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Ágora Filosófica

Tratado dos demônios em


Santo Tomás de Aquino
Prof. Dr. Elcias Ferreira da Costa1

Resumo: O artigo condensa o ensinamento de Santo Tomás de AQUINO


sobre os demônios, consoante a exposição da Suma Teológica. Começa pela
questão sobre como conciliar a maldade que caracteriza a ação dos demônios
com a bondade metafísica impressa pela sabedoria divina em todos os produtos
de sua criação, em seguida explora o aspecto sobre a natureza imaterial dos
anjos, sobre o poder dos demônios, a limitação da atuação dos demônios sobre
os homens, enfim, sobre a presença dos demônios como manifestação da glória
de Deus. Palavras-Chave: Tomás de Aquino, Demônios, Suma Teológica.

Abstract: This Article condenses St. Thomas Aquinas teaching on the devils,
according to “Summa Theologica” exposition. Starting from the question
related to the way of conciliating the wickedness that characterizes devils deed
with metaphysical goodness imprinted by divine wisdom in all his creation
products. Afterwards he explores the aspect about Angels immaterial nature,
about Devils power, devils actuation limits on men, at last about Devils
presence as God’s Glory manifestation. Key-words: Thomas Aquinas, Devils,
“Summa Theologica”.

Introdução

N a obra de santo Tomás de Aquino, pode-se considerar como


sendo um tratado sobre os demônios a parte do tratado dos
Anjos, tema de que se ocupou nas Questões 50 a 64 e nas Ques-
tões 107 a 114 da Primeira Parte da Suma Teológica.
Inicialmente, advertimos que a sua doutrina sobre os de-
mônios não resulta de uma afirmação a priori, mas, como questão
teologal, que vai buscar fundamentação nas Sagradas Escrituras e
na Tradição Patrística, destacando-se, nesta, os nomes de Agosti-
nho, Gregório Magno e do pseudo-Dionísio.
Abeberando-se em Aristóteles, considerou também o
aspecto filosófico do tema, ao estudar as substâncias imateriais.
Tratando ex professo, das substâncias puramente imateriais apro-
fundou a investigação do tema em uma das mais metafísicas, das
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suas Questões Disputadas, intitulada Sobre as Substâncias Espi-


rituais.
Nas supra-aludidas Questões da Suma Teológica, pres-
supõe o santo Doutor que o leitor tenha noção de que os demônios
são anjos, que, decaídos de sua primitiva condição de ministros
de Deus, nada perderam da sua natureza e de suas características
essenciais.

1 Porque existem demônios?

Nosso primeiro questionamento será: Porque existem os


demônios ? No incomensurável teatro do universo criado, apre-
sentam-se os demônios como um bem ou como um mal?
Interesse fundamental suscita a pergunta que, ademais,
é desafiadora para quantos não estejam familiarizados com os
pressupostos de natureza metafísica.
Afirmar que a presença dos demônios no meio da cria-
ção constitui um mal é colocar-se contra o princípio metafísico,
sustentado por Tomás de Aquino e por Aristóteles, de que o ente
e o bem se convertem, que todo ente é bom e que todo bem
é ente. Dizer que os demônios sejam um mal parece caluniar o
Criador, de cuja vontade onipotente e perfeitíssima se originaram
os demônios como seres criados. Se tal assertiva não constituísse
de per si uma inferência lógica da própria noção de Deus, como
ser perfeitíssimo e causa eficiente de todos os seres, teríamos o
oráculo da Sagrada Escritura que nos informa que, concluída toda
a obra da criação, “Deus viu que tudo era muito bom” (Gênesis,
1,31).
Razão indiscutível logo se impõe: tudo que existe, exis-
te enquanto Deus o sustém no existir, e qualquer ente do qual
o Criador afastasse a sua providência em sustendo-o no existir,
seria reduzido ao nada.
A hipótese aqui formulada é, também, sob certo aspecto,
caluniosa a Deus, pois, como ser perfeitíssimo que é, nada faz er-
rado, não cabendo qualquer hipótese de que pudesse arrepender-
se de qualquer cousa que tivesse criado, a ponto de destruir-lhe a

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existência. Daí a certeza de que o demônio, se existe, e enquanto


existe, existe porque Deus o quer; e o sustenta no existir; é uma
criatura de Deus e veio da sabedoria onipotente de Deus.
Literalmente argumenta Santo Tomás:

Sendo Deus o Existir por essência, é necessário que o


existir criado seja seu efeito próprio, como queimar é
efeito próprio do fogo. Esse efeito, Deus o causa nas
coisas, não apenas quando estas começam a existir, mas
também enquanto são mantidas no existir, à semelhança
da luz que, enquanto o ar permanece luminoso, é causa-
da no ar pelo sol. Portanto, enquanto uma coisa possui o
existir, é necessário que Deus esteja presente, segundo o
modo pelo qual possui o existir. Ora, o existir é o que há
de mais íntimo e de mais profundo em todas as coisas,
pois é o princípio formal de tudo o que existe, como já
se explicou. Necessário então se faz que Deus esteja em
todas as coisas, e na sua mais profunda intimidade2.

Como, porém, conciliar essas duas afirmações: o demô-


nio é descrito nas Escrituras como maus, como agentes do mal
– (bastaria aqui lembrar a advertência de S. Pedro, “rugindo
como um leão, o demônio procura alguém para devorar3”) – en-
tretanto, em sendo mantidos no existir por Deus, sumo Bem, não
podem ser considerados como maus, ao menos, não podem ser
considerados como maus por essência.
Aqui Santo Tomás sugere que se faça uma distinção en-
tre dois aspectos que se devem considerar no existir dos demô-
nios: de um lado, a própria natureza angelical, como obra de Deus
e, de outro, a deformidade – digamos assim: a privação daquela
graça original – deformidade acrescida à natureza feita por Deus,
como resultante do pecado:

Pois bem – conclui o Angélico – não se deve afirmar


que Deus esteja nos demônios, em sentido absolu-
to, e sim que esteja nos demônios, mas enquanto são
realidades,(poderia mesmo ter dito, “mas enquanto são
naturezas” – Nota do autor). Pois, nas coisas que designam
uma natureza, em que o pecado não produziu deformida-
de, deve-se afirmar que, de modo absoluto, Deus aí está.
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Deparamo-nos aqui com dois aspectos da nossa consi-


deração, a saber, de um lado, a natureza dos demônios como tal,
e, de outro, algo que a essa natureza se acrescentou, como aci-
dente, produzido como um efeito do agir dos próprios demônios,
enquanto estavam dotados de livre arbítrio.
Se algo de mal é praticado pelos demônios – e quantos
males têm sido praticados pelos demônios desde que o mundo é
mundo! – são efeitos do livre arbítrio e não da natureza angélica,
como tal.
O que Santo Tomás quis dizer é que, no demônio, como
natureza criada por Deus e por ele sustentada no existir, Deus aí
está; não estando, porém, naquela deformidade, que consiste na
privação de um bem, que foi perdido pelo livre arbítrio dos anjos
maus.
Costumo explicar a solução tomasiana com a distinção
seguinte: todo ser é um bem ontológico, e a própria ação dos
demônios, sob o ponto de vista ontológico, é um bem, tanto as-
sim que, se não fosse um bem, Deus não colaboraria para que
a conduta pecaminosa viesse à existência; entretanto, sob o ponto
de vista axiológico, isto é, considerando a sua relação com a fi-
nalidade a que deve servir toda conduta, a conduta pecaminosa,
sem deixar de ser um bem ontológico, acarreta uma inordinação
(isto é, um direcionamento em contrário da) com a finalidade de
sua existência, inordinação que Santo Tomás designa com a
expressão “deformidade”, constituindo-se em causa de mal e de
nocividade para os homens. Efetivamente, pecar outra coisa não
é senão desviar-se um ato da retidão que deve ter, seja na ordem
natural, seja na ordem artificial ou na ordem moral 4; pecar é des-
viar-se do direcionamento para o bem infinito e subsistente.
Mas, aqui, outro questionamento se impõe: ora, se todo
agir depende de uma moção divina, o agir dos demônios, quando
atuam em detrimento do bem dos homens, seria também efeito de
moção divina? E se assim o for, como ficaria a explicação de que
o ente se identifica com o bem? – Tomás de Aquino responde:

Se fosse supresso o mal de algumas partes do universo,


isto em muito degradaria a perfeição do mesmo, cuja be-
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leza provém da equilibrada união de bens e males, en-
quanto os males provêm das falhas dos bens, no entanto,
alguns bens provêm destes males, segundo dispõe a pro-
vidência do governante. De acordo com isso se verifica
que um canto se torna mais suave quando intercalado
por momentos de silêncio. Logo, não era conveniente
que a providência divina excluísse totalmente o mal das
coisas5.

A conduta dos anjos, que, sob o ponto de vista onto-


lógico, é sempre um bem, sob o ponto de vista de seu adequa-
mento com a ordem do Criador, efeito exclusivo do livre arbítrio
da criatura angélica, poderá ser um bem ou um mal axiológico,
consoante esteja ou não adequada com a ordem do Criador.
Por outro lado, porém, não se deve esquecer que o livre
arbítrio, como tal, do qual pode resultar a conduta inadequada
com a ordem da Providência, é algo de essencial na substância
angélica, predicado que não poderia ser extinto pela sabedoria di-
vina, sem que se destruísse a própria essência de anjo, arquitetada
pela mesma sabedoria divina.

2 A que finalidade serve a ação dos demônios?

Se o bem tem natureza de fim, porquanto bem é tudo


aquilo que pode causar apetibilidade, o questionamento que ago-
ra se impõe versa sobre que bem pode resultar da presença dos
demônios no universo humano? A que bem, como finalidade, se
destina a ação diabólica?
É curioso verificar como Tomás de Aquino resolveu esse
questionamento ao tratar de uma outra questão, aparentemente
desvinculada da presente, a saber, qual o lugar em que deverão
os demônios, ´por determinação da Providência, cumprir a pena
devida pelo seu pecado? A esse respeito, responde textualmente
o Angélico:

Por sua natureza estão os anjos entre Deus e os homens.


Está no plano da Providência divina que o bem dos se-
res inferiores seja providenciado pelos seres superiores.

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De duas maneiras cuida a Providência do bem-estar dos
homens: primeiro, de um modo direto, na medida em
que alguém é induzido para o bem e afastado do mal;
e tal cuidado é com toda conveniência confiada aos an-
jos bons; segundo, de uma maneira indireta, cuida Deus
do bem-estar dos homens, e isso ocorre quando alguém,
em sendo atacado, revida e combate o adversário. Essa
modalidade de cuidar pelo bem-estar dos homens era
conveniente que fosse destinada aos anjos maus, para
que, assim atuando, já que haviam pecado, não ficassem
inteiramente dispensados de prestarem algum serviço ao
bem da ordem natural6.

É muito interessante essa última justificação. Feitos por


Deus, visando a sua glorificação, elevados pela graça santificante
que os qualificou para merecerem a bem-aventurança e dotados
de livre arbítrio para escolherem a bem-aventurança, mesmo ten-
do pecado, não ficaram os anjos à margem do governo universal
da Providência divina; deverão, pelo contrário, atuar para a gló-
ria divina em dando aos homens oportunidade de vencerem as
tentações, provocadas por eles mesmos.
Está, pois, resolvida a terceira questão sobre qual a fina-
lidade querida por Deus em conservando os demônios no existir.
Essa finalidade é atingida, sempre que os demônios, em provando
os filhos de Deus e em sendo vencidos nessa ação de tentar, fazem
resplender a glória do Criador.
A seguir, Santo Tomás extrai a conclusão procurada na
indagação sobre o lugar em que os demônios devem pagar a pena
pelo seu pecado:

Assim – diz ele – dois lugares são indicados para os de-


mônios cumprirem as penas merecidas por seus pecados:
um, para pagar a pena pela culpa do pecado da soberba
e da revolta, e este lugar é o inferno; outro, para cumprir a
pena devida pelo mal que praticam ao atuarem contra os
filhos de Deus, e este lugar é a atmosfera tenebrosa7.

A respeito da indicação acima efetuada da morada dos


demônios na atmosfera caliginosa, convém observar que era essa

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uma crença, vinda desde a alta Idade Média, herdada da tradição


judaica, passando depois por Santo Anselmo, São Bernardo, Ru-
perto, bispo de Mans, Rabano Mauro, Alberto Magno, crença que
Santo Tomás de AQUINO aceitou . Os anjos rebeldes, uma vez
expulsos do céu empíreo, onde estavam antes do pecado, ficariam
perambulando pelo ar caliginoso, até o fim do mundo, quando,
após o juízo final, iriam para o inferno. Todavia, alguns demô-
nios, o diabo à frente, estariam, desde logo no inferno atormen-
tando as almas que foram para lá8.
Essa mesma crença admite Tomás, possivelmente por
respeito à autoridade dos doutores que o antecederam:
O cuidado pela salvação dos homens – prossegue
o Angélico – estende-se até o dia do juízo e até lá
perdurarão, tanto o serviço dos anjos bons quanto
as ações dos demônios. Por isso, até aquele dia, os
anjos bons serão enviados para nos protegerem, e
os demônios estarão na atmosfera caliginosa, para
nos provarem. Alguns deles, entretanto, estarão
agora no inferno, atormentando os que induziram
ao mal, ao passo que alguns anjos bons estarão
com as almas santas no céu. – Todavia, após o dia
do juízo, todos os maus, quer anjos, quer homens,
estarão no inferno; e os bons estarão no céu 9.

3 Serão os demônios maus por natureza?

Sendo os demônios naturezas intelectuais, jamais teriam


inclinação para o mal. Assim argumenta Santo Tomás: “Para se
afirmar que uma criatura opere, simultaneamente, ao ser criada,
tal operação teria que proceder do agente que lhe deu o existir”.
A seguir, compara a hipótese com a situação de uma pessoa que,
em decorrência de qualquer deficiência do genitor ou da genitora
tiver nascido aleijada. Uma tal pessoa andaria sempre claudican-
te, porque a sua natureza já veio deficiente ao ser gerada pelo
genitor. Ora o existir dos anjos foi-lhes dado por Deus, o qual não
pode ser causa de pecado. Conseqüentemente, não se pode pensar
que os demônios tenham sido maus por natureza10:

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Tudo que é, enquanto é, tem uma natureza, tende natu-
ralmente a um bem, uma vez que para existir procede de
um princípio bom, porque o efeito sempre se volta ao seu
princípio. No entanto, pode ocorrer que um bem parti-
cular esteja unido a um mal, como ao fogo está unido o
mal de consumir os outros; o bem universal, porém, este
nunca está unido a algum mal. Se a natureza de uma coi-
sa ordena-se a um bem particular, pode ela naturalmen-
te tender a algum mal, mas não enquanto mal, e sim
acidentalmente, por estar o mal unido a certo bem. É
evidente que toda natureza intelectual se ordena ao bem
universal, que por ela pode ser conhecido, e que é objeto
da vontade. Por isso, sendo os demônios naturezas inte-
lectuais, jamais terão inclinação natural para mal algum.
Logo não podem ser maus por natureza11.

Deus não poderia criar uma natureza má. Os anjos fo-


ram criados em graça santificante, como semente da glória, pela
qual mereciam a visão beatífica da divindade. Num segundo ins-
tante, imediatamente depois de criados com a graça santificante,
enquanto muitos anjos se fixaram no Verbo divino e alcançaram a
bem-aventurança, outros, ao invés, recusaram-se a aderir a Deus,
anulando, desse modo, aquele mérito que lhes fora dado junta-
mente com a graça santificante12.
Depois da primeira escolha, seja a que resultou na bem-
aventurança, seja a que os afastou da amizade divina, a vontade
dos anjos não muda mais

a vontade humana adere a seu objeto de uma maneira


mutável, podendo mesmo afastar-se de um objeto para
aderir ao contrário. A vontade do anjo, porém, adere a
seu objeto fixa e imovelmente. Por isso, considerando-se
o anjo antes da adesão, poderá livremente aderir a um
objeto e a seu oposto (mas nas coisas que, por natureza,
não quer). Contudo, depois de ter aderido, permanecerá
imóvel. Por isso, costumou-se dizer que o livre-arbítrio
do homem é flexível diante de coisas opostas, antes ou
depois da escolha; mas que o livre arbítrio do anjo é fle-
xível diante de coisas opostas, antes da escolha, mas não
depois não porém, depois. Essa a razão por que os anjos
bons, que sempre aderiram à justiça estão nela confirma-
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dos; entretanto, no que aos os anjos maus se referem, es-
tes, após terem pecado, ficaram obstinados no pecado13.

4 O que podem os demônios

Dois aspectos devem ser considerados na solução desse


questionamento: um deles, a capacidade ontológica dos demô-
nios, segundo a sua natureza, e outro, o poder, acrescido aos
demônios pela Providência divina, no governo do mundo.
Admitido que os demônios são anjos, a primeira indaga-
ção gira em torno de, demônios, ao perderem o estado de amiza-
de com Deus, tiveram, de algum modo, afetada a sua capacidade
natural.
Na solução do quesito, dois pontos devem ser levados
em conta: um, a respeito de quais predicados caraterizam a pró-
pria natureza dos anjos, e outro, sobre os dons e potencialidades
que lhes foram acrescidas com a graça santificante, a qual foi
concedida a todos os anjos no primeiro instante da sua criação.
Como conseqüência da queda, não perderam os anjos a
inteligência das idéias inatas, que receberam do Verbo, logo ao
serem criados. Apoiando-se na autoridade do pseudo-Dionísio,
diz Santo Tomás:

Os dons angélicos naturais, dados aos demônios não fo-


ram modificados, mas continuam íntegros e em grande
esplendor. Ora, o conhecimento da verdade está entre
esses dons naturais. Portanto, os demônios têm algum
conhecimento da verdade.
Há de se considerar ainda, no que concerne aos dons da
natureza angélica,que duplo é o conhecimento da verda-
de: um, que se tem pela graça, outro, que se tem nature-
za. O conhecimento que se tem pela graça são dois: um
especulativo, o qual se obtém quando são revelados os
segredos divinos. E outro, afetivo, o qual leva ao amor de
Deus, este último pertence ao dom da Sabedoria.
Destes três modos de conhecimento, o que pertence à
natureza angélica, a qual em si mesma consta de inte-
ligência ou espírito...esse não foi tirado dos demônios,
nem diminuído. Do conhecimento, que se obtém pela

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graça, o especulativo não foi totalmente tirado dos demô-
nios, mas diminuído...O conhecimento – o afetivo, que
foi também obtido pela graça – os demônios foram total-
mente privados, como também da caridade14.

Como substâncias puramente espirituais, não têm os


anjos composição de matéria e forma. São criaturas intelectuais;
o seu inteligir é superior ao nosso, não estando condicionado à
necessidade de abstrair da matéria a forma inteligível, sendo in-
tuitiva sua intelecção. Por outro lado, tudo quanto os anjos são
capazes de conhecer, considerada a sua espécie, já conhecem em
ato, não precisam, à semelhança do que ocorre com os humanos,
passar do conhecido ao desconhecido, pelo processo de raciocí-
nio

as substâncias superiores, os anjos, diversamente do


que ocorre com as substâncias espirituais inferiores (as
almas), são totalmente separadas de corpos materiais e
subsistentes no ser inteligível. Por isso recebem sua per-
feição inteligível de um influxo inteligível pelo qual, jun-
tamente com a natureza intelectual receberam de Deus as
espécies das coisas cognoscíveis15.
Sendo, no entanto, substâncias puramente espirituais,
todavia, porque, consoante Paulo na carta aos Hebreus
(1,14), “são todos administradores de Deus”, foi-lhes
dado conhecer as coisas singulares que são revestidas de
matéria. Não tivessem eles conhecimento das coisas sin-
gulares, nenhuma providência deles haveria neste mun-
do, pois os atos são dos singulares16.

Curiosa a distinção feita por Sto. Agostinho entre dois


gêneros de conhecimento dos anjos: um matutino outro vesperti-
no, distinção que é assumida por Tomás de Aquino:

Diz Agostinho que as coisas que preexistiram no Verbo


de Deus, desde a eternidade, dele saíram de dois modos:
primeiro, para o intelecto angélico, e segundo, para sub-
sistirem em suas próprias naturezas. Para o intelecto an-
gélico, porque Deus imprimiu na mente angélica a seme-
lhança das coisas que produziu em seu ser natural. Desde

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toda a eternidade existiram no Verbo, não só as essências
das coisas corporais, como também as de todas as criatu-
ras espirituais. Assim, em cada criatura espiritual, foram
impressas pelo Verbo de Deus todas as essências de todas
as coisas, tanto das corporais, como das espirituais [....] a
fim de que, mediante tais espécies impressas, conheces-
sem tanto as criaturas corporais, como as espirituais17.
Agostinho foi quem introduziu nos anjos a distinção en-
tre conhecimento vespertino e conhecimento matutino.
Para ele, os seis dias durante os quais, segundo o livro
do Gênesis, Deus fez todas as coisas, não são dias or-
dinários, determinados pelo movimento circular do sol
– porquanto se lê que o sol foi criado no quarto dia – mas
um só dia, a saber, o conhecimento dos anjos, represen-
tado por seis gêneros de coisas. Como no dia habitual,
a manhã é seu princípio e a tarde o seu término, assim
também o primeiro conhecimento que tiveram do ser
das coisas, chama-se conhecimento matutino. E este é o
conhecimento das coisas, conforme estão em Deus. Já o
conhecimento que tiveram do ser criado, enquanto existe
na própria natureza, chama-se conhecimento vespertino.
Assim se entende que o existir das coisas decorre do Ver-
bo, como de um principio primordial. e termina no existir
das coisas em sua própria natureza18.

Diante da afirmação de que os anjos são substâncias pu-


ramente espirituais, Tomás suscita a dificuldade para se explicar
qual a natureza dos corpos que, segundo relatos bíblicos, teriam
assumido os anjos, quando, por exemplo, apareceram a Abraão, a
Lot, aos habitantes de Sodoma, a Tobias, no Antigo Testamento, e
noutras aparições referidas nos livros do Novo Testamento. Antes
de tudo, adverte o Angélico que se não deve atribuir que fossem
aquelas aparições puro efeito da imaginação, sobretudo quando
se considera que muitas das aparições de anjos, relatadas na Sa-
grada Escritura, foram vistas por mais de uma pessoa19.
A primeira preocupação do Angélico, na tentativa de ex-
plicação, refere-se ao aspecto ontológico ou, mesmo teológico,
a saber: admitido que os anjos, por serem substâncias espirituais,
não são constituídos de matéria e forma, donde lhes vieram aque-
les corpos, através dos quais eles apareceram, nos acontecimen-

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tos narrados na Escritura sagrada? Se não eram corpos angélicos,


como se identificam com anjos?
Aí vem sua explicação:

Deve-se dizer que o corpo assumido une-se ao anjo,


não como sendo uma matéria une-se à sua forma, nem
mesmo como uma substância unida apenas como a seu
motor, mas como unida a um motor, representado pelo
corpo móvel assumido. A Sagrada Escritura descreve as
propriedades das coisas inteligíveis por meio de seme-
lhanças com as coisas sensíveis. Assim também os anjos,
pelo poder divino, assumem a forma de corpos sensíveis,
a fim de representarem as propriedades inteligíveis dos
anjos20.

Em seguida, tenta explicar como poderia o anjo ter as-


sumido uma forma de corpo, que nem fosse forma substancial
constituindo a sua própria natureza, nem pura alucinação:

Deve-se dizer que embora o ar, em sua rarefação, não


contenha figura nem cor, contudo, quando condensado
pode configurar-se e colorir-se, como se vê nas nuvens. É
portanto, a partir do ar que os anjos assumem os corpos,
condensando-o pelo poder divino, na quantidade neces-
sária para formar um corpo21.

Sua preocupação está em evitar que se pense que um


anjo “tivesse virado gente”, ao aparecer nos relatos da Escritura.
Todavia, insiste ele em dizer que, nos corpos assumidos,
não exerceram os anjos quaisquer funções vitais, como sejam,
sentir, alimentar-se. Invoca em abono dessa afirmação o exem-
plo referido na apócope bíblica (Tobias, 12,18), em que, o Anjo
Rafael, recusa-se a sentar-se à mesa de Tobias para comer, di-
zendo: “Quando eu estava contigo, parecia que estava comendo
e bebendo, todavia eu me nutro de um alimento e de uma bebida
invisíveis”22.
Outra curiosidade na questão angelológica de Santo To-
más verificamos na sua tentativa de explicar uma das crendi-
ces do folclore medieval, que falavam de conjunção sexual dos
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demônios, que apareciam, ora em forma de mulher para seduzir


homens, ora em forma de homens para seduzir mulheres. Uma
dessas crendices era a de que os demônios assumiam formas hu-
manas, a fim de seduzir as o pessoas e induzi-las a conjunções
sexuais. Para corroborar essa crendice, alguns comentadores da
Sagrada Escritura, em interpretando “aquele texto do Gênesis
(6,4), segundo o qual, depois que os filhos de Deus se uniram
às filhas dos homens, elas geraram, e seus filhos foram homens
poderosos e famosos no mundo, entenderam a expressão “filhos
de Deus” como significando os anjos, os quais se teriam unido
sexualmente às filhas dos homens, tendo desse relacionamento
nascido gigantes, homens poderosos e famosos no mundo.
Diante da interpretação transmitida por muitos autores
da alta Idade Média, Santo Tomás, sem tomar posição, reproduz,
ipsis litteris, a opinião de Santo Agostinho, nos seguintes ter-
mos:

Muitos asseguram ter experiência, ou ter ouvido dizer


por aqueles que a tiveram, que os silvanos e os faunos
(vulgarmente chamados íncubos) muitas vezes se apre-
sentaram a mulheres, e que as solicitaram e tiveram rela-
ção sexual com elas. Negá-lo parece imprudência. Mas,
os santos anjos de Deus não poderiam cair dessa forma
antes do dilúvio. Donde se conclui que por filhos de Deus
se entendem os filhos de Set, que eram bons. E a Escritu-
ra nomeia filhas dos homens aquelas que eram da estirpe
de Caim. Nem se deve admirar que dessa união tenham
nascido gigantes. Aliás nem todos eram gigantes, e antes
do dilúvio os gigantes eram em maior número do que
depois23.

Até aí, muito bem. Porém, a seguir, o santo Doutor faz


uma acrobacia intelectual complicada, a fim de encontrar uma
explicação coerente com a sua tese de que os os demônios, como
puros espíritos, não são compostos de matéria e forma, conse-
quentemente, não têm como os humanos um corpo, capaz de exer-
cer funções vitais e também reprodutoras. Se Agostinho, uma das
autoridades mais respeitáveis para Tomás, considerou que seria
imprudência negar a possibilidade de contato sexual de demônios
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com pessoas, tornava-se imperioso agora encontrar uma fórmula


que explicasse a possibilidade de terem sido geradas pessoas hu-
manas, aparentemente produto de geração demoníaca.
Explica o Angélico que a geração que terá havido em
conseqüência de tais conjunções sexuais foi produto, não de um
sêmen produzido pelos demônios, ou pelos corpos assumidos por
eles, mas de um sêmen humano, que o demônio feminino (súcu-
bo) recebera, numa cópula com um homem verdadeiro, sêmen
que teria sido utilizado por outro demônio, este masculino (ín-
cubo), que, ao seduzir uma mulher verdadeira, nela depositou o
sêmen, que fora obtido pela cópula do demônio súcubo.
Algo assim como a fertilização in vitro, dos dias atuais.
Tal comentário de Tomás de Aquino, em sua aparência de risível,
merece uma explicação, e essa foi dada pelo Pe. Jean-Hervé Ni-
colas, o mesmo autor das notas, constantes da tradução da Suma
Teológica pelas Edições Loyola:

Semelhantes pormenores nos chocam. Mais uma vez, é


preciso ter presente que, para um autor da Idade Média,
tratava-se de fatos reconhecidos e que é preciso explicar.
Santo Tomás se empenha nisso, de uma maneira que nos
parece ingênua, mas sem nada subtrair-lhe do que é para
ele essencial: a pura espiritualidade do anjo e sua trans-
cendência em relação ao cosmo. Aliás, essas observações
possuem o caráter circunstancial de resposta a objeções,
correntes na época e que não desempenha nenhum papel
em sua angelologia.

Há uma razão a mais para explicar a atitude de Tomás


a respeito dessa crendice – incontestavelmente ridícula para um
leitor do século XXI. Tomás de Aquino nutria profundo respeito
em face da autoridade dos Padres da Igreja, para cujos ensina-
mentos procurava sempre encontrar uma fundamentação racional
ou teológica. Observe-se que essa lenda não constituía, nem para
ele nem para os Santos Padres, quase totalidade, uma doutrina
revelada, tendo sido recepcionada da tradição judaica. através do
livro apócrifo, chamado Livro de Henoch, escrito por volta do II
século antes de Cristo. Outro livro apócrifo, também fonte de tra-

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Ágora Filosófica

dição judaica, em que se reeditou a lenda do romance dos anjos


com as mulheres formosas, foi o chamado Livro dos Jubileus,
escrito por volta do século I de nossa era.
A lenda sobre o envolvimento sexual de anjos ou de de-
mônios com mulheres não foi admitida por Eusébio de Cesaréia,
Santo Atanásio, São Basílio, São Gregório Nazianzeno, Santo
Epifânio, Teodoreto, S. João Crisóstomo, São Cirilo de Alexan-
dria, São. Filiastro, São Cirilo de Jerusalém, Orígenes, Cassia-
no. Entretanto aceitaram-na S. Justino, Santo Irineu, Atenágoras,
Clemente de Alexandria, Tertuliano, S.Cirpriano, Lactâncio, San-
to Ambrosio, Sulpício Severo e o Poeta Comodiano. Quanto a
Agostinho, este parece que ficou indeciso, pois se não abraçou
firmemente, também não rejeita peremptoriamente24; citado pelo
Angélico disse que “negar a crença naquelas estórias parecia im-
prudência”.

5 O que não podem os demônios

O que aos anjos bons é impossível, a fortiori o é tam-


bém aos anjos decaídos. Primeiro, não podem fazer milagres.
Preliminarmente, distingue Santo Tomás entre o mila-
gre, propriamente dito, e os feitos extraordinários, que oferecem
aparência de milagre. O milagre, em sentido próprio e verdadeiro,
ocorre, diz ele, quando algo se faz além da ordem da natureza;
bem entendido, não apenas além da ordem da natureza de algo
particular, – pois, entendido dessa forma, , quando alguém lan-
çasse para o alto uma pedra, estaria fazendo milagre, por ser isto
contra a ordem da natureza da pedra, mas, quando algo é feito ul-
trapassando a ordem da natureza criada inteira. Ora, tão somente
Deus pode efetuar uma suspensão ou alteração na ordem da natu-
reza inteira. Tudo que um anjo, ou qualquer outra criatura realiza
com seu poder pessoal acontece dentro da ordem da natureza.
Sem dúvida, que o próprio Deus pode efetuar milagres,
por meio dos anjos, ou mesmo, dos homens santos.
Observa ainda o Angélico que muitos fatos, aparente-

Ano 6 • n. 1 • jan./jun. 2006 - 37


Departamento de Filosofia

mente prodigiosos, ultrapassam os limites de nosso atual conhe-


cimento da natureza e, sob esse aspecto, para nós, afiguram-se
como milagres. É possível que os demônios realizem algo, por
sua potência natural e que, para nosso conhecimento limitado, es-
teja fora da ordem da natureza. Assim é que os magos fazem coi-
sas prodigiosas, mediante uma colaboração dos demônios, com
os quais mantêm uma espécie de contrato particular25.
As lendas dos nossos matutos, que falam de pessoas que
são encantadas, transformando-se, por exemplo, em troncos, ou
mesmo, em fadas, são idéias absurdas, ao se considerar que a ma-
téria corporal não obedece em si mesma a ordens de anjos, sejam
bons e, a fortiori, sejam maus. Não podem mudar a matéria de
uma forma para outra.
Para a nossa geração, que conseguiu superar vários está-
gios de experiências em matéria de biologia, poderá parecer en-
genhosa a seguinte explicação que Santo Tomás oferece com re-
lação aos feitos extraordinários, operados pelos magos do Egito,
no tempo dos faraós.
Para explicar, dentro dessa perspectiva, os prodígios re-
alizados pelos magos de Faraó, ao transformarem certas coisas
em serpentes ou rãs, alega, apoiando-se em Agostinho, que em-
pregaram alguns dos germens que se encontram nos elementos do
mundo, a fim de obter tais efeitos:

Deve-se dizer que todas as transformações das coisas


corporais, passíveis de ser operadas pelas forças naturais,
às quais pertencem esses germens, podem também ser
operadas pelos demônios, se recorrerem a tais germens.
Assim, por exemplo, certas coisas são transformadas em
serpentes ou rãs, dado que estes podem ser gerados pela
putrefação26.

Não podem os demônios insinuar pensamentos nos hu-


manos, causando-os no interior, uma vez que o uso da potência
cognitiva depende da vontade. Quando se diz que o diabo excita
os pensamentos, desperta pensamento, deve-se entender unica-
mente que o demônio pode, mediante persuasão ou excitamento
de paixões, despertar pensamento de coisas, que já foram pensa-
38 - Universidade Católica de Pernambuco
Ágora Filosófica

das anteriormente27.
De igual maneira, deve-se dizer que não têm os anjos
nem os demônios poder para atuar sobre a imaginação das pesso-
as, imprimindo-lhes formas imaginárias que já não tenham sido
antes recebidas pelos sentidos das pessoas. Exatamente por isso,
não podem os demônios fazer com que um cego de nascença ima-
gine cores28.
Também não está no poder dos demônios conhecer o in-
terior das pessoas, os seus pensamentos ou os segredos do coração.
Só Deus tem esse poder de penetrar no sacrário da personalidade
humana, e a esse respeito já fora dito pelo profeta Jeremias (Jer.
17,9-10), falando em nome de Deus: “Perverso e impenetrável é o
coração do homem; quem o conhecerá? – Somente Eu, o Senhor,
que penetro os corações”29.
O que fica acessível ao poder dos demônios é apenas ex-
plorar a condição interior do homem, visando a tentá-lo no vício,
para o qual já tem propensão habitual. Pode, de certo modo, agir
sobre as forças inferiores do homem e, até certo ponto, inclinar a
vontade, não, porém, dominar a vontade das pessoas30.
Apoiando-se na autoridade de Agostinho, diz o Doutor
Comum que, às vezes, descobrem os demônios as disposições dos
homens, com toda facilidade, e não só as que se manifestam por
palavras, mas também as concebidas internamente, isso, “porém,
quando no corpo se manifesta qualquer sinal delas”31.
Também não podem os anjos bons e, a fortiori, tam-
bém não podem os demônios conhecer o futuro. Essa capacidade
– afirma enfaticamente o Doutor Angélico – é característica da di-
vindade, tal como está dito em Isaias: “Anunciai o que acontecerá
no futuro e saberemos que sois deuses”.
Qualquer intelecto criado – os anjos inclusive, sejam os
bons, sejam os demônios – por não participar da eternidade divi-
na, não pode abarcar o futuro, tal como é em seu ser32.
Poder-se-ia, dentro dos pressupostos metafísicos assu-
midos por Tomás, dizer: o objeto do intelecto é o Ente; o que não
existe e, aquilo do qual apenas existe a possibilidade para existir,
está fora da ordem do Ser, podendo-se apenas afirmar de tal ima-

Ano 6 • n. 1 • jan./jun. 2006 - 39


Departamento de Filosofia

ginado ser, que esteja na ordem do que poderá vir a ser. Conse-
qüentemente, não pode ser objeto do intelecto criado.
Com razoabilidade se dirá que os homens podem co-
nhecer o futuro em suas causas, ou por revelação de Deus. E, sob
esse aspecto, os anjos conhecem o futuro, com mais subtileza do
que os homens33.

6 Onde estão situados os Anjos?

As substâncias espirituais foram criadas com uma certa


destinação de presidirem as criaturas corpóreas. E, para que essa
presidência alcançasse todas as criaturas corpóreas – não só os
homens, mas todo o universo material –, foram os anjos criados
no local corpóreo mais elevado, designe-se de céu empíreo ou de
outro nome qualquer34.
De certo modo, também curiosa a sua opinião, divergen-
te da de muitos santos doutores – ele mesmo o afirma – segundo a
qual, não foram os anjos criados antes do universo corpóreo, mas
em um lugar corpóreo, para mostrar sua relação com a natureza
corpórea e mostrar que têm contato com os corpos, contato não
material, porém, resultante do uso do poder que lhes foi dado
sobre as coisas35.
Noutro lugar36, diz que: “assim como os anjos inferiores,
com suas formas menos universais, são regidos pelos anjos supe-
riores, assim também todas as coisas corporais são regidas pelos
anjos.” E acrescenta enfaticamente: “Esse é o ensinamento, não
só dos santos doutores, mas de todos os filósofos que admitem a
existência de substâncias espirituais”.

7 O pecado dos demônios

A espécie de pecado que deu origem aos demônios foi,


segundo Tomás de Aquino, o pecado da soberba. E explica:
De duas maneiras o pecado pode estar em alguém: ou

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Ágora Filosófica
por culpabilidade, ou por afeição. Por culpabilidade, to-
dos os pecados podem estar nos demônios, porque, em
induzindo os homens a todos os pecados, incorrem na
culpa de todos. – Entretanto, por afeição, só poderá haver
nos anjos maus os pecados aos quais a natureza espiri-
tual pode se afeiçoar. Acontece, porém, que a natureza
espiritual não se afeiçoa aos bens próprios do corpo, mas
só aos que podem ser encontrados nos espíritos; na ver-
dade, ninguém e nada se afeiçoa, a não ser àquilo que
de algum modo pode convir à sua natureza. Ora, em se
tratando de bens espirituais, só pode haver pecado se
alguém a eles se afeiçoa, sem levar em conta a regra do
superior a respeito de tal afeição. Nisso está o pecado
de soberba: em não se submeter ao superior, naquilo que
lhe é devido. Por isso, o primeiro pecado do anjo só pode
ser de soberba. Depois do pecado de soberba, seguiu-se
no anjo pecador o mal da inveja, pelo qual se entristece
diante do bem do homem, e também diante da grandeza
de Deus, enquanto Deus usa desse bem contra a vontade
má do diabo para sua própria vida37.

Ensina Tomás que o diabo desejou ser como Deus, tal


como está dito no seguinte no texto de Isaías: “Subirei para o alto
e serei semelhante ao Altíssimo”. Não por igualdade desejou ser
como Deus, mas por semelhança. Desejar ser semelhante a Deus
por igualdade, isso não só era impossível, como incompatível
com a própria natureza, sabendo-se que, em todas as coisas, há
um desejo natural de se conservar no próprio ser, o qual não se-
ria conservado, se a natureza da coisa fosse mudada em outra. O
asno, por exemplo, não deseja ser cavalo, pois, se lhe fosse muda-
da a natureza para um grau superior, não seria mais ele mesmo38.
Acompanhando o ensinamento de Gregório, admite San-
to Tomás que o anjo que primeiro se revoltou contra Deus foi o
que era maior entre todos. E o nome que lhe cabe é, não o de Se-
rafim, que significa ardoroso e inflamado no ardor da caridade a
Deus, mas Querubim, palavra que significa plenitude de ciência,
pois isso pode coexistir com o pecado (ibidem).

8 Qual a família mais numerosa: a dos anjos bons ou a dos

Ano 6 • n. 1 • jan./jun. 2006 - 41


Departamento de Filosofia

anjos maus?

Tomás inclina-se pela maioria dos anjos bons.


Antes de tudo, entende Tomás de Aquino que as subs-
tâncias imateriais constituem uma multidão imensa, superando
toda a multidão que constitui a natureza material. E justifica com
o seguinte arrazoado:

Tendo Deus como finalidade principal na criação a per-


feição do universo, quanto mais perfeitos são alguns se-
res, em tanto maior abundância Deus os criou. Pois bem:
da mesma forma que nos corpos se considera o excesso
pela grandeza, nos seres incorpóreos se considera o ex-
cesso pela quantidade39.

Não se deve esquecer outro ponto, unânime na doutrina


católica, e que vem desde são Jerônimo: a cada alma, desde o
nascimento, foi delegado um anjo, para defendê-lo e guardá-lo40.
E adianta o Angélico: “Os demônios são impedidos pelos anjos
bons de fazerem o mal, tanto quanto gostariam. E mais: também
o Anticristo não poderá fazer todo mal que quiser41.
Contudo a Providência divina vai até aos mínimos deta-
lhes da criação. Não apenas as pessoas recebem um anjo, como
guarda e protetor, mas também as coletividades:

A guarda da multidão humana compete à ordem dos Prin-


cipados, ou mesmo aos Arcanjos, chamados Príncipes
dos Anjos. Daí que Miguel, a quem consideramos arcan-
jo, ser chamado um dos príncipes, no livro de Daniel.
Em seguida, vêm as Virtudes, que têm a guarda de todas
as naturezas corpóreas, e depois ainda, as Potestades, que
a têm a defesa contra os demônios. Finalmente, segundo
Gregório, os Principados têm a guarda dos bons espíri-
tos42.

Como diz na Q.113, art. 6: “Nenhum homem, nem coisa


alguma subtrai-se totalmente à divina Providência, pois, na medi-
da em que participa no existir, está sujeito à Providência universal

42 - Universidade Católica de Pernambuco


Ágora Filosófica

sobre todos os entes.


Interessante a convicção de Tomás a respeito da indefec-
tibilidade da Providência divina, em cuidando da pessoa humana,
ao considerar a perseguição que os demônios podem fazer aos
homens. Comentando a advertência de São Paulo aos Efésios, de
que não é contra a carne e o sangue que lutamos, mas contra os
Principados e as Potestades, contra os dominadores deste mundo
tenebroso, os espíritos do mal que estão nos céus”, diz:

O combate em si mesmo procede da maldade dos demô-


nios, que por inveja se esforçam para impedir o progres-
so dos homens e por soberba usurpam a semelhança do
poder divino... Todavia, a ordem desses combates vem
de Deus, que sabe usar dos males com ordem, direcio-
nando-os para o bem.
Quando os demônios instigam os homens a pecar, essa
iniciativa é deles mesmos, estando, porém, condiciona-
dos à permissão de Deus e aos seus sábios juízos.43

A presença da Providência não se afasta da arena do


combate, sempre atenta para impedir a desigualdade de condições
em prejuízo dos homens. Acrescenta o Angélico:

Para que a condição de luta não seja desigual, o homem


recebe uma compensação, principalmente o auxílio da
graça divina, e além disso, a guarda dos anjos. Neste sen-
tido, disse o profeta Eliseu (em 4 dos Reis, 6,16) a seu
ajudante: “Não tenhas medo! – Os que estão do nosso
lado são mais numerosos do que os que estão do lado
deles44.

Curioso verificar que, considerando os anjos e os demô-


nios, em pleno século XIII, período histórico conhecido como
imerso em crendices, no qual a magia, as superstições e o fenô-
meno das possessões diabólicas eram tão freqüentes, não tenha
Santo Tomás dado, no Tratado da Suma Teológica, que vimos co-
mentando, atenção especial a esse fenômeno,
Para nós importa muito mais a aplicação dos princípios

Ano 6 • n. 1 • jan./jun. 2006 - 43


Departamento de Filosofia

teológicos em nossas atitudes e as conclusões fundamentais, a


saber: que a existência do diabo faz parte do nosso destino, tanto
quanto a sua presença fez parte da ação redentora de Cristo; que a
esfera de atuação e de poder do demônio está delimitada pela Pro-
vidência divina. Sem dúvida, também consta dos livros sagrados
que a nós, cristãos, foi reservada a oportunidade de enfrentá-lo.
Entretanto, deve ainda prevalecer em nossas convicções
que diabo é um servo despeitado de Deus, vencido por Jesus
Cristo45 – como disse São João: o príncipe deste mundo será jo-
gado fora, pois que já foi julgado – e que tem a missão divina de
colaborar para a santificação dos homens, pelas tentações, porém
sempre dentro da medida permitida de Deus.
Se até para puxar um fio de nosso cabelo, precisa o de-
mônio de autorização do Senhor, que é o Governador do mundo,
o demônio não resiste à força do batismo que marca os filhos de
Deus, os quais receberam do seu Criador um seu anjo protetor,
além dos anjos encarregados de proteger toda a raça humana, os
quais são em número muito maior do que o dos demônios, não se
precisa alimentar o medo das magias, das macumbas e de outras
artes diabólicas.
De certo, bastante salutar será a invocação da
companhia dos santos anjos, tal como, entre outros pontífices, nos
sugeriu Leão XIII, com a famosa prece a S. Miguel arcanjo, que
até o Concílio Vaticano II, era recitada ao fim da missa:

São Miguel Arcanjo, defendei-nos neste combate; sede a


nossa guarda contra a maldade e as ciladas do demônio.
Que Deus impere sobre ele, e vós, como Príncipe da mi-
lícia celeste, com esse poder divino precipitai no inferno
a satanás e aos outros espíritos malignos, que vagueiam
pelo mundo para perdição das almas.

Teresinha do Menino Jesus sintetizou o ensinamento que


aqui expusemos, mediante a narrativa de um sonho, o qual – diga-
se – revelava aquilo que estava em seu subconsciente e na sua
consciência.

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Ágora Filosófica

O relato abaixo transcrito é bem coerente com o que en-


sinou Santo Tomás de Aquino a respeito da relatividade do poder
dos demônios.

Recordo-me de um sonho que tive nessa idade (uns qua-


tro anos aproximadamente) e que me ficou gravado na
memória: Andava eu a passear sozinha no jardim, quando
de repente divisei perto do caramanchão dois horrendos
diabinhos a dançar em cima de uma barrica de cal com
vertiginosa agilidade, não obstante os pesados grilhões
que tinham nos pés. Deitaram-me primeiro uns olhos que
faiscavam lume; depois, como que tomados de espanto,
vi-os precipitarem-se rapidamente no fundo da barrica,
saírem logo não sei por que abertura, correrem e escon-
derem-se finalmente na rouparia contígua ao jardim e ao
mesmo nível dele. Vendo-os tão covardes, quis saber o
que iam fazer naquele esconderijo, e, sobrepondo-me ao
susto, abeirei-me da janela... Os pobres demônios anda-
vam a correr e a saltar por cima das mesas, sem atinarem
como haviam de fugir às minhas vistas. De vez em quan-
do, assomavam-se à janela, a espreitar pelos vidros, com
olhar inquieto; mas vendo que eu não despejava dali, re-
começavam a sua carreira numa fúria desesperada.
Evidentemente neste sonho não há nada de extraordiná-
rio; julgo que se quis Deus servir-se dele para me mostrar
que uma alma em estado de graça nada tem a temer dos
demônios, que afinal são uns covardes, que se não enver-
gonham de fugir diante de uma criança46.

Notas
1
Doutor em Direito pela EFPE e Presidente do Instituto de Pesquisas Filo-
sóficas Santo Tomás de Aquino – PE.
2
Suma Teológica, I parte, Q. 8, art.1. Nota bene: Entendemos como muitos
autores (RASSAM ; FERRATER MORA, entre outros) que a expressão
Esse em Santo Tomás corresponde ao nosso verbo Existir, e não a “ser”,
expressão que pode ser entendida ora como ação de ser, ora como sujeito
de ser, ora como talidade de ser. “... quando esse incipiunt – e – quandiu
in esse conservantur” não quer significar conservar em ser, mas conser-
var em existir, em tendo existência. Quando res habet esse: não significa
“quando a coisa tem o ser” – que ser? – mas “ quando a coisa tem exis-
tir”.
3
I Epistola de Pedro, 5, 8.
Ano 6 • n. 1 • jan./jun. 2006 - 45
Departamento de Filosofia
4
Suma Teológica, q. 63, art. 1.
5
Suma Contra Gentios, n. 2473.
6
Suma Teológica, I parte, Q. 64, art. 4.
7
Suma Contra Gentios, n. 2473
8
Cf. MANGENOT. E. Démon d´après les scholastiques et les théologues
postérieurs. In: Vacant, A. ; Mangenot, E. ; Amann, E. (orgs).
Dictionnaire de Théologie Catholique. Paris: Dabilon, 1946. Tome IV,
Partie I, p. 396.
9
Suma Teológica, I parte, q. 64, art. 4.
10
Ibid., q. 63, art.4 e art. 5.
11
Ibid., q. 63, art. 3.
12
Ibid., q. 62, art. 3.
13
Suma Teológica, Parte I, q. 64, art. 2.
14
Suma Teológica, parte I, q. 64, art. 1.
15
Ibid., q. 55, art. 1.
16
Ibid., q. 57, art. 2.
17
Ibid., q. 56. Art. 2
18
Suma Teológica, parte I, q. 58, art. 6.
19
Ibid., q. 51, art. 2.
20
Ibid., q. 64, art 1, ad 1um.
21
Ibid., q. 54, art. 1, ad 3um.
22
Suma Teológica, parte I, q. 51, art.3, ad 5um.
23
AGOSTINHO, citado por Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica,
parte I, q. 51, art3 , ad 6 um.
24
As informações históricas contidas no presente parágrafo foram extraídas
do artigo de MANGENOT, 1946, p. 346 ss. Entre outras variantes: Deus
teria encarregado os anjos de velarem pelos homens e por todas as criatu-
ras. Atraídos pela formosura das mulheres, os anjos desceram sobre o cimo
do monte Hermon, tiveram filhos daquelas mulheres e foram despejados do
céu.
25
Suma Teológica, parte I, q. 110, art. 4.
26
Suma Teológica, parte I, q. 113, art. 4, ad 2 um.
27
Ibid., q. 111, art. 2.
28
Ibid., q. 111, a\rt.3.
29
Ibid., q. 57, art.
30
Ibid., q. 114, art. 3.
31
Suma Teológica, parte I, q. 57, art. 4.
32
Ibid., q. 57, arta. 3.
33
Ibid., q. 57, art. 3,ad 1 um.
34
Ibid., q. 61, art. 4.
35
Ibid., q. 62, art. 3.
36
Ibid., q. 110, art. 1.
37
Suma Teológica, parte I, q. 63, art. 2.
38
Suma Teológica, parte I, q. 63, art. 3.
46 - Universidade Católica de Pernambuco
Ágora Filosófica
39
Ibid., q. 53, art. 3.
40
Ibid., q. 113, art. 2.
41
Ibid., q.113, Art. 5.
42
Ibid., q. 113, art. 3.
43
Suma Teológica, parte I, q. 114, art. 1, ad 1um.
44
Ibid., q. 114, art. 1, ad 2um.
45
O príncipe deste mundo já foi julgado: 12,31; 16,11.
46
Santa Teresa do Menino Jesus. História de uma alma, escrita
por ela própria. Trad. de Pe. Luís Maria Alves Correia. Porto. Li-
vraria Apostolado da Imprensa, 1952. p. 17.

Referências

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______. Suma teológica – II Seção da Parte II – Questões 1-56. São
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MANGENOT. E. Démon d´après les scholastiques et les théologues
postérieurs. In: Vacant, A. ; Mangenot, E. ; Amann, E. (orgs).
Dictionnaire de Théologie Catholique. Paris: Dabilon, 1946. Tome
IV, Partie I.
Santa Teresa do Menino Jesus. História de uma alma, escrita
por ela própria. Trad. de Pe. Luís Maria Alves Correia. Porto. Livraria
Apostolado da Imprensa, 1952.

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