confia no progresso, na razão, que desafia a tradição e reivindica liberdade de Em 1675, Spener redigiu Desejos Piedosos ou Sinceros Desejos de uma Reforma da
pensamento, não precisa deixar de ser pietista, nem um pietista precisa Verdadeira Igreja Evangélica, obra também conhecida pela formulação latina Pia
renunciar à Ilustração. Por isso o pietismo acentuou a educação; em Desidéria. Esta obra servia de prefácio a uma reedição do sermonário de Arndt
conseqüência, não foi por acaso que importantes figuras da Modernidade se sobre os evangelhos.
originaram no pietismo. Basta citar os nomes de pensadores e poetas alemães Pia Desidéria apresenta um diagnóstico das condições corrompidas da
como Lessing, Kant, Schiller, Goethe, Fichte e Schleiermacher. Friedrich Daniel igreja em sua acepção protestante, anuncia um futuro melhor para a igreja a
Schleiermacher (1768-1834), denominado de "Pai do Protestantismo Liberal", partir da conversão dos judeus e da queda de Roma. Além disso, oferece um
baseou sua teologia no "sentimento de dependência absoluta". Ora, o destaque programa de seis pontos para uma reforma da igreja: 1 - estudo ediscussão de
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toda a Bíblia, em associações paralelas ao culto da comunidade; 2 - e às línguas orientais. Após o mestrado em Filosofia, fundou em Leipzig um
concretização do sacerdócio de todos os crentes por meio do estudo da Bíblia, Collegium philobiblicum, no qual era feita exegese bíblica com critérios científico-
ensino, repreensão, consolo e vida santificada; 3 - exortação a clérigos e a filológicos. Quando preparava, em 1667, uma pregação a respeito de João
leigos para que passem de um mero conhecimento da doutrina para uma 20.31 -"Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo,
prática da fé; 4 - redução das controvérsias e debates teológicos e o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome" -, descobriu
confessionais, passando a haver santidade de vida; 5 - reforma do estudo que não possuía fé. Tinha conhecimento teológico, mas seu coração estava
teológico como forma de renovação da igreja; 6 - centrar a pregação na vazio. Essa crise veio acompanhada do desejo de ser libertado das dúvidas.
edificação. Ajoelhou-se, orou e foi ouvido. Escreveu a esse respeito:
Spener produziu seus textos após a Guerra dos Trinta Anos. A oposição Pois assim como se vira uma mão, assim haviam desaparecido minhas
entre mundo e salvação era tão grande, que só poderia vir a ser superada por dúvidas. Em meu coração eu tinha a certeza da graça de Deus em
um novo nascimento, por um evento que deveria ser provocado por Deus. 0 Cristo. Pude chamar a Deus não só de Deus, mas de meu pai. De uma
novo nascimento foi um aspecto que influenciou toda a teologia do pietismo e vez, a tristeza e o desassossego do coração foram tomados; eu, porém,
foi ponto de partida para o perfeccionismo. Ecos donatistas4 fizeram-se fui cumulado com uma torrente de alegria, de modo que, com coragem,
presentes quando foi afirmado que somente aquele que é um cristão louvei e dei glória a Deus, que me demonstrara tal piedade.
verdadeiro pode levar outros à fé. Mas apareceu também uma forte tendência
ecumênica quando foi acentuada a primazia da vida renascida sobre a
Essas palavras de Francke foram citadas muitas vezes e são tidas como
doutrina. A unidade da igreja não estaria mais dada na doutrina, mas no estilo
um modelo de "conversões pietistas". A conversão, ou o novo nascimento,
de vida. Por isso os pietistas passaram a ler a Bíblia como uma ata da vida da
passou a ser o centro do aconselhamento pastoral pietista. Em Leipzig,
igreja antiga e não mais como um compêndio de doutrina. Havia interesse por
Francke começou a criar círculos de piedade. Sua atividade provocou
História e Biografia.
escândalo na Universidade, que lhe proibiu a docência. A ortodoxia luterana
O que isso tem a ver com a Ilustração? Na Ilustração, encontramos os
voltou-se com todo o vigor contra o grupo de "entusiastas"5 que começava a
ecos do pietismo: ênfase na ética, ênfase no indivíduo sobre o comunitário,
surgir na Alemanha. Talvez o pietismo teria se transformado em uma seita se
ênfase na Antropologia sobre a Teologia, ênfase na história e na natureza
o Estado prussiano não se tivesse adonado dele. A Prússia estava em luta com
como lugar de revelação.
a ortodoxia luterana; nessa luta, o pietismo poderia servir-lhe de aliado. Foi o
que a Prússia fez. Chamou Spener para ser pastor em Berlim e convocou
August Hermann Francke (1663-1727) Francke para ser professor na Universidade de Halle e, ao mesmo tempo,
pastor em Glaucha, perto de Halle.
Em 1694, o pietismo recebeu um impulso decisivo com a criação da Em Glaucha, Francke logo criou uma escola para pobres, em regime de
Universidade de Halle. Nela desenvolveu-se toda uma teologia pietista. Em internato. A partir dessa escola surgiu uma série de instituições dedicadas à
Halle, atuou o homem que podemos denominar de "Pai do Pietismo pobreza. Nela criou a primeira escola de formação de professores dos tempos
Prussiano": August Hermann Francke. Natural de Lübeck, Francke estudou modernos. A base de todas as instituições que Francke viria a criar foi a idéia
Teologia e foi influenciado pelos escritos de Arndt. Durante o curso teológico, de que era necessária uma reforma de todas as condições de vida do ser
dedicou-se a um estudo intensivo da Bíblia. Complementou sua formação com humano. Por trás dessa idéia estava uma visão social do mundo que tem suas
estudos no campo da Filologia, especialmente dedicando-se às línguas antigas raízes na convicção de que o reino de Deus tem uma ação eficaz entre os seres

4 Designação de tendência existente no cristianismo que tem sua origem no século IV em Cartago, no Norte da África. Ali o 5 O conceito, originário do século XVI, designa aqueles cristãos que não aceitavam nem a autoridade papal tampouco a

bispo Donato exigia rigorismo na vida cristã, negando-se a reconhecer como válidas as atividades ministeriais de sacerdotes autoridade da Bíblia, mas apenas a iluminação, recebida diretamente do Espírito Santo. Entre os principais representantes
e bispos de mau-caráter. dos entusiastas está Tomás Müntzer.
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humanos: o ser humano é um indivíduo chamado por Deus para o serviço ao daí, passou a afirmar que todas as tentativas de comprovar religião a partir de
próximo. "provas" da existência de Deus ou a partir de uma "teologia natural" são
Para manter suas instituições, Francke criou uma farmácia e uma falhas. Religião e pensamento racional pertencem a níveis distintos. Por isso
livraria. A farmácia veio a ter renome internacional. Tanto a escola como a chegou à formulação: Quem tem Deus na cabeça é um ateu. Entre essas pessoas atéias
farmácia e a livraria foram apenas algumas dentre as inúmeras atividades de situava tanto os racionalistas como os luteranos ortodoxos. A religião cristã é
Francke. Devemos acrescentar aqui os primórdios da missão no sul da índia, religião do coração; não se baseia na razão, mas na relação pessoal'com o
em Tranquebar, atividade desenvolvida pelo Estado dinamarquês, para a qual salvador: Sem Jesus eu seria ateu. Não é difícil afirmar que entre os herdeiros de
forneceu os primeiros missionários. Além disso, Francke fundou em Halle a Zinzendorf vamos encontrar Schleiermacher, de quem já falamos, Nietzsche
primeira sociedade bíblica alemã (1710) juntamente com Carl Hildebrand von (1844-1900), filósofo e pregador ético que ataca os valores da sociedade
Canstein (1667-1719). Por meio dessa atividade, a Bíblia veio a se tornar burguesa, e Bultmann (1884-1976), teólogo que defendeu uma leitura
realmente popular. Reduzindo os custos de impressão, conseguiu-se distribuir existencial da Bíblia ao mesmo tempo em que exigia a demitologização de seu
mais de dois milhões de Bíblias somente no século XVIII. Em seu todo, texto.
porém, o pietismo de Francke ficou restrito à Prússia. Ali criou um sócialismo Desde 1721 a serviço do governo da Saxônia, Zinzendorf recebeu a
peculiar. Teologicamente, continuou a acentuar a doutrina luterana da oferta incumbência de zelar pelo bem-estar dos refugiados protestantes expulsos dos
da graça a todos os seres humanos, aprofundando-a, porém, com a exigência territórios dos Habsburgos. No ano seguinte, em 1722, permitiu que refugia-
de uma conversão pessoal. A comprovação dessa conversão era feita mediante dos morávios se estabelecessem em sua propriedade -Herrnhut. 0 grupo logo foi
um compromisso de dedicação em favor do próximo. acrescido de outros grupos religiosos, como seguidores de Caspar
A maior contribuição de Francke para o protestantismo moderno está no Schwenckfeld (1489-1561), pietistas, separatistas, luteranos e calvinistas. Em
fato de haver substituído a dogmática confessional pela prática cristã. Colocou 13 de agosto de 1727, segundo tradição do grupo, essa comunidade de
a Bíblia no centro da experiência religiosa, e a conversão datável recebeu nele diferentes experimentou o que chamou de "novo pentecostes", novo
maior importância do que a autoridade tradicional. Temos aqui o acento no nascimento.
ponto de vista antropológico-psicológico tão importante para a Ilustração. No ano de 1727, Zinzendorf elaborou uma constituição para o grupo.
Foi tomado como exemplo o modelo da comunidade primitiva, mas também
Nicolau Luís, Conde de Zinzendorf, e a Comunidade Morávia tradições dos irmãos boêmios. Além disso, todos subscreveram a Confissão de
Augs-burgo7. Foram estabelecidas novas formas de celebração e de devoção,
Herdeiros do cristianismo dissidente do período medieval, os morávios6 nas quais também havia o lava-pés, ágapes, a meditação diária sobre uma
tiveram seu movimento revitalizado e reorientado pelo Conde Nicolau Luís de palavra bíblica ou sobre alguma estrofe do livro de cânticos. Dessa tradição
Zinzendorf (1700-1760). Zinzendorf cresceu sob a influência de Arndt e originaram-se as Senhas Diárias, ainda largamente em uso.
Spener, pastor que o batizou. Ainda quando jovem, teve a certeza de que O pietismo de Herrnhut ficou conhecido por sua atividade missionária.
colocaria sua vida a serviço de Jesus. De 1710 a 1716, freqüentou a escola de Em 1760, já havia mais de duzentos missionários de Herrnhut atuando mundo
Francke, em Halle, e foi permanentemente influenciado pelo fervor afora. Impressionante é sua intervenção em favor dos mais humildes, como
missionário do pietismo dessa cidade. Em Wittenberg, cursou Direito. Depois, nos revela sua interferência na possessão dinamarquesa de Saint Thomas, no
viajou pela Europa e deparou-se com os primórdios da Ilustração, com o Caribe. Ali, missionários viveram em quilombos e deixaram-se reduzir à
calvinismo e o jansenismo. Do encontro com o racionalismo chegou à escravidão, como no caso de Friedrich Martin. Este, ao casar com uma negra
conclusão de que a inclinação natural do ser humano é pelo ateísmo. A partir chamada Cristina Rebekka, perdeu seus direitos civis, passando por sérias di

6Os morávios são um grupo cristão dissidente que tem suas origens em João Huss, professor da Universidade de Praga,
condenado à morte na fogueira pelo Concílio de Constança em 1415. 7 Credo apresentado por príncipes e cidades luteranas, em 1530, ao imperador Carlos V, em Augsburgo, na Alemanha.
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ficuldades juntamente com a comunidade de escravos negros. Zinzendorf e arte deixaram, progressivamente, de ser parte da civilização eclesial e
interveio no caso, dirigindo-se a Saint Thomas, onde, ao beijar a mão da buscaram novos parâmetros na vida das pessoas e da sociedade. Até a música,
escrava Cristina Rebekka, na presença de oficiais dinamarqueses, reconheceu como podemos notar na barroca, emigrou do templo para a sala de concertos.
sua dignidade. Depois foi à Dinamarca, onde entregou uma petição de Começou a estabelecer-se um pluralismo de religião, de modos de vida, de
escravos ao rei. Não foi pedido o final da escravidão; apenas a melhoria das concepção de vida. Havia muitos aspectos e âmbitos não-cristãos, nos quais
condições. No Brasil, o regente Diogo Antônio Feijó solicitou aos morávios, cristãos deveriam viver.
no século XIX, que iniciassem uma missão entre populações indígenas. 0 Com a internalização da fé e sua individualização, o pietismo facilitou a
pedido não foi atendido. vida de muitos cristãos. A cultura poderse-ia desenvolver ou fragmentar, mas
Herrnhut e as povoações semelhantes a ela, surgidas em anos posteriores, a vida cristã seria possível por meio da apropriação pessoal de verdade
foram obras de leigos. Sua constituição estava totalmente determinada pelo religiosa, de devoção e de disciplina pessoal. Determinadas esferas da vida
espírito do reavivamento. Por vezes, surgiram aqui algumas aberrações, o que, passaram a ser vistas como particularmente religiosas. 0 resto da vida seria
no entanto, não diminuiu o valor da obra, que deve ser vista no contexto do secular. Quem mais se alegrou com essa possibilidade foram os ilustrados.
mundo barroco. Zinzendorf sabia que ele e seus colaboradores tinham suas
fraquezas; por isso não podemos encontrar em sua obra nada daquele pietismo Sagrado Coração de Jesus
vulgar com suas estreitezas burguesas. Daí que ele pôde afirmar em certa
oportunidade: 0 que descrevemos como pietismo não é propriedade do protestantismo.
Os filhos de Deus muitas vezes não têm uma moral tão perfeita como Trata-se de um sentimento que perpassa as diferentes confissões religiosas. É
as pessoas do mundo; eles não têm ambições heróicas de virtude e não verdade que em cada uma delas vamos encontrar características peculiares.
buscam nenhuma forma superior de humanidade. Neles se evidencia Por isso falamos em movimentos transconfessionais. Assim vamos encontrar
aquilo que está no coração. Eles não querem ser mais do que são: características do pietismo presentes no catolicismo romano. É importante
pecadores agraciados. lembrar esse aspecto, pois pessoas que vivem numa mesma época recebem
Herrnhut não teve vida fácil. Houve denúncias, Perseguições, sendo o influências mútuas. Zinzendorf desenvolveu, por exemplo, um culto místico à
próprio Zinzendorf expulso por duas vezes do território. Mas tudo isso não chaga do Salvador, provocada pela lança do soldado romano. Esse culto tem
impediu que Herrnhut viesse a assumir o papel de fermento no seio do profunda semelhança com o culto contemporâneo, mais tarde trazido para as
protestantismo alemão. A teologia de Zinzendorf e de Herrnhut era o Salva- Américas por europeus piedosos: o culto ao Sagrado Coração de Jesus.
dor. Muito do que ele afirmou recebe hoje novos leitores. Outros aspectos A expressão coração de Jesus t a devoção do sagrado coração de Jesus tem,
foram esquecidos, com razão. Aqueles dentre os seus hinos que entraram nos através dos tempos, adquirido uma importância significativa entre os cristãos,
hinários protestantes fazem hoje parte de um tesouro inestimável da igreja. tomando como ponto de partida as passagens neotestamentárias de Mateus,
Nesse contexto, vale dizer que a comunidade de Herrnhut foi uma comunidade João e Paulo (Mt 11.29; Jo 19.32 e Fp 2.8). Mesmo que a interpretação dessas
cantante. passagens tenha variado ao longo dos tempos, elas oferecem-nos uma bela
Com Herrnhut atingimos um estágio do pietismo que corrobora o que oportunidade de estudar o surgimento e o desenvolvimento histórico da prática
até aqui dissemos a respeito desse movimento. Ele rompeu com a aridez da devocional, que vai desde a mera referência até as devocionais e a veneração
ortodoxia e do confessio-nalismo, mas também foi uma resposta à situação litúrgica.
cultural mais ampla. No século XVII, buscou-se reinstalar o antigo conceito Na patrística10, encontramos referências ocasionais ao coração de Jesus
do corpo cristão, da cristandade. Mas isso não era mais possível depois da em Justino, Agostinho e Paulino de Nola. A partir do século XII desenvolveu-
Reforma e da Guerra dos Trinta Anos. 0 Estado e a cultura haviam se se, no contexto da mística alemã, um culto de caráter votivo e devocional,
emancipado da religião. Estado, direito, comércio, ciência, filosofia, literatura especialmente em conventos femininos. Nesses conventos, o coração de Jesus,
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envolto pela coroa de espinhos, passou a ocupar o centro da mística da paixão. Ilustração
Ocorreu então o surgimento de orações ao coração de Jesus. Passou-se a pintar e a
imprimir miniaturas do coração de Jesus, geralmente traspassado e A Ilustração funcionou como eco e deu destaque a muitas ênfases
apresentado ao lado dos outros três estigmas de Cristo. Devocionais de pietistas: orientação para o futuro, cristianismo não-dogmático, centralidade
carmelitas do século XV apresentam-nos o menino Jesus ora sentado no da experiência humana, leitura histórica da Bíblia. Mas houve também outros
coração traspassado, ora carregando o coração de Jesus para a cruz. fatores históricos fundamentais para o surgimento da Ilustração. As cidades
Em 1670, um discípulo da Companhia de Jesus, João Eudes, obteve autorização mercantis, enriquecidas, passaram a ter consciência de sua importância e
diocesana para celebrar a festa do coração de Jesus. A veneração do coração de passaram a valer-se de critérios racionais e não-religiosos em sua economia. 0
Jesus, porém, teve início com as visões de Maria Margarida Alacoque (1675-85). acento na experiência prática possibilitou o avanço da ciência e da tecnologia
Esta salesiana afirmava ter visto o coração de Jesus envolto em espinhos, por e do uso racional dos recursos da natureza. A reflexão pragmática e racional
amor, e o lamento de Jesus acerca da falta de gratidão e de desprezo de seu também se fez presente na análise de sociedade, política, direito e nas
amor. Por meio de seu confessor, La Colombière, os jesuítas tornaram-se constituições dos países.
promotores da moderna veneração do coração de Jesus, cujas raízes estão na Não se olhava mais para o passado com seus modelos clássicos, mas
França, produzindo também vasta literatura a seu respeito. 0 jansenismo e o para o futuro da humanidade. 0 ser humano seria capaz de tudo. Bastaria
racionalismo opuseram-se a ela. Roma negou-se, por três vezes, a conceder investir na educação. Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), filósofo e poeta
autorização à festa do coração de Jesus. Ela só foi concedida por Clemente alemão, expressou isso para os alemães em seu livro A Educação da Raça
XIII em 1765. Em 1794, o Sínodo de Pistóia manifestava-se contra ela. Em Humana;o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e pedagogo, em Emile
1899, Leão XIII elevou a festa à categoria de officium duptexóe primeira classe e ou Tratado sobre Educação, e o também suíço JohannHeinrichPestalozzi'(17'46-1827),
aprovou a ladainha do coração de Jesus. Enquanto, originalmente, a devoção pai da pedagogia moderna, fê-lo na sua obra Como Gertrudes Ensina seus Filhos. 0
estava mais determinada por elementos expiatórios, desde a encíclica que Francke iniciara em Halle teve continuidade nos centros de formação de
Miserentissimus redemptor, de Pio XI (1928), é ressaltada a temática do amor. professores.
A veneração do coração de Jesus também encontrou aceitação As experiências feitas na guerra de emancipação contra a Espanha
entre as denominações cristãs oriundas da Reforma do século XVI, sendo fizeram da Holanda um chão propício para a gestação do primeiro sistema
entendida como amor ao Deus encarnado. Diversos hinos cantados por filosófico moderno. Foi na Holanda que aportaram os intelectuais refugiados
luteranos e calvinistas dão testemunho disso. A mística proveniente de de toda a Europa, fazendo dela a primeira pátria da Ilustração. Ali, o filósofo
Bernardo de Claraval foi assumida pelos luteranos Paul Gerhardt e Nicolau de francês René Descartes (1596-1650), discípulo de jesuítas, colocou a dúvida
Zinzendorf e pelo calvinista Gerhard Tersteegen. No Brasil, a devoção do radical como princípio do conhecimento e do autoconhecimento: Cogito, ergosum
coração de Jesus encontrou seus principais difusores entre os sacerdotes da (Penso, logo sou). A Filosofia deixava de ser "serva da Teologia" para tornar-
Companhia de Jesus, mas também entre os frades capuchinhos franceses. se uma ciência autônoma, fundamentada em observações empíricas e em
princípios racionais.
Na Inglaterra, as discussões teológicas e confessionais levaram a pensar
que a razão era mais importante do que disputas religiosas. Daí resultou o

11
O deísmo opõe-se ao ateísmo e expressa crença no divino. Confessa Deus como criador do universo, na
condição de primeira causa de tudo o que existe, sem, no entanto, chamar esse Deus criador de Pai. Também não
procura relação pessoal com ele. Deus criou o mundo e os seres humanos, mas deixa
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deísmo" com proposições que buscavam um fundamento sólido para a religião, não é aceitável: os deuses primitivos nada mais são do que uma crassa
assim que qualquer pessoa pudesse aceitá-la e viver a partir dela. A proposta revelação antropomórfica; sua atuação cheia de falsidades e truques e sua falsa
era simples: 1 - existe um Deus; 2 - Deus deve ser servido; 3 - tal serviço moral nada refletem de senso comum.
acontece por meio de virtude e piedade e não do rito; 4 - deve-se deixar o erro A crítica derradeira à religião, feita por Hume, foi fatal: a religião só
de lado e fazer o bem; 5 - deve-se esperar recompensa divina aqui e no além. desvia a atenção do ser humano daquilo que realmente acontece na vida. Sua
Ela também podia se resumir a algumas palavras: 1 - Deus; 2 - liberdade preocupação com salvação é estreita e egoísta, apenas leva a debates e provoca
moral; 3 - imortalidade. Ou se podia afirmar com John Locke (1632-1704), rancores e perseguições. Com isso, Hume ousou afirmar que a religião não
filósofo inglês, que o cristianismo se baseia em tolerância, virtude e tem qualquer base ou fundamento. Ela baseia-se na fé, e fé não é nada.
moralidade. Na França, onde a igreja esteve profundamente ligada ao antigo
Quando os teólogos aplicaram os princípios deístas a seus sermões, estes regime8, foi profunda a inimizade entre religião e ilustrados. François-Marie
passaram a ser meros discursos morais: "A pessoa virtuosa se levanta cedo; Voltaire (1694-1778), típico representante da Ilustração francesa em sua
por isso as mulheres foram cedo ao sepulcro de Jesus na manhã da Páscoa. primeira frase, foi um dos pioneiros na luta pela liberdade de opinião, por tole-
Levantemo-nos cedo, sejamos virtuosos!". rância e por direitos humanos. Valeu-se de conceitos dos deístas ingleses,
Na tentativa de harmonizar razão e revelação, os deístas reduziram o como John Locke, para atacar a Igreja Católica Romana. Em poesia blasfemou
cristianismo ao que consideravam ser essencial nele. Houve um reducionismo contra a santa nacional, Joana D'Arc; em escritos rejeitou a teodicéia'3.
que, contudo, julgavam necessário em razão da crescente diversidade e plura- Durante quase três anos, viveu na corte de Frederico II o Grande, da Prússia.
lidade do cristão. Para eles, as verdades da fé jamais podem se opor à razão. Para Voltaire, Deus é um pressuposto importante para a preservação da moral,
Foi por isso que leram criticamente a Bíblia, vendo nela uma fonte para o dos bons costumes e ajuda a prevenir a anarquia. Por isso ele escreveu: "Se
estudo da história e da moralidade da Antigüidade. A Bíblia deixava de ser Deus não existisse, seria necessário inventá-lo". Com esta frase voltava-se
vista como testemunho a respeito da revelação na história. Submetidos à contra a nova geração de pensadores franceses que negava a existência de
razão, milagres, ressurreição e Trindade foram inacessíveis para ela e, em Deus.
decorrência, considerados inautênticos. Denis Diderot ( 1713-1784) e Jean d'Alembert{ 1717-1783) editaram, no
A crítica mais contundente à religião, mas também à glorificação da século XVIII, 35 volumes da Encyclopaedia, obra maior do racionalismo francês.
razão, foi feita por David Hume{ 1711-1776), outro filósofo inglês. Em seus Na Encyclopaedia está presente todo o fascínio relativo ao progresso das ciências
escritos, atacou os argumentos deístas que buscavam comprovar que o naturais: o progresso das ciências naturais e o crescente controle sobre a
cristianismo era racional. Se para os deístas a fé cristã era racional em função natureza trarão, no futuro, a eliminação das desigualdades entre as nações, a
dos milagres, da harmonia da natureza e do senso comum da humanidade, igualdade dos povos e a perfeição da humanidade. Esse otimismo se expressa
Hume fez uma crítica radical a essa argumentação. Dizia ele que milagre e em duas obras de Jean-JacquesRousseau-(1712-1778). Segundo ele, a pessoa é
harmonia da natureza se excluem. Se há harmonia, por que seriam necessários boa ao nascer, mas a sociedade, a cultura, o Estado e a religião a pervertem.
milagres? Além do mais, não há evidência histórica para o "senso comum" da No Contrato Social, apresentou, por isso, um ideal: o Estado baseado na ordem
humanidade. Milagres são contrários à experiência humana. A experiência natural de uma democracia, a cujo serviço está a religião civil. Em Émi/e,
humana é que, sempre de novo, existem falsos testemunhos acerca de apresentou o ideal de uma educação elementar racional de acordo com a
milagres. Milagres nada mais são do que auto-sugestão enganosa. Para Hume, natureza.
o conhecimento vem da experiência empírica. As verdades metafísicas e
teológicas não são lógicas nem derivadas, tampouco passíveis de teste na Ilustração alemã
experiência empírica. Quer dizer: verdade metafísica e verdade teológica são
lero-lero. Não há nada que as sustente. Também o argumento do senso comum
8 A expressão "antigo regime" refere-se à forma de governo monárquica existente na França antes da Revolução Francesa.
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A Ilustração alemã tem que ser tratada à parte da Ilustração no restante cristianismo. Jesus passou a ser o grande mestre da sabedoria e da
da Europa. Na Alemanha, a relação entre revelação e razão não está repleta de virtude, um precursor da Ilustração que quebrou as cadeias do erro. Cuidado:
tensões e de oposições assim como no restante da Europa. Antes se pode falar do erro, não do pecado!
aqui de uma relação de complementaridade. Pode-se também dizer que a Mas a Ilustração alemã não ficou só nisso. Houve também
Ilustração alemã não teve aquela postura crítico-destrutiva em relação à igreja, considerações críticas em relação à igreja. A principal delas veio de outro
tanto a católica como a protestante, que podemos encontrar na Inglaterra e na pensador alemão, Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), que publicou os
França. Há razões históricas e teológicas para a peculiaridade alemã. Na base Fragmentos Anônimos, também conhecidos como Fragmentos de Wolfenbüttel. Esses
das razões históricas está a Guerra dos Trinta Anos. Esta guerra impediu o Fragmentos são da autoria do alemão SamuelReimarus (1694-1768), partidário do
desenvolvimento dos territórios alemães, se comparado ao do restante da deísmo inglês e leitor crítico da Bíblia. Em seus textos, Reimarus faz
Europa. A divisão política, cultural e religiosa da região fez com que a observações críticas a respeito da autoria dos escritos bíblicos, aponta para
Ilustração alemã se desenvolvesse, basicamente, em territórios protestantes, contradições existentes nos evangelhos e levanta a tese de uma origem
em suas universidades e nas cortes. Quase todos os principais representantes fraudulenta do cristianismo. Este teria sua origem em uma grande fraude dos
da Ilustração alemã são, em conseqüência, professores universitários e grupos discípulos. Quando falira o messianismo político de Jesus, os discípulos
dirigentes do absolutismo esclarecido. Além disso, pietismo e Ilustração fabricaram a ressurreição para sobreviver a seu desapontamento e para ser
surgiram quase que simultaneamente nos territórios alemães. Os ataques do aceitos pelo mundo. Quando publicou os Fragmentos, Lessing pensou que estava
pietismo à ortodoxia prepararam o caminho para as sugestões práticas de desencadeando uma discussão construtiva acerca da essência do cristianismo.
reforma que seriam feitas pela Ilustração. 0 que aconteceu foram ataques sem fim contra ele. Em seu decurso, a
0 filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) é um exemplo para ortodoxia foi ridicularizada. Em contrapartida, a Teologia teve que
o que vínhamos dizendo. Ele buscou comprovar a compatibilidade entre fé e desenvolver o método histórico-crítico de leitura dos textos bíblicos, depois
razão, entre razão e revelação, entre Filosofia e Teologia, entre corpo e alma. eficazmente aplicado a todos os textos históricos.
Estes pares devem ser vistos em harmoniosa conexão. Para que haja essa Em dois escritos, o próprio Lessing nos dá conta de sua própria posição.
harmonia, é necessário que se distinga entre verdades eternas e verdades Trata-se de A Educação da Raça Humana, de 1780, e Nata, o Sábio, de 1779. Segundo
atuais. Das primeiras verdades fazem parte a geometria, a sabedoria, a Lessing, os testemunhos históricos acerca da revelação não produzem certeza
bondade e o poder de Deus. Nelas não há contradição entre revelação e razão, e garantias. As religiões históricas são estágios do divino processo de
pois para a razão essas verdades são conceitualmente necessárias. Mesmo que, educação, cujo objetivo é a verdadeira religião do amor e da razão. Na
dessa maneira, a revelação seja subordinada à razão e a Teologia à Filosofia, parábola do anel, de Natã, o Sábio, há três anéis. Dois são imitações perfeitas do
há uma ordem maior que pode irromper por intermédio das leis da natureza. autêntico. Como não conseguimos mais dizer qual é o anel autêntico, cada um
Leibniz também se aventurou no campo da teodicéia, que trata de dos três filhos - o cristão, o judeu e o islamita -deve viver como se o anel do
justificar Deus face ao mal que há no mundo, buscando tornar a questão da pai tivesse sido dado a ele. A verdade da religião verdadeira manifesta-se em
teodicéia plausível por meio da tese de que este nosso mundo é "o melhor de sua experiência e em sua prática.
todos os mundos possíveis". 0 mal está baseado no fato de que o ser finito é Na Ilustração alemã, mais e mais o cristianismo foi reduzido à
restrito. Contudo a razão reconhece o bem e o divino como estruturas moralidade. Tal redução atingiu seu auge em ImmanuelKant{ 1724-1804). Suas
essenciais do mundo. Vemos nessas formulações que Leibniz tem uma visão origens estão no pietismo. Com o apoio de seu pastor em Konigsberg (hoje:
otimista do mundo: pecado é apenas o bem imperfeito. Kaliningra-do), Kant ingressou aos oito anos em uma escola pietista. Nesta
Teólogos que acompanharam a reflexão de Leibniz buscaram apresentar escola, descobriu e viu-se confrontado com o aspecto mais negativo do
um cristianismo não-dogmático, mas ético. Aqueles que atuavam no pietismo: legalismo e hipocrisia. A partir das experiências feitas na escola
ministério da pregação buscavam apresentar uma interpretação socioética do pietista devem ser entendidos sua aversão à emoção religiosa e seu
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distanciamento de oração, cântico sacro e cultos religiosos. Seus estudos divina, que deve ser imitado pelas pessoas. Deus não desce ao ser humano; o
teológicos foram mínimos. Kant não tinha grande interesse na leitura de ser humano deve subir em direção a Deus. 0 ser humano é autônomo, e essa
teólogos contemporâneos. Sua principal obra teológica foi escrita aos setenta autonomia é destruída por aquilo que na fé cristã se denomina de graça. Se
anos: A Religião Dentro dos Limites da Simples Razão. Para escrevê-la, valeu-se de seu Deus perdoa, a humanidade não é livre. Kant alia-se a Pelágio, a Erasmo e a
velho catecismo. Este forneceu-lhe as lembranças do cristianismo, com as Armínio. Mas Kant não conseguiu resolver um problema: o que fazer com o
quais então discutiu. "mal radical"? Em sua radicalidade, o mal é irracional. 0 que fazer nesse caso
Kant lutou por autonomia, uma autonomia que é obediência à lei interna com a sola ratio, a razão pura? 0 próprio Kant complica sua visão otimista do ser
da razão. Isso fez dele o campeão da crítica. Tudo deve ser submetido à humano ao não resolver o problema do "mal radical".
crítica: "Ousa ser sábio!". Toda forma de heteronomia e teonomia imposta por
pais, sociedade, igreja ou Deus tem que ser criticada, submetida à crítica. A Ilustração e a Igreja Católica Romana
Inclusive a razão deve ser submetida à crítica, para que possa ter certeza de si
mesma.
A teologia católico-romana pouco se abriu à Ilustração. Viu-a mais
Kant pôs seu pensamento filosófico em três obras: Crítica da Razão Pura como uma destruição do cristianismo e da religião. Nas décadas que
(1781), Crítica da Razão Prática (1788) e Crítica do Juízo (1790). Na primeira, precederam a crise provocada pela Ilustração, a Igreja Católica Romana
discorreu sobre a validade e os limites do conhecimento; na segunda, falou da experimentou retrocessos em sua influência política, mas também no tocante à
natureza do bem; na terceira, abordou a estética. As distinções feitas por ele sua teologia.
entre "conhecimento", "vontade" e "sentimento" determinaram o pensamento Desde os dias de Luís XIV (1638-1715), o catolicismo tinha
teológico da geração que o seguiu. Hegel (1770-1831), professor de Filosofia pouquíssima influência política. Na realidade, a influência política dos papas
em Heidelberg e em Berlim, tomou o conhecimento como critério da religião; foi nula. Seus conselhos não eram aceitos. Em conseqüência, o papado tornou-
Schleiermacher, a experiência. Para Kant, o tema da religião é a moralidade. se politicamente tão desinteressante, que somente após 255 escrutínios e
0 filósofo de Konigsberg não negou a existência de Deus, mas afirmou quatro meses de conclave foi possível eleger Bento XIV (1740-1758).
que não há argumentos teóricos que possam provar sua existência. Deus não Se essa era a situação no tocante à política mundial, é importante que se
pode ser conhecido pela razão. Na Crítica da Razão Pura, ele disse por isso que, diga que a igreja de Roma continuou a ter certa influência na política interna
para se poder crer, ter fé, é necessário colocar o conhecimento de lado. A fé de alguns países, utilizando-a para a repressão ou conversão de minorias
racional de Kant baseia-se na "razão prática", na moralidade. protestantes. Comparados com os sucessos da Contra-Reforma14, esses, no
Em Kant, a religião é um sistema moral, baseado na máxima: "Eu devo; entanto, foram pequenos. Em 1731, 22 mil protestantes tiveram que deixar o
por isso posso". 0 ser humano não pode ser responsabilizado enquanto não for bispado de Salzburgo, sendo acolhidos pela Prússia. Fatos semelhantes
considerado capaz de fazer algo na situação em que se encontra. Qualquer pes- aconteceram nos territórios dos Habsburgos, atingindo populações protestan-
soa sensível pode verificar a verdade do imperativo categórico ("Eu devo; por tes na Silésia e na Hungria. Na Polônia, todos os protestantes foram afastados
isso posso") e praticá-lo. Tudo é dever. Também a fé e o dever fazem o bem. de cargos públicos. Na França, voltaram a ocorrer perseguições a huguenotes
Para fazer o bem, para exercer moralidade, não se necessita de igreja. A fé nos anos de 1724 e 1743-52. Por ocasião da execução de Jean Calas (1762),
eclesiástica não acompanha a razão pura. em Toulouse, e em decorrência da intervenção de Voltaire em prol da
Ao limitar o cristianismo à moralidade, Kant pôs fim aos princípios tolerância, a situação começou a se alterar. Conversões ao catolicismo, como a
básicos da Reforma do século XVI: somente Cristo, somente a fé, somente a de Augusto, príncipe-eleitor da Saxônia (1697), para poder obter a coroa
graça, somente a Escritura. Se para os reformadores as boas obras brotam da polonesa, e nas casas de Württemberg (1713) e de Hessen-Kassel (1749), não
graça, Kant começa com as boas obras. Todos os temas teológicos são lidos a provocaram alteração na situação confessional da Alemanha.
partir delas: Jesus Cristo não é um redentor, mas um arquétipo moral de vida
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Os retrocessos na influência política de Roma foram acompanhados por Ilustração se manifestou. Na Alemanha, a Ilustração fez surgir o episcopalismo e
uma diminuição no vigor da vida eclesial. As ordens, e principalmente sua aparecer uma tendência de enfraquecimento do especificamente católico nas
atividade missionária, decaíram. É verdade que, em algumas ordens religiosas, concepções dogmáticas e na vida eclesial. Em 1763, foi publicada sob o
ainda podem ser encontrados alguns nomes de expressão, mas também esses pseudônimo de Justinus Febronius a obra De statu ecclesiae et legitima potestate
desaparecem com o advento da Ilustração. O século XVIII conheceu a Romanipontificis. Febronius contestou a tese de que o primado na Igreja Católica
fundação de apenas uma nova ordem religiosa: a dos redentoristas [Congregatio teria que estar ligado ao bispado de Roma, afirmou a independência do con-
Sanctissimi Redemptoris). cílio geral em relação ao papa e destacou que o curialismo seria o grande
Também houve catástrofes em meio a essa situação difícil. impedimento para a união com os protestantes. 0 autor da obra, Nikolaus von
Especialmente nos países de fala românica, o advento da Ilustração Hontheim, bispo auxiliar de Tréveris, retratou-se em 1778, mas o impacto da
transformou-se em ódio contra a Igreja Católica e contra os jesuítas. Os obra permaneceu. Bispos alemães passaram a desenvolver uma política
ilustrados viam nos jesuítas os mais ferrenhos defensores das pretensões eclesial contrária a Roma. Em Colônia, Mainz e Würzburg formaram-se
papais. Chamavam-nos de defensores de "crendices", inimigos do progresso, centros da Ilustração católica. Em 1786, fundava-se em Bonn uma
das tendências da época. Quando a Ilustração aliou-se ao despotismo nesses universidade livre-pensa-dora católica, na qual também atuariam professores
países, a Companhia de Jesus sucumbiu indefesa ante as exigências desses protestantes. Na teologia católica da época, nota-se um abrandamento de
déspotas. afirmações dogmáticas; passou-se a afirmar o comum a todas as
A luta contra a Companhia de Jesus teve início em Portugal sob os denominações cristãs e a abertura para a crítica histórica. Em 1791, o
auspícios do Marquês de Pombal. Ponto de partida para a intervenção de professor de Dogmática da Universidade de Mainz, Anton B/au, publicava sua
Pombal foi o levante dos índios Guarani dos sete povos das missões no atual História crítica da infalibilidade papal, enquanto o arcebispo de Würzburg convocava,
Estado do Rio Grande do Sul, transferidos do controle espanhol para o por- em 1803, o racionalista protestante Paulus para ser professor de Exegese Bíblica
tuguês. Com o massacre das populações indígenas, teve início a expulsão dos em sua universidade. 0 celibato e a vida conventual mereceram descrédito. As
jesuítas de Portugal e de todas as colônias portuguesas (1759). A bancarrota diferenças confessionais foram minimizadas. Por volta de 1800, pastores
de um jesuíta na ilha da Martinica levou o parlamento francês a condenar a evangélicos e padres católicos substituíam uns aos outros nos serviços
Companhia de Jesus ao pagamento das dívidas daquele empreendimento e eclesiais. Teólogos católicos alemães do período mostram um interesse
declarou a regra da Companhia de Jesus incompatível com as leis do país. Sua especial pela divulgação de Bíblias. 0 professor de Direito Canónico Adam
moral era considerada perigosa para o Estado. Em 1764, a ordem foi proibida Weishaupt, da Universidade de Ingolstadt, passou a divulgar o deísmo, fundando
na França. Em 1767, os jesuítas foram expulsos da Espanha e de Nápoles. Em para tanto a Ordem dos Iluminados.
1768, foram expulsos de Parma. Em 21 de julho de 1773, o papa Clemente Apesar de todos esses fatos, a Ilustração esteve muito mais presente no
XIV (1769-1774), pressionado pelos governos Bourbons, declarou a extinção protestantismo do que no catolicismo alemão. No seio do povo, a piedade
da Companhia de Jesus pelo breve Dominusacredemptornoster. Frederico II da tradicional continuava presente; a maior parte do clero seguia a tradição
Prússia e Catarina II da Rússia deram asilo à ordem. Todos os demais países eclesial. Houve círculos em cujo meio a piedade passou a ser interiorizada, e
se negaram a recebê-la. Após a morte de Clemente XVI, a situação da Igreja foi ela que preparou futuros progressos no catolicismo. Johann Michael Sailer
Católica era tão deprimente, que foram necessários 265 escrutínios até que Pio (1751 - 1832), bispo de Regensburg, deu ênfase à mística, mantendo-se fiel ao
VI fosse eleito. dogma católico e sendo, ao mesmo tempo, aberto aos protestantes. Outro
Se nos países de fala românica o catolicismo perdia com a proibição da importante centro de piedade católica estabeleceu-se em Münster, na
Companhia de Jesus, na Alemanha, que durante os dias da Contra-Reforma Westfália.
fora um filho dileto de Roma e um campo de grande atuação dos jesuítas, a Na Áustria, José II [ \ 780-1790) promoveu reformas profundas no
situação não foi muito diferente. Também no seio do catolicismo alemão a catolicismo, seguindo a Ilustração. Representante do "absolutismo humano",
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considerou-se no direito de regulamentar não somente as relações de Estado e
SÉCULO XIX
igreja, mas também questões internas da igreja, segundo os parâmetros da
"razão". Em 13 de outubro de 1781, estabeleceu um édito de tolerância em Século longo
relação a luteranos, calvinistas e gregos, aos quais foi dada equiparação civil
aos católicos. Seus templos, porém, não podiam ter torres ou sinos. Seu édito Tanto na História como na Teologia, convencionou-se denominar o
de tolerância seria aplicado no Brasil imperial, figurando no parágrado 5 da século XIX de "o século longo", deixando-o iniciar com a Revolução
Constituição do Império. José II procurou transformar a própria Igreja Francesa, em 1789, e concluir com o início da Primeira Guerra Mundial, em
Católica em uma igreja nacional, completamente independente de Roma. Foi 1914. Nessas duas datas encontram-se assinalados dois acontecimentos que
proibida a apelação a Roma, exigido o placet do senhor territorial e a separação marcaram decididamente a cultura do Ocidente e as igrejas cristãs. Essas duas
das ordens religiosas de seus superiores no exterior. 0 número de conventos datas são acompanhadas na História da Igreja e da Teologia pela publicação
foi diminuído em um terço. 0 clero passou a ser formado em seminários do de duas obras de dois teólogos protestantes. Em 1799, Friedrich Daniel
Estado, proi-bindo-se o estudo no Collegium Germanicum em Roma. No Schleiermacher publicou Sobre a Religião: discursos dirigidos a seus cultos depredadores.
culto, proibiram-se relíquias, procissões, romarias. No direito matrimonial, Nesses discursos, temos a afirmação romântica do liberalismo. Em 1919,
passou a ser permitido um novo casamento para divorciados. Pio VI viajou a KarlBarth publicou seu Comentário aos Romanos, rejeitando o liberalismo.
Viena (1782) para demover José II de suas intenções, mas nada conseguiu. No Se observarmos a História da Teologia, temos que afirmar que o século XIX é
seio do clero houve uma forte oposição; na Bélgica, então pertencente à formado por uma série de movimentos teológicos defensivos, apologéticos e
Áustria, houve levantes populares (1790). Leopoldo II' (1790-92) manteve a reacionários. A Ilustração e o incremento das ciências naturais formularam
política do irmão. Seus sucessores, porém, eliminaram paulatinamente as uma série de questões que tiveram que ser respondidas pelos que se ocupavam
reformas josefinas. Se observarmos a política eclesial de D. Pedro II no Brasil, com a revelação bíblica. Tanto a Revolução Francesa como a Revolução
constataremos que ele absorveu muito de seu parente José II. Mas então já nos Industrial formularam relevantes questoes quanto à importância da igreja para
encontramos no longo século XIX. a sociedade e para a cultura. Schleiermacher cristalizou-as nas perguntas: Será
que o cristianismo será doravante associado ao obscurantismo? Será que o
estudo das ciências naturais será identificado com descrença? Ser cristão
significará sacrificar o intelecto?
Ludwig Feuerbach mostrou a problemática na qual a Teologia se
encontrava quando afirmou que a "rainha das ciências" estava despida, sem
roupas, pois Teologia nada mais é do que Antropologia. As coisas
complicaram-se ainda mais quando um discípulo radical de Hegel, David
Friedrich Strauss, descreveu o Deus-homem como um mito. Com isso, a imagem
histórica que a fé fazia de Jesus parecia ruir ante a análise histórico-crítica.
Karl Marx disse que esse mito nada tinha de bom, pois era ópio que anestesiava
a mente do povo.
A igreja ocidental, dividida, grosso modo, em católico-romanos e
protestantes e que ressurgira na Idade Média após os ataques dos bárbaros,
15
O ultramontanismo é um movimento eclesial católico do século XIX na França, Bélgica, Alemanha e
Suíça, criticado pelos estados nacionais, pois promovia uma estreita ligação do povo católico e de sua
hierarquia como o episcopado universal do papa ultra montes ("além das montanhas").
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voltava a confrontar-se com a mesma barbárie. As respostas à "barbárie" Como conseqüência desse nacionalismo, criaram-se exércitos
foram distintas. Enquanto o catolicismo romano trancava todas as portas e permanentes, usados para promover os objetivos daquele movimento, mesmo
janelas aos ataques da Modernidade, o protestantismo, mesmo que não de todo que sob enormes sacrifícios para as populações. Os exércitos da Revolução e
imune a essa tentação, encontrava em seu meio pessoas dispostas a partirem de Napoleão espalharam esse sentimento por toda a Europa. Nas guerras
para a ofensiva e a dialogarem com os bárbaros. O papado apostou no promovidas pelos países europeus contra o jugo napoleónico explodira, com
antimodernismo e no ultramontanismo'5, procurando expulsar de seu meio o fervor religioso, o nacionalismo revolucionário. Na Rússia, o brado de guerra
mundo moderno, já que não podia destruí-lo. No mundo protestante, contra Napoleão era: "Deus, rei e pátria". As lutas de libertação na Europa
desenvolveu-se uma teologia apologética, defensiva, preocupada com a essência foram transferidas para as Américas e aqui transformadas em lutas de
do cristianismo e que procurava demonstrar que o cristianismo, em sua essência, libertação das antigas metrópoles.
não é contrário ao mundo moderno, mas contribuiu com o melhor que tinha A reestruturação da Europa revolucionária foi acompanhada por uma
para formá-lo. No campo social, católicos e protestantes deram o melhor de si profunda transformação econômica e social. 0 desenvolvimento da técnica e a
por meio de associações que se ocupavam com os que ficavam à margem do industrialização modificaram profundamente a vida dos povos nas cidades e
processo modernizador, tentando diminuir o crescente fosso entre igreja e nos campos. Técnica e industrialização foram acompanhadas pelo crescimento
massas. do proletariado e da explosão urbana. Surgiram problemas antes não
existentes. Além disso, formou-se uma coletividade de massas que, por
Revolução Francesa intermédio do movimento socialista, buscou poder político e participação nas
decisões do mundo urbano. Em meados do século XIX, o movimento operário
recebeu orientação de Karl Marx e Friedrich Engels com literatura e panfletos
A Revolução Francesa provocou mudanças muito profundas. Pôs fim
próprios. Exemplo de sua força de expressão podemos encontrar no Pai-Nosso
ao regime monárquico, desfraldou a bandeira da liberdade, da igualdade e da
Proletário de 1835:
fraternidade, lutou pela liberdade de consciência, mas também produziu um
regime de terror e exportou seus ideais pela força das armas para toda a Nosso soberano que estás na corte, altamente honrado seja o teu nome;
Europa, causando muita dor e sofrimento. Em razão dessas profundas venham os teus coletores de impostos; seja feita a tua vontade assim na
mudanças, os anos ao redor de 1800 são essenciais na história da câmara baixa como na alta; dá-nos hoje nosso pão seco; esquece nossos
humanidade. Neles, aconteceram a queda e o fim do Estado absolutista. pedidos assim como nós também esquecemos tuas promessas; não nos
Surgiu a República, que transferiu o poder da aristocracia para a burguesia, deixes cair sob investigação; mas livra-nos da revolução, pois tua é a
mas também despertou as massas. Em decorrência, Hegel caracterizou o legislação, a administração, a coerção sem restrição e sem distribuição.
século XIX de "o século das massas". A Revolução Francesa não permitiu Amém.
mais que se erradicassem o conceito e o sentimento da soberania das massas Nos meios intelectuais, a Revolução Francesa foi recebida com uma
da democracia. Os conceitos liberdade, igualdade e fraternidade espalharam-se por gratidão entusiasmada ou rejeitada por causa do sofrimento que causava:
toda a Europa e também se transferiram para as Américas. idéias que tinham suas raízes na Idade Média, no Renascimento e na
Da Revolução Francesa brotou o fenômeno do nacionalismo. Povos Ilustração puderam ser concretizadas, mas o avanço da Revolução com a
dedicaram-se e devotaram-se a uma luta de vida e morte por suas pátrias: ditadura sanguinária e a subjugação violenta das populações européias à
França levaram a reações contrárias a ela e levantaram o clamor por uma
restauração das condições anteriores à Revolução. Assim, todo o século XIX
... ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil.
está entre revolução e restauração. Todo ele está amarrado ao que foi
desencadeado pela Revolução Francesa.
Pg 50 - 51 Pg 52 - 53
A Revolução Francesa e tudo o que decorreu dela afetaram século XVII se discutia a relação entre fé e razão, no século XIX passou-se a
profundamente a existência das igrejas. Acelerou-se o processo de dissolução discutir a relação entre fé e história.
do poder das igrejas. Isso não contraria aquilo que afirmamos sobre a
participação do pietismo e da Ilustração nesse processo. A novidade do século Da Revolução ao Congresso de Viena
XIX é que o secularismo adonou-se da classe média alta, criando a saturação
específica, na qual a igreja se encontra nos tempos contemporâneos. Por outro
Profundamente ligada ao antigo regime na França, a igreja também
lado, a industrialização e a conseqüente degradação das condições de vida
experimentou o fim do absolutismo. Dissolveu-se a profunda ligação entre
trouxeram desafios para as igrejas, às quais elas só souberam responder de
igreja e Estado. A Assembléia Nacional Francesa (1789-1792) secularizou os
forma inadequada. Elas não souberam responder à alienação urbana.
bens da igreja, dissolveu os monastérios e estabeleceu a "Constituição civil
Essa situação refletiu-se na vida das igrejas e foi tema de suas
para o clero". A administração eclesial foi subordinada ao Estado; bispos e
preocupações. Durante o longo século XIX, igreja e Estado ficaram
sacerdotes passaram a ser eleitos pelos cidadãos; os vencimentos do clero
discutindo sobre escolas, matrimônio, moral pública, nacionalismo e ciência.
passaram a ser estabelecidos pelo Estado, que também liberou o clero da
É importante considerar que o nacionalismo e o secularismo não pretenderam
obediência à autoridade eclesial estrangeira, no caso o papado, e ordenou o
exterminar a igreja, mas adequá-la à razão do Estado e estabelecer a razão
voto de obediência e lealdade à nação e à constituição por parte de todo o
sobre a revelação em prol do bem comum da sociedade. Os líderes da
clero. Muitos bispos opuseram-se e abandonaram o país. Após a queda do rei
restauração enfatizaram a autoridade da igreja como garantia da tradição e da
em 1792, muitos integrantes do clero também deixaram a França. Durante o
legitimidade, mas fizeram-no por razão de Estado e não permitiram à igreja
regime de Maximilien Robespierre, 1793-1794, foi abolido o calendário cristão,
que expressasse opiniões políticas. Guilherme II da Prússia não foi o único a
proibidas as festas cristãs, introduzido o casamento civil, destruídas igrejas e
expressar que os pastores devem atender as almas dos crentes e praticar a caridade, mas deixar
confiscados seus tesouros. 0 culto à razão foi introduzido nas antigas igrejas.
a política de lado, pois ela não lhes diz respeito.
Em 1795, o fim do regime de Robespierre proporcionou liberdade a
Com a Revolução Francesa surgiu uma nova percepção de História. As
protestantes e católicos e, no dia 15 de julho de 1801, Napoleão restaurou a
antigas concepções mecanicistas foram deixadas de lado na leitura da
Igreja Católica por meio de concordata. Reconheceu-a como a religião da
humanidade e da sociedade. Revolução foi identificada com evolução.
maioria dos franceses, manteve-a, porém, subordinada ao Estado, que
Formulou-se a convicção de que a vida humana, individual ou social, só pode
providenciava os recursos para a sua manutenção. 0 papa voltou a nomear os
ser compreendida no contexto do desenvolvimento histórico. Essa convicção
bispos, mas teve que silenciar em relação aos bens eclesiásticos que haviam
recebeu o nome de historicismo. O historicismo é a mais original das
sido secularizados. Em 1804, na presença do papa Pio VII, que viera a França
contribuições do século XIX para a secu-larização e é marca registrada de
para coroá-lo imperador, Napoleão tomou a coroa do papa e coroou-se a si
nosso conceito atual de cultura. Em decorrência, a igreja passou a ser
mesmo. Cinco anos mais tarde, a França anexou os estados pontifícios,
considerada um fenômeno da História da Cultura - e não mais uma mediadora
Napoleão foi excomungado por Pio VII, mas encarcerou o papa. A firmeza de
da revelação.
Pio VII, porém, contribuiu para o crescimento do prestígio papal após a queda
A nova leitura da História com o advento do historicismo levou a uma
de Napoleão (1815).
cosmovisão que via os fatos a partir de seu desenvolvimento, propiciando o
surgimento dos fenômenos modernos do relativismo9 e do niilismo10. Se no
Estado e igreja na Prússia

9 10
É a doutrina que afirma não existirem valores absolutos, pois todas as qualidades são, É a negação de todo o ser. O niilismo teórico designa-se de ceticismo ou agnosticismo.
na realidade, relações. Nada é belo, bom ou verdadeiro; somente para nós (ou para outros) O metafísico é considerado idealismo conseqüente; o ético representa a negação de todos
algo pode ser belo, bom ou verdadeiro. os valores; o político é o anarquismo.
Pg 54 Pgs 55 - 56
As guerras napoleónicas e o caos gerado por elas levaram a crescentes igreja estatal, que não se preocupava com a questão social. Pouco depois de
transformações também nas igrejas. Na Prússia, ao lado da maioria luterana Marx, em 1848, Wichern publicou um Manifesto Protestante. Por ocasião do Dia
também havia calvinistas. No século XVII, a casa reinante tornara-se da Igreja (Kirchentag) realizado em Wittenberg, anunciou que "o amor é
calvinista. Frederico Guilherme III (1770-1840), casado com uma luterana, não marca indispensável da igreja, em nada menor do que a fé". A igreja só terá
podia comungar com ela na Eucaristia. Usando os 300 anos das 95 teses de futuro se encarnar o amor de Deus na cidade industrial. Como conseqüência
Lutero, em 31 de outubro de 1817, buscou reunir luteranos e calvinistas em de seu apelo, fundou-se o Comitê Central da Missão Interna da Igreja
uma só igreja. A maior parte do clero concordou em abandonar os Evangélica Alemã.
designativos "luterano" ou "reformado/calvinista" e substituí-los por A missão interna ocupou-se inicialmente com aqueles que haviam
"evangélico". Mas o rei viu-se confrontado por uma forte oposição quando abandonado a igreja e com a assistência a necessitados, doentes e pobres.
quis implantar a uniformidade litúrgica e impôs uma ordem litúrgica Logo passou também a se ocupar com a reforma carcerária, com os sem-teto,
formulada por ele próprio. A oposição tornou-se tão violenta, que algumas com os deficientes físicos e mentais, com os imigrantes e os marinheiros. A
congregações na Saxônia e na Silésia optaram pela emigração para a Austrália iniciativa logo se espalhou para outros continentes.
e para os Estados Unidos da América do Norte, mormente ao Estado de Aquilo que se apresentou em Wichern não era algo isolado. Em toda a
Missouri. Europa desenvolveram-se movimentos voltados para a questão social. Na
Em 1834, a Prússia em expansão acabava formando três grupos no Inglaterra, os metodistas envolveram-se na educação de adultos, escolas,
protestantismo alemão: unidos, luteranos e calvinistas. A união pretendida não reforma carcerária, abolição da escravatura e alcoolismo. Serviços
vingara. Porém os emigrantes alemães que se dirigiram para o cone sul das missionários surgiram em Basiléia, Londres e Paris. 0 Exército da Salvação (1865)
Américas denominaram-se de "evangélicos", conceito que incluía unidos, é uma entre incontáveis organizações criadas para dar resposta e ajuda a uma
calvinistas e luteranos. sociedade doente.
Outra grande fonte de reavivamento foi o movimento das diaconisas,
Questão social iniciado pelo pastor alemão Theodor Fliedner, que lutava pela renovação do
Foi no pietismo, segundo o modelo de Francke, que o século XIX ministério diaconal feminino na igreja. Fontes inspiradoras de Fliedner foram
encontrou os parâmetros para responder aos desafios sociais. Protestantes a quaker Elizabeth Fry (1780-1845) e o movimento de diaconisas menonitas na
continuaram seus esforços para mudar o mundo pela transformação dos Holanda. Em 1833, Theodor Fliedner e sua esposa Friedrike receberam em
indivíduos, valendo-se de duas instituições: a missão interna e o movimento sua casa uma ex-presidiária. Com a acolhida de outra ex-presidiária e de
das diaconisas. mulheres carentes, o casal Fliedner iniciou o treinamento de mulheres para o
As duas instituições foram motivadas pela miséria social, que também auxílio ao próximo. Em 1836 era criada a primeira Casa Matriz (Mutterhaus)
provocou o Manifestou Karl Marx. Os principais nomes no seio do protestantismo de Diaconisas em Kaiserswerth. Do auxílio inicial a mulheres presidiárias o
foram Johann Hinrich Wichern (1808-1881) e Theodor Fliedner (1800-1864). trabalho se expandiu para o auxílio a doentes, órfãos e marginais. 0 modelo de
Wichern foi sensibilizado pelo empobrecimento das massas e fundou Kaiserswerth logo se espalhou por todos os continentes. Em 1884,56
casas em que foram recolhidas crianças abandonadas. A primeira casa, Rauhes comunidades diaconais abrigavam 5.653 diaconisas. Além das diaconisas,
Haus (Casa Rude), foi aberta em 1833. Wichern enfatizou a educação e a com forma de vida religiosa consagrada, Fliedner também formou enfermeiras
profissionalização a partir da graça de Deus. Para obter colaboradores, passou assalariadas. Florence Nightingale (1820-1910), a pioneira da enfermagem inglesa,
a formar diáconos e diaconisas em centros de formação próprios. Desde 1844, foi treinada em Kaiserswerth.
também publicava um jornal, por meio do qual buscava criar uma consciência Ao lado do desenvolvimento diaconal, o protestantismo pôde
social. Wichern estava ciente de que o futuro de igreja e sociedade seria experimentar a importância do envolvimento político.
caracterizado por uma crescente alienação das massas urbanas em relação à
Pg 57 Pg 58 - 59
Outro pastor que participou da política para conquistar reformas sociais Catolicismo romano
foi Friedrich von Bodelschwingh (1821-1910). Desde 1872, ele fora diretor da casa
para epiléticos e da casa de diaconisas da Renânia-Westfália chamada Bethel. Com a queda de Napoleão, os Bourbons foram reinstalados no trono
Com o crescimento, a instituição passou a abrigar um centro de formação de
francês; o papa Pio VII recebeu de volta os Estados pontifícios. KarlLudwig von
diáconos, uma escola teológica, uma casa para desempregados. A luta de
Ha/ler ( ] 768-1854), convertido ao catolicismo, formulou a ideologia
Bodelschwingh pelos doentes e marginalizados levou-o a participar da restauracionista para os regimes contra-revolucionários. A partir dos seis
política. Em 1903, tornou-se membro do parlamento da Prússia e conseguiu,
volumes de Restauração da Ciência Política (1816-1826), os conservadores partiam
em 1907, a criação de lares para trabalhadores itinerantes e um maior
do pressuposto de que apenas a igreja, com o apoio da autoridade política, se-
envolvimento do Estado alemão nas questões sociais. Mas este buscou minar
ria capaz de manter a integridade da sociedade.
o movimento socialista com suas medidas. 0 filho de mesmo nome (1877- No período da Restauração, o catolicismo experimentou uma renovação
1946) continuou e ampliou a obra do pai. No início do governo nazista, ele foi análoga à do reavivamento protestante. Formava-se novamente uma cultura
eleito bispo da Igreja Evangélica Alemã, mas os nazistas anularam a eleição. cristã uniforme. 0 Romantismo via na Idade Média tal cultura cristã uniforme,
Bodelschwingh opôs-se decididamente à liquidação de "vidas menos dignas",
liderada pelo papa. Novalis, apelido de Friedrich von Hardenberg (1772-1801),
exigida pelo regime nazista.
descreveu a utopia dos anos de ouro do mundo medieval na obra Cristianismo ou
Ao iniciar o século XX, a maior expressão das questões sociais no seio Europa. Autores ingleses descreveram a mesma utopia em relação ao
do protestantismo era o Congresso Social Evangélico. Como associação cristã para o
anglicanismo medieval. Fato semelhante aconteceu na França em relação ao
estudo e a ação social, o congresso foi pódio de discussões para intelectuais catolicismo. Conversões como a de Friedrich Schiegei, em 1808, promoveram a
protestantes que buscavam o moderno estado de bem-estar social. Seu autoconfiança católica. Essa renovação da consciência católica estava
presidente foi, por muitos anos, o teólogo Adolf vonHarnack{\851 -1920). No
convicta de que somente um papado fortalecido poderia renovar a Igreja
todo, porém, a preocupação social protestante ao longo do século XIX foi de
Católica e, conseqüentemente, a civilização ocidental.
natureza burguesa. Quase não penetrou nas camadas populares e manteve-se Pio VII (1800-1823) voltou a Roma em 1814. 0 papado passou a ter liberdade
avessa a socialismo, comunismo e democracia. A missão interna e a diaconia política novamente, e a cúria romana passou a promover a igreja universal
só conseguiram sucessos maiores porque se desenvolveram paralelamente às contra todas as tendências de igrejas nacionais. No ano de seu retorno a Roma,
igrejas territoriais alemãs, profundamente comprometidas com o trono.
Pio VII restabeleceu a Companhia de Jesus. Sua influência mostrou-se forma
crescente ao longo do século XIX. Promovendo uma série de concordatas,
Roma reestruturou a hierarquia eclesiástica estado após estado.
Essa nova importância centralizadora do papado é conhecida como
ultramontanismo. Na obra fundamental de Joseph de Maistre (1753-1821), O Papa, de
1819, foi expressa a infalibilidade papal:
O cristianismo depende totalmente da soberania do papa. (...) Não há
moral pública nem caráter nacional sem a religião. Na Europa, não há
religião sem cristianismo. Não há cristianismo sem catolicismo. Não há
catolicismo sem o papa. Não há papa sem sua incondicional
supremacia.
Uma imprensa muito agressiva, aliada à Companhia de Jesus,
expressou o espírito antimodernista por meio da renovação da piedade
Pgs 60 - 61 Pg 62
medieval e da organização sistemática da piedade das massas: devoção Kulturkampf e juramento antimodernista
eucarística, devoção ao sagrado coração e devoção mariana.
Kulturkampf indica a divergência da Igreja Católica com o espírito do
Pio IX e o Concílio Vaticano I (1869-70) liberalismo e do nacionalismo no século XIX. Num sentido mais restrito, o
Kulturkampf apresenta a luta de Otto von Bismarck (1815-1898), primeiro-ministro
No pontificado de Pio IX, deparamo-nos com uma profunda luta contra da Prússia e primeiro chanceler do novo Reino Alemão, com a cúria romana.
o liberalismo e o nacionalismo. Em 1854, Pio IX proclamou o primeiro dogma Em 1870, foi fundado na Alemanha o Partido do Centro. Bismarck
mariológico dos tempos modernos: a imaculada concepção de Maria. O temia que seu ultramontanismo viesse a pôr em perigo a recente unidade
dogma afirma que Maria estava livre de qualquer mácula do pecado original alemã. Ele temia um catolicismo político e pretendia manter tanto as igrejas
desde o instante de sua concepção, mercê de ato miraculoso do Espírito Santo. protestantes como o catolicismo fora da política. A igreja deveria ater-se
O contexto no qual esse dogma deve ser visto é um ultramontanismo apoiado estritamente ao religioso. Uma legislação específica, elaborada de 1871 a
por uma piedade mariana, expressa em visões e milagres como os de Lourdes, 1875, proibia o uso do púlpito para fins de agitação política, determinava a
na França. Mesmo que os argumentos do dogma já sejam encontrados na expulsão de jesuítas e de ordens ligadas a eles e determinava a supervisão do
Idade Média, o inusitado é que Pio IX o tenha proclamado sem consultar um Estado sobre a educação. As Leisde Maio'(1873) limitaram o poder disciplinar
concílio. Mesmo antes de ser proclamado o dogma da infalibilidade papal, o da igreja, instituíram a Suprema Corte Eclesiástica, estabeleceram o controle
papa já fazia uso dele. do Estado sobre todos os seminários e exigiram de todos os clérigos um
Na seqüência, em 1864, um Syllabus de Erros - condenou racionalismo, exame a ser prestado perante o Estado. Pio IX condenou essas leis em 1875.
indiferentismo, socialismo, comunismo, sociedades bíblicas, independência do Bismarck subestimou a extensão da oposição católica e protestante a essas
Estado em questões culturais e educacionais. No Syllabus, o catolicismo leis. Como necessitava de apoio católico e protestante contra a
ultramontano, identificado e comprometido com a Restauração, rejeitou a socialdemocracia, ele modificou gradualmente as leis.
sociedade moderna, a separação de igreja e Estado, a liberdade religiosa, a Após a morte de Pio IX, as tensões diminuíram durante o pontificado de
educação pública sem controle eclesial e proclamou a autoridade da hierarquia LeãoXIII(1878-1903). Em 1891, Leão XIII publicou a encíclica Rerum novarum,
católica para regulamentar a coisa pública. Toda a legislação concernente a documento até o presente básico para pronunciamentos católico-romanos em
matrimônio civil e divórcio não seria aceita até que estivesse de acordo com o questões sociais. A encíclica faz a defesa da propriedade privada, condena o
Direito Canónico. A igreja tinha assegurado o direito a seus próprios tribunais socialismo e o anarquismo. Essa sua parte inicial mostra o contexto no qual
e o poder de polícia. Para não deixar qualquer dúvida, Pio IX começou a foi redigida: os movimentos socialista e anarquista dominavam o operariado,
canonizar os juízes da Inquisição. que se perdia para a igreja. Nesse sentido, a Rerum novarum\iem com cinqüenta
Todo esse desenvolvimento teve seu desfecho no Concílio Vaticano I anos de atraso em relação ao Manifesto de Karl Marx. Mesmo assim, a encíclica
(1869-1870). Este concílio definiu o episcopado universal do papado e a teve grandes conseqüências, pois fez coro com as exigências da classe
infalibilidade do papa. Com essas palavras está expresso o poder jurisdicional operária contra os empregadores. Os reclamos contra as iniquidades intolerá-
do papa sobre toda a igreja. O papa é infalível em questões doutrinais, quando veis do capitalismo e da era industrial foram depositados ante as portas dos
fala excathedra, no exercício de sua função magisterial referente à fé e à moral. ricos e dos poderosos. 0 Estado foi declarado responsável pelo bem comum,
A decisão infalível do papa é válida para todo o mundo e tem sua base legal inclusive pela promoção do bem-estar e dos interesses da classe trabalhadora.
no poder decisório do papa, não no consentimento da igreja. Assim, o Nenhuma classe pode ser explorada em benefício de outra. 0 Estado deve
catolicismo romano transformou-se em monarquia absoluta, sem restrição posicionar-se apropriadamente, ocupando-se com o trabalho infantil, com as
constitucional. Estava inaugurado o fundamentalismo romano católico. horas excessivas de trabalho e a justiça para os operários. Essa justiça inclui
salário compatível para o sustento da família. A intervenção papal em prol de
Pg 63 Pg 65 - 66
justiça e caridade em questões socioeconómicas foi considerada TEOLOGIA NO SÉCULO XIX
revolucionária e uma subversão da ordem estabelecida. A aplicação de
princípios cristãos na relação capital-trabalho fez com que Leão XIII
recebesse o codinome de "papa dos operários". Na Alemanha, a Teologia foi particularmente rica ao longo do século
Mais conciliador do que Pio IX, Leão XIII manteve, mesmo assim, a XIX. Nela se fizeram presentes variantes da ortodoxia, do pietismo e da
oposição de seu antecessor em relação ao mundo moderno. Nesse aspecto foi Ilustração. A novidade foi que essas correntes tiveram que competir com
seguido por PioX ( 1903-1914), que condenou os esforços feitos desde o final aquilo que se convencionou chamar de liberalismo e de protestantismo
do século XIX por maior liberdade, especialmente na Teologia, contra uma cultural [Kulturprotestantismus). A figura teológica dominante foi Schleiermacher.
cúria reacionária. Pio X condenou tais esforços como "modernismo", e todos
os teólogos católicos tiveram que prestar o juramento antimodernista de 1910,
Schleiermacher
que só foi revogado em 1967. "Modernismo" eram as mais variadas idéias e
teorias científicas, como a teoria da evolução e os avanços nos estudos
relativos à Bíblia e apoiados na crítica textual. Era a forma católico-romana de Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834) descendia de teólogos
fundamentalismo. reformados, calvinistas. Seu pai fora capelão no exército da Prússia, mas fora
fortemente influenciado pelo pensamento morávio, assim como o
encontramos no pietismo de Zinzendorf. Em 1783, o jovem Friedrich passou a
freqüentar, com sua irmã Charlotte e seu irmão Karl, as instituições dos
morávios. Do pietismo, Schleiermacher recebeu a percepção para a riqueza da
individualidade religiosa e para a comunitariedade da fé. Em carta dirigida a
Charlotte, em 1802, escreveu após longos conflitos de fé: Posso afirmar que após
muitas coisas volteia ser um morávio, só que de ordem superior.
Schleiermacher tornou-se pastor e professor universitário. Ao lado de
sua carreira como professor de Teologia e de sua função de diretor da
Faculdade de Teologia da Universidade de Berlim, ele pregou quase que
dominicalmente na Igreja da Trindade. Fundou com Wilhelm von Humboldt (1767-
1835) a Universidade de Berlim. Lecionou todas as disciplinas teológicas,
exceto o Antigo Testamento, mas também ofereceu preleções sobre Filosofia,
Dialética, Ética, Psicologia, Política, Estética, Hermenêutica e Educação. Suas
obras teológicas vão da obra-prima apologética Sobre a Religião: aos cultos dentre
seus desdenhadores (1799) à dogmática/4fec?/s/s(1821-1822). Schleiermacher
levou a sério as críticas que a Ilustração dirigia à religião de um modo geral e
ao cristianismo em particular. Para ele, a fé deixa de viver quando busca
proteger-se na defensiva e no isolamento. Patriota, pregou instigando a Prússia
em sua guerra contra a França de Napoleão. Sua fama era muito grande; quan-
do de sua morte, dezenas de milhares de pessoas vieram prestar-lhe sua última
homenagem
Pg 67 Pgs 68 - 69
Nos dias de Schleiermacher, a Ilustração e seu idealismo acentuavam a Nos primórdios do século XIX, o Reavivamento atingiu também a
liberdade e a autonomia do ser humano. Aliados aos cientistas naturais, os Alemanha, irradiando-se para muitos outros países. É Awakening, é Erweckung, é
filósofos devotaram-se à experiência empírica e reduziram o discurso sobre o Réveil.
supranatural a um discurso sobre o natural. Falar de Deus e da revelação era Os principais impulsos do Reavivamento aparentemente provêm do
descrever as capacidades humanas. Schleiermacher enfrentou essas antigo movimento pietista, especialmente do movimento de Zinzendorf e dos
formulações e tendências. Assim como seus contemporâneos, também partiu morávios. No entanto, foi um movimento pluriforme e multifacetado. Mas
da experiência empírica. No entanto, ao invés de acentuar a liberdade, falou essa pluriformidade teve alguns aspectos comuns: a oposição à Ilustração e à
acerca da dependência humana. A experiência de Deus não depende de qualquer religião da razão; a pecaminosidade do ser humano diante de Deus; o
abstração intelectual ou de alguma compulsão ou piedade, de crença em despertar para uma nova vida pela graça de Cristo somente; a experiência
coisas incríveis. Ela orienta-se na experiência de dependência do próprio ser pessoal de um novo nascimento com o objetivo de uma reestruturação da
humano. Daí também a definição de fé de Schleiermacher: Fééa consciência de sociedade (da soma dos convertidos surge uma nova sociedade); a crescente
ser absolutamente dependente ou, o que é a mesma coisa, de estar em relação com Deus. A fé atividade social e esforços missionários para a expansão da fé cristã. Produto
cristã não consiste na crença em determinadas doutrinas, em viver de concomitante do movimento foi a apropriação da Bíblia pelo povo cristão e,
determinada maneira ou ter experiências que aqueçam o coração, mas antes em conseqüência disso, a formação de associações livres para atividades co-
em viver em relação com Deus. Essa relação está centrada em Jesus de muns. Assim, o Reavivamento também rompeu os muros das denominações.
Nazaré, o redentor, que não é objeto da fé, mas mediador da fé, que se concretiza Na Inglaterra, o Reavivamento alcançou seu auge no metodismo. Seu
no discipulado dos crentes: a igreja. impacto foi tão grande, que por muito tempo se afirmou que o movimento
Schleiermacher era um teólogo apologeta e procurou apresentar a metodista teria sido a última grande forma de igreja a emergir na história do
verdade do evangelho de modo que se tornasse compreensível ou crível para cristianismo. 0 pai do metodismo é o reverendo anglicano John Wesley (1703-
seus contemporâneos. Seus escritos nem sempre são de fácil compreensão. 1791), mas a seu lado ainda devem ser mencionados George Whitefield (1714-
Por isso fez-se um jogo de palavras com seu sobrenome: fazedor (Macher) de 1770) e Charles Wesley (1707-1788). Em 1729, os irmãos Wesley fundaram uma
véus (Sch/eier). Muitas vezes parece encobrir, velar, ao invés de descobrir, associação de estudantes em Oxford. Sua vida piedosa, que se orientava em
desvendar. Há, porém, uma série de expressões suas que nos ajudam a regras claras, e a ênfase que davam à santificação renderam-lhes o gracejo de ser
entender sua intenção: Religião não é extrínseca, mas intrínseca à vida "metodistas".
humana; religião não é objeto de investigação, mas o sujeito do auto-exame; a John Wesley pôde fixar a data de 27 de maio de 1738, às 20h45min,
fé cristã não somente critica a cultura, mas a si própria; teologia é o serviço como o momento de sua conversão. Esta foi conseqüência da pregação morávia
com o qual a igreja responde a perguntas - não é uma coleção de verdades e da leitura do prefácio ao comentário de Lutero sobre a Carta aos Romanos.
eternas. A proclamação do evangelho está acima da especulação a seu A experiência de conversão de Wesley tornou-se modelar para a pregação do
respeito. Reavivamento e encontrou em seu irmão Charles e em Whitefield seus
principais pregadores, atingindo a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda. Nessa
Reavivamento pregação havia o chamado a um discipulado pessoal de Jesus Cristo,
conseqüência de conversão, de dependência e de experiência da graça.
Se em Schleiermacher temos uma figura isolada que dá novos Pessoas assim atingidas e com tal experiência formavam comunidades.
impulsos à reflexão teológica, temos naquilo que se chama de Reavivamento Característico para o metodismo é o ministério do pregador leigo. Desses
um movimento de grande significado. Na realidade, é um movimento pregadores vieram impulsos para a política social inglesa. Por muito tempo, o
religioso transconfessional, que teve início na Inglaterra e nos Estados Unidos. metodismo foi um movimento no seio da Igreja Anglicana; separou-se dela
após a morte de Wesley.
Pgs 70 - 71 Pgs 72 - 73
Entretanto, não podemos dizer que não restou nada do movimento do assim por diante. A realidade é um processo histórico, no qual o Absoluto (os
Reavivamento na Igreja Anglicana. Nesta existe, em conseqüência daquele teólogos diriam "Deus") chega à sua auto-realiza-ção em nossa razão (que não
movimento, a Low Church ("Igreja Baixa"), que se diferencia da High Church precisa ser necessariamente a nossa, mas a de Hegel). A história é vista como
("Igreja Alta"). Da Low Church vieram importantes impulsos para a abolição da um processo dialético, uma evolução até seu cumprimento. Quem entra no
escravatura. trem da história participa de seu alvo. Os alunos de Hegel deram-lhe diversos
Em oposição ao Reavivamento, mas também como resposta ao declínio nomes: Estado prussiano, sociedade sem classes etc.
na vida da igreja, como reação ao liberalismo teológico e como decorrência do Mas a história é inteligível, racional. Por isso Hegel escreveu no
Romantismo e de sua redescoberta do mundo medieval, surgiu o Movimento de prefácio à Filosofia do Direito: Tudo o que éreal é racional, e tudo o que é racional é real. Esta
(Gr/W (1833-1845). Este movimento defendeu a igreja da Inglaterra como sentença não é muito confortável para quem sofre as antíteses da história, mas,
instituição divina, batalhou pela sucessão apostólica e pelo Livro de Oração segundo Hegel, a vida tem que "sofrer feridas" para ser reconciliada com sua
Comum como regra de fé. Um dos principais líderes do Movimento de unidade. 0 ardil da razão provoca sofrimentos e inversões em seu nome. Oculta-
Oxford, John Henry Newman (1801 -1890), converteu-se ao catolicismo romano e se e revela-se em suas formas empíricas imanentes, para que o Espírito possa
foi feito cardeal em 1879 por Leão XIII. Seus escritos exerceram influência no chegar à auto-realização por meio do processo de alienação e reconciliação. 0
anglicanismo e no catolicismo e formaram uma ponte significativa para o desafio posto aos teólogos foi a aplicação desse sistema ao problema da
diálogo ecumênico. teodicéia e da superação do abismo existente entre razão e revelação.
As influências de Hegel foram múltiplas. Um de seus alunos virou-o de
Teologia protestante cabeça para baixo, afirmando que o lugar de seu falar de realidade não é o
idealismo, mas o materialismo. Por isso Ludwig Feuerbach (1804-1872) pôde
afirmar: O ser humano é o que come. KarlMarx(1818-1883), Friedrich Engels (1820-
Para entender as correntes da teologia protestante do século XIX, é 1895) e Wladimirlljitsch UljanowLenin (1870-1924) desdobraram as concepções de
necessário perceber que a mesma é filha da Ilustração, dos impulsos de Hegel no materialismo dialético e aplicaram-no à sociedade e à política,
Schleiermacher e do Reavivamento. Porém um filósofo jamais deve ser afirmando que nosso objetivo não é entender a história, mas transformá-la.
esquecido. Sem ele não podemos entender a evolução do pensamento teológi- David Friedrich Strauss (1808-187'4) aplicou a lógica de Hegel ao estudo histórico
co, tampouco seus descaminhos: Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1 770-1831). de Jesus de Nazaré e chegou à conclusão de que esse é um mito. Sõren
Em Hegel destacam-se sua compreensibilidade esua profundidade. Ele Kierkegaard (1813-1855) rejeitou todo o sistema de Hegel por amor ao
faz parte do idealismo. Em seu pensamento, temos a culminância de uma era indivíduo solitário que se confronta com o Outro, Deus, infinita e
que tinha suprema confiança no pensamento racional do ser humano. Hegel qualitativamente diferente. 0 grito de Kierkegaard só foi ouvido no século
montou um sistema filosófico; ele pensava que com esse se poderia XX.
compreender toda a realidade. Sendo assim, procurou transcender não Feuerbach e Strauss provocaram furor entre os teólogos de seus dias.
somente os interesses analíticos da Ilustração, mas a própria realidade. Feuerbach influenciou Marx, Nietzsche, Freud e Buber, acusou a Teologia de
Segundo ele, a divisão da realidade em partes possibilita um conhecimento haver matado Deus e de haver divinizado a humanidade. Por isso interpretou o
válido, mas não atinge o todo. Podemos dissecar um animal, vamos entender cristianismo como uma projeção dos temores e dos desejos humanos. Ao
suas partes, mas não vemos mais o animal. A verdade não está em escrever  Essência do Cristianismo, em 1841, Feuerbach afirmou que Deus nada
particularidades, mas no todo. Daí a lapidar sentença de Hegel: Die Wahrheitist mais é do que a projeção da personalidade do ser humano e que o começo, meio e
das Ganze (A verdade é o todo). Hegel rejeitou a lógica aristotélica, segundo a qual o fim da religião é o ser humano. Ao mesmo tempo, porém, asseverava que a negação
"A" não é "não-A", e atestou a natureza dialética da realidade, na qual tudo é do sujeito, Deus, não significava a negação dos predicados (sabedoria, amor,
visto em seu oposto: tese, antítese e síntese. A síntese transforma-se em nova justiça). 0 ateu real reconhece Deus teoricamente e depois vive como se ele
tese, à qual se apresenta uma antítese, que é transcendida em nova síntese, e
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não existisse. Sua intenção de resgatar a fé das abstrações dos filósofos e dos Jesus. A fé cristã foi reduzida à mensagem de Jesus sobre o reino de um Deus
teólogos não foi aceita. do amor.
Strauss provocou uma tormenta com seu livro Vida de Jesus (1835). O próprio estudo histórico-crítico da Bíblia levou à destruição da
Afirmou que o Cristo dos evangelhos não é histórico, mas mitológico. Jesus teologia liberal. Johannes Weiss (1863-1914) e Albert Schweitzer{\Zl^-\965)
foi um mestre humano que ensinava o amor a Deus e ao próximo. Foi a igreja mostraram em seus estudos que Jesus não era inglês nem alemão, que seu
que acrescentou a idéia do Deus-homem a Jesus. Strauss fez uso da lógica pensamento não equivalia ao pensar e ao agir de um gentleman. Para Weiss e
hegeliana. 0 Deus-homem é a síntese da dialética de Deus (tese) e ser humano Schweitzer, a partir de uma perspectiva moderna, Jesus não era um gentleman,
(antítese): a dialética do sobrenatural e do natural leva ao mitológico. mas um fanático religioso que esperava pelo fim iminente do mundo.
Obviamente a transformação da cristologia em mitologia levou a muitas Mas, antes que despontassem as pesquisas de Weiss e de Schweitzer,
reações. surgiram nomes como os de AlbrechtRitschl (1822-1889), Adolf von Harnack (1851-
A questão da relação entre fé e história, formulada por Strauss, foi 1930) e Ernst Troeltsch (1865-1923). Ritschl esteve sob a influência de Kant e de
objeto de estudo por parte de Martin Kàhler (1835-1912). Em sua obra O assim Schleiermacher. Para ele, o cristianismo é um fato histórico mediado pela
chamado Jesus histórico e o Cristo histórico-bíblico (1892), Kãhler afirmou que a base da experiência pessoal do crer. 0 Novo Testamento dá testemunho a respeito da
fé cristã não é o Jesus histórico, mas o Cristo pregado e testemunhado pela revelação que Jesus fez do reino de Deus, como sendo o alvo ético de todo o
comunidade. A tentativa de descrever o Jesus histórico é um equívoco gênero humano. Jesus é o arquétipo da humanidade reconciliada e unida no
metodológico e teológico. É um equívoco metodológico porque os reino de Deus. A redenção pessoal e a formação de comunidade no reino de
evangelhos, antes de serem fontes para a pregação da igreja, são recursos Deus são a conseqüência da transformação e do retorno da vontade humana à
históricos para uma biografia de Jesus. Em termos teológicos, a comunidade vontade de Deus. Os temas clássicos da dogmática (pecado, juízo, ira de Deus,
cristã não se centraliza no querido Jesus que partiu, mas no Cristo vivo do trindade, cristologia) e as expressões dos credos e das confissões são cascas
presente. Para Kãhler, o Cristo pregado é o Jesus terreno. A certeza da fé, que encobrem o cerne do evangelho.
porém, não pode repousar sobre os resultados da pesquisa histórica. Ao retirar As idéias de Ritschl foram acompanhadas pelo historiador Adolf von
a fé do emaranhado da pesquisa histórica empírica, Kãhler ofereceu elementos Harnack, que pode ser considerado o mais notável teólogo de seus dias. Mesmo
para a resposta dos teólogos, que tiveram que responder ao colapso do sem expressar concordância com sua interpretação, devemos considerar
liberalismo após a Primeira Guerra Mundial. magistral seu esforço em torno da recuperação do pensamento da igreja
antiga. Harnack advogou um cristianismo não-dogmá-tico. Queria um
Teologia liberal cristianismo liberado dos acréscimos doutrinais feitos pelas gerações que se
seguiram à primeira geração de cristãos e que transformaram a religião de
A teologia liberal tem suas raízes na Ilustração. No século XIX, porém, Jesus, entendida como o reino do amor de Deus, em religião acerca de Jesus,
ela centrou-se na temática de fé e história. Como é possível continuar a existir um ser preexistente que expia vicariamente os pecados. 0 cerne do
cristianismo se microscópio e telescópio não nos dão uma evidência de Deus? cristianismo está envolto em lixo metafísico. 0 dogma cristão é obra do espírito
Para responder a perguntas como essa, os liberais concentraram-se então em grego sobre a base do evangelho. Essa tese é desenvolvida nos sete volumes da
estudos históricos. Como Jesus foi uma figura histórica, é acessível à pesquisa História do Dogma (1886-1890). Harnack separa o cerne do evangelho de sua
como qualquer outro personagem histórico. Por isso os teólogos liberais casca helenista e procura recuperar o cristianismo para seus contemporâneos.
lançaram-se ao estudo histórico-crítico do Novo Testamento para encontrar o Quando Harnack escreveu, em 1900, Das Wesen des Christentums (que
Jesus "real", "verdadeiro" e sua mensagem por trás dos acréscimos da podemos traduzir por "A essência do cristianismo" ou "0 que é
dogmática. Os liberais distinguiram entre a religião de Jesus e a religião sobre cristianismo?"), ele procurou tornar o cristianismo plausível para o mundo
moderno, reduzindo a fé à paternidade de Deus, à fraternidade do gênero
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humano e ao valor infinito da alma humana. No prefácio à reedição de 1964, Senhores, tudo oscila, dizia ele aos conservadores. Não hesitava em chocar. E
fíudo/f Bultmann informa que, até 1927, o livro de Harnack tivera 14 edições chocou até mesmo seus companheiros, que buscavam tirar a casca para chegar
alemãs e fora traduzido para 14 idiomas. 0 livro transpira otimismo e ao cerne do evangelho: Por baixo da casca não há cerne eterno, não-histórico.
confiança no progresso. Nesse otimismo e confiança procurou trazer a Tudo o que existe persiste em condições históricas. Ao escrever DieAbsolutheit
proclamação bíblica para o início do século XX. 0 final do livro é des Christentums (0 absolutismo do cristianismo), em 1902, Troeltsch comprovou
significativo: que o labor histórico não pode reivindicar a superioridade de uma religião
Meus senhores! A religião, isto é, o amor a Deus e ao próximo, é que dá sobre outra. Troeltsch descobriu que o método histórico, quando aplicado à
sentido à vida; a ciência não consegue. Permitam-me dizer de minha Bíblia, à História da Igreja e à Teologia, não comprova revelação nem fé.
própria experiência. Sou alguém que se ocupou por trinta anos A Teologia tinha que reiniciar sua reflexão: o liberalismo não era a
seriamente com essas questões. A ciência pura é algo maravilhoso e ai solução. A contrapartida, porém, também não foi a solução. Ela manifestou-se
daquele que a menosprezar ou que deixa embotar em si o senso para o na reação católica romana, já descrita, e na reação protestante conservadora,
conhecimento! Mas ela não consegue dar hoje resposta às perguntas conhecida como fundamentalismo. A melhor solução só veio após a Primeira
pela origem, destino e finalidade, assim como não o conseguiu há dois Guerra Mundial, mas então parte dos cristãos ocidentais já havia optado pelo
ou três mil anos. É verdade que ela nos dá conta de realidades, desvenda fundamentalismo.
contradições, relaciona fenômenos e corrige os enganos de nossos
sentidos e concepções. Mas sobre onde começa a curva do mundo e a
curva de nossa própria vida - aquela curva da qual só nos mostra uma
parte - e para onde essa curva conduz, sobre isso a ciência nada nos
ensina. Se, porém, afirmarmos com firme vontade as forças e os valores
que resplandecem nos ápices de nossa vida interior como nosso supremo
bem, sim, como nosso verdadeiro ser, se tivermos a seriedade e a cora-
gem de deixá-los valer como o real e de orientarmos a vida neles, e se
então observarmos o processo da história da humanidade, perseguirmos
seu desenvolvimento que se move em direção ao alto e nele
procurarmos, esforçados e servis, a comunhão dos espíritos - não
incidiremos em tédio e desalento, mas teremos certeza de Deus, do Deus
que Jesus Cristo designou de seu pai e que também é nosso pai.
Esse otimismo de Harnack e sua confiança no progresso tornaram-se
sempre mais problemáticos à medida que se foi descobrindo o caráter estranho
da mensagem bíblica em seu confronto com o mundo moderno.
Quem mais refletiu a relação entre fé e história foi Ernst Troeltsch, citado,
mencionado e discutido até o presente. Troeltsch continua atual, pois
concentrou suas pesquisas na relação entre cristianismo e cultura moderna, en-
tre revelação e história, entre liberdade pessoal e condicionamentos sociais.
Sua obra sobre as relações entre cristianismo e cultura, A Doutrina Social das
Igrejas Cristãs, de 1912, é mencionada seguidamente. Troeltsch historiciza todo e
qualquer pensamento. Não há nada que escape ao condicionamento histórico.
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contra-ofensiva a uma Teologia orientada em um método que interpretava os
FUNDAMENTALISMO conteúdos da fé, especialmente os textos bíblicos, a partir de uma perspectiva
histórico-crítica. 0 protestantismo estava se aliando à ciência moderna - e esse
Quem se ocupa com a temática do fundamentalismo avança por um era o seu pecado. A esse modernismo os fundamentalistas opuseram seus
território escorregadio. Quanto mais cresce o caudal da literatura acerca do fundamentais (fundamentais). Fundamentals eram os conteúdos de fé, verdades
fundamentalismo, tanto mais difusos se tornam os contornos do conceito e da absolutas e intocáveis, que deveriam ficar imunes à ciência e à relativização
própria questão. Foi por isso que julgamos importante caminhar com o leitor por meio do método histórico. Os fundamentalistas valeram-se de
por todo o desenvolvimento do cristianismo desde o século XVII, para que ele terminologia muito semelhante à do catolicismo romano do final do século
entendesse o que, mais recentemente, começou a ser designado de XIX. Alguns temas passaram a ser considerados fundamentais: a inspiração
fundamentalismo. Há um uso realmente inflacionário do conceito, e esse vai verbal11, literal, da Bíblia; a afirmação da verdadeira divindade e do
sendo usado de forma mais ampla. Em decorrência, questões da política nascimento virginal12 de Jesus; seu sacrifício expiatório vicário13 por meio de
secular também passaram a ser caracterizadas de fundamentalismo. Penso nas seu sangue derramado e de sua ressurreição corporal; a segunda vinda de
posturas dos partidos verdes. Além disso, todas as formas de conservadorismo Cristo à Terra, na época vista como iminente, com sinais apocalípticos ou com
passaram a ser caracterizadas de fundamentalismo, tenham elas sido políticas o retorno para um reino milenar, intermediário; não-aceitação dos resultados
ou religiosas. Nos meios universitários, a pessoa que defende sua posição com da ciência moderna, quando não correspondiam ao que designavam de "fé
entusiasmo e veemência é caracterizada de "fundamentalista". bíblica"; exclusão do statusàe verdadeiro cristão de todos aqueles que não
Pode-se suspeitar que a conjuntura na qual o tema fundamentalismo aceitavam esse fundamentalismo.
aparece está ligada aos contornos nada precisos do conceito e da questão Os fundamentais descritos acima destacam dois aspectos distintos do
fundamentalismo. Quanto mais imprecisos são os contornos, tanto mais movimento fundamentalista. No fundamentalismo temos, em primeiro lugar,
facilmente se pode caracterizar algo ou alguém de fundamentalismo ou de oposição e reação contra transformações da religião, determinadas pela
fundamentalista. A isso ainda devemos acrescentar o fato mencionado antes Modernidade. 0 fundamentalista quer defender sua verdade religiosa, que ele
de que o conceito sempre é usado em relação ao outro: sempre são os outros vê ameaçada pelos "poderes" da Modernidade, designados de pluralismo,
que são fundamentalistas. relativismo, historicismo e destruição de autoridades. Quando estudamos os
No início do uso do conceito, a situação era outra. Grupos de cristãos conteúdos dos discursos e da autocaracterização dos movimentos funda-
protestantes conservadores atribuíram a si mesmos essa designação no mentalistas, deparamo-nos com um diagnóstico básico acerca da relação entre
princípio do século XX, nos Estados Unidos da América do Norte. Entre 1909 religião e Modernidade: 0 fundamentalista não pretende a modernização da
e 1915, foi publicada nos Estados Unidos uma série de textos, com edição
superior a três milhões de exemplares, sob o título The Fundamentals - a
11
Testimonium to the Truth (Os Fundamentais - um Testemunho em favor da Desenvolve-se, entre muitos protestantes, contra a leitura histórica e crítica dos textos bíblicos, a
convicção de que cada palavra, cada letra do texto bíblico foi "inspirada", ditada pelo Espírito Santo a seus
Verdade). Do título dessa série saiu o nome de um movimento, formado no autores. Por isso muitos também afirmam a "inerrância" do texto bíblico: a Bíblia não ensina nada que seja
último terço do século XIX por grupos de cristãos conservadores evange- cientificamente inexato. Se em Gênesis, por exemplo, a criação ocorreu em sete dias, estes sete dias são
realmente sete dias de 24 horas. Nesse caso, os fósseis que encontramos foram criados por Deus e por ele
licais. Esse foi crescendo, principalmente graças ao suporte financeiro de colocados na terra. Eles não provam períodos maiores para a criação, muito menos a evolução das espécies.
leigos bem estabelecidos. Temos aqui o nascimento do fundamentalismo '9 Desde os primórdios do cristianismo, partindo da leitura dos evangelhos de Mateus e Lucas, o
protestante, que determinará os Estados Unidos da América do Norte e que, cristianismo tem afirmado que a concepção de Jesus seria atividade do Espírito Santo em Maria, sem o
concurso de pai humano. Quando do nascimento de Jesus, o hímen de Maria teria permanecido intacto,
em pouco tempo, começará a ser exportado para outros continentes e países. tendo a mãe de Deus sido e permanecido virgem.
Os fundamentalistas entendiam-se como uma contra-ofensiva a um 13
Aconcepção do sacrifício expiatório e vicário vem originalmente do judaísmo, em que um cordeiro era
modernismo que, assim diziam, havia se apossado do mundo protestante. imolado a Deus em lugar do pecador e em seu favor, para o perdão, expiação, de sua culpa, pecado. No
cristianismo, Jesus passa a ser visto como o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo em virtude de
Particularmente, esse fundamentalismo entendia-se primeiro como uma sua morte na cruz.
Pg 85 Pgs 86 - 87
religião, mas a fundamentação religiosa, explícita, da Modernidade. Isso vale sionista16 passou a ter crescente influência. Ele estava determinado pela
para os fundamentalismos em qualquer parte do mundo. Não se busca, por religião, pela aceitação de um parâmetro religioso que falava da relação
exemplo, uma modernização do islã, mas a reislami-zação do mundo islâmico. especial de Deus para com seu povo eleito. Sem esse aspecto religioso, não se
Não se busca uma concepção secular do Estado de Israel, mas sua pode entender a colonização dos territórios ocupados por Israel nos últimos
fundamentação teocrático-religiosa. Não se busca uma secularização do anos. Ela representa o fim de uma concepção secular de Estado e sua
cristianismo, mas a recristianização do mundo ocidental. A esse aspecto substituição por uma identidade baseada na EretzIsrael, a Terra de Israel, da
devemos acrescentar, em segundo lugar, outra característica dos movimentos promessa bíblica. 0 interessante é que também fora do Estado de Israel, na
fundamentalistas. Trata-se da relação entre religião e política. Os adeptos do dispersão judaica, começa a se fortalecer um judaísmo religioso, que
movimento fundamentalista cristão estavam convictos, desde o início, de que encontramos, por exemplo, no Teshuwa, o movimentos dos "arrependidos que
a política deveria ser cristã: o mundo ocidental tem que voltar a ser cristão. retornam", ou num tipo de literatura na qual os autores confessam seu retorno
Nesse aspecto, os fundamentalistas distanciavam-se de seus pais quietistas14. ao judaísmo religioso.
Em conseqüência, exigiam que o Estado defendesse, nas escolas públicas, sua Dois anos após as mudanças ocorridas em Israel, o aiatolá Khomeini1*
concepção bí-blico-fundamentalista do ser humano. No Estado norte-ame- retornava a Teerã, proclamando uma república islâmica em 1979. No mesmo
ricano do Tennessee, um professor de Biologia chamado Scopesteve que se ano, muçulmanos armados ocuparam a mesquita de Meca em protesto contra a
defender em juízo da acusação por parte de fundamentalistas de que família real que governa a Arábia Saudita. Os dois fatos não surgiram do
transmitira a seus alunos a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin. acaso, mas fazem parte de um movimento que vem de longa data e que busca
Bem ao estilo fundamentalista, Scopes acabou sendo advertido pelo tribunal. 0 a reislamização17 do mundo islâmico, com o objetivo da expansão universal
caso de Scopes mostra que, para o fundamentalismo, a verdade religiosa é do islã. É uma reação à Modernidade ocidental, levada ao mundo islâmico
pressuposto para a ação política. Seu alvo é a sociedade perfeita. A sociedade pelo colonialismo europeu. Esse movimento vai da Malásia ao Senegal, do
perfeita só se estabelece quando todos se submetem à verdade religiosa, assim deserto africano às antigas repúblicas soviéticas e, entrementes, localiza-se
como foi ditada pelo Espírito Santo a determinadas pessoas e fixada nas nas periferias das metrópoles européias e latino-americanas.
páginas inerrantes, incapazes de erro, do texto bíblico. Ora, nesse aspecto, o No mesmo ano de 1979, em que Khomeini proclamava a república
fundamentalismo teve no Syllabus15 papal um grande companheiro. Ambos são islâmica, nos Estados Unidos o televangelista Jerry Fa/lawetfunàou o movimento
filhos da mesma época. "Moral Majority", com o qual buscava recrutar e organizar politicamente os
Essa investida sobre a política em nome da religião é aspecto central mais de 60 milhões de norte-americanos que se denominam de "cristãos
nos movimentos de renovação religiosa que começaram a se formar em todo o renascidos". A vitória eleitoral de Ronald Reagan em 1980 foi conquistada com o
mundo a partir da década de 1970. Para caracterizá-los, passou-se a usar o apoio da "Moral Majority" e de movimentos similares. Entre os pré-
conceito fundamentalismo, que, na realidade, é uma ampliação do conceito candidatos republicanos estava Pat Robertson, pregador da igreja eletrônica26.
original de fundamentalismo, com o qual nos deparamos no final do século Os exemplos são muitos. No campo católico-romano, formam-se
XIX e no início do século XX. Em 1977, por ocasião das eleições para o grupos tradicionalistas, integralistas, cujos representantes mais extremados
parlamento de Israel, o Partido Trabalhista, que representava um socialismo foram o bispo Lefebvre, na França, e Plínio Correia de Oliveira, fundador do
leigo e democrático, perdeu a maioria. Em contrapartida, um movimento movimento Tradição, Família e Propriedade no Brasil, no qual contava com o apoio
de bispos como Dom Sigaud e Dom Eugênio de Castro Meyer. No

16
Em sua obra O Estado Judaico, o escritor e jornalista Theodor Herzl (1860-1904) argumentava que,
14
Concepção que se opõe a qualquer tipo de ativismo, seja ele ético ou religioso. Como Deus é todo- como nem a integração e a assimilação dos judeus conseguiram acabar com a perseguição a eles, a
poderoso, devemos submeter-nos ao destino e desistir de qualquer intervenção no desenrolar normal das única solução seria dar-lhes um Estado próprio. Essa concepção foi chamada de sionismo, palavra vinda
coisas. do monte Sião, colina sobre a qual Jerusalém foi construída parcialmente.
15
Cf. acima p. 60. monarquia iraniana e introdutor da república islâmica naquele país.
Pgs 88 - 89 Pgs 90 - 91
protestantismo brasileiro surgiu, por ocasião da Constituinte brasileira da Seja permitido um trocadilho: ele é um antimodernismo moderno. Ele surge
década de 1980, o "Bloco Parlamentar Evangélico", que pretendeu introduzir em meio a condições culturais de uma sociedade secular ou que está co-
na Constituição parágrafos que proibiam, por exemplo, o homossexualismo. meçando a se secularizar.
Desde o final da década de 1990, há tentativas de tornar o Partido Liberal (PL) Para evitar generalizações, é importante lembrar que a Modernidade foi
um partido evangélico. determinada em seu surgimento e em sua história por esperanças seculares de
Quando se verificam ou listam esses fatos, só se pode chegar à salvação e por promessas seculares de redenção, com caráter religioso-secular.
conclusão de que a religião retornou à história. Não conseguimos mais A Modernidade secular tem a sua história religiosa, sua secularidade religiosa.
entender a situação do mundo atual se não estivermos dispostos a reconhecer Ela própria está baseada em fundamentalismos que podem ser expressos na
que a religião também é um fator do processo histórico. trindade: fé na história como história do progresso do mundo; fé na ciência
Para quem foi formado na tradição iluminista ocidental, também preparada como crença popular; fé na política como messianismo político. Basta lembrar
por movimentos como o pietismo, essa constatação é sinistra. Sinistra porque a transformação das proposições do pai do positivismo, Augusto Comte, em
o surgimento de movimentos fundamentalistas evidencia que a história da Religião da Humanidade, com larga difusão no Brasil até 1945. Basta lembrar a
Modernidade segue um curso diferente daquele propalado pelo culto à razão. transformação da teoria da evolução das espécies de Darwin em dogma. Basta
A razão ilustrada tinha certeza do progresso, da evolução, e assegurava que a lembrar a idéia do paraíso socialista de Karl Marx e a quase-transformação
religião atrapalhava o ser humano na realização de seu verdadeiro destino. No dos pressupostos marxistas em religião. Algo semelhante está a acontecer com
decorrer do processo emancipatório da história, isto é, quanto mais o ser a dogmatização de teorias econômicas mais recentes.
humano se emancipasse de Deus, sempre mais a religião iria desaparecer, Na sociedade ocidental atual, parece que a marcha vitoriosa do
passando a fazer parte de um estágio ultrapassado da história da humanidade. fundamentalismo religioso secular está despida de sentido ou vai perdendo
Alguns chegaram a afirmar que, se não viesse a desaparecer totalmente, seria sentido. Há uma crise na história religiosa secular. A Modernidade está
privatizada, sem ter qualquer influência na conformação da sociedade. Para insegura quanto à sua fé, à sua certeza secular. O progresso das ciências leva
esse tipo de pensamento, os movimentos fundamentalistas são estranhos e realmente ao fim da miséria? O progresso da história leva realmente ao fim de
perigosos. Eles são a comprovação de que verdades religiosas podem voltar a guerras e matanças? Esse é o pano de fundo para podermos entender o
dominar o ser humano, que o ser humano pode voltar a viver sem as luzes da surgimento de movimentos fundamentalistas.
razão, que pode mergulhar novamente nas trevas. Na teoria iluminista sobre a Aqui temos a base para entender a diferença do fundamentalismo atual
religião, essa volta não estava prevista. em relação àquele do início do século XX. No início do século XX, fazia-se
Decorre daí o fato de que, tanto em folhetins como em publicações da oposição às crenças seculares, ao cientificismo, à fé no progresso. Hoje
área das ciências sociais, pode-se ler a afirmação de que o fundamentalismo buscam-se respostas fundamentalistas a questões surgidas com a perda da
representa perigo por ser fanatismo religioso ou político, renovação das certeza secular. O islamismo observou isso muito bem em relação ao
"trevas" da Idade Média, fim das luzes da razão. Fala-se em "tentação Ocidente. A emancipação de Deus levou à maior exploração do humano. A
fundamentalista", em "fantasma" que estaria perpassando o mundo moderno, emancipação da mulher levou a que ela pudesse ser mais facilmente explorada
que seria necessário "construir diques" contra o "dilúvio fundamentalista". no mercado de trabalho e no consumismo sexista. Seu grande discurso é a
No entanto, o retorno da religião não é apenas fundamentalismo. É rejeição dos valores da cultura ocidental, pois no próprio Ocidente ficou claro
necessário que se pergunte pela importância cultural desses movimentos que a história da Modernidade ocidental é questionável, pois é fragmentária.
religiosos. Eles são expressão autêntica da cultura de nossos dias. 0 O adepto dos movimentos fundamentalistas reporta-se à tradição
fundamentalismo é expressão da própria Modernidade. A Modernidade criou religiosa pré-iluminista e sabe-se carregado por um fundamento que precede e
fundamentalismos como a crença no fim da religião, no progresso da que crê ser "mais forte" do que a questionável orientação no "humanismo
história... 0 fundamentalismo não é mero tradicionalismo ou antimodernismo. secular", no qual, por exemplo, os fundamentalistas norte-americanos vêem
Pgs 92 - 93
seu principal adversário. Num mundo em que a autoridade desmorona, o
fundamentalista sabe-se abrigado por uma autoridade que escapa à dúvida, à
problematização e à dissolução modernas.
A visão de história do fundamentalismo olha para o tempo em que se
vivia de acordo com a vontade de Deus, mira o futuro escatológico e
apocalíptico, o futuro preparado por Deus para o fim dos tempos, e apresenta
uma possibilidade de interpretação e de absorção coerente do presente. Em
sua crise, o presente é, justamente por causa dos sinais de sua decadência,
prenúncio e garantia da salvação que vem.
Por causa de sua importância para o comportamento ético individual,
pode-se nominar a conversão como outra característica do fundamentalismo. Ela
está relacionada à garantia de uma postura fundamentalista frente às experiên-
cias de crise do mundo moderno. A experiência da conversão é norma de vida
em muitos movimentos fundamentalistas. Ela tem significado como
orientação e sentido para a vida. Por causa da conversão, a biografia do
convertido adquire contorno e segurança. Ela pode ser estruturada a partir da
conversão. "Conversão" significa, numa perspectiva sociopsi-cológica, saber a
qual lugar pertencemos em conseqüência de nossa biografia.
O fundamentalista experimenta a sociedade que o cerca em decadência
moral e anômica, sem lei e sem normas. Por isso a comunidade
fundamentalista concede-lhe descanso e segurança em razão de suas regras
severas e normativas. Assim, o fundamentalismo torna-se convidativo e
atraente para uma parcela significativa da humanidade, pois oferece segurança
em meio a verdades que se desvanecem, porto seguro em meio a pluralidades,
relativizações e dissoluções das certezas antigas. 0 fundamentalismo torna-se
instrumento de verificação para uma Modernidade que laborou em equívoco e
que produziu monstros em nome de uma outra divindade, que não é Javé, nem
o Pai de Jesus, nem Alá, mas o mercado. Nosso mundo busca desesperada-
mente uma nova ordem de valores.

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