Inventar(iar) a Crítica Nacional: Apropriação da historiografia brasileira por
Antonio Candido na construção de seu objeto de estudos
Thales Biguinatti Carias
Monumentos, documentos, jornais, discursos, etc. Qualquer tipo de rastro é entendido
como possível de se compilar num arquivo. Como tal, nos é cara a acpeção de que o arquivo é um lugar destinado ao resguardo da memória. Esse afã por resistir à inexorabilidade do tempo é visto por Jacques Derrida com outros olhos. Para o autor, ao deter-se nas relações de Freud com a psicanálise e com o arquivo, podemos dispensar esse destino natural do arquivo por uma noção mais perspectivista, capaz de centralizar, nas questões do arquivo, um problema de cultura; ou, mais especificamente, de instituição. Com isso, retomamos um apontamento central, segundo o qual o arquivo seria uma exterioridade resultante dos embates entre a pulsão de morte e a pulsão de arquivo. Momentos anteriores aos próprios princípios de realidade e de prazer, o arquivo seria muito mais instável do que se apresenta ao se constituir no âmago da pulsão por sua própria destruição. Segundo Derrida, o mal de arquivo identifica-se ao mal radical; o mal que existe por ele mesmo e que Arendt já havia separado do mal kantiano, como mal sempre interessado em algo (nunca o mal por ele mesmo). De figura monolítica e transparente (o lugar da memória e da perpetuação de uma cultura), o arquivo passa a simbolizar a própria instabilidade dessa cultura a mobilizar desejos e pulsões. A partir disso, a proposta de ensaio final para a disciplina “Como viver junto”, ministrada pela professora Maria Elisa Rodrigues e vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL), se pautará em ler essa tensão entre pulsão de morte e desejo de arquivo nos interstícios da obra “Formação da Literatura Brasileira” (FLB), de Antonio Candido. Obra que dispensa demais apresentações, “FLB” parece se comportar com base, justamente, nesse conflito entre uma pulsão de morte e o desejo de arquivo que estruturam e institucionalizam um dado arcabouço cultural. Antonio Candido, nesses termos, seria um sujeito a organizar um arquivo específico, segundo questões e preocupações específicas e objetivando uma operacionalidade futura deste arquivo. Neste sentido, acreditamos ser cabível executar essa leitura da obra de Candido à luz dos apontamentos sobre o arquivo derridiano. Nossa hipótese central sobre a importância de “FLB” para o conjunto da obra de Antonio Candido pode ser resumida da seguinte forma: o autor plasmou, ao discurso da crítica literária, uma leitura específica da história nacional. Tendo como parâmetro os arcabouços da modernização brasileira, Candido organizou seu sistema literário com base num discurso historiográfico de grande monta e que referendava o ponto final desta formação, qual seja, o de surgimento do modernismo como síntese criadora das tendências estéticas fecundadas em solo nacional. Para tanto, dois marcos históricos específicos organizam e dão o sentido continuísta de “Formação da Literatura Brasileira”: a Inconfidência mineira e o processo de independência. Ao ler os escritores que compõem o sistema literário como portadores das tendências que sintetizam as aspirações universalistas e particularistas, Candido firmou o objeto de sua crítica literária nos interstícios do discurso historiográfico hegemônico sobre a formação do próprio Estado Nacional brasileiro. Desta forma, inconfidência e independência ganham, na escrita de “FLB”, uma completude que caminha para a nossa própria realização literária. Em outras palavras, resumiríamos essa hipótese afirmando que, para concretizar sua crítica literária com os parâmetros técnicos e científicos requeridos pelo novo contexto acadêmico, Candido lançou mão de um sentido histórico já assentado e legitimado em seu tempo histórico. É essa organização da história nacional que se confirma como um objeto de estudos para a nascente crítica literária (“epistemologia”?) e que vai garantir a manutenção do escopo civilizacional que orienta a obra de Antonio Candido (“ética”?). Os apontamentos de Derrida sobre o arquivo podem contribuir para aferir esta hipótese no seguinte sentido: Se nenhum arquivo passa incólume às intenções e projetos dos sujeitos que o organizam, podemos ler essa intencionalidade no modo como Antonio Candido, particularmente nos momentos finais do segundo volume de seu livro, excluivamente dedicado a uma espécie de antologia da crítica literária do século XIX, organiza o material da crítica literária anterior à sua própria? Haveria alguma fissura constitutiva do arcabouço literário brasileiro que a antologia de Candido tenta, senão esconder, ao menos incorporar ao sentido histórico impingido à organização dos textos críticos que ele exerce no capítulo referido? Como já afirmamos que Candido, possivelmente, constrói seu objeto de estudos a partir de uma dada matriz historiográfica, não estaria essa própria matriz, com forças de instituição, impingindo, no próprio Candido, uma certa organização do material de que ele dispõe? Mais do que resolver essas questões, o cruzamento de nossa leitura de “FLB” com alguns apontamentos de Derrida a respeito do arquivo pretendem evidenciar a pertinência delas e de sua abordagem no interior do texto já conssagrado de Antonio Candido.