Você está na página 1de 8

A HUMANIZAÇÃO NO ATENDIMENTO: INTERFACES ENTRE ...

| 21

A HUMANIZAÇÃO NO ATENDIMENTO:
INTERFACES ENTRE PSICOLOGIA DA SAÚDE E
SAÚDE COLETIVA
THE HUMANIZATION OF SERVICE:
INTERFACES BETWEEN HEALTH PSYCHOLOGY AND
COLLECTIVE HEALTH
Ana Paula Ferreira dos Santos Souza
Psicóloga. Especialista em Saúde Pública (ESP/RS-FIOCRUZ). Consultora Técnica em Gestão em Saúde da UNESCO.
E-mail: anapsiana@ig.com.br
Fernanda Torres de Carvalho
Psicóloga. Mestre em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS).
E-mail: torresdecarvalho@yahoo.com.br
Milena Nardini
Psicóloga. Mestranda em Psicologia Social e da Personalidade da PUCRS.
E-mail: milenanardini@yahoo.com.br
Prisla Ücker Calvetti
Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS/CNPq). Especialista em Saúde Pública (ESP/RS-FIOCRUZ).
Consultora Técnica da Seção de Controle em DST/Aids na SES / RS / UNESCO.
E-mail: prisla.calvetti@gmail.com
Maria Estelita Gil
Psicóloga. Professora da Faculdade de Psicologia da PUCRS e HSL-PUCRS

RESUMO ABSTRACT
A partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), From the moment the Sistema Único de Saúde (SUS) (Na-
garantido pela Constituição Federal Brasileira em 1988, tional Health System), which is part of the Brazilian Fed-
houve um marco nas políticas públicas no que se refere ao eral Constitution, was implanted, there were important
conceito de saúde, pois este passa a garantir uma adequa- changes in public health policies. These include actions
da qualidade de vida dos cidadãos, através da atenção à for the improvement in the quality of life through atten-
saúde mental, trabalho, moradia e educação, entre outros tion to subjects like mental health, work, housing and
aspectos. Através da concepção da saúde, enquanto direi- education. Working with the conception that health is a
to de todos e dever do Estado, entram em vigor os prin- universal right and a State obligation, the SUS involves
cípios orientadores de universalidade, eqüidade, integra- conceptions of universality, equity, integral health atten-
lidade e participação social. Deste modo, as transforma- tion and social participation. Thus, the transformations
ções que resultaram no SUS, de alguma maneira, afeta- that resulted in the SUS somehow affected Psychology,
ram a Psicologia, em especial o campo da Psicologia da especially in the health field. This study aims to discuss
Saúde. Entendendo-se a importância de discutir aspectos the humanization in collective health services. The article
em torno da prática psicológica no âmbito da saúde, o has a theoretical description and analyzes the relationship
presente trabalho tem por objetivo abordar o tema da between professionals and patients in the Public Health
humanização do atendimento em Saúde Coletiva. Inicial- System. Topics relative to the humanization of assistance
mente, reflete-se sobre atendimento humanizado, exa- by the SUS conception and principles of Bioethics guide
minando aspectos da relação entre o profissional da Psi- this theoretical-descriptive paper.
cologia e o usuário, em um contexto público de saúde. Em
seguida, abordam-se pontos relativos a tal humanização,
de acordo com os pressupostos do SUS, bem como atra-
vés dos princípios da Bioética. Portanto, trata-se de um
estudo teórico-descritivo.

PALAVRAS-CHAVE KEY WORDS


Sistema Único de Saúde. Saúde pública. Psicologia. Hu- National Health System (BR). Public health. Psychology.
manização da assistência. Bioética. Humanization of assistance. Bioethics.

Boletim da Saúde | Porto Alegre | Volume 19 | Número 2 | Jul./Dez. 2005


22 | Ana Paula Ferreira dos Santos Souza et al.

INTRODUÇÃO

Após a criação do Sistema Único de Saú- zado pressupõe o estreitamento do vínculo


de (SUS) garantida pela Constituição Federal entre os usuários do sistema e os profissionais
Brasileira em 1988, houve um marco nas polí- de saúde (RIO GRANDE DO SUL, 2002).
ticas públicas, no que se refere ao conceito de O atendimento no contexto de saúde ten-
saúde. Entende-se que é a partir dessas políti- de a uma visão interdisciplinar, enfocando os
cas públicas que se pretende uma adequada aspectos de qualidade de vida no processo saú-
qualidade de vida dos cidadãos, através da aten- de-doença. Esta preocupação refere-se a um
ção à saúde mental, trabalho, moradia e edu- movimento dentro das ciências humanas e bi-
cação, entre outros aspectos (BRASIL, 2003; ológicas, no sentido de valorizar parâmetros
RIO GRANDE DO SUL, 2002). mais amplos do que o controle de sintomas, a
A partir da concepção da saúde, enquanto diminuição da mortalidade ou o aumento da
direito de todos e dever do Estado, entram expectativa de vida (SEIDL; ZANNON, 2004).
em vigor os princípios orientadores de univer- Podemos compreender a Psicologia da Saúde
salidade, eqüidade, integralidade e participação como sendo uma prática que atua na integra-
social. A universalidade diz respeito ao acesso, ção da saúde mental com a saúde física e social
não devendo haver preconceitos e privilégios; do usuário, baseada em atitudes que visem à
a eqüidade se refere à igualdade na assistência preservação da vida.
à saúde; a integralidade contempla a idéia de A ética profissional aponta para a necessi-
integralidade e a participação social e traz a dade de vincular o atendimento prestado pelo
noção de democratização para o serviço efeti- trabalhador de saúde a um ato que se consti-
vo do controle social na gestão do sistema tua em um compromisso. Desta forma, quan-
(BRASIL, 2000). do o profissional de saúde se aproxima do ser
Os princípios do SUS na atenção à saúde humano, é importante que ele possa ser capaz
devem ser aplicados por uma equipe integra- de agir e refletir acerca da prática de sua rela-
da, restando uma assistência pautada na igual- ção com o usuário (FREIRE, 1995). Para tanto,
dade e no acesso universal. Além disso, a soci- torna-se fundamental o reconhecimento de que
edade é estimulada a se organizar e a partici- um profissional como o psicólogo da área da
par ativamente nas decisões da gestão em saú- saúde é um ser humano inserido em um con-
de. Inserida neste contexto, encontra-se a di- texto histórico-social, cujas inter-relações cons-
retriz referente à humanização da atenção, que troem o seu ser autêntico.
trata da co-responsabilização entre os servi- As transformações que resultaram no SUS
ços e a comunidade. O atendimento humani- afetam, de alguma maneira, a Psicologia, em

Boletim da Saúde | Porto Alegre | Volume 19 | Número 2 | Jul./Dez. 2005


A HUMANIZAÇÃO NO ATENDIMENTO: INTERFACES ENTRE ... | 23

especial o campo da Psicologia da Saúde. De (MATARAZZO, 1980). De acordo com Pessi-


acordo com a Sociedade Portuguesa de Psico- ni (2002), o profissional que lida com o sofri-
logia da Saúde (2004), a Psicologia da Saúde é mento humano deve atender à pessoa fragili-
uma área psi que abrange tudo o que o psicó- zada de forma a valorizar sua qualidade de vida,
logo faz no campo da saúde. Esta engloba tan- respeitando sua dignidade e seu processo na
to as atividades de promoção e proteção da tomada de decisões.
saúde, quanto a prevenção e o tratamento das Sugere-se que o modo eticamente corre-
doenças. Esta área de aplicação (que contem- to de um profissional da saúde exercer sua
pla educação, ambiente, entre outros âmbitos) profissão é buscando o bem do paciente (KI-
envolve tanto a investigação quanto a interven- PPER; CLOTET, 1998). Segundo os autores,
ção do psicólogo. dois princípios podem pautar a conduta do
No contexto da Psicologia da Saúde, ori- profissional de saúde, conforme Clotet, Feijó
ginada por Joseph Matarazzo, esta área abran- e Oliveira (2005): a beneficência e não-malefi-
ge as seguintes diretrizes a serem destacadas: cência. Esses princípios — juntamente com os
aprofundar de maneira científica as causas e de justiça e de autonomia — ao acompanha-
origens de determinadas doenças; promoção rem toda atividade e decisão do profissional
à saúde; prevenção e tratamento de doenças; da saúde, permitem auxiliá-lo nas possíveis si-
bem como promover Políticas de Saúde Públi- tuações de conflito frente à prática cotidiana.
ca e o aprimoramento do Sistema de Saúde Tendo em vista esta problematização, faz-se
Pública (STRAUB, 2005). pertinente esclarecer o que significam estes
Entendendo-se a importância de discutir princípios.
aspectos em torno da prática da Psicologia da A beneficência pode ser entendida como
Saúde no âmbito da Saúde Pública, o presente a oferta da melhor assistência ao paciente, como
artigo teórico-descritivo tem por objetivo prevenir, remover ou evitar o malefício; avali-
abordar o tema da humanização do atendimen- am-se vantagens, custos, riscos e benefícios.
to em Saúde Coletiva. Inicialmente, reflete-se Já o princípio de não-maleficência salienta que
sobre o atendimento humanizado em Psicolo- os atos diagnósticos ou terapêuticos devem
gia da Saúde, examinando aspectos da relação evitar o dano, na maior medida. O princípio da
entre profissional e usuário. Em seguida, abor- autonomia pode ser compreendido como o
dam-se pontos relativos a tal humanização a respeito ao direito da pessoa; esta tem o di-
partir de princípios do SUS e da Bioética. reito de decidir livremente sobre o consenti-
mento ou a recusa dos procedimentos ou tra-
tamentos. Este princípio pressupõe a capaci-
O ATENDIMENTO HUMANIZADO dade de entendimento do outro e de comuni-
EM PSICOLOGIA DA SAÚDE cação do profissional. Por último, o princípio
da justiça refere-se ao fato da população assis-
tida não adquirir riscos desproporcionais, sen-
A Psicologia da Saúde abrange o conheci-
do a assistência também direito desta. Deste
mento educacional, científico e profissional da
modo, os princípios básicos da Bioética de-
Psicologia para aplicá-lo em promoção e ma-
vem nortear a assistência e a pesquisa do pro-
nutenção da saúde; prevenção e tratamento da fissional da saúde frente às questões da vida
doença; identificação de sua origem; diagnós- humana (CLOTET; FEIJÓ; OLIVEIRA, 2005).
tico; e aperfeiçoamento da Política de Saúde Com base nestes princípios, uma das ma-

Boletim da Saúde | Porto Alegre | Volume 19 | Número 2 | Jul./Dez. 2005


24 | Ana Paula Ferreira dos Santos Souza et al.

neiras de se proporcionar um atendimento sistema de relações. Compreende-se aqui a


humanizado no contexto de Saúde Coletiva é relação de ajuda como um processo no qual
através do acolhimento dos usuários, atenden- ao menos uma das partes procura promover,
do às demandas biopsicossociais. Assim, pode- nos diversos segmentos envolvidos, o desen-
se pensar o acolhimento como um processo volvimento e uma melhor utilização funcional
que se inicia com a entrada do paciente na insti- de seus recursos internos. Baseando-se nesta
tuição até sua saída; não há, portanto, um mo- idéia, pode-se pensar que neste tipo de rela-
mento específico de acolhida, mas sim, um aten- ção, de um lado, encontra-se o profissional,
dimento integral que valorize o ser humano. inserido em um contexto de Saúde Coletiva e
O acolhimento, enquanto agir, pode per- de outro, pode haver tanto um indivíduo quan-
mear os processos relacionais em saúde, dis- to um grupo que demanda auxílio.
tanciando-se de atendimentos puramente tec- No cotidiano de saúde, surgem constan-
nocráticos e criando atendimentos mais huma- temente situações onde o processo de ajuda é
nizados. Este seria o deslocamento fundamen- a base para o tratamento das pessoas que pro-
tal operado pela própria noção de acolhimen- curam o serviço. Por isso, é importante que o
to (SILVEIRA; VIEIRA, 2005). trabalhador de saúde esteja preparado, tanto
O acolhimento inicial é muito importante, no sentido profissional e ético quanto no emo-
pois é um instrumento fundamental para o es- cional, para que possa ser resolutivo em suas
tabelecimento de um vínculo, que começa no ações. Assim, deve haver uma postura de es-
momento em que a pessoa chega na institui- cuta ativa, empatia, aceitação e entendimento
ção em busca de atendimento. O conceito de dinâmico para o adequado acolhimento do ser
vínculo é aqui concebido como processo de humano.
vinculação, sendo um movimento constante em O comportamento dos profissionais da
direção ao estabelecimento ou ao estreitamen- saúde pode favorecer o processo de acolhi-
to de uma relação contempladora de sentimen- mento dos usuários do serviço. Alguns aspec-
tos de mútua confiança. Segundo Silveira e Vi- tos devem ser observados neste processo,
eira (2005), este conceito, aliado à concepção como por exemplo: postura ética, confidenci-
do acolhimento, é capaz de facilitar um reor- alidade, respeito às diferenças, valorização da
denamento da lógica de recepção em saúde. participação do usuário, comportamento re-
Dentro deste entendimento, deve existir de ceptivo, disponibilização de informações, além
forma efetiva um comprometimento e uma do uso de linguagem clara. Com isso, busca-se
responsabilização de toda a equipe para com a qualificação das relações humanas, já que es-
o sofrimento do usuário — de forma individu- tas são a base das relações profissionais (OR-
al e coletiva — e para com o conseqüente tra- TIZ et al., 2004). Muitas vezes, o que se iden-
balho terapêutico dirigido ao seu cuidado. A tifica é a necessidade de humanização do pró-
partir disto, estabelece-se uma troca, ou seja, prio profissional, a fim de que se possa tam-
uma relação de ajuda entre o usuário e o pro- bém humanizar os atendimentos na área da
fissional — muitas vezes implícita —, a fim de saúde.
que ambos preservem o seu bem-estar físico O profissional da saúde, conforme Noguei-
e psicológico. ra (2001), ao desenvolver atividades de assis-
Segundo Campos (1997), os trabalhado- tência, além das ações e procedimentos técni-
res de saúde são produtos e produtores do cos ligados a sua área específica, estabelece

Boletim da Saúde | Porto Alegre | Volume 19 | Número 2 | Jul./Dez. 2005


A HUMANIZAÇÃO NO ATENDIMENTO: INTERFACES ENTRE ... | 25

relações interpessoais com as pessoas que houve a desvalorização dos trabalhadores da


atende. Seu trabalho depende, portanto, tanto saúde, o baixo investimento na reciclagem edu-
de qualidade técnica, quanto de interacional. cacional destes, além da pouca participação na
Parece haver considerável alívio e melhoria das gestão dos serviços. As pessoas seguem re-
condições do trabalho assistencial quando o produzindo modelos sem a reflexão dos moti-
profissional pode conhecer, por um lado, os vos e da finalidade de se realizar determinadas
motivos do comportamento do usuário e, por tarefas (BRASIL, 2003).
outro, os efeitos que esse comportamento lhe Essa situação acaba contribuindo para a
provoca. É também reconhecido o fato de que desqualificação da Saúde Coletiva, ao fragilizar,
muitas queixas e problemas dos usuários po- muitas vezes, o vínculo do profissional da saú-
dem ser resolvidos ou atenuados quando es- de com os usuários. Dentro deste contexto, o
tes se sentem compreendidos e respeitados que se pode fazer para qualificar os atendimen-
pelos profissionais. A falta de acolhimento ao tos no SUS? Como valorizar o ser humano pe-
usuário e de continência a seus aspectos emo- rante a carência de profissionais para lidar com
cionais pode conduzir ao abandono ou à dimi- a sua própria dimensão subjetiva?
nuição da adesão ao tratamento. Questões como essas são difíceis de se-
rem respondidas. Conforme Clotet (1996),
este caminho seria possível através de uma
A HUMANIZAÇÃO DO ATENDIMEN- reflexão que busque o valor supremo da pes-
TO A PARTIR DOS PRESSUPOSTOS soa, de sua vida, liberdade e autonomia em face
DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE do bem-estar da sociedade como um todo,
visando-se uma melhor qualidade de vida, tan-
A Política de Humanização da Assistência to do paciente quanto do profissional.
à Saúde (PHAS) foi desenvolvida no ano de Segundo Mattos (2001), há profissionais
2003 com o desafio de uma prática de saúde que, não conseguindo lidar com pessoas, pre-
em que o profissional passa a ver a pessoa na ocupam-se somente em tratar doenças, des-
sua totalidade e não apenas como um corpo considerando desejos, aspirações e sonhos. A
ou uma fragmentação, mas como um indiví- integralidade da atenção à saúde, na singulari-
duo que possui participação ativa no seu pro- dade de cada serviço, conforme Cecílio
cesso de saúde-doença (ANGNES, 2004). Esta (2001), pode ser vista como a busca da equi-
política surge na tentativa de integração entre pe de saúde pelo atendimento de tais necessi-
profissionais, usuários e gestores no SUS. dades, que devem ser tidas sempre em sua
Conforme exposto anteriormente, a saú- expressão singular. De acordo com Cecílio
de é concebida de uma forma ampla, não en- (1997), é necessário pensar em novos fluxos
tendida simplesmente como ausência de do- de atendimento em saúde a partir da realidade
ença, mas sim em relação a uma adequada qua- dos usuários e das novas tecnologias de traba-
lidade de vida. Deste modo, ao se lidar com as lho e gestão, que visem à humanização e ao
Políticas Públicas do SUS, deve-se sempre ter comprometimento com a vida das pessoas.
em vista os princípios da universalidade, da in- Neste sentido, a Psicologia da Saúde —
tegralidade e da eqüidade da atenção à saúde. que visa à integração da saúde mental com a
Desde a implantação do SUS, a Saúde saúde física e social do paciente — considera a
Coletiva passou por difíceis momentos, em que individualidade da pessoa e entende a sua dor

Boletim da Saúde | Porto Alegre | Volume 19 | Número 2 | Jul./Dez. 2005


26 | Ana Paula Ferreira dos Santos Souza et al.

como única, buscando compreender sua real terapêuticas necessárias. Para que haja uma boa
dimensão e a maneira pela qual este sofrimen- relação entre a unidade de saúde e a popula-
to repercute na vida. A psicologia tenta obser- ção, torna-se de fundamental importância a
var e compreender a dor em relação à realida- presença do acolhimento, do vínculo e da re-
de de vida da pessoa, buscando um planeja- solutividade. O cuidado à saúde envolve aten-
mento de intervenções e ações em saúde (AN- dimento individual, ações coletivas, participa-
GERAMI-CAMON, 2002). ção política e controle social, já que a escuta à
Para que haja o estabelecimento de um vida não pode estar orientada somente para
vínculo adequado — atendimento humanizado os processos fisiológicos ou patológicos. As-
— assim como para respeitar a própria indivi- sim, a construção da integralidade diz respeito
dualidade da pessoa, Francisconi e Goldim ao entendimento do contexto histórico, cultu-
(1998) entendem a confidencialidade como ral, político, ideológico e gerencial dos servi-
sendo uma das bases de sustentação em uma ços de saúde.
relação produtiva entre o profissional de saú- Neste âmbito, a Psicologia da Saúde visa,
de e o usuário dos serviços. através da natureza interdisciplinar, aprofundar
De acordo com Brasil (2003), a humani- pesquisas relacionadas à promoção da saúde
zação do SUS pode ser tomada, de forma ge- do indivíduo, preocupando-se em contribuir
ral, como uma mudança de visão dos profissi- para a prevenção da instalação de doenças e/
onais ao prestarem serviços aos usuários. Essa ou dos seus agravos, além de estimular a saú-
nova visão representa um aumento do grau de de integral do ser humano para a melhoria da
comprometimento em relação aos atendimen- sua qualidade de vida (REMOR, 1999; SAFOR-
tos e ao serviço como um todo, indicando a CADA et al., 2001).
co-responsabilidade de cada um.
A partir disto, pode-se pensar num maior
engajamento dos profissionais da saúde com CONSIDERAÇÕES FINAIS
os usuários e com a sua própria atuação pro-
fissional, dando visibilidade às dimensões éti- Conforme exposto ao longo deste artigo, a
ca, subjetiva e humana. Para tanto, é importan- Psicologia da Saúde tem por meta o estímulo à
te haver uma constante troca de saberes en- melhoria da qualidade de vida. Torna-se, assim,
tre as diferentes áreas do conhecimento atra- essencial o estreito vínculo entre serviço e co-
vés do diálogo, da participação da comunida- munidade, facilitando a adesão do usuário ao trata-
de e do trabalho em equipe. Assim, é preciso mento. Da mesma forma, a equipe de saúde tam-
que exista o cuidado, não somente dos usuári- bém deve agir de forma humanizada com os seus
os que buscam o serviço com alguma queixa integrantes — o que acaba por refletir, da mes-
física ou psíquica, mas também, o do profissi- ma maneira, na sua relação com o usuário.
onal de saúde, visto que parece haver uma No Brasil, o setor da saúde está submeti-
grande exigência para que este tenha saúde e do a um significativo processo de reforma de
equilíbrio suficientes para suportar a demanda Estado, protagonizado por fundamentais seg-
de sua área. mentos sociais e políticos, sendo sua ação ne-
A assistência à saúde — além de contem- cessária à continuidade e ao avanço do movi-
plar a clínica dos diversos profissionais deste mento pela Reforma Sanitária, assim como para
campo — de acordo com Kunrath, Kantorski a concretização do SUS (CECÍLIO, 1997).
e Borges (2002) depende das relações que a Desta forma, as várias instâncias do SUS de-
gestão pública estabelece com a população vem cumprir um papel indutor no sentido da
usuária do serviço, a fim de que esta se sinta mudança, tanto no campo das práticas de saú-
efetivamente cuidada e segura na obtenção das de como no campo da formação profissional

Boletim da Saúde | Porto Alegre | Volume 19 | Número 2 | Jul./Dez. 2005


A HUMANIZAÇÃO NO ATENDIMENTO: INTERFACES ENTRE ... | 27

(CECCIM; FEUERWERKER, 2004). prática de capacitações deve ser uma constan-


Para Müller (2001), a psicologia se insere te no cotidiano dos serviços, tendo em vista o
no cotidiano através da compreensão do vín- papel social que estes profissionais possuem
culo nas relações humanas. Este vínculo se dá de constituir novas formas de pensar e agir
pelas atitudes de respeito à dignidade e à inte- frente à diferença destes sujeitos.
gridade do outro. Isto significa, em termos de Cabe ressaltar que a relação entre o pro-
Bioética, o respeito à autonomia, à beneficên- fissional e a pessoa que está sendo atendida é
cia, à não-maleficência e à justiça em relação à facilitada quando este reconhece seus senti-
vida da pessoa. mentos frente a ela, visto que as emoções es-
A “porta de entrada” nos serviços de saú- tão sempre presentes nesta interação. Desta
de geralmente surge a partir da “doença”, o forma, os profissionais da saúde, estando ain-
que acaba por deixar em segundo plano os as- da mais qualificados, são recursos valiosos para
pectos sadios da pessoa. Assim, a Psicologia o entendimento da totalidade da pessoa que
da Saúde busca promover uma qualidade de está doente.
vida satisfatória, abrangendo todas as dimen- Faz-se significativo ressaltar como é im-
sões do ser humano. Neste contexto, Angera- portante que o profissional da saúde desenvol-
mi-Camon (2002), aponta a necessidade de va constantemente seus valores e princípios
uma psicologia que resgate a ética humana. éticos, bem como sua técnica — que deve ser
Os aspectos a serem compreendidos no cada vez mais aperfeiçoada. Neste contexto, a
vínculo entre profissional e usuário devem ser interface entre saúde coletiva e Psicologia da
dos campos biopsicossocial e espiritual. Mui- Saúde pode auxiliar no entendimento e no avan-
tas vezes, tais questões podem não estar ex- ço do planejamento de ações que visem a va-
plícitas na “queixa” dos usuários, mas perpas- lorização da condição humana e na integração
sam, de alguma forma, o seu dia-a-dia. Por isso, entre usuários, profissionais e gestores como
torna-se fundamental que o profissional de saú- finalidade da PHAS.
de seja receptivo aos aspectos da integralida-
de da pessoa atendida.
Neste âmbito, o atendimento torna-se REFERÊNCIAS
humanizado na medida em que o serviço e o
profissional buscam o seu próprio cuidado além ANGERAMI-CAMON, V. A. Psicologia da
da saúde dos usuários. Infelizmente, a concep- saúde: um novo significado para a prática clí-
ção de saúde que perpassa a formação desses nica. São Paulo: Pioneira, 2002.
profissionais parece ainda não condizer com o ANGNES, D. Humaniza saúde: diferencial do
entendimento amplo do conceito preconiza- atendimento na saúde. Boletim da Saúde.
do pelo Ministério da Saúde, e tampouco em Porto Alegre. v. 18, n. 2, p.09-15, 2004.
referência à prática em saúde. Em sua atuação, BRASIL. Legislação Federal e Estadual do SUS.
costuma-se observar que o cuidador se depa- Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990.
ra com questões humanas além de se defron- Dispõe sobre as condições para a promoção, pro-
tar com a doença física a ser resolvida, ou seja, teção e recuperação da saúde, a organização e fun-
a pessoa é muito mais do que um simples diag- cionamento dos serviços correspondentes e dá
nóstico, ela é uma totalidade complexa a ser outras providências. In: RIO GRANDE DO SUL.
— além de tratada — ouvida e compreendida. Secretaria da Saúde. Legislação Federal e Esta-
Neste sentido, faz-se importante problemati- dual do SUS. Porto Alegre, 2000. p. 22-41.
zarmos os modos como o profissional da saú- BRASIL. Ministério da Saúde. Humaniza SUS:
de lida com os usuários dos serviços e com a Política Nacional de Humanização. Brasília, DF, 2003.
equipe de saúde como um todo. Além disso, a CAMPOS, G. W. S. Subjetividade e Adminis-

Boletim da Saúde | Porto Alegre | Volume 19 | Número 2 | Jul./Dez. 2005


28 | Ana Paula Ferreira dos Santos Souza et al.

tração de Pessoal. In: MERHY, E; ONOCKO, TET, J. (Org.). Bioética. Porto Alegre: EDI-
R. (Org.) Agir em saúde: um desafio para o PUCRS, 2001. p. 85-92
público. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 229-266. NOGUEIRA, M. C. F. Humanização das re-
CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. C. M. O lações assistenciais: a formação do profissio-
quadrilátero da formação para a área da saúde: nal de saúde. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
ensino, gestão, atenção e controle social. Phy- ORTIZ, J. et al. Acolhimento em Porto Ale-
sis, São Paulo, v.14, n.1, p.41-65, 2004. gre: um SUS de todos para todos. Porto Ale-
CECÍLIO, L. C. O. Modelos tecnoassistenciais gre: Prefeitura de Porto Alegre, 2004.
em saúde: da pirâmide ao círculo, uma possi- PESSINI, L. Humanização da dor e sofrimento
bilidade a ser explorada. Cadernos de saúde humanos no contexto hospitalar. Bioética,
pública, São Paulo, v.13. 1997. Brasília, DF, v. 10, n. 2, 2002.
______. As necessidades de saúde como con- REMOR, E. Psicologia da saúde: apresentação,
ceito estruturante. In: MATTOS, R. A.; PINHEI- origens e perspectivas. Revista Psico, Porto
RO, R. (Org.). Os sentidos da integralida- Alegre, v. 30, n. 1, jan./jun., p. 205-217,1999.
de na atenção e no cuidado à saúde. Rio RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Estadual
de Janeiro: ABRASCO, 2001. 180 p. da Saúde. Guia de serviços de saúde men-
CLOTET, J. Por que bioética? In: ARCHER, L.; tal do Rio Grande do Sul: cuidar sim, ex-
BISCAIA, J.; OSWALD, W. (Ed.) Bioética. Lis- cluir não. Porto Alegre, 2002.
boa: São Paulo: Verbo, 1996. SAFORCADA, E. et al. El factor humano en la
CLOTET, J.; FEIJÓ, A.; OLIVEIRA, M. Bioética: uma salud pública: una mirada psicológica dirigida ha-
visão panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. cia la salud colectiva. Buenos Aires: Proas XXI, 2001.
FRANCISCONI, C. F.; GOLDIM, J. R. Aspec- SEIDL, E.; ZANNON, C. Qualidade de vida e saúde:
tos bioéticos da confidencialidade e privacidade. aspectos conceituais e metodológicos. Cadernos de
In: COSTA, S. I. F. et. al. (Ed.). Iniciação à bioéti- Saúde Pública, v. 20, n. 2, p. 580-588, 2004.
ca. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. SILVEIRA, D. P.; VIEIRA, A. L. S. Reflexões sobre
FREIRE, P. Educação e mudança. Rio de Ja- a ética do cuidado em saúde: desafios para a aten-
neiro: Paz e Terra, 1995. ção psicossocial no Brasil. Estudos e pesquisas
KIPPER, D. J.; CLOTET, J. Princípios da bene- em psicologia, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2005.
ficência e não-maleficência. In: COSTA, S. I. F. SOCIEDADE PORTUGUESA DE PSICOLOGIA
et. al. (Ed.). Iniciação à bioética. Brasília: DA SAÚDE. O que compreendemos sobre
Conselho Federal de Medicina, 1998. psicologia da saúde. Disponível em: <http://
KUNRATH, A.; KANTORSKI, I.; BORGES, R. www.sp-ps.com/frame_apresenta.html> Aces-
Organização regional da coordenação de so em 09 jan. 2004.
atenção integral à saúde. Porto Alegre: Es- STRAUB, R. Psicologia da saúde. Porto Ale-
cola de Saúde Pública, 2002. gre: Artmed, 2005.
MATARAZZO; J. D. Behavioral health and
behavioral medicine: frontiers for a new health
psychology. American psychologist, n. 35,
p. 807-817, 1980.
MATTOS, R. A. Os sentidos da integralidade:
algumas reflexões. In: MATTOS, R. A; PINHEI-
RO, R. (Org.). Os sentidos da integralida-
de na atenção e no cuidado à saúde. Rio
de Janeiro: ABRASCO. 2001. 180 p.
MÜLLER, M. C. Psicologia e bioética. In: CLO-

Boletim da Saúde | Porto Alegre | Volume 19 | Número 2 | Jul./Dez. 2005

Você também pode gostar