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O CANDOMBLÉ:
imagens em movimento
São Paulo -Brasil
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[§JJ UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Tradução


Leila de Aguiar Costa
Reitor João Grandino Rodas
Vice-reitor Hélio Nogueira da Cruz

led:!', EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Diretor-presidente Plinio Martins Filho

COMISSÃO EDITORIAL
Presidente Rubens Ricupero
Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Adolpho José Melfi
Chester Luiz Gaivão Cesar
Ivan Gilberto Sandoval Falleiros
Mary Macedo de Camargo Neves Lafer

Diretora Editorial Silvana Biral


Editora-assistente Carla Fernanda Fontana led:!:,
I
© 2004 by L'Harmattan
@ 2009 by Carmen Opipari

Título do original em francês:


Le candomblé: images en mouvement - São Paulo - Brésil

Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento


Técnico do de Bibliotecas da USP

Opipari, Carmen.
O Candomblé: Imagens em Movimento SãÓ Paulo-Brasil/ Carmen
Opipari; tradução Leila de Aguiar Costa.- São Paulo: Editora da Univer- A meus pais
sidade de São Paulo, 2009. A Sylvie
272 p.: il.; 23 cm

inclui bibliografia.
ISBN 978-85-314-1214-1

l. Candomblé- São Paulo. 2. Religiões- BrasiL I. Costa, Leila de Aguiar.


II. Título. III. Titulo: Imagens em movimento São Paulo-Brasil

CDD 264.1

Direitos em língua portuguesa reservados à

Edusp - Editora da Universidade de São Paulo


Rua da Reitoria, 374, 4~ andar
Ed. da Reitoria - Cidade Universitária
05508-010- São Paulo- SP- Brasil
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www.edusp.com.br- e-mail: edusp@usp.br

Printed in Brazil 2010

Foi feito o depósito legal


""

Agradeço calorosamente a Manuel de Odé, Manuelzinho,


Mifaloió, Kilombo, Sílvio de Oxóssi, Yatemin e a todos os
filhos e filhas de santo, clientes e crianças das Casas de can-
domblé, por sua acolhida e sua confiança.
A Sylvie Timbert por sua colaboração e suas observações
preciosas.
A Olecina Barbosa Opipari, Hélio Opipari e Danielle Si·
vadon por sua presença e apoio.
A Maud Agati e Anne Timbert por sua revisão minuciosa
da edição francesa deste texto.
A Monique Selim et Gérard Althabe por seus conselhos
e seus encorajatnentos.
A Jean-Pierre Olivier de Sardan pela orientação de minha
tese de doutvrado em antropologia social, defendida na Ecole
des Hautes Etudes en Sciences Sociales, que deu origem ao
presente texto.

I
I
..
. /

sumano 2. OS SERVIÇOS RITUAIS • I3I


Jogo de búzios, ebó, oferendas e bori · I 34
Consulta com os espíritos, "trabalhos", feitiços, fuxicos ... • I45
Poções, rezas, benzeduras ... · 148

. I.
3. MISE EN SCÉNE DOS SERVIÇOS RITUAIS • I 5 I
"Um ebó diferente dos outros": um olhar sobre a reafr~canização · I 5 I
Fuxicos e feitiços: um olhar sobre a macumba paulista • I 58
O "trabalho de quarta-feira" na casa de Yatemin. Candomblé e umbanda: a
campo e terreno da pesquisa . I I
ressurreição branca do feiticeiro negro • I 6 5
Campo e dispositivos da pesquisa · I 9
A utilização do vídeo · 2I
rv. a possessão: uma íntima aliança · I 7 5
II.
I. A "FEITURA": FABRICAÇÃO DO SANTO E DA PESSOA • 177
percursos e contornos do candomblé • 2 7 Santo e orixá: "maneira de falar" para dizer a diferença • I83
I. O CANDOMBLÉ EM SÃO PAULO • 33 A fabricação da pessoa e de seu santo· I89
O olhar socioantropológico · 3 3 Troca de cabeça: a dinâmica da pessoa · I98
Candomblé, umbanda e macumba vistos pelos adeptos · 48
2. SOCIALIZAÇÃO E APRENDIZADO: OS CÓDIGOS DO TRANSE • 205
2. OLHARES CRUZADOS • 55 As crianças brincam de macumba· 205
As modalidades da dupla pesquisador/adepto hoie: dois estudos de caso · 62 Ser abiã: o namoro com o santo e o domínio dos códigos do transe • 218
Primeiro caso: pesquisadores e adeptos conduzem um mesmo combate? · 62 A modalidade e a modulação da aliança: o adarrum e os ensaios do iaô • 222
Segundo caso: pesquisadores e adeptos, a defesa de um mesmo saber? • 6 5
3· A TORES E PERSONAGENS DE UM TEATRO DO ACONTECIMENTO • 233
3· PRODUÇÃO, GRAVAÇÃO E TRANSMISSÃO DO SABER RELIGIOSO: No "quase" da dupla captura: um aprendizado mútuo · 2 37
A FABRICAÇÃO DAS TRADIÇÕES E A SUTILEZA DO AXÉ • 79
Agendamentos no oco da dupla captura • 239
As sutilezas do axé · 8 I No acontecimento da dupla captura: histórias cruzadas· 24I
Aprender, saber, conhecer: as fontes de aquisição do axé · 89 O estilo do santo: agendamentos de enunciações e de histórias · 242
A dupla captura no cotidiano: produção de subietividades · 248
III. magia e religião: tramas inextricáveis · I09
I. A HIERARQUIA RELIGIOSA E A CLIENTELA • I I I v. feituras e performance: potência criadora no
Os filhos de santo • II2 seio dos cultos de possessão · 2 57
O cliente· II9
As redes de clientes · 120 BIBLIOGRAFIA • 265
A festa: vitrine da hierarquia· 125 FILMOGRAFIA • 27I
...
I.
campo e terreno da pesquisa

I
.. Durante quase três séculos, o continente norte e su\~ame­
ricano ilnportou um número incalculável de mão de obra
escrava da África. O Brasil viu chegar, desde o final do século
xvr, os bantos (angola, caçanjes, bengalas etc.), provenien-
tes de diferentes territórios hoje conhecidos como Angola,
Congo ou Moçambique; no decorrer do século xvn, chega-
ram os sudaneses (iorubá ou nagô, jeje, fanti-achanti etc.),
originários das atuais Nigéria, Benim e Togo. Estima-se que
a maioria desses deportados pertencia ao grupo banto, cujos
elementos da língua, da cozinha e da música estão visivel-
Inente presentes nas manifestações culturais brasileiras
contemporâneas. Bantos e sudaneses, subdivididos em dife-
rentes grupos, encontravam-se em solo africano em contato
estreito com outros grupos étnicos. Com efeito, mantinham
já nessa época numerosas trocas culturais, cmnercíais etc.
Daí resultava uma circulação de símbolos e de divindades
presentes no imaginário de cada grupo.
Os cultos de possessão, assim como um grande nú1nero de
manifestações e práticas culturais do Brasíl contemporâneo, ~(t
~ n~ão fruto dessa catastrófica escravização das populações ne~ ()v '
gras africanas que, em total abandono, mergulharam em um ;, \lC"
verdadeiro caos existencial. Essa desterritorialização 1 radical \)~;,_\,'->

r Desterritorialização e reterritorialização são conceitos emprestados de


Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980}. Faço aqui igualmente referência à
anãlise que Félix Guattari (1993} propõe do nascimento do jazz.
I4 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO CAMPO E TERRENO DA PESQUISA r5

(geográfica, sociocultural, existencial etc.) dos vilarejos da África deu lugar modalidades desses cultos. Outras oposições então aparecem: macumba-
a reterritorializações bastante criadoras -e se1npr.e dinâmicas, no espaço candomblé, umbanda-candomblé, candomblé banto-candomblé gueto etc.
rural de um lado, e, de outro, de 1nodo 1nuito intenso, nas zonas urbanas Mesmo quando 1nagia e religião são convocadas em tennos de siste-
do Brasil, com a abolição da escravidão ao final do século xrx. Linhas meló- ma mágico-religioso, a herança de Hubert e Mauss (r968)- que as havia
dicas, ritmos, danças, cultos, línguas, por vezes presentes de modo residual anteriormente definido a partir de antíteses entre individuál e coletivo,
no imaginário dessas populações deportadas, assün como seu novo tipo de segredo e comunhão, sombra e luz ... -parece ainda assombrar as análises.
socialização no interior da escravidão, entraram em conjunção com o ima~ Como muito bem apontou Luc de Heusch, o traço de união que os reúne
ginário religioso, as linhas melódicas, línguas, danças, ritmos dos coloni- em u1na única noção smnente tem como efeito adiar a resolução (Heusch,
zadores europeus e das populações ameríndias nativas. Essa recomposição 1971). Há a preocupação, por exemplo, em destacar a coesão comunitária
de ~~~!2E~"~~~~tel_lci~.~s subjetivos possibilitou processos de fabricação <:....._________ -----------~~-----·-----
das Casas de culto, sua constituição como "igrejas", no sentido durkhei- -~·

cultural de grande diversidade, verdadeiro trabalho de produção de subjeti- miano do termo, a fim de lhes conferir um perfil de verdadeir~r_eligião.
vidades criadoras d~,f~rmas h.ete:~~~.r;e~s--~~,~~,i~,!~~ Na história dos cultos A análise das práticas rituais tende, de um lado, a subordinar, e de outro
de possessão afro-brasileiros, elementos originários de universos culturais a tornar autónoma, a magia em face da religião. Mas, nos dois casos, a
diversos vêm se incorporar sem cessar a esses processos. De acordo com magia se vê apreendida, apreciada, comparada com a religião, definida em
as épocas e os contextos nos quais esses cultos são praticados, diferentes sua relação com ela. As práticas rituais, percebidas como un1a repetição
modalidades se definem: cabula, candomblé, macmnba, umbanda etc. ou comemoração do mito segue1n mna "liturgia", religiosa e coletiva, na
A análise e a tipologia das formas e das variantes desses cultos geral- qual os elementos individuais que procedem da imaginação criadora e d~
t: ._mente se fundaram, na literatura socioantropológicaL sobre uma série de ~E.0:r_~ance dl?§... ~~~oc~~j~_p_arece _2_<?.~pa~ um lugar :rnínimJ.!~vez
Cj ~h~t~'- v'")9]0sis_~_~s dico~:?.~~-~as. Nota~se uma primeira oposição, ~o que diz respeito ,nglo. No desenvolvimento dos termos reunidos, o afro p?de se aproximar
0
O~ o' à origem e ao lugar de instalação desses cultos, entre a Afriea e o Brasil. A da religião, em seguida do sagrado; o brasileiro, da magia, em seguida do
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análise de suas práticas rituais e do corpus de suas representações se faz à profano. Tela de fundo inegável, a oposição sagrado/profano parece tornar
luz de un1 antagonismo que se exerce entre magia e religião. Seu campo de Plausível o aspecto nebuloso dessas composições. ~
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manifestação é apreendido segundo uma divisão em dois "mundos distintos": Pedra angular da sociologia religiosa francesa, o sagrado, como o indi- ~ /--~-
de um lado, o sagrado; de outro, o profano. Se os limites impostos por essas ea lsambert lr982), Pa~~~""&;:;;-;;;el de no~â~-~~;;~m àquele de verdadeira fY"'\~ 0'"'
oposições conduziram a composições do tipo afro-brasileiro e mágico~ religio- teoria. Definida por ~ua oposição absoluta ao profano, a noção de sagrado
so, a oposição sagrado-profano parece permanecer tal qual: limite absoluto. adquire desde o início um estatuto transcultural e universal para se tor-
Fala-se de cult~s~_ro-br~~leit:o_~H!lt()]J~eJ<1ll~_r_<l'!tl_e_c_oJ1Slit_ui_s.u_as ---~~' em~~-g~~~L~~-~-s:A~~&Q!_i~~-~~p_e._~;;;;~~.?i~t?~-~iiJe-~d)etiv~-q~e
raízes africa_:Ias, -~9~-~-2.~!!-l:_. Y:~ª-t~E . ~.~!.~~--:QJ~i_:gi~~-ª-·_çg!!!-9.J!Lll!.Q&..X~-ª-ª-~-cados, qualificava o objeto religioso, ele o substantiva e se torna o próprio objeto
quase perdidos. Se no primeiro caso, o radical afro se torna essência, no religioso. Objeto tangível e identificável em razão de suas propriedades, o
segundo ele é simples reminiscência. O traço de união entre os dois termos sagrado se encontra em todas as culturas. Designando de modo mais geral .--ru2'(i-'""" '
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pode se transformar em vetor que indica um movimento a ser seguido, da . o domínio do religioso, _o_&agra99,.&empre.em.üP2§iS;i() "() E.9Ü!!1.o,,ligac&1/ i!!_~ A~-]
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África em direção ao Brasil, para apreender as significações das práticas ritu- ~y.jto _rªpid.am.e.;q~e
'<O'C._,._,,;_..",•,,,,,. _-:, ..
ao extra-ordinário, ao extra-cotidian.Q.:...
~-~- ..:.;,,~,--.', ''"'~""''"'~-~M"''"i''N"~~,.~-~----Á~'""""---
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ais. Mas esse traço pode igualmente funcionar como transfiguração de urna Mas essa oposição evidente entre o profano e o sagrado revela-se menos
fratura irreparável. No interior dessas formulações, assistimos a diversos pertinente na experiência empírica dos campos de pesquisa. Como já ob-
usos da noção de tradição que instauram uma clivagem entre as diferentes servaran1 Thomas e Luneau ír995), esses dois mundos, a priori dis!Jnto§.,_
I 16 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO CAMPO E TERRENO DA PESQUISA 17

como que se interpenetram, na Áfrice.,_g_!2~E.-~-~.Q!~!!.t5>· Mas para estes de culto se opõem e se entremeiam, permite-me destacar os processos de
autores tudo se dá cmnQ_~-~~~g,!_ado~ªQ .existiss~. "estaE~- p~~~j~s criação, de transformação e de redefinição da religião.
fronteiras com o profano seriam assim itnperceptíveis. Além disso, seM A fim de romper com a cadeia das oposições binárias e de fazer emergir
\lguindo uma _gra~~~-P-~~-. !~.A~--~.!!:.!.!~.C?PQ!Qg.__i~-~L~i~~-~~~-~~J:~.~~:~~-~--~!~-~- ~~~a­ a construção desses processos de agendamento e de imbi:i6ação, escolhi
~ziam o prof~no ~~-E..eE.~!.~~~q_~~--~gg~g,Q,ÇJ_g~e é, então, encontrado por todos elaborar o objeto de estudo desta pesquisa a partir das falhas, do{conflitos
os lados. A oposição absoluta entre os dois termos cederia aqui seu lugar e das contradições inerentes ao candomblé. Quando um chefe de culto
a unia exclusão absoluta: o cotidiano seria permanentemente sacralizado. pratica a "magia" por ocasião de uma consulta com u1n cliente, quando
Olivier de Sardan, por sua vez, inverte tal formulação: uma criança brinca de entrar em transe ou, ainda, q~ando um transe re-
pentinamente se dá em uma situação cotidiana, a tendência é reconhecer
Não é a vida cotidiana que é transfigurada pelo "sobrenatural" mágico-religioso (à 0\~,
semelhança da concepção ocidental do religioso que "sacraliza" tudo a que toca}; ,~\' aí um incidente ou um desvio em relação à norma. Ora, são precisamente
I ~ antes, é o !Pl.8:is:22.~~!5?~~-q'::~. ~!'E!!l~.-~-E?!:~~~-~~~-~~-~~~~ _gQ",c,qJ:J.4tªJJQ.J'.anaJ: Na ~,l~ 1; esses "incidentes", inscritos na experiência cotidiana e "banal" da religião,
, "-(·f/ clássica distinção durkheimiana "sagrado/profano", sempre pareceu evidente que ~~ ?;<VJ que se tornam para mim o espaço privilegiado para apreender, não mais as
':\': ot) (~ -. . o mágico-religioso era ontológica eglobalmente da ordem do sagrado. Penso quei'f tipologias e menos ainda as estruturas do sistema, mas antes os processos
(.v~ 63'\Y \J-. (/ll€LÁ.!!JS..<~,_J!mg_.PE-!.~.~l~~p~~~~~-·Ê5l.E!.~~~E~:.~~U&º-ª"Q-~.J~E:9.~-~.E.<.?!.9.gL~.<:t.!E!!!!~. 4. de atualização dessas estruturas como geradoras de novos sentidos. Ao
o ~ ~~~~rrL9-o profanoJ$ardan, r988, p. 533).
me afastar de uma perspectiva que tende a erigir o candomblé e1n um
Nesta perspectiva de um "mágico-religioso banal e cotidiano", a ideia sistetna fechado e homogêneo, procuro colocar em evidência as definições
de transcendência, sustentada pela oposição sagrado/profano, cederia lugar de seu contorno operadas em um movimento constante pelos adeptos.
a uma (manên~ia do fenômen~-~Qgiq-ª2:_ Para tanto, dou atenção particular aos usos de expressões e de palavras
Considerando essa oposição absoluta como insustentável, Leach (1977) ligadas aos diferentes aspectos de suas práticas. Essa semiologia popular
entende a interpenetração do sa.grado e do profano como um continuum ou menor, confrontada com as definições científicas da socioantropologia,
estabelecido entre os dois polos. Permanecendo nas zonas de contraste pennite-me reexaminar certas noções das quais esta última se apropria
deste continuum, os limites entre os termos sagrado/profano se tornam tornando-as indiscutíveis. Meu ponto de vista, situado igualmente do lado
menos evidentes e os conjuntos de significações que eles acolhem não da performance dos atores sociais, alimenta-se de seu vivido, das sensações
parecem mais se opor mas, antes, se imbricar. e dos sentimentos por eles experimentados. Essas experiências pessoais são
As questões que animam minha pesquisa repousam sobre esses proces- tornadas, aqui, não em uma perspectiva psicológica e individual, mas em
sos de imbricação. Lá onde a literatura antropológica afro-brasileira tenta seu aspecto social de códigos partilhados. Essa postura de observação c de
definir lünites, a experiência cotidiana dos adeptos dos cultos referidos análise me autoriza a colocar em relevo os processos de agendamento ope-
confunde as fronteiras. Dentre os cultos afro-brasileiros, escolhi conduzir rados nos conjuntos de significações regrupados sob as noções de sagrado
minha pesquisa junto a quatro Casas de culto que se autodenominam de e de profano, de magia e de religião, de individual e de coletivo, de mito e
candomblé. Dado o número ainda reduzido de pesquisas consagradas à de ritual etc. A adoção de tal postura se impõe igualmente quando lanço
presença do candomblé na cidade de São Paulo, a escolha de meu campo um olhar crítico sobre a 1naneira pela qual as relações estabelecidas entre
neste contexto me dá a oportunidade de ressaltar a construção nascente do pesquisadores e adeptos dos cultos afro-brasileiros serviram para idealizar
candomblé paulista como objeto de estudo. A expansão notável e sempre uma certa ('África".
crescente do número de adeptos e de lugares de culto nessa cidade, ao lado Examinarei essas questões a partir de três aspectos. O primeiro girará
da configuração de seu campo religioso, no qual diferentes modalidades em torno do tema da construção do saber científico e religioso, assim
!8 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO CAMPO E TERRENO DA PESQUISA 19

como de seu entrelaçamento. Mostrarei, inicialmente, como, a partir de de possessão, tal qual a socioantropologia de modo geral o definiu. Nessa
uma série de oposições binárias, uma cartografia. dos cultos afro~ brasilei- reforn1ulação em que a possessão é apreendida como uma íntima aliança,
ros foi traçada, e, a partir dessa cartografia, como o candomblé foi definido a ideia de transcendência, sustentada pela oposição sagrado/profano, cede
no contexto da cidade de São Paulo. Posto em paralelo com as definições seu lugar à imanência sado-histórica desse fenômeno.
dos cultos elaboradas pelos próprios adeptos, essa cartografia assumirá um Antes d~etrar no â~ago des~;;-que;tfu;;~-~ejamos os dispositivos
contorno bastante diverso. A partir dessa nova dimensão, especificarei o e as escolhas que guiaram esta pesquisa.
pbnto de vista e a postura adotados em minhas análises. Detalha~-~~'. __~:U
~egui~~.' o. entrelaçamento específico tramado entre a história dos cultos
CAMPO E DISPOSITIVOS DA PESQUISA
31-fro-brasileiros e a história das ciências sociais no Brasil. A partir desse
entrelaçan1ento, ver-se-á como as variações da dupla pesquisador/adepto As Casas de cand01nblé constituem unidades de agrupamento para seus
desempenha u1n papel na fabricação das tradições religiosas. Procurarei, adeptos e clientes. Relativamente autónomas umas en1 relação às outras,
enfim, colocar em evidên~ia os usos das noções de conhecilnento e de estão, todavia, ligadas por diferentes redes de filiação, de amizade, de
saber elaboradas pelos adeptos na fabricação de suas tradições. clientela etc. Ao final de 1980, estimava-se em 2 500 o número de Casas
O segundo aspecto estrutura-se em torno da questão do conjunto das que se autodenominavam de candomblé, instaladas em bairros em geral
tramas que se efetuam entre magia e religião. Estes dois termos, tomados populares e periféricos da região metropolitana da Grande São Paulo.
aqui sob seu aspecto ideológico, permitem-me mostrar, de um lado, em que Minha pesquisa2 se iniciou na Casa3 , dirigida por Kilombo 4, e ratnificou-
medida certos autores permaneceram fechados nessa dicotomia e, de outro se em seguida graças aos contatos estabelecidos com os clientes, adeptos e
lado, como os adeptos dela fazem uso. Ver-se-á inicialmente que a presença dirigentes vindos de outras Casas.
do cliente, a quem se endereçam principalmente os serviços rituais, é um Dentre as quatro Casas junto às quais desenvolvi meu trabalho, uma
pivô fundamental na constituição e no funcionamento das Casas de culto. única não faz parte desta rede, pois meu contato se estabeleceu mediante
Na definição das diferentes categorias de pessoas e na estruturação da uma rede pessoal. Dirigida pela mãe de santo Yatemin5, essa Casa, uma
hierarquia religiosa, o cliente, ao legitimar as práticas da Casa, igualmente grande propriedade situada num bairro popular da zona sul de São Pau-
desempenha um papel importante de ligação entre esta última e o exte- lo, apresenta um perfil diferente daquele das outras. Se as primeiras são
rior. Pela análise das consultas e dos serviços rituais, mostrarei como, nos frequentadas em grande maioria por indivíduos pertencentes às classes
agendamentos operados pelos chefes de culto, constitui-se uma espécie de desfavorecidas, dentre eles um grande número de negros e mestiços, os
linguagem no qual os termos magia e religião articulam-se, imbricam-se adeptos da Casa de Yatemin pertencem majoritariamente à classe média,
e, por vezes, fonnam dobras.
Último aspecto: analisarei o transe de possessão, eixo central e pilar do 2 Iniciada por ocasião da preparação de meu Diplôme d'Etudes Approfondies/D.E.A (Opipari,
candomblé. A binaridade da oposição sagrado-profano revelar-se-á, então, 1991), esta pesquisa estende-se ao longo de um período de r9 meses divididos em três eta-
pas: de julho de 1990 a janeiro de 1991, de setembro de 1993 a abril de 1994 e de setembro
inoperante. Ao procurar me afastar de toda atribuição de uma função de
--~-·~-----··~---~~~-~----· de 1995 a março de 1996.
compensação psicol~gica e/ou ~g_cial ao transe, destacarei seu aspecto ima- 3 Cf. Opipari, 1991.
·-~---"---- -··- ..---·-· --·--
nente e social. A construção da personagem da "pessoa possuída" opera-se 4 Em meu D.E.A, eu escrevia seu nome com Q, em português. Desde então, Kilombo expli-
cou-me que se escrevia com K, colocando em evidência a gr.lgem kimbundo de s~_ES;m~ f;d/fl.__
de modo contínuo no cotidiano, em que o transe de possessão torna-se
no candomblé.
objeto de mn aprendizado e de uma socialização. Destacando a construção Mãe de santo ou pai de santo: responsável pelo culto e pelos orixás (divindades), designa a
dessa personagem, tentarei formular de modo diverso o próprio conceito pessoa que inicia os adeptos, seus filhos de santo.
20 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO CAMPO E TERRENO DA PESQUISA 2I

e há, entre eles, urna única pessoa negra. Esta Casa pratica alguns ritos trabalhei junto à família de Tata Leuê, para quem o candomblé constitui
de umbanda, religião anterior da mãe de santo, .de modo totalmente dis~ uma referência maior, mestno nos menores detalhes da vida de todos os
tinto e separado dos rituais do cand01nblé. Imbricadas nas outras Casas, dias, regendo as relações entre seus 1ne1nbros. Por intermédio desta famí-
observa~se na de Yatemin uma articulação marcada dessas duas modali- lia, entrei em contato com outras duas Casas de Culto. A primeira, situada
dades de culto. em um bairro relativamente pobre- e popular da zona norte da ~~idade, era
Foi sem dúvida na Casa de Kilombo, núcleo dessa ramificação, que dirigida por Mifaloió, mãe de santo das filhas de Tata Leuê e de sua espo-
pude aprofundar minha pesquisa, ali trabalhando com maior regularidade. sa. Ali assisti a um ritual público, limitando minhas relações ao núcleo
Nesta Casa, situada na periferia de Taboão da Serra, município da região familiar de Tata Leuê. A segunda, instalada em um!l pequena chácara da
metropolitana da Grande São Paulo, participei de diversas festas públicas e periferia sudoeste da Grande São Paulo, era dirigida pelo pai de santo Síl-
de rituais privados, estabelecendo uma relação cotidiana com seus adeptos vio de Oxóssi. Ali trabalhei de modo mais sistemático, participando tanto
"' e clientes. Ao acompanhar este pai de santo em suas visitas a outras Casas, das festas públicas como dos rituais privados, e mantendo relações mais
assisti a diferentes rituais e festas. cotidianas com a Casa e com seus adeptos.
Por ocasião de uma festa pública na Casa de Kilombo, encontrei o pai Minhas observações de campo concentraram-se tanto nos compor-
de santo Manuel de Odé e o ogã Jorge, que então me convidaram a par~ tamentos, nas atividades e nos discursos das pessoas como na interação
ticipar de um grupo de estudos, organizado pelo pai de santo Manuelzi- destas últimas comigo. O corpus desta pesquisa compreende notas reali-
nho. Para mim, esta foi oportunidade para compreender como este grupo ,~\ zadas por ocasião dessas observações, por escrito ou gravadas em vídeo;
manipulava diferentes fontes de saber, dentre as quais a antropologia, na \x.<\IjJ.J / as imagens "locais" (gravadas em vídeo pelos adeptos ou a pedido deles)
_f":_b_ri_c;"Ç~()_de_s_ti~s- tra:I_i!i}~~- Seu engajamento no processo de reafricanill 1if;()l1 J~/o e as entrevistas semidiretivas realizadas a partir de utn roteiro comum.
zação do Ca.'_l~_O_f11pl~Ille_p_er_rni!il}~raç~':Urn_Paralel~-"Olll"""~~::~-~-e~'l_u_~a zl!Y; ~O i;:.o Dada a importância assumida pelo vídeo como instrumento· de pesquisa,
antropológicas consagradas a esse assunto. A partir dessas reuniões, pud ()i)' pareceu-me necessário esboçar aqui algumas notas sobre sua utilização.
'
penetrar na Casa de Manuel de Odé e estabelecer contatos com seus filhos
de santo. Nesta Casa, situada em um bairro bastante popular da zona sul
A UTILIZAÇÃO DO VÍDEO
de São Paulo, assisti a uma festa pública e a diversos rituais privados. O
ogã Jorge me apresentou às suas duas irmãs que, adeptas do candomblé, Ao escolher o vídeo como instrumento de observação, a questão da relação
não pertenciam àquela época a nenhuma Casa de culto. A Casa de Ma- entre o. escrito e o audiovisual logo se impõe. Para abordá-la, afasto-me
nuelzinho, situada em outro bairro da zona sul da cidade, bastante pró~ da ideia de uma hierarquia em que a superioridade do audiovisual sobre
xima daquela de Manuel de Odé, apenas começava. Ela contava com u1n o escrito pode parecer evidente para alguns pesquisadores, levando-se em
número reduzido de filhos de santo, e Manuelzinho dedicava~se quase que consideração a perda de detalhes devida à contradição presente no ato de
exclusivamente a seus clientes. Meu trabalho concentrou-se então em seu observar e de escrever. Essa contradição não seria, pelo contrário, o motor
percurso pessoal e na construção de sua identidade de pai de santo. mesmo do raciocínio em obra na construção dos dados etnográficos? Com
Ainda na Casa de Kilombo, encontrei o ogã Tata Leuê 6 e sua esposa, efeito, as sínteses, as elipses e descontinuidades temporais, procedimen~
a equede Dangeuê que, na época, o auxiliava na realização de diversos tos da concisão e da economia do escrito, ao provocarem essa perda de
rituais. Em razão de meu interesse pelos aspectos cotidianos da religião, detalhes, estão na origem da produção do sentido efetuada pelas notas por
escrito. A atribuição de significações aos acontecimentos observados se
6 Tata Leuê, irmão de santo de Kilombo, foi iniciado ao mesmo tempo em que este último. opera com o auxílio de um processo de aproximação de outros aconteci~
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO CAMPO E TERRENO DA PESQUISA

mentos, fatos, ideias e sensações existentes fora da situação de observação. A filmagem-tomada-de notas pode, de certo modo, ser entendida como
Na ausência de recurso a esse processo por ocasião da gravação em vídeo, urna observação sem intenção prévia. Contudo, mesmo que esta pareça
encontramo-nos, pois, diante de dois modos distintos de raciocínio e de informal, dois traços específicos do instrumento vídeo a orientam. De um
produção de dados. lado, seu caráter focalizador, simplesmente traduzido pela seleção de en-
Diante dos traços específicos de cada tipo de observação, tento arti- quadramentos, resulta em uma reStrição no tocante à experiên~·ia sensível:
cular a observação fílmica com a observação direta (com ou se1n tomada se1n dúvida nenhuma nos tornamos menos atentos e menos disponíveis
imediata de notas). Essa complementaridade não segue forçosamente o ao que se passa fora do enquadramento. Por outro lado, a intervenção da
modelo da realização de filmes documentários ou etnográficos, na qual a cãmera no decorrer da observação produz mn efeito de sinalização: por
observação direta precede e guia a gravação em video 7 • Com efeito, essa mais integrada e banalizada que possa estar nas situações de campo, a
... escolha se aproxima, antes, de um "procedimento exploratório", segundo presença da cãmera é irredutível, ela enquadra e sublinha a observação:
a formulação de Claudine de France (r989). Os dados da pesquisa são cons- fihna-se""' observa-se. A presença da cãmera em meu campo, mesmo des-
tituídos por interstícios das gravações de vídeo (não forçosamente precedi- ligada, é constante e associada pennanentemente a meu próprio papel de
das pela observação direta), pela observação a posteriori dessas imagens- observadora. Ao assinalar a observação, ela igualmente testemunha, para
sons e pelas notas tomadas por escrito. Permanecendo evidentemente as pessoas filmadas, o interesse que 1nanifesto por certas atividades e
condicionado por um conhecimento prévio do terreno, esse procedimento certos acontecimentos.
exploratório está longe do que se poderia chamar um "filme de descoberta". Se é evidente que a presença do pesquisador no campo, em urna si-
Por outro lado, a utilização do vídeo não desemboca aqui em um mé- tuação de observação direta, produz modificações junto aos fenômenos
todo autônomo que se torna ele mesmo objeto da pesquisa. Nesse proce- observados, a presença da câmera acentua por sua vez essas 1nodificações.
dimento exploratório, aproximei-me mais da empreitada de um bricoleur Na verdade, ela produz efeitos de autoencenação, ou profihnia, que lhe são
do que da obra de um técnico. Bricolagem significa, aqui, improvisação, específicos. Mais ou menos intensos, esses efeitos escapam sem dúvida
arranjo, tateamento, tentativa, mas, igualmente, atribuição de diferentes nenhuma a qualquer tentativa de anulação, ingênua ou ilusória cmno a
funções a uma mesma ferramenta 8 • ideia positivista de objetividade. Por exemplo: "façam corno se a cãme-
O vídeo é, pois, para este trabalho, um instrumento dentre outros que ra não estivesse aqui, ajam naturalmente" etc. De fato, essas tentativas
pode assumir funções situadas por vezes aquém da própria tomada de de anulação são, em geral, lastimáveis em razão de suas consequências
cena. Ele se torna um medium na instauração do diálogo com as pessoas prejudiciais no tocante às relações com as pessoas (adotar tais diretivas
filmadas, ultrapassando assim sua única função de gravação. São as mo- resultam, evidentemente, e1n urna relação falseada), mas iguahnente no
dalidades desse diálogo que condicionam, por sua vez, a integração efetiva tocante ao próprio efeito-profilmia que se torna, na n1aioria dos casos,
da cãmera nas situações de observação. ainda mais exacerbado.
Ao demarcar urna das fronteiras mais visíveis entre observação direta
7 As notas fílmicas feitas no trabalho de campo puderam, ao menos e no final das contas, e observação fílmica, a profilmia igualmente nos mostra um dos limites
constituírem-se como referência para filmes documentários ou, ainda, puderam fornecer desse instrumento. E1n algumas situações nas quais esses efeitos escapam
imagens a estes filmes.
totalmente ao nosso controle não resta senão parar a filmagem a fim de
1
8 Para a utilização do vídeo no trabalho de campo, na filmagem e na realização dos filmes do-
cumentários, trabalhei em colaboração com Sylvie Timbert. Faço questão de assinalar que, limitar uma possível degradação das relações no campo. Além disso, con-
para além das tomadas e da montagem, esta colaboração revelou-se um precioso espaço de trolar a profilmia, longe das tentativas de anulação, parece-me possível
discussões e de trocas, importante ponto de referência no desenvolvimento desta pesquisa. na medida em que podemos recorrer a uma estratégia que a integre como
24 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO CAMPO E TERRENO DA PESQUISA

dado de observação. Como se verá mais adiante, no caso das brincadei- de observador se mantém à distância - estabelece, com efeito1 um outro
ras das crianças, a profilmia está integrada como catalisador e, por vezes tipo de diálogo com as pessoas filmadas, tornando ainda mais explícita
mesmo, co1no fator desencadeador de certos acontecimentos ou situações9. nossa participação em seus rituais e em sua vida cotidiana.
Os dados audiovisuais que compõem o corpus dessa pesquisa não No decorrer da análise dos dados audiovisuais ou da "observação di-
constituem fragmentos de real fixados em imagens. Como já sublinhou ferida, estamos diante de ''pedaços do real" moldados por essa'~ escolhas
Olivier de Sardan, os dados etnográficos "são a transformação em rastros técnicas e 1netodológicas. Rever diversas vezes esses rastros da observação
objetivados de "pedaços do real" tais quais foram selecionados e percebi- fílmica representa assim um segundo momento de observação no qual
dos pelo pesquisador" (Sardan, r995a, p. 76). Neste caso, selecionados e a passagem da ilnagem ao escrito pode se operar. :[:.xiste aqui um salto
percebidos pelo registro audiovisual. Este é precedido ou guiado por es- qualitativo entre a observação direta e a observação diferida concernente
,. colhas técnicas 10 e Inetodológicas, que vão do xnaterial de vídeo utilizado à natureza de suas respectivas capacidades de produzir u1n conhecünento
à seleção dos acontecimentos a seretn gravados, passando pelos tipos de sobre os fatos. Para Claudine de France, ''os fatos que a observação diferida
enquadramento no espaço. e no tempo. põe em evidência são aqueles mesmos que a observação direta apreendia
Ao escolher uma câmera de vídeo leve, equipada com um microfone sem poder lhes conferir uma persistência" (France, 1979, p. 143). Não ha-
mnnidirecional de alta performance, podíamos nos deslocar mais livre- veria aqui uma tendência a eliminar esse salto qualitativo entre os dois
mente no espaço e obter assiln u1n registro sonoro de boa qualidade. Isso 1nétodos de observação? Ela não atribui aos rastros da observação fílmica
foi essencial, por exemplo1 em uma tomada de som por ocasião de festas um tipo de existência colada ao real, como se fossem a conservação desse
públicas em que se confundiam diversas ca1nadas sonoras emitidas a graus real como tal? Reconhecer a função de persistência da imagem animada
de potência muito diferentes tambores 1 vozes, sinos ... Toda a dificuldade não nos autoriza a considerar que a visualização desses rastros, gravados
consistia, então, em encontrar um relevo sonoro. pela câmera, possa revelar os n1esmos fatos que aqueles apreendidos pelas
Ao privilegiar longos planos-sequências, sem variação focal, a mobilida- notas de catnpo escritas. Seria prudente, aqui, relativizar a capacidade
de do espaço nos era indispensável. Esta opção de ordem técnica está ligada heurística atribuída com frequência à observação diferida e1n relação a
à escolha metodológica de uma observação explicitamente participante. qualquer outro método de observação. Parece-me ilusório imaginar que
Isto permite limitar certa "arrogância involuntária" que ('é, não apenas a visualização das h11agens nos possa ''revelae' os fatos e nos fazer "des-
sentida a posteriori pelo espectador atento1 como percebida ainda mais cobrir" sentidos e significações até então insuspeitados. É verdade que as
pelos homens que filmamos como um posto de observação" (Rouch, 1979, limitações espaço-temporais dos enquadramentos são compensadas pelo
p. 63). Seguindo os passos do apologista dos planos-sequência, decidimos acúmulo de informações e de detalhes contidos no próprio enquadrainen-
"ca1ninhar com a câmera, conduzi-la ali onde se mostrava mais eficaz, e to. Mas daí a supor que o acúmulo de informações possa nos conduzir a
hnprovisar para ela um outro tipo de balé em que a câ1nera se tornasse tão essas "descobertas" há u1na grande distância. A observação diferida está
viva quanto os homens que ela filma" (idem, ibidem). Este balé corpo a obrigatoriamente submetida às questões que colocan1os às Ü11agens-sons
corpo- impossível e1n uma situação de observação direta em que o posto vistos-escutados. Anteriores às próprias imagens, essas questões são for-
jadas por uma reflexão teórica prévia.
9 Considerada como um dispositivo, a profilmia permitiu-nos abordar em um filme (Opipari A observação diferida torna-se, aliás, uma ferramenta de entrevista
e Timbert, 1998) a questão da identidade dos espiritos-criança (crês) apreendida na relação
quando a visualização das imagens-sons se dá em presença das pessoas
que estes crês entretêm com sua própria imagem.
r o Em outro texto, abordamos a questão das escolhas técnicas e estéticas relativas à realização filmadas. Essa observação diferida partilhada, ou feedback das imagens,
de dois filmes etnográficos (Opipari e Timbert, 1994). constitui um outro momento na construção dos dados desta pesquisa.
r 26 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

Esse procedimento impõe a definição de uma estratégia precisa que per-


mita ultrapassar uma atitude ética la restituição das imagens) em favor
da elaboração de um proceditnento metodológico. Saber o que mostrar,
a quem e como, tendo previamente definido as questões que me ponho
e que me põem as imagens-sons mostradas, constítui o ponto de partida
desta estratégia. Pude trabalhar assim a questão do aprendizado ou do
"adestramento" do transe de possessão, os protocolos rituais das festas
públicas etc. A confrontação dos "fatos" !conteúdo das imagens) com o
discurso produzido sobre esses "fatos", longe de ser assumida como uma
• revelação destes últimos, aproximando-nos de certa verdade, pennite-
nos, pelo contrário, medir a diversidade do folheado constituído pela
II.
variedade das interpretações enunciadas pelos diferentes atares sociais.
percursos e contornos
do candomblé
.
"São Paulo é o cemitério do candomblé". Esta frase, inspirada
11
quiçá em uma outra, célebre no Brasil - São Paulo é o tú-
mulo do samba" -poderia se acrescentar ao conjunto de lu-
gares-comuns que conferem a esta cidade certa reputação no
contexto das manifestações culturais afro-brasileiras. Tomo
aqui como ponto de partida este "novo" lugar-comum- pre-
texto fornecido por Manuel de Odé, pai de santo originário
de Santos que vive em São Paulo há seis anos. Este primeiro
traço me permite esboçar algumas imagens do candomblé tal
como é praticado em São Paulo:

[... J nas rodas de Bahia e Rio, a gente diz que São Paulo é o cemité-
rio do candomblé, o que a gente aprende fora, chega aqui, acaba [... ].

Por ocasião da mesma entrevista gravada, Manuel de Odé


relata o diálogo com seu pai de santo antes de partir para
São Paulo:

Eu me lembro, quando eu vim abrir casa em São Paulo, meu pai


me chamou e nós ficamos quase um dia inteiro, ele dizendo: "olha,
toma cuidado, qualquer pessoa que você encontrar, mesmo sendo
muito boa, isso acaba, São Paulo faz tudo desaparecer, porque exige
dinheiro e você vai acabar fazendo coisas por dinheiro". Meu pai é
PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ )I
30 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

de aprender é você comprar um livro e ler (... J Porque na Bahia é uma coisa de
de candomblé tradicional, não aceita incorporação de caboclo 1, exu, essas coisas.
Então, ele disse: "em São Paulo tem disso, yocê vai np candomblé, o cara tá com exu, tempo, você tem que ganhar confiança, demonstrar que merece pra eles te darem
o que merece, aí eles vão dar uma coisinha miúda a cada passo. O Rio é aquela
Zé Pelintra, com baiano". Eu respondi: "mas eu não fui criado no candomblé assim"
coisa, pra você cavar alguma coisa você tem que agradar muito e pagar muito
e ele disse: "não, você não foi criado assim, mas você vai entrar, por dinheiro".
bem, geralmente o agradar muito no Rio é você ter um envoi~irhento maior com
as pessoas[ ... ] pro cara te dar alguma coisinha. No livro você já teniquase tudo,
Essa ideia de desmoronamento acrescenta novos toques à image1n do
e vocé vai procurando de forma rápida, a agilidade de São Paulo, a agitação de São
cemitério. Outros elementos vêm igualmente compor um prüneiro es~ Paulo, facilita a propagação do livro.
boço do quadro: à degradação das relações humanas e do candomblé dito
tradicional se associam as exigências inevitáveis do dinheiro. Diante do Por outro lado, o empreendünento identitãrio posto em marcha pelos
mercado, a filiação, um dos pilares do candomblé, é posta em questão: autores dessa "geração paulista" responde à constr;ção de outras identi-
... !... ]você não foi criado assim, mas você vai entrar, por dinheiro.
dades. Diferentes grupos de candomblé, demarcados por seus discursos
e práticas, colocam-se/ e1n oposição, na cena paulista, fazendo frente a
Manuel de Odé se instala em São Paulo e ali inaugura sua Casa de outras religiões: umbanda, pentecostalis1no(s), catolicismo(s), kardecismo,
candomblé. As palavras de seu pai de santo e as imagens veiculadas pelos seitas de origem oriental etc. Nós podemos identificar, a partir desses di-
adeptos da Bahia e do Rio a respeito das práticas dos adeptos de São Paulo versos núcleos de confrontação, as diferentes estratégias de convocação e
voltam no seu discurso diversas vezes. Seja para sublinhar seu estatuto de de agendamento dos aspectos culturais, rituais, étnicos etc., reivindicados
''estrangeiro"- que o demarca assim de mna categoria aqui forjada: "os pais por e/ou atribuídos a esses grupos.
de santo paulistas" -, seja para apontar seu pertencilnento a essa mesma
categoria, esse discurso nos deixa entrever um movimento contrastado de
identificação e de confrontação. Inscritos nas fronteiras estabelecidas entre Percorrerei aqui diversos caminhos que me permitem cmnpor e apre-
"nós" e os ''outros"- entre Bahia e Rio de u1n lado, e São Paulo de outro, ciar diferentes imagens do "candomblé paulista". O primeiro caminho será
entre candomblé e umbanda, entre candomblé "tradicionar' e candomblé trilhado pela leitura dos textos socioantropológicos que dizem respeito ao
"misturado" etc. -, esses contrastes traçam os contornos da construção de candomblé em São Paulo: quais pressupostos teóricos subjazem à definição
sua identidade de pai de santo e de pai de santo paulista. Manuel fala então das religiões afro-brasileiras? Como os traçados históricos da presença do
de u1na "geração paulista" que e1n busca de novas fontes de conhecünento
1
candomblé em São P~ulo ,se ligam a essas definições? Em espelho, tentarei '/'
e de aprendizado de rituais, distingue-se dos adeptos da Bahia e do Rio: elucrdar as desrgnaçoes !mrcas2 dos cultos afro-brasileiros: qual uso se ~ç('
faz hoJe dos termos umbanda, candomblé e macumba? Em que medida as
São Paulo tem a facilidade do livro editado, bom ou ruim, tem essa facilidade 1 tem
USP, que é uma formação tremenda e como aqui é tudo rápido, a forma rápida
2 Um estado da questão sobre as controvérsias em torno da oposição êmico/ético e seus
Caboclo, exu, Zé Pelintra, baiano: conjunto de espíritos ou entidades que diferem dos ori- possíveis usos em antropologia foi claramente apresentado por Olivier de Sardan (1998).
xás sob diversos aspectos. Eles são considerados, por exemplo, como a alma das pessoas Por comodidade, adoto o termo êmico, em razão da evidente vantagem de "neutralidade"
humanas já mortas, enquanto os orixás não pertenceriam ao nosso mundo. Ou, ainda, o que ele apresenta: "Neste caso, êmico poderá, como representação ou discurso, substituir
uso da fala por ocasião da possessão por estes espíritos opõe-se à sua quase ausência, com o termo 'nativo"" indigime', 'autóctone', 'local', 'popular', 'comum' e, mesmo, 'cultural'.
algumas exceções, no momento da possessão pelo orixá. Neste sentido, é importante não Cada um destes termos veicula, com efeito, conotações parasitas, ligadas ao uso comum
confundir este exu com o Exu-orixá. Estas entidades, presentes em grande parte das Casas que deles se faz e que, com frequência, incomoda os antropólogos, em razão seja de signi-
de candomblé, são consideradas de um ponto de vista ideológico, como expressão de uma ficações pejorativas ('nativo'), de significações inapropriadas ('local'), seja de significações
mistura deste culto com outro, a umbanda. não domináveis ('cultura')" (Olivier de Sardan, 1998, p. 162).

j
)2 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

delimitações entre estes cultos são operantes em relação aos adeptos? O


segundo caminho, seguindo o entrecruzamento das pistas balizadas tanto
pelos pesquisadores como pelos adeptos, dedicar~se~á a descrever os tipos
de discurso produzidos por essa associação. Enfhn, o terceiro nos conduzirá I.
ao universo da produção e do registro do saber ritual. O candomblé em São Paulo

...
O OLHAR SOCIOANTROPOLÓGICO

Seguindo a cartografia das religiões africanas no Brasil dese- Eu vejo surgir teus poetas
nhada por Roger Bastide (1960), a área do Brasil central teste- De campos e espaços
Tuas oficinas de florestas
munha a existência das religiões africanas em um passado
Teus deuses da chuva ..
histórico muito longfnquo. Em São Paulo, a industrialização
acelerada e a urbanização bastante desenvolvida estão na Panaméricas
base de transformações profundas operadas no interior des- De Áfricas utópicas
Túmulo do samba
sas religiões por um processo em dois tempos: degradação e Mais possível novo
reorganização. Quilombo 1 de Zu11'ht ....':
Em mn primeiro momento de marginalização socioeco-
Sampa 1·, Caetano Veloso
nômica e de forte desagregação cultural dos negros, que pro-
vocaram a perda de seus "valores tradicionais", assistimos a
uma degradação intensa das religiões
--.c.......__
'=~==-=~~-'""="="'""-·
africanas dando lugar
. _.·---"""' ".... ""'·-·:<"·'"" .- ... -- .. ,,

à macun1ba: "A macu1nba reflete esse mínimo de unidade


~---==----==~'-" -~-----------------··--

C)1ltlualnecessário à solidariedade dos homens em face de


um mundo que não lhes traz senão insegurança, desordem
e mobilidade. Se se prefere, ela é o reflexo da cidade em
\
transição, na qual os antigos valores desapareceram sem que ff.o,s·)-16°
os substitufssem aos valores do mundo moderno. (Bastide, ~~ "'-
'971, pp. 407-408). Em um segundo momento, é a reorga- ,JWJ<J.--r!'
nização, há pouco desencadeada, do "[ ... ] que a macumbJ~ .[)<' G
ainda deixou subsistir da África nativa" (Bastide, 1971, p~
407) que dá nascünento a uma nova religião, a u1nbanda.
Bastide indica nessa época a existência exclusiva na cidade
34 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 35

de São Paulo de grupos de macumba ou de indivíduos que se dedicam a É no interior da interpenetração das culturas que o sincretismo desem-
práticas mágicas chmnados ·macumbeiros. O «andomblé ali ~J:!lexis~~}.!te penhará um papel de equilíbrio ao preencher as lacunas deixadas pelas
e a umbanda, uma nova religião que começa a ver o dia 1• perdas e pelo esquecimento das imagens da memória coletiva2 •
D, I o
Nas regiões onde as condições estruturais socioeconô1nicas favo- Ao delimitar geograficamente as religiões afro-brasileirâs, Bastide igual- 1,;}KS ·n P"--<:.
receram a conservação da memória coletiva, as religiões africanas dão mente delimita suas variantes, definidas aqui segundo seu gràü de sincre-
provas de sua resistência pela preservação desta memória. Assim, temos tismo. Essas são classificadas a partir de un1a escala que vai -do qu~~nais s~·lJ.o pu_,.J"'' Oco

1
~:~.:::: ::~;,:,~'Z~~';"!'~'~!;',=~;~!;~~\::;:'~~d~~6c,;~er,~
, na Bahia o candomblé, expressão da religião africana de influ~!1Ci":_~4/
,!.g_Q~. Nas outras áreas geográficas, as variantes das religiões africanas',
~~~~-~!.!~~.~?-.~~~ br~~~-~?~~"~ ~~~i~~~; ·~ú~~;~:·o ~;~d~;;;blé-d~~B~h-i.J
3
.. de acordo com suas difer;~es influênc~,~-;--;~~ã~-dif;;~~~;;;-~";;;~·--d~;"ig-
nad·asl como o xangô em Perna1nbuco ou o batuque no Rio Grande do
-~-:U:~·
'-~•••••-·-•-• .,_,, _ _, _ _ , _ , , , _ ' " ' ' - ' - - " ' " ' ' ' ' ' " o oON'~

Se essas condições estruturais eram favoráveis à preservação da


'·••'' ._. 0 0 ,.,_,
situa-se nas proximidades do primeiro polo, a macumba paulista do segun~
do. Sobre esta escala, sustentada na base pela ~is~inção d:'Jrkheimi_~.l.!.!L~IlJre .,-,
memória coletiva negra .africana é a própria matriz africana que, ao ope~ !~E_g~~?- _e_ -~~g!;~, o candmnblé define~ se como "Çgi!~~9-~~;i;*~i.o~, "meio r
rar de acordo com um princípio de corte, tornou possível a integração do de controle sociaP' e "instrumento de solidariedade". Se a macumba exis-
negro na sociedade global, sem rmnpimento ne1n ruptura do patrimônio tiu anteriormente, em uth passado longínquo, como grupo organizado de
cultural africano. culto em que os santos católicos eram "misturados" aos espíritos africanos
As religiões afro-brasileiras são então apresentadas como sendo ao e ameríndios, mais recentemente, desprovida de toda memória coletiva es-
mesmo tempo o resultado dessa operação de corte entre o mundo africa- truturada, ela tende a se individualizar em torno da figura do macumbeiro:
no e o mundo brasileiro (corte que lhes permite permanecer ligadas) e do
Mas a macumba não desapareceu completamente: apenas passou da forma coletiva
fenô1neno advindo da interpenetração das culturas: para a forma individual, ao mesmo tempo se degradando de religião em magia. O

[... ]quando [o negro] entra em seu sindicato, em seu grupo profissional ou quando 2 Em seu artigo consagrado à memória coletiva, Bastide associa esta operação de preenchi-
vai ao mercado, fecha a porta de seu pegi e, da mesma forma, quando entra no mento ao mecanismo de bricolagem: "[ ... ]a sociedade afro-americana dedicar-se-á a buscar
pegi, deixa na entrada suas vestimentas de brasileiro, sua mentalidade em conta to alhures novas imagens para fechar os buracos abertos na trama do roteiro e assim lhe ofere-
com o capitalismo, por uma economia baseada no dinheiro e por uma sociedade cer esta significação que provém não da adição de simples elementos, mas da maneira pela
fundamentada em modelos ocidentais (Bastide, 1971, p. 238). qual eles são organizados. Ora, esta recomposição não é o que Lévi-Strauss chama o processo
da 'bricolagem'? [... ]Não se sabe exatamente o que falta, seja um mito seja um ritual-pois
que os fios condutores que religam esta parte do mito ou do ritual à África são rompidos.
Ma.s sabemos claramente que alguma coisa está faltando. A bricolagem não é invenção, ou
lógica do imaginário; é reparação de um objeto existente[ ... ]" {Bastide, 1970, pp. 98-xoo).
3 Dentre as variantes do candomblé da Bahia, Bastide elegerá como modelo o mais próximo
deste primeiro polo, o candomblé nagô. ~y~g(JJ . !J:O"Br3;~ é um termo genérico que designa
1 Pesquisas sócio-históricas mais recentes (cf. Negrão, 1986a e Trindade, 1991), questio- div~~~os g:_~~~~-~~Ilicg~ ~h!7~~dos no ,fi_~a! do séc~~~_}{_YII_ e XJ.?~, .. Yi~d_o.~~~. Ben~~--~-<:l?..~!gé­
nando esta configuração das religiões afro-brasileiras na cena paulista, apresentam-nos ria~_ tais como os q:u'!.!.<?J .§~}?~;_9JO, _ .~~b<!_,__~j~xa,Jkbou. Alguns grupos religiosos afro-bra-
um quadro (concernente tanto à umbanda e à macumba, como ao candomblé) distinto ;Úeiro~-~e- âüt-Ofde~l:ificam como s~nd; nagô ()U ainda qu_~~g_7 !J.MÔ· Estas designações, cl~a­
daquele de Bastide. O que importa para o momento na cartogra.fia proposta por este autor ~(f;~Ua.ções,-~ã~-~;J;·~~7r~@;:de~-;;; i~E~;-ét;rl~~ª' elas constituem, hoje, modelos
é a possibilidade que ela oferece de ressaltar os parâmetros teóricos que lhe são subjacen- rituais mais ou menos definidos seguidos pelas Casas de candomblé. Dentre as designações •", l\\:;&,
tes c que definem as religiões afro-brasileiras. Nós voltaremos mais ta.rde à reformulação de Nações mais conhecidas há: nagô, queto, queto-nagô, jeje, jeje-marrin,_~ngg1<!: 1 efon etc. ~- J
deste quadro. Ver, a este respeito, Lima (1977 e 1984).
]6 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 37

macumbeiro, isolado, sinistro, temido como um formidável feiticeiro, substitui,


cultural africana moldada ao conta to da sociedade brasileira - permane-
hoje, a macumba organizada (Bastide, I97I, p. 412)6.
cendo africana quando o princípio de corte está operante, ou se tornando
Essa degradação da religião etn magia, do coletivo em individual, re- outra coisa com o "~~ra~g~j-~~Il-~-~!~( tot~_l9.2_~-~g!C?· ~~ p_~~-~l~.9?_~~- ~egr~s,
presenta igualmente a dissolução da moralidade que, segundo o modelo 9~. ~-~~!_~&~.~--~-s-~-~--~-~!Ei.?:.,__~~9.-~~-i.I_!!__?_?hJ~tQJ~.ÜY~~-~g_i_~4-~.~~-~-~~s ~~udos;
durkheimiano, está na base da oposição entre a Igreja e a confraria mágica e o candomblé da Bahia, o campo de observação de_s.ua preséivação. Em
~-- .---"' "-• ''" '' "'~ ''""-"""••'""~''~·-·-~-- ••·•'--.+"""•·---•e._

IDurkheim, r985). contrapartida, a macumba e a um banda paulistas, associadas à integração


Na São Paulo dessa época, diz Bastide, a macu1nba encontra sua clien- do negro na socfedade industrializada, não representam senão o verso
tela e seus "mestres" junto a indivíduos cujo único elemento em comum desta mestna tnoeda. Mas estas distâncias, entre macumba~umbanda de /!A(t!JCtt..uV!6o,__

. é o fato de serem pobres e marginalizados. À medida que essa categoria


de indivíduos (negros, mestiços, imigrantes europeus etc.) se proletariza,
o desejo de uma ascensão social, criando novas necessidades, incita-os
um lado e candomblé do outro, assumem Igualmente, em certas passagens i}"'>}
da obra do autor, conotações em que as pnmeiras se tornam sobretudo o
reverso pejorativo da moeda.
,
""'- ~.1~G{J!2Çt~­

a buscar uma valorização sociocultural ante as classes dominantes. A As observações feitas por Bastide no decorrer de sua última missão ao
umbanda, então nascente, é o resultado desse esforço, ela reestrutura e Brasil, assinalando as mudanças significativas na configuração das religiões
reorganiza a 1nacumba sobre novas bases ao cruzar os resíduos da cultura afro* brasileiras na região de São Paulo, o incitarão a uma reflexão sobre a
africana e ameríndia !deixados pela macumba) com os elementos do espi- pertinência de suas premissas e de seu modelo: "Por ocasião de minha úl-
ritismo kardecista e do catolicismo. Se a macumba, reflexo da cidade em tilna viagem ao Brasil, cheguei mesm~ a. fazer uma d~scoberta sensacional'~ COJ b·r"(IJ.;
transformação, é um produto da desagregação do negro, a umbanda é, por
0
na região de São Paulo, cmneçam a ex1st1r ~-~-~do~!?l~s..pg~jlgiep,t~bran_f_Q~ btJJi!.G--o
sua vez, "a única forma possível de adaptação religiosa da comunidade IBastide, 1974, p. 12). A presença do candomblé em São Paulo e a fortiori
negra à urbanização e à industrialização" IBastide, 1960, p. 302). Como a presença de brancos nesse candmnblé perturbam de certo 1nod_~uas hi-
j~sinala Teixeira Monteiro l1978) a partir da análise das modalidades póteses elaboradas anteriormente a partir das populações negras. Bastide 1>~..,:
_r,•
"-~-~f!; \.~~$dessa adaptação, Bastide instaura uma distância entre o candomblé e a experünenta então a necessidade de rever seu modelo: "Parecia~me que
<\W,\\t umbanda na. guaLo.-mit9--ll.e_QRõe ª-.!9.t91_o!l!a. O mito, como o candomblé,
q,<'l~ )o\ era preciso buscá-lo do lado das pesquisas de mercado, pois que a religião
"' ~'I:b9"'" produto harmonioso da cultura, opõe-se à ideologia que, como a umbanda, afro-brasileira se colocava no mercado religioso ao lado de outras ofertas:
\}- é o reflexo da fragmentação da sociedade industriaL De um lado temos, o catolicismo renovado, o protestantismo histórico, o pentecostalismo, o
então, o candomblé "religião-mito", em que as superestruturas religiosas espiritismo, cada uma deixando sua 'marca' na sua atividade de propaganda
dão uma significação ao real; de outro, a umbanda "religião-ideologia", em junto aos n1esmos meios socioeconô1nicos" (Bastide, 1974, p. r o). Esses es-
que as superestruturas religiosas se tornam o simples reflexo desse reaF. boços, anotados e1n seu relatório de missão endereçado ao centro de pesqui-
A linha diretiva, assumida por Bastide em sua tese sobre as relações sas de São Paulo, que teriam assumido a forma de um livro- As Religiões
entre as infraestruturas socioeconômicas e as superestruturas religiosas, Africanas no Brasil Vinte Anos Depois-, infelizmente não viram o dia.
traça-se a partir de uma pretnissa. Aquela da existência de uma matriz As primeiras hipóteses anunciadas por Bastide iam no sentido de um mo-
vimento de compensação e1n que à africanização do br~n~2._..Ç_Çl,.!~~§PQJ1de.r!.'1
--------·----~

o abrasileiramento do n~ro. Publicados na França em edição póstuma,


~~-"4-- .. ,~-'"="-
6 Como assinala Lísias Negrão (1986b), apesar de suas criticas a Durkheim, Bastide não sou-
Suas induções não tiveram verdadeiramente eco junto aos pesquisadores
}?.e ultr~. :~.ta .~~.~~-~~2_. -~~~.<?E?lll-~~.-.-~~2__q~~--~~~J:~!E-~~~~~~-~~~~~ re~od;Çia
p. a.ssar. . o._
ã. .
(} da qP.Osição entre indivíduo e sociedade". da época: na literatura socioantropológica, São Paulo pennaneceu durante
7 êf:" B;~-tú~;-~·;;s~-~·p~;ti~~-l~~~;ttl~;·~-~~~71usão. muito tempo como a cena privilegiada da umbanda.
)8 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 39

~)- ·\"
Em 1989, Reginaldo Prandi 8, sociólogo da Universidade de São Paulo, De fato, vinte anos atrás o candomblé podia apenas ser observado aqui e ali em
<(zi\' em um trabalho de grande impacto, abre' o d~bate sobre a presença dos São Paulo. Era uma curiosidade, monumentos à antiga tradição - !~a~inava-s ~
como o redu~<?..2~~l,Llp-a afrl~_!!.idade q~~-?.~ mantinha na Ba~~mo dimensã
"deuses tribais na metrópole paulista", afirmando que o cando~.~,l-~-~~se ---- '
separada do ~esto_~§:~!~~?-çõe~ sg~i~-~~~~~ so~.ied~~=. --~-~asil~!r,~-,.-, o princípio do
instala em São Paulo, e a sociedade no interior da qual ele se desenvolve, corte idealizado por Bastide (Prandi, 1991, p. 2r). ·
___
~~.?_.~3:?.. _.~~-~-~--~-~~L~ es~ud~~?:Y-?!J?~-~-!JE~· O autor faz referência aqui
y.
. :}' à obra de 1960, As Religiões Africanas no Brasil, para sublinhar que o Dois anos mais tarde, Liana Trindade (r99r), ao introduzir um método I t'' ·nÓ •'-"'-C
ll •· ~'·r' andomblé, qll_e deixou de ser uma_;:elig_i_ão étnica de l'_~a.\'~':'do _J?_atrí- \\0z:iy~) de análise histórica no estudo das religiões afro-brasileiras em São Paulo,

i/,'J/'.~/1/./)·
:{.·_~ "[o-~-~~-~~!.~.~-~~L . ?. . C:.~ -se~.~r_inst~lar
o.,. t...orn.. aem-..s.."...n.São"-...'1..1Paulo
~-~.r.ó.P9..não!~---~-.mmais h.·.-~ .ã.·.-.o... u.···n··· -.e..·r. s..ªJf/ ~Ç-:-~~f pôde inferir que o candon1blé estava presente nesta cidade, ao menos a
;.J.-.· candolllblé virá]
.. ·. . . .•.·.··. -.r. e. . c~_mo~:<:~iiíQ.óle_i.y. partir do final do século xrx. A partir de uma leitura atenta de jornais e de
.
, C:. _

( ~- c:<~<l· preservaça_9~_4.t_l!_l!l_E~t~~-:t?Oll10_ ~~-~Jtl!-_~~J . ~~ .N~K!~~~...!~!!&~ªº--~!!}!:S:!'k.ffi~S registros policiais da época, a autora analisa as descrições das práticas dos
. ~~: . ,~- ;~-;;~-religião uni;ers~f -i~to é, aberta. a todos, in~~p~n_d~}!~~,~-~- ç~n, adeptos, os elementos rituais e os objetos repertoriados. A identificação dos
·.z_- -··--·--·-·"·--·--" ,_ ,_ ---' ----- .. -·--""'"""" "··---·-· '" "' " ""
· origem e extração social. Competirá portanto no mercado religioso com traços que podiam se relacionar ao candomblé, assim como à macumba e à
outras religiões universais importantes en1 São Paulo: catolicismo, pen- umbanda, foi então estabelecida a partir da prática dos indivíduos relatada
tecostalismo, kardecismo e um banda, além de seitas recentes de origem nestes documentos.
oriental e outras modalidades religiosas" (Prandi, 1991, p. 20) 10 . Se a ideia
Os cultos bantus registrados pelos noticiários de jornais do século xrx possuíam
de um IJlercado religioso aberto pode sugerir uma proximidade entre os
elementos encontrados na tradição do candomblé de Angola: oferendas deposita-
dois autores, é preciso, entretanto, por prudência, permanecer atento tanto das junto às árvores, o ruitual de fechamento de corpo, as giras evocando a divin-
às suas diferenças como às suas semelhanças. Assim, esta proximidade dade "Apongo", o uso de ervas, o jogo de búzios, o toque de atabaque, o sacrfício
será apreendida, em certos aspectos, na sua simetria como uma oposição de animais. Estes rituais e a possessão dos espíritos de caboclo, já existentes na
em espelho. cabula, estão integrados em casas de culto, nos bairros rurais e posteriormente,
se reestruturam no meio urbano como macumba (Trindade, 1991, pp. 234-235).
Ao afinnar que o candomblé em São Paulo não é mais a religião estu-
dada por Bastide, Pran~upõe q~~l~fo_iu_ll1__di"..."SS11Lcoli.&iª{)_lé_~!!!~a Ta1nbém Lísias Negrão, seguindo a 1nesma linha de pesquisa, pôde
~rvaç~? de__~Ip.__l?.~!!i~PQ~;Q__~p.lt}..g_ªJ neg:rQ, e que ele não o é mais. constatar a presença, -~-~~,4~QJEfS.!9 do século1 de cultos O~?ar:izado~~I?
Parece-me aqui que o autor coloca em um 1nesmo plano o modelo de que a distinção entre macumba e umbanda ~ segundo o autor, difícil_?e
..
·~------~--------- ---~-------·~---·-------··---·----------

análise construído por Bastide, apartir do qual ele infere sua definição de ser notada (Negrão, r986a). Cmn efeito, as designações atribuídas a estes
c:. .. --
' .... --
candomblé, e o candomblé ele mesmo como fato social e histórico. Com cultos, observadas tanto nos jornais con1o nos registras policiais e civis,
efeito, isso parece condicionar a identificação dos sinais da presença do podiam assinalar estratégias de sobrevivência que, naquela época, garan-
candomblé em São Paulo feita por Prandi: tiam seu livre funcionan1ento; as Casas de umbanda e provavelmente de
candmnblé eram repertoriadas como "centros espíritas", designação que
8 Trata-se aqui de sua tese de livre-docência, defendida em 1989, publicada em I99I. Minhas se referia ao"""kardecis1no que, contrariamente aos primeiros, ~ão era ohjeto
' '"'"' " .. ·-·-
~--~-~·'"'=...,""'"~ --~·--

referências reenviam ao livro publicado nesta data. de perseguiÇõ~~..R~ii~i;is. Negrão assinala que, além disso, a polícia, sus-
9 Antes da tese de Prandi, as publicações, bem pouco numerosas, concernentes ao candomblé
em São Paulo, não eram centradas sobre a especificidade da religião no contexto paulista
;~itando desse desvio, perseguia igualmente os "falsos centros espíritas".
(cf. Girotto, r98o e Schettini, 1986). Após esta tese, duas outras foram defendidas em r992 A abordagen1 histórica desses dois autores comporta igualmente uma
na Universidade de São Paulo (cf. Gonçalves da Silva, r992 e Amaral, 1992}. crítica aos métodos e aos pressuposto? teóricos assumidos po..:,}~~stide.
r o Os itálicos são meus. be um lado, em sua leitura dos jornais e registras de polícia, Bastide não
r 40 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 4I

soube dar a atenção dev_ída _à l!_!lgu~g:em pejorativa .r!_~~!!:.~e nesses regi?- Segundo Prandi, as origens do candomblé paulista vêm de fora; os
gos policiais 9• Não é raro vê-lo usar certas expressõ_~L5l~-~-ali~ a deuses africanos "chegam" à metrópole ao final de 1960 e no início de
macu_:::m::::::bc:a_:tccir:.:a:.:d~ desses documentos: "magia negra", "baixo espiritismo", 1970, seja na esteira das migrações internas das populações do nordeste
- " ..
-~-------."""'-·--·----· ·<-·-·---~-'""·'---·---------------

"charlatanismo)) etc. De outro lado, sua cartografia das religiões afro-bra- para o sul do país, seja por ocasião da partida para a Bahia e/ou para o Rio
sileiras permaneceu presa aos modelos de explicação que a definem. Em de Janeiro dos adeptos da umbanda a fim de ali se iniciarem. f.m um pri-
um primeiro momento, as oposições dicotômicas (magia/religião, mito/ meiro momento, poder-se-ia supor que a análise de Prandi se assemelha à
ideologia), instituídas pelo autor, restringiram sua percepção e sua leitura de Bastide, para quem as mudanças das infraestruturas socioeconômicas
do fenômeno histórico; em seguida, em um segundo momento, desviando resultam em n1udanças nas superestruturas religiosas. Levando um pou-
essa percepção, elas reproduziram um discurso muito próxilno dos pre- co mais adiante a comparação, a instalação do candomblé em São Paulo
conceitos da "moralidade estabelecida, branca, cristã e burguesa" !Negrão, ~ corresponderia assim a uma segunda migração dos deuses africanos (a
1986b, p. 63). No que diz respeito à oposição mito/ideologia, Negrão assi] ,\;,r/.; prin1eira tendo sido provocada pelo tráfico dos escravos). Mas se no modelo
nala que o candomblé,. co_nsi~e-'"'-~~~~'2:'? ~~-l:la.~t;id.<:= S()J!l.2::a.J?'!ó'.~~~ vv·
? .. de Bastide a possibilidade dessa migração deve-se à conservação da me-
da dignidade perdida mediante à reconstrução de uma identidade africana mória coletiva africana, como então se opera essa ((segunda migração" de
;;~~~!~"~~EA~~~~,~:.i~~~~~4·~~~j?~B:Ç.?.·.~~.:~~i?i_t~ü~;~,:·"::· ~~~·-~~~-·,~~~i~;;;···d;;~ '~:liDa religião que, se_gundo Prandi, nã.2_.E9_4~ ser étnica em uma metrém.Qle )/ P· 3 f; 3{);
uma dimensão ideológica evidente !Negrão, 1986b, p. 58). onde a própri"! nocão de etnia_E?~c.li~solve no in~erio_r das relações de classe?
Se a superposição do candomblé, objeto de estudo, ao candomblé, fe- Partindo dos estudos de 1nercado, Prandi explica a instalação e a ex-
nômeno histórico, conduz Prandi a negligenciar sua existência na cidade pansão do candomblé em São Paulo por sua <:!!Jlacidade inerente de ofe-
de São Paulo antes do final dos anos de 1960 101 é esta mesma superposição !:.eG_~!. à..cJ"-rt1~ !J._,J_a_cl~J!_'?pul~~Q__f\)_§~rt12J2Ql_ite .é.~2J'OStil.§_aOU.'!.0 ~~:U.3ó'".'l'='e f<- S.nbh[cc/V\-<Qf S,
que lhe permite redefini-lo na oposição ao objeto de estudo construído ~~5~~12.~-~---!~~~2 -~~I?.<:.~2-gªJjg_~4,~_4.?~X~i!.ª)Eg.1~Ig~. -~9!!1~-. ~~-g~g~-~1i_g!2fê-· pKl t
anteriormente por Bastide. Com efeito, vê-se bem que a empresa de Prandi Sua descrição do candomblé paulista segue então os contornos dessa popu-
consiste em esvaziar as dicotomias e as condicionantes de uma tradição lação cosmopolita que, individualista e narcísica (no sentido atribuído por
baseada na ideia de utn patrimônio cultural africano que se perpetua. Sennet 13 lt está ao mesmo tempo em busca de uma satisfação imediata de
Mas, em certas circunstãncias1 o esvaziamento desses elementos parece suas necessidades práticas e em busca do Outro individual, por meio do
aproximar mais do que afastar esses dois autores. transe, e comunitário1 por meio do grupo religioso. Dito de outra maneira,
em um primeiro momento, Prandi vai buscar, no sistema instituído de
~icas ;-jtuais e de concepções religiosas do candomblé.,_o.s_traços cor~

9 Em um outro contexto, veja-se o trabalho de Lília Moritz Schwarcz (1987) sobre as imagens ~~l'on~<!l1!."~-~-"de'E-_a_gdas -~·_QQill!llliQS.QSm2J2.o!ita gu~explir.i!m__<;.eu
do negro veiculadas na imprensa paulista do século XIX. Nos documentos apresentados sucesso junto a esta - o que forçosamente se estabelece por uma relação
pela autora, constata-se o teor deste discurso: raízes do imaginário, das ideologias e dos ----.--..-----·-·-------
de funcionalidade. Em um segundo momento, o candomblé paulista se
preconceitos raciais.
10 Com efeito, o autor considera esta presença sociologicamente pouco significativa e demo- define por um certo trabalho de "bricolagem" posto em prática quando os
graficamente pouco expressiva. Ao contrário, Vagner Gonçalvez da Silva (1992) afasta-se indivíduos, no grupo ou individuahnente, escolhem um "estilo de sub-
de Prandi. Levando em consideração as pesquisas de Trindade (1991) e de Negrão (1986a), jetividade" adaptado à vida na metrópol~. Estamos aqni, evidentemente,
ele argumenta: "Assim, a ausência de textos etnográficos sobre a presença de cultos afro
na capital paulista no começo do século não significa a ausência histórica do fenômeno,
como supôs Bastide, nem justifica a minimização de sua importância" (Gonçalves da Silva, 13 Citado pelo autor: R. Sennet, O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade,
1992, p . .59). São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
42 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 43

\ ~~;:IDuito longe da ideia de bricola~~n1, desenvolvida por Bastide, segundo a sentido de uma abertura sobre o consumo dos bens rituais e mágicos por
~; _qual a escolha dos elementos utlhzados no conserto de um objeto preexis- mna clientela não religiosa.
~1 ~;-·::rtente é submetido às condicionantes da memória coletiva Trata-se de uma Se essa encenação de um conclave fictício e a busca de_dogmas fazem
)~~.~:;.:- ~glp!_e_~~.. ~l~~i-~.!~~alizada e pragmática que desenha aqui. os co_l!!s:>rno~~do imediatamente pensar em uma posição ~'demasiado 'àiSti~H1Q.e&:PJ:t:êda"'
~~'-\Ç! ""-11~orn~lépaulista 1 mais aparentad;~~-;;i,-;:;~~~~Ílag~~i;;;~ d;~~~~l (Ta11, 1992), elas igualmente apontam para uma tendência dô autor em
(j''J) pós-moderno~·, para retmnar os termos de André Mary (1994). Com efeito, unificar os diferentes grupos e Casas de candomblé presentes na cena
a utilização da metáfora da "bricolagem" por Prandi se afasta da ideia de paulista. É essa cog.§.tf!I~ê-. )UJ.l~._Jlnidade que lhe permite, por exem-
trabalho ou de obra que esta última pode apresentar_ Do lado do mercado, plo, falar de um mercado religioso aberto e entregue à concorrência no
esta1nos mais próximos da ideia de compra de um "pronto para usar". qual certo modelo de candomblé, chamado _,,-~,~~-==-~
africanizado,.~; parece ser mais
Se o candomblé destaca-se das outras religiões \pentecostalismo, um- eficaz e mais bem adaptado às demandas da população cosmopolita, Com
banda, kardecismo, catolícismo ... L sendo que essa demarcação se torna efeito, partindo da trajetória das Casas de candomblé estudadas, Prandi
sua marca de propagand?- junto ao mercado religioso, ~le o faz pro:2ondo desenha o ciclo do processo de formação do candomblé paulista" a partir
um -~~<l_"ip<O(;í_fi_c;~" de_"~on<!uta "<l.~_vida,l_St":l!_S_~<!"!M~- Para reforçar sua de uma linha evolutiva que se iJl_icia na u1nbanda, sua or~~:-~~e pros-
hipótese, Prandi tenta sistematizar o que poderia ser o corpus de normas segue com _qu_atro mpdt:llidades tAl!-ais _p:~presentadas ..pelas ~ações a:t;!gola,
c. .•• -'-'""'" -- "-·' "' '""- •'·' ---- , __ ·'· __
.,.._,,_.., ___ ,__·---.-C--."-'..... ___:._-_ ____ , ____ .. ;......... ,-,,.,-_-,.,.~----~~---·- ····"'~-""-'"'-'·''-"•""--'~~"~·~--"

e de preceitos do candomblé. Para tanto, ele seleciona, no discurso do 'alto 1 efon, queto e_C[i1_~. !9-~fr.ic_~!l~i!. ~<J Apesar da aceitação de uma copresença
~l~!?_. -~_()_ candomblé",
as n~ções religiosas de pecado,'i~~~rdÍ~~;~~~~~~~~ d~~- dif;;;;rtes mod;}id;des, sua distinção no te1npo deixa entrever uma J~Xq
)~J?l _~ mal ~te. O autor apresenta então o conjunto dessas noções recor- 1
tendência a cons1derar o~~g_l:Htl_qu_etQjtfrj~a~niz;;t_çlo_~l!!O_Q últ:J.mQ estágio r>n"'"rr: te/
',,1/
' ~' çxifd-! ~essa linhac A d1versidade dos grupos de candomblé, ev1denciada em seu
rendo a uma montagem contínua dos trechos de entrevistas escolhidos e1n
função desses temas. Estes são colocados em cena pelo autor que introduz, \YL I~ ._
112_J?!~~l_?-_9-!_~e~t9~ !:_c!~J?-tl~ánq__~~J.:~!Qª-_l!Ǫ"O_çop.ti_p.ua g~J~rópria religião,
à guisa de ligação, questões formuladas a posteriori por u1n pesquisador eLu.lr.J·J; ~~sya!!~~~-~e n<} __!TI.odelo de J?.ra!J.~i _p~~~ ~-:~}m dar lugar a utna ide1a de <h>.,.,

fictício. A adoção de u1n tal recurso estilístico se justifica, segundo ele, ~ competência
"'-·--·--·"'- ... ~ <k _eJlc.~_cla
-~""'"" .... atribuídas
'-
a um
.... ____ ............... ____ único
_______
, _____ grupo.__,
---~ ,.,,.,. , , ___
por uma tentativa de ~'fazer como se os atores estivessem reunidos em Desprovido de condicionantes de uma tradição baseada na identidade
~~---g~I~~-!~_y-~". Este "co~~l~~;.:ft~-f~-i~~-d~--~~-;;~1~~--~l~~o" do ~~~d~~b1é étnica, o candomblé paulista deve então se reinventar como tradição. Os
paulista \ele também fictício, se se levar em consideração a inexistência caminhos dessa reinvenção parecem ser urna das marcas distintivas desse
de uma organização formal e efetiva das diferentes Casas de candomblé) candomblé, e o movimento de africanização efetuado por algumas Casas
não apresenta senão descontinuidades, lacunas e balbucios. Q _<:1,_~~-q! co~- uma das marcas privilegiadas pelo autor:

:~~~;~;~~~~:"di~::~~~~~;t~!:~pd;:~~~"~~;;~r;;;t:ã:e:::;e~~:~~~: Cada um, a partir da África e fora do circuito do candomblé bahiano, reconstrói
seu terreiro selecionando os aspectos que lhe parecem mais convenientes ou in·
~~P--~9E~:~J?~.~-~-~()_p()SSlli ~~ C::?!_I?US é~~C:9 5~{)P:S_t~_PJJclp. Trata-se, pois, de uma teressantes. Neste sentido, africanização é bricolagem. Não é a volta ao original
religião aética que concorre no mercado religioso com outras religiões primitivo, mas a ampliação do espectro de possibilidades religiosas para uma

\\\ l éticas. Aético, o candomblé paulista ao mesmo tempo se adapta a uma sociedade moderna, ~~-~~~~~12..@ servl,ç.o~e, como serviço, se apre-
§!~ no m~_r.cado religioso~ E~-~últhl<lLQf~rta~smnQjQtad<!_4.~..9I!g!.rrf!l~~.4e,
opulação P"2"-:étJca, "~_ntada::J~-~la~!'_f!!édia),_e a uma população com~tê~fi~~~~~TP;andi, 1991, pp. rr8·II9).
'\.\\ _!é-~tica
~-
(as class~~~4-~sfavorecidas) gue ainda não teve acesso
-----·--·-···"""'" ... ---
ao 1nundo
····----·------·--·<";.'-''~--""'""-·'"""

~· Ao se apresentar no 1nercado religioso como religião aética, o can-


domblé ganha certa flexibilidade, inacessível às religiões de co_nvgrsão, no 14 Veja·se também Prandi e Gonçalves, 1989.

~---
44 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 45

Nesta relação de oferta e de detnanda, o candomblé aparece cmno uma p. 90), a resposta de Prandi a esse princípio de corte 16 não está longe de
relígião na qual as diferenças entre .magia ~ prática religiosa não mais uma visão idílica em que a não contradição seria a bandeira de um mun-
existetn; as duas dimensões são mobilizadas pelo sacerdote-feiticeiro "à ~já C2!J....9._Uistado (pela classe média) o'!.~.s."r_c:_()_IlSl!l.i~tAc12..JJ!."l."~~~s
demanda do cliente". A magia, autônoma em relação à religião, é agora, de desfavorecidas):
um ponto de vista estritamente ideológico, legitimada por esta última e
[o adepto] não terá de se comportar de forma diferente, nem ao entrar no terreiro
não mais será apreendida como sendo "algo de pernicioso para a socieda-
nem ao sair para a rua. Muito pelo contrário, dentro do terreiro, sua identidade
de". Colocado em oposição a outras religiões em que a separação entre o mais íntima é assunto das conversas, das trocas das novidades do dia etc. Quando a
sagrado e o profano viria limitar a diversidade do "Eu", este "novo candom- situação ritual se realiza este adepto poderá mesmo, através do transe, viver outros
blé", mistura essas duas dimensões, e, pela possessão, vista como expres- papéis e outros eus- valorizados e reverenciados, posto que sagrados e imaginados

... são dessa diversidade do "Eu", torna pública a multiplicidade contraditória independentes da condição humana. Ao sair para o mundo, o adepto do candomblé
sabe e confia que é neste mundo que suas aspirações devem ser realizadas, não
ª~·~!?:?J:Y~~~5:?' ao 1nesmo tempo em que controla sua re;~~~~taçã; qua~do importa como, e para isto ele pode contar com possibilidades de manipulação so-
a ele atribui uma orige~ divina. O candomblé paulista é, então, segundo brenatural nas suas relações com os outros e com a certeza de uma força interior
Prandi, un1a religião libertadora e instrumental que coloca à disposição que se avoluma com seu crescimento na prática ritual (Prandi, 1991, p. 227).
do homem cosmopolita um leque de possibilidade de estar no mundo, no
sentido temporário (estar) e não no sentido existencial (ser). Essa leitura, centrada nos textos notáveis de Bastide e de Prandi, não
O esvaziamento das oposições dicotômicas e das condicionantes que se quer em absoluto exaustiva. Selecionei aqui os elementos que me pare-
povoavam o 1nodelo de Bastide também se dá quando o autor, ao responder ciam os 1nais aptos a evidenciar o caminho por eles tomado na construção
à oposição entre religião e magia, utiliza a noção de "religião mágica" em de seu objeto de estudo; o que 1ne pennitiu, igUalmente, dali extrair os
que o "individualis1no narcísíco" se traduz por uma individualização das contornos do candomblé tal qual analisado no contexto paulista. A partir
práticas e das crenças religiosas. Se para Bastide ·ª~·-_!?-:1):!.4_ª"}1~ª"_§:-~~ trgg_§_- da observação das diferenças e das distâncias entre os dois autores, condu-
fonnações da religião grovinham de certa plasticidade intrínseca à matriz zindo a essa proximidade simétrica em espelho, !entarei ~ornar uma outra
'-·-·'""' "' -·--·-·"'-------- ____ .. __
-~---"'-.---------------·~----·------~--"----··-------·-----"----.

~f!.~~-<"!--~~~ para Prandi smnente as leis do mercado religioso, condicionadas _!!a para me aproximar do que, de um lado,~_e opõesk_modo restritivq{
pelas necessidades e pelas escolhas da população cosmopolita, parecem e, de outro lado, Prandi tenta simplesmente apagar. A problemática das
subjazer às modalidades e às práticas do candomblé paulista 15 • Assim, relações, das distinções e dos agendamentos entre religião e magia, sa-
excluindo-se as regras do merc~do concorrente, este candmnblé parece na- grado e profano, indivíduo e sociedade etc., constituirá uma rede de linhas
vegar e1n um mar plácido, onde as tensões culturais, as condicionantes da transversais que percorrem este texto. _., _, r Í ~

memória coletiva e os confrontos identitários parecem pouco, ou mesmo Para tanto, adotarei aqui u1na perspectiva notadamente tnicrossoci~- Jv'l.;;_--l"oc>.;..-o
nada, dinamizados. Se em certos casos o princípio de corte proposto por lógica, a fim de analisar não mais o confronto entre siste1nas (cultural,
~

Bastide podia nos sugerir u1na "imagem do africano atuando alegremente religioso, de pensamento etc.), mas, antes, "os confrontos concretos de
nas duas cenas, frequentando assiduamente tanto a missa católica como atares sociais em interação em torno de expectativas comuns" (Olivier
os fetiches, sem duplicidade, de modo totalmente inocente" (Mary, r994, de Sardan, I995b, p. I79). Considero o ritual não mais sob seu aspecto
repetitivo, estrutural, como comemoração do mito, mas sob seu aspecto
perfonnativo, processual, como recreação e atualização desse mito. Este,

15 Em um trabalho posterior, Prandi (1996) leva ao extremo esta noção de mercado ao tratar
o fenômeno religioso do ponto de vista estrito do consumo e do marketing. I6 Retomando explicitamente como modelo o texto de Bastide citado anteriormente.
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO
PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 47

do domínio do virtual, não se atualiza senão na performance dos atores brasileira e sua origem africana 18 • É inegável que a cultura constante~
sociais; e esta virtualidade é soment~ observ,ável empiricamente em sua ment; se-;eco~pÕe e se dinamiza graças a processos que a investem de
atualização. Com efeito, o aspecto frag1nentário das narrativas míticas, novos sentidos. Seguindo Manuela Carneiro da Cunha, (1987), longe de se
irredutível a uma perda ou a um esquecilnento, parece~me, muito pelo constituir em 1natriz monolítica carregada pelos indivíd~os, a cultura se ,

apreen~\ l'tti-1~~·\:;J)'i\ --
contrário, inerente ao processo de atualização.
Se apreendo a ideia de u1n "ca1npo religioso", entendido con1o n1ercado aprese. nt·a·. d·e··· m.·o···d···o·.. ·.·r.es..,·. d.ual., m.. as .irr. e. du.tíveP'. A ess.e respeitO, .
9_~2~~~-C:~l-~<?..9.~JC::~J!j~_an~aç~o ~~-ca~_q?_JE:~lé do ponto de vista d~ ljj Zttç D,D
de concorrência, onde o candomblé se define, eu o considero como sendo
recomposiçãq_ ~:ultu~al co~-~!~Il-~~-~.!!1 _g~~-2~.~-!_!erer:~es ~~~-~~~-~~ra~içã V
einpiric.:unente heterogêneo. O fato de que cada grupo de candomblé, ou -~fri~;~-;:;-~f~recem -a e~t~·Última uma _f!?i91:1:.9!!!~.~.P1~.!~.!:
cada indivíduo, investe nesse mercado segundo uma modalidade própria, -Ap~~;~;;~a de brancos e de indivíduos oriundos da classe média no
... mostraria mais suas diversidades que sua unidade. Todo quadro que genew candon1blé não é sem dúvida alguma nem recente nem exclusiva da cidade
ralize o candomblé paulista" parece-me redutor quando traçado segundo d~-Sã~~p~~lol9,mas sua modalidade neste contexto introduz novo dado
classificações, estabelecidas a partir da competência e da eficácia, como na história dos cultos afro-brasileiros. Seu discurso ideológico maJ~~{?t;,~;-'[-D
\1:?-??.~i-~m.e.n._to. _IW_. p.}.<;>e_es~. . o d. e.-. c·· ·o· ·n·. s.·t·r·.l!~~g---~.-. e·_·Y. !!:l. ~- ~-~-~!i4ª_çls~-9E~--l?~~;:~ ;.l".-/ ~~· a-:::
"formas melhores adaptadas à megalópole". Essa tipologia revela uma
tendência não apenas a valorizar certos grupos, excluindo uma grande ~escjar negar tudo o que aparenta ser "brasileir():ng C"_nggmblé,_!'ªrª-Pfi~: ,,'";i~~c~;~'\
!.: .. í( o_ "'
.

maioria de Casas de culto, mas também a ]J:.ivil_~~~-~.!::-'2 ª-~S-~_?_I~<?J~~-<2,l~gico


e legitimador ostentado_p()E_algun~líderes ,-eligi()SOS em detrimento das
~~~;~·ciiÇõ~~-~---d~··di;~!~idade d~s ~~~ticas cotidian~~- da religião.
I legiar o que se supõe pertel).cer "!- A!!Iç.a. Podemos nos Interrogar aqu1 sobre
~ maneira pela qual são convocados os traços distintivos do "africano" e
do "brasileiro" e como estes últimos são agenciados pelos atares sociais.
OrY
.

-- C~;_:,;;ci~;;;~ -c~;_:,d~;;,_t;)é-~ã~-;p~~as sob o ângulo de uma ;eligião que Peter Fry {r982) dá uma pista ao mostrar que a conversão de certos traços Dotv..e.J~-i c.e
propõe serviços à .E9pul~_ç-ªg, mas igualmente como um esp~-~~--~~!Yl~~~9ia~ ª~~-!~!?:.!LY.9~~---ªil--~~!~~!_~ negra brasile.JJJ!,- samba, c~ndo~blé, feijoa~a, ~ím-) -1-t-~pH ·
do 12~f:l__a_<_:()!1Str\lç_ãg_ga.s__í_cl-"g!i_<!a_d<:s,_s_()C_Í'lis__"_i!l_<!ividua~s. Na realidade, bolos de fronteiras étnicas -em símbolos da nacwn~_ahdade constitui n , , ~J!J~J!..
· "'V.:~\J~alida~~c~m~. .~.-S>-~!-~~J:~~ç~~2--q~_§.~~J~.§. Domesticação que os destitui 'f\(/ort<"~ '/J.
11
as duas dimensões parece1n-me estreitamente ligadas: o tipo de serviços
propostos, ao depender dessas identidades (grupo religioso, pai de santo, ';J\v~<;r ao mesmo tempo de seu po<le!_ originário_ e de s_~gQ.J~!t'!lf:illiQ_p~J.Jgoso ou
cliente etc.), reforça e redefine estas últimas. Essa construção pode ser aqui "'[icf.,p" ll;oontestatóriodos CjUaispgderiam ter-se investido.
entendida como uma "bricolagem", não mais sob uma forma metafórica, ]:,ir São Paulo, "túmulo do samba", "túmulo do candomblé", seria ela "~-
mas como um verdadeiro trabalho e fabricação. O indivíduo, não mais </! vável nqyg_Kilombo de Zu~? É possível, mas somente quando Zumbi,
definido em sua oposição ao coletivo,_é ~p-~~~1_1did~), ne~-~~M~s>l~tiy()1_~ part!r herói histórico da resistência dos negros contra a escravidão, se converter,
d~~l'!_O~l_lSá().P~rmanenKgs;.ªlJ\Ji~tiy\c!ades. para outros estratos da sociedade brasileira, em herói nacional. Mas isto
Embora hoje se ad1nita que o candomblé é uma religião que atravessa não se efetua sem tensões e conflitos: não nos deixemos enganar pela
diferentes camadas da sociedade, sendo certamente mais brasileira que
•f\/J)j
africaná~~ P?d~.!l-~~-P9!_j_s..~_<?_5~.912_~-~t-ªL~ua an.f_~ragein na cul~l!.!.fl neg[a

r8 A este respeito; Maria Isaura Pereira de Queiroz! 1988) assinala que a identidade brasileira,
a "brasüianidade", não pode se furtar ao reconhecimento do papel fundamental desempe-
r7 Sérgio F. Ferretti {1995, p. 31) lembra que as .. ~~~ªl.i.J:J.l:~~' a seu ver exageradas, que nhado por seu componente africano, presente nos cultos religiosos.
tratam dos "can?()rnhlés em São Paulo", "batu9ues em Porto Alegre'', "x<longôs rio Recife" I9 Esta presença foi notada por outros antropólogos, na Bahia, por exemplo: Bastide (r9 58) e
devem ser c~nsúi~r~d;;·p;t;;~·trQi;ologia ~~-~~itQ';;-aiSrêSe;:vã. -<~-
Costa Lima {I977l-
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 49

ilusão de uma democracia racial enfim instituída 20 . Como adverte Liana aspecto público e festivo dos cultos, teria auxíliado na difusão deste ter~
Trindade (1991, 238), "a legitimação da cultura negra reafricanizada não mo, específico da dança, como termo geral a designar a r~ligião dos nt;,gr9s_
exclui as tensões internas existentes nas relações raciais". na Bahia. Góis Dantas assinala ainda que, de um mod9 geral, .t:a região
do nordeste brasileiro, os negros designavam diferentemente seus cultos.
'-'-=~-·. ··---·--·--·--~-----· .··· -
A obra de Lapassade e Luz (1972), abertamente engajada nàdefesa da
CANDOMBLÉ, UMBANDA E MACUMBA VISTOS PELOS ADEPTOS
macumba2l como ritual de liberação, desloca para a umbanda a oposição
Este primeiro ca1ninho traça as linhas gerais da construção do candom- anteriormente estabelecida pelos autores clássrcos com o candomblé. ~ U&U'0c(iw
blé como objeto de estudo. A introdução de uma perspectiva histórica
metódica nos estudos afro-brasileiros esclarece diversamente a questão,
n1acumba torna-se então um ritual original e es:EEcífico que incorpora
todo o desejo de hb"'ªsAo-.8-g):J.QJ:!l!!n oprimido (outrora escravo, hoJe pro-
-·-- .,
'letáno), enquanto a umbanda encarna, por sua vez, a história da repressão V"'t:.f r~cs-S<?...-7
• dando novos contornos à formação das diferentes modalidades de cultos
instalados em São Paulo. As análises propostas por Liana Trindade e Lísias desse desejo. Animados por este tom quase panfletário, os autores sugerem
Negrão, que pennitem ap.t;eender estes últimos do ponto de vista da prática uma provável formação do termo macumba.
de seus adeptos, mostra1n iguahnente que suas diferentes denominações Partindo dos estudos de Freud em que o esquecimento pode ser o
podem ser submetidas a fatores históricos variados: a designação macum- efeito de uma censura, e as substituições a ocultação da coisa reprimida,
~------~---------
ba r~<;.:9-.Y.:J~U!Jlm~ época precisa_
-~-- . e é--·-------··-····-----
utilizada de certo
~--- "'"'-- . ..............
.- -..
pelos reg~stros
modo----"-""'"''"-·-··- - "'-·--
Lapassade e Luz evocaram o desejo de liberação dos escravos refugiados
oficiais; a desi~;]lação.,spíritapodee§(;O]lder outras modalidades de cultos nas casas, construídas nos quilombos, chamadas de 1nocambos. Em favor
perseguidos em certa época; a designação candomblé faz referência a um de uma substituição de vogais, o termo n1acumba teria tomado o lugar
----------·--------·-----------
.· "sisten1aorga_niz.aslQ(' (Trindade, 1991) dos cultos colocados em um mo- de tnocambo, reprimido no inconsciente dos negros para não despertar a
\(,\ C
1\ J.
t·il·-; mento preciso de sua história etc. dor do desejo desfeito, agora sublimado graças aos rituais da macumba.
(.flJ·'' A origem etimológica dos termos varia tanto quanto seu uso no tempo. Estas propostas são talvez criticáveis em razão de sua interpretação re-
Certos autores tentaram algumas aproximaçóes. J;:dison Carneiro (1967) dutora das condições históricas da formação do termo tnacu1nba. Todavia,
-""'"""' ""' -
considera o termo candomblé, de origem 2!_Qt2~.- como sendo a designação
-- guardaremos a ideia segundo a qual a macumba não se opõe necessaria-
das danças dos escravos, mas, igualmente, de seus tambores. Além disso, mente ao candomblé e, com certa reserva, a ideia do deslocamento desta
~----·

ele assinala que a utilização deste termo não era totahnente aceita pelos oposição em direção à umbanda.
adeptos da Bahia que, entretanto, dele se serviam por não tere1n outro. O Dicionário dos Cultos Afro-brasileiros (Cacciatore, 1977) estabelece,
O autor acrescenta que este termo muito provavelmente se impôs do ex- para o termo candomblé, uma ligação com um tipo de dança dos escravos:
terior aos cultos da Bahia, sem poder, no entanto, precisar a modalidade o candomblé seria o lugar onde essas danças eram praticadas. O termo
desta imposição. Segundo Beatriz Góis Dantas (1988), é possível que esta macumba é aproxin1ado dos sortilégios, mas igualmente de um instru-
seja resultado da vulgarização do termo candomblé empreendida pelos mento de música de origem africana utilizado antigamente nos cultos afro-
primeiros estudos afro-brasileiros que, em sua tendência de privilegiar o brasileiros. O termo umbanda teria muito provavelmente ligação com a
magia, com a cura ou, ainda, s,om preceitos rituais22 . É evidente que toda

20 A este respeito, veja-se a tese de Ana Lúcia Valente (1989) que trata da presença dos ne-
gros na Igreja católica, particularmente a inclusão de elementos rituais afro-brasileiros na 21 Trata-se de um estudo sobre a macumba do Rio de Janeiro, estudo em que os autores fazem
missa. A autora chama a atenção para a tendência folclorizante destas apropriações, acen- igualmente referência à macumba de São Paulo.
tuando a ilusão de um espaço concedido e de uma coexistência pacífica. 22 Segundo Cacciatore (1977), o termo candomblé teria como origem suposta a palavra
r 50 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO
l'ERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 51
~Jl-'
lrJ
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interpretação etimológica destes termos já está submetida a uma noção pre~ gua~~do macumba
ro..§:~_!lota-se
é_utilizado como conjunto dos c.u.• l.tos. a.~r?.·b. r.asi)~i~
que a umbanda e o candomblé se apresentam não como doi
0.'!i'· &_,J;J
•, r!{'f',""
existente dos cultos afro-brasileiros. As propostas de Cacciatore, baseadas ~ --··-------·--·--·----------···---------·-·······-······--·· ················· ········· Q'J
polos opostos, mas como dois polos que se estruturam e1n ~ma continui e:•{~;;~'
entre outras em diferentes fontes da literatura socioantropológica, parecem
d;d-;: ·p~~-~;;~;i~~-·~0~~:-;-a fÍÚ~~~~i~;·~~~;~pr~;~-~t·~·-~~ti~p;~~;~?~~· 'v'.'~
obter a quase unanimidade, com algumas exceções. Mas, como todo dicio-
nário, um problema logo se põe por ocasião da passagem da etimologia dos
- .. ] meu pai frequentava umbanda, era mais fácil de entender, é a linguagem dele.
vocábulos à realidade sócio-histórica das modalidades de culto. Todos na minha família são descendentes ~e índi?._s e de africanos, só tem preto na
A utilização desses termos pelos adeptos mostra que as diferenças e as minha família, então eu já tenho um .. já é um carma, né? E não tem jeito de esca-
aproximações continuamente se reelaboram. Partindo de urna análise de par desse carma, minha família toda é de macumba, maioria é toda de macumba,
eu tenho um primD que é raspado !iniciado no candomblé], uma tia que frequenta
seus discursos, pude constatar, por exemplo, que o termo macumba é en1
. geral utilizado para designar o conjunto dos cultos afro-brasileiros. Se esta
mas não é raspada porque não conseguiu se coordenar dentro do candomblé. Na
minha famílía, eles praticamente são todos de macumba, então já é uma trajetória,
~onstatação não-faz senã;-~~nfi;ma;-z;~~i~~-;. -~;~i~;~~p~logia já havia eu não pudia fugir muito à regra {Albani, filha de santo}.
trazido à luz23, ela sugere igualmente que sob certos aspectos este universo}}
\ftro~brasileiro n~~~.~_:;-~!.:~.~.~-~ELf~EY~~~~~-l?:-~-~..~~~E.?.siç_~.~s-~E:;~~~.:'3:!s. ff
No fio dessa continuidade, os adeptos podem, por outro lado, sobrepor
diferenças e distinções entre os dois pelos. Essas evidenciam alguns signos
Por ocasião de minhas entrevistas, eu pedia aos adeptos para que me
falassem sobre as razões de sua adesão ao candomblé e sobre as condições V' particulares aos mecanismos de demarcação do candomblé em face dos
outros cultos e, em particular, diante da umbanda. A designação do lugar
a partir das quais ela havia se efetuado. Suas narrativas mostram um per~ ~ ~v
de culto pode, por exemplo, ser um dos fatores dessa demarcação. Em seu
curso no qual a;limbanda e o éanifOín@TcõriStífüêíii.umâ~ sendo que ,f A l
este percurso é, na verdade, aquele de suas "vidas na macumba". É como -s -J;j relatório de pesquisa sobre o registro oficial das unidades de cultos afro-
brasileiros e kardecistas, Lísias Negrão l1986a) assinala que a autodenomi-
diz u1n pai de santo:
nação dessas unidades pode indicar não apenas a visão que elas têm sobre
si mesmas, 1nas igualmente sua filiação às diferentes correntes religiosas
[... ]minha mãe é envolvida nisso, mas meu pai já não é, meu pai só gosta de ver[ ... ]
Aí, eu assumi de vez, fui correr minha vida de macumba[ ... ] Meu comecinho de que lhes são exteriores. Os lugares de culto de umbanda, de candomblé e
macumba foi na umbanda, né? Quando eu disse que eu nasci praticamente dentro, de kardecismo teriam então, nos registras oficiais, designaç.ões específicas
é na umbanda, foi depois que a mãe de santo da minha mãe fez santo !iniciou-se no que os diferenciariam.
candomblé], foi aí que minha mãe também entrou na festa, aí a gente mudou tudo,
Isso é igualmente notório no que diz respeito às práticas cotidianas
mas o meu comecinho foi na umbanda (Manuel de Odé, pai de santo).
dos adeptos. Estes chamam o lugar de culto de casa: casa de santo, casa de
........·---·--~--------
candomblé
- - - -.. --N""'ou casa de macumba-
_________________ _ neste último caso, pode-se já observar
candombe, cuja formação provável seria "ka" {do ldmbundo, costume) e "ndombe" {do
kikongo, negro) que resultam, assim, no costume dos negros. O candomblé, candombe uma ~quiv~J~D:SÜt"!=P.t~f;-.P::,§.J~~wos rua~.g}:~t"'::~~~~S~!.Ikt.l~ Chamam-no
com acento agudo no e e o "l" vindo do iorubá "ilê" {casa) seria então a casa do candombe. igualmente de ~o, roça, ~ 24 etc. 25 É de se assinalar que não obser-
Candombe é o termo utilizado para designar uma antiga dança dos escravos a partir de vei em minha~J~.::~s.a.§_,Çi~amp~~-l!l'~~~rreíro,_comu1nente
uma música tocada pelos atabaques. A palavra macumba teria como formação presumida
utilizado pela socioantropologia como designação de lugar de culto de can-
kimbundo: "ma", tudo o que dá medo, e "kumba", soar (som insuportável). Mas, talvez,
"maku", prefixo plural e "mba", feitiçaria. A palavra um banda seria provavelmente formada domblé. Com efeito, ao perguntar aos adeptos o sentido do termo terreiro,
de kimbundo: "u", prefixo para termo abstrato, e "mbanda" preceito. Mas o autor propõe
ainda outras possibilidades de interpretação: umbanda como arte de curar (praticada pelo
24 A questão da tradução do termo axé será mais tarde abordada.
"kimbanda", o feiticeiro) e umbanda como magia.
25 Outros termos de origem africana são igualmente utilizados como ilê, egbé, abassá etc.
23 Ver a respeito Prandi (1991), Gonçalves da Silva (1992), Trindade {1991 ), BiriJ!.an,(I99.5) etc.
52 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ Sl

disseram~ me em grande maioria que identificam o termo à designação dos Se se é passível ser vítima da macumba, pode-se igualmente ser o
lugares de culto da umbanda. A importância dessa identificação reside agente. É como explica uma filha de santo:
na distinção estabelecida entre as duas modalidades de culto. Um pai de
santo explica que Às vezes, na macumba, tem muito disso: tem pessoas que sabem mais do que a
gente, então, a gente fica conversando sobre isso, a gente aprende ma\~ uma comi-
da de santo nova, aprende como agradar o santo, aí a gente aprende cofio fazer uma
[... J os filhos da Casa dizem o meu axé, mais no sentido da Casa religiosa, porque a
macumba, sabe? A gente conversa muito sobre isso, por exemplo, se uma mulher )"11~1/.A rflbtz if.;
gente quis distinguir da umbanda. Na umbanda, eles dizem terreiro, meu terreiro,
tem também essa história de fazer documentação que inventaram, colocar um
tá separada do marido e el~ quer voltar com ele, então a gente aprende ~azer uma~~viç 61-,~~ o:<
... nome, registrar a Casa, a gente utiliza um nome religioso, a palavra ioruba ilê, ilê .,:r:,acum~a ~:a i~~[ ... ] (Lihca, filha de santo). s-o.», ~.f_,f "'.-
'fV'.Q.~Q

..
axé, casa de orixá, de culto aos orixás (Manuel de Odé, pai de santo).
A polissemia do termo macumba cobre, na realidade, diversos domí-
Os adeptos podem empregar o termo macumba para designar as festas t:\ nios da vida religiosa dos adeptos; estes podem se autodenominar ma-
''"0w ...--
públicas igualmente chamadas candomblé. Com efeito, é bastante comum \fpd} cumbeiros: _aq~~~-q~e --~~~~~~-n.-?--~.!P.3.Ç~Unl?ª~ Eis, a título de exemplo, o
ouvi-los utilizar estes dois termos, ao lado do termo toque (toque é a batida
~-
,çt' discurso de duas filhas de santo: &... --n

dos atabaques que acompanham as danças e os cantos durante a festa). ~ {)._ yo'é ~0 -;:"'
A vida de macumbeiro é isso: sábado e domingo a gente. vai pra 111.<.!-~J.!.mbg,~a !~~:
Como uma filha de santo fala dessas festas?

~
~jl in~ira 3- gent~-V.~jJ!~A~ar, tr.~Q!ilh~ <4.~-§.~!$~S:t<! .. illª!Ü.l~..Aê..~~!1f.2.da -~e,
!... J eu gosto de ver os outros candomblés,
das outras pessoas. Ás vezes eu vou, ~~
. . •. e.!]1.-C.~ª-ê... S...<!rr.._
'!c. .. s~.~-.". ·~.,_.!~.L"Q...9!!.U. .-~--.c.u__i,~.·."~~~-~.~!>..?J~.@ mruJçl··º.·'"Jl-ª.s. gJgn.ç.ª.§,J3Ab. Jl.cç}Q.,Ç
omingo é o lazer, né? Como todo mundo q~-~--~~~J~!.i;!;J~-~~!:,9,}}!Ü~l!.9L.s21~~J~~J~5,.nte
acho o candomblé bonito, acho que se o sabe fazer o candomblé, é bonito mesmo
[ ... J Então, eu vou muito, em muitas macumbas, eu vou mesmo (Angelina, filha
. ~iÊ.~~=rri~~~~~?~. ~i~~.4Ç_ mª~~iii~~Xi~i~-;~im (Rosana, filha de santo h
de santo). - Se alguém te pergunta pra, qual é a sua religião, o que você responde?
-Pra muita gente que não é de candomblé, eu digo que eu sou católica, pra quem J.·'*'"··":
Se o termo candomblé, utilizado para designar essas festas, indica an- eu vejo que é do candomblé, eu digo que cu sou macumbeira (Cida, filha de santo).
tecipadamente a distinção de uma modalidade de culto, quando o termo
escolhido é macumba ou toque pode ser, como sugere, por exemplo, um A observação e o exame dos usos feitos pelos adeptos das denomi-
ogã, que esta distinção se revele necessária:"[ ... ] quando alguém me convi- nações dos cultos afro-brasileiros indicam que a macu...mh;:L~_ao_l!!~
da para ir a um toque, a uma macumba, sempre pergunto, lá é candomblé tetnpo o ritual mágico e o feitiço do qual se pode ser a vít~~....Q.!:LQ.j!gente;
ou umbanda?" (Jorge, ogã). iliêcomo o candomblé u;;_ festa, a festa ;itual e pública, mas igualmente
, ,Longe de se restringir a~ adeptos dos cultos africanos bra~s,. o ~ o conjunto dos cultos afro-brasileiros no qual os adeptos do candomblé se
0
tf\\o termo macumba eguivak,.l!QLentido COJll.!'_!l}_~c:!e modo bastante p~jo';_ati- 'y;~ colocam, diferenciando-se sob certos aspectos da umbanda. Neste sen-
'\',j}-uJ o à ma ia com-.2kill_ç.!!ria ~i_ç_g. Essa faceta do termo macumba entra, ~ ~, . ~~ ffido, macumba não parec.e constituir um culto específico_ que se opor~· a (~u6{t'i""
ela também, no repertório dos sentidos que lhe atribuem os adeptos do
candomblé. É o que diz, por exemplo, um sobre a 1nacumba:
1-nv v/'
1;o'T...,;!,.f!
/1~0 candomblé ou à umban.da,..mas, mais provavelmente, parece exprimi
e traduzir a fluidez das fronteiras estabelecidas entre esses d01s termos. I
:: Jr·âfl/~:nê
I!" Meu interesse aqu1. reca1. sobre essa fi u1"dez, sobre a fi utuaçao
- e sobre
[... J você sabe que aqui no Brasil, nesse meio do candomblé, vamos dizer assim,
a instabilidade das distinções percebidas não apenas nos discursos masf
existe muita perseguição, muita traição, muita macumba, muito feitiço, então
você tem que estar sempre ligado iManuelzinho, pai de santo). l
~ igualmente nas prátiç_a~os adeptos. Procuro menos estabelecer cortes do
. ~ -qUe apresentar as zonas nebulosas dessa composição como u1n ~elemento
~--
s·IJ'"i".:.;
'-:_,. .
"<JY ,S \o-
t'T'\cD\}
z-..
54 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

constitutivo do candomblé tal gual ele é praticado hoje em São Paulo. Mi-
d nha persp;cti;~~é i~~~;~·~~~~i~·~;·p~~··i·;;-~~~~~PI~;~ ~~~~;, àquela
.
de Vagner Gonçalves da Silva II994; 1995) em seus estudos sobre o candom-
blé em São Paulo. Considerando umbanda e candomblé como universos 2.
culturais no interior dos quais os grupos religiosos operam suas diferenças Olhares cruzados
e suas aproxin1ações, o autor, estabelecendo iniciahnente distinções dícow!
tômicas, desenha um quadro que, como todo quadro, a:p~ese11ta o inconve-f-J

~~e:~;;~~o!!~e:~~;uci;;~~:!~';}~~1~J;i;~~~~~fí~:;i~~:q:i~~r~~~~1,
1\.

• i~e composição e de imbricação entre umbanda e candomblé se evaporam


em benefício de traços distintivos para o traçado dos quais a clareza pri- J i !J
uv.,P''''". '·
ma sobre o nebuloso, a P!ecisão sobre a oscilação. Estar atento a possíveis
~1i
Se os diferentes usos feitos pelos adeptos dos termos que fPJPJif ·· ) 1/' ·
>'/
idiossincrasias na construção de seu n1odelo é, a meu ver, insuficiente para
evitar a generalização abusiva que certas rubricas do quadro apresentam. designam os cultos afro-brasileiros, macumba e candon1blé
Um segundo aspecto deve ser observado nesta análise: a autodefinição são percebidos como homólogos, _candoll',bl\\,~.!'_I:!!.Q.~_nda apa-
dos adeptos tem cmno marca o estigma do feiticeiro e da "magia negra", receln, por sua vez, como dois pelos organizadores do univer-
o macumbeiro, ilnputado pelo senso comum. A valorização desse estig- so religioso afro-brasileiro no qual as de1narcações se dão de
ma sugere o modo pelo qual os adeptos colocam demarcações para sua modo variável. As distâncias entre esses usos e as distinções
identidade em relação à sociedade englobante. Ela igualmente assinala, formuladas pela socioantropologia abrem um espaço no qual
por exemplo, o tipo de diálogo estabelecido entre os chefes de culto e a vêm se ampliar e se fixar diferentes imagens dos cultos afro-
clientela dos serviços rituais. brasileiros tecendo ou entrecruzando os dois olhares. Cmno
se opera na história dos estudo~.~t~:R!:~!J~iro,ª- a disposição O 'S e s·l--Vv:Jp S
• dessas imagens? Co,1,;~~ã~·~las instrumentalizadas peJSJSG6\Y1Al oS
ê9-~os e pelos pesquisadores na fabricação e legitimação 0('1 1yrfdt51JY\
aJ1f,~s ~
" os
a

e s ·-"'.)
das tradições religiosas?

... e.fh.ü. r·o···e·a·.n· do. m. b.l. é..... ~. e·.. s. u. . ..• s v. a·r.i.ante.s regionais) com._Jl.E-1 'J§tJ;
l!gig2
\l··.·D
.!.t:.P..!~!'-~f!!êY..@..,_~_§lra_g_~tel~S!Jl.?-J.ê_braslleuos dos_f!!lQS
~~-~21?1_, ~r!l~..J5!§1?9.~J-~..~~~~~n~~~~E~~-~j_çQ.E?_~.1?.9lif~<B~
\ .,_Lf\largi!lali;<:~çjíg sofrida.p_elos"::J':!'~().s_<i:~~":s,<;:".Ltps. Se
esse esforço deu um in1pulso ao desenvolvimento das ciên-
cias sociais no Brasilt, ele igualmente contribuiu, em certa

Como assinala Maria Isaura Pereira de Queiroz, este desenvolvimento foi


e ainda permanece encastelado ao engajamento dos intelectuais brasilei-
ros nas questões que, relativas a seu próprio país, os toca de muito perto:
s6 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 57

... medida, para a reabilitação social dos cultos. Mas o engajamento dos
intelectuais não se limitou à produção de livros ou de artigos destinados
Os trabalhos apresentados nesse I Congresso Afro-brasileiro, publicados
em seguida em 19371 reagrupava1n uma diversidade de temas que iam do
a sensibilizar a opinião pública. Desde cedo, a associação entre eles e as folclore à sociologia, passando pela antropologia física e cultural, pela his-
populações estudadas, tornando-se 1nais visível em razão da organização tória, pela psicopatologia etc. Em 1937, um II Congresso Afio-brasileiro foi_ J..JPI~
de conferências e de congressos, estruturava-se como mna verdadeira organizado na Bahia por_Edison Carneiro, que o definiu como iún evento1,f))''{\e)r-o
dupla: pesquisador/adepto. ao mesmo tempo..,J?opular e científico no qual
Em 1934, o I Congresso Afro-brasileiro, organjzad.2._pe!CJ__sociól9go (;_y-
... C:_:X,0:0.1l ~ ~~~~y_le na cidad"-~5::Recife, punha_.:._IJl m::r_~!':"." co:n_s.!_l_llS'ão -~~-llr:;a -;;?'~~ homens de ciência e homens do povo se encontraram ombro a ombro1 discutindo
as mesmas questões, que, se interessavam a uns pelo lado teórico, a outros in-

. ~-/ ,,.,.~/ ~~<:r:2,~~~!!!"~~~-i~~'?~.~~i:~~~-~?S ~negro~.-~~~~-~::~.~-~!~_2_m~ge~-2~be~~~as \~~~- teresssavam pelo lado prático, por constituir parte da sua vida3 (Carneiro, I98o,

~
of!'-\."~-lt'~:i;~~~,;;r;~:;;:;;;:;;'~;:;',~~~~~~:;
\1-f.\r m~ís autêntícos~_ros"
os elementos
;,~ da cultura dos negros, aqueles "\
p. 46).

Os dois eventos foram marcados pela atenção dada à divulgação da


~ ())1' _3is pró"!!pos de sU<lu>J:.ig_t;.l}â, a Áfricl!.c.. cultura negra junto às elites. O Congresso da Bahia, segundo Carneiro,
'f ~ O orgamzador do Congresso o definiu do seguinte modo:
?~.A b{lu ~.Je

(
!
/~. A técnica do congresso foi inteiramente nova. Não só nenhuma pompa como
quase nenhuma burocracia. Sentaram-se em volta da velha mesa, na cabeceira da
acabou com o espantalho que ainda eram, para as classes chamadas superiores da
B.ahia1 os can.do.mb.lés ...1··.· J A__publi~i~--d···.·e_... do Co~ _r~f?SQ,--?9§ .. 'ç.rn~Ü$K~,. _elo~:r..4ilio
_.;ont.rtbuj:g_mg_a~_çrt<lLlJPl.~~.hi.~E~"'g_~-~~~DE tJ2~Ç:-!-~k.i#"~__.l.Q!!lO d~s cah:mái!4fa,
l
qual se sucederam os presidentes, conforme o assunto do dia, não só doutore§ com m!&Qç_s_}JQ. hqp_EIP.-_;S!~;S~QJ_,_,(Carneiro, r98o, PP· 44·45}.
grande erudição de gabinete e de laboratório, como íalorixás2g;rdas, co'ti.~~eiras
velhas, prestas de fogareiro, que trouxeram d·~-fund~~;icl;; de mocambo
Segundo Beatriz Góis Dantas Ir 988), esses Congressos consolidaram
receitas de quitutes afro-brasileiros quase ignorados [... J (Freyre, 1998, p. 348).
urna atitude, já visível nos estudos afro-brasileiros da época, que tendia
Esta participação, selando as ligações entre os dois polos da dupla, pa- a considerar o candomblé como espetáculo exótico de dança e de festa. A
recia querer mostrar à opinião pública ~~~U'_9.Jl!!lações_ nei~.ras conferiam valorização dos rituais públicos e de seus aspectos mais estéticos, como
----~-----·-····-.. _.. ____
seu aval aos trabalhos dos intelectnais.
Isso transformava a produção científica ~~or~av~""~·~is -~_::~~ntiça 1
1
a dança, as roupas, a música etc., tornava-se o trunfo da visibilidade do
candomblé como religião, sendo esta última possível contanto que fosse1n
.mai.u)!§xiiJ:J.!l.>i!! ~illi<:!ade§QÇi"}: apagados seus aspectos de 1nagia e de feitiçaria. Essa imagem exotizada do
candomblé, conferindo-lhe un1 aspecto de verdadeira religião 1 ganhava pa~
O Congresso de Recife, com toda a sua simplicidade, deu novo feitio e novo sabor
ralelarnente outros reforços com a valorização de seus ele1nentos africanos
aos estudos afro-brasileiros [... J. A colaboração de analfabetos, de cozinheiras, de
autênticos. Estes foram distinguidos e repertoriados pelos intelectuais em
pai~~!:.:.:~~~.!_?-~~?,_g.2~~~~~-.9.Q!lli?__ gue deu uma f.orça nov<! a_2~_est~OS 1
~~~~-::~~C:.~-~,4Q§_C~J?:!~~J.EtQª-.Ç_Q_ID_ê~~~-hX1!t~.JFreyre, 1988 1
certas Casas de candomblé: as representantes fiéis da cultura nagô.
p. 35 r). A presença dos intelectuais nessas Casas de candomblé se tornou mais
evidente com a atribuição de cargos honoríficos a eles destinados ou,
"São, pois, sempre engajados os pesquisadores brasileiros, embora muitas vezes não tenham ainda, cmn o engajamento religioso que podia ir até a iniciação no cul-
disso consciência. {... j ,os pesquisadores parecem incap~zes de quebrar o círculo mágico_~a
fascinação pelo pró rio aís, o qual os conserva seE:lpr~::!lca~~sfos aos seus problemas 1... }
\ (Pereira de Queiroz, 1992, p. 23)".
2 Ialorixá: mãe de santo, chefe de culto. 3 Data do original: 1940.
ss O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 59

do candomblé, como Vivaldo da Costa Lima e Júlio Santana Braga, entre outros
to. Essa participação parece ter feito escola nos estudos afro-brasileiros 4 .
[Prandi, 1991, pp. 36-37).
Pesquisadores engajados na religião como, pm exemplo, Juana Elbein dos
Santos, p()dem hoje fazer desse engajamento um pos!11Lago metodológi_çQ;_ A dupla pesquisador/adepto podia até então ser percebida em uma rela-
---- .
---~""'~ ~--·-·-···---··
ção de alteridade pervertida, baseada na lógica do "populismo", "endémico
Estar iniciado, aprender os elementos e os valores de uma cultura "desde dentro", no seio das ciências sociais", em que <_?S intelectuais "descobreiil o po,yp,
mediante uma inter-relação dinâmica no seio do grupo, e ao mesmo tempo poder apiedam-se de seu destino e/ou se maravilham com suas capacidades, e
abstrair dessa realidade empírica os mecanismos do conjunto e seus significados pensam assim se colocar a seu dispor e trabalhar para seu bem" (Olivier
dinâmicos, suas relações simbólicas, numa abstração consciente "desde fora", eis
de Sardan, 1995b, p. 96). Da palavra "concedida", quando se fala ao mesmo
uma aspiração ambiciosa e uma combinação pouco provável (Elbein dos Santos,
1988 1 p. 18). tempo do outro e e1n seu lugar, passa-se a uma legitilnação desta palavra.

• A relação de alteridade (pesquisador+ adepto= defesa de uma causa) torna-


Sua aposta metodológica conduziu-a, por outro lado, a restringir suas se suscetível de assumir a forma da identidade (pesquisador= adepto), sen-
fontes bibliográficas ao_s autores que "pertencem à cultura em questão, ou do que as duas modalidades podem legitimar ao mesmo tempo o trabalho
que foram 'iniciados' ou que, ao menos, tiveram uma convivência prolongada cientifico e as práticas religiosas.
em contato com esta cultura." (idem, p. 23). Essa tendência à valorização da "África autêntica" desenvolveu-se, no§.)! f- oG
Se o engajamento de Elbein dos Santos coloca-se harmoniosamente anos de 1930, junto aos adeptos do candomblé na região do nordeste brasi- {jl.{SU! J_.,,~
em uma continuidade teórica co1n os antepassados, para aqueles autores leiro. A busca dessa África, conduzida pelos antropólogos (Pierre Verger, Át~~ 0 ~.;c"-
que não se inscrevem forçosamente nos mesn1os registras teóricos, essa Roger Bastide etc.) tornou-se então o lema para as Casas de candomblé \
participação é marcada como simples continuidade de uma tradição que, onde eles trabalharam. Quando essa busca podia se traduzir em uma \(
assün procla1nada, parece poder legitünar seu próprio trabalho. Pode-se, ~agem ao continente afri~~no,
isso .!~~rese~t~va um..!__verdJ!~eira
fonte Ee ~-U<Z\-0 UJ-...'(0(-A<q,
hoje, como exemplo/ encontrar u1na retomada dessa continuidade em legitimação e de pre~tíJi~9J:~ra -~~._:::hei~ de_~::~~ Esse tnovünento, en· ~~ ...c:
Reginaldo Prandi, quando ele declara: tendido como movimento de reafricanização do candombl~, era apreciado
pelos pesquisadores como prova da capacidade profunda desta religião em
I Fomos ficando íntimos de muita gente. Fui padrinho de iaôs e recebi a honraria de conservar suas raízes preservando-se de todo "aviltamen;o". A tradiç_!o, ~ y~
ser "suspenso" [escolhido] por orixás, no transe ritual, para ocupar cargos na alta
hierarquia de três terreiros. Uma companheira de campo também foi "suspensa"
percebida pelos intelectuais como ...
uma sobrevivência da Africa
·---··---·~·-·----·-···"''""'"'-'"

em obra no presente, era proclamada, nesses termos, pelos adeptos.


_______
ancestral
..._..... -.. -.... ----~--

em um terreiro, enquanto um outro recebeu uma porção de cargos. Como acon-


tecera na Bahia com Nina Rodrigues, Edison Carneiro, Roger Bastide e Donald Quando a viagem à África não era viável, a leitura dos textos etnográ-
Pierson, além de pesquisadores conhecidamente confirmados !iniciados] em cargos ficos parecia poder substituí-la. Edison Carneiro, ao descrever o espaço
de uma Casa de Candomblé da Bahia, assinala que as mudanças sofridas
4 Se sua iniciação ao culto é apresentada de modo mais ou menos discreto por certos autores por esta são igualmente devidas a seus próprios escritos (datados de 1948);
(pelos agradecimentos à sua mãe ou ao pai de santo, na descrição de sua posição no trabalho
"Vejamos agora o barracão 5 - tal como era até 1948, pois em parte por
de campo etc.}, ela torna-se por outro lado notória em outros que se dedicam explicita-
mente ao exercício da religião. Penso aqui em Pierre Verger e em GisCle Cossard-Binon, influência deste livro, dele resta apenas a coluna central.~' (Carneiro1 r967,
que se tornou Omindarewa Iyalorisá. Michel Dion (1998), que consagrou toda uma obra à p. 41). Se essas mudanças são tomadas como uma evidência, sem merecer
figura de Omindarewa, perpetua de modo surpreendente a "tradição" da dupla pesquisador/ análise, a leitura dos textos etnográficos no interior das Casas de culto
adepto. Ao desejar "fazer uma sociologia que seja dita pela palavra do outro" (Dion, 1998, p.
126), o autor faz desaparecer literalmente este último {veja-se, sobretudo, o anexo I: Sobre
a Simbólica do Candomblé). Salão onde se dão as festas públicas.
6o 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 61

parece igualmente se justificar por si só. Assinalo a esse respeito um consequências ideológicas da apropriação desse discurso pelos adeptos nas
outro texto de Carneiro que faz referência. a uma mãe de santo da Bahia suas disputas identitárias. O entrelaçamento de um método científico e do
apresentada como sendo uma "uma mulher inteligente que acompanhava critério religioso na determinação da autenticidade e da tradicionalidade
e compreendia nossos propósitos, que lia nossos estudos e amava nossa das Casas de culto, ao tornar suas vozes legítimas, conJCr·e igualmente às
obra" (Carneiro, r964, p. 208). ciências sociais um papel privilegiado nesse processo.
Por outro lado, num artigo datado de r946, Roger Bastide (r983) assinala 1; partir dos anos de rQzo, estudos sobre as religiões afroMbrasileiras
como fator de constituição do sincretismo uma forma indireta de imitação (Maggie Velho, 1975; Fry, r982; Birman, 1980; Góis Dantas, r988) não
em que "os livros dos afrologistas" são passíveis de se tornarem modelo: somente rompem cotn o paradigma da busca do autentica1nente africano
mas, igualmente, colocam em evidência este processo de construção de
Seria um erro acreditar que os "zeladores" (nome pelo qual se designam hoje em dia
um discurso em ciências sociais que moldaria a tradição religiosa dos
os pais de santo) são pessoas ignorantes. Eles leem os livros que se escrevem sobre
eles e pode haver uma influência dos mesmos sobre suas crenças ou religiões, grupos estudados. Nesse sentido, o trabalho de Góis Dantas parece-me o
principalmente na n;1edida em que esses livros cotejam os fatos brasileiros com mais eloquente. A autora indica que a história dos cultos afro~ brasileiros
os fatos africanos, pois, na impossibilidade de ir à África, como se fazia outrora, o não se limitaria 11~m a uma história de resistência das J22EUla~~~
zelador de hoje estuda a África através dos livros para reformar sua própria religião.
gras à domi_naçAÇ>_,~os ..l>!~,,_g~~!:.S.).lltad~!:!.'l~tura de diferentes
..
(Bastide, 1983, p. 168). ~,....,_.,~~- ~~-oc""'""'

~~- Essa história estaria, assim, estreita1nente ligada às posições


O uso dos textos etnográficos parece legitimar essa refonna, contanto que teóricas e ideológicas dos intelectuais que, ao contáMla, teriam reforçado
seu usuário tenha por sua vez um "coeficiente de tradicionalidade" (Lenclud, certos aspectos, como aquele da pureza africana, forjando e legitimando
r994) atestada pelo próprio pesquisador. Esta reforma, à semelhança do sin- uma tradição religiosa.
cretismo, pode então se traduzir em simples cópia de um modelo ou em uma Mas as proposições de Góis Dantas, sem dúvida alguma bastante ino~
~'autêntica tradição". vadoras, podem hoje ser matizadas à luz das análises de Gérard Lenclud
Ao instituir essa distinção, Bastide contribui para a edificação de uma '
' (1994), que tratam da questão da,fabricação das tradições, A proclamação da
metodologia que, autorizando a distinção e a apreensão do sincretismo de tradição de certas Casas de culto pelos intelectuais, assim como a retmnada
tradição, permite igualmente conservar sua história: desse discurso pelos adeptos não parecem ser suficientes para a instituição
dessa tradição. Não podemos afastar do contexto da proclamação dessas
Seria necessário, também, que em cada terreiro estudado se indicasse a data (pelo
tradições as dinâmicas sociais nas quais interagem as posições teóricas
menos aproximativa) de fundação, e, para os mais recentes, se desse a genealogia
(por quem foi "feito", o pai, a mãe que o dirige), de maneira a distinguir o sincretis~ e ideológicas dos pesquisadores, as práticas religiosas dos adeptos e sua
mo de tradição do sincretismo de imitação. Isto é muito importante, pois existem, capacidade de manipular, segundo seus próprios interesses e suas diversi~
às vezes, casos de charlatanismo e esse método permitiria eliminá*los, separar os dades, as diferentes fontes das quais retiram os elementos para a fabricação
fatos exatos de sincretismo de certas cópias, algumas vezes cheias de erros, de e legitimação de suas tradições. Como assinala Lenclud,
interpretação dos zeladores sem iniciação suficiente (Bastide, 1983, p. !72).
a fabr.k~º-$~.dicão obedece a certas regras que carregam em si um sistema de
Esse método confere aos pesquisadores um papel de árbitro no estabe-
referências. Uma coisa é o fato de a tradição somente existir quando proclamada,
lecimento de critérios que podem determinar a autenticidade das Casas de outra, o mecanismo de proclamação ser suficiente para instituí~la. A proclamação
culto. Se o traçado de sua genealogia se inspira em um método histórico, da tradição é necessáriai não acredito que ela seja suficiente. A noção de tradição
os elementos que o balizam são resultado de critérios religiosos como, procede de antemão da pragmática mas, nem por isso "se tem tradição sob encoM
por exemplo, o tempo de iniciação ou a filiação. Não é difícil imaginar as menda" [Paul Veynei(Lenclud, 1994, p. 35).
62 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ

Esse limite foi igualmente assinalado por Figueiredo Ferretti (r995), perder o imóvel devido ao direito de sucessão fmniliar, e, de outro lado,
mas este autor parece cair na armadil~u.e consiste em supor a existên~) buscando provar e garantir sua legitimidade religiosa, engaja uma ação
\\ cia de uma Z_<l!1<l.'!_e_~~ici~"d""d:,:S t_ra~i~-õ~e~'!l1':seopo~ia,."_l1:~t~r_i_: \ junto ao organismo de Estado competente 7 para obter o -~st_atuto de patri~
II~E!!l.(),_i~~i"-\'"nção_.'?li daJ."?.:.~c-~?~.~'--. mônio histórico e cultural para sua Casa de candomblé. Á fim de cons-
tituir seu dossiê, ela faz apelo a prOfissionais, advogados e antf.opólogos 8
O intelectual atua como reflexo do que encontra, que pode reforçar, mas sua fun-
que frequentam sua Casa como 1nembros, amigos ou pesquisadores. Uma
ção legitimadora tem limites. O êxito ou fracasso de um terreiro depende princi-

- palmente da eficácia de sua liderança, como da autenticidade de suas tradições 6


{Figueiredo Ferretti, 1995, p. 68).
documentação jurídica e histórica da Casa mostrava-se necessária para
provar sua importância cmno espaço cultural.

. AS MODALIDADES DA DUPLA PESQUISADOR/ADEPTO HOjE:


Se a história recente da Casa (cerca de duas ou três décadas) e sua ori-
gem na umbanda pareciam contradizer a noção oficial de tradição, baseada
na antiguidade e na "pureza" das raízes, a instrmnentalização de outra
DOIS ESTUDOS DE CASO
noção, como aquela da invenção ou reinvenção das tradições, parece ter
Com o crescimento dos movhnentos de busca identitária empreendidos permitido a esses antropólogos jogar habilmente com a Administração,
pelos grupos religiosos, a dupla pesquisador/adepto torna-se mais comple- provando o valor cultural da Casa de candomblé, e, ao 1nesmo tempo, com
xa. Esses grupos, ao esperarem aperfeiçoar, por exemplo, sua interlocução outros pesquisadores que pareciam cOlocar em dúvida sua ação. Como
com a sociedade global, podem lançar aos pesquisadores um pedido direto assinala Gonçalves da Silva (r995), após a constituição do dossiê, a ques-
de operacionalização de sua competência profissional. .Q "pongliauw" tão da tradição do candomblé paulista ainda por ser resolvida, restava
dos aQQs
---~;:.. >·•-·"'-
de yno tra:g.smudou~se e1n uma colaboração na qugJ_Q§_gr~Y.~~g$
~-~ ----~-
saber em que medida essa Casa podia ser considerada con1o uma de suas
implicação dos pesquisa4S!res, muito variáveis, pode ir de uma espécie representantes. Em um artigo, relatório de tal processo, Amaral assinala
de corporativis~mo a u:rlla.s:.o~_ys:rsão religiosa que suscita de uma cer,!:a 1 que "as tradições são construídas diariamente, inventadas, reinventadas,
aneira uma conversão do sa~isntíflcg_~j,~lJf§..CL~.4.~~9l9_giçg e, em -, abandonadas ou recuperadas. Aos orgãos de defesa cabe garantir as con~
I _ertos cas_Qs..,_em-prátic.a..xel.igiGsa. Dessas conversões e apropriações re-
sulta, aliás, para certos grupos, a instituição de um poder diferenciado no
dições para que isso se dê" (Amaral, I99I, p. 9r). Com uma cajadada (a
noção de "tradição inventada"), dois coelhos: em 23 de abril de r990, pela
mercado religioso. prüneira vez, uma Casa de candomblé de São Paulo (como já se dera com
uma Casa da Bahia nos anos de 1980) era oficialmente reconhecida como
Primeiro caso: património histórico e cultural do Estado, e considerada como "exe1nplo
pesquisadores e adeptos conduzem um mesmo combatei típico da formação das Casas de culto de São Paulo" (Amaral, I99I, p. 91).
Segundo coelho: a "tradição" do candomblé paulista, "inventada", recebia
O processo de sucessão resultante do falecimento do chefe de culto de o selo oficial que garantia sua perenidade. A noção de invenção ou de rein-
uma Casa de candomblé em São Paulo foi marcado por inúmeras disputas venção das tradições, resultante da confrontação das análises históricas e
entre os candidatos potenciais. No decorrer dessas disputas, as lógicas da
hierarquia religiosa viram-se ao mesmo tempo confrontadas e associadas
com aquelas do direito civil da herança. A nova mãe de santo, temendo 7 Condephaat: Conselho de Defesa do Património Histórico, Artístico, Arqueológico e Tu-
rístico do Estado de São Paulo.
8 Baseio-me aqui nos dados fornecidos por dois desses antropólogos: Gonçalves da Silva
6 Os itálicos são meus. (1995) e Amaral(199r, 1992).
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ

antropológicas (Hobsbawm e Ranger, 1993), autoriza hoje uma abordagem Segundo caso:
dos fenômenos culturais em sua dinâmica ·de produção, transformação e pesquisadores e adeptos, a defesa de um mesmo saber!
legitimação dos símbolos e rituais 9• Paradoxalmente, essa noção se torna
aqui instrumento mesmo de legitimação dessas tradições, doravante prow Hoje em dia, outros tipos de apropriação do saber JlXº-iu~l_qQ_pel'!§ ciên_f_\as
clamadas no singular como sendo "a Tradição". ~s estão em andamento. A criação, por ex~~:r.lo,J~9.A!!!~~~<2.iA~~.Ç,?~~$~
Por ocasião do ritual público dedicado ao orixá patrono da Casa, du- de candomblé, de grupos de__e.s_t:g_do~~-:'in_~!sl!ê.t;;JEg~~!:res~~l. a organizaçãot
rante o qual igualn1ente se festejava o sucesso do processo, a mãe de santo nas universidades, mas igualmente e1n outros locais públicos, de cursos,
pede ao presidente do Condephaat, antropólogo, para expor ao público ~fer~r:cias, congressos, que cpntam com a=.]2l!rtici:p~_ção de _Eesquisa-
"quanto trabalharam para que se provasse, por A+ B, o que é tradição, força ~?-~e,~J. . .~~-:~~.~~~-~1::!!~ e de adeptos ~!P.. geral, tornam esses últimosic.:Ac:4Cl
• e cultura dos orixás. Eu provei e eles analisaram'' 10 (Amaral, 1992, p. 152). ~~-~~~.!-~Y-~.i~~-g-~~~~J_Qf!:!-_ª!~!!kP_<?!...~l!?_':~Z, ('P-<:~S)Jhl~Jh49E§_:: 1 . Verifica-se hoje
O discurso do Presidente, dedicado à importância da mudança política cul- em São Paulo a aparição de líderes religi'~;"~~,--;;fdo;dessa intelligentsia,
tural do Estado de São_Paulo, fazia igualmente alusão à "força da tradição"_ como o diz Gonçalves da Silva (1995, P- 268), à frente do movimento de
Com efeito, como assinala Gonçalves da Silva, a ação dos antropólogos reafricanização do candomblé.
no processo não constituí forçosamente o único fator de seu sucesso. Ou~ Uma das bases de combate desse movimento define~se, por exemplo,
tros fatores de orde1n diversa também desempenharam papel importante: a por sua participação nas Conferências Internacionais da Tradição e da
pressão das petições assinadas por pessoas próximas da Casa, os amigos, os Cultura do Orixá dirigidas desde 1981 por líderes religiosos originários da
vizinhos ou simpatizantes, a mobilização do grupo religioso na realização Nigéria, da América do Norte, dos países da América do Sul e das Caraí- "" bI
de rituais mágicos visando ao sucesso do processo (o que acarretou certa bas. Idealizadas pelo Reitor da l)_niversidade deifé, .':Vil!!ª.C'\bi_rn),Cl)_~, essas)/ Abm "' Q_
coesão perdida por ocasião das disputas pela sucessão), os conta tos políticos Conferências, segundo este último (Fry, 1984, P- 40), têm o objetivo d~/{
-reservar a unidade do CU Q_aQS orixás_graças à cg~~O de U!,11a estrutur1J )J(l f1JJé'..
l
da mãe de santo etc. A proclamação das tradições dessa Casa de candomblé 1

depende igualmente de outros referenciais ligados à sua própria prática sólida de intercâmbios internacionais. A sistematização desses intercâm-
religiosa. Entretanto, gostaria de colocar aqui em destaque o processo de bios formaliza-se em resoluções e deliberações tomadas no decorrer desses
instrumentalização da noção de ('tradições inventadas" que, com o risco encontros. À maneira dos primeiros Congressos dos anos de r930, ~?~S
de esvaziá-la de todo sentido, é colocada no singular, "a força da tradição", ~~_?cias c~:~_stitue_:_~-:::~l~~r pri:_r_n~gJ2Q_o_~!_!nter~ão ~Jl.tre_ii_g~_~os
tornando-se fonte de legitimação para aquele que dela se apropria. e pesquisadore~. Entretanto, apesar de algumas possíveis sen1elhanças
~------

no tocante ao objetivo de sua organização, como, por exemplo, aquele de


conferir ao candomblé u1n lugar respeitado na sociedade, é possível notar
uma indiscutível mudança em suas modalidades. Os adeptos, que não são
mais simples ('cozinheiras" ou as '(gordas ialorixás", cuja imagem era valo-
rizada ou folclorizada pelos antropólogos, exercem hoje sua capacidade e

II A este respeito, veja-se Prandi, 1991 e I994; Gonçalves da Silva, 1995· Exemplo desse
intercâmbio: Armando de Ogum, ou Armando Akintundê Vallado, pai de santo em cuja
9 Os artigos publicados no segundo número da revista Enquête ("Usages de la tradition", Casa Prandi e Gonçalves fizeram suas pesquisas, defendeu em seguida sua dissertação de
1996, éditions ParenthCses) dão mostras da amplidão teórica desta noção. mestrado em antropologia na Universidade de São Paulo, sob a orientação de Reginaldo
10 Os itálicos são meus. Prandi (Vallado, 1999).
66 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO
PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 67

seu direito de construir, eles próprios, essa imagem e legitilná~la segundo "seems to bring fundamental aspects of society, normally overlaid by the
seus próprios interesses. customs and habits of daily intercourse, into frightening prmninence"·*.
A quarta edição dessas conferências foi organizada em r99o em São Com a apresentação de sua palestra intitulada "O Natural e o Social nas
Paulo'~\ sob o tema: "A influência da tradição africana no mundo moder- Casas de Candomblé", o antropólogo )osé Flávio Pessoa de Barros apresenta
no". As palestras, conduzidas ao longo de cinco dias 13 por pesquisadores e o trailer de um filme em que são mostradas ~~.Pfl§.S.a.ge.Jlir'tla...f.9lh.<:~ta
representantes do culto aos orixás vindos da Nigéria, do Togo, dos Estados ~folhas_e~e_pla.~!as_çle..stil1!'.ci..!'..S.-"-.1!II\lt.s.ér.i.e..d~..Ütl!.<Üs.nOS!11!.<\QII\P.lt\. Ao
Unidos, da Argentina, de Cuba e de diferentes regiões do Brasil, eram final da projeção, uma agitação, vinda inicialmente de um pequeno grupo
acompanhadas de debates, de projeções de filmes e de apresentação de de pessoas, toma conta da sala. O coordenador da sessão, pedindo silêncio,
grupos de dança e de música. explica que o debate se dará mais tarde. Uma mulher, provavelmente uma
A austeridade do espaço fechado da sala de conferências parecia ter seu mãe de santo en1 razão de sua vestimenta, levanta-se então gritando: '~quere­
" contraponto no espaço aberto de um mercado movimentado, instalado mos falar agora, pois o assunto é importante e vamos nos retirar... ele disse
perto desta última, on,de os participantes podiam encontrar toda espécie uma coisa que não é aceitável". O coordenador, utilizando uma linguagem
de produtos ou de serviços: do jogo oracular à maquiagem ou penteados religiosa de respeito, e identificando a origem baiana dos membros desse
afros, passando pelos tecidos vindos da África e, ainda, alimentos baianos, grupo, tenta dar algumas explicações relativas à apresentação de um repre-
p.oções mágicas, objetos rituais, livros etc. Chefes de culto e adeptos, ves- ! sentante deste Estado. A confusão é total e mal se con1preende o que uns
t1dos luxuosamente com boubous* "à maneira africana", com saias volu- ~ e outros se dizem.
mosas ricamente bordadas usadas sobre anáguas engomadas "à maneira ,~} A mãe de santo retoma a palavra: "mas não é isso, é o trailer que ele
baiana", circulavam constantemente entre os dois espaços- para olhar, ~~,; acaba de passar. Um instante: eu gostaria de saber se esse professor é pai
, assistir, ver e certamente serem vistos- ao_ lado de outras pessoas maisV:f\~~f' de santo, babalorixá, tata de inquice [chefe de culto na Nação angola], que-
~~E-ente ::~?!1.4~2.:_9 deseJo de un1ficaçao _e a ?usca de u_ma~~J:!_Cia :J) /.1P ro saber isso, qual é seu papel?" Uma confusão cobre a voz do antropólogo
1

=~~~s~;:,::!~=~,::-=~~1}( 1
que tenta em vão retomar a palavra.
Um rapaz, tomando o microfone, propõe um esclarecimento: "escutem,
é isso: quero pedir a permissão à minha mãe de santo, aos babalorixás e iao-

(qr~~ndo a meu~ ol~os um mosaico de. imagens estrategicatnente expostas~/ lorixás aqui presentes, aos ogãs e às equedes, aos mais velhos, pela primeira

!ou guardadas. .
O surgimento de u1n conflito e seu desenrolar por ocasião de uma
vez neste congresso, para tomar a palavra a fim de dizer aos organizadores:
estou realmente chocado com este vídeo a que assisti!" Os aplausos, muito
das sessões trazia uma nova luz a essas primeiras ilnpressões. Como as- intensos, interrompemwno durante alguns segundos. Ele retoma: "estou
sinala Victor Turner (r974, p. 35), o conflito, inerente a toda vida social, chocado, principalmente porque o vídeo ternüna em um ponto de vista
bem claro com a seguinte frase escrita: ~trailer para comercialização"'. A
participação da assistência é ainda mais viva e ouvemMse palavras de en-
12 A primeira deu-se em Ifé, em 1981; a segunda, em 1983, em Salvador; e a terceira em 1986,
ao mesmo tempo em Nova York e em Ifé, provavelmente por causa de uma cisão no mo-
corajamento. O rapaz assume um ar 1nais grave: "assistimos neste vídeo a
vimento. 1nomentos sagrados de nossa religião que são, mesmo para certos inicia-
13 Minhas observações das atividades deste congresso concentram-se nos três dias durante os
quais segui uma boa parte das comunicações e das atividades do mercado instalado perto
da sala de conferências. * "parece trazer aspectos fundamentais da sociedade, em geral encobertos pelos costumes e
* Boubous: longa túnica, usada bem solta, em algumas regiões da Áirica (~.da T.). hábitos do intercâmbio diário, para uma proeminência assustadora'' [N. da T.).
I 68 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO pERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ

dos, proibidos de serem vistos na Nação angola, citada no vídeo ... [novos candomblés: há sempre a presença de fotógrafos, de pessoas com câmeras de vídeo
que filmam tudo do que a gente está falando aqui...
aplausos]. Peço a permissão a Nega para fal~r. Minha mãe de santo Nega
Nivalda disse-me que na Nação angola o_s_§_lh()s de santoL'~~-8__I!l()_C_<>m Un1 n1ovimento recomeça na sala sem que se possa saber se se trata de
sete anos de iniciação confirmados, não podem assistir a certas coisas que aprovação ou reprovação. O rapaz nigeriano continua:
. ----
e·-··--·····---~---~·-··---------------·-------------·----------------···-·-------

foram mostradas ..nesse vídeo.


-------------
Ora,
·-···--~---····-····----------~--~--
se é um congresso de tradição e de cul-
tura dos orixás, em que estamos preocupados com a preservação de nossos Peço agora aos pais de santo, a meus amigos, aos babalaôs, aos babalorixás, que
'fundamentos' 14 - e, oh, quantos destes foram aqui mostrados! eu, como continuemos a fazer o que estamos fazendo. Esta polêmica, se isso ofendeu a al-
guém, eu gostaria que as pessoas compreendessem que este senhor fez um trabalho
adepto da religião do candomblé, sinto-me menosprezado pela exibição
de intelectual e tenho certeza de que, nas Casas de candomblé aqui, serão encon-
desse vídeo, de tal modo que desejei aqui expressar minha indignação!". trados fotógrafos e pessoas com equipamentos de vídeo que gravam essas coisas ...
Uma vez rompida a ordem inicial proposta pelos organizadores, não restou
ao coordenador senão abrir o debate dando a palavra à mãe de santo baiana: Sem que possa terminar sua frase, a reação do grupo baiano explode:
'(Não na Bahia! Não na Bahia!~' Uma grande confusão de vozes se instaura
. Ele me deu espaço porque sou da Nação angola ... Gostaria de saber a respeito deste
0
na assistência. O rapaz nigeriano tenta retornar seu papel de coordenador
\ji"" professor qual é o seu papel no candomblé, ele é ta ta de inquice, babalorixá, ogã,
t\" iniciado ou pesquisador? Ele estuda? A segunda questão decorre da primeira, por- por diversas vezes, sem sucesso. Ele passa então a palavra ao antropólogo
' ....:1\J~ &çf 1 que se ele me responder qqe é um pesquisador que estuda, entãg__Q!g_2_~..!!_~~! para que ele explique se "é babalorixá ou pesquisador".
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~~_s<:_<:_<l!lsidera0ã.<:'_!i_e_ix_::~E:ll?E!'k~ê.Q!,,!l"!'ll?!'JEl!i:;l'.<!'?Ll}!ITI
J todas as razões
1
~E_faz~~~abs_~~5!?.-~~~~~.!.~_f9I9P.~~5~ioE?-~~é q~~-~
P!~.'.O:' I
estu_~~P:, e_I.!P"2&.~1?2~~E.~~:fu?lg!.I]l~ntQ_((J?~<!r-ª"lª~-~~ ~E?;_!lbs_gxi2.S~~2~C.§te,
q,ue __ .. em
É em meio a u1na enorme confusão que o pesquisador retorna a palavra
pela prüneira vez:
um trailer comerciaL E isso não pode continuar de modo algum!
Parece-me que a controvérsia aqui levantada foi, em primeiro lugar, motivada por
aquilo que se considera como segredo. Isto é extremamente frequente. Desde os
O coordenador, um rapaz nigeriano, assume então a palavra:
anos de r920 existem fotografias que mostram todos estes aspectos da expiação.
Gostaria de esclarecer algo: o IV Congresso Internacional abre espaço para as ques- De meu ponto de vista, parece-me que o vídeo sobre a Nigéria mostra claramente
tões polêmicas e para a participação dos babalorixás e ialorixás que desejam falar coisas altamente sagradas, e este sagrado está diretamente ligado a uma comuni-
sobre esses assuntos. Nós convidamos também pessoas sérias, que são intelectu- dade. A questão do segredo, aqui, no caso brasileiro, está extremamente voltada
ais, pesquisadores, para ajudar, porque tenho certeza de que estas pessoas muito ao próprio processo de historicidade dessas Casas, o processo de formação, isto é,
ajudaram o candomblé e a cultura africana no mundo moderno! Eles esclarecem na medida em que ..
assim muitas coisas para os zeladores e zeladoras de santos.
A confusão torna-se tumulto, ele tenta novamente falar algo lançando
Até aqui o público ouve sem intervir. O rapaz nigeriano prossegue: uma frase no ar: "Tive paciência de escutar a todos ... A questão do sagrado
aqui... A questão que penso estar sendo aqui discutida ... Este sagrado na
Gostaria, agora, de falar do filme da sessão desta manhã. Muitas pessoas assistiram
Nigéria, naquela comunidade ... "
ao vídeo africano sobre Egungun, estas coisas muito sagradas, mas isso não quer
dizer que não é preciso mostrá-las. O público gostou e chegou mesmo a aplaudir. O tmn das discussões paralelas na sala cresce, as acusações mútuas
O que acabamos de assistir, sou nigeriano, estou no Brasil há algum tempo, vi nos de falta de vigilância e de respeito aos "funda1nentos" recrudescem. Uma
jovem mãe de santo assume então a palavra com certo desespero:
14 Os fundamentos, como o termo o indica, correspondem à base, a tudo o que funda e sus-
Por favor, escutem, isso não acontece apenas em São Paulo ou na Bahia. Acontece
tenta; por isso o "fundamento" do candomblé constitui algo de muito importante que deve
em qualquer lugar, porque por todos os cantos tem boas Casas e más Casas. Não
ser conservado e guardado sob a lei do segredo. Voltarei a esta noção mais adiante.
70 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ yr

importa em que lugar, há pessoas que respeitam o axé !axé significando aquí "fun-
Os aplausos intensificam-se, interrompendo~o por alguns segundos.
.. damento"] e pessoas que não o respeitam .
Ele retoma:
Os aplausos parecem encorajá~ la:
Penso que é esta posição que devemos assumir aqui. Há também bons antropólo-
Não importa em que lugar, não importa em que Casa, cultiva-se bem e se colhe gos, quero dizer: Flávio é meu amigo, conheço-o há muitos anos, .~\!speito-o, sei
mal; tem maus filhos de santo. Aprendemos uma coisa, mas nossos filhos de santo que faz um trabalho sério e acredito que alguns dentre vocês tambénl 'o conhecem.
não ... Então, vamos parar de discutir. Aqui, é uma reunião de pais de santo em Então, vejam bem, ele expôs seu trabalho; que isto resulte em polémica, acho legí-
São Paulo. Não vamos deixar uma impressão ruim; é Rio, é São Paulo, é Bahia, é timo. Não devemos, entretanto, ficar nesta bagunça: sou da Bahia, sou do Recife,
qualquer lugar. sou do Rio de Janeiro ... Devemos, pelo contrário, tirar uma conclusão disso tudo,
ter uma ideia e formular uma proposição límpida e clara para que coisas desse tipo
Muito aplaudida, ela volta a se sentar para ceder a palavra ao antropó- não aconteçam mais.
logo, que tenta mais mna vez esclarecer sua posição.
Ele cmneça a dizer que o trailer apresentado, do qual ele não é o autor, Os aplausos entusiastas da assistência parece111 indicar uma viva ade~
é aquele de um filme c_omercial, que ele pertence a toda comunidade pois são ao discurso do vice~presidente.
pode ser comprado ou alugado facilmente. Esta comercialização, que não As conferências retmnam então seu curso em meio a murmúrios e
concerne nem à academia nem à sua posição como pesquisador ou inicia~ cochichos do público. Cada conferencista aproveita seu tempo de palavra
do, não tem relação alguma com sua exposição sobre as relações dos adep~ para retornar a alguns pontos da querela- a preservação dos "fundainen-
tos com a natureza. Ele retoma alguns pontos de sua palestra para explicar tos", a in1agem do candomblé, as diferenças regionais, a importância ou
que se tratava de falar da experiência cotidiana da religião vivida pelos não dos pesquisadores etc. -, expressando sua perspectiva e reafirn1ando
_
_,[;il
íj,qeptos, da formação histórica das Casas de candomblé e, enfim, em tom
.,~ '
sua posição. Se a definição dos pal'éill_~l!L~~dor o\l__a_<!_eptoi_I1ii'C.~icl.Q~­
'\.~~;;'(']v irritado, (~~_!:_~essão po_licial qu~~~.!_~sor!l_.ê_ e ~~}~?..!.~~-~~]!,as cessariamente exJ2h~!.!"ªf!?-ª'!!J&L<ÍQ_ç~mrflitQd~l.!U?~~~§;gg_!_~~2.1:!Y!t:~. Uma
~;··.J·rP~ (Has__~~.!?.~-~~~-"-~~~-Ressoas aqui..." Sua repriinenda, talvez muito sutil, em moça de São Paulo, encarregada de ler uma comunicação enviada por un1
1
-\ bada muda o teor das discussões paralelas que opõem uma cidade à outra. pesquisador, começa sua intervenção avisando que ela está no congresso
Após ter ouvido atentamente essas intervenções sucessivas, o vice~pre­ na condição de filha de santo, e não de professor como fora anunciado. Ela
sidente do Congresso, ogã Gilberto de Exu, figura importante na organiza~ agradece em seguida a seu pai de santo por tê-la encorajado a participar do
ção política do candomblé em São Paulo, toma a palavra em tom conclusivo:
___
congresso e acrescenta
.....
nuineros!ls. observações -~91?_~~--ª"..~..!IlPOrtância dos
- -··-···----·-··-····--
---~--·-·-----~·

pesquisadores na história do candof!1gl~,


O que está acontecendo? Acho que devemos nos acalmar e nos lembrar de alguns
---E;~··ig~;i;~~~-~·p~~~i~~i' ~·~~i~"~bservações regionalistas como aquelas
fatos passados. Penso que há pessoas aqui que se lembram que, na Bahia, uma Casa
de angola abriu seu roncó [quarto ritual]. Isto foi filmado e saiu no livro de Pierre de um representante da Bahia que, após ter criticado a organização do con-
Verger, Dieux d'Afrique [em francês]. gresso no tocante à distribuição do tempo de palavra, diz:

A assistência aplaude bastante e ele prossegue: Este congressista (cu mesmo) teria podido aprofundar de modo mais adequado
essas questões a fim de trazer a esta reunião uma pequena contribuição, visando a
Outra coisa. Aqui, em São Paulo, um babalorixá, de origem desconhecida, fez a um maior enriquecimento deste conclave tão importante[ ... ] Mas a preocupação,
mesma coisa e este vídeo será divulgado hoje ou amanhã na TV Cultura, é um ao menos do candomblé da Bahia- para seus representantes aqui presentes, que
absurdo! Então, senhores, devemos considerar, como essa senhora disse, e ela me- são consequentes- parece destoar um pouco da preocupação geral daqueles que
rece todo o nosso respeito, que existem boas Casas e que existem ma.·s Casas~~ fazem parte deste conclave, a começar por sua cúpula; nós ainda nos dedicamos à
~~tropólogos que são vampir~ti(!_V:~~o1_sa~_c~s."~.!':'::'. nos sugar, /
72 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 73

pratica do candomblé mantendo o segredo de sua sacralidade, e não temos razões


que não se dera nos dias anteriores. Cmneço então a filmar esta canti-
para mudar de caminho.
ga: a representante norte-americana 1 sentada do lado do público/ não me
Ao final desse conjunto de conferências, a abertura do debate reinau- impede de filmar, mas esboça um gesto de resistência tentando esconder
gura o conflito. Se o discurso regionalista, sempre sustentado de modo seu rosto. Viro propositadamente a cãmera e1 en1 seguida;· filmo a mãe de
veemente pelos representantes baianos, retorna com toda força 1 o discurso santo bastante idosa que canta co:rU entusiasmo ao lado de um Pai de santo
sobre a coesão, enunciado entre outros pela direção do congresso, come- e de outros adeptos. Estes lançam um olhar furtivo à cãmera que parece
I ça a ganhar terreno. Uma mãe de santo, bastante idosa, toma então um provocar aqui uma intensificação positiva de sua performance. As reações
microfone, não para falar, mas para entoar un1a reza. Algu1nas pessoas, das pessoas do público vão de certa indiferença a esta intensificação posi-
pondo-se a seu lado, curvam-se em sinal de respeito e acompanham-na tiva; por outro lado, não noto reação hostil alguma. Ao final da cantiga, a
em seu canto, batendo palmas. Eu carregava cmnigo durante todo o te1npo organizadora anuncia a pausa para o almoço e o horário de retomada das
uma câmera e até então não havia gravado senão as atividades do mercado. conferências à tarde.
A força dramática daquela cena me leva a filmá-la.
~--------------------------··
Após a reza, o argumento de defesa da coesão volta-se para o exterior.
Aponta-se o perigo de mostrar, não somente aos adeptos do candomblé Segundo Victor Turner (1974), podemos perceber nas situações de con-
mas, sobretudo, à sociedade en1 geral, uma image1n fragmentada e desagre- flito unidades de processos desannônicOS 1 os social dramas, observáveis
gada de seu movimento. Uma mulher, representante dos Estados Unidos, durante uma sequência mais ou menos regular constituída de quatro
toma a palavra para sustentar com veemência que não se pode de 1nodo fases principais. Em um priineiro momento, uma violação ou ruptura
algum permitir aos jornalistas e à televisão veicular imagem semelhante. das normas que regulamenta1n as relações sociais aparece. Esta é seguida
Dizendo isso, ela aponta para mim. Uma das organizadoras do Congresso de uma fase de crise, ponto crucial a1neaçador e perigoso que desafia os
aproxima-se então de n1im e pede para ver minha câmera. Minha primeira representantes da ordem a se confrontar com tal cris·e. Sucede-se assim
e única reação, certamente muito ingênua, é explicar que não se trata de uma fase de "ação reparadora", em que as técnicas pragmáticas e a ação
um trabalho jornalístico para a televisão, mas de uma pesquisa antropoló- simbólica atingem sua mais alta expressãoi pode~se então observar os
gica. Entrego-lhe então a câmera, que chega às mãos da representante dos mecanismos formais e informais da reparação e da mudança social. A úl-
Estados Unidos. Esta última visiona as imagens até então gravadas e, ao tima fase é aquela da reintegração do grupo dissidente ou, então, aquela do
ver cenas do mercado anterionnente filmadas, um plano fixo do brasão do reconhecimento e da legitimação da separação irreparável. O processo do
Congresso, e a mãe de santo cantando, devolve-me a câmera para concluir drama social (social dramaL adverte Turner, não segue necessariamente
seu discurso e encerrar a sessão. estas quatro fases e1n uma sequência inevitavehnente linear; cisões ou
No dia seguinte, último dia do congresso, as conferências são Inar- falhas podem ocorrer na fase crítica ou reparadora. Levando em conside~
cadas por uma atmosfera de maior coesão e confraternidade. Ao final
da sessão da manhã, mna das organizadoras propõe ao público cantar a
"Vamos cultuar nossos ori~a/Ninguém se opõe a isto/Ninguém nos diz para nos afastarmos
cantiga de abertura do Congresso ("Vamos Cultuar Nossos Orieya")I 5 , o de nossas origens/ Vamos cultuar nossos ori~a /Effou é o culto de nossa terra/ Vamos cultuar
nossos ori~a/Ogum é o culto de nossa terra/ Vamos cultuar nossos ori~a /$ango é o culto de
nossa terra/ Vamos cultuar nossos ori'$a /Obaluayê é o culto de nossa terra/ Vamos cultuar
IS Cantada em iorubá, a cantiga foi impressa nesta língua, seguida de sua tradução em por- nossos ori'$a /O'$um é o culto de nossa terra/ Vamos cultuar nossos ori'$a /Obatalá é o culto
tuguês. A cantiga, apresentada em sua versão francesa pela autora deste livro, foi aqui de nossa terra/ Vamos cultuar nossos ori~a f Ninguém se opõe a isto/Sim/ Ninguém nos
transcrita do francês para o português {N. da T. ). diz para nos afastarmos de nossas origens/ Vamos cultuar nossos ori~a".
74 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 75

ração os limites apresentados por esse modelo para uma teoria geral do A nova brecha aberta na discussão, que opunha as diferentes regiões
ritual (Geertz, 1986), eu o empresto, entretanto, aqui corno instrumento do país, indicava que para os adeptos o controle da visibilidade da religiáo
de análise, a fim de destacar os elementos expressivos específicos desse submetido a essa lei estava, com efeito, em suas mãos. Em sua disputa
conflito que me pernütirão apreciar as variações sobre o tema da dupla regionalista que por outro lado, intensificava ainda mais o conflito, era
1 1

pesquisador/adepto. caso de determinar o grupo mais· capaz ou mais legítimo paÓ fazê-lo. A
A violaçáo da lei do segredo, denunciada pelo grupo baiano, vinha ins- interverição do antropólogo, tentativa de desenvolver os argumentos do
taurar o processo do conflito. Que elementos da organização do congresso rapaz nigeriano, reabrindo a fissura pesquisador/adepto, tornava manifesto
e da prática religiosa ou intelectual desses participantes en1ergiam aqui? o fato de que, nesta discussão, o controle da visibilidade da religião não
Por que aquela má e de santo levantava o problema da definiçáo dos papéis estava do seu lado.
se, até então, a flutuação parecia consensual 16 e em harmonia com o tom Mas uma outra fratura instalava-se com o discurso regionalista: como
cientificamente sério e religiosamente engajado das sessões, garantindo resolvê-lo? Em sua intervenção, a jovem mãe de santo propunha um ou-
assim seu bom desenr9lar? tro tipo de partilha, talvez menos exclusiva que a precedente, sustentada
A inscrição "trailer para cmnercialização" atuou provavelmente como por uma moral do tipo: de um lado, os bons, e do outro, os maus. Isto me
desencadeador das reações. A polémica, parecia-me, situava-se na oposição lembrava a fórmula do politically correct, tornada aqui "religiosamente
entre tornar visível a religião para a sociedade e respeitar a lei do segredo. correto". Mas ainda restava a questão do papel do antropólogo. Como
Quetn eram os atores mais competentes para gerar essa visibilidade? En- ele1nento desencadeador do conflito, o antropólogo via sua posição inicial
quanto o rapaz acusava a incompetência do~ or~~n!za.42~~~A9 . congresso de associação e de colaboração, preconizada pelos organizadores do Con-
de levar a bom tern1o -;Ua mÍ;;,fu~d~··p~~-s·~;~~Çã~·· cÍ~s "funda;;;~~~;;;, a gresso, bastante deslocada. Cmn efeito, um aspecto crucial dessa organi-
proposição ~IE_ãe ~~~~!9..~~~-':l:~.~.l~. .~!.tJ...r,~.!l:e~~Ç. n-9 . ~~nt~~o. 4.~J~~.~- . ~.~p­ zação sobressaía de modo flagrante: não lhe pedian1 para colaborar com
!E!.~~<!a_<!.t>Jlla pes(jl!is1}d()rjadej)to, tudo isso questionando a estrutura de sua competência profissional, 1nas, antes, para corroborar a ideia inicial
base do congresso. do Congresso: a preservaçáo da Tradição e da Cultura dos orixás, expressa
Uma prüneira tentativa de reparação, empreendida pelo rapaz nige- pelos adeptos da Bahia como sendo a preservaçáo dos "fundamentos" da
riano, rememorava a importância histórica dos intelectuais para o can- religiáo. Se a ele era pedido para definir seu papel- pesquisador ou inieia-
domblé e para a cultura africana em geral. Mas isto parecia não ser su- do -,isto em nada mudava os erros que podiam lhe ser atribuídos 17. Como
ficiente, uma outra espécie de relação nascia. A ruptura dessa relação pesquisador, era acusado de ter estudado e ter tornado visível uma Casa
era reivindicada em nome da lei do segredo; o antropólogo era acusado de candomblé que, violando o segredo, não era "religiosamente correta";
de ter violado os "fundamentos" da religião ao mostrar o traíler. O rapaz como iniciado, era ele próprio que se afastava do "religiosamente correto".
nigeriano tentava então responder a essa acusação citando o filme sobre De qualquer modo, seu p~pel já estava definido: bode exri.!'!..ório. Como
os egungun como exemplo de sacralidade exposta. Na verdade, ele chega tal, ele encarnava o dilema inicial do conflito: visibilidade versus respeito
a uma resposta em que a noção de segredo, uma vez relativizada, perde dos "fundamentos".
todo seu sentido. Desajeitadamente, esse argumento colocava em xeque
a própria lei que se tentava proteger e restabelecer.
17 Com efeito, a filiação de Pessoa de Barros ao candomblé já se tomara pública em sua tese
de doutorado, defendida em 1983 na Universidade de São Paulo, e publicada em 1993· Ele
16 Na programação do congresso e em sua apresentação, os congressistas eram sistematica- ali declara: "A abordagem desta área [de pesquisa] contudo, para nós tomou-se facilitada
mente chamados de Professor ou Doutor. r
devido à nossa condição de iniciado j ... (Pessoa de Barros1 1993, p. 3).
r 76 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 77

O discurso do vice-presidente, ao redefinir os papéis do religioso e do testemunho direto dessa fragmentação e um interlocutor potencial com
pesquisador, recolocava de modo explícito o ,controle da visibilidade da re- a sociedade? O desencadeador do conflito, o trailer do fllme, estava ligado
ligião entre as mãos dos adeptos. Em sua argumentação, o "religiosamente de modo evidente a essa questão. A eleição de um novo bode expiatório
correto" não era aquele que preserva a todo custo o "fundamento", mas que pudesse consolidá-la estava ao alcance das mãos.
aquele que, tendo uma orige1n conhecida - o que significa uma tradição Se posso aqui me interrogar sobre a razão de ter filmado a 'rêza entoada
atestada-, sabe até onde deve abrir sua Casa. A este último se liga o "an- pela mãe de santo, devo admitir que a resposta está simplesmente na arma-
tropologicamente correto", o pesquisador sério cujo trabalho é reconhecido dilha montada pelo espetacu_lar da cena. Meu reflexo, cotno pesquisadora
e aprovado pelos adeptos. Seu raciocínio indicava ao público que, ao fechar utilizando uma câmera, foi aquele, bastante primário, mas sem dúvida
as portas de sua Casa aos pesquisadores, como queria propor o grupo da inevitável, de gravar o que, para mim, constituía o dramático, a imagem
Bahia, abriam-se as janelas da visibilidade àqueles que não tê1n tradição. Ao carregada de sentido. Minha lacuna metodológica explicava-se tanto pela
público de "assumir uma posição clara e límpida" a esse respeito. ausência de um trabalho prévio de banalização do instrmnento con1o por
Apesar do apoio expresso pelo público ao discurso do vice-presidente, uma ausência de pré-avaliação de seu impacto 18 • Por outro lado, minha
o retorno do aspecto regionalista, retmnado uma vez mais pela delegação reação ingênua soou evidentemente como uma absurda redundância. Jor-
baiana, indicava a existência de um elemento capital na disputa. Com nalista ou antropóloga, isto pouco ilnportava já que, estando no registro do
efeito, a delegação baiana no congresso foi, em outros momentos e em simbólico, era a câmera que se tornava o elemento mais eficaz.
diversas ocasiões, bastante crítica; o conflito instituído parecia lhe abrir A intervenção da representante norte-americana, ao alertar para o peri~
uma brecha não apenas para expressar seu descontentamento e seu desa- go da exposição de uma imagem fragmentada, aliada a seu gesto bastante
cordo com os organizadores paulistas, mas, igualmente, para afirmar sua sünbólico de examinar as imagens na câmera, foi sem dúvida decisiva.
reputação nacional de depositária da tradição. Isto era visível na tomada Reparadora do conflito, sua ação dava, alétn disso, um novo sentido à
de posição estratégica pafa a defesa insistente de sua _Lr_n~~m de l~~~.!_im?s união. Ao olhar ou, mais precisamente, ao controlar minhas imagens, ela
guardiões dos "fundamentos" da religião. Entretanto, essa estratégia per- afirmava a capacidade de gerar a visibilidade.
~Üa ~;r~en~~~I;;~-,;~~-que··o··r,e~·t;;;:;~·d:;-p·úblico parecia ter aderido à nova Se na primeira intervenção de minha cãmera eu dera mostras de um
partilha entre "bons e maus". método desajeitado em sua utilização, no dia seguinte, tornando-a volun-
Mas a força desse argumento nem sempre garantia o desejo de coesão; tariamente mais presente, ativa e participante, eu tentava compreender
como reintegrar o grupo baiano nessa nova modalidade de unidade? A qual papel se podia a ela atribuir.
l Lntervenção da mãe de ~~-~2c~~~~-~~vidand~Ql~ Ao filmar a segunda cantiga, imagem da coesão e da unidade do Con-
g::_~há-la~~~~!!~'::~:~:_.~~st~~!"~--~~~~.~--~-?.~-~-<:_~~~eintegrado!~! pois que gresso, a intervenção reparadora da representante dos Estados Unidos
restabelecia de modo simbólico e ritual se"~JJ!ÇQ_?_.E.,/!~~o_<;os. f7 parec.ía se tornar simbolicamente mais. eficaz. Eu perceb.ia. s.· ua~resistênci.ll cXl~J7 ~ J)
Era, contudo, preciso reencontrar, nessa coesão, a expressão do objetivo J,:~! V ? ~".11".".."':'.If10 uma desaprovação_e m~s..~on:'9-~.~"..If1"!"'t~~~~d_ef()E.I'.~ )<!,\?(~ ~~
principal do Congresso: p_!:~I.Y9J:.J!tr;l<:Eçftg_ey_~lg_a_io-"ri.".~~-~Y2~~~ v '.::;\~~ ~~!!:_do que eu_~~~~~tE=~a~-~-ªl.~~~~-2~~~~..<?,-«q~~-.~-~~"~~-~~~:h~-Y.
d_<::!hC_ll_llllugar resp_ertado__l1cê.~-"2<'ª".<i<'· Mostrar a força e a coesão de seJ d- íJ m.PJt~!~!:. A
intensificação da performance do canto dos outros participanM
0
movimento, de sua unidade religiosa e dogmática era provavelmente uma 'i tes vinha confirmar minha percepção. Enfim, a figura da testemunha-
das primeiras estratégias. Assim, desviar a atenção dos participantes para
o perigo de expor uma imagem fragmentada de seu movimento se revelava I8 Isto se devia, provavelmente, à situação de observação do próprio colóquio, pois meu esta-
um argumento de peso. Quem poderia naquele momento representar um tuto não foi muito claramente definido neste contexto.
78 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

interlocutor, bode expiatório no conflito, parecia reintegrada aqui para


ocupar um novo lugar, pois meu gesto as,sinalava, por sua vez, minha
aceitação do pacto instituído pela maioria dos participantes.

Produção, gravação e transmissão
do saber religioso: a fabricação das
tradições e a sutileza do axé

..
A questão da !2~2~.'15'~5',1."? ~~~ef,I5'gK\2§.2. articula-se hoje em
dia com as m~dalidades da dupla pesquisador/adepto. Ao
analisar a presença de textos etnográficos nas Casas de can~
domblé em São Paulo, Reginaldo Prandi sugere que este tipo
de literatura "tomará o lugar da transmissão oral do antigo
culto, para desgosto dos puristas ingênuos que confundem
oralidade com memorização" (Prandi, 1991, p. 291· A previsão
do autor baseia-se na constatação segundo a qual a etnogra-
fia ''é capaz de oferecer ao povo de santo um caminho a ser
seguido ritualmente, com significados de uma cos1nogonia
que dá um outro sentido à religião: agora sabe~se porque se
canta tal cantiga e o que ela quer dizer; agora sabe~se porque
tal prática cerimonial deve ser realizada" (idem, pp. IS2·
I53I- Geradora de sentido, a literatura etnográfica constitui-
ria uma via para a construção e a legitimação da "tradição"
religiosa. Para Prandi, esta "tradição" "talvez nunca tenha
existido plenamente no Brasil como peça cultural completa
em forma e em sentido" (Prandi, 1994, p. !641-
Vagner Gonçalves da Silva parece aqui partilhar o mesmo
ponto de vista, ao afirmar que os textos etnográficos podem
~'fornecer elementos para uma ressignificação de parcelas do
património de conhecimento tradicional, o qual, aliás, pare~
ce nunca ter existido de forma pura ou homogênea no Brasil.
As etnografias vão constituindo assim corpus inscriptionum
da religião" (Gonçalves da Silva, 1991, p. 571-
80 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 8I

Essas proposições pressupõem a existência. alhures (ta~( sempenhado pelos antropólogos, parece, de outro lado, que certo ~o
~e u1n '.'P~1:?}_é~nJo do co_nhecimento tradicienal" completo, puro e homo~ presente nas prOJ?Osiçõy.§._~q_~_4.9i~..-~l!~S já se encontra, antecedendo
gêneo. Apesar de outras proposições enunciadas por esses autores, uma no- suas inte;p;;ações, na sua apreciação e~pírica da presença dos textos
ção de tffidkã?_Permanece definida como conjunto de conteúdos cultur.ê:i! etnográficos nas ~!!~S d_s:~<!lldor~.:~J,~: Gostaria de chamar a a~~nção aqui
~QD2~!-~~4Q."~"t!.~~~~~.ill.~.!~~~?, __~!!<!Y~!Lçl9<_tç.rr~p.Q. Os três termos convocados para os limites dessa presença, recolocando-a no contexto da pÍodução, da
para qualificar esse patrünônio- com~uro e homogêneo -revelam gravação e da transmissão dos saberes rituais. Considerando de um ponto
respectj~nte ~~Ç.<!!ª!.~IJ~~~~~c..®.t~~L~~!.J21~.~-~-~.1.~!.~!!.?o. Ao de vista crítico o papel de "teólogo" desempenhado pelos antropólogos,
considerar esse "património do conhecimento tradicional" (para Prandi, seguindo as pistas abertas por Keesing (1985)2, tentarei colocar em relevo a
simplesmente a "tradição") como um objeto finito e apreensível como tal, diversidade desse contexto, restituindo·lhe o caráter 1nóvel e heterogêneo;
ausente ou em parte perdido no Brasil, os autores sugeren1 que os adeptos, condição da modificação do ritual e da fabricação das tradições.
ao lerem os textos etnográficos, podem recuperá~ lo, dele se reapropriaretn
ou resgatá-lo. AS SUT!LEZAS DO AXÉ
Saber "por que se canta tal canto" ou "por que se pratica tal ritual"
As noções que gravitam em torno do termo a~ estão estreitamente liga-
pode efetivamente corresponder a uma verdadeira preocupação para os
das à questão da aquisição do saber ritual, à proclamação das tradições e
adeptos -seguida ou, na maioria das vezes, precedida de questões: "como
à sua legitimação. Recobrindo u1n vasto ca1npo de significações e usos,
se canta tal canto?" ou "como se pratica tal ritual?" Mas, nem por isso,
a tradução cultural desse termo não é menos problemática que aquela de
nada autoriza a deduzir que a partir da leitura dos textos etnográficos
mana (Keesing, 1984, I98s). Aliás, aproxilnações entre esses dois tennos
~
eles encontram uma resposta. Mesmo se para alguns antropólogos, lidos
são muito frequentes na literatura afro-brasileira.
~x;r?~;los adeptos 1, o objetivo de seus trabalhos é_ re~pco~~rª-~ -~9~JPJ,9,g" A origem iorubá do tenno levou certos autores a buscar inicialmente
rt'-':.f\c~~(jJr.:Qu
1
"esquecido no Brasil entre os gestos rituais e os mito_§; entre o vivido
'
J'' ---~~-~ ... -· uma tradução do lado da literatura africanista". Roger Bastide, citando B.
. . '~.:/ e sua significação, nem assim, isto permite afirmar que essa etnografia
Maupoil4 , precisa:
constitui o corpo codificado da religião.
É inegável que o antropólogo, como testemunha direta das práticas Toda citação é aqui emprestada da tradução francesa deste artigo com a referência Keesing
religiosas - cujos sentidos se apresentam na experiência empírica de (I996).
modo fragmentário, lacunar e implícito- torna-se, de certo modo, o mais Isto pode, aliás, ser encontrado em um grande número de análises concernentes aos rituais
do candomblé e às suas significações. Como se a origem histórica africana do culto autori
apto a relatar por escrito sua homogeneidade "escondida" ou "perdida". Os ~asse os autores a ali buscar os mitos e <'!,S si~ificações dos ritos "perdidos" ou "esquecidos
laços que faltam entre os fragmentos são recosturados por interpretações no Brasil (ver Elbein dos Santos, 1988 e Bastide, 1958, entre outros). Se tal recurso metodo-
a partir das quais o candomblé pode aparecer, aos olhos dos leitores (entre lógico podia ter como objetivo instituir um estudo comparativo, em uma ampla maioria de
eles, os próprios adeptos), como un1 siste1na teológico cmnpleto e coerente. casos ele se traduz por uma "superposição" dos dadO~J!:!!!~gg&.,§.@!.~~I~.alicJ.ê-sl-e b~~~-
Ê interessante notar que cer~7';trt";~e·;,-~p;;;-de suas críticas endereçadas aos pioneiros , /\ ,:-1 \1.
Se Prandi e Gonçalves da Silva reconhecem esse papel de "teólogo" de- -[\Aof!\<:l -jlJ,( f.•
desse método, tendem a reproduzi-lo. Penso aqui, por exemplo, no trabalho de Monigue ' '\ (!_ ~.
Augras (1983 {1992 para a edição francesaj), em que a autora, apesar de sua intenção de
':;;~U<ia~ dos pregadores e pregadoras brasileiros de hoje em um meio que é o deles"
r_,~-. Dentre os textos etnográficos lidos pelos adeptos, observei, como Prandi e Gonçalves da {1992, p. 25 ), reconstrói a identidade mítica do orixá a partir de fontes etnográficas africaf
~~t!'(}\F k}iva, uma preferência pelo livro de Pierre Verger (1981),~ein dos Santos (r988) e ~-Pode-se igualmente encontrar uma crítica desse método em Segato (1995, p. 68).
fc).;ii~· ~~?~.L.~~~~~J.!.2.i§L três autores que partilham a preocupação, entre outras, de encontrar Citado pelo autor: B. Maupoil, 1943, La géomancie à l'ancienne Côte des Esclaves. Paris,
-')\)1 ::!' <t- . na Africa este sentido "perdido" ou "esquecido". Institut d'Ethnologie, Musée de l'Homme, p. 334.
~~~/f'\' __,__. . . ----..~--~-----"··~····"•'•'>"""'' "''"-----·-.-·~--·----·------··
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PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ SJ
82 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

É sabido que axé "designa em nagô a força invisível, a força mágico-sagrada de de veículo. É durante a iniciação que o àsé do "terreiro" e dos õrisà é plantado e
toda divindade, de todo ser animado, de todas as coisas". B. Maupoil escreve que transmitido às noviças (Elbein dos Santos, I988, p. 43}.
se trata do correspondente iorubá da b~raka árabe nos países magrebinos, do mana
A absorção e preparação do axé, entendido pela autora cmno uma subs-
polinésio e melanésio, da orenda dos iroqueses, do manitu dos algonquinos. No
Brasil, o termo conservou-se para designar algo diferente, mas que tem em comum tância, vão condicionar o conhechnento e o desenvolv.iniento iniciático
com os outros significados o fato de se tratar de um depositário de força sagrada: do indivíduo. Este conhechnento, assim cmno o axé1 é transmitido de um
significa em primeiro lugar os alimentos oferecidos às divindades, em seguida indivíduo para outro por um complexo dinâmico que combina palavra,
as ervas colhidas para o banho das filhas iniciadas e também para curar doenças;
gestos e movimentos corporais. Nesse contexto, a palavra teria um poder
finalmente, o fundamento místico do candomblé (Bastide, 2009, p. 77).
de realização; para Elbein dos Santos, ela
Juana Elbein dos Santos, partindo das mesmas fontes, não somente ultrapassa seu conteúdo semântico racional para ser condutor de àse, isto é, um
cOrrobora a ideia de um fundamento místico, mas igualmente, proclama elemento condutor de poder de realização. {... J Se a palavra adquire tal poder de
sua "coragem de interpretá-lo" ao tentar "caracterizar uma epistemologia ação, é porque ela está impregnada de àse, pronunciada com o hálito - veículo
existencial - com a saliva, a temperatura: é a palavra soprada, vivida, acompa-
tradicional" (Elbein dos Santos, 1982, p. n). O modelo proposto por Elbein
nhada das modulações, da carga emocional1 da história pessoal e do poder daquele
dos Santos recebeu crítica implacável de Pierre Verger (1982), que abriu que a profere {idem, p. 46).
um debate acirrado sobre a tradição nagô. As objeções de Verger a respeito
da probidade científica da autora sobre suas fontes etnográficas, sobre seu
1 Não somente o som da palavra é condutor de axé, mas também aquele
trabalho de campo e sua sobreinterpretação dos fatos parecem1 contudo1 dos instrumentos musicais "formidáveis invocadores das entidades sobre-
1

sempre presas a uma ~~~~ão sobretudo religios_~<!~.~-l:yag~~as naturais. São eficazes indutores de ação, promovendo a comunicação entre
t:~.~-~.2"<2.~-~.J?-_<!_gQ.:. Exaltando seu engajamento no universo ((sociocomuni- o àiye' e o àrun" (idem, p. 48).
tário" afro-brasileiro, a resposta de Juana Elbein dos Santos é aquela da Essa substancialização do axé permite a Elbeín dos Santos a constru-
"intelectual orgânica", preocupada com seu trabalho de análise da ('profun- ção de um sistema ((metafísico" bastante coerente ao' qual parecem se
didade teológica" e da "complexidade epistemológica" da religião. submeter todos os registras da vida - subentendidos aqui igualmente
Com efeito, a autora elabora um sistema complexo explicativo da di- aqueles da vida social - de uma Casa de candomblé. Essa "metafísica"
nâmica do axé, de sua distribuição como substância esSencial no mundo que desvela o '(sagrado místico do candomblé" é tomada aqui, cmno pensa
animal, vegetal e mineral, e de sua transmissão, conservação e expansão. Keesing, em seu sentido ((carregado":
Força propulsiva e princípio vital, o axé é, segundo a autora, u1n
A metafísica, tomada neste sentido, constitui uma explicação (mais ou menos
explicitamente articulada} daqueles aspectos do mundo que não podem ser apre-
poder que se recebe, se compartilha e se distribui através da prática ritual, da ex-
endidos pelos sentidos: uma teoria explicativa da maneira como o mundo trabalha
periência mística e iniciática, durante a qual certos elementos simbólicos servem
que dá conta das experiências humanas e das consequências dos acontecimentos.
Uma ideia metafísica é do mesmo gênero que aquela com a qual os etnógrafos
Na conclusão de seu artigo, Pierre Verger afirma: ''ela IJuana Elbein dos Santos] edifica forjaram de modo característico enunciados do tipo: "Os X acreditam que .. " (Kee-
'sistemas' de uma lógica impecável, muito bem acolhidos, digamos de passagem, nos sing, I996, p. 231).
congressos científicos internacionais, mas que, examinados com cuidado, são um tecido
de suposições e de hipóteses inteligentemente apresentadas, não tendo nada a ver com
a cultura dos Nagô Yorubá e correndo o risco de contaminar as tradições transmitidas 6 Elbein dos Santos adota a ortografia de àse, Orlsà, ... ,reivindicando assim a origem nigeriana
oralmente, ainda conservadas nos meios não eruditos. Nós não estamos mais no tempo do termo. Retomei sua transcrição a fim de respeitar o tom de seu texto.
de Nina Rodrigues, quando as tradições eram ainda bastante fortes para negar e rejeitar as 7 Segundo Elbein dos Santos {1988, p. 37): àiye: "a humanidade e tudo o que é vida"; Orun:
extravagâncias{ ... ] de compiladores e intelectuais diversos" ~Verger, 198~, p. ro). "os espaços sobrenaturais e os habitantes do além".
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ

•l).< cY I
~c;.ct'\ ·, ~~ A "obsessão da coerência" (Oiivier de Sardan, 1996) ~.".~_,<lgs Ligado ao contexto dos rituais o termo axé se torna uma expressão
\!J~ 1. a. n.to.~~.1. i!Il..ina.-~. da. con.tr.aqição ou g_l]1Jiguidad<: que po_der2':,:xístir_':a
1

lflv enfática que marca a intensidade do ato realizado. A ideia de força pode
-~·v ~ ~XJ2~!~~~EE!.~ ..~~~~~!.?,~~,_.?~-.~·:·~-~.?-~_Í-~_!}ca dos .adeptos. Ela é tributária tão ser formulada como efeito desta ênfase, corno sugere u1n ogã: ''é uma força
emente da "filosofia sutil do candomblé", entrevista por Bastide (1995) positiva, geralmente quando você está fazendo urna rezá a-'pessoa fala 'axé,
por ocasião de sua primeira viagem ao Brasil, nos anos de 1940, e à qual axé', é urna coisa muito forte, ela tá te dando força, estünulo, jdgando uma
esse se apegou para poder decifrá-la:"[ ... ] é preciso mostrar ainda que esses coisa boa pra cima de você" (Jorge de Ogum, ogã). Ou, ainda: esta força
cultos não são um tecido de superstições, que, pelo contrário, subtendem pode se traduzir em um poder mágico atribuído ao orixá, como explica
uma cosmologia, uma psicologia e uma teodiceia" (Bastide, 20091 p. 24). um pai de santo:
Em razão de seu engajamento no culto o enunciado de Elbein dos San-
1

• tos quer ser aquele de alguém que partilha essa "crença" e que, legitimado É o poder do orixá, é a força do orixá, é o poder mágico dele. Quando você faz
alguma coisa, você faz um encantamento, você fala "axé, axé, axé", porque axé, há
por esse fato 1 pode elaborar um modelo explicativo pertinente. Certamente
quem traduza como "assim seja", eu sei que é uma palavra muito utilizada, que
isso pode provocar um efeito de verdade e de adequação às significações
quer dizer poder mesmo, concretização de desejos, tá? O axé do orixá é o pode~\ '
{\-y,_[=poád
dadas pelos adeptos do candomblé, Minha hipótese é totalmente outra: seu mesmo do orixá poder dº-9J:1ê? De realizar prodígios (Manuelzinho, pai de santo).\l
engajamento religioso, que parece dispens~~la de u~~-~t?.~~~~l}.S:t<:~:_~~PJ.~C?.ita
aos materiais empíricos, deixa-nos antes longe daquilo de que ela se pro- Axé pode iguahnente designar o que se oferece ao orixá: seu alimento,
~-lama'"~~~ert~. A'análise dos usos feitos pelos adeptos do termo axé algumas partes dos animais sacrificados, o sangue. Ao oferecer este axé aos
mostra, por outro lado, que estes, sem se limitarem ao registro místico, orixás, espera-se receber tanto quanto em troca: força, saúde, prosperidade,
abraçam um leque mais amplo de significações. alegria, dinheiro etc. Segundo Shirley, equede: "Axé? Depende do axé, de
"O que é axé?" As respostas dadas pelos adeptos a esta questão ligam- que axé você tá falando? Questão: 'Quais são os axé? Quais são os sentidos
se, ~ito i;;~~temeÍlte, àquela primeira ideia de _!grça. Enquanto for- da palavra axé?' Resposta: 'Axé é prosperidade, harmonia1 esse é o sentido. ·J..-,.;. ....,;
1

ça, axé pode se aproximar de outros vocábulos como paz, saúde, prospe- ' Axé também a gente diz: comJ~~ dQ,.~.@!Jl,,.partes de bicho que a ge~,Jl
ridade, felicidade etc. Ligado às fórmulas convencionais de votos, axé é limpa, frit~, ~sso. .~ gente ~h~-ª-~- é isso'". Segundo Jorge, ogã:
I
'? :;o,ch P"""~
o que se deseja a alguém e o que se pode obter. Segundo Zoca, filha de
santo: "Axé pra nós é uma força, por exemplo, eu digo: que Ogum lhe dê A gente dá esse~<lXé J~.!9-§,@JQ, aí eJe vira pra se mostrar e agradecer; mostrar que eJe e.:.<d! ~
vivo, mostrar que é um orixá. ~levem agradecer o que demos pra ele. Ele sempre
muito axé! Isto é: que Ogum lhe dê força, prosperidade, saúde ... Essas
vem pra dar alguma coisa, como a gente diz: axé. Ele vem dar um axé, dar mais
coisas". Segundo Elias, filho de santo: "Axé é paz, alegria, prosperidade ... uma vez essa força.
É tudo o que é bmn, penso em algo assim: axé é todo o bem que a pessoa
pode ter". Cida, filha de santo: "Axé, para nós, é muito dinheiro que va1nos obter,
Permanecendo no registro das expressões usuais de votos, axé pode ser é quando o santo nos mostra que teremos muito dinheiro". Manuel de Odé, r-_,_ ~
apreendido como um termo que possui certo poder de transmitir alguma " "'" f:tl.. lf D
pai de santo: ''Axé é a força da qual o orixá necessita. O ejé, o sangue, e orfxc(
•J
coisa a mais. U1n pai de santo explica que "axé significa 'força', 'amém', t_::zt_3Xél_~a a:.,~seJ?:k~ ~~~~~'"~~l?y._g!:J..~~-~--~§L?_?ri~-~-~~myxé, é l!_.ffia neces;?'"'ta..
'sim'; é um poder, é também uma expressão comum para dizer como se 1 força um 'assim seja', um 'amé1n' para tudo isso{ ... }"
1

diz, 'à tua saúde', 'muito obrigado'1 'Deus te proteja', 'assim seja'. Axé tem Expressão convencional de votos, expressão enfática na realização
a mesma função: assim seja, amém, força, com o sentido de transmitir a dos rituais, poder ou força como produto do agradecimento e da bênção _ 'x;;}
paz que esta força tem[ ... ]" (Manuel de Odé, pai de santo). dos orixás, poder mágico dos orixás, mas poder em potência, v.ü:.!J!êl..que'V'~
86 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO l'ERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 87

deve ser ativado nos rituais pela oferenda de sangl!.~.<.-~e certas partes dos o santo e aí tomam rum 6 • Na roda, só as baianas [mulheres vestidas com diversas
animais, pelo próprio -;~é·;··~;~--f~~~a da qual ;~;'ixá necessita". Alé1n disso, saias sobrepostas] vão dançar, certo? Agora vocês já estão avisados, o santo tanto
pega dançando quanto pega sem dançar, os homens não participam mais da roda ...
o termo axé é utilizado para designar a Casa de candomblé, seu conjunto
esse axé agora é assim (Kilombo, pai de santo).
de adeptos, seus costun1es e, por extensão, sua modalidade de culto ou
Nação. Segundo Mara, filha de santo: "No axé de Seu Bobó, não tem nada Mas pode ser que esta tomadà de palavra tenha ocorrido tanto para
disso. Tudo vem das Casas, na Casa de fulano tem um costume/ em uma assinalar uma 1nodificação circunstancial nas regras de seu axé1 quanto
outra Casa não tem isso ... É realmente uma questão de costume, cada Casa para reafirmá-las. Eis, por exemplo, o que nos conta uma equede:
tem seu axé". Segundo Rosana, filha de santo: "Eles fazem o culto desse
jeito, é normal para eles, para mim não. Isso não quer dizer que eles não Eu fui numa saída de iaô [festa da primeira saída pública de uma nova iniciada],
têm orixá, que não é o orixá; nós, nós dançamos de modo completamente a Casa é de angola, mas o pai de santo estava fazendo sair uma Euá [uma pessoa
diferente. Então é isso, é fora de meu axé, não é? Mas no axé da casa deles iniciada para o orixá Euá]. Naquele momento, ele explicou direitinho que ele era
·--- ·----·-·--~·---~~------·-"
axé Gomeia e que no Angola não se faz [inicia] Euá. Mas como ele devia fazer a
deve ser assim[ ... ]".
saída da menina, quando chegou a hora de tocar para Euá ele tocou queto 9 (Mãe
Peço a um ogã sua opinião sobre a orientação assumida por certas Dan, equede).
Casas de culto de São Paulo no que diz respeito à reafricanização do can-
domblé. Identificando nesse movimento uma tendência à recuperação de Neste sentido, o axé é ta1nbén1 a filiação, uma espécie de árvore ge-
certo poder, ele me fala da tentativa de homogeneização do conjunto das nealógica da vida religiosa do indivíduo, determinada pela iniciação e
p'citicas rituais como a homogeneização do axé: pela realização de rituais (chamados "obrigação"), que confirmam anu-
ahnente esta iniciação. Diz-se, então, "Sou axé Gomeia", e1n referência à
Eles querem fazer isso com o intuito de serem os melhores. Digamos que eles
querem fazer uma nação· só, tudo num axé, num axé só, eles fazem uma Casa aí..
Casa de )cãozinho da Gomeia (chefe de culto da Nação angola), isto sig-
É o que o Zé de Oxossi dizia: eles fundam uma Casa e depois vão de casa em casa 1 nificando que a pessoa foi iniciada pelo próprio - ou realizou os rituais
pra mudar tudo, radicalizar mesmo. Tem coisas que não vão mais existir, porque ("deu 'obrigações"') com- )cãozinho da Gomeia ou por outra pessoa que
na África existem, vai ser um axé só [... J (Henrique, ogãj. pertença a seu axé. "Sou axé Gantois", para marcar a filiação con1 essa
Casa de culto da Bahia. Ou, ainda, "sou axé de Seu Bobó", para afirmar
Não é raro ver, durante as festas públicas, o pai de santo tomar a pala- uma filiação com esse pai de santo instalado e1n Santos, conhecido como
vra para explicar à audiência .certos elementos rituais da festa ou, ainda, Seu Bohó, e assim por diante.
certas regras que devem ser respeitadas, afirmando que em seu axé é as-
sim que se dá. Pode-se notar, por exemplo, no discurso proferido por um
pai de santo que, por causa de mudanças de filiação, mudava na ocasião
a Nação- ou modalidade de Culto - de sua Casa. Durante uma festa 8 Quando o orixá "toma rum", isto quer dizer que a pessoa, uma vez em transe, dança os
dedicada aos espíritos de caboclo, ele interrompe a música para explicitar ritmos e os cantos específicos de seu orixá. Rum é também o grande atabaque que, acom-
panhado por outro de tamanho médio (chamado pi) e de um menor (lê), marca os ritmos das
algumas regras de seu axé: músicas. Não obtive confirmação explícita que assinalasse a relação entre a dança "tomar
rum" e o atabaque. Dada a função na cadência do ritmo assumido por este atabaque, penso,
Eu gostaria de avisar as pessoas que quiserem participar desse axé: bem, hoje é o entretanto, que uma aproximação entre os dois é pertinente.
caboclo, tudo bem, mas na roda só se aceita de roupa curta quem é equede, que 9 Angola e queto, duas modalidades de culto diferentes que reenviam cada uma a cantos, a
pode vir de vestido. Outra coisa: os homens não vão mais entrar na roda, só dão ritmos, a modos de tocar diferentes. Por exemplo, toca-se angola batendo os atabaques com
as mãos; toca-se queto com as varetas.
r· PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ
88 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

-J
'-, ~
de santo indica que uma "pessoa de axé é uma pessoa cheia de saber, 'que
,...rw''ô -f)81'.oDiz-se de uma Casa de culto, cmno se diz de um indivíduo que
'
.< ~
'~~-:\_IY .~- es tem 111UltO, . nem tanto, um pouco... de axé. T er axe' e' ter uma fi - tem berço', que não foi 'feita' nas coxas, que 'nasceu
-"··-·--·'·- '
no inhame'
--- -·
e não 'na
~i''i~r - vY
''1' , ~' c""-.liação reconhecida como legítima. ~rmação de sua legitilnidade, batata"' (Mara, filha de santo). O axé, como saber, parece aqui se legitimar
~ Ji"0~:[c~ '"-"2 també_l~.<!.~vid~_<J_q~ a_l_"g_i!_i_Il1:i'!~~~~()S '?l1t:?~=~;;~;~~;~l1_tes
(\r;,'!>.}~ ,{}J
0

~~--~~~5~:~.?-J..~~~~Q~.2~: Na declinação de sua "árvore genealógica",


em razão de sua ligação estreita com a filiação ("ter berço';·) ,e-'·com uma uini-
ciação" ("ser feita"1 "nascer") que esteja fundada sobre certas regdS do ritual
':Y>i''"\-o ,\~Gt;'!Jl··· pode-se verificar n1uito frequentemente a presença de diferentes axéI o ("não nas coxas", não de qualquer maneira; "no inhame" e não '(na batata" 10 ).
\...\''

·o-\~"'j c,\-" indivíduo escolherá, segundo sua necessidade do momento os elemen- O axé é igualmente o "fundamento" do candomblé. Certos a tos rituais1
~~ ' certos cantos, considerados como "muito poderosos", são designados como
iõ" 'rfc..: tos que lhe parecem mais adequados para pôr em evidência essa legiti-
midade. A título de exemplo, eis o discurso de um chefe de culto que, sendo "fundamento''. Uma "cantiga de fundamento" pode ser, por exem~

em conflito com seu último pai de santo da época, tinha a intenção plo, aquela que desencadeia o transe. No ritual, há se1npre um momento
de "dar obrigação" com Mifaloió, uma mãe de santo "axé de Seu Bobó": em que "se faz o fundamento". O "fundamento" constitui igualmente o
"segredo" (ou awo, em iorubá). Quando eu iniciava uma entrevista com
Minha primeira mãe de santo era filha de Seu Roxinho, ele era uma mistura de uma equede, ela me avisou: "Coisas de 'fundatnento', sobre elas eu não falo
queto, angola, jeje-nagô ... O que o atabaque tocava ele dançava. Minha segunda porque é segredo, é segredo de roncá !quarto reservado para a realização de
mãe de santo era filha de Gilda Balé Delegi, uma mãe de santo de jeje, mãe de santo diversos rituais], não se fala realmente muito disto" (Júlia, equede).
não, porque ela era um travesti,. era axé Gantois. Depois, teve Bila, que era filho
Interrogar alguém sobre o sentido do que constitui o "fundamento''
de Seu Bobó. Seu Bobó é o pai de santo de Mifaloió, meu pai de santo era irmão de
Mifaloió. Depois, é o Paulo, ele é filho de Toloquê de Logunedé, ela também axé pode reenviar a uma resposta tautológica, semelhante à clássica "é assim,
de Seu Bobó. Então, já sou axé de Seu Bobó [... J (Sílvio, pai de santo). é a tradição!". Um pai de santo, respondendo a uma questão sobre certas
restriçôes impostas aos novos iniciados, como aquela de não se olhar no
Se as rupturas de filiação, provocando por acu1nulação mudanças na espelho, explica: "Por que isto é um segredo do orixá, um-(fundamento', é o
origem, __Q9dein tornar o -~x~_do indivíduo menos legítimo, Sílvio escolhe 'fundamento' do espelho[ ... ] Tem muitas coisas que são leis do candomblé,
·-~"- ' '"·····-·------------"-"'---~----··-------

em sua história os elementos que parecem mais adequados para provar dos negros africanos, que não tê1n nem mesn1o explicação, tem coisas que
uma continuidade. A possível incongruência na atribuição de um axé eu não sei explicar, é uma verdade, né?" (Sílvio, pai de santo).
de Seu Bobó à mãe de santo Toloquê, mais conhecida como axé Gomeia,
parece/ por outro lado1 reafirmar essa necessidade de coerência. APRENDER, SABER, CONHECER:
O axé é mensurável: uma Casa é quente quando ela tem axé; fria, quan- AS FONTES DE AQUISIÇÃO DO AXÊ
do não tem. Ter axé é visível na capacidade d? pai de santo1 o dirigente da
Casa, <J:~--r~-~-~i!..~.!P_<!.L~ nújp-er~_d~-~~ptos__ .~j~~~~!~~~-Diz-se que o axé Como se adquire o axé enquanto saber ritual? As respostas são sempre qua-
de uma Casa "cai" ou ('afunda" quando seus adeptos partem para se filiar a se unânimes: na prática, olhando, observando e executando. Entretanto,
outras Casas e quando os clientes não vêm mais pedir seus serviços. Neste insiste-se igualmente sobre a constante necessidade de buscar em outro lu-
sentido, axé significa ter ta1nbém certo saber,..•certa capacidade de realizar gar, em outras fontes, "para não ficar cossi, ignorante, se1n axé". Analisarei
~-------~-----------· ,.., ... ___________ ,_ ·-··----------~-·---------

aqui algumas dessas fontes que se apresentam de 1nodo bastante variado:

1 ~~
s ritua.~..L-~r efi_~~-~ Cmno assinala uma equede: "Axé é quando o pai de
J' s;;u;·t~m muita sabedoria, muito dom em suas mãos muito saber, mão 1

boa ... As pessoas costumam dizer: ah, fulano é de tal Casa, mas sua 1nãe de r o Contrariamente à batata que está ausente dos rituais de iniciação, o inhame, ligado ao orixá
santo não tem axé, não é uma Casa de axé" (Mãe Dan, equede). Uma filha Ogum, é um ingrediente muito presente.
90 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 9!

elas vão da transnüssão oral à leitura de apostilas e de livros, passando pela uma condição sine qua non de legitimação de um saber religioso que não
participação em congressos, em conferências, e1n grupos de estudos, mas é necessariamente transmitido/adquirido nas situações rituais.
iguahnente pela escuta de discos e pela visualização de cassetes de vídeo. Essa distinção entre espaço formal ou ritual e espaço informal de
A transmissão oral associa ato e palavra em um mes1no universo de aquisição do saber pode ser aproximada da observação feita por Goody a
conhecimento. Aprende-se um ritual, urna dança, uma reza, um ritmo respeito das sociedades orais: "O saber tradicional é explicitaniEmte asso~
através de um processo de observação e de imitação li em que a palavra in- ciado a um contexto cerünonial, mas, na verdade, é transmitido de modo
tervém tanto cotno conteúdo propriamente dito da aprendizagem quanto mais geral, nos mesmos contextos da vida social onde o saber 'prático' se
apoio explicativo da ação. Essa transmissão se faz, em regra geral, segun~ transmite" (Goody, 1994, p. !74).
, '{( \do a hierarquia de antiguidade no culto. Os espaços de aquisição desses Esse saber religioso, como já assinalou Gonçalves da Silva (1992), tem
• c\ !\conhecimentos ultrapassam as situações rituais propriamente dit~S, e;de um caráter holístico. De fato, os adeptos têm dificuldade em operar uma de,
<!; !~-- - - - - - - , -----·---·
1'w0 r__; ,:~,~~,;c::mM~1tgl...Plo,2.9E_t:las~Ug~-ªê~~,.:~~~;EA~s-ªg:~_-. .
. ., ..., '
composição de seus elementos. Como este autor, pude observar sua dificul-
'"':}, !U' j'/, ' Com efeito, o ter!llo "ü~iciaç~.2:~ utilizado no sentido de aquisição de dade em responder às minhas questões quando estas fragmentavam alguns
o <·; conhecimentos, parece~1ne pouco apropriado para dar conta desse período, .,. _,.,pj. . aspectos dos rituais (um canto, um ritmo, uma sequência de gestos etc.). A
,\..:' . "'U
")!;Í (;:- mais comumente chamado pelos adeptos de '1e_i_t]Jra"\ie_s~'. A pessoa,~ , \ utilização do vídeo e o feedback das imagens que ela autoriza me permitiu,
''o
01
c-~~~-o santo ou orixá, é então "feita" e não "iniciada". A feitura compre- {(L\(}-.. por outro lado, observar que a decomposição desses elementos, necessária
ende um período de reclusão durante o qual o adepto realiza mna série de / a toda análise, tornava-se possível quando os adeptos podiam reencontrar,
rituais que, ao selarem sua relação com seu orixá ou santo, permite-lhe graças à gravação de hnagens e de sons, o contexto e as sequências nas quais
adquirir certo saber religioso, considerado pelos adeptos como "segredo", estes ele1nentos interagiam.
pois que faz parte do "fundamento" ou axé. Contudo, existe, por outro lado, A transmissão oral está apta para "absorver as contribuições individuais
um espaço de aprendizado que chamo informal, onde a transmissão/aquisi- e a fundi,las em um conjunto de costumes" (Goody, 1979, p. 73); ela é assim ""~'
'
'ill? dt;l'.!,ber"~~_l!~~,::;- operando_-se__!l~S."Pdo_'.'s,Jl1e_8lll_:l~_ll1Q<.Iª!i<IJ\\:!~s,que' criadora (levando-se em conta a diversidade das interpretações individuais)
aquelas da transmissão oral- não se y_~ neces~aüm:n.~n.!~Jigada
··-··•'""'-"'"•-········-'··--- ......... -----.._,.. ... _____
.~------·--·--·-.----·· - - - ' ---- -
à recl:ysão
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e dá a esse corpus que ela constitui (aqui, o corpus religioso do candomblé) 1 _ • )·"i
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~--~-~C.ll "s_e~~f:!.4.ct_. A noção de "fundamento" (axé) e o "segredo" que o rodeia uma propriedade movente e variável. No candomblé, essa transmissão oral
é, cmn efeito, uma noção~ que, manipulada pelos adeptos 12, apresenta l_~~js imQJ.ico~ u~a ausência total da escrita. A codificação por escrito de
variaçôes de sentidos consideráveis em função de suas estratégias 13 • Ser certas partes do corpus religioso, nos cadernos elaborados e mantidos pelos
14 pais de santo, parece se1npre ter existido. Uma equede indica que nesses
feito, ter um estatuto preciso na hierarquia religiosa , representa então
cadernos, chamados cadernos de "fundamento" ou de axé 15 ,
r r A questão da imitação no aprendizado dos rituais será tratada de modo mais aprofundado
mais adiante.
r2 Viu-se mais acima como esta noção podia intervir na confrontação entre os adeptos.
r 3 Tal precisão parece-me necessária dada certa tendência nos estudos afro-brasileiros de 15 Ao chamar estes cadernos "etnografia feita em casa", Vagner Gonçalves da Silva (1992)
tomar estas noções êmicas como postulados metodológicos ou como verdades científicas, exagera um pouco em sua analogia. Esta codificação tem uma forma e um objetivo prag-
o que confere à "feitura do santo" e ao candomblé toda uma aura de mistério e, por conse- mático bastante precisos de conservação e de transmissão de fórmulas acumuladas que
guinte, de exotismo. A este respeito, veja-se o artigo de Véronique Boycr {1996a). Retomarei serão colocadas em aplicação na sequência. Esta analogia acusa uma tendência a considerar
mais adiante esta questão do segredo na análise dos livros escritos pelos adeptos. a atividade de escrita dos adeptos do ponto de vista do pesquisador. Isso pode explicar a
14 A questão das modalidades de pertencünento ao culto e sua escala hierárquica será tratada grande importância dada pelo autor aos escritos etnográficos como fonte de legitimação e
mais adiante. de aprendizagem, considerando-os como "espécies de bíblias".
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 93

tem muitas coisas guardadas, anotadas. Por exemplo, o que si&111ifica ou o que não
têm, por exemplo, com os primeiros, relações de filiação, de amizade, de
significa Ogum. Para um ebó de odu !ritual de oferenda] a fazer, o que é utilizado
e o que não é. São principalmente às pessoaS que têm uma Casa de candomblé, clientela etc. Todavia, é impossível atestar a proveniência exata dessas apos~
muitos clientes e muitos filhos de santo, que têm necessidade de ter essas coisas. tilas. Estas, que podem girar em torno de temas específicos- por exemplo,
Têm necessidade de ter essas coisas tanto na memória quanto anotadas: o dia da apostila de cantigas para evocar um orixá, rituais de purificação ligados à
primeira saída pública do filho de santo, o dia em que ele foi raspado ... eles devem "feitura" etc.-, guardariam o aspecto de catálogo e de fórmula d6s cadernos
marcar seu omoruncó [nome específico do orixá ou santo do adeptoj. Todos os pais
de axé. Elas são, por vezes, acompanhadas de gravações sonoras em cassetes
de santo têm seu caderno, seu livro (Mãe Dan, equede).
de áudio que as enriquecem com informações musicais ou rítmicas que,
Contendo uma parte da história e do patrimônio dos conhecimentos, segundo uma filha de santo, podem, por exemplo, facilitar o aprendizado:
o axé da Casa, esses cadernos podem se tornar verdadeiros objetos de
Meu pai tem tanto apostilas quanto fitas cassete. Porque, de repente, pode ser
·cobiça e de poder 16 • Sendo assin1, a sistematização desses conhecimen-
difícil decorar uma cantiga só lendo. Então a gente lê e escuta ao mesmo tempo,
tos não deve ser percebida como uma codificação do corpus religioso.A
___ __________
pega o ritmo e é mais fácil pra decorar (Zoca, filha de santo).
fragmentação, as lacunas
----''----'--':--~·
e a Inultiplicidade ,desses escritos garantem
----,:,------· .......... .a
~~~~?-~~-~-:?:.X,~2w?..?_~-~E~~!2..ª~!E~-~-~-~"-~-!E;_~~~~!~-~-~-~-~-~..C22EEE~· Um duplo aspecto chama a atenção na circulação das apostilas: o foco jo-
As anotações sobre as rezas, as fórmulas para a realização dos rituais, gado ao mesnio tempo sobre sua provável origem- vir de um axé específico
a preparação dos pratos que serão utilizados nesses rituais, as fórmulas de valoriza e legitima o saber que elas veiculam- e sobre seu caráter anônhno.
caráter terapêutico etc., apresentam-se e1n geral sob a forma de listas ou Respondendo à questão concernente aos autores das apostilas, Zoca diz:
de receitas; seus sentidos e sua coerência preexistein em outro lugar, na
prática ritual. Esses cadernos assumem então uma função de estoque e de Olha, tem uma lá em casa que veio do axé do Oxumaré 17, mas a gente não sabe
quem foi que escreveu, porque eles nunca colocam o nome de quem escreveu.
memorização dos conhecimentos que podem ser colocados em prática e
Essas coisas de fundamento, a apostila, não tem o nome de quem escreveu. Porque
transmitidos mai~t~;de. -Es~·;;;o-;i;-i~i;d~--~~o-;;;:..;~pciti~-·;·itu;C(~-;·;~1~-
isso vai passando de pessoa pra pessoa.
vra) ne1n por isso retira as propriedades de seleção e de classificação'
'
próprias da escrita. A oralidade e a ~scrita não pare~~1n aqui se oE_or e2,'- Essa ambivalência assinatura~anonimato parece conferir às apostilas

fl:.lyin~~-=~~--~~~~a~-~P.:~~~~a
transmissão oral no candmnhlé não desaparece
com a presença da escrita, as relações entre as duas formas de cmnposição
o aspecto assumido pela palavra na transmissão oraL O apagamento di'//~tc>/8 J
marca individual é com efeito, uma característica da oralidade:
-=----==-'···--·--·---~--·-----·-··--·~--·-~···-·-·~ . . . . . --~~<~-. . --.-.~...-
1 /
2
e de transmissão dos conhecimentos são, antes, mais ambivalentes que
Nas sociedades orais, toda realização pessoal- uma canção, um rito ... -tende a
opostas. Esses cadernos, que trazem inicialmente a marca da escrita de passar a ser jogado no anonimato. Não que um elemento de criação esteja ausente,
um ou de diversos pais de santo da Casa, podem assumir um aspecto mais mas ele é de caráter diferente. Não há igualmente um autor misteriosamente cole~
anônimo e coletivo ao se apresentarem como "os cadernos de um tal axé" tivo, muito próximo de uma espécie de consciência coletiva, que assuma o lugar
iaxé significando aqui não apenas o lugar de culto mas também o grupo e que o individuo tem nas civilizações que possuem escrita. Trata-se, antes, de uma a. /},.
I t?"'
assinatura pessoal que progressivamente se apaga no decorrer de um!!-~~E_a:Y.~.I'!!:"~~.~~J 11?-V:to~-.c,~c
o corpus religioso de que compartilha).
.9,~.C. ..~~o ~es~a_de.:?_e_r_~r.!~.92.~ê.,{Goody, 1979, p. 73). f
Ao que parece, certas partes desses cadernos saem do interior do axé, da
Casa, para circular sob a forma de apostila junto a outros grupos que man- A explicitação da possível proveniência dessas apostilas parece legi-
timar a capacidade daquele que as adquire de estabelecer laços íntimos
r6 Vagner Gonçalves da Silva (r992) fala, por exemplo, da importância assumida por estes
cadernos nas disputas pela sucessão de uma Casa de candomblé em São Paulo. I7 Uma Casa de candomblé baiana.
r
'
94 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO
PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 95

com as Casas de candomblé de maior prestígio, consideradas as mais outro lado, a circulação desse axé ('vindo da África" pode se traduzir em
"tradicionais". As modalidades de sua aqui,sição variam da troca de favores uma circulação de objetos, poções, preparação para os banhos etc., que
ao pagamento em dinheiro, passando pela troca por outras informações. pressupõe~se ter um poder mágico extraordinário. Com ~feito, sua comer~
Mas a atribuição de sua proveniência não se limita às Casas de candom~ cialização torna~se um verdadeiro filão na mão desses estudantes que, 1, : ) ç
blé, apostilas de axé podem ser produzidas nos diversos Centros de Estudo, ,·, ~~c:J..' i Yto.J et8r
~in!~io~ de__um~~i:e I~3.hJ?E~Y.~~elJE.~nte afi!~.!:~~<?~.. da~ pr~ticas re~ f <'(J,l' iu~ '
criados em São Paulo, tanto pelos adeptos dos cultos afro-brasileiros cmno giosas ligadas aos onxas, parecem desco_bn-las o_y._~g.~cobr!:J§_~gg_~ra_~~ r, '\ "
pelos estudantes vindos majoritariamente da Nigéria a fim de prosSC.!:,'LÜr ~-A·"~·;s·~-;~~d~rnos e apostilas vem se acrescentar uma vastísshna lite-
S , seus estudos na Universidade de São Paulo. Ao que parece, 2~vimento ratura1s, em geral produzida pelos adeptos da umbanda mas, igualmente,
C/ \ 0..,c-, \de
. "O& .
reafricanização
.
do candomblé alimenta-se - ao mesmo tempo que a por aqueles do candomblé. Essa produção, nascida já nos anos de 1930,
, c/p~" provê- ~~sa ~ova fonte de conhecimentos graças à qual se fabricam su_as .corresponde e1n grande parte a uma vontade, de seus autores, de codificar
\~r;'-' ~tradições. As atividades desenvolvidas nesses Centros de Estudo vão da e de sistematizar esses cultos, seguindo as evidências e os dados de sua
\ administração de cursos de língua, mitologia e teologia iorubá, de ~s própria experiência religiosa. Oliveira (2007), em seu livro consagrado aos
d~ivinhação, curs~s de ebó !rituais mágicos) etc., à publicação de livros cantos dos orixás, anuncia que estes últimos são apresentados
e de apostilas, passando pela constituição de bibliotecas especializadas.
Um pai de santo explica, por exe1nplo, como ele considera esta questão: [... ]apresento as cantigas (orin) de Ürisà dentro da visão do culto aos àrlsà como
aprendi nos meus mais de vinte anos de iniciado [... J Esperando que esta pequena
Você faz os cursos com esses caras, os africanos, nigerianos ou togoleses. Você coletânea de orin seja a semente que possa brotar e espalhar em outras peossoas
compra as apostilas deles, aí vem a parte experimentaL Porque, por exemplo, este mesmo ideal: o de que a comunidade da maioria das casas de candomblé
você compra uma apostila, vamos dizer de ebó, até aí você não tem certeza de possa cantar na maior uniformidade possível, entendendo o que diz e o que ouve.
que o cara te passou um babado certo, então você vai lá e experimenta. Se você (Oliveira, 2007, PP- II-12)
viu que funciona, entãO aí você cai matando em cima daquilo, você estuda aquilo
profundamente. Porque hoje em dia, nesse mundo, não dá pra confiar muito em,' Linares e Trindade, por sua vez, manifestam claramente o mes1no
ninguém. Então você tem que experimentar na prática, pra ver se aquilo real- desejo em relação à umbanda:
mente tem fundamento. Eu nunca me aprofundo num estudo sem antes fazer o
experimento prático. Porque afinal de contas é o meu nome que está em jogo, não Este estudo se baseia cm uma experiência espiritualista iniciada em r946, na Roça
é o de quem me vendeu a apostila, porque o cara nem brasileiro é (Manuelzinho, de candomblé de Pai Joãozinho da Corneia e que prossegue até nossos dias, após
pai de santo). ter passado pela Casa principal de umbanda do BrasiL [... J Mais que uma simples
opinião religiosa, esta obra modesta é o fruto de uma pesquisa que não termina
nestas páginas mas que, talvez, será integrada a um plano global que prevê a codi-
Se a legitimação do saber veiculado nas apostilas não é mais aquela do
ficação da Religião Umbandista (Linares e Trindade, s.d., p. I 5).
provável pertencimento a um axé, há ainda a prova de sua eficácia na prá~
tica ritual. Contudo, se o valor pragmático dos conhecimentos veiculados "Dar os esclarecimentos oportunos e indispensáveis" (Alves Teixeira,
parece aqui prevalecer, isso não é uma constante. 1985) ou "mostrar a realidade das coisas" (Vialle, 1985) efetua-se "segundo o
Em outros contextos, a fonte de informações e de conhecimentos que
trazem o rótulo "vinda da Áfric(J?.?_?~-·-~~~-~-~-~t.:':_~:-. ~?J:a_?.~_r_~~-~ei~~..E~
de originalidade, de verdade e, enfim, de tradicionalidade. E esse rótulo, IS O número sempre crescente destas publicações torna difícil uma bibliografia representati-
~~i~~;--~~i;--d~···q~;;~ficá7f~--d~~--CõiiliêCim.eriú)·S--·t-;~~~mitidos, torna~se va. Minha análise limita-se, de um lado, à leitura de alguns títulos e autores citados pelos
adeptos em meu campo de pesquisa e, de outro lado, a uma seleção pessoal cujos critérios
objeto de legitimação do poder daquele que o adquire e o manipula. Por bastante aleatórios vão de sua disponibilidade no mercado aos temas abordados nesses livros.
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 97

ponto de vista do autor" OU ainda, segundo as informações colhidas e retra-


1
Por um lado, é interessante notar que esses textos, em grande parte,
balhadas por este último em sua experiênda religiosa: "Eu aceito e somente estruturam-se de modo análogo aos cadernos e apostilas de "fundamento",
sigo o que, na realidade, está de acordo com o meu próprio ponto de vista" apresentando-se sob a forma de catálogo ou formulário (como receituário
(Alves Teixeira, 1985, p. 9). "Procurei durante anos tomar nota das informa- de fórmulas a seguir), com sua coerência colocada igualní:ente em outro
ções que me eram passadas por minha mãe de santo !... J Tentei aperfeiçoá~las 1 lugar: na prática ritual de seus leitores21 . De outro lado, a preseriÇa de certa
melhorando seu aspecto geral, com informações corretas" (Vialle, 1985, p. 7). análise, embora sumária, sobre a formação dos cultos afro~brasileiros, a
Um dos traços marcantes dessas publicações é a profusão de títulos língua iorubá, os mitos e lendas dos orixás22, e a preocupação dos autores
que oferecem diversas versões dos mes1pos tem~, sendo que estes são de nos apresentarem seus escritos como fruto de uma pesquisa ou de um

----------
- --
igualmente bastante varjados. A esse aspecto múltiplo e em perpétuo
----~--- -··---~-- .
·crescimento vê1n se acrescentar as relações entre diferentes modalida-
-----~-·-·-----·---~
estudo, aproximariam estes dos textos socioantropolológicos23 •

~t~.d<:s\llto. A distinção entre umbanda e candomblé, por exemplo, é às 2I A título de exemplo, posso citar o livro sobre "magia enfeitiçante dos ehós no candomblé"
vezes pouco visível,, tanto no nível do público visado corno no nível dos de Wilton do Lago Vialle (1989), babalorixá (chefe de culto) Ominarê. Em sua apresentação,
contextos nos quais as crenças e as práticas são descritas 19 : "Esse últhno o autor explica que se trata de "fórmulas utilizadas com grande sucesso durante mais de cin-
quetlta anos que me foram transmitidas pela tradição oral de meus antepassados, sobretudo
trabalho do Doutor Byron Torres de Freitas é de incontestável importân-
por minha avó, a velha Toana Conceição Vialle, filha de africanos que viveu e aprendeu com
cia, não somente do ponto de vista umbandista mas também em relação eles a verdadeira magia." (Vialle, I989, p. 7). Após ter indicado as origens históricas dessa
ao culto do candomblé" (Torres de Freitas, s.d., apresentação dos editores). magia (as crenças dos negros chegados ao Brasil como escravos), o autor assinala que o "pra-
ticante" nela encontrará um conjunto de informações de grande valor, objeto do segredo dos
''Eis o que pudemos reunir ao longo dos anos, militando na urnbanda dos
chefes de culto. Ao revelar o que denomina "a chave do culto", adverte que esses ebós devem
belos canzuás 20 e nos candomblés de adoráveis abaçás" (Varella, s.d., p. ns). ser realizados com a autorização de uma pessoa mais idosa que ocupa um posto importante
Entretanto, é igualmente possível notar uma preocupação de demarca- na hierarquia do culto. As fórmulas apresentadas compreendem ebós para provocar o Bem e
ção, não apenas entre um banda e candon1blé, mas, igualmente, no interio.t 1 o Mal, oferendas aos orixás, banhos purificadores e pós mágicos. As receitas seguem a mesma
estrutura: primeiro, o título indicando sua finalidade, seguido das indicações sobre o local,
do candomblé, entre as diferentes modalidades de culto que formam urn
o período do dia e o dia da semana apropriados para sua realização. Em seguida, ele dá a lista
corpus religioso específico, o axé: do material necessário e as indicações sobre o modo de cumprir o ritual:
Ebó para livrar uma pessoa da doença e da morte.
Em relação ao candomblé, há uma diferença clara no que diz respeito aos orixás. Local: o mar; horário: diurno; dia da semana: segunda-feira.
O umbandista parte do princípio de que todo orixá é um santo, mas todo santo Material necessário: I tigela de barro (alguidar); 3 folhas de bananeirà; 9 velas brancas; 1
não é forçosamente um ori:Xá, e isso em virtude do plano hierárquico, segundo bife de carne de porco; r pedaço de pano branco (algodão); folhas de são"gonçalinho; azeite
as missões que realizam ou realizaram na terra (Linares e Trindade, 1987, p. IS). de dendê; meL Modo de fazer: Passar o bife de carne e as velas sobre o corpo da pessoa; em
seguida, passar as folhas de são-gonçalinho partindo·as cm três partes. Entoar as cantigas do
Não posso c tampouco tenho pretensão de querer padronizar os rituais por mim ebó. Oferecer ao mar, à maré baixa, e pedir ao dono do mar para. livrar a pessoa da doença e
descritos, mesmo porque cada Casa tem o seu àse específico e descende de àse da morte. Colocar a carne no alguidar cobrindo-a com o pano, como se fosse um defunto,
diferentes, onde certamente se encontram inúmeras variações e nuances da forma acender as 9 velas ao redor e derramar o azeite de dendê e o mel sobre a carne (Vialle, 1989,
de cultuar de uma Casa para outra e que devem ser respeitadas as tradições de cada p. 43)-
uma. (Oliveira, I995, p. 4). 22 A este respeito, veja-se o livro de Gimbereuá {s.d.), um manual de conduta ritual no qual

a descrição de cada ritual dedicado aos orixás é acompanhada de suas histórias míticas, de
19 Este aspecto foi igualmente sublinhado por Véronique Boyer: "a distinção entre candomblé uma descrição de suas representações materiais (assentamentos) e de uma transcrição de
e umbanda, evidente para os antropólogos, é, todavia, menos clara aos olhos dos escritores seus cantos. Veja-se, igualmente, os livros de Fernandes Portugal {1978 e 1986).
2 3 Certos autores, como Linares e Trindade (I987, p. xsl o exprimem anunciando que eles
ligados aos cultos de possessão" (Boyer, 1996a, p. rs).
20 Canzuás e abaçás são designações de lugares de culto de umbanda e de cq.ndomblé. falarão de "modo claro e científico dos orixás".
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO
PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 99

As infonnações colhidas por esses autores vão de fontes orais às fontes ces, sobretudo nas pesquisas junto aos candomblés brasileiros. Confrontamos os
escritas, passando por vezes pela atribuição cfireta aos orixás ou a toda es~ ensinamentos recebidos, em amigável conferência com Pierre Verger e Manuel
Querino, e não podemos minimizar a admiração e, mesmo, a estima que nos ins-
pécie de poder espiritual''. Gonçalves da Silva lr995, p. 26r) nota que entre
pira o primordial Câmara Cascudo, sóbrio, firme, luminoso. Bttsçamos subsídios
essas fontes escritas podemos até mesmo encontrar reproduções exatas de junto aos antropologistas Keesing e Herskovits [... ] No Geopolitica da Fome, de
textos etnográficos i e ele acrescenta: "curiosamente, sem nenhu1na referên* Josué de Castro, que constitui um verdadeiro Auto, sugamos ajuda corllplementar
cia bibliográfica". Segundo o autor, as razões para tanto podem ir do desco- no capítulo referente ao Continente Negro (Varella, s.d., pp. 5 I-p).
nhecünento da ética acadêmica à má-fé, passando pela suposição segundo Se os prefácios, agradecimentos e apresentações25 informam-nos sobre
a qual o saber veiculado pelos textos etnográficos seria oriundo do domínio as relações estabelecidas entre os autores e seus universos de referência,
público. Mas se colocarmos o ponto de vista da análise no contexto de eles igualmente nos sugerem os diferentes níveis de legitimação religiosa:
produção e de circulação dos conhecimentos em que se situavam esses no nível espiritual, quando os autores dirigem-se aos orixás e aos espíritos
autores, é esse aspecto coletivo e an~~!~~r.. próprio à or~.J.id~de,_q~y~~~~~e que os protegem e «iluminam" ou, ainda, "fortificam" seus pensamen-
poder esci~~~~~~~~;:;~~ê~~·;~--d~-;~ferência bibliográfica". Alé1n disso, essa tos26i no nível hierárquico, quando invocam os chefes de culto que lhes
;.;ê~~i;;;:ã~·~~;itui forçosament~ em convenção. Acitação de fontes transmitiram o saber e que lhes mostraram os limites da revelação dos
escritas, em final de volume ou no corpo do texto, não é rara. Dentre essas "segredos" rituais 27i enfim, em um nível de paridade, quando se inscrevem
fontes encontra1nos tanto a literatura produzida pelos adeptos con1o aquela na categoria dos escritores*adeptos 28 •
'
produzida pela antropologia. No que diz respeito às citações em antropolo- Tornando públicos o conhecimento e o saber religioso de seu autor, o
gia, nota*se que os autores conhecem algumas regras da escrita acadêmica livro torna visível seu poder, seu axé. Por conseguinte, contraria~nente aos
e que compreenderam, sem dúvida alguma, os usos possíveis. Com efeito, cadernos e às apostilas, a assinatura dos autores, aqui, torna*se capital. Em
essas citações podem assinalar uma busca de credibilidade, por meio de geral, sua biografia é apresentada com este duplo aspecto assumido por seus
uma generalização de sua experiência religiosa pessoal, pela abertura de um escritos: aquele do homem religioso - em que se toma cOnhecimento dos
diálogo com pesquisadores então considerados como seus pares: postos assumidos por ele na hierarquia religiosa e nos organismos de repre*
sentação civil dos cultos (Federações e Associações)- e aquele do escritor
Curioso que sempre fui desde criança, ao ouvir as rezas e cantigas (gbàdúrà àti orin
Órlsà), fazia perguntas para saber os significados destas[ ... ] Ao ler o livro Os Nagó
e a Morte, de Juana Elbein dos Santos, chamaram-me a atenção as explicações de 25 Nas apresentações ou prefácios, encontram-se textos escritos por outros adeptos-escritores,
como ler e pronunciar determinadas palavras e trechos que o livro continha em pelos dirigentes das organizações de representação civil dos cultos {Federações e Associa-
Yorllbá e, além disso, com as traduções, o que reacendeu em mim a vontade de ções), mas, igualmente, por antropólogos. Assinale-se, de passagem, que o diálogo comes-
aprender mais ainda da língua[ ... ] Agradeço à escritora Juana Elbein dos Santos, que, tes últimos pode também se efetuar em outro sentido, como mostra o prefácio do livro do
através do seu livro Os Nagó e a Morte, impulsionou-me a buscar os conhecimentos antropólogo Pessoa de Barros (1993), assinado por Maria Estella de Azevedo Santos, chefe
de culto de uma Casa na Bahia.
dos quais eu necessitava: Mo júbà re egbón mi binrin. (Oliveira, 2007, pp. II-13)-
26 "Inicialmente, e não pode ser diferente, mo dúpé Olóàrun à ti Ori mi (agradeço a Deus e à
Caminhamos durante todo esse percurso em frutuoso conta to com Reger Bastide minha cabeça) por iluminar minha mente para que eu pudesse realizar este novo trabalho"
e Donald Pierson que, embora estrangeiros, aparecem como verdadeiros pontífi- (Oliveira, 1995).
27 "Quero agradecer à imensa colaboração dos amigos babalorixás e ialorixás que revisaram
toda a obra, verificando o que podia ser escrito" (Vialle, 1989, p. 7).
24 "j ... ] sento-me diante da maquina de escrever, concentro-me, faço um apelo aos meus mara- 28 "A Soba, Professor José Ribeiro, que conheci na intimidade de seu lar, acolhedor e humil-
vilhosos, piedosos e tão pacientes Guias, a meus orixás, e dentre Eles, especialmente a meus de, e na hospitalidade de seu famoso abaçá- ag6 iê- (rü IANSÃ EGUN NITA), a Taquara,
amados exus; então, o resultado esperado vem: escrevo um livro e, por vezes, não somente organização legitimamente nagô com um roncó perfeito. Com as amizades de seu velho
um, mas, na verdade, como é o caso agora, uma série de livros" (Alves Teixeira, I98S, p. 7). Sarapembé {o autor], leitor de seus I? livros publicados" (Varella, s.d., p. r3).
roo O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ IOI

Esses ingredientes não são todos misturados. Para cada finalidade certa quantidade
ou do "pesquisador" - em que se conhecem as relações que o autor entre~ de alguns deles deverá ser utilizada. Aí, novamente, cada um deve recorrer ao seu
tém com o mundo intelectual \jornalismo, universidade, antropologia etc.). àse (à tradição de sua casa} para obter detalhes mais profundos de como misturá-los
O arranjo entre esses dois aspectos, fator de legitimação dos conhecimentos e quais serão seus ingredientes. (Oliveira, 1995, pp. 78-79).
veiculados, destaca o problema do compromisso entre o desvelamento do
"segredo" ritual - inevitável, quando os autores reivindicam revelações Essa literatura produzida no interior dos grupos religiosos coiistitui um
inéditas como sendo a originalidade de seus escritos - e sua cuidadosa conjunto verdadeiramente compósito de cadernos e de apostilass de axé e
vigílância. A esse respeito, as declarações de Vialle parecem~me eloquentes: de textos etnográficos 29 • Uma visão unilateral que os aproxime mais des- /)' ,1
tes últimos não poderia dar conta do notável processo de transformaçõe1J Oral\ ~Xesc.tq
Muito hesitei em entregar os originais aos editores pois que eles contêm revela-
mútuas da oralidade em escr!:!.a, presente continuamente nesses textos. O
ções inéditas sobre a prática do candomblé queto [... ]É realmente rara uma litera-
tura sobre a verdadeira prática do candomblé, nossa intenção não é a de violar o critério de codificação e de decodificação subjacente a esse processo é ao
que se chama os fundamentos, mas aquela de mostrar a realidade das coisas pela mesmo tempo pragmático - que visa colocar em prática os conhecimen-
criação de um clima de respeito e de confiança entre filhos de santo e pais de santo tos rituais - e estratégico - que visa investir essas fontes de um poder
[Vialle, 1985, p. 7).
e de urna legitimação, o axé. Essa codificação-decodificação inscreve-se
De outro lado, esse compromisso pode se transformar em verdadeiro evidentemente como fator de construção das identidades dos autores e
foco de disputas entre os autores. Na introdução de seu livro consagrado dos leitores. Analisar essa literatura assumindo cmno ponto de partida
aos rituais de iniciação ("feitura") no candomblé, Altair Oliveira (1995, p. seu caráter compósito, sua multiplicidade e sua heterogeneidade constitui
r) declara: "Aqui, tomei a precaução de não infringir o awo divulgando uma das vias mais frutuosas para apreender os processos de formação e de
segredos do cultd'. Mais adiante, a seguinte asserção, que deixa margem legitimação das tradições religiosas.
à dúvida, coloca em destaque a própria fragilidade da noção de "segredo" Mas os registres do saber no interior das Casas de culto não se limita1n
(awo), revelando um espaço aberto onde pode ocorrer o conflito: ao suporte da escrita. O papel preponderante desempenhado pelos cantos e
pela tnúsica nos rituais justifica o grande interesse pelas gravações sono-
Neste ponto, tenho dúvidas se dou ou não a preparação desses ingredientes. Isso ras. Estas podem estar circunscritas a utna circulação de conhecimentos
porque sei que o que já disse neste livro; mesmo que eu julgue que não é nada, ou-
tros, que se dizem detentores do àse e das tradições, julgarão que estou espalhando
tanto no interior do grupo como entre grupos. Em geral, os músicos ini-
aos quatro ventos, como algumas pessoas já me disseram a respeito da publicação ciados (ogã) encarregam-se de efetuar essas gravações, que se torna1n um
de meu primeiro livro [... ], criticando-me, pois pensavam que eu não devia dar suporte de aprendizado para os novos ogãs ou filhos de santo em geral. Ou-
essas cantigas senão a um círculo fechado de pessoas "antigas" e não "abrir total- tros procedimentos podem ocorrer como a gravação efetuada pela pessoa
mente" como eu havia feito (idem, pp. 77-78).
interessada e1n aprender, sendo preferível ter o consentimento do chefe de
A resposta de Oliveira a essas críticas, decidindo então fornecer a lista culto ou dos músicos se tal pessoa, vindo de outra Casa, não deseja arriscar
dos ingredientes necessários para a preparação dos pós de axé (atin) e do ser acusada de falta de axé. Não é incomum ouvir pais de santo se vangl~-\
cone (osllu) que cobre as incisões feitas sobre a cabeça do novo iniciado, ~-~~que ~.sso lhes dá um certo prestígio, que atest!l..JJ_m ç-~~ê.ª"..he
colocam em evidência a adoção de uma política de manipulação da noção laxé), de serem vítimas de gravações executadas
_________________
~----··-----·~-----·--"-·--·-···-·-·-·-" .. _, ___..•.
às escondidas, sem se
-···-------~-~---------

de segredo (awo), legitimada pela noção de axé como tradição:


29 No campo do mercado, estes livros são vendidos tanto nas livrarias (especializadas em
Vou dizer alguns dos ingredientes necessários, tanto para os atin quanto para o esoterismo, mas também em ciências sociais) como nas casas {as casas de umbanda) espe-
osUu; entretanto, a composição cada um deve fazer de acordo com o seu àse. [... ] cializadas na venda dos produtos destinados aos rituais.
102 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ IO)

~!.l~.!.QJ2révi_Q._ A circulação das cassetes em outros grupos segue culto vêm hoje reforçar, de modo afirmativo, a credibilidade dessa história.
as modalidades de circulação das apostilas ,de "fundamento", que podem Um ogã confidencia-me:
igualmente, cmno se viu, acompanhar estas últimas 30 .
Por outro lado, nota~se, nas lojas especializadas em produtos destina~ Olha, aqui em casa a gente tira foto ou faz vídeo de toda saída de iaô, de toda festa
de obrigação, porque assim não tem ~úvida. Se alguém vier dizer que t~l pessoa não
dos aos rituais (as casas de umbanda), uma importante comercialização
é raspada !iniciada], ou mesmo se um filho de santo coloca em dúvida seu tempo de
de discos gravados pelos ogãs e chefes de culto. Em geral, esses discos raspado, a gente mostra a foto, com a data, e a história para por aí (Henrique, ogã).
comportam os cantos e os ritmos dos orixás, caboclos e exus, que podem
ser diferenciados segundo as modalidades de culto (as Nações), tocados por Representando para o adepto uma lembrança de sua iniciação ou con-
ocasião das festas públicas. firmações desta, a foto assmne igualmente um pleno valor de realidade. Os
À semelhança dos livros, esses discos apresentam uma dupla função adeptos abrem, con1 frequência, seus "álbuns de feitura", para "mostrar a fes-
de circulação de conhecimentos e de construção e legitimação das iden- ta", para "mostrar o orixá", assinalando as mudanças físicas por ocasião da
tidades desses autores. Por ocasião de meu prhneiro encontro com uma possessão: "Veja cmno eu me transfonno, eu incho, meu braço está enorme",
equede, esta, tentando me fazer entender o quanto o chefe de culto de sua "você vê como meu santo é grande e mal-humorado!", e assim por diante.
Casa era reconhecido por sua legitimidade e seu prestígio, logo me mos~ Em geral, a realização dessas imagens é assmnida por um filho de santo
trou, e em seguida ofereceu, um dos discos que ele gravara31 • da Casa, por a1nigos ou membros da família da pessoa que "sai" \iaô ou
O espaço de escuta desses discos nunca é assimilado àquele dos rituais. adepto que confirma sua iniciação), mas é possível igualmente contratar
As gravações sonoras não apresenta1n a priori eficácia simbólica ou ritual os serviços de profissionais que, em geral do ramo de casamentos e batis-
alguma. Não tendo observado essa utilização nos rituais, notei, todavia, mos, expandem seu can1po de ação propondo seus serviços aos adeptos do
que ela se tornava objeto de zombaria e de fofoca. É como me contou com candomblé. No que diz respeito ao vídeo, estes serviços não se resumem
muito humor um adepto Vindo de uma outra Casa e que há pouco frequen- unicamente à filmagem; a escolha de um trabalho de montagem é igual-
tava a Casa de um pai de santo com o qual eu conversava: mente possível. Este último apresenta frequentemente un1a estética bas-
tante particular, bem provida de toda espécie de efeitos especiais: fusões
Tem gente que põe disco e vira no santo. Eu fui na casa de uma mulher, perto daqui,
de imagens, enquadratnentos em janela do rosto da pessoa em transe, em
e era tudo na base do LP. De vez em quando ela dava o sinal e a música mudava.
Aí eu falei: "a senhora pare de marmotagem que santo é pureza e só vem com o forma de coração, de estrela cãmera lenta etc.
1

barulho de tambor ... " O pai de santo, depois de rir bastante, reagiu: "porque você vai Lembrança e prova incontestável1 o vídeo desempenha igualmente
lá? Pra dar risada? Isto não tá certo, cada um tem de ficar na sua. Deve funcionar, um outro papel na afirmação, redefinição e aprendizado de certas regras
porque lá tá cheio de gente." O adepto, sempre zombando, acrescenta: "Mas essa rituais. As imagens animadas e os sons, conferindo certa persistência à
mulher tem um santo, ela é iniciada, quando o santo vem ele pede para tirar o LP".
experiência vivida, podetn engendrar un1 olhar analítico e um discurso re-
O pai de santo, rindo, volta-se para mim: "Ê indaca afidan, sabe, língua de cobra".
flexivo dos adeptos sobre suas próprias práticas. Ao assistir a esses vídeos
Se os cadernos de axé registram por escrito a história da Casa e de seus em companhia dos adeptos, pude constatar que, além da curiosidade e das
adeptos, a introdução da fotografia e a gravação em vídeo nos lugares de fofocas que poden1 ocorrer, era questão de um espaço de redefinição das
regras rituais, durante por exemplo, discussões animadas sobre a maneira
1

de dançar de determinada pessoa, sobre o desencadeamento de um transe


30 Alguns livros escritos pelos adeptos podem também vir acompanhados de fitas cassetes
como no caso de Oliveira (r993, I99s). em momento inoportuno, sobre a incongruidade de um gesto em relação
3 I Zé de Oxóssi, Cânticos de Exu, Discos Tupã, São Paulo. ao ritmo da música etc.
!04 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ !05

De n1odo mais lúdico, mas não menos importante, esses vídeos cha- heterogêneo, este axé - cmno "patrimônio do conhecimento tradicional"
mam imensamente a atenção das crianças. Muito habituadas a assistire1n ou, mais simplesmente, como "tradição" - está longe, pois, de ser finito,
à televisão ao longo do dia - lembro, incidentalmente, a forte e 1nassiva puro ou homogêneo.
presença da televisão na sociedade brasileira-, elas assistem a esses vídeos
acompanhando com frequência os cantos ou esboçando, de tempos em ten1-
pos, os passos e os gestos das danças, como fariam ao verem seus heróis de Por ocasião de meu último trabalho de campo, encontrei a casa de
desenho anilnado. Essa maneira de assistir aos vídeos, seguida da imitação Manuel de Odé completamente abaudonada. Um vizinho que me viu na
dos gestos e dos cantos, pode sen1 dúvida alguma ser apreendida como um rua veio me informar sobre a partida do pai de santo e sobre o fechamen~
excelente modo de aprendizado e de aquisição de competências corporais32 . to da Casa de candomblé. Sua mulher encaminhava as cartas à esposa
A pretensa "biblioteca" que hoje se constitui nas Casas de candomblé de Manuel. Quanto a este último, dissera1n nada saber a respeito de sua
apresenta~se mais como, antes, uma "mediateca": cadernos e apostilas de situação atual.
axé, literatura produzida pelos adeptos, discos, cassetes de áudio, fotos Parti então à procura de seus filhos de santo, dispersados pela cidade. Os
e cassetes de video vêm se acrescentar à literatura antropológica para pontos de referência fora do lugar de culto mostraram-se muito instáveis:
compor esta eclética e heterogénea "rnediateca", fonte de aquisição e ob~ mudanças de endereço, de número de telefone, de lugar de trabalho etc. As
jeto de legitimação do saber religioso e ritual, o axé 33 • Sutil, dinâmico e informações recolhidas junto aos vizinhos, a1nigos e filhos de santo foram,
em geral, dadas de modo muito evasivo, por vezes com temor ou desprezo.
32 Isto é igualmente notado em suas brincadeiras, como mostrarei mais adiante. De outro Engajado em um movimento de reafricanização de suas práticas, Ma~
lado, esta questão foi tratada em um filme (Opipari e Timbert, 1997).
nuel entretinha contatos permanentes com aqueles estudantes que, "vin~
33 Verifica-se, há alguns anos, a incursão de Casas de candomblé na Internet. A análise desta
incursão, que leva em consideração a especificidade do suporte e seu impacto na prática das dos da África" para prosseguir seus estudos na Universidade de São Paulo,
Casas, é ainda pouco explorada- no que diz respeito aos Estados Unidos, veja-se Capone, estabeleceram u1na verdadeira rede de divulgação da língua iorubá e,
1999b). Cito aqui, a título de exemplo, alguns endereços: igualmente, de comercialização de toda espécie de produtos utilizados
L A ilustre Casa da Bahia, Ilê Axé Opô Afonjá {www.geocities.com/athens/acropolis/1322),
nesses rituais. Manuel tambén1 se associou ao ogã Jorge e a um outro pai
apresenta o candomblé como sinónimo de "religião africana". A breve história de sua for-
mação em solo brasileiro leva-nos à história da Casa, das mães de santo que ali se sucede- de santo, Manuelzinho. Eles trocavam seus conhecimentos, estabelecendo
ram e suas mais recentes atividades, sobretudo a criação de um museu e de uma escola. A as bases do que entendiam ser a "tradição africana". ·\íQ-'
incursão desta Casa na web é apreendida como uma possibilidade de utilizar tal meio, à Duas filhas de santo me disseram que os adeptos cmneçaram pou- '-'"{'-I';:-
~C \)IJ!~

~~i!._E_orq~e ~~.~~~~-~~...~.~~!?-.~~.~-~···~!!l~~ÜX.QJ~4i~L~..P~g?Jls!2 ';/;Jrr<or~~


semelhança de outros, "como um módo de separar o trigo do joio ... "
2. O si te da Casa paulista, património cultural da cidade, Ilê Axé Oba (www.aguaforte.com/ co a pouco
axeileoba). Esperando que sua incursão na web constitua um "meio de divulgação da re- ~.<?~ql1~.;I_l)!:."-!i()r11lel1t~.. ll1"-shayia__~l1.sinado _paraado!!'El1g_yas_j'_:~tj_:;a_s. _;D'";{:r ·
ligião", a mãe de santo declara: "minha intenção, como ialorixá, é a de apresentar nossa Desconfiadas, também elas acabaram por deixar a Casa antes de seu fe~ ~ f\.iJP1

visão da 'orixalidade', nosso modo de vida, nossas mitologias e suas diversas expressões em
chamento e, desde então, nunca mais reviram Manuel. Uma amiga deste ~x
nossas vidas. Desejamos, igualmente, retirando seu estigma, contribuir com a valorização
desta religião, trazida ao Brasil pelos negros africanos". O site apresenta a história da Casa
e de seu fundador, suas atividades socioculturais, rituais etc. E, ainda, os mitos de criação ricamente ilustradas com fotos, com destaque para suas origens. Na segunda entrada, o pai
do mundo e dos homens e a história da cada orixá. A narração dessas histórias traz a assi- de santo explica o que é o jogo de búzios, colocando suas competências a serviço de sua
natura da antropóloga Rita Amaral. clientela.
3· O Templo Religioso de Cultura Afro-brasileira, "conhecido como a CASA no PAI CELSO DE 4· Seguindo os mesmos modelos de organização (histórico, origens, atividades}, há igualmente
OXALÁ" {www.aguaforte.com/paicelso), apresenta-se na web em duas entradas principais. a Casa paulista de Armando de Ogum (Armando Akintundê Valiado, cf. Vallado, 1999), Ilê
Na primeira, são contadas as histórias da Casa, do pai de santo e de suas atividades rituais, Axé Yomojá Orukoré Ogun (www.aguaforte.com/ileaxeogum).
ro6 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO PERCURSOS E CONTORNOS DO CANDOMBLÉ 107

último, que pertencia a uma outra Casa, já havia feito alusão a um certo Muito ligado à Casa, participando ativamente do processo de reafri-
"radicalismo" em sua maneira de seguir "ao pé da letra o que os 'africanos' canização, o ogã Jorge mostrou-se inacessível. Todas minhas tentativas
diziam que ele tinha que fazer". de encontrá-lo foram infrutíferas. Soube por uma filha de santo que ele
Encontrei uma outra filha de santo que me contou que, um dia, o sobri~ tocava em outra Casa de candomblé e que há algum t~;hpo ele discordava
nho de Manuel1 ogã da Casa, prevenira-a sobre seu retorno a Santos, para de Manuel a respeito de seu modo de encarar a reafricanizaç·ao.
se ocupar da Casa de candomblé mantida até então por sua mãe biológica. Contrariamente ao ogã Jorge, Manuelzinho, que era também bastante
Desde então, disse-me ela, a Casa de São Paulo permaneceu fechada. Como próximo de Manuel, mostrou-se mais acessível. Explicou-me que, antes
os assentamentos de seu oríxá ali permaneceram, ela procurou na época um do fechamento, ele discutira com Manuel por causa de alguns Inal-enten-
meio de recuperá-los. Sem me dar as razões disso, confessou-me seu temor didos sem grande importância. Ele o vira pela última vez na sua casa, por
tanto de se aproximar da Casa fechada como de falar a respeito dela. Mais ocasião de u1na reunião com os "africanos", de quetn Manuel comprara
tarde me disse que, na sua opinião1 esse fechamento ocorreu por causa da alguns "feitiços já prontos". Afirmando que permanecia engajado na re-
"ambição de Manuel", que se dizia "cansado de trabalhar com coisas banais" africanização de suas práticas, disse-me que nada comprara na ocasião.
e desejava "coisas mais poderosas", o que justificava seu contato com os Fez-me saber em seguida que via com restrição algumas coisas propostas
"africanos" e seu esforço em mudar os rituais da Casa. Em seguida, de 1nodo pelos "africanos" e que duvidava, a este respeito, da eficácia real desses
bastante vago, ela insinuou que, há algum tempo, "Manuel tinha começado "feitiços já prontos". Mais tarde, soube do fechamento da easa pela sobri-
a ter problemas por causa dos 'africanos'; ele vendia uns negócios pra eles e nha de Manuel que lá ocupava o posto de equede. Esta lhe teria explicado
começou a ter problemas ... " Que tipo de "negócios", que tipo de problemas? que Manuel quebrara tudo na casa, pois enlouquecera depois de sua sepa-
Isso abria um outro leque de interpretações a respeito das quais eu não ração conjugal. Manuelzinho deu maiores precisões: "Como babalorixá,
tinha pista alguma. Sabia até então que Manuel comprava dos "africanos" digo que é possível que ele tenha ficado louco mas, entre nós, acho que
produtos vindos da África que eram utilizados nos rituais. Por outro lado, não é nada disso!,. Com um tom de desprezo, contestando a reputação de
eu ouvira boatos sobre um suposto co1nércio ilícito praticado com os "afri- Manuel, ele então enumerou diversos erros cometidos por este último em
canos". U1na aproximação entre essas duas informações, se tal aproximação suas práticas divinatórias e na realização de certos rituais.
pudesse ser pertinente, levar-me-ia certamente para além dos limites de nli· Kilombo, graças a quem eonheei Manuel, dizendo-me desconhecer as
nha pesquisa antropológica. No final de nossa conversa, ela pediu-me para razões verdadeiras do fechamento de sua Casa, confidenciou-me:
não dizer a Manuel, no caso de. eu vê-lo, que nós nos havíamos encontrado.
A última notícia que eu tive dele é que ele estava misturado, envolvido, com os
A 1nais antiga filha de santo da Casa não quis se encontrar comigo, africanos pra aprender iorubá. Ele passava pelo corpo das pessoas uns sabãozinhos,
nosso contato se limitou, pois, a alguns telefonemas. A fim de não falar deste tamanhozinho, e dizia pra elas fazerem uns pedidos e que isso ia dar certo,
sobre o fechatnento da casa, ela esquivava-se e simplesmente me disse que Eu falei pra ele: "ô Mané, você nem aprendeu angola, nem angola, nem efon, e
Manuel se separara de sua esposa e que ela não tinha seu novo endereço. agora quer aprender iorubá? Aprende direito o que você já começou pra poder
passar pras outras coisas. O que você tá fazendo é assim: você já pegou um monte
Contou-me que frequentava agora uma outra Casa de candomblé onde,
de pau de árvore e fez uma sopa?" Ele me respondeu: "mas aí não dá pra beber!" Eu
segundo ela, o pai de santo seguia a "mesma linha de Manuel, mas de disse: "então é isso, não dá pra engolir, o que você tá fazendo não dá pra engolir!"
modo um pouco diferente. Na verdade, era como antes da chegada dos
'africanos"' Perguntei então como se dava a relação com os "africanos" e ela Como uma Casa de candomblé desaparece assim, deixando tão poucos
simplesmente respondeu: "Esses africanos são n1uito complicados, tive um rastros? Por que tais rastros? O que se torna1n estes rastros? Qual estatuto
filho com um deles, mas não quis me casar, eles são muito complicados". têm estes rastros, sem a casa, sem seu pai de santo?
r oS O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

Temores, desprezos, desconhecitnentos, críticas, incertezas e descrédi~


to instauram uma dinâmica de boato, o tom da narrativa assume por vezes
ares de ficção: qual lugar deseja assumir cada narrador? No caso de Kilom-
bo, ao adotar o tom de conselheiro, não tentaria ele colocar em evidência
sua experiência, sua prudência, para assumir o papel de "velho sábio"?
No caso de Manuelzinho, ao denegrir certo fast fetish, não tentaria ele
se diferenciar de uma ideia de reafricanização para afirmar a sua própria?
Esses esboços de ficção criam uma personagem: ,,"o_____________
africano".
____ , ""'" Qual
papel ele desempenha? Como se desenha sua imagem? Até onde se pode
"engolir" o que essa personagem propõe como ('tradição africana"? Haveria
um limite para a fabricação de uma tradição? Manuel teria ultrapassado
este limite ao fazer ta~ula rasa de sua experiência para abraçar "as coisas
poderosas", pouco banais, "vindas da África"? III.
Se os fios tecidos por essas interpretações, esses silêncios, essas reti- magia e religião:
cências, essas recusas ligam-se no processo de reafricanização empreendi-
tramas inextricáveis
do por Manuel, eles não conduzem em contrapartida a nenhum desenlace,
a nenhuma versão plausível para o fechamento de sua Casa. Esta última
permaneceu fechada durante todo o período de minha pesquisa. Os sinais
distintivos de um lugar de culto (altares, recipientes utilizados para as
oferendas, folhas de palmeira presas no alto da porta de entrada etc.) ali
permaneciam como um desafio a toda interpretação categórica.
I.
A hierarquia religiosa e a clientela

Indiscutível marco da inserção definitiva do indivíduo no A hierarquia, a hierarquia


no candomblé é a coisa
candomblé, a feitura do santo pode ser apreendida com~ un1
mais importante, uma
''rito de passag~J?:!:~ (Turner, r990) que assinala um antes e Casa que não tem hie-
um depois em seu percurso, corno mn "ato de instituição" rarquia não avança, seu
(Bourdieu, 1982) dotando-o ao mesmo tempo de um estatuto axé cai.

~-q_yia religiosa e de uma aptidão para receber Zoca, filha de santo

o orixá em seu corpo por meio do transe.


A feitura sela uma aliança entre a pessoa e seu oríxá,
tanto a primeira quanto este último são burilados no intui-
to deste encontro. O adepto, com a cabeça raspada, escari- • r 1
ficado, incorpora pouco a pouco um gestual complexo e o~[) o r L-y:'Q1....~ e.
orixá, sob a forma de sua sede-altar, é, propriamente falan +al::fl' Lc,.,:l_J,..o
- - . ·' I)
.~?~htlç_adQ_;
Ação ritual não fragmentável, ela estrutura-
se em dois te1npos indissociáveis. U1n primeiro, privado,
durante o qual se opera uma purificação_~::pe~_s_~''J'~_:~o í"'"' ~l-\CÇ -[w
:J.~..o!::e_r:~_a.s~ b<:':~~~-"--"-bó, é seguido da preparas~-~e_s:'11 oof~.-
ori, o centro de sua cabeça, entendida como uma entidade
pessoal à qual se dedica um culto no ritual do borí. Após \'1l.:'>fBJ~{V0
essa purificação e preparação, o ritual da -~2.~-P-_~QJ?.~:.i.~-
mente dito se efetua: atos e sacrifícios rituais são então
praticados em um movilnento de vaivém entre o corpo da •\..o
pessoa e a sede-altar de seu orixá. i\ pessoa e seu orixá sã .1 )ov ~\"
·~~"; diz-se tanto "eu sou 'feito' no santo"'~..:~~~ou 'feito i\10 s~(\
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS Il3

para tal santo" como "eu 'fiz' o sant~ O transe atualiza essa aliança a Ao lado dos impedimentos económicos, os preceitos (alimentares, se-
cada ocorrência. xuais, de vestuário, gestuais etc.) que a pessoa deve seguir durante certo
A esse primeiro tempo privado sucede uma cerimônia pública e co~ período após a feitura parecem ser um outro fator impqrtante do cresci-
letiva durante a qual o novo adepto é apresentado ao público _e recebe, mento do número de abiãs nas Casas. Naquela de Yatemíri, por exemplo,
como seu orixá, um novo nome no culto. As "obrigações" que pontuam esse nú1nero é superior àqueles dós "feitos". Os abiãs, como eia explica,
sucessivamente o tempo ritual de um, três, cinco e sete anos de "feitura" acabam por ter um estatuto n1uito próximo desses últimos:
confirmam-na e reatualizam-na; a feitura dota a pessoa, ..,, __.a----·cada
C...----------~~-~-""·-·-· ---- vez, de um--------~-··-·-

novo Tenho muitos abiãs que já receberam o santo, que recebem o santo como se fossem
..- ...estatuto
--~---- _,
na hierarquia religiosa.
________ ....................
---~--------------~-·
iaôs de dois ou três anos [de feitura], é impressionante. Mas a época é tão ruim
que eles não têm recursos financeiros para "fazer o santo'', porque uma feitura é
atualmente muito cara. Em seguida, é preciso permanecer vinte dias em reclusão e
OS FILHOS DE SANTO todo mundo trabalha. É também preciso carregar o quelê [colar que liga a pessoa ao
orixáj durante três meses, e todo mundo trabalha. Assim, na nossa época, é muito
difícil pôr em reclusão um iaô, é muito dífícil, infelizmente. Não é qualquer um
O degrau mais baixo desta hierarquia se situa aquém da ''feitura". Ele é
que pode deixar seu trabalho durante vinte e um dias, praticamente trinta dias,
ocupado pelos aspirantes, os abiãs: "aqueles que não são 'feitos"', "aqueles e, ainda, três meses com o quelê, ligado ao santo, com a cabeça completamente
que estão lá para aprender, para conhecer a Casa, mas que não estão ver- raspada. Como se faz para trabalhar? É muito difícil.
dadeiramente engajados", "aqueles que estão lá por curiosidade, para ver
cmno são as coisas". Engajados sem sê-~lo, curiosos e buscando aprender, Se o abiã já está em mn processo de aprendizagem dos rituais, podendo

-----
os abiãs circulam entre diversas Casas para assistir às festas, consultar
----·-·-·------------- .. -----·---------..----"·----·-····..·-~~-~----·- mesmo ser possuído por seu orixá, é smnente por ocasião da feitura do
os búz_!9~~-!~~-?.J.Y.~E...P!.q_~l~~~!!:~~~-c. Essa mobilidade e a aquisição de certa santo que a aquisição de suas competências será legitimada. O discurso
competência ritual dela décorrente parecem cmnpensar o pouco de prestí- de uma abiã pode bem ilustrar o processo de legitimaçãO: "Abiã é o início,
gio dado para o lugar que eles ocupam na hierarquia: aos abiãs se reservam penso que a primeira parte; iaô é a segunda, a feitura é a terceira. Penso
"as pequenas tarefas". assim: você estuda e depois faz o exame final" IMeire, filha de santo), A
)? \ Candidato à feitura, o abiã não a efetuará necessariamente. Como metáfora da escola, recorrente, sublinha ao 1nesmo te1npo o aprendizado e
)7 , ~?assinala Vivaldo da Costa Lima, "nesse processo de socialização religio- a legitimação dada pela aquisição de um novo grau. Podemos encontrá-la
\-t·,__j ,_.; sa, os abiãs podem pennanecer. por tempo indeterminado, a depender da no seguinte comentário de Roger Bastide:
'y'-j \:- ---2l- 'vontade do santo', sempre Inanifestada pela palavra d~_QJ:-~ e
li \\", w Um de meus informantes comparava a estada da candidata na ariaxé [câmara
~D 'i .'' ~~ de fatores de ordem, s_<:Jbretud2, econômi"!';" !Lima, 1982, p, 89), Como o
~~ {(J ritual] à escola primária, dizendo que a instrução prosse&llle pela vida toda; se qui-
<;;;;"'
"' fator económico é de longe o mais evoca do 1, a realização do ri tua 1 do b ori
~ ti.JV sermos atingir os graus mais elevados da hierarquia, é preciso passar em seguida
~v~·\v é assinalado como o dispositivo eficaz para adiar a "feitura" ou, ainda, para pela escola secundária[ ... ] (Bastide, 2009, p. 50).
~j J.- "fazer calar" o orixá em sua exigência.
~'ii Sublinhando a ideia de aliança, presente na tradução do termo iorubá
iawo !esposa), Manuel de Odé propõe um outro registro metafórico: "Abiã
I O custo muito elevado da "feitura" é calculado segundo o grande número de ingredientes
é uma espécie de noivo, ele não é casado, ele namora, é mais ou n1enos
e de animais utilizados nas oferendas, rituais e sacrifícios, segundo a variedade de roupas
que a pessoa usará, as alimentações preparadas por ocasião de sua reclusão, os gastos de isso, noivo, um noivo do orixá. Depois vem iaô, a palavra iaô é esposo, es-
preparação da festa pública, o pagamento devido ao pai de santo etc. posa, esposa do orixá, a pessoa é casada com o orixá" (Manuel de Odé, pai
114 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS 115

de santo). Como se verá 1nais adiante, esse "namoro" com o orixá traduz Para além desse período de reclusão e de submissão ao chefe de culto
muito bem as modulações presentes na athlalização dessa aliança operada (saudações, cabeça baixa ... ) e ao orixá (uso do quelê), a designação iaô cir-
pelo transe de possessão. cunscreve um ciclo tnais vasto durante o qual a feitura, reatualizada pelas
Em reclusão para a efetuação da feitura e após o ritual de raspagem "obrigações", pode ser apreendida e1n sua continuidade co'mü um processo.
da cabeça, a pessoa torna~se um iaô: um "recém-nascido", "utna coisa que O iaô e seu orixá estão sempre "sendo feitos", eles "se fazem" tntÚ.uamente.
ainda está nascendo", "u1na coisa que acabou de ser feita", "uma coisa No registro metafórico proposto por Manuel, "o íaô é aquele que vai apren-
delicada que vai aprender tudo de novo", "um bebezinho a quem devemos der a carregar o oríxá, vai aprender a cuidar do orixá, como no cmneço de
tudo ensinar". um casamento" (Manuel de Odé, pai de santo). Determinando sua "idade"
Em geral, durante os três meses que se seguem à feitura, o iaô exibe os ou seu ~'tempo no santo", essas "obrigações" colocam~no, a cada vez, em um
·sinais que tornam visíveis sua nova condição, como o indica uma filha de novo grau da hierarquia da Casa. Assim, mn iaô de um ano terá um estatuto
santo: inferior àquele de um iaô de três anos que, por sua vez, estará hierarquica-
mente abaixo de um iaô de cinco anos.
Quando passo na ru'a e que vejo que a pessoa está vestida, eu digo, é um iaô, por-
que em geral alguém que faz uma obrigação para ser ebomi não sai assim na rua,
Esse ciclo conclui-se quando o iaô cun1pre "a obrigação" de sete anos.
porque já tiramos tudo o que temos de tirar, todas essas coisas, esses preceitos[ ... ] Ele terá sua cabeça novamente raspada, mas, contrariamente à feitura, o
Agora, o iaô deve estar vestido de branco, um tecido sobre a cabeça, "maravilho- processo "sendo feito" acaba aqui. Ele torna~se um ebomi ao receber das
so", usar o quelê; a primeira coisa que olho é se ele tem o quelê, os cabelos bem mãos de seu pai de santo o decá: os instrumentos rituais \jogo de búzios,
curtos[ ... ] jLucélia, filha de santo).
ervas, a faca obé etc.) que atestam sua aptidão a se tornar chefe de culto.
Da reclusão à retirada progressiva dos preceitos, a iaô permanece com- Ao se tornar un1 ebomi, a pessoa está de certo modo pronta: "pronta para
pletatnente sub1netida ao poder de seu pai de santo e de seu orixá: "a iaô tomar conta de seu santo e daquele das outras pessoas", "pronta para ter
sempre fica de cabeça baixa". Esse período é frequentetnente evocado como seus próprios filhos de santo". O ebomi "é livre, seu laço com sua Casa foi
'
um sofrimento, um sacrifício: cortado; sempre respeitando seu pai de santo, ele é seu próprio mestre, ele
conhece seu orixá" (Jorge, ogã). Seguindo a metáfora da escola, o decá é
Penso na imagem de iaô tão triste ... A minha foi tão grave: ah, você deve andar de
cabeça baixa, ah, você deve .. Eles diziam que o iaô deve arrastar o umbigo pela apreendido como um diploma: "a pessoa recebe o decá, que é um oiê, un1
terra, que deve "dar adobá" [fazer a saudação ritual) para todo mundo; então, eu título, uma espécie de diploma" (Sílvio, pai de santo). No campo metafó-
acho isso muito triste, andar assim todo tempo. Todo mundo que chegava dizia: rico do casamento, o ebomi "começa a ter uma liberdade maior com seu
"vai, dê adobá e volta", "vai, dê adobá ... " Parecia que faziam de propósito: "vamos
orixá, uma liberdade de esposo antigo, ele pode fazer mais coisas que um
chegar um por um para que ela dê adobá diversas vezes". Para mim, isto era um
sofrimento {Lucélia, filha de santo). iaô" (Manuel de Odé, pai de santo).
Os homens e mulheres que nunca serão possuídos pelo orixá, respec-
Este "sofrimento" é, com efeito, bastante valorizado, pois a repetição tivamente os ogãs e as equedes, ocupam, à semelhança dos ebomis, um
dessa saudação assinala a importância dos graus hierárquicos cuja visibili- alto posto na hierarquia: "segundo a nossa lenda, a eguede e o ogã nasce-
dade ratifica a autenticidade da Casa: "Uma Casa que não tem hierarquia
não avança, seu axé caí". Como explica Mãe Júlia, equede há muito tempo
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ram sete anos antes de nós" (Angelina, filha de santo). Como explica uma
equede, eles recebem o título de pai e de mãe, como os chefes de culto: "o
na casa Kilombo: "Na nossa época, era assim, era realmente rigoroso, sofrí- ogã já nasce pai, o ogã já é um Pai, como a equede já é uma Mãe; eles não
amos bastante, não é como esses iaôs de hoje que têm toda a liberdade .... viram no santo [não são possuídos], já nascem com este dom de ser ogã e
Era o verdadeiro candomblé". equede" (Mãe fúlia, equede). É em geral durante seu percurso de abiã que
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a pessoa é ((escolhida'' ou "suspensa" pelo orixá por ocasião de uma festa. "fazer" um possuído, é preciso ser pessoalmente possuído. É seu marido,
Como explica um ogã, Sílvio, que assume então a direção da Casa. Durante a ''obrigação" de sete
anos, Cristina é possuída por seu orixá. A confirmação de sua condição de
a suspensão do ogã, é a hora que o orixá vira no pai de santo, vem até você, te
equede é substituída, nesse momento, pela aquisição do ·ae-tá que permite
abraça, sai dançando com você pegando pelo braço. Você não entende nada, você
é colocado no meio da sala, o orixá fala com a equede, manda a equedi perguntar,
que ela se torne chefe de culto. Embora a Casa seja ainda hoje dÍrigida por
pra todo mundo ouvir, se a gente, eu no caso, poderia servir o orixá na Casa, ser Sílvio, Cristina divide com ele as funções de iniciador. Eles ampliam assim
o ogã dele. Então ele passa uma responsabilidade pra gente: nossa função de ogã. o seu leque de candidatos à feitura, escapando das proibições de parentesco
A gente costuma dizer: "você é ogã? Você foi suspenso?"[ ... ] Ai eu respondo: "eu por aliança (para um casal que viria se iniciar em sua Casa, o marido seria
fui suspenso por Ogum, pai de Nilê, que é a minha mãe de santo". Então precisa
feito por um e a esposa por outro) ou por parentesco consanguíneo (mn
ter um certo ritual [... J É desse jeito que se passa o processo de ogã, você deve ser
suspenso, a equede também, é a mesma coisa (Jorge, ogã). innão ou u1na irmã de Sílvio seriam feitos por Cristina e vice~versa).
Henrique, irmão de Sílvio, foi feito ogã por Cristina. Ele explica que
Ao se tornar um~ equede ou um ogã "suspenso", a pessoa entra em um essa feitura dos ogãs e das equedes é, na verdade, uma medida de precaução:
processo de aprendizagem, assumindo as funções de seu cargo: para os
ogãs, tocar os ata baques, segurar a faca por ocasião dos sacrifícios, ocupar~ Quase ninguém confirma um ogã, temendo que ele vire depois, entendeu? Con~
se dos altares etc.; para as equedes, tomar conta dos adeptos quando ocorre firmando um ogã, você está dizendo: "ele é ogã, ele não vai virar mais" !... J Eu fui
suspenso ogã, depois eu fui feito e o santo não veio; então me deram um cargo,
o transe; no momento da feitura, vesti~los e assim por diante. Como expli~
meu cargo aqui é alabê [aquele que toca os atabaques], eu não sou iaô, sou um
ca Mãe Júlia, ~'antes de ser confirmada, é preciso passar por um preceito ... ogã, meu cargo é de alabê. Então, se Obaluaê, meu santo, me pegar, não vai ser
Você deve aprender tudo, aprender a vestir um orixá, a dançar com ele, ruim, não fizeram coisa errada; agora, se o Obaluaê não me pegar, nos sete anos
aprender a rezar, a tomar conta do iaô, tudo isso ... " (Mãe Júlia, esquede). eu confirmo; se o santo não pegou até sete anos, não pega mais.
Em certas Casas, os ogãs e as equedes não têm a cabeça raspada ou não 1
são ((feitos"; são, antes, confirmados. Sua iniciação, menos cmnplexa que' A eventualidade de um transe depois dessa confinnação levantaria
a feitura do santo dos iaôs, é uma confirmação da ''escolha" do orixá: '(o a suspeita de simulação ou, ainda, o chefe de culto seria alvo de maledi~

santo da equede e do ogã já nasceu feito a gente, confirma simples1nente cência e de críticas em relação a sua falta de competência. As 1nedidas de
o santo, ele é apenas confirmado" (Lindinha, iá~quequerê). É interessante precaução tomadas na elaboração desses rearranjos não escapam à prática
notar essa correspondência entre o aspecto originário da pessoa que já nas~ de predileção dos adeptos: a crítica irónica e feroz das fofocas, a xoxação.
ce ogã ou equede com "esse dmn de não cair em transe", e aquele de seu Com efeito, as regras e os preceitos do candomblé têm lugar privilegiado
orixá que já "nasceu feito". Como se verá mais adiante, sua aliança será de de afirmação e de redefinição nessas fofocas e críticas, em que abundam
outra natureza. toda espécie de insinuação, de suspeita, de acusações e, sobretudo, de
Em outras Casas, os ogãs e as equedes são, num primeiro momento, fei~ muito humor. Ao explicar que uxna equede ou um ogã feitos podem cair
tos, têm a cabeça raspada como os iaôs; a confirmação de sua condíção não em transe, a equede Dangeuê conta:
se efetuará senão ao término da "obrigação" de sete anos. A possibilidade
de uma eventual possessão pelo orixá permanece então presente durante Isso pode acontecer sim, a filha carnal da minha mãe de santo rodou com Ogum
esse período. Isso abre uma brecha para toda espécie de arranjo. Cristina, com r9 anos de santo, ela era equedena Casa de seu Bobó, ela éconhecidíssima por
todo mundo, rodou com I9 anos de santo, Pergunto: ''então, isso pode acontecer
por exemplo, herdeira da Casa de candomblé de sua mãe biológica, eqnede
mesmo ... ?"Ela hesita: "Pra uma pessoa com 19 anos de santo rodar .. uns falam
na época, não pôde assumir sua função de chefe de culto;, di~-se que para
II8 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO; TRAMAS INEXTRICÁVEIS ll9

que é mentira, outros dizem que é verdadeiro aquele Ogum dela, então, a gente
para a resolução de toda espécie de problema ou necessidade. Esses serviços
nunca sabe .. !' E rindo, ela acrescenta: "... eu tenho cá as minhas dúvidas!".
rituais, que tendem a uma grande diversificação, combinados com outros
O chefe de culto, ele próprio ou seu orixá, pode atribuir aos ebomis procedimentos, instituem por sua vez mna outra categoria, aquela dos clien~
funções específicas que instauram, no interior dessa primeira hierarquia, tes: estes, ao lado dos abiãs e dos "feitos", cmnpõem o c~u'junto dos indi-
uma outra estratificação. Ter uma função específica, uma atribuição ou víduos em torno dos quais se concentram as práticas rituais de ~~a Casa.
um cargo eleva então a pessoa a uma posição superior à de outros ebomis.
As mulheres podem ter as seguintes funções: iá-quequerê a mãezinha que
1
O CLIENTE
auxilia o chefe de culto em todos os rituais, seu sucessor eventual; ialaxé, a
mulher que se ocupa dos axé Ilimpeza, manutenção e disposição de alimen- O cliente "é a pessoa que vem quando precisa e paga por aquilo que a gente
tos e de água nos altares ou ibáh iabassê, encarregada da cozinha ritual; iá faz por ela" !Sílvio, pai de santo), "é o outro lado do candomblé, é o lado
efun, aquela que deve pintar os iaôs por ocasião de sua primeira saída em que mantém e ajuda a gente" IKilombo, pai de santo). Ele desempenha um
público etc. Os cargo~ masculinos são atribuídos aos ogãs: ala bê, aquele que papel de destaque na construção da imagem das Casas de culto: "na minha
toca os atabaques; axogum, aquele que segura a faca nos sacrifícios; pejigan, roça, as pessoas vêm de longe para resolver seus problemas, tem clientes
similar ao posto de ialaxé, aquele que se ocupa dos altares etc. A atribuição n1uito importantes, políticos, homens de negócios, artistas ..." \Marcelo,
destes cargos é en1 geral honorífica, ela não compreende mna exclusividade ogã). A presença dos clientes no processo de formação das Casas é igual-
na realização das funções: a cozinha ritual nem sempre será preparada pela mente notável. Se a abertura de uma Casa representa mna grande respon-
iabassê ou, ainda, a iabassê poderá ter outras funções além da cozinha; um sabilidade e um pesado investünento, a atividade dos ebomis pennanece,
alabê poderá, além de tocar os atabaques, realizar sacrifícios etc. com efeito, durante muito tempo, limitada à acolhida de seus clientes.
Os cargos de iá~quequerê e de ialaxé são sempre atribuídos a alguém de Ao retraçar a história da formação de sua Casa, os pais de santo evocam
confiança, com frequência a um membro da família do chefe de culto. Nas frequentemente uma "pressão" que os faze1n ceder quando os clientes de~
'
Casas dirigidas por uma mulher, esta com frequência assume a função de' sejam aceder às fileiras de iniciado:
ialaxé; mas, quando se trata de um homem, o posto de ialaxé é quase sem~
Assim que cheguei a São Paulo, eu recebia as pessoas em minha casa para jogar
pre reservado à sua esposa. Com muita frequência, a lógica da confiança ou
os búzios, fazer ebó, essas coisas. Pouco a pouco, apareceram casos mais graves,
dos laços de parentesco prevalece sobre a lógica da hierarquia, invertendo o orixá pedia a feitura e a gente não conseguia segurar com bori. Mas sem Casa
este processo. Na Casa de Kilombo, por exemplo, sua esposa, Heloísa, era aberta, eu não podia raspar !"fazer", iniciar]. Então, as pessoas começaram a fazer
ainda iaô quando assumiu o posto de ialaxé, tornando-se então uma ebo~ pressão, sabiam que era preciso fazer o santo, mas queriam que eu fizesse, me
ajudaram muito a achar uma casa para abrir minha Casa de candomblé, foram elas
mi. Lindinha, sua filha biológica, antes de cumprir sua obrigação de sete
que me levaram até onde estou (Manuel de Odé, pai de santo).
anos, já fora escolhida pelo orixá para ser a iá-quequerê da Casa. Na Casa
de Manuel de Odé, a iá-quequerê é sua esposa, Albani que, 1nesmo sem Apresentada como regra ritual indispensável para a abertura de mna
receber o decá, é considerada uma ebomi. Casa, a obtenção do decá pode, entretanto, ser negociada. Observa~se, então,
Se a feitura do santo mantém~se como paradigma da adesão, ela não um rearranjo dos elementos mais aptos para legitimar o poder e as compe-
é o único meio de participação na religião. Instituída e instituinte, ela tências do chefe de culto. A este respeito, para um adepto da reafricaniza-
apresenta~se igualmente como matriz ritual de referência no sistema de fun~ ção do candomblé como Manuelzinho, o fato de ter sido iniciado por um
cionamento do candomblé. Derivados dessa matriz, certos rituais ganham "africano", colocando-o assiln diretamente e111 uma linhagem de "tradição
autonomia em relação a ela e são propostos como serviços a uma clientela africana" (na qual o decá, segundo ele, não existe)1 dispensa~o de se submeter
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a essa regra ditada pelos '~brasileiros". Segundo ele, seu odu de nascimento, doença, falta de dinheiro, estresse, dese1nprego, discórdia conjugal, desejo
revelado por seu iniciador "africano", detenninou seu destino de babalorixá de vingança, desejo de vencer em um negócio, problemas familiares etc.
(chefe de culto). Conferindo grande importância a seu jogo de búzios, atri- Para explicar seu acesso a esses serviços, os clientes privilegiam a rede
buindo a ele mna filiação direta com essa "tradição africana", a constituição informal do "boca a boca"l. É como indica, por exemplo, a narrativa de uma
de sua Casa se faz hoje passo a passo. Se ele conta atualmente com um bmn cliente, jovem de cerca de vinte anos, abiã em uma outra casa/Vendedora
número de clientes para suprir suas necessidades econômicas, os "feitos" ou desempregada. Ao esperar a chegada do pai de santo para a realização de
candidatos à "feitura" [abiã] reunidos em sua Casa não representam senão um ritual (ebó) destinado a libertá-la de um feitiço que a impedia de en-
uma pequena dezena de pessoas. Seu papel de pai de santo define-se, hoje, contrar um novo emprego, ela explica: ''Minha prima veio aqui uma vez
quase que exclusivamente, em função de sua atividade junto aos clientes. e achou muito b01n; falou depois para uma amiga no trabalho; veio com
O ogã Tata Leuê, que recebe seus clientes em sua casa para a consulta essa amiga e depois 1ne contou o que aconteceu, as coisas que tinham dado
divinatória com o jogo de búzios, tenta mna outra via de legitimação. certo. Depois disso, fiquei entusiasmada, agora vou ver se consigo resolver
Auxiliado por sua e~posa, a equede Dangeuê, e suas quatro (de seis) fi~ esses probleminhas ... ".
lhas "feitas" no candomblé, ele realiza igualmente os rituais destinados a A narrativa de um outro cliente, homem de cerca de so anos, auxiliar
resolver os problemas de sua clientela. Mas Ta ta Leuê mora em um apar~ de pedreiro desempregado, pode mostrar por outro lado que a busca dos
tmnento de um conjunto habitacional, alugado, o solo não lhe pertence. serviços rituais não depende forçosamente de uma crença na religião, mas,
Sua esposa explica que derramar o sangue dos sacrifícios neste solo pode antes, na eficácia dos serviços propostos:
causar diversos proble1nas. Inicialmente, ele não lhes pertence, não pode1n
Vim aqui porque minha mãe me disse para vir. Não acredito em nenhuma religião,
dedicar este solo a nenhmn orixá. Em seguida, mesmo que esse solo lhes não gosto muito disso, mas minha mãe já conhecia aqui, ela vem sempre, ela me
pertencesse, não seria à terra ("onde se enterra o axé"J que o sacrifício seria disse que aqui é bom, sério, que realmente funciona, foi uma vizinha que falou a
dirigido, mas aos vizinhos de baixo. Enfim, os vizinhos poderiam se queixar respeito dessa Casa ... Não gosto muito dessas coisas ... Fiz o ebó para abrir meus
' caminhos, para encontrar emprego e dinheiro, a situação está tão ruim que não
na prefeitura. Para remediar essas restrições, Tata Leuê pode contar com a'
custa tentar outra coisa.
ajuda da mãe de santo Mifaloió, que lhe abre as portas de sua Casa quando
a situação do cliente pede por rituais mais complexos. Esta ajuda não é feita Essa rede informal é igualmente lembrada e valorizada pelos chefes de
em troca de nada, pois Mifaloió pode beneficiar-se da rede de clientes de culto quando falam do recrutamento de seus clientes:
Tata Leuê. Desejando abrir sua própria Casa de candomblé, a fim de evitar As pessoas ligam, voltam, enviam outros clientes, porque eu, eu não coloco anún-
toda crítica sobre seu estatuto de ogã e equede, Tata Leuê e sua esposa im~ cio no jornal, não faço esse tipo de coisa, recebo as pessoas que me foram indicadas
põem uma condição: que a Casa seja comandada por uma de suas filhas. A por outras. Então, suponhamos: você vem aqui, você joga os búzios, você faz um
trabalho, depois alguém me chama e diz: "ah, foi a Carmen que me mandou, ela
constituição dessa clientela integrada à estrutura familiar, que lhe pern1ite
falou muito bem de você ... É assim (Manuelzinho, pai de santo).
encontrar os subsídios para uma legitimação, apresenta~se hoje como um
verdadeiro embrião de uma futura Casa de candomblé. Vindo de um universo exterior ao lugar de culto, e frequentemente
exterior ao próprio candomblé, o cliente desempenha um papel de inter~
face na publicidade da Casa; torna-se, desse modo, fator importante na
AS REDES DE CLIENTES
elaboração de sua reputação. Se outros meios de comunicação, como o
Para o cliente, a necessidade é o 1notor da busca dos serviços rituais. Proble~
mas, aflições e desejos exprimem~se, com efeito, em uma lista inesgotável: 2 A este respeito, veja-se Júlio Braga (1988, pp. 62-63) em seu estudo sobre o jogo de búzios.
!22 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS 123

rádio, os jornais e as revistas 3 participam igualmente na divulgação de na origem de uma rede de apoio e de legitimação de suas práticas. Na Casa
seus serviços, eles são apreendidos .cmno u1,11a faca de dois gumes: de um de Kilombo, um chefe de culto de umbanda, que encontra nessa atividade
lado, assinalam o prestígio do chefe de culto que demonstra uma aptidão uma fonte de renda exclusiva, é seu cliente de longa data. Todos os anos,
para ocupar outros espaços na sociedade; de outro lado, o perigo de uma ele realiza o ritual do bori, isso lhe dá "mais força espiritu~l, mais funda-
aproximação duvidosa com a publicidade comercial. mento". Essa regularidade na demanda de serviços rituais não inlPlica, para
Na valorização dessa rede informal, os chefes de culto parecem desejar ele, uma mudança de condição: na umbanda, ele continua a ser, sempre,
afastar toda suspeita que a atividade junto aos clientes possa trazer. "Fazer chefe de culto; no candomblé de Kilombo, ele é acolhido como um cliente
comércio com a religião", "aproveitar dos outros" são, com efeito, acusa- fiel. C01n efeito, o candomblé, ao lhe conferir um "fundamento'', por ele
ções que se pode ouvir nas fofocas e boatos a respeito das outras Casas. considerado como mais poderoso em relação à umbanda, torna-se um fator
Pontuando suas disputas de poder, sua apropriação de uma identidade de legitimação de sua prática nesse culto. Mas essa legitimação não é uni-
e de um espaço sobre o mercado religioso, tais acusações revelam suas camente sünbólica ou ritual, a ela se associa igualmente um aprendizado
tentativas constantes de separar e de distinguir duas categorias. De u1n material. Durante sua reclusão e a seu pedido, Kilombo autorizava o cliente
lado, "nós", que se aproxima da "magia branca, benéfica", da "caridade". a gravar o som dos cantos e das palavras que acompanhavam os rituais rea-
De outro lado, "os outros", categoria ligada à "feitiçaria", à ''magia negra, lizados. Explicou-1ne mais tarde que essas gravações o ajudavam a melhor
de malefício", ou ao "abuso de confiança~'. Ao assim criticar a prática dos executar os rituais (ebó e borij praticados em seu terreiro.
"outros", colocam-se as suas do lado de certa terapêutica: os serviços dis- U1na terceira parte dos clientes é completamente externa aos cultos
pensados aos clientes serão então, muito frequentemente, aproximados afro-brasileiros. Eles provêm e constituem, ao mesmo tempo, redes de
dos problemas de saúde. Mas essas categorias são, e1n geral, manipuladas amizade, redes familiares, profissionais etc 4 • Tata Leuê, por exemplo, diz
de modo ambíguo, segundo a necessidade do momento. De certo modo, ter reunido há anos, junto à sua clientela, um número considerável de
ser macumbeiro, praticár a "magia negra", significa ter 1nuito poder na mulheres que trabalham como prostitutas. A mãe de santo Yatemin ex-
manipulação das forças sobrenaturais e dos orixás, e, para os clientes, este plica que boa parte de sua clientela, trazendo os parentes próximos para as
poder pode se tornar um excelente cartão de visita. consultas, constituiu-se e1n segmentos de diversas famílias. É assim que
O cliente está na origem de redes sociais e econômicas a partir das o jogo de búzios, em princípio u1na atividade privada e individual, pode
quais a Casa estabelece suas relações com o exterior. Uma parte da clien- se tornar em sua Casa coletivo: "Normalmente, só eu fico com a pessoa
tela é formada por filhos de .santos vindos de outras Casas. Observa-se, que vem se consultari mas, às vezes, toda a família entra para escutar o
então, um vaivém constante entre essas Casas, vaivém que tece redes de jogo de búzios".
conflitos e de fofocas que parecem funcionar como verdadeiros regulado- Um cliente pode igualmente estar à frente da abertura de novas redes,
res das práticas rituais. como pude observar, por exemplo, na casa de Kilombo. Um homem de ne-
Uma segunda parte pode vir de outros cultos afro-brasileiros, como a gócios, brasileiro de origetn italiana, cliente fiel de sua casa, que há muitos
umbanda. Aqui, o ponto de junção entre as duas modalidades de culto está anos contava com seus serviços para garantir o bom funcionamento de sua

3 A título de exemplo, em São Paulo, a Rádio Axé (98,1 FM), os jornais especializados: Jor-
nal Umbanda e Candomblé e Xamã. Encontrar-se-á igualmente este tipo de anúncio na 4 Um artigo publicado na revista Veja de 7 ago. 1996 informa que uma Casa de candomblé
imprensa não especializada: Revista Veja, Folha de S. Paulo etc. Há cerca de seis anos, de São Paulo tornou-se o ponto de referência tanto dos intelectuais da Universidade de
encontram-se também na Internet as páginas pessoais de pais de santo que propõem seus São Paulo como dos homens políticos no poder àquela época (PSDB). Estes ali vão para
serviços online ou com hora marcada. consultar o jogo de búzios e resolver os mais diversos problemas.
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO
MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS 125

empresa, apresentou-lhe dois outros clientes, hmnens de negócios vindos de Personagem esporádico por excelência, o cliente pode, contudo, dar
Milão para trabalhar no Brasil. Estes últimps o consultam em duas ou três mostras de urna ligação com a Casa e com o chefe de culto; ele torna-se
ocasiões. Mais de um ano após seu retorno à Itália, um dos clientes refaz então cliente fiel ou simpatizante. Essa fidelidade, que se exprime por
conta to com Kilombo, e o convida para ir a Milão, de mn lado para intervir, urna demanda constante de serviços rituais, pode igualmente ser visível
graças a seus serviços rituais em um negócio pessoal que estava estagnado na participação do cliente nos ritUais públicos como "espect~~dor", mas
há muito te1npo, e, de outro lado, para trabalhar em um "centro ecológico" também pelo apoio financeiro para a realização desses mesmos rituais.
que dirigia 5• Ele projeta acrescentar serviços rituais do candomblé a uma Os laços do cliente com a Casa podem, ainda, estreitar-se em função dos
série de outras práticas já em vigor em seu centro. Da iridologia a ''toda serviços rituais mobilizados para a resolução de seus problemas ou para
espécie de cura espiritual", estas práticas dizem igualmente respeito às "téc- a satisfação de suas necessidades. Quando esses procedimentos provêm
-nicas corporais de busca interior", à astrologia, ao tarô etc. Preocupado en1 da estrutura ritual própria à "feitura do santo", eles são suscetíveis de se
definir o perfil de sua nova clientela, Kilombo interroga-se sobre os tipos de tornarem marcadores de mudança de seu estatuto. De simples cliente a
problemas que lhe seriam trazidos e sobre os dispositivos rituais necessários cliente fiel, ele pode igualmente ser considerado como abiã e assim aceder
para resolvê-los. O cliente então o previne de que esses problemas giram em à categoria de filho de santo. Neste sentido, a clientela representa uma
torno de "coisas muito leves" (problemas familiares, perturbações psíquicas, verdadeira reserva de novos adeptos.
problemas sentimentais, financeiros etc.) e o alerta para o inconveniente
ocasionado por sacrifícios de anhnais para uma clientela pouco familiarizada
A FESTA: VITRINE DA HIERARQUIA
com esse tipo de prática. A especificidade do novo mercado e o deslocamento
em avião, reduzindo os dispositivos e os ingredientes rituais à sua disposição Como sugere Rita Amaral, a festa de candomblé é uma "vitrine". Ela Inos-
na Itália, levara1n Kilombo a buscar uma série de adaptações que iam, sobre- tra ao público o que é o grupo, sua identidade. Ela "pode ser apreendida
tudo, no sentido de uma simplificação e de uma redução dos procedimentos como sendo o 'proselitismo' do candomblé" (Amaral, 1992, p. 56). Ela é,
rituais. Ainda na Itália, Kilombo falou-me sobre seu desejo de ali voltar'' igualmente, a 1'vitrine" da hierarquia, ela a expõe, torna-a efetiva e visível
periodicamente para continuar seu trabaho junto a essa nova clientela6. por uma série de códigos: a posição de cada pessoa no espaço, sua maneira
de se vestir, as saudações rituais etc. A exposição em vitrine da hierarquia
As dificuldades linguísticas das duas partes levaram-me, a pedido de Kilombo, a me tornar é, ainda, exposição em vitrine do axé da Casa e daquele de cada indivíduo
sua intérprete. Foi então que pude seguir de perto (por telefone e fax) o processo de nego-
ciação e de preparação de sua viagem. que participa da festa.
6 Esta exportação dos serviços rituais do candomblé para outros países foi igualmente assi- Na organização simbólica do espaço do barracão, partindo-se do centro
nalada por Prandi (199r, p. 204): "Este vaivém do povo de santo já extravasa as fronteiras (o ixé onde está enterrado o axé da Casa), estão distribuídas diferentes zo-
do Brasil. Muitos dos pais e mães de santo de São Paulo viajam constantemente para os
nas consideradas como sendo mais ou menos carregadas de axé. A porta de
países do Cone Sul, e mesmo para a Europa e os Estados Unidos, onde têm uma clientela
que paga as despesas de viagem e lhes permite juntar bom pecúlio". Se esta exportação entrada, os atabaques e o quarto ritual \roncó) marcam igualmente essas
está na origem da formação de novas clientelas, em certos países dá-se, sobretudo, uma zonas. No perímetro mais afastado do centro, o público é convidado a se
instalação efetiva dos cultos afro-brasileiros. Na Argentina, por exemplo, esta instalação sentar em bancadas, bancos ou cadeiras colocados em torno do salão. Ele
dá mostras de uma expansão bastante rápida. Laura Sega to {199r), baseando-se no trabalho
de Alejandro Frigerio*, indica que a fundação da primeira Casa de culto em Buenos Aires
data de r966. Em 1983, Buenos Aires contava já com uma centena de unidades de culto "'With the Banner of Oxalá: Social Construction and Maintenance of Reality in Afro-
que, no periodo de dois anos, viu seu número dobrar. A presença dos cultos afro-brasileiros Brazilian Religions in Argentina. Ph.D. Dissertation, University of California, Los An-
na Argentina foí igualmente estudada por Maria Julia Carozzi (1991). geles, r987.
!26 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO
MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS I27

compõeMse de adeptos vindos de outras Casas, amigos, membros da fa1nília outra pessoa possuída por seu orixá dança, os iaôs e os abiãs devem perma-
dos adeptos, clientes da Casa, vizinhos, curiosos etc. No seio desse público, necer de cócoras. Se, ocupando a última posição na roda de santo, o estatuto
uma distinção é praticada pelos ebomis vindos de outras Casas e por certos das crianças aproxima-se daquele dos abiãs, sua "socialização religiosa" é,
clientes fiéis, em geral por aqueles que ajuda1n materialmente na realização contudo, bastante diversa. No decorrer da festa, é pos-Sb/el observar um
da festa. Eles aproximam-se do axé da Casa ocupando as cadeiras de honra nítido contraste entre os limites impostos aos abiãs e a liberdade conferida
colocadas perto dos atabaques. Homenageando assim seus "convidados", o de modo bastante informal às crianças. Estas se movünentam por todo o
chefe de culto põe em evidência seu prestígio, sua capacidade de estabele- espaço, entram por vezes no centro da roda, olham de modo bastante freM
cer relações com outras Casas, de constituir uma clientela fiel. As pessoas quente pela porta entreaberta o que se passa no quarto ritual, instalam-se
encarregadas do desenrolar da festa (o chefe de culto, os ogãs, as equedes, ao lado dos atabaques para olhar e, por vezes, imitar os gestos dos ogãs etc.
·a iá-quequerê e certos ebomis) colocain-se igualmente perto dos ata baques O público está em geral vestido nonnalmente; nota-se, contudo, certo
e podem se movimentar em uma zona que vai dos tambores ao quarto riM lado de "roupa de domingo" ou "chique", em razão da função de lazer assu-
tual (roncó ou camarinha), onde os filhos de santo possuídos são vestidos, mida por essas festas. Os ebomis das outras Casas podem eventualmente
retirados do transe etc. Ao toque do duplo sino (gã), os filhos de santo da estar vestidos de boubou, à maneira africana, com saias engomadas à baia-
Casa põemMse em fila na entrada do barracão, os atabaques aceleram o ritmo na ou, silnplesmente, de branco. Os clientes fiéis têm por vezes o cuidado
(arrebate), os filhos entram para formar a roda de santo girando em torno de se vestir de branco ou usar alguma cor clara. Os ebomis se diferenciatn
do ixé. Os ebomis entram na frente: primeiro, o chefe de culto (em algumas dos iaôs pelo modo de prender o turbante (ojá ori) sobre a cabeça, deixando
Casas, como naquela de Kilombo, esse já está no barracão); em seguida, as soltas as extremidades do tecido; usam igualmente um tecido (ojá) amarM
equedes, inicialmente as confirmadas segundo sua "idade de santo", depois rado nas ancas ou na altura do peito. Em certas Casas, os iaôs e os abiãs,
delas as "suspensas"; c?egatn, na sequência, os ebomis que têm um cargo contrariamente aos ebmnis que podem usar sapatos, devem dançar desM
ou uma função específicos na Casa; logo após, os outros ebomis. Seguindó 1 calços. Os abiãs que já realizaram o ritual do bori usam o colar de pérolas
a mesma lógica de antiguidade baseada na idade ''no santo", chegam os iaôs/ da cor de seu orixá os iaôs recentemente "feitos" usam o colar que os une
1

quando pertencem ao mesmo barco 7, a ordem de entrada seguirá esta estraM ao orixá (quelê), enquanto os ebomis usam o brajá, um colar composto de
tificação. Vêm em seguida os abiãs e, entre eles, algumas crianças cujos pais diversas voltas, cujas fileiras de pérolas, da cor de seu orixá, são presas a
participam da festa. Em certas Casas, estabeleceM se igualmente urna divisão cada dez centímetros.
por sexo, os homens entram-depois das mulheres seguindo as mes1nas disM Em diversos momentos da festa, a troca de saudações rituais ou troca
tinções. Quanto aos ogãs, eles jamais entram na roda de santo. No decorrer de bênção assinala a posição de cada indivíduo. Aqueles que se encontram
da festa, os filhos de santo de outras Casas podem a priori se juntar à roda, em uma posição inferior na hierarquia devem pedir a bênção aos mais
sempre respeitando tal organização. Em certas Casas, se organizarão duas velhos, beijando suas mãos e curvando~se diante deles. Os mais velhos,
rodas de santo distintas, aquela dos ebornis, colocada 1nais perto do ixé, e por sua vez, respondem beijando suas mãos sem se abaixar. Todos pedem
aquela de iaôs e abiãs, colocada mais para fora. O grau de proximidade em a bênção ao chefe de culto; os iaôs e os abiãs aos ogãs, às equedes e aos
relação ao ixé desenha no espaço o estatuto hierárquico superior dos ebomis. ebomis em geral (aqueles que dançam mas, às vezes, aqueles que faze1n
A cada intervalo entre dois cantos, e quando o chefe de culto ou qualquer parte do público).
É evidente que esses códigos não param aí. A maneira de dançar, de
ser possuído ou não pelo orixá, de responder aos cantos, e tantos outros
7 Grupo de pessoas "feitas" em conjunto. Uma estratificação dos iaôs do mesmo barco opera-
se segundo a ordem de evocação de cada orixá para o qual eles são "fei~os". mmnentos da festa, conferem a cada indivíduo a possibilidade de tornar
128 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS 129

visível e efetivo o lugar que ele ocupa, ou, mesmo, aquele que desejaria Corno indica Manuel de Odé, "o eborni é recebido em qualquer Casa
ocupar na hierarquia. As transgressões cl,esses códigos podem então fun- co1no uma autoridade, como uma pessoa de um nível1nais alto, indepen-
cionar cmno uma tentativa de apropriação ünediata de um outro lugar. A dentemente de seu saber. E, depois, a fofoca fica entre a gente: você viu o
gafe pode assim se tornar um instrumento fundamental na construção das ebomi, ele não sabe nada, o ebomi não sabe se comportar; o'-·ebomi não sabe
identidades individuais. A esse respeito, acontece com frequência de um isso, não sabe aquilo ... ". A xoxação também não poupa os máíS próximos
iaô ignorar um ebomi no momento das saudações; este esquecimento, por e, no trabalho de construção da identidade religiosa, torna-se impiedosa.
vezes voluntário, está, com efeito, na origem de sérios conflitos. Com sua Albani, filha de santo, esposa de Manuel de Odé, conta o incidente ocorri-
gafe, o iaô coloca·se no nível do ebomi. Ofendido, este acusará mais tarde do por ocasião de uma festa: um amigo muito próximo, ogã de uma outra
o iaô de excesso de arrogância: a controvérsia instala-se. A identidade do Casa, ao ser convidado para cantar, tenta fazer caírem transe o pai de santo.
. grupo constrói-se nesses desvios e conflitos individuais. Como o momento era inoportuno, este transe teria ridicularizado este últi-
Os adeptos, vindos de outras Casas, manipulam iguahnente esses có~ mo. Albani explica: "O pai de santo tem que saber o que está acontecendo
digos segundo sua vontade. Por exemplo: Mara, filha de santo, ao explicar na casa dele, ele tem que saber quando neguinho puxa uma cantiga, tem
que ebomi "é aquel~ que dança já calçado", fala das transgressões cometi~ de saber o significado, porque de repente é isso que ele está fazendo, ele tá
das por sua irmã biológica que, ainda iaô, quer se passar por uma ebomi: queimando a casa, xoxando a casa, criticando, tirando sarro da casa e da
"Na nossa Casa, ela dança descalça, na Casa dos outros, ela usa tamanco, cara do pai de santo".
você vê como são as coisas? Outro dia eu disse a ela: deixa sua mãe de Fazer xoxação significa ocupar o lugar do detentor de axé; aquele que
santo ver você na casa dos outros usando tamanco! Não é correto, ela tá acede ou deseja aceder a um nível importante na hierarquia deve se fazer
dando urna de eborni". notar pela aquisição desse saber, dessa competência ritual que o torna uma
A crítica permanente, conhecida como xoxação, dá a medida ao impor pessoa de "fundamento", uma pessoa de axé. Xoxação e hierarquia cami~
um limite aos desvioS. Xoxar é um verbo transitivo cujo objeto pode ser nham lado a lado; aos ebomis, ogãs e equedes reconhece-se certo privilégio
mn acontecimento, um discurso, um ato ou alguém. Fazer xoxação é sub~ nesta atividade de crítica. As festas de candomblé acabam sempre em uma
meter o outro à crítica pelas zombarias ao ridicularizá~ lo. O Dicíonário refeição coletiva durante a qual as "pessoas de axé" instalam-se ao redor
dos Cultos Afro-brasileiros, de Cacciatore (1977), define o verbo xoxar de uma mesa que lhes é exclusiva. "É o momento da fofoca", como diz
como "maldizer", provável alteração do iorubá, assinalando que se trata Manuel, "é uma tradição, existe a mesa dos ogãs e ebomis, só eles podem
de urna definição que não é confirmada nem pelos informantes nem pelos ficar ali, a gente fica ali metendo o pau em todo mundo, a gente conta his~
dicionários de iorubá. Na língua portuguesa do Brasil, o verbo chochar é tórias ... " A 1nesa dos ebomis pode igualmente ser apreendida como fonte
intransitivo e significa tornar "chocho" (ou xoxo). Se nos aproximannos de aquisição do saber. Zoca conta que, ao tentar ouvir essas discussões,
deste substantivo xoxo, ou chocho (que significa se1n suco, seco, sem grão, ela aprende as lendas dos orixás: "Nessas mesas de ogãs e equedes, a mesa
enfraquecido), fazer xoxação ou xoxar poderia então ser traduzido por dos ebomis, eles começam a desafiar uns aos outros, do tipo um desafia
"secar", "enfraquecer o outro" e, neste contexto, "torná-lo sem axé". Como o outro (ato do sotaque): ah, meu pai [o orixá] fez isso com sua mãe [o
bem nota Patrícia Birman (1995), xoxar significa assumir Uln lugar diferen- orixá] ... É aí que eles fazem as fofocas sobre as pessoas e saem as lendas
cial de saber. Como a fofoca, esse espaço está em perpétua circulação. O sobre os orixás, e se a gente consegue ouvir aprende muitas coisas". O
axé, esse saber absoluto do qual ninguém se sente mestre, torna-se então desafio ou sotaque é um jogo malicioso de insultos, de provocações e de
um valor que o autor da xoxação subtrai do outro para dele tomar posse, zmnbarias: a compreensão de seu sentido, nunca explícito, coloca à prova
mesmo que durante alguns instantes. o saber e a competência do interlocutor. A aproximação com a atividade
IJO O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

da xoxação, proposta por Zoca, marca muito betn essa ocupação efêmera
do lugar do saber8 •
A festa coloca em cena a hierarquia, a estrutura da Casa. O trabalho
de construção da identidade do grupo e de cada indivíduo opera-se nesse 2.
jogo de visibilidade da hierarquia, da competência ritual do axé. Beiran-
1 Os serviços rituais
do essa hierarquia religiosa, o cliente, "o outro lado do candomblé", não é
uma peça anexada mas uma peça-pivô; ele é um fio que, atravessando as
atividades cotídianas da Casa, tece redes graças às quais esta se liga ao
exterior. Espectador, o cliente colabora com a mise en scene e sustenta o
jogo no qual encontra-se envolvido.

Executados em geral pelo chefe de culto, os serviços rituais


oferecidos à clientela outorgam a ele diferentes papéis ao
mesmo tempo: adivinho, conselheiro, curandeiro, mágico-
feitiçeiro, iniciador. .. Tal acumulação de papéis, igualmen-
te presente em outros sisten1as religiosos - como na Áfri-
ca (Olivier de Sardan, 1987) ou no Haiti (Métraux, 1958, p.
237)- vem s.u_ayiz?r a primeira linha de partilha desenhada'",~~·,, v 1 , J· o'.--,
~==-==--- rvvv. ~'-''-fi ·--~<.,t''.tu
~r_MaussJ!29. r I entrg_!)l_~g_i_~_<:_r"l_ig_ião 1 Com efeito, na base · (j >·""'
do estabelecimento dessa clivagem encontram-se dois polos,
malefício e sacrifícío entre os quais "se espalha uma massa
1

confusa de fatos". As análises daí decorrentes busca1n classifi-


car esses fatOS sem escapar ao manigueísm~ de início em que
1

o mal se ali~ha do lado da magia, e o bem ~o lado -~-"-E_e_!_i_g_ifto.


Como se viu antes, o estatuto religioso do candmnblé foi
forjado em um contexto particular resultante da associação
constante da produção científica dos pesquisadores (baseada
entre outras nessa clivagem) e da prática dos adeptos. É assim
que o termo mag!_a-'~~~-posto_A..!eligião. de.sli_z_a para o campo
da feitiçaria, recebe o adjetivo "negra" e t~=~-~ _o atrib.:yj:o
~-~----~----------------------·-·· -- .. ----·-·-------·---- ---~
'

I "Em primeiro lugar, os ritos mágicos e os ritos religiosos têm com frequência
agentes diferentes; eles não são efetuados pelos mesmos indivíduos" (Mauss,
8 Esta aproximação foi igualmente assinalada por Birman {I995). 2003, p. 59).
132.. ~ 1().../ O CANDOMBLÉ' IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO.' TRAMAS INEXTRICÁVEIS
)}!' !lJ'
'~r/l'$:.."' ".("~
() • ,.,.{-1 Th
~ S
10
""'ôti/o candomblé "menos tradicwnal", da macumba. Refle2'.".~o _discurso acu- Para Bastide, seguindo aqui de muito perto as formulações de Car·
1"\~11-'<;, 1 ~~adou da.uofos.'!!U:>.~los qu~.o~_g_r_tiJl.().'?J"hg!oso~ buscam se dlferenej;g:, neiro, esses "clandestinos", que dirigem as "macun1bas para os turistas"
. QrjJ1";;}"_, esse deslizamento vem, por outro lado, congelar a Imagem desses cultos (Bastide, 1960, p. 3171 e "comercializam a mística", estão do lado da magia
o '" t.;:.:r .......,
r.}-;,:)'
construi'da de f ora. ofensiva, 1nagia negra. Já os chefes tradicionais ''recusin1~se a praticar a
c<.c,4)} É sem dúvida alguma a Edison Carnei_ro que se deve a encarnação magia" (Bastide, 1958, p. 152). E quando a praticam, trata-se dd'.('magia de
.çY c: mais fiel desse deslizamento. Em seu estudo sobre o candomblé baiano o proteção contra a doença, a infelicidade ou a morte" (idem, p. 1511. Trata·
'
autor coloca~se clarainente do lado das mães de santo nagô e jeje - que, se, pois, de magia branca. Em un1 artigo intitulado "Medicina e Magia nos
personificações da tradição, "realizaram todas as suas obrigações" -para Candmnblés" (Bastide, 1959), esta 1nagia ~ra~ca e inofens~v~ acrescenta-se~,_,., n":.". I~
falar dos pais de santo angola e congo: à religião como u1n elemento da ~~utlCa afro-l;>ras1leua. Sem fazer~~Lo.'.
. "J:< , vrfJJ{: ,
propriamente parte do candomblé, ela ocupa um lugar de apêndrce. Inte· ·' te,,~.
"os 'clandestinos' do menosprezo nagô" que, não tendo passado pelo "processo de
grada ao conjunto das cerimônias, assume um outro sentido, aquele de
'feitura', improvisaram-se 'aprendendo um canto aqui e lá' como dizem os chefes
nagô e jeje". A linha de partilha, sustentada por uma divisão sexual da ativida~
uma terapêutica religiosa. Deixando de lado, e1n um primeiro momento,
de religiosa, é então traçada entre essas "velhas senhoras respeitáveis" e esses a ideia de uma oposição absoluta entre religião e magia, Bastide sugere que
pais que, fascinados pela figura delas, acabam por assumir "atitudes femininas" 2 : Q_, as representações e práticas do candomblé- algumas mais próximas da
"São esses pais que mais têm concorrido para a desmoralização dos candomblés
I
5~i) ',
VJ \)"' magia, outras da religião- entrelaçam-se na verdade em estratos super-

~
entregandO.·S.e à prátic.a .do ~Urandeirismo e da feitiçaria- por dinheiro. Q,§_CaSQ.S (··.'. rj))"/J postos. Essa sobreposição permite imaginar, na sequência, que se possa \ , ,l
I ~~randem~m~ e fe1t1çana nos candomb!~.l!:~.sôs e jêj~~ sã9 raros,_ mas, quando .:r''' \ atingir as ~da~~l~-~u~~ntica~_g~!:..~!.igi_!?_~frl~E:5 1 sendo que as IO~Si-~~<.:; ~-;~
correm, se hm1tam a práticas mágicas inócuas, no máximo um chá de plantas
medicinais ou um despacho (ébó) para Exu, na encruzilhada mais próxima. Esta práticas mágicas do candomblé permanecem submetidas a esta última: "/- a..<.n:." ,,,_,c ac
oferenda a Exu, outrora muito comum, não se faz mais nos candomblé nagôs e religião domina a 1nagia". A finalidade essencial do candomblé, esclarece
jêjes, que homenageiam o orixá em cerimônia intramuros. Entretanto, conhecem- então o autor, é de ('fazer que os homens participem do-mundo misterioso 11·-,;....<C:
se casos de pais que se enriqueceram nessas atividades, pois que não têm- como
no caso das mães nagôs e jêjes - a desculpa da sinceridade da crença na sua efi.
dos deuses pelo êxtase 1nístíco~'. Nos cultos de origem ameríndia e banto, b<V),J-o
cácia. Daí que se encontrem, vez por outra, nesta ou naquela encruzilhada, nesta considerados como "religiões dç_con:;m.m-..o", "a m_~g~~~ª9_1EiP:~-·~~i!Q~' e ' ''
\..-l"i.d..t.:O$

ou naquela estrada pouco transitada, caveiras de bode ou cabeças de galinha em os "deuses são utilizados para benefício dos vivos" (idem, p. 1551· Quando
•. --·------··------~··----~-~.--"-''''' '"'""" .. "'.
azeite de dendê, bonecas picadas de alfinetes, moedas de cobre e tiras de pano na estratificação do entrelace entre magia e religião a primeira perma-
vermelho com o fim de fazer mal a determinada pessoa; daí que se encontrem, nos
nece subordinada à segunda, Bastide aproxima-se da ideia durkeimiana
ambulatórios e clínicas, pessoaS doentes das garrafadas de algum pai ou derreadas
das surras colossais que foram forçadas a tomar, com cansanção brabo, para esta
de Igreja para concluir que o candomblé, tendendo a uma purificação de
ou aquela moléstia. São a obra dos clandestinos" (Carneiro, 1967, p. 98). certos elementos, torna-se essenciahnente "uma igreja convertida ao culto
dos deuses".
Tudo está aí: a_feitiçaria co.m....seus ob~§ de malefício, o feitiçei!Q:. Mistura, imbricação, entrelace, como se pode, na prática cotidiana
~~tão com s.~~~!_l.!iquectme.ut.Q ili.cito. do candomblé, apreender a continuidade entre os polos magia e religião?
A atividade dos chefes de culto junto a sua clientela pode fornecer aqui
alguns elementos de resposta. O cliente, em seu percurso, atravessa dife- "' &
Como indica Patrícia Birman (I995), encontra-se aqui um outro elemento de acusaç~
2
rentes conjuntos de práticas e de representações nos quais magia e reli- -~"~-·~, t.-
a homosse~~!~~~.::---~~-Ç{l-J?.!!~§.-~l!l,tg,_,!~!~J.E:.ado por Carneiro como sinal de t>.'t.\W·~~~J ,")
~~1!2.· Magia e "desvio sexual" unem-se para acentuar a imagem de seres perniciosos e gião, à maneira de fios de uma tessitura,~trecruzam-se e entrelaca...llJ.:..S.e. l~;·~D/::_ V..r.i·
imorais atribuída aos pais de santo angpJ;:u~_.QQ.:U!ill.:. Magia e religião são aqui tomadas como uma dupla ideológica. Elas não ~fj)
e5'
IJ4 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS IJ5

se constituem, pois, em recurso analítico que permita assinalar rupturas A esse respeito, de que modo esses dois chefes de culto compõem esses
ou estabelecer fronteiras. diferentes métodos? Yatemin, mãe de santo há mais de vinte anos, destaca
seus dons pessoais e a ajuda dos orixás como fatores determinantes de seu
JOGO DE BÚZIOS, EBÓ, OFERENDAS E BORI sucesso na leitura das configurações:

O jogo de búzios é, certamente, a prática do candomblé mais notória, Pra jogar búzios, tem que ter um pouco de vidência, de intuição[ ... ] Eu me sinto
sempre acessorada pelos meus santos, meus orixás, e também pelo santo que a
como afirma Peter Fry: "raros são os brasileiros que nunca foram aos pés
pessoa carrega que é muito importante[ ... ] Então, isso depende de muita coisa,
de um pai de santo para jogar búzios ou para tentar resolver um problema entra um pouco de vidência, um pouco de intuição, entra um pouco da queda dos
grave" (Fry, 1984, p. 41). Jogo divinatório, ele compõe-se de 16 búzios que, búzios, das figuras que eles formam. A queda dos búzios é a fala dos santos, se a
u;ma vez serrados sobre sua face convexa, têm dois lados: o lado serrado gente não entender bem a fala dos santos, a gente faz burrada em cima de burrada;
é o lado "aberto" em oposição ao outro, considerado como "fechado". Os a gente tem que entender bem a fala dos santos, então tem que ter uma super
atenção e uma intuição muito boa, muito boa mesmo.
búzios são jogados por diversas vezes pelo chefe de culto, ou por uma pes~
soa habilitada a fazê-lo (um ebomi, por exemplo), em geral em uma cesta Manuelzinho, jovem pai de santo para quem o jogo de búzios represen~
circundada por colares e objetos muito variados, como pedras, conchas, ta o estandarte de sua "tradição africana", privilegia a lógica matemática
cruzes, moedas etc. Esse dispositivo é sempre colocado entre o cliente e a da composição dos odus, o conhecimento e a memorização das histórias
pessoa que, manipulando o jogo, o interpretará. 1níticas. Pode-se aqui notar sua oposição a outros métodos, como aquele
Os métodos de leitura dos búzios varia1n de uma Casa para outra, de empregado por Yatenün, considerados por ele como fora dessa "tradição":
uma pessoa para outra, e podem aparecer no discurso dos chefes de culto
como um sinal distintivo de sua identidade. Falar~seMá então de combina~ Eu sou um pouco avesso a falar sobre o método do jogo de búzios ou do opelê ifá,
porque eu sei que é uma coisa [... ]A gente tem que guardar aquele segredo [... J
ções entre o número de búzios que caem "abertos" ou "fechados", cada uma
Como eu vou te explicar sem me comprometer muito? Existe !... J Bom, é o seguiu~
destas combinações (chamadas odu) correspondendo à "voz" de um orixá, te: é um sistema matemático; então, de acordo com o número que ele representa,
a u1na história mítica cuja trama revelaria a história pessoal do cliente, o você sabe qual é o odu, então você faz a conjunção dos odus, aí vai determinar os
tipo de problema que ele traz, suas causas e suas soluções. Há igualmente outros odus, porque tem os odus primários, secundários [... J É pelo sistema binário:
configurações geométricas, chamadas queda, formadas segundo a manei~ 2X2"'4, 4X4""I6, I 6xi 6"'25 6, 256xr6"'4096, 4096x16=6535 6 que é o número de odus
existentes, entendeu? Então, é através do número de búzios que caem ali aberto e
ra pela qual os búzios se colocam. Enfim, evoca-se também a intuição,
fechado que você determina o odu, é um sistema roo% matemático. É lógico que
a clarividência, o dom etc. 3 A evocação de outros métodos divinatórios entra intuição. Embora o odu já conte toda a história da vida daquela pessoa, nos
como aquele do colar opelê ifá, desaparecido no Brasil 4 , as tentativas de versos de ifá, precisa ter intuição também. Através desses versos você vai contar a
aperfeiçoamento da leitura das combinações matemáticas (os odus) acres~ vida da pessoa e você vai acertar as respostas sem perigo nenhum de errar. Então
existe um código, é como se você discasse um número de telefone: se você já viu
cida à pesquisa das histórias míticas correspondentes aparecem hoje como
aquele código você já sabe a história do cara. É hiperfácil jogar búzios, só que tem
elementos de afirmação de uma reafricanização do candmnblés.
de ter uma memória extraordinária, pra se lembrar de 65 mil e tantos versos, né?
Os versos vão contar uma história e você vai interpretar essa história pra vida
3 Para uma análise detalhada dos métodos de leitura do jogo de búzios, veja-se o estudo de daquela pessoa, seria isso. Agora, esse negócio de búzios que ficaram em pé ou de
Júlio Braga (1988). lado, isso aí eu desconheço; búzios que saíram na forma de uma borboleta, sei lá o
4 O artigo de Bastide e Verger (1953), que evoca tal desaparecimento, apresenta uma descri- que mais, desconheço isso. Eu ouço as pessoas falarem: deu uma estrela, deu uma
ção dos dois métodos: búzios e opelê ifá. cruz, isso pra mim não quer dizer nada. Na tradição africana, isso não existe, não.
5 Para esta questão, ver Gonçalves Dias, 1995, e Prandi, 1991, 1994.
!)6 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVJMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS I37

O jogo de búzios, assün como todos os serviços propostos aos clientes, de axé, a interpretação simbólica do pagamento pode fazer referência à ne-
são em geral pagos e representam um supor~e financeiro importante para cessidade de "proteger e fortificar" com esse axé a pessoa que "se expõe" e "se
as Casas e para um grande número de chefes de culto. Seus rendimentos enfraquece~· ao 1nanipular o jogo ou ao realizar os rituais. Essa interpretação
são igualmente garantidos pela execução de rituais destinados aos filhos pode igualmente ser apreendida como uma proteção contra as críticas de
de santo da Casa: ''obrigações", "feitura", bori etc. Em certos lugares de ~'comercialização da religião". Com·efeito, a "profissionalízação":dos chefes
culto, os 1nembros da Casa podem ser solicitados no sentido de cotizar de culto oscila nesse equilíbrio sutil estabelecido pela detenção de axé: tor-
mensalmente a fim de garantir os gastos de funcionamento. Durante a nar visível seu poder, expresso pela capacidade de viver de suas atividades
minha pesquisa de campo, todos os chefes de culto indicavam-me como no candomblé, ao mesn1o tempo em que se demonstra certa "ética religiosa"
fonte de renda suas atividades no candomblé. Mesmo que isso não fosse em face dessa "comercialização". Cmn frequência se ouvem acusações como
constante para alguns, expor essa "profissionalização" parecia, antes, refor~ "Fulano fez do orixá, de sua própria religião, um comércio!".
çar sua capacidade de reunir um grande número de clientes, de deter um Se as causas dos problemas trazidos pelos clientes provêm de suas
certo poder, de acumular axé. Manuel de Odé, por exemplo, admite que relações sociais, como uma inveja ou uma traição, este universo social
em períodos "menos propícios, quando um menor número de pessoas vêm pode ser associado à dimensão simbólica: um mau~olhado, um "trabalho"
na Casa", ele ocupa~se da revenda de computadores usados, enquanto sua ou um "feitiço" praticados contra o cliente; a aproximação de um egum,
esposa, Albani, trabalha em um pequeno salão de beleza de bairro. Sílvio a alma de um morto, frequentemente a de mn parente, de um amigo etc.
de Oxóssi, mesmo que bem estabelecido em suas atividades de chefe de Na esfera religiosa, os problemas do cliente podem ser devidos a um en-
culto, confessa não afastar a possibilidade de realizar de tempos em tempos fraquecimento de seu ori, o centro de sua cabeça, mas iguahnente à ação
pequenos trabalhos de pedreiro. Kilombo e Yatemin, mais velhos que os direta dos orixás: uma disputa entre dois ou três orixás para reinar sobre
demais e exercendo há muito tempo a atividade de chefes de culto, acumu~ sua cabeça; o pedido ou a exigência de seu orixá para que ele seja ~'feito"
laram, contudo, em certoS períodos, outras atividades. Quando mais jovem, etc. No caso do cliente já "feito", as causas em geral se relacionam com
Kilombo instalou-se em uma pequena propriedade rurallna periferia sul da uma falha de seu pai de santo: uma má atribuição do orixá principal para
Grande São Paulo), onde mantinha sua Casa de candomblé, recentemente o qual ele foi "feito"; um erro na determinação da configuração hierárquica
instalada, e uma pequena fábrica de telhas e de tijolos. Yatemin, no inicio do conjunto do orixá que compõe sua "trama pessoal" (enredo), e assim por
de sua carreira de mãe de santo, dirigia o departamento financeiro de uma diante. Ao descobrir as causas, o jogo de búzios prescreve, inevitavelmen~
pequena rede de hotéis. Segunçlo ela, "no nascimento de meu primeiro fi~ te, o ritual propício à resolução do problema.
lho, o santo obrigou~me a me dedicar inteiramente às coisas do orixá. Tive Os ebós, as oferendas e os boris formam um primeiro conjunto de rituais
então de abandonar meu cargo na época". Hoje, ela vive de suas atividades de que dispõe o chefe de culto. No mercado religioso, cada grupo produz
de chefe de culto e do salário de seu marido, policial. uma cmnposição particular de diferentes conjuntos de práticas rituais para
A maioria dos chefes de culto estipula uma tarifa prévia para os serviços construir sua própria marca. Se esse primeiro conjunto assinala a especi~
rituais, tarifa que pode variar de acordo "com a cara do cliente"- diz~se ficidade do candomblé, a prática desses rituais não lhe é exclusiva; outros
com frequência que o "cliente rico cobre o pobre" -i outros mais raros, dei~
1
grupos religiosos, con1o a umbanda, pode1n igualmente dele fazer uso.
xam que a clientela determine a tarifa 6 , Sendo o dinheiro considerado fonte Derivados da estrutura ritual que compõe a "feitura do santo" em que,
em sua inter~relação 1 estes rituais se encontram dirigidos para uma fina~
6 Por ocasião de minha pesquisa de campo, as tarifas do jogo de búzios, convertidos em euros, lidade relativa a essa "feitura", eles assumem um caráter mais autônomoi
podiam variar de 10 a 30 euros. ao tenderem a uma grande diversificação, dirigem~se a uma finalidade
IJ8 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS IJ9

imediata e absoluta, já que a ação ritual tem cmno eixo a pessoa do cliente. zado. Para livrar-se de um egum (alma de um morto que permanece muito
A sequência de rituais da "feitura do santq'', operando~se por uma série próximo da pessoa) recorre-se a um ebó que o expulsará. Diz-se que os
de metáforas e de metonímias, expressa a configuração da ligação entre ebós são inumeráveis,~ue h_á um específic() par~_sg_da ,\illQ~de problema,
a pessoa e seu orixá personalizado, a ação ritual centra-se aqui sobre essa Como apontamos num artigo IOpipari e Timbert, r994J, o desenrolar
relação adepto-orixá. No desenrolar dos serviços rituais, as metáforas e desses ebós segue uma estrutura de base comum: eles
metonímias expressam, antes, um desejo de ação, a ação ritual centrando-
se desta feita na resolução imediata do problema. realizam-se na maior parte do tempo sobre um eixo vertical, aquele do corpo do~
Nesse contexto, o termo ebó aproxima-se das práticas rituais pragmá- cliente. O pai de santo, entoando palavras e cantigas dirigidas aos orixás, passa da
cabeça aos pés do cliente ingredientes relativos aos seus problemas e aos orixás
ticas, separadas das atividades próprias à "feitura" ou daquelas ligadas aos
invocados. Farinhas, animais sacrificados1 grãos preparados para essa finalidade,
orixás. Como diz um pai de santo, velas, legumes etc., acumulam-se em seguida em um prato colocado no chão.

o ebó é qualquer feitiço, gualquer magia que você faça, o ato de preparar essas
A repetição desse movimento seguindo um eixo vertical que assinala
comidas e de oferecer; é um ebó. A tradução da palavra é magia, é feitiço, a ati-
vidade de fazer e oferecer, é um ebó, L~i'!f.!!E~-~~6, ~~Q.er _!!._tg~yela __é a purificação, o alívio dos males, a proteção do corpo etc., assim como a
um ebó, jogar uma moeda na rua é um ebó, jogar farofa de Exu [preparada com acumulação dos ingredientes no prato compondo a oferenda, constituem
Ta;inha de mandioca] na esquina ouÍr nu~ lug~,_l.!!!!1l~t.C<.!..9.h9~_i_~.i! ...9..1UJ:\:!!!?:._rio, os invariantes significativos desse rituaF.
~~~-~~ ba~~?!....~2~Ç,-~;S.t.?J~-??~P:4~. §~~Mcé)p§!:gi<) [... ]Um sacrifício, pra essa Na cadeia ritual da "feitura", o número de Ebós 8 vê-se limitado, de-
coisa específica, pra você conseguir alguma coisa de imediato, é um ebó. Isso aí
está separado das atividades dos rituais pro orixá, ritual de iniciação, ritual de bori,
pendendo da Casa, a uma série específica de cinco ou seis. Como serviço
ritual de preparo de cabeça. Agora, pra uma coisa urgente ou rápida, é um ebó em ritual, está-se diante de uma multiplicidade de ebós deter.l!J.J[!!!do.~_e.m
todos os sentidos[ ... ] (Manuel de Odé, pai de santo). grande p~rte pela criatividade pessoal de c:_a~..'!.P.!li d.!êMJ:!..tQ para es~r
~-~;~bi~;; ~;-dÚ;r-;;~;;-;;;~edi~esse
-~---~-~---~- ···--·~·-- -~-"·-···
.. ..
processo de diversificação,
As oferendas de alimentos, flores ou animais sacrificados são iguahnen- outros conjuntos de práticas e de representações podetn igualmente inter-
te chamadas presentes ou agrados feitos a um orixá. Se o problema é, por vir: notam-se então elementos vindos do catolicismo popular, de práticas
exemplo, um 1nal de amor, faz-se um presente, um agrado a Oxum, orixá do esotéricas diversas etc. Essa criatividade pode operar como sinal diacrítico
amor. Se a origetn do problema do cliente é uma disputa entre os orixás, um da identidade do chefe de culto.
presente a estes pode ser prescrito a fim de acalmá-los. Para os problemas Além dos ebós e das oferendas (presente ou agrado feito aos orixás), po-
de dinheiro, prepara-se um presente para Exu, e assim por diante. dem ser igualmente prescritos rituais de oferenda à cabeça lori) do cliente.
Se, por um lado, ebó, designa de modo geral todo tipo de oferenda, sa- O ori corresponde ao mesmo tempo a um lugar preciso, o alto ou o interior
crifício e alimento, por outro lado, tendo como eixo o corpo do cliente, ele da cabeça, e a uma "entidade" a que se presta um culto. A natureza dessa
consiste, mais especificamente, em um ritual de solicitação e de oferenda "entidade" varia de acordo com diferentes interpretações: ela pode ser
aos orixás, de purificação do cliente, de alívio de todos os seus males etc. considerada como sendo o ponto de vitalidade do indivíduo, sua "alma'',
Quando as dificuldades do cliente são devidas a um "trabalho feito" !feiti-
çaria lançada contra ele), o ritual prescrito será em geral um ebó de limpeza
ou purificação com a finalidade ünediata de neutralizar esse "trabalho" e 7 Veja-se a este respeito o filme Ebó: sacrifi_ce, offrande et nourriture (Opipari e Timbert,
I99J).
de proteger o cliente. Se este tem problemas de dinheiro ou procura um 8 Neste capítulo escreverei Ebó e Bori para designar estes dois elos da cadeia ritual da "fei-
emprego, um ebó para atrair dinheiro e abrir seus caminhos será preconi- tura", e escreverei ebó e bori para designar os serviços rituais destinados à clientela.
140 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS 141

seu "anjo da guarda", sua "faísca divina" ou, ainda, uma divindade (orixáj • Estabilidade: das emoções, da vida social (casamento, emprego,
que o habita. O orixá que toma posse do corpo da pessoa é o guardião, o família ... ).
senhor do ori. É a este lugar preciso, considerado como a sede do orixá1 que • Fertilização: do pensamento, das ideias.
serão destinados as oferendas e os sacrifícios. • Adiamento: da dívida com o orixá, da "feitura do s-ahto".
Quando se nota um certo enfraquecimento do ori, este pode ser revita- A realização de um bori compreende a cada vez elementos:êspecíficos
lizado pela execução do bori. Cmno explica uma mãe de santo, a suas finalidades; são, pois, como os ebós, muito variados. De acordo
com um critério de complexidade ritual, em que a presença ou não do
bori, ou obori, é "dar de comer à cabeça da pessoa"; para isso, não é preciso ser "fei-
to", porque muitos homens de negócios me solicitam e eu os coloco em reclusão
sacrifício animal desempenha um papel determinante, fala-se de bori frio
para o obori. Quando a pessoa tem o espírito muito cansado, esgotado, quando quando esse sacrifício está ausente; quando a oferenda ao ori se limita a
passou por problemas sérios ou há tempos não tira férias; quando está esgotada, uma noz-de-cola (obi) chama-se um bori de água; se se trata de "comidas
quando seu espírito está todo embaralhado, enfim, um tipo de estresse realmente secas" {farinhas, grãos, raízes, frutos, peixe ... ), ele é chatnado um bori seco.
muito sério, então ela é posta em reclusão para fazer, para dar um bori à pessoa; isto
O bori é quente quando o sacrifício de um pombo ocorre; é grande ou
é dar comida à sua cabeça, a pessoa se refaz rapidamente (Yatemin, mãe de santo).
completo quando comporta um número maior de elementos e de animais
Para Manuel de Odé, sacrificados. Os termos "frio", ''quente", "grande" ou "completo" fundonatn
igualmente como metáfora da finalidade a que se destina o bori: o frio para
bori ou obori significa que se dá de comer ao ori, não é nada mais do que isso, isso
refrescar, aliviar; o quente para limpar, fertilizar; o grande ou c01npleto
acaba por ser um preparo para sua cabeça, para receber o orixá ou para receber
novas coisas, coisas positivas, porque seu ori está alimentado, recebeu um agrado. para equilibrar a pessoa em sua relação com seu orixá, para adiar a dívida
Na verdade, isto acaba por ser um ebó para o indivíduo, para que você tenha boa com ele ou, ainda, para protelar a ''feitura".
cabeça, para que sua cabeça esteja bem em termos espirituais e para que você Assim c01no na cadeia ritual da feitura, na qual o Bori é precedido por
progrida na vida, nada mais do que isso. Ele pode ser realizado como um ebó, pode
uma série de Ebós e de banhos, a realização dos boris cotno serviço ritual
ser realizado como preparação para fazer o orixá, pode ser realizado para que você
obtenha alguma coisa. Se você quer passar no vestibular, posso fazer isso, faço para
pressupõe uma purificação preliminar, esta última podendo ir do ato de
você um bori, seu o ri ficará bem, bem equilibrado em energia, espiritualmente, aspergir a cabeça com água (como na oferenda de um obi) à realização de
para que você esteja bem e faça um bom vestibular. Se você quer concluir um bom um ebó, passando pela lavagem da cabeça ou por um banho completo,
trabalho, faço para você um bori, você fará um agrado a seu ori, estará bem para com folhas preparadas para esse fim (amassi). Encontra-se, aqui, no bori
concluir esse trabalho.
como serviço ritual, o mesmo princípio de encadeamento do conjunto de
Se com frequência se atribui uma função terapêutica ao bori 9, esta nªo rituais que compõem a "feitura". Com efeito, a derivação de um conjunto
\\ s~imita ao domínio médico, mas abraça amplamente as esferas física, a outro é, antes, sintagmática; ela origina-se menos de elementos isolados
\~uica, reli~sa e social da vida da pessoa. É como se pode observar nos da cadeia e mais das sequências produtoras de sentidos.
termos empregados pelos adeptos para definir suas funções: Após a purificação prelüninar, é o bori, o "dar de c01ner ao ori, ou à
• Refrescamento: da cabeça, do espírito. cabeça", que começa efetivamente. Realizados de modo geral no roncó 10
• Equilíbrio: das emoções, dos nervos, da cabeça da pessoa, da pessoa (quarto ritual), os boris seguem uma estruturà de base comum, em que se
com seu orixá. expressam de modo metafórico e metonímico os diferentes sentidos do
• "Limpeza" (no sentido de purificação): do pensamento, do ori. ritual. Vestida de branco, a pessoa pennanece sentada sobre uma esteira

9 Cf. Querino, I938, p. 63, e Bastide, I9S8, p. 26. I o Também chamado camarinha ou aliaxé.
142 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E REUGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS 143

coberta com um tecido branco sob a qual podem ter sido depositadas fo- etn seguida, é o bori quente e, nesta categoria, é o bori grande ou completo
lhas escolhidas para essa finalidade. A seu redor, são colocados os pratos que está mais próximo da feitura. O quadro abaixo mostra essa gradação:
e os ingredientes que são ofertados ao ori e ao ibá-ori, o altar erguido para
seu ori, sobre o qual pode ser derramado o sangue dos animais sacrifica- 1-1 axé
dos. Essas oferendas são apresentadas ao ori pelo chefe de culto que, pelo
oráculo de noz-de-cola, interroga em seguida pedindo sua aprovação 11 • Em jogo de búzios
caso afirmativo, o ritual pode terminar ali ou continuar com a oferenda
de animais sacrificados. Seja como for, o ori e o ibá-ori formam o núcleo ebó, presentes ...
central do ato ritual.
Se a realização dos boris não pressupõe forçosamente um engajamento bori de água [obi)
do cliente no culto, ela pode contudo marcar uma 1nudança no seu estatu- bori frio ( bori seco
to. Com efeito, essa di;rersificação estabelece-se em um grau de maior ou
menor proximidade com o ritual da "feitura", em que o cliente pode ser con~
siderado como estando mais ou menos próximo do axé da Casa, ou, ainda,
como tendo adquirido ou não axé. Como explica uma equede, "ele passa a
1 bori quente
ao 1nenos um anilnal sacrificado
( bori grande ou completo

ter um axé se ele tiver um obi [noz~de-cola], porque um obi já é uma coisa (+) axé [feitura)
sagrada; ele passa a ter axé se tiver um bori f... ], a pessoa que faz um ebó, ela
não tem axé ainda, começa a ter axé a partir de um obi, de um bori e, depois, A realização dos rituais de oferenda ao ori (os boris)- nessa escala, os
isso se reforça tnais, fazendo o santo". Ter mais ou n1enos axé pode ser con~ mais próximos da "feitura" - aproximando o cliente do axé da Casa, po-
siderado como uma gradúação que marca uma proximidade do laço que a dem eventualmente acarretar um mudança de seu estatuto. O cliente não
"feitura" opera com o orixá. Os borís são então colocados etn uma escala na iniciado \não "feito") pode se tornar um abiã, candidato à "feitura", passan-
qual o bori frio seria o mais afastado da "feitura"; no interior deste último, do então para a categoria dos filhos de santo. Ao realizar o bori, o cliente
uma outra gradação: o bori de água seria menos próximo que o bori seco; já "feito", vindo de outra Casa, pode por sua vez ser adotado como novo
filho de santo, a partir do momento em que deixar sua Casa de filiação.
I I A noz-de-cola é cortada em quatro pedaços que serão jogados em um prato; a combinação
Muito usuais, essas mudanças de Casa, verdadeiros elementos reveladores
das partes, em função da maneira como caem ("abertas" ou "fechadas"), determinará ares·
posta. Por exemplo: de conflito, colocam em evidência as estratégias dos chefes de culto na
a) quatro abertos: aláfia, sim, posição muito favorável, aceitação do sacrifício, da oferenda. legitimação e no reconhecimento de seu prestígio. Quando já "feitos", os
b) três abertos e um fechado: não, posição desfavorável; o chefe de culto deve perguntar laços desses clientes com a nova Casa podem ser posteriormente reforça~
ao orixá ou ao ori se falta alguma coisa, se há algo de errado na oferenda ou no sacrifício
dos quando tiverem realizado os rituais de renovação e de atualização da
apresentado; para isso, ele enumera cada elemento, jogando em seguida os pedaços de obi
para obter respostas, sim ou não. "feitura", as "obrigações".
c) dois abertos e dois fechados: sim, posição favorável, mas o chefe de culto pode jogar A separação, de mn lado, entre o Ebó e o Bori, como elos da cadeia ri-
novamente os pedaços para obter confirmação. tual da "feitura", e, de outro, entre ebó e bori como serviços destinados à
d) um aberto e três fechados: não, posição desfavorável; o chefe de culto procede como no
caso do item (b ).
clientela, apresenta-se de modo bastante marcado na prática ritual. A este
e) quatro fechados: não, posição desfavorável. O chefe de culto deve proceder como no item respeito, quando u1na pessoa, que se tornou abiã ou filho de santo da Casa,
{b), ou, ainda, recorrer a outros meios de adivinhação, como o jogo de búzios. após a realização de um bori, decidir ser "feita" ou renovar, atualizar sua
144 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS !45

"feitura" (executando mna ~'obrigação"), os rituais anteriormente realizados da "feitura" de um iaô, proposta de pequenos trabalhos intermitentes aos
não serão em gerallevados·em consideração: já que a cadeia ritual da "feitu~ filhos e aos netos de Kilombo em troca de um pouco de dinheiro etc.
ra" (e, por extensão, da "obrigação") é indecOinponivel, a pessoa, durante sua Dentre os clientes que se1npre permanecem na cat~goria de clientes
reclusão, executará uma nova série de Ebós, um novo Bori, sacrifícios etc. fiéis, é fácil discernir grupos de pessoas que apresentam uma posição
Se o cliente não iniciado (não "feito") pode se tornar um abiã, verifica~ socio-econômica superior àquela dos adeptos e dos chefes de c'~lto. Cmn
se que a permanência de seu estatuto de cliente, na realidade bastante efeito, a crescente participação da classe média no candomblé faz~se bas~
frequente, confere-lhe uma nova qualidade. Tornado cliente fiel ou sim- tante visível na constituição dessa fiel clientela.
patizante, ele tem um laço mais constante com a Casa, participando de Mas essa diferença socioeconômica, entre filhos de santo e clientes,
modo mais constante dos rituais públicos e ajudando de maneira notável não é unicamente visível na sua realidade sociológica; ela está igualmen~
o chefe de culto e outros membros do grupo religioso. . te presente no discurso dos adeptos. Por ocasião de uma discussão entre
Na Casa de Kilombo, a presença dos irmãos Lemos parece~ me a esse alguns filhos de santo da Casa de Kilombo, discussão sobre um seriado
respeito exemplar. Hoi?ens de negócios de cerca de cinquenta anos, eles televisivo que tinha por tema o candomblé", os filhos de santo identifica-
são proprietários de un1 grande escritório de venda e ad1ninistração imo- ram urna distância em relação a sua realidade argumentando: uÉ artificial,
biliária instalado em uma importante avenida de um bairro chique de São a situação da mãe de santo e dos filhos de santo não é real. O rico, no
Paulo. Eles recorre1n, há anos, aos serviços rituais oferecidos por Kílombo. candomblé, é o cliente, o filho de santo é pobre, sempre pobre e sofredor.
Com frequência, Kilombo é chamado para os escritórios para "limpar o [Esse seriado) não mostra a realidade" IRosana, filha de santo).
ambiente", queimando incenso em todos os andares do prédio, praticando De mn outro ponto de vista, na Casa da mãe de santo Yatemin, onde a
pequenos ebós em cada cômodo da agência etc. A pedido dos irmãos Le- presença de um número considerável de adeptos oriundos da classe Inédia
mos, Kilombo instalou acima da porta de entrada do escritório deles um poderia ser aqui mencionada como uma exceção, a afirmação dessa diferen~
pequeno altar dedicado a Cosme e Damião, santos católicos assimilados ça coloca os clientes e1n categorias socioproBssionais rhuito valorizadas:
aos espíritos~criança jerês) dos quais são devotos desde suas primeiras Yatemin e seus filhos de santo, para falar dos clientes da Casa, evocam
experiências na umbanda. Na época das festas dedicadas aos espíritos~ frequentemente os "homens de negócios", os "políticos" e os "artistas".
criança, Kílombo também é chamado para praticar os rituais de oferenda
sobre o altar. Nessa ocasião, os irmãos Lemos vão ao bairro da Casa para CONSULTA COM OS ESPÍRITOS, "TRABALHOs'',
distribuir pequenos presentes,.gulosein1as e doces às crianças. Além des~ FEITIÇOS, FUXICOS ...
ses pequenos serviços, todos os anos realizam na Casa de Kilombo u1n
bori. Segundo eles, "para fortalecer a cabeça, para também descansar um Um segundo método de consulta, que não faz a unanimidade das Casas
pouco - nosso trabalho é muito estressante. Chegamos aqui, ficamos de candomblé, aparece, contudo, de modo bastante frequente no contato
dois dias descansando, recarregamos as baterias; precisamos de uma ca~ direto com os espíritos dos caboclos, e, por vezes, com aqueles dos exus.
beça equilibrada, pensar de modo rápido para vencer nos negócios". Essa Essas consultas podem ser marcadas de modo mais ou menos flexível. A
regularidade na realização do bori não muda seu estatuto, os irmãos Le- clientela, informada sobre o dia da semana em que esses espíritos vêm co~
mos consideram~se como clientes fieis da Casa e são reconhecidos como 1numente possuir o chefe de culto, pode comparecer à sua Casa para esperar
tais por seus membros. Essa fidelidade aparece igualmente nos diferentes uma eventual incorporação. Mas é igualmente possível que a consulta seja
tipos de ajuda que eles trazem para os filhos de santo da casa e, mais par-
ticularmente, para a família próxima do chefe de culto: apadrinhamento I2 "Mãe de santo", TV Manchete.
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS I47

claramente fixada, com uma hora mais ou menos precisa e cmn a quase cerM Leuê, "é o caboclo que traz tudo para o zelador de santo [chefe de culto],
teza da "vinda do espírito". Além disso, os clientes podem consultá-los no ele abre espaço para que os clientes venham a sua casa, ele traz uôuô [di-
decorrer das festas anuais que lhes são consagradas ou, ainda, como pode se nheiro] para a Casa, ele traz a abundância".
dar em certas Casas de candomblé, por ocasião das sessões de consulta coleM Por ocasião das consultas, o chefe de culto, possuído por\;eu caboclo ou
ti va programadas de modo regular, conhecidas como gira, roda ou trabalho. por seu exu, desempenha um papel·de conselheiro, clarividente;···curandei-
No discurso dos adeptos, a formalização dessas práticas pode constituir ro e feiticeiro. Ele realiza rituais de purificação passando suas mãos sobre
um ponto de controvérsias e de críticas. Alguns, alegando que a posse pelo o corpo do cliente (passe), nele assoprando a fumaça de charuto, parti-
espírito não pode ser completamente controlada, assinalarão como prática lhando com ele sua bebida preferida etc. Em nome do espírito, ele pede-lhe
duvidosa o fato de se dar uma consulta com hora marcada. Eles reforçarão oferendas e prescreve a realização dos rituais específicos para todo tipo de
a ideia de autonomia e de soberania dos espíritos em relação às exigências problema. Com cantos particulares a cada espírito, ele faz predições, dá
do mercado, como é o caso daquele pai de santo que recebe seus clientes conselhos para a pessoa etc. A reputação de mágico ou feiticeiro, ao Ines*
possuído por seu exu,_conhecido pelo nome de Seu TrancaM rua: mo tempo valorizada e temida, outorgada a esses espíritos, propagaMse na
oferta de rituais chamados "trabalhos", feitiços e fuxicos.
Com o Seu Tranca~rua é assim: tem pessoas que vêm a semana inteira aqui pra Esses procedimentos rituais podem ser mobilizados pelo chefe de culto
falar com ele, mas não conseguem. Às vezes eu tô assim, por exemplo, jantando,
(possuído ou não pelos espíritos do caboclo e do exu), no intuito de atingir
ele vem, ele é uma entidade assim: ele vem quando ele tem vontade, quando ele
acha que a pessoa está realmente precisando dele ... u1na terceira pessoa. Como o eixo da ação ritual aqui se desloca em dire-
ção da relação entre a pessoa e outrem, a manipulação das forças sobrena-
Zombeteiro, ele acrescenta: "Agora eu, eu conheço pessoas que incorpo* turais instaura batalhas ou alianças entre os seres hutnanos.
ram todo dia: é um tal de sobe santo, desce santo, sobe santo, desce santo ... " Feitiço é, em português, sortilégio, feitiçaria, malefício, encantamen-
(Sílvio, pai de santo). to. O termo fuxico, próxilno de feitiço, assinala certa leveza, um lado
A presença desses espíritos no candomblé, ponto de intersecção com a ' suspeito mas sen1 grande importância. Com efeito, fuxico significa, no
umbanda, tornaMse, para os partidários da reafricanização, o alvo das críM Brasil, boato, artimanha, intriga; ligação amorosa ilícita; uma coisa fei-
ticas sobre a "mistura" e a "impureza". Esses espíritos serão, então, objeto ta 1nuito rapidamente ou, ainda, 1nalfeita. Se os feitiços compreendem
de um progressivo afastamento, justificado por sua suposta incompatibiM rituais por vezes muito complexos, os fuxicos são, em geral, 1nais shn-
lidade com a ''tradição africana". plificados. Os elementos que participam de sua elaboração são prova
Como pude observar, sua presença integrada à estrutura de funcio· de diferentes sistemas simbólicos e ünaginários. Ali encontramos uma
namento de certas Casas pode ser, por outro lado, bastante valorizada. A conjunção de procedimentos que se relacionam com elementos do canM
popularidade desses espíritos junto aos clientes não é negligenciável; eles domblé assim cmno com outros cultos afro-brasileiros, com todo tipo de
tornamMse verdadeiros cartões de visita para a Casa 13 • Como assinala Tata esoterismo, com crenças e práticas derivadas das representações popula-
res e rurais etc.
13 Jocélio Teles dos Santos (1992), em seu estudo sobre a presença do caboclo no candomblé
da Bahia, assinala que certas Casas podem trazer em seu nome aquele do caboclo que
possui seu chefe de culto. Frequentemente, seu nome também vem escrito na entrada da te apagado. Por outro lado, apesar de seu engajamento nessa reafricanização, ele organiza
Casa. Em minha pesquisa de campo, notei que na Casa de Manuel de Odé, pai de santo regularmente uma festa (toque) consagrada aos exus e a seus equivalentes femininos, as
que se esforçava por mudar algumas de suas práticas em busca de reafricanização, o nome pombagiras, espíritos que, à semelhança dos caboclos, são considerados externos à "tradiM
de seu caboclo, Tira-Teima, inscrito inicialmente na fachada da casa, f<;>ra çuidadosamen- ção africana".
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS 149

Sua realização pode intervir de modo comple1nentar em outros rituais Na Casa de Kilombo, por exemplo, os vizinhos vê1n com frequência
como, por exemplo: na realização.de um ebó de limpeza que representa para benzer seus filhos quando estes estão um pouco apáticos, chora~
um contrafeitiço, uma vez aliviado e protegido, o cliente pode decidir mingões, sem apetite ... , sintomas reconhecidos como sendo típicos do
contra-atacar seu agressor realizando por sua vez um feitiço. Se esses pro~ quebranto, e também em razão de pequenos problemas de saúde. Um dia,
cedimentos rituais não intervêm como marcador da mudança de estatuto uma vizinha chega e pede a Kilombo para olhar as lesões escufas que ela
dos clientes, eles podem, contudo, representar um fator de estreitamento te1n sobre a pele. Das axilas ao meio das costas, essas lesões, que ela cha-
de seus laços cmn a Casa. ma cobreiro 14 , causam-lhe muita dor. Kilmnbo examina-a com cuidado e
pergunta se ela já foi ao 1nédico. Ela responde que sim, explicando que a
POÇÕES, REZAS, BENZEDURAS ... pomada que lhe foi receitada, muito cara, assinala ela, não deu nenhum
resultado. Kilombo diz que se trata de uma alergia e prescreve o seguinte:
De modo mais difuso, mas não menos recorrente, os pais de santo podem "Você pega água com enxofre, rala uma noz de coco; se puder encontrar
dar mostras de uma competência para prescrever infusões, dar receitas de folha de cabaça, você vai triturá~ la; se não você pode pegar confrei moí~
poções, efetuar rezas, benzer, a fim de resolver pequenos problemas de saú~ do, faça um suco desta mistura e passe sobre as lesões". Ela lhe agradece
de, de retirar o quebranto (mau-olhado), de estabelecer uma proteção etc. perguntando quanto deve. Kilombo sorri, bate três vezes sobre o batente
Como essas práticas não são vistas como especificidade do candomblé, da porta do barracão e lhe sugere trazer um bolo para a "festa de Cosme e
elas relacionam-se antes com terapias ligadas ao catolicismo e à mediei~ Damião" (festa dedicada aos espíritos-criança). Uma semana mais tarde,
na popular. A posição de agentes das forças sobrenaturais ocupada pelos eu encontro a cliente na festa, acompanhada de seus filhos. Ela me diz que
chefes de culto outorga-lhes uma capacidade particular de manipular seu cobreiro se acalmou e me informa que pela prilneira vez participava
elementos que dizem respeito a esses diferentes universos de referência. de uma festa de candomblé.
Com efeito, nota~se que no agenciamento desses universos, cada indiví~ Na experiência cotidiana do pai de santo, as portas -de acesso aos ser-
duo privilegia os elementos mais aptos a legitimar tal capacidade. Por '' viços (jogo de búzios, consulta com um espírito, conselho) e as práticas
exemplo, como indica o pai de santo Sílvio, o fato de pertencer a Oxóssi, rituais disponíveis (ebó, bori, trabalhos, feitiços, rezas, infusões etc.) agen~
o orixá das florestas, dar-lhe-ia uma capacidade especial na manipulação ciam-se e entrecruzam-se. Assim, a especificidade do jogo de búzios, que
das folhas para a fabricação de infusões. Kilombo, por sua vez, atribui a consiste em prescrever os ebós e boris, pode se estender com a prescrição
seu orixá Omolu (a divindade da doença, mas também da cura) sua capa- de um feitiço ou trabalho. Se os espíritos são n1ais aptos para recmnendar
cidade de curar doenças. Lindinha, iá-quequerê na Casa de Kilombo, diz feitiços, e para efetuar gestos de cura ou aconselhar infusões, eles podem
que ela deve a seu erê (espírito-criança) o talento para tirar o quebranto igualmente revelar ao cliente a necessidade da execução de um ebó ou
das crianças. de um bori. Quando o pai de santo preconiza uma infusão ou benze uma
À margem do conjunto dos serviços rituais, uma clientela de proximi~ criança, ele pode ainda sugerir a realização de um ebó, de u1n bori ou de
dade- os vizinhos da Casa, os parentes próximos dos adeptos, os clientes um trabalho. Esses agenciamentos mostram bem as possibilidades de que
fiéis recorre a essas práticas. Os pais de santo quase nunca recebem di- dispõem os chefes de culto para estender cada vez mais seu dmnínío de
nheiro em troca desses pequenos serviços; a ideia de caridade e benevolên~ ação diante dos problemas apresentados por sua clientela:
cia que cerca essas práticas parece colaborar para o crescimento do carisma
que esses últimos procuram entreter. Apesar de seu lugar periférico, essas
práticas constituem uma porta de acesso para as outras atividades da Casa. 14 Cabreiro ou cobrelo: diminutivo de cobra. Nome popular do herpes-zóster.
ISO O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

jogo de búzios espiritos conselhos


I

I 3·
ebó, bori, oferendas feitiços, trabalhos benzeduras, infusões Mise en scene dos serviços rituais

Gostaria, agora, de analísar os serviços rituais propostos à


clientela sob seu aspecto performativo. Como indica John
Beattie (1966), o Iitual, à semelhança da arte, é um tipo de
linguagem que opera por simbolismo e drama, um modo de
dizer as coisas. Performativo, ele diríge"se a mna audiência,
a um público (Turner, 1986); trata"se de um acontecimento
criador que põe em ação essa linguagem. Que coisas são
ditas durante essas performances? Que elementos são esco"
lhidos para dizê" las? Como tais elementos são articulados?

"UM EBÓ DIFERENTE DOS OUTROS":


UM OLHAR SOBRE A REAFRICANIZAÇÃO

Um cliente de cerca de 40 anos, funcionário de uma pequena


empresa, frequenta há um ano a Casa de candomblé de Ma-
nuel de Odé. Ele explica que vai ali com frequência por diver-
sas razões: quando não se sente "1nuito em forma", quando
percebe que o an1biente em seu trabalho "está um pouco carw
regado~·, quando passa por dificuldades financeiras, e assün

por diante. Atravessando um desses períodos difíceis em que


"parece que o dinheiro voa, que a gente não pode segurá~ lo",
ele chega à Casa de Manuel de Odé acompanhado de um
amigo. Este também conhece a Casa, já tendo ali "jogado

J
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRlCÁVElS 153

búzios" com o pai de santo e realizado alguns ebós. O cliente explíca que 1
me diz que, em face da importância desse Exu primordial e do desconhe~
na semana anterior, ele "jogara os búzios" e que, desta vez, ele ali vinha cimento de sua existência no Brasil, ele mostra esse assentamento, e fala
para realizar o ritual lebó) então prescrito. dele somente a um número restrito de pessoas.
Antes de começar o ritual, Manuel de Odé lhe diz: "Não é um ebó como Ele corta então dois pedaços de uma das partes da ·noz-de-cola (obi)
os outros, é um presente, não vou tirar nada de você, não é uma limpeza do prato mastiga um pedaço e me -dá o outro, dizendo-me pará~fazer un1
1

como se diz para todos os ebós, é simplesmente um presente, para abrir pedido. Ele enche um pequeno copo com o sangue da tigela, dele bebe um
a cabeça1 é assim que as boas coisas são atraídas''. Pergunto~lhe então o gole e me propõe em seguida para também beber. Pergunto se se trata de
nome do ebó e ele esclarece: ''É um ebó ori, um ebó para a cabeça, para eié !sangue sacrificial), e ele me responde que é ejé com gim. Pedindo-lhe
fazer com que o inconsciente se harmonize com o consciente". desculpas, explico que não recuso o que me propõe1 mas que é para mim
O ebó começa com um sacrifício a Exu, orixá estreitamente ligado muito difícil beber ejé. Retorquindo que não havia problema, ele me dá a
à adivinhação e aos ebós. O pai de santo, segurando um frango branco, impressão de que a sua proposta importava mais do que outra coisa.
entra no quarto on~e se encontra o jogo de búzios e o assentamento 1 deste Desejando partilhar um pouco de seu axé !no sentido de segredo, mas
orixá. O cliente permanece fora do quarto com seu amigo e eu seremos 1
també1n de força expressa no obi e no ejé), Manuel dava ali mostras de
os únicos a assistir ao ritual. Tmno notas por escrito, sem filmar. Ouço uma confiança sem dúvida alguma tocante no nível pessoal. Mas essa
Manuel no pequeno quarto sacrificar o frango recitando uma reza em voz partilha podia ter igualmente outro sentido: se no decorrer do ritual eu era
muito baixa. De volta ao quintal da Casa, ele dá ao cliente um pedaço de até então a observadora que tmna notas, não me convidava ele agora para
noz-de-cola lobi) para mascar, dizendo-lhe para fazer um pedido; a mesma me tornar testemunha privilegiada de seu axé \igualmente no sentido de
coisa é proposta para seu amigo. Manuel convida~rne então a entrar no "tradição" e, mais precisamente aqui, de "tradição africana"?). Esse "corte"
pequeno quarto. Un1 pouco surpresa ao ver nesse gesto um corte no ritual, no ritual era, realmente, um corte? Do ponto de vista do cliente que ficou
eu o acompanho. de fora com seu amigo eu já não estava avalizando esse papel?
Diante do assentamento de Exu se encontra, em um prato colocado' Ao voltar ao quintal, Manuel joga água na soleira do portão da Casa,
no chão, urna noz-de-cola dividida em quatro pedaços Itrata-se provavel- domínio de Exu, munnurando algumas palavras bem pouco audíveis.
mente de uma consulta oracular para o sacrifício) e mna tigela contendo o Contudo posso distinguir uma consonância próxima do iorubá. No de-
1

sangue do frango sacrificado colocado ao lado. Manuel mostra-me o altar correr do ritual, a cada gesto e a cada palavra, Manuel dá mostras de uma
e, empregando um tom de .alguém que conta um segredo, explica-me que grande concentração e circunspecção.
no Brasil poucos chefes de culto conhecem esse tipo de assentamento. Eu Ele dirige~se ao cliente sentado em um pequeno banco, e começa a
pergunto o que há de especial, e ele me responde que se trata de um "Exu ungir o alto de sua cabeça, sua nuca e suas têmporas com uma substância
prünordial, o primeiro ser espiritual a ter existido na terra". Conta~1ne que gordurosa chamada ori. Trata-se de uma espécie de manteiga empregada
ele foi assentado na África, "na cidade de Exu, Oshogbo, perto da árvore nos rituais de oferenda ou de preparação da cabeça lori), corno os boris.
plantada no buraco pelo qual Exu fugiu do mundo" e acrescenta que um Aliás, noto durante todo esse ebó a utilização reiterada de outros elemen-
"africano" trouxe-lhe de lá. Utilizando o mesmo tom de confidência, ele tos que o aproximam dos boris, o que reforça a definição de ebó ori dada
por Manuel ao início.
Na sequência, ele esfrega os braços do cliente com um tecido branco
Assentamento é o lugar onde se pôs ou fixou, com a ajuda de sacrifícios rituais, os objetos
que em seguida cobrirá sua cabeça, sendo que esta foi aspergida com água
que supõe-se conter a força de um orixá determinado. O assentamento torna-se então o
altar~sede sobre o qual os sacrifícios lhe serão oferecidos. logo depois. Como em todo ritual de oferenda ao ori trata-se de uma pu-
1
I 54 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS I 55

rificação preliminar. O pai de santo corta em seguida uma outra noz-de- reiterada da consulta oracular com a noz-de-cola, assim como a partilha
cola, em quatro pedaços, acima da cabeça do cliente. Proferindo algumas desta última com a assistência, reforça a ideia de um diálogo constante
palavras joga os pedaços de noz-de-cola em uma tigela no chão e observa
1
com as entidades evocadas (Exu e ori), e de comunhão entre as pessoas
atentamente a posição assumida por cada pedaço. Esta operação, repetida presentes. Se, por esses laços, os elementos de fortificação 'do ori eram até
várias vezes, indica uma consulta oracular. Mas Manuel, contrariamente aqui predominantes, o objetivo para o qual tende o ebó express;~·se agora:
a outros pais de santo que anunciam em voz alta a resposta, nada diz. Ele Manuel dá ao cliente o pedaço de noz-de-cola que havia sobrado e o acon-
pega uma parte e a corta em um pequeno pedaço que coloca em seguida
1 selha a guardá-lo constantemente em sua carteira, "para atrair dinheiro".
na boca do cliente. Em seguida, o cliente deve lavar as mãos e os pés com um sabão preto: o
Joga na tigela duas preparações de farinha de mandioca (uma amarela, "sabão de Exu que abre os caminhos e põe dinheiro nas mãos", explica o
misturada com azeite de dendê, a outra branca, misturada com água), pra- pai de santo. Depois disso, o cliente enxuga-se com o tecido branco que,
tos consagrados a Exu. Pronunciando de n1odo quase inaudível algumas na sequência, cobrirá a tigela.
palavras, ele então e~frega os braços e a cabeça do cliente, sempre coberta Acompanhado pelo cliente e segurando a tigela, Manuel entra no pe-
pelo tecido1 com um pombo branco. Em seguida 1 arranca a cabeça do queno quarto onde estão o jogo de búzios e o assentamento de Exu. Con-
pombo deixando o sangue escorrer acima da tigela. Algumas penugens
1
sigo ouvi-lo falar, mas nem por isso compreendo o que diz. Quando volta,
são arrancadas e colocadas sobre o tecido acima da cabeça do cliente. O ele dá um pouco de gim à assistência, convidando a todos a, ao beberem,
pombo é em seguida colocado na tigela. fazere1n um pedido.
Nos boris em que há sacrifício de pombo1 antes de colocar as penugens/ A bebida alcoólica (oti) mais utilizada nos rituais do candomblé é a
derrama~se um pouco de sangue sobre a cabeça e sobre outros pontos pre~ cachaça; aqui, a introdução do gim é um elemento de distinção para Ma-
cisos do corpo da pessoa. Mas aqui a ausência de sangue e a presença do nuel, e ele nos dará as razões disso mais tarde: "na África, Exu não bebe
tecido parecem mais delimitar as diferenças entre bori 1 o "dar de comer 1 cachaça, mas gim". Ele explica ao cliente que a tigela, um presente feito a
à cabeça" con1o reforço e ebó ori o "presente para abrir a cabeça" como'
1 1 1 1 Exu, ficará em seu assentamento até o início da noite, e será em seguida
oferenda e solicitação ao ori e ao orixá Exu. colocada ao pé de uma árvore.
O pai de santo derrama então mel 1 azeite de dendê e sal em três pratos Terminado o ebó, o amigo do cliente começa a falar com o pai de santo
diferentes. Segurando~os uns após os outros diante do rosto do cliente, faz como se fosse um amigo íntimo da Casa. Ele pergunta se as oferendas de
com cada um deles um n1ovimento de cruz, de alto a baixo, em seguida sal, de mel e de azeite de dendê têm uma significação precisa. Manuel
da esquerda para direita. Como nos boris, esse gesto é uma oferenda dos explica que o gesto de oferendas apresenta o mesmo significado: dar de
ingredientes ao ori. Mas se neste a operação s01nente concerne ao cliente/ comer à cabeça. Entretanto, cada ingrediente desempenha um papel di-
aqui ela é igualmente repetida diante do rosto de cada pessoa da assis~ ferente: "Que essa cabeça coma mel e que sua vida seja doce. Que essa
tência. O mel, o azeite de dendê e o sal são em seguida jogados na tigela. cabeça coma azeite de dendê e, como todo alimento que possui azeite de
O tecido branco é então retirado da cabeça do cliente e colocado sobre dendê, que sua vida tenha abundância. Que essa cabeça coma sal porque
a tigela. O pai de santo retoma uma noz-de-cola 1 corta-a em quatro pe~ o sal abre os caminhos".
daços e os joga em seguida em um pequeno prato colocado no chão. Ele O cliente, confidenciando ao pai de santo que já foi a outras Casas de
observa a posição assumida pelos pedaços e escolhe um deles. Este pedaço candomblé, lhe diz que na dele "as coisas parecem diferentes". Manuel ex-
é cortado em outros, que ele dã inicialmente ao cliente, depois à assistên- plica que isso se deve a sua busca por uma maior proximidade com as "ra-
cia para mascar. Os outros pedaços são colocados na tig,ela. A presença ízes africanas". Dedica-se, então, a urna demonstração dessas diferenças:
I 56 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS JNEXTRICÁVEIS IS?

Comigo não tem essa história de um monte de ingredientes que a gente passa no
ele não bebe mais a brasileira e popular cachaça, mas, "como na África",
corpo da pessoa cantando sempre a mesma cantiga. Não, eu rezo em iorubá, porque
cada reza tem seu sentido muito profundo. O Ímportante é cada palavra que se diz, gim, "de preferência importado", como sugere outro pai de santo: "aqui n~ .
não são as cantorias. Eu utilizo poucas coisas porque na África é assim, é mais sim- Brasíl as pessoas têm mania de dar cachaça, penso que}sso of·e··.nde Exu, Vt.f"r::/D~~
ples e, além disso, é mais barato e mais eficaz. Eu verifiquei que funciona melhor porque Exu é uma divindade; vou comprar cachaça para dar a ele? Eu, não J
assim. Na África, todo mundo participa de tudo, por exemplo, você é meu cliente, dou gim e de preferência importado" (Manuelzinho, pai de sant~).
a gente faz o ebó pra você, mas as pessoas que estão assistindo também partici-
''Falar iorubá", "conhecer o sentido das rezas" são trunfos reivindicados
pam, elas recebem alguma coisa também, porque elas dão alguma coisa estando
presentes. Na minha casa é assim, e eu tenho certeza que funciona muito mais do pelos chefes de culto como sinal distintivo de sua "africanidade". Mas os
que com esse monte de ingredientes que a gente nem sabe mais pra que servem .. sussuros de Manuel contrastam aqui com os cantos e palavras cmnumente
proferidos pelos pais de santo, por ocasião dos sacrifícios e dos ebós, não
O cliente parece aquiescer acrescentando que, a cada vez que fez um somente por sua provável proveniência do iorubá (como ele afirma), mas
ebó com ele, Manuel, se sentiu muito bem depois, ''mais leve, mais em sobretudo por sua mise en scêne. Seus sussurros são suficientemente altos
forma". A conversa continua por mais de uma hora sobre os mais variados para que se possa compreender que se trata de uma lingua com sonoridade
assuntos. próxima do iorubá, e suficientemente baixos para que não se possa com~
preender o sentido. Se ele tem o cuidado de fornecer algumas chaves para
em parte aceder a suas significações, ele o faz se distinguindo dos outros
Como assinalei tnais acima, Manuel de Odé engajou~se amplamente pais de santo para se aproximar de seu modelo de "raiz africana'~. w_. k.J. ·. e- 6.;"
em um movimento de depuração de certas práticas rituais em sua Casa, Mas de qual África fala esse ebó? De uma África comunitária onde , ,
seguindo um modelo de reafricanização. Nessa busca pela África, e na a relação de toma-lá-dá-cá co~.-'!.E:!leE_t_el.!!_.:V.ê:S!._"!~Egul.h?.cda
na partilha~h~o WYfUl!J.!
esteira de outros pais de santo de São Paulo, ele privilegia certos elementos com a assistência\ Partilha em que os desejos de cada um (expressos pelo '1--fL. L::z.,~
de sua prática que se tornarão os sinais distintivos de sua identidade. A 1 convite a se fazer pedidos) e a benevolência de Exu toinam~se um bem w..r;:
primeira explicação dada para a natureza do ebó já anuncia o tom dessa' comum. Urna África litúrgica onde a audibilidade peculiar das palavras
distinção: ''Não é um ebó como os outros". Ele o coloca tanto ao lado da proferidas por Manuel com circunspecção coloca em relevo um certo lado
oferenda ("é um presente") como de certa terapêutica ("fazer com que o secreto, acentua esse "sentido profundo" e confere um tom solene a seus
inconsciente se harmonize com o consciente"), ao mesmo te1npo em que atas. Mas se trata igualmente de uma África que, ao reabilitar Exu, torna
o afasta de urna ideia de simples instrumentalização j"não vou retirar nada q!!,gLqll..,Ul.!2.!ll4gico ~fis_~Subordinados a essa liturgia religiosa, esses
de você'l Com a oferenda e as consultas oraculares, trata~se, antes, de a tos adquirem sentido e veem sua eficácia garantida. Pode~se ver aqui que
estabelecer um diálogo com o orixá Exu, e não de reduzi~lo a um simples a depuração empreendida por Manuel segue de muito perto as formulações
instrumento colocado a serviço de uma vontade humana. de Carneiro e Bastide citadas mais acima. Ao se operar na construção de
Exu é o orixá que, sincretizado com o diabo cristão, encarna toda repre~ uma Ílnagem que se quer exclusiva, essa depuração torna plural o rosto
sentação da magia, do malefício, da feitiçaria, enfim, da macumba. "Vindo de uma África que incessantemente é fabricada: um ebó "diferente dos
da África", esse Exu é aqui reabilitado2; o orixá secundário, instrumento de outros", em uma Casa que se quer "diferente das outras", é aparentemente
magia para os homens, cede lugar à ideia do orixá "primordial". Como tal, vivido como tal pelo cliente, porque essa África, posta em ação por Ma~
nuel, não é provavelmente como as outras.
2 Stefania Capone {1999a) mostra bem os diferentes aspectos desse processo de reabilitação
de Exu como valorização da África como tradição.
MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS
r s8 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO I 59

FUXICOS E FEITIÇOS: do pai de santo, Galo Preto permaneceu muito próximo das característi~
UM OLHAR SOBRE A MACUMBA PAULLSTA cas atribuídas a Exu. Essas aproximações já se fazen1 presentes em seus
nomes: Galo Preto faz referência ao anünal sacrificial preferido de Exu,
Maria Helena, mulher de cerca de 40 anos, enfermeira em um hospital de enquanto Sete Cruzeiros, como me explicou mna equede,'leinbra as cruzes
São Paulo, explica que, u1n dia, seu marido decidiu deixá~la se1n lhe dar do ce1nitério, domínio de Omolu. Esses dois caboclos assumem/pois, fun-
nenhuma razão. Segundo ela, seu problema agravou-se desde que percebeu ções bastante precisas: Galo Preto, ao assmnir como qualidade principal
que ele, que já havia posto seus bens en1 nome de uma terceira pessoa, aquela de feiticeiro, é frequentemente convocado, como me explicou a
deixava-a em uma situação económica bastante precária. Durante certo iá-queqnerê da Casa, para "trabalhar para o Mal... Galo Preto também faz
tempo, ela recorreu aos serviços de alguns pais de santo para, de mna só o bem, mas ele gosta de perversidade" (Lindinha).
·vez, tentar resolver seu problema de dinheiro e se vingar de seu marido. Maria Helena chega à Casa de candomblé no início da tarde. Após ter
Após 1ne revelar sua origem baiana, ela confidenciou-me que, apesar de descansado alguns minutos, ela recebe um punhado de quiabos do pai de
conhecer a notoriedade do candomblé em Salvador, tinha certa vergonha santo, que lhe pede para cortá-los bem finos para o preparo de uma oferen-
de recorrer a esse tipo de ajuda: "Na hora do desespero, a gente acaba per~ da. Disposta em u1n prato de barro, essa oferenda é em seguida colocada
dendo a personalidade, a gente se rebaixa, a gente sai procurando solução por Maria Helena em um pequeno quarto, onde se encontram, entre ou~
em qualquer lugar. .. Eu me rebaixei, eu me rebaixo, mas eu preciso me tros, os assentamentos consagrados ao orixá Xangô. Conduzida por un1a
vingar do meu marido". filha de santo, a cliente tira seus sapatos antes de adentrar no quarto (gesto
Seus conta tos com a Casa de Kilombo (indicada por uma filha de santo con1um de respeito quando se entra nos quartos rituais), e ali deposita o
da Casa, uma colega de trabalho) datavam já de alguns meses qnando um prato diante do assentamento de Xangô, o orixá que considera-se governar
terceiro ritual seria realizado. Ela contou-me que o pai de santo, seguindo as a cabeça de seu marido. Kilombo explica~ me mais tarde que ('o orixá da
prescrições do jogo de búzios, já havia realizado um ebó para protegê-la d~ pessoa contra quem a gente faz o feitiço não tetn nada-a ver com isso, a
toda força negativa, para abrir seus caminhos e atrair boas coisas, riqueza; gente deve respeitar sempre esse orixá, tem que louvar esse orixá fazendo
dinheiro etc. Cmn o objetivo de fazer com que seu marido voltasse atrás em essa oferenda, pra ele entender que o trabalho não é contra ele".
sua decisão de deixá~la, Kilombo mobilizara outros meios rituais realizando Assim que o ato de oferenda termina, o pai de santo instala~se no
um fuxico no qual o nome completo da cliente se misturava àquele de seu quintal da Casa, sentando-se em um banquinho, diante da casa dos exus.
marido em um prato que continha algodão e mel. Mas como a situação não Ele abre sua porta, gerahnente fechada com um cadeado, tira seus sapatos
evoluía segundo seu desejo, dominada pela raiva, ela expressou a Kilombo e pede aos filhos de santo que o ajudam para trazer um pequeno tapete, a
seu desejo de vingança. Esse terceiro ritual, explicou ela, diretamente diri~ fim de ali colocar seus pés. Zombeteiro, ele explica: "Eu 'dou espírito' (son
gido contra a pessoa de seu marido, era um feitiço preparado para ser reali- possuído pelo espírito], mas não tenho mais idade para ficar com os pés
zado por Galo Preto, um dos espíritos de caboclo que possui o pai de santo. descalços em um chão únüdo ... ".
Oriundos da experiência anterior de Kilombo na um banda, Galo Preto Maria Helena senta-se em um banquinho diante dele. Com as costas
e um outro caboclo chamado Sete Cruzeiros não foram afastados por oca~ viradas para a assistência e para a entrada da Casa, em seu campo visual
sião da transferência do pai de santo para o candomblé. Com efeito, eles está o pai de santo. Este, sempre sentado, cmneça a bocejar profundamen~
adquiriram um estatuto bastante particular ao se integrarem no conjunto te, soltando um grito muito particular a cada intervalo. Ele então sacode
das divindades e espíritos hoje presentes em sua Casa. Se nessa integração os ombros como se sentisse calafrios e, fosse, ao mesmo tempo, tomado
Sete Cruzeir~s aproximou-se de Omolu, o orixá que rei:qa sobre a cabeça por soluços.
r6o O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS r6r

Alguns minutos depois, um riso, inicialmente leve, invade-o para, em quatro pedaços de papel diferentes. Ali ela deve em seguida inscrever três
seguida, explodir de forma irónica. Sua vo.z muda, a expressão de seu rosto vezes o número seis, "o número da Besta'), explica ele.
torna*se grave e maliciosa, ele projeta o lábio inferior de sua boca para a A filha de santo traz então o galo vivo. Segurando-o na mão, Galo
3
frente: Galo Preto chegou. Os caboclos com frequência se comunicam a Preto enfia um primeiro pedaço de papel, preparado por'Maria Helena,
partir de cantigas que constituem um repertório que lhes é particular. De em seu bico, e um segundo em seu· ânus. Se todo sacrifício encéha em sua
pé, Galo Preto canta para anunciar quem ele é, cmno e por que veio: estrutura um principio de substituição (Mercier, 1993), este gesto parece
aqui torná-lo explícito: o galo e o marido, agora, são um só, a vítima. Com
4
"Caboclo cantou no norte /Jandira escutou no sul a ajuda de uma faca, ele perfura os olhos e a garganta do galo deixando
Eu me chamo é Galo Preto/Caboclo de marab6 5 o sangue escorrer na tigela. A cada perfuração, ele pronuncia o nome da
Atravessei todos os mares /Nas asas do canarinho ''vítima". J&_var o galo à morte significa levar à morte simbólica do marido, f'A<Jt/e
Pra baixo vi uma canoa/Que é feita de pau marinho gu, ainda, as modalidades desse ato,_~~~Jê!ic() os sofrimentos gue s,e álmb;)((q
Na travessia do ~iacho/María me deu a n1ão deseja infligir ao marido.
Prometido é devido/É chegada a ocasião 6". A cabeça do galo é, em seguida, arrancada e colocada na tigela por Galo
Preto. Ele começa a partir daí a decepá-lo, arrancando inicialmente o co-
Em seguida, dirige-se aos filhos de santo que o ajudam, a outros que ração, que disporá em um prato na casa dos exus. Por essa oferenda direta,
simplesmente olhan1, e às outras pessoas que, apenas atravessando o o coração da "vítima)) é assim colocado à disposição da entidade evocada.
quintal, ignora1n praticamente sua presença. Ele dá conselhos a alguns Galo Preto explica que cada gesto é invertido para provocar uma re-
entoando cantigas retomadas por estes, passa em seguida a mão na bar- viravolta na vida da "vítima"; esta última ficará complemente do avesso,
riga de uma mulher grávida (a esposa de Kilombo) predizendo a vinda como o próprio galo. Essa reviravolta, expressão do sofrimento que se
provável de um menino. Seu contato com as pessoas é bastante amigável deseja infligir ao 1narido, é igualmente representada por mna subversão
e familiar. O caboclo desempenha um papel importante na moderação
' dos gestos sacrificiais. Nos sacrifícios, levar o animal à morte é seguido de
dos conflitos e na regulação da vida dos adeptos. Sua vinda deliberada uma recomposição de seu corpo no prato, que então se torna uma oferenda.
("prometido é devido, é chegada a ocasião") para a realização do feitiço, Aqui, essa recomposição instaura a reviravolta. Galo Preto retira as asas do
ritual dirigido contra uma única pessoa, não parece apagar essa função galo para colocá-las de 1nodo invertido na tigela. Em seguida, sem retirar
mais coletiva. suas penas - o que em outros sacrifícios é feito pelo arrancar de algumas
Pede, então, a uma filha de santo para trazer um galo preto previamen- penugens ou de todas as penas -, ele o esfola quase completamente. Ele
te selecionado para o feitiço. Uma tigela de barro (alguidar) é colocada a escolhe dentre as entranhas o fígado para pegar a bolsa de fel. Se em outros
seus pés por outra filha de santo, diante da cliente. Ele pede a esta última sacrifícios urna atenção particular é dada para não estourá-la, aqui, ela . l
para escrever o nome da "vítima", a saber, seu marido, sete vezes, em é perfurada deliberadamente para ter seu conteúdo derramado cuidado- \tf o,,'
samente sobre a tigela. Esse estranho prato que se prepara será ofertad?)j }'{I ~~~Jj\,;
3 A partir deste momento, faço referência a Galo Preto e não mais a Kilombo, posto que é ~x~.~...E1,.ª9-l?.~!3Jhe d~!..Er.é!.~~!L~~a~L!l2~rte~d~~~? ge~t~~~ficiai1, t {~~~~~)··r?··'
assim que a possessão é apreendida pelo público. O sujeito Galo Preto significa: o pai de ~<:Y.~h!1YX!.tÇ_Qª}:~ª.PE2:Y?~~!.h~:=~- :!.~,:. ~ubvers1vo, esse sacriflcw coloca em -\"''".
santo considerado possuído pelo caboclo Galo Preto.
ação o desejo violento de destruição da "vítima".
4 Jandira é o nome de um caboclo feminino.
Marabô é um dos nomes de Exu. Após ter retirado os testículos do galo, ele pede a uma filha de santo
6 Cada conjunto de duas estrofes é cantado duas vezes. para fritá-los no azeite de dendê com un1a parte do peito. A moela é aberta
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS 163

por Galo Preto que a vira do avesso, dizendo: "o cu do cara vai ficar assim, caminho até que alcancemos a rua: todo rastro do feitiço é assim apagado,
feito flor". Seus gestos são de tempos em tempos seguidos de um comen- e a Casa purificada. Conduzo-as até o local determinado por Galo Preto.
tário que explica como a "vítima" ficará. Maria Helena e a filha de santo colocam o feitiço no asfalto no meio do
Galo Preto pede-me então para pegar uma caixa de alfinetes que está cruzamento, acendendo uma vela. De volta ao carro, a filha de santo diz
na casa dos exus. Ao entregá-la, ele me diz: "Meu filho 7 te quer muito bem, para não olharmos para trás. Antés de adentrar a Casa, é preciSo realizar
sabe? Se até agora você só viu o lado do bem, agora você tá podendo ver o um novo ato de purificação: devemos pegar um recipiente com água, fazer
outro lado, porque tem sempre o outro lado". um gesto circular sobre nossas cabeças e jogar um pouco de água atrás de
Galo Preto fecha a moela, virada do avesso, com a ajuda dos alfinetes. nós. Isso feito, a filha de santo asperge o carro.
Coloca-a na tigela com os pedaços que sobram do galo para, em seguida, De volta à Casa de candomblé, não mais encontramos Galo Preto, mas
nele derramar os seguintes ingredientes: azeite de dendê quente, testícu- Kilombo, que, muito silencioso, e com ar contrariado, prepara uma última
los e peito fritos, uma preparação de farinha de mandioca e de azeite de oferenda: "Um inhame para Oxalá". Uma grande bola de farinha mistu-
dendê !farofa de dendê, prato de predileção de Exu) e um pó preparado com rada com água disposta em um prato com outras bolas menores parece
diversos tipos de pimenta, que foram cuidadosamente moídos por um ogã representar o corpo de um ser humano. Kilornbo decora-as em seguida
com a ajuda de um tridente /instrumento pego na casa dos exus). O aze~te com pequenas manchas azuis feitas con1 un1a preparação especial de pó
quente e o conjunto das pimentas devem ~-~~~e_nte atiç~~--!~}y~~!! (uaji) e de água. Isso me faz lembrar das pinturas corporais de um iaô por
-----··---~----~-~~---~-- -·--·~·--

~~~: Maria Helena assiste a tudo cmn os olhos atentos e vigilantes, 2..!.~]?_Q! ocasião de sua saída pública. Pergunto a Kilombo se essa aproxiinação é
<_!~--~~~-~}ace~_!_:~in~9 cert~~m.oção. pertinente, mas ele permanece em silêncio. Ele dá o prato a Maria Helena,
Galo Preto pega então uma bola branca, preparada com a farinha de dizendo-lhe, em tom irritado, para oferecê-lo ao orixá Oxalá: "Peça a ele
mandioca e água, abre-a e ali insere o terceiro pedaço de papel preparado boas coisas, Oxalá não é do Mal, e você, você deve pedir a ele ta1nbém boas
pela cliente. Isto indica que o agente da oferenda é seu marido e designa coisas. Que Oxalá te proteja!" A mudança gritante de humor de Kilombo,
este último como o alvo da raiva de Exu. Etn seguida, a bola é fechada '
'
em comparação com Galo Preto, parece querer marcar de modo nítido a
e colocada na tigela sobre a qual Galo Preto joga chumbo e pólvora. Ele distinção entre eles, instaurando assim urna separação entre os agentes
levanta-se, pedindo para que Maria Helena e toda a assistência se afastem. do feitiço. A esse respeito, em outra ocasião, Galo Preto explicava a uma
Ele inflama o quarto pedaço de papel preparado e o joga sobre a tigela. A ex- cliente: "Se eu faço uma maldade, meu filho [Kilombo] não tem nada com
plosão da pólvora e do chumbo, pequeno fogo de artifício, conclui o feitiço. isso".
Galo Preto pede a um filho de santo para recolher cuidadosamente os Maria Helena é conduzida diante do quarto onde se encontram os as-
ingredientes eventualmente caídos da tigela, e colocá-los em um saco. O sentamentos de Oxalá. No limiar da porta, ela tira os sapatos para entrar
feitiço transforma-se então em uma oferenda por completo. Ele pede-me e colocar a oferenda no chão. Maria Helena conversa em seguida com os
para acompanhar Maria Helena e uma filha de santo de carro: elas coloca- filhos de santo e Kilombo. Este mantém seu ar contrariado durante toda a
rão esta oferenda no meio de uma encruzilhada, domínio de Exu. conversa, deixando transparecer um certo cansaço. Depois de meia hora,
Como de hábito, no momento do transporte de toda oferenda, somos se- a cliente vai embora.
guidas, ao sair da Casa, por outra filha de santo que asperge água no nosso Não mais revi essa cliente. Interrogado a respeito, Kilombo respondeu-
me: ('Os clientes são assim, quando o problema é resolvido não voltam
7 Ele fala aqui de Kilombo. Os caboclos referem-se à pessoa que possuem como sendo seus mais".
filhos ou seu cavalo.
"li·**
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS r6s

"Se até agora você só viu o lado do bem, agora você tá podendo ver o da de outros rituais. O Mal, aquele "outro lado" de que fala Kilombo-Galo \oil'\~JI'
'oº'
outro lado, porque tem -sempre o. outro lado". Como se articulam aqui Preto, não é senão u1na consequência do Bem. Engajada na batalha contJ~/ ó _
8
w;
esses "dois lados"? ~"-'-L!parido e tentandQ.J!tingi-lo1~l,\1ari§~Helena busca apenas o bern,d~l!l- f\i\w\"" "
A realização do feitiço ou, ainda, a performance de Kilombo-Galo Preto Tais ambiguidades, nuanças e mnbivalências entre Bem e Mal são in- \ r11l
são enquadrados por duas oferendas, porta de entrada e de saída que, uma contestavelmente o atributo essenCial de Exu, um dos atores :desse sacri- _i\ '{f~

vez pela cliente, coloca esta última, ao lado de Kilombo-Galo Preto, em


--
fício ritual. Sob a égide de sua figura, as oposicões entre magia e religião,
Qjt"''
seu papel de protagonista. Com efeito, se ao executar o feitiço Kilombo- sacrifício e malefício propostas por Hubert e Mauss (1968 veem-se a u·
Galo Preto está no centro da cena rituat no combate contra a "vítima" desmanteladas, subvertidas, retomadas, afrouxadas ... Nesses múltiplos
ele é apenas um instrumento ou, ainda, um mediador entre esta e Maria ~-;i;;~s7s~á~se lon·g~ d~-;~uema universal do sacrifício, proposto por
Helena. A manipulação ritual e simbólica das forças sobrenaturais, colo- . esses autores, no qual os papéis e as funções se encontram bem definidos.
cada a serviço da vontade dos seres humanos, forma uma dobra que vem No desenrolar desse ritual, nota-se, por exemplo, um deslocamento do pa-
separar estes últimos .do universo dos orixás e, ao mesmo tempo, uniMlos a pel do sacrificante, que vai de Maria Helena, beneficiária do mal infligido à
ele. A primeira oferenda, convocando Xangô para vir saborear seu prato de vítilna (papel encarnado por seu 1narido), ao próprio marido que se torna o
predileção, é também uma separação que delimita o espaço de ação do fei- signatário do estranho prato oferecido a Exu. A função do sacrificador cabe
tiço e aquele do mundo dos humanos. A segunda oferenda, pedido ao orixá a Kilombo, que se desdobra na figura do caboclo Galo Preto. Dada a proxi-
da paz, aquele que "não é do Mal", vem religar a cliente a esse universo. midade de Galo Preto com Exu, essa função torna-se igualmente ligada a
EstáMse bem longe aqui de uma ideia unilateral da macumba. representação este últilno que, por sua vez, é o destinatário da oferenda rituaL
exclusiva do mal, domínio da magia, da feitiçaria. Esse feitiço, muito pró~
·----------·
ximo da image1n pintada e repintada de certa macumba paulista, instaura
O "TRABALHO DE QUARTA-FEIRA" NA CASA DE YATEMIN.
por vezes uma nova modalidade de imbricação entre os dois polos da dupla
CANDOMBLÉ E UMBANDA: A RESSURREIÇÃO BRANCA
ideológica magia-religião; formando dobras no tecido da representação das DO FEITICEIRO NEGRO
forças naturais, este ritual consegue ao mesmo tempo uni~ los e separá-los.
Caminhando lado a lado com uma imagem construída a partir da opo- No processo de formação da Casa de culto de Yatemin, a passagem qa
sição do Bem e do Mal, em que a macumba assume um aspecto pernicioso, umbanda para o candomblé não se oper'!_ de modo definitiv9. Com efeito,
o sentimento de vergonha e .de humilhação que Maria Helena me dizia ;;;:;;.;:;-;;ela mesma o formula, se ela foi "feita" no candomblé, tal não impli-
experimentar parece, além disso, conferir ao feitiço um maior poder e uma ca um abandono de certas práticas da urnbanda: "Até hoje, continuo na
maior eficácia. De outro lado, no conjunto das representações simbólicas umbanda; os trabalhos de quarta-feira que fazemos são da umbanda das
que sustentam as práticas rituais do candomblé, ~-~osição ent~~al almas; então, até hoje, faço um banda; tenho mais de vinte anos de feitura,
~~:§~_CJ!!.é!g~.9.~~-c;_<!!::l~g~lª..9.1:!~.!!!.~..9IÍ2Ptrm.4~-4~.~~.!!9-ª-ª-~ar um e outro; é mas nunca deixei a umbanda". As duas 1nodalidades de culto subsistem e
assim, por exemplo, SL'ffi. Om<J.ll!Jl.ªC~':!~-&~r.()v~~~r ~s!.J?~JlÇ.a.. No can- entrecruzam~se nas práticas rituais da Casa de modo bastante explícito,
domblé, como na umbanda, fazer mal a alguém diz apenas respeito à pessoa como os ~'trabalhos" de quarta permitem apreciar.
\que !:_mpreende tal batalha. À vítima nã~;~st~-~e~ã~-;;:;rot~-g~;;-;;;:,-;; aj~- Yatemin descreve-os da seguinte maneira:

8 Para as questões concernentes às relações de oposição e de disputa ritual, veja~se Yvonne banda no Rio de Janeiro; veja.·se, ainda, Liana Trindade (r985), em seu livro que trata das
Maggie (1975), em seu livro consagrado à criação e ao fechamento de um terreiro de um· construções míticas de Exu.
r66 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVF.IS !67

Abrimos em Nação e fechamos em Nação; abrimos em Nação jeje, e então can-


"Laroiê!" A mãe de santo começa a sessão saudando Exu. Seguem-se
tamos para Exu e assim por diante; depois da vinda do preto-velho, cantamos na
umbanda e todos compreendem muito bem. Em 'seguida, é o caboclo que vem para
cantos que, acompanhados de atabaques, tocados com varetas pelos ogãs,
trabalhar, para resolver os problemas, para ajudar os necessitados. O fechamento pertencem ao repertório do candomblé de Nação jeje. Os filhos de santo,
do trabalho se faz em Nação, em jeje, cantando para Oxalá, para Oxaguiã e Oxalufã. seguindo o ritmo, começam a dançar em torno de dois -pràtos (um que
contém uma mistura de farinha de mandioca e de azeite de dendê, o outro
Voltados ao mesmo tempo para uma clientela exterior à Casa e para uma mistura de farinha de mandioca e água) e um vaso de barro (quartinha)
seus próprios filhos de santo, esses trabalhos, muito valorizados pela mãe que contém água, previamente dispostos no chão, no centro da sala (ixé).
de santo e pelos adeptos, têm como palavra de ordem a ajuda e a caridade. Ao final de uma série de quatro cantos entoados em homenagem a Exu,
Um ogã explica que "os 'trabalhos' de quarta servem muito para ajudar, é três filhas de santo pegam, respectivamente, os dois pratos e a quartinha
uma caridade, ninguém está ali para explorar ninguém, muito pelo con- para levá-los para fora da Casa e dispersar seu conteúdo na rua. Trata-se do
trário" (Marcelo, ogã). Como indica Ortiz (r99rL as sessões públicas de despacho, o ato de mandar Exu embora, como explica uma equede da Casa:
umbanda podem ser formalmente distinguidas segundo sua função. Há "Primeiro, a gente canta pra Exu, a gente despacha Exu, manda embora,
sessões de caridade, em que o papel da assistência dá-se fundamentahnente ele é o primeiro, a gente despacha Exu pra poder cantar pras outros orixás,
como participação, pois que é a essa assistência que se dirigem diretamente pra saudar os outros orixás" (Ana Lúcia, equede). Esse ato de mandar Exu
essas sessões. Há igualmente as sessões de desenvolvimento mediúnico, embora- segundo a interpretação: afastando-o do ritual para evitar qual-
das quais somente os adeptos participam, para desenvolver sua capacidade quer perturbação de sua parte e/ou enviando-o para que chame os outros
de receber os diferentes espíritos. Na Casa de Yatemin, os "trabalhos" de orixás- segue aqui as modalidades do candomblé. Na umbanda, a reali-
quarta, ao conjugarem essas duas funções, constituem uma espécie de zação desse ato, identificada por Ortiz (I99I) como um elemento bastante
cartão de visita da Casa, uma primeira porta pela qual a clientela poderá próximo do candomblé, é contudo muito diferente em suas modalidades.
aceder a outros serviços e Práticas rituais. Com efeito, como já pude consta- Brumana e Martinez (1991, p. 128) descrevem-no no contexto da umbanda
tar junto aos adeptos atuais, estes últimos lá entraram, em grande maioria, do seguinte modo:
por essa porta. Os abiãs, em grande número entre os adeptos, ali encontram
[... ]o despacho ou padê que consiste, na maioria dos casos, numa vasilha com fa-
um espaço privilegiado de inserção e aprendizado.
rinha de milho ou de mandioca torrada e moedas. Este despacho é colocado junto
É partindo da ideia, não de uma passagem da umbanda ao candomblé
ou dentro da casinha de Exu; em algumas ocasiões, é levado a uma encruzilhada
mas, antes, de agendamentos de diferentes elementos constitutivos dessas logo após a cerimônia.
duas modalidades de culto- e tentando sublinhar tais agenciamentos
que descreverei aqui uma dessas sessões de quarta-feira. Com a volta das filhas de santo, os ogãs mudam de ritmo para louvar
Na sala destinada aos rituais públicos (barracão), somos' acolhidas por o orixá Ogum. Os adeptos, de 1nodo 1nais ou menos ordenado, dirigem-se
uma equede da Casa que anota nossos nomes, explicando que, deste modo, então à porta de entrada da sala, em seguida para o centro (ixé) e, depois,
poderemos ser chamadas pelas entidades que comandarão o trabalho. A sala, para a mãe de santoi finalmente, para os atabaques e os ogãs, efetuando
diferentemente dos outros dias consagrados aos rituais de candomblé, foi uma série de gestos rituais de saudação e respeito. Como em toda festa de
dividida em dois espaços distintos, um destinado à assistência- aqui foram candomblé, estes gestos marcam no espaço ritual os "pontos de axé" e, na
dispostas fileiras de cadeiras -, outro destinado aos filhos de santo da Casa. hierarquia religiosa, a importância do chefe de culto e dos ogãs. Estes últi*
mos fazem ressoar os atabaques de modo monocórdio e entoam, seguindo
9 Sylvie Timbert e eu. a mãe de santo, saudações a cada um dos orixás, como se segue:
168 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS

"Oquê, oquê arô!", para o orixá OxóssL


"Euê-ô, euê-ô!", para o orixá Ossaim.
interessante notar que os ''trabalhos" de quarta-feir':! 1~~~,::-t_o_~_fQ.~~,.de- ~6:
"Atotô, Atotô!", para o orixá Omolu.' _r_~.~.~~.,.:_~~~;::..?~~.R:_:~_:I_:_~banda d~Çi!,§.~não deixam çk delirrri!.ª.t§ aftr111ªr LQ tE'.;o>~
"Bessein oôbobol!", para o orixá Oxumarê. cla.:~m~n!~~2·""~~-ªS:2~~9E!.!domblé..~Outros abiãs igualmente me contaram ~-":/
"Logun!", para o orixá Logunedé. ~u~ ~;imeira incorporação pelo orixá por ocasião desS.:is Sessõesi prosse- "'='?-
"Caô, caô Cabiecile!", para o orixá Xangô.
guindo a dança para Iansã, a mãe· de santo diz a uma outra áhiã: "Pensei
"Salve Tempo!", para o orixá Tempo.
"Ora iêiêô!", para o orixá Oxum.
que você ia voar [cair em transe] hoje".
"Odô lá Iemanjá!", para o orixá lemanjá. Entreato: a primeira parte desses "trabalhos" consagrados aos orixás,
"Rirro Euá!", para o orixá Euá. marca explícita do candomblé, acaba de se concluir. Os filhos de santo e a
"Obaxirê!", para o orixá Oba. assistência instalam-se então em outro aposento, enquanto Yatemin quei-
"Saluba Nanã!", para o orixá Nanã.
ma uma mistura de ervas em um incensório que ela balança pelos quatro
"Eparrei Oiá!", para o orixá Oiá ou Iansã.
cantos da sala. Durante o entreato, a conversa entre os filhos de santo gira
em torno do transe de Cátia, da "manifestação de sua Iansã", colocando em ~~~~.
0
Enquanto isso, cada filho de santo dirige gestos de saudação em aten- evig~ncia a im:eo~!ftncia do acontecünento. ]vleira, a abiã graças a que1n eu j>rc-J).~~us
ção aos ogãs, à mãe de santo, às equedes e outros filhos de santo a cada vez estabeleci os primeiros contatos com esta Casa, confidencia-me que ela if1 t:)

que são louvados seus orixás respectivos. Tais louvações são, aqui, uma também
.;.==.c__"recebeu
___ seu
_orixá
1
pela primeira
__.........._,_
' vez em un1a sessão
-· de quarta~ ·-~

simplificação ou uma condensação daquelas proferidas durante o xirê. Este


corresponde à primeira parte das festas rituais, durante as quais os orixás,
seguindo uma ordem mais ou menos fixa 10, são louvados com uma série
-
feira. Note-se, por outro lado, que a maioria dos me1nbros da assistência,
c omposta naquela noite por cinco mulheres e sete homens, constitui-se
quase que exclusivamente de frequentadores habituais da Casa, que vêm
de cantos - ao 1nenos três ou quatro para cada um, segundo a Casa-, se juntar aos filhos de santo em suas conversas.
acompanhados de dançàs, coreografias que os caracterizam. Cerca de meia hora mais tarde, uma equede assinala que a sessão vai
Os atabaques soam agora para Iansã, o orixá de Yatemin e patrono da continuar. O odor de incenso e da fu1naça está ainda muito forte na sala.
Casa. Yatemin vem então dançar ao lado dos filhos de santo. Durante essa Os ogãs começam a tocar para os caboclos, louvando Seu Arranca~Toco, o
nova roda, Cátia, uma jovem abiã, cai em transe e é possuída por Iansã. caboclo que possui a mãe de santo. Esta retoma o incensório para balançá-
Uma equede apressa~se para vir dançar cmn ela e guiá~la a cada passo, a lo novamente pelos quatro cantos da sala e sobre o corpo de cada filho de
cada gesto. Sua performance mostra-se, com efeito, bastante breve; após ter santo. Se a função atribuída mais frequentemente a este ato é aquele de
realizado três ou quatro voltas de dança na roda, ela verr1 saudar os "pontos purificar, parece-me aqui que sua repetição e1n dois tempos pode ser igual-
de axé" e a mãe de santo para logo em seguida se retirar. mente percebida como uma expressão da passagem de uma modalidade de
Eu soube mais tarde que, naquele dia, Cátia recebia Iansã pela primeira culto a outra: o primeiro tempo é aquele do encerramento do candomblé,
vez. Ela viveu essa curta aparição como um passo muito importante em o segundo aquele da abertura da umbanda.
seu aprendizado como abiã; se até então apenas recebia as entidades da
umbanda, ela agora entrava no universo mais próximo do candomblé 11 • É sonagens do panteão umbandista em duas categorias- as "santidades" e as entidades-,
colocam os orixás na primeira. Como indicam estes autores, "as santidades são figuras da
mais alta sacralidade e é esta forte carga o que determina na maioria dos que não sejam
xo Uma tal ordem pode variar de uma Casa para outra. incorporáveis ou que o sejam apenas muito excepcional e custosamente". Uma nota neste
I IAssinale-se, de passagem, que, na umbanda, os orixás estão raramente presentes pelo texto oferece a precisão de que os terreiros mais próximos do candomblé podem ser exce-
transe de possessão. Brumana e Martinez {1991, p. 25 r), ao classificarem as diferentes per- ção.
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS 171

As luzes estão agora apagadas; somente a parte reservada à assistência O corpo de Yatemin, tomado por violentos tremores, indica a chegada
permanece acesa. Yatemin, sentada em u,ma cadeira, psalmodia "Ave- de seu caboclo; os cantos saúdam Seu Arranca-Toco que profere então a
maria" e "Pai-nosso", pedindo pelos infelizes, doentes e desesperados ... Ao seguinte saudação: "Saravá Oxóssi, Xangô e Iansã!" Uma senhora de cer-
final de suas rezas, ela profere a saudação dos umbandistas: Saravá! Os ca de so anos, irmã de Yatemin, aproxima-se do caboclO que se encontra
atabaques soam então para louvar e chamar os pretos-velhos; os filhos de sentado e, muito concentrada, como se ela estivesse em uma ;espécie de
santo os acompanham, cantando e dançando. Sempre sentada, Yatemin semitranse, começa a falar: ''Vejo muita luz, boa concentração no quadro
permanece bastante concentrada. Com os olhos fechados, ela começa a geral, boa energia dos médiums, concentração". Esse "quadro" é interpre-
tremer nas pernas e nos ombros, para e1n seguida retomar outras rezas. tado por Seu Arranca-Toco como sendo satisfatório para que eles possam
Com a voz mais baixa e um pouco mais grave que de costume, estas rezas prosseguir os "trabalhos". Como explica Yatemin, sua irmã seguiu um
indicam que Yatemin está sendo incorporado pelo preto-velho. Os cantos desenvolvimento mediúnico que a dotou de uma capacidade de clarivi-
e as danças dos filhos de santo louvam a chegada desta entidade, como no dência. Tal capacidade alia-se aqui ao poder do caboclo: "Seu Arranca-Toco
seguinte verso: "Quando me lembro de meu cativeiro, meu cativeirar'. Este extrai o que chamamos o quadro da pessoa. Isto se apresenta como se
canto faz alusão ao cativeiro dos antigos escravos africanos no Brasil, os fosse um quadro para o médium clarividente, no qual ele vê tudo o que
pretos-velhos sendo os espíritos desses escravos velhos. Como afirmam diz respeito à pessoa".
Brun1ana e Martinez (r99I, p. 240), eles ''falam em voz baixa e entrecortada Seu Arranca-Toco chama pelo nome urna mulher da assistência que,
um português de difícil compreensão pontilhado de palavras em nagô e 1
o, conduzida por u1na equede, avança em sua direção. Ele pede à clarividente
41
expressões características". Tais expressões dão mostras de certa poesi11 (' para se concentrar a fim de descrever o quadro: "Os caminhos estão fechaw
~~~~ria_ç~~~-~~e nQY.Q.~VJ?_ç_4Qg_lq§,_"~~-~I];~J..O.!.~~slg~~-~l;IL5i~ç_qt.iY.&i!al. De- dos, vejo fluidos negativos, a presença de um exu~', diz ela. Ele chama então
rivado de cativeiro, sua terminação em al reenvia à ideia de uma coleção, Zeti, uma moça negra, ade12~a d_§l Casa, que se coloca à esquerda da mulher,
de um conjunto de catiVos, mas, igualmente, de modo mais poético, à de pé, com o corpo ligeiramente curvado para a frente. Em seguida, Seu
imagem de um campo, de uma plantação de homens cativos (cativeiral Arranca-Toco pede a intervenção de uma outra entidade, chamada Pena
como bananal, ou palmeiral). Branca: "Para corrigir o quadro, tira as entidades que fecham o caminho,
A vinda do preto-velho é explicada pela mãe de santo como sendo um tira este exu, tira todos os fluidos negativos, tira!" À medida que ele pro-
suporte; ele é a entidade que protege e sustenta todos os "trabalhos" que nuncia estas palavras, o corpo de Zeti é invadido por tremores violentos,
serão efetivamente realizadol? pelo caboclo e seus auxiliares: "Primeiro, o ritmo de sua respiração fica pontuado por fortes expirações. Ao fim de
vem o Preto-Velho que segura a gira toda, que canta as cantigas principais um certo tempo, Seu Arranca-Toco pronuncia a saudação: "Saravá!" Zeti
pra segurar toda a gira, como a gente diz. Depois, vem o Seu Arranca-Toco parece então voltar ao estado normal, deixando transparecer um cansaço
pra trabalhar, pra fazer mesmo caridade no duro". físico visivel. A mulher beija então a mão de Seu Arranca-Toco, que lhe dá
Evoca-se, em seguida, a vinda dos caboclos, como naquele canto em que alguma coisa para beber, e vai se sentar.
a incandescência ou, ainda, a iluminação, parecem fazer referência direta à Um homem da assistência é chamado, seu "quadro" é descrito pela cla-
incorporação pelo espírito, Oxóssi sendo o orixá assimilado aos caboclos: rividente: "Vejo muita confusão, ele anda, anda, mas não sabe para onde ir,
muito negativo, presença de entidades negativas". Como acontecera com
Meu pai Oxóssi é o rei das aldeias a mulher, Seu Arranca-Toco pede a reparação do "quadro" e a retirada das
Meu pai Oxóssi é o rei das aldeias
entidades e dos fluidos negativos. A intervenção da entidade Pena Branca
Ele é a luz que incandeia
por meio do corpo de Zeti é novamente anunciada como exitosa. Duas
172 O CANDOMBI.É: IMAGENS EM MOVIMENTO MAGIA E RELIGIÃO: TRAMAS INEXTRICÁVEIS 173

outras pessoas da assistência são chamadas, a leitura e a reparação de seus da cruz: "Graças a Deus!" Todos os adeptos cumprimentam-se segundo a
"quadrosn seguem a mesma modalidade. hierarquia; abaixando-se e estendendo a mão para a frente, eles proferem
A intervenção de Zeti e da entidade Pena Branca é solicitada quando a saudação do candomblé: colofé!
é necessário extirpar as "entidades negativas, as entidades de esquerda".
Como explica Yatemin:
~':;
No domínio das representações do candomblé e da umbanda, a perfor-
Seu Arranca-Toco, auxiliado pela en~idade Pena_B~anca, tira as entidades. de es-l.R-\'-_ e,.~S.
mance de Zeti, que pode ser apreendida como um dos tempos fortes dos
{\ querda e§.~ o transporte naquela memna, meu medtum de transporte, a Zet1, sabe}\ é '>0~ ,j/2
1
;;J:-
laqueia pretmha. Ele faz o transporte daquelas entidades negativas, ele tira de cima \e. {\ "trabalhos", opera u1na síntese. Marcelo, ogã suspenso na casa de Yatemin,
da pessoa, passando pelo corpo dela. Ele acorrenta e tira fora, de uma vez e a pessoa {\V~ explica como essas duas modalídades de culto integram-se na Casa:
. fica liberta. Se fosse na Igreja católica, seria uma espécie de exorcismo, só que sem
o transporte, porque, no exorcismo, eles não fazem o transporte da entidade e nós, É verdade, esta Casa veio da umbanda, por razões que, como eu poderia dizer...
aqui, fazemos o transporte. Estruturas da Casa ligadas às condições de execução dos trabalhos ... Enfim, ela
precisava de mais força, mais apoio, mais estrutura e foi aí que foi preciso criar...,.o
Zeti, de origem baiana, desenvolveu sua tnediunidade de transporte candomblé. Ela nasceu na umbanda e continua hoje no candomblé e na umbanda.
em sua cidade nataL Na Casa de Yatemin, ela sempre ocupou esta função, O candomblé dá uma força, uma estrutura à Casa, para desenvolver os trab~hos,
como assinala Meire: "Na Bahia, se faz muito isso, esse tipo de exorcismoi esta é a verdade. Temos os santos assentados, todos os assentamentos da Casa,
toda a segurança da Casa, toda sua força está fundada no candomblé. A umbanda
Zeti, essa pessoa de quem eu te falei, a única negra da Cas&, ela aprendeu
tem seus fundamentos, mas a gente chega num ponto em que isso se torna frágil
tudo isso na própria Bahia, é ela quem sempre fez isso na nossa roça". e fraco, não é?
Depois da assistência, são os filhos da Casa que são chamados. Para
alguns, a leitura e a reparação do "quadro" são seguidos de conselhos ou de J/ O candomblé, abrindo e fechando os "trabalhos" da um banda, dão es§a
reprimendas. Para Marcelo, ogã da Casa: "Quadro escuro, trabalhos feitos j j!lloldura, essa estrutura~ Está-se aqui diante de uma representação clás-
[contra ele], limpa o quadro, tira a escuridão, tira os trabalhos feitos". O sica do candomblé (mais forte que a umbanda) que justifica para muitas
caboclo aconselha-o: "Levanta suas guardas, não marca bobeira!" Para pessoas sua passagem de uma a outra modalidade de culto. Essa força, o
)ane, uma filha de santo: "Quadro negativo, presença de uma legba [um candmnblé a retira de suas raízes, ~@~Xfl,Cª negra", como assinala
exu feminino], limpa o quadro, tira a legba, arruma a posição do quadro!" Yatemin:
Abraão, um outro ogã da Casa aproxima-se; seu "quadro" é muito positivo:
"Vejo muito pão, os caminhos estão abertos, saravá Oxalá!". Vim com esta missão de fazer estes trabalhos, em uma família de sírios, católicos
apostólicos ortodoxos, veja a incongruência: ~-·· Porque o candomblé ... Eu
Acompanhados de uma grande concentração do público e dos adeptos, deveria ser uma negona deste tamanho, assim, não sei com quantos quilos, porque
outros quadros são ainda "resolvidos'', até que os ogãs começam a tocar o candomblé ... E, no entanto, veja você1 sou branca, filha de sírios e aqui estou,
atabaque louvando o caboclo. Alguns adeptos são então possuídos por trabalho há tanto tempo ... Porque o certo seria ser de raca negr11, porque são os yf)):-z..cS
seus caboclos e começam a dançar. Ao fim de alguns cantos, eles saem africanos que trouxeram o candomblé para o Brasil, não é? Nossas raízes estão

do transe, seguidos por Yatemin, que é logo possuída pelo preto-velho. Os


na África, todas estão na África, as raízes, a força do candomblé. E a Bahia tem o o~1'\\1.1~
_\ ,
prestígio porque todas as Nações, as maiore,~.~ações de candomblé, reuniram~se
atabaques tocam agora para Oxalá, os adeptos cantam e dançam louvando na Bahia, estão na Bahia.
este orixá. Ao fim desses cantos, o preto-velho reza invocando Oxalá e em
seguida deixa o corpo de Yatemin. As luzes acendem-se e todos rezam: "Zetí, a única negra da Casa" é uma expressão que volta frequentemen~
''Salve-rainha", "Pai-nosso" e ''Ave-maria". Yatemin faz em se~uida o sinal te nos discursos. Vinda da Bahia, ela encarna, não o laço com uma África

i
I74 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

longínqua, mas aquela força capaz de expulsar os 1naus espíritos, aqueles


exus e legbas da umbanda que obstruem os ,caminhos. Como sugere Ortiz
[r99r), a expansão da umbanda compreende um movimento de integração
dos valores cristãos e brancos, pennitindo-lhe encontrar uma legitima-
\ção na sociedade brasileira. Orig~E~,E!~~~.E?:~Y_f,t)J?,ª'-l!:~~I~~!v!!~g,!!l!E_~,
~~_ymbanda le_g_i!~-~~:~~---e.f~!.!:!~~l!49..~- _')pgg~_J?x~~P1~,ª--9Q.Jç!ü~-~!IJtnçgrg:'. A
performance de Zeti por ocasião dos "trabalhos de quarta", purificação dos
elementos nefastos, inverte a fórmula ao mostrar que, na integração das

~
duas modalidades de culto, é uma "~essurreição bran~a <!_qJ~J!tçyJ!,Q~I9"
~

:- •f' que se opera. Se o elemento negro é aqui valorizado por sua força, ele não
.:<-,'·~ -
_0~ ~ ~É3..t.il forçS?.~§..l_!l~~~~-~~-~r_:~_?..~~en!_~!!~_I~laç~.~.~2_ciai~ (Trindade,
~ .
f.:\·,- i}'

1>·0·\·\\f
I99I, p. 238). "Zeti, a única negra da Casa" é igualmente uma expressão
~~ue vem, em razão da. exclusão que ela im.plica, valorizar a "brancura" d~ I IV.
~~ n:: ~-~· o discurso sobre esta 1'brancura.:.h..~it<i.QQ.LY...e_g§_Q_["}cismo presente a possessão:
,,: \ ~.'!!'!.!ltÜ:~.:Y~l!'.<!.~.l!a.E.Q'!.~~"-&!QlJi'J. Ana Lúcia, sobrinha de Yatemin, uma íntima aliança
e equede da Casa, explica que o orixá veio da África, que o candomblé é
africano, mas que ela "não pensa no orixá em função da cor que ele pode
ter, mas da força que ele tem, do que pode fazer". Pergunto então se ela tem
descendência negra e ela 1ne responde: "Não que eu saiba, ne1n mesmo do . -:
lado de meu pai; do ladO de minha mãe, eles são libaneses, meu pai não 1J \
'\f j}
era libanês 1nas ... E é engraçado, como um racista pode ser do candomblé, \Jat\ {}. ;
não é? ~-~~-0~~~~-q~~-.l?.?_E.~~--~~E d~-~~ndo~E!!;., eu -~~-~.:!1_<: ac_~~_gu~..cfl 'oif!J..qfi
~.andomblé é muito africano mas esta história de cor não tem nada a ver. .. ".\ \
I.
A "feitura":
fabricação do santo e da pessoa

Fenômeno patológico que se inscreve no registro das doenças


mentais, como a histeria, revelador da inferioridade da raça
neg!§!, manifestação dos estratos ..f!tfaico§ do inconsciente,
o transe de possessão foi tratado so'b todas as cores do redu~
cionismo biologizante e psíquiatrizante que dava o tmn aos
primeiros estudos afro-brasileiros 1 . Nos anos de 1940, sob a
pena de Bastide e Herskovits, sua história conhece u1na ver-
dadeira guinada. Colocando em destaque os códigos a que o
transe se submete, códigos partilhados pelos indivíduos que
o praticam, estes autores o liberaram da marca do patológico
e do individual para defini-lo como um fenômeno ao mes-
mo tempo normal e social. Como fato sociaL na acepção de
D..l'.Et~Wln (1988), e seguindo suas "regras do método socioló-
gico", ];l.a.fl!ide (1945, 1958, 1983) e Herskçvit!; (1941) afirmam

--
que o transr;:~~de...:gP..§..$.~§J5.fuLDão pode ser estudado senão no
--·--------------~~
,E~!l9.§%igjgu_~_Lh".t''~R~Si.fiE2· A guinada torna-se estrada
..
principal e incontornável.
Esse aspecto codificado, socialmente regrado, do transe
de possessão, encontra na analogia do ~ - introduzida
em 1958 por Michel Leiris (1989) e "aceita como uma evidên-

r Ver, entre outros, Nina Rodrigues (r9oo), Arthur Ramos (1940) e Manuel
Querino {1938).
0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇ~ !79

cia" na França (Mercier, 1996) - sua mais alta expressão. Bastide (1958) ~".r:!!'.."~."~o 2-!lE_eas_.contradições inter11~s ___a_Q Jl!QPTiQ ~!ete!Tl_a _ _'liio __tê~j:,!':r:,';f'._ 9::'
evocará Rimbaud para descrevê-la- como uma "ópera fabulosa", em que l~ar. A conclusão desse diálogo está muito próxima daquela de Bastide~ - · ! --G?:.J;DI.'"S
a harmonia da dança e da música segue os modelos 1níticos. O transe, ~'Pela sua identificação com o santo, a pessoa afro-brasileira transcende a
"uma repetição dos mitos", provoca a transformação da personalidade do fragilidade e a impotência de um ego diariamente dimü~~IdÜ no confronto
adepto que se metamorfoseia em uma personagem, aquela da divindade. Q das adversidades que caracterizam Suas condições de vida e o se'll ambien~
adepto identifls~·se comes~~ perso11:~Kem divin~-~--~1!ª--.I!!~.g!~_positiva para te." (idem, p. 348).
c~:'''Ee":~a!~..ill.f"':iorici_<lde de seu l'!'J'.el desempenhado na vida cotidiana. Na analogia com o teatro, o estilo invocado é mais frequentemente
aqude da Commedia deii'Arte italiana, em que os atares improvisam a
No seu significado mais metafísico, as religiões afro-brasileiras oferecem aos partir de um roteiro fixo de comportamentos estereotipados, particula-
negros do Brasil um vestiário completo de personalidades, as mais ricas e as mais
res a cada personagem, tendo como "tradição mítica seria o metteur en
variadas, nas quais pode o negro encontrar uma compensaç_@.Q_para os personagens
menos agradáveis que a sociedade estratificada, organizada e dirigida pelos brancos scene" (Bastide, 1960, p. 331). O princípio de determinação do rito pelo
impõe para desempenho (Bastide, r983, p. 3r6). mito, presente nesse 1nodelo, desejaria que, para compreender "o teatro da
possessão", se procedesse ao retorno ao '~texto" que o dirige. Mas, como
Pela arte da advinhação, o chefe de culto dá provas de sua capacidade já evoquei mais acima, esse "texto" não se compõe de um corpus finito
de encontrar, "no guarda-roupa em que 1noram as mais variadas vestimen- e homogêneo; ele integra as contradições Qª§_Ç.QP:.~_Es>_y!!.~-~-~-~--~-~!_çgJQg!~~tf
tas" (Bastide, 1983, p. 317) das personagens míticas, aquela que seja mais e dos confrontos entre as .........
diversas "ortodoxias"; antes, ele é fragmentado,
,.~"""'"~··"''·"'·'"""''•'""~ --""'c·--~-"·"·-·.

adequada ao adepto, aquela que seja "verdadeiramente o reflexo tradicional pleno de lacunas e em perpétuo movimento. Essa heterogeneidade foi até
do seu eu profundo" (idem, ibidem). Mas esse reflexo não é apenas visível agora mostrada como expressão dos elementos diferenciais de identidade
fY
no momento do rito; é todo o homem, na sua vida, em suas estruturas ~~,.,f>t· de culto (g_netO,.!JcJ1gol_a1 jeje, africanizado, __ .). Ver-se-á que através do transe
psíquicas que, através da remodelização de sua personalidade, ~.!!!!!?.~U~.!i {'!&~ de possessão ela é igualmente fruto das diferenciaçõesresso~is. Como já
--~-~~-~-~- A integração do modelo mítico, a personagen1 da divindade, à ' foi mostrado por Goldman (1987), a mitologia do candomblé, forçosamente
personalidade do adepto, formaria um todo homogêneo, um "castelo inte- ligada ao desenrolar dos rituais, é, antes, de acordo com a term1nologia
rior" com diversos "aposentos" (Bastide, 1958). de Lévi-Strauss (1971), da ordem do implícito. Mas devo aqui abandonar
0"'~~;
n)
Para Laura Segato (1995), que estuda o culto xangô em Pernambuco, a ideia do mito como quadro de classificação para apreendê-lo como um
'-.._0 x. este é considerado como uma psicologia autêntica que traz uma con~ão fragmento de história. O "modelo mítico" não é um modelo. Ele não é o
1
\~'\:
•'< '<:;I.[eórica d_<r_C2_J1d h:
...l'!!a_.Um'l.ru.. Seguindo as teorias de Horton (1979), a autora Original que o adepto reproduz por pantomima, ele se apresenta em peda-
pressupõe uma identi~ade _de natureza entre g _sistç_ma de pensamento do çosi são cacos de histórias elementos estilhaçados cujo sentido se forma
1

"~l'!lf>e~qude d;·R;i~~i",gii1 icide!lt~l, o que !h~ ~e~~lt~ ~~;;j;~j~;r-~:U na performance dos adeptos.
"diálogo intercultural" com a psicologia analítica de Jung. Os orixás, as- A ideia de uma substituição da personalidade cotidiana do adepto
sim como os arquétipos, são noções ("bem definidas e coerentes") com as pelo "tipo psicológico" representado por seu orixá, elemento que confere (" { . I ,
fd.?oW <ZfCI{"G.
quais a "teoria da psique do xangô" opera: "Essas noções, por seu caráter, ao candomblé
"·'""'"' .. '
uma fnnção psicoterapêutica
-.. ou de adaptação__g>.ci.al,
. -- ..... "" ',_ """·-·--·---· .. "'""'""'""'
"""
foi UI.. ··
implicam mna teoria/ ou melhor, uma sofisticada filosofia da natureza do seguida com algumas variações por outros pesquisadores. Claude Lépine
si mesmo, e uma complexa arquitetura da pessoa que pode ser manipulada (1978), permanecendo bem próximo do modelo de Bastide, considera que
com propósitos terapêuticos" (Segato, 1995, p. 351) Apesar dos ricos dados por meio do transe de possessão a identidade alienada do adepto pode me-
~---------···--~---·---·---------·---------··-·-·--·-·<·---·~··- . ---..... ~·------~
empíricos apresentados na base dessas análises, constrói-~e v.m edifício se estruturar e ser assim !_efg~_x~-~~~r Para essa autora, os orixás operam
180 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA I8I

uma classificação do universo na qual podeM se perceber homologias entre festa~-~-~ar de modo p_esgueç_Q~-~-~Q~~~:ü2.~i~-2-~ERJ.SQ!!flito eterno e dsu,g;n
as diferenças estabelecídas no ,nível da natureza e no nível da cultura, o ~pasmo err: __c.!~~-!yida_Ç__ÇQ!,~,d.ª"-.1! ca~~~~~!9-~~~!12_9.~~-t1}_92_I}_~ cri~g~..Q~~YQQ!:g
~~~-~-~X:.I!~E-..9~2.-~?J~.g_q _ g~S~!:~_.ÇQQSt!tgiQ.Q§j. .. ] (Artaud, 2oo6, p. ros ).
que faria do caudomblé um ,_sistelll<l_!'J1áloJl2.3S', !()!>'l!l_iflmo, Ao desejar
explicar esse "sistema totêmico'', Lépine não faz senão traduzi-lo em um 1
Sob a máscara do 'teatro da possessão" é ainda a psicolOgia que tem a
outro sistema, aquele da psicologia ocidental(Goldman, r987), O orixá, um última palavra. O processo de identificação do ator-adepto à pÚsonagen1-
elemento que vem se integrar a uma unidade primeira, a personalidade do orixá pressupõe que o primeiro, um ser individualizado. identifica-se ao mo-
adepto, não seria senão sua própria cristalização. delo míti~o do segundo, igualmente individualizado por suas características
O trabalho de Monigue Aullli'§ (1983, 1992) é, de longe, o mais explícito próprias. A possessão pelo orixá, reflexqJ:.g "eu p~ohmdQ::_qg a~l~Rill...QR~R
a esse respeito. A partir da análise das biografias dos adeptos, a autora esta- a síntese, essen:,~~de ~-~~· Da psicologia ocidental, um passo, e
----
belece semelhanças em relação às histórias míticas do orixá ao qual essas
pessoas pertencem 2 . As personalida~~S.. injJ:.'!:~uai~_:~~ão mg~s
-- encontramo-nos na teologia cristã. A união do adepto com seu orixá pro-
cede de uma transcendência que o homogeneíza: o adepto afasta-se pouco
como sendo a duplicação do modelo mítico, não derivado evidentemente
--~--"-~~.,~-·-----~~-:---c"•-~,~---·-·•~"~~·""·~ ~--~-·-'·~"~' a pouco dos valores mundanos, ~!e~:y,~~~:se" (Bastide, 1960) e torna-se~~~~~i<"f!rdif!,
de um material empírico, mas daquele que a autora se esforça para nos for- ym (Augras, 1992), Seguindo o modelo ocidental e cristão da pessoa, esta ik V~~<''
necer misturando diversas fontes (africanas e afro-brasileiras) da literatura ideia de uma hmnogeneidade acaba por negar toda margem de manobra na
antropológica, A duplicação e a metamorfose operadas pelo transe de pos- n1anipulação de seus componentes espirituais, assim como as reinterpreta-
sessão revelariam o eu profundo do sujeito: "Nos cultos de possessão não ções criadoras que dela decorrem, Ela afasta igualmente uma multiplicidade
existe ruptura entre o duplo e a metamorfose. Manifestando o deus ao qual ~~rturbadora" de "pers~.LQ..!J&.12.ê:man~cem, contuçlQ,_ahsolutamen.te
pertence, o fiel despersonaliza-se, e, deste modo, transfonna-se naquilo que , A 1"de1a
12resentes no cotidiano dos a depto~:-~.s;U~Q§.L_Q~_m~-~.§..-~~~.§.
b 1 · CfCbod ,;
- c;;/&Lt;
ele é realmente" (Augras, 1983, p, r8), Afastando a ideia de artifício que a de mna transcendência, reproduzindo a oposição binária sagrado-profano,
analogia com o teat.!.ftllóA~tia engen~rar,
· - - - · - - · -..··" .....--~.-
Augras evoca o Teatro e seu duplo I
~~-~
engendra aqui outras dicotomias. Aqueles que "manipulam" essas "perso-
de Antonin Artaud que, como os ritos de possessão, "visa essencialmente ' nagens perturbadoras" são menos africanos, menos tradicionais: "Por toda a
a promover a síntese entre a pessoa e a personagem" (idem p. 2o), ou, ain-
1 parte en1 que encontrarmos a possessão por um só deus, estaremos diante
da, retraduzindo ao português a tradução francesa, "visa essencialmente a de uma religião africana em maior grau de pureza" (Bastide, 198 3, p, 29 5).
promover o desdobramento e a síntese" (Angras, 1992, p. 20). Sem querer me 1-o querer privilegiar o aspecto social e normal sfo transe de posses-
perder "nos meandros mais que nebulosos" da estética do teatro (Geertz, são, erigiu-se em um ~c:io..J!_~Eg}_'2..x:!!.os~~-ºQ~tÇn~~ à image1n de uma
1986, p. 37L é preciso, mesmo assim, admitir que o ponto de vista psicoló- Teoria ou de uma Filosofia, o sistema em que ele se inscreve. Se, assim
)-/;L gico de Augras, que visa ~úd!'_Psíquica "nom!!lizadma", coloc~a fazendo, foi possível lhe conferir um estatuto mais relevante na sociedade,
' I' r .,J'· w{il'boca de Artaud o que ele_~~~r:~sL_ee'"."!JlT~ a atribuição de uma f_unçã~ d~_SQ1Jl,Rensação psico_!ggjE,~,~l!)\Wl que
';f, ,_;,y
garantisse esse estat~to se deu ao pre.ço de uma in~~i~á~el restrição de seu//
'-.1"' )i
'Zf9)\\{fJ>v
)lpot~~:~rd~:r::~~~~d!~~:~s::::i;z~~~~o!-!~~~~:0d~~ :e::::·~, se~~~o
Considerar o teatro como uma função psicológica ou moral de segunda mão e acre-
{p ditar que os próprios sonhos não passam de uma tunção de substituicão é ~iminuir
o alcance poético profundo tj,JJ.J;.f_Ldos ~C?!?:Ms quanto do teatro. Se o teatro, assim
como os sonhos, é sanguinário e desumano, é, muito mais do que isso, por mani- dúvida alguma, muito cômoda, pois que nos coloca imediatamente no
plano social do transe, c\ando dest~~~seu aspectQ_~~.etiv~ 1 estr!!;~~ra~
2 Como muito bem aponta Laura Segato (r995), ao estabelecer ~ê_~~!_~laçõ~~ de si~e, do, codificado etc. Eis por que a conservarei aqui, procurando me libertar
Augras ck!.~-~~4.C:}~~<?..?.~-~-~i~~~7~~gprias estudadas. dos ~es impostos J2_<'la i<!ei_<!_~~Jfl1!'cdo ."-'ll1"Lo_.P3R~L\l9_.i!tQLJ:lQ.\~!!lro
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA

SANTO E ORIXÁ: "MANEIRA DE FALAR" PARA DIZER A DIFERENÇA


~~-h!!:!~~E~~-~-~~~:!:P.~~-S_t?~Ca!l1:(1Ç_ãg _ge_:u._~~ p_~-~~?.~-~g~!P-· Isso me permitirá,
talvez, afinar melhor a ideia mais geral do transe de possessão. Por comodidade, utilizei até aqui os termos santo e orixá como se fossem
Inicialmente, tomo o processo de iniciação ao "pé da letra", como uma equivalentes. Essa aproximação não é abusiva, pois tmnbétn e,stá presente no
"feitura", uma '~fabricação": "faz-se o santo" e ",t3§ Çj~~.J!-2d?Ji:P.J.Q". Em um discurso dos adeptos. Mas convém agora estabelecer suas diferenç~,~ para Ine-
primeiro momento, isso permitirá ver que nas representações êmicas do lhor compreender suas articulações e as noções que estes termos recobrem .
. orixá e da pessoa, a ideia de uma individualidade (aquela do santo e aquela O termo santo integra um grande número de expressões. Na rede das
\uV.'$;~;.:d~ a.depto) dada. p.. r.e.v.ia. m..ente.não é.~perante. A próp~ia .ideia da_encarnaç~ relações que compõem o grupo religioso, família de santo: pai ou mãe
'\ \D;S/ d"''.ll1"1'"!_SO!J"genipor ,IdeEY.ficaçacl ou ass1mllaçao e ah mvahdada. Em de santo, filho ou filha de santo, irmão ou innã de santo, avô ou avó de
- , um segundo momento, entendendo a feitura como uma aliança, um outro santo, e assim por diante. No contexto da iniciação: fazer o santo, raspar

~
.~.e, r~. processo, diferente daquele da identificação, poderá então ser posto à luz. o santo, ser feito de santo ou ser feito no santo, ter santo. Para assinalar o

~
v~ bv·
V: \~;~'-}>)/ Antes mesmo da "feitura'', a "construção" da personagem já está em obra pertencimento: ser do santo, povo de santo. No campo da possessão: virar
quando as variações de intensidade e de modalidade do transe vêm à luz no santo, ser pego pelo santo, estar no santo, dormir no santo, dar santo ...
na socialização e no aprendizado de seus códigos. Em seguida, mostrarei Essas expressões, dentre muitas outras ainda, são empregadas de 1nodo
como este processo perdura enquanto se mantém a aliança entre o adepto e bastante geral pelos adeptos, independentemente de seu grau hierárquico e
seu santo. Evidenciando os diferentes contextos de manifestação do transe, da modalidade de culto (Nação) às quais reivindicam pertencer. Entretan-
ver~se~á que essa "construção" opera-se em um cotidiano em que a oposição
to, pode-se notar que o termo santo é empregado como sinónimo ~.::2E~_x,;á ,
binária sagrado-profano esvai-se: a origem (o mito, o divino) não se repete, o ou ainda dc.=.dum.9J.LillS!!l.iccL.'l~g\lg~'?~~N_a~ã~~-~~u~g>; voduJU ;:~VJ.'I
transe de possessão está incrustado definitivamente na história da pessoa. para_jeje. inquic~_p_ar.<LªTigQlg. O estabelecimento de tais equivalências VlKíÚ
't . . p.ri·m· e. ira qu.e.. st.a.-.o..'. 9.Y..--~ CQP.S~R912.9_~_.J2C~~2-~~t-.d. . 5?~P.-rt.~~.-.~!.~~-~~~~~~e
_:çqcesso_em"qu_tt!~l].t9 "':lf!l_ ~?!!IO o ou~-~?~~ -~'!~!!~.:·,~:~JaJn.:i~~tg~"? Não se trata
pode ter uma conotação estratégica de legitimação do pertencimento a
essas Nações: ''orixá e santo, segundo nossos critérios, é a mesma coisa;
qui de interrogar a essência: o que é a pessoa no candomblé? Isso reenvia- mas em minha Nação, não chamo orixá, chamo vodum, eles dizem orixá
ria a u1na visão a priori que a exclui de seu tempo e de seu espaço social, mas em outras Nações" (Yatemin, mãe de santo).
histórico, político. O que é o orixá no candomblé? Aqui, resvalaríamos à Por outro lado, o termo "santo" pode ser indicado como inadequado, pois
deriva de um debate dupla1nente falso, que gira em torno da existência que pertence ao universo católico: ''Santo é da Igreja católica, dizer santo é
dos orixás ou, ainda, da crença nessa existência. Falso debate do lado dos maneira de falar, mas, na realidade, o certo é orixá~' (Dangeuê, equede). Uma
adeptos, para quem essa existência é da ordem da evidência mais do que "maneira de falar" que pode ser alvo de um discurso de depuração: "Santo,
de uma crença. Falso debate para a antropologia, que procura se afastar de para mim, é uma estátua de gesso, não aceito que as pessoas empreguem este
uma preocupação ontológica estática para tentar restituir a dinâmica social termo, sou co:ntra o sincretismo" (Manuelzinho, pai de santo). "Em alguns
das práticas fundadas sobre essa evidência. A formulação dessa questão não anos, você não ouvirá mais este termo, isto será coisa do sincretismo, vatnos
pode.Lentão'--~-~ da ~ep~~~-5!~J::~-~?~~-~-~_?_5~E!~.~!_.~_eu _processo de 2} usar só orixá, sem nenhuma mistura" (Manuel de Odé, pai de santo).
"fabricação''. Minha leitura de tal processo efetua-se com a ajuda de uma \l
O "fim do sincretismo", já anunciado por certos chefes de culto da
ier;~;;;:ent~ c"anceitual emprestada de Gilles Deleuze (r 967). Este distingue )'::' :} Bahias, pode parecer iminente quando se acredita que o termo em portu-
em qualquer coisa duas "metades" ímpares, dessemelhantes e dessimétri- -~"-~·-;,~
\jJ
cas: o virtual e o atual. O virtual atualiza-se por diferenciação. Ele não se · 3 Em uma análise bastante instigante, Patricia Birman / 1984) mostra-nos muito bem a polí-
opõe ao real, mas ao atual, J2.~!Jlesse.m~JhE:!li.~_:_~~!~-~~::_i~. tica de exclusão e a ~~puta d~.E..~!:!-~~~j~-~~~~~~~~!2.~~~-~~-Q.epuras~.?-
0 CANDOMBl-É: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA r8s

guês "santo" não é senão uma transposição metafórica do termo "orixá" Silvio estabelece uma diferença que vai de orixá no singular a orixás no
em iorubá. Aliás, a antropologia dá os subsídios a esta ideia ao projetar plural, essa equivalência entre os dois termos sendo possível depois dessa
uma imagem de um sincretismo composto de estratos superpostos. Nos diferenciação:
altares dos escravos, os santos católicos posariam para esconder os orixás,
que podem assim permanecer intactos. Aos def~ores d~-~-~~~~5~X:~:-S~~o Orixá e santo é a mesma coisa; só que orixá são todos os orixás e Santos, não é
e aos Cruzados do "fim do sincretismo" não resta senão retirar a máscara mesmo? E santo, só tem um, santo é: meu santo. Oxóssi é um orixá e é meu santo,

R~i~:·~q~~---~;~[~~~.-~!i~i~~-·--~~-~~tri~~~;~~!is~~~~jE~;;y~~~~-d·;~-,c·~;~··~~~i-- meu santo Oxum é outro; o termo utilizado, orixá, é a reunião de todos os orixás,
de todos os santos.
to bem assinala Sybille de Pury I1998), o terreno das metáforas pode se
tornar aquele onde evacuamos tudo o que nos incomoda: "As metáforas Notei que esta ideia de reunião ou de passagem do singular ao plural é
sendo somente '1naneiras de falar', palavras 'colocadas no lugar' de outras recorrente no discurso dos adeptos. Para um iaô que se encontrava recluso
palavras, torna-se então possível não levá-las em consideração se elas nos por ocasião de sua feitura, "orixá é todos os santos reunidos, o orixá, nér'
incomodam, e focalizar nossa atenção somente naquilo para que elas são (Elias). Para um ogã, "orixá é todos os santos que existem, Ogum, Oxum,
colocadas" (Pury, 199'8, p. 104). Na cruzada contra o sincretismo, esta "ma- Xangô ... Todos os santos reunidos" (Jorge de Ogum). No registro da natu-
neira de falar" dá mostras de resistência, provavelmente porque o termo reza, estabelece~se igualmente tal diferença; a cada orixá pertence um
"santo" não é unicamente uma "maneira de falar" mas "a maneira de falar" domínio: "Oxóssi é [o mestre] da floresta, Oxum das águas e das cascatas,
que estabelece diferenças e produz novos sentidos. Angelina, filha de san- a terra é Nanã, os ventos é Iansã, e assim por diante" (Sílvio, pai de santo).
to de Manuel de Odé, parecendo um pouco desorientada nesse combate, O orixá no singular (primeiro nível da representação) reúne a multi-
mostra, por exemplo, a que nível podem se estabelecer essas diferenças e plicidade dos elementos da natureza. No plurallsegundo nível), os orixás
essas equivalências: são diferenciados, a cada um corresponde um elemento, um domínio dessa
natureza. Eles singularizam~se quando são assimilados aos santos ("santo
Para mim, penso que orixá e santo são a mesma coisa. Por que as pessoas dizem 1
orixá e santo? Até hoje não compreendi o porquê dos dois termos. Por que não' é só um"); e aqui se encontra o termo santo empregado em seu aspecto
empregar apenas um, ou orixá ou santo? Santo, para mim, é da igreja, esse santo personalizado, ligado à feitura e à possessão. Nesse sentido, os santos são
que está ali, São Bento, Santo Antônio ... Orixá é aquele que você carrega na cabeça, como os ventos que trazem em suas brisas partículas de seu território:
seu anjo da guarda; orixá, para mim, quer dizer: meu santo. Então, não sei por que
se diz santo e orixá ao mesmo tempo. eles são os ventos que pegam a gente com uma força positiva, é o odum5 com
orodum, é o axé, [... J É um vento, mas um vento que não desmancha a casa, não
Se a diferença entre os dois termos se estabelece sobre um plano 1nais destrói a casa, um vento que traz uma respiração, traz os perfumes, os aromas de
geral (santo é católico), a equivalência se coloca em um nível1nais particu~ onde cada um vem: dos matos, dos bichos, das águas, do mar, do céu, da terra.
lar, aquele da feitura e do transe: o orixá que a pessoa carrega, aquele que
vem possui~la, é seu santo4 • Como então se definem orixá e santo a partir Manuel de Odé, em seu esforço para abolir o sincretismo, estabelece
dessas diferenças e singularidades? outras diferenças:
Para o pai de santo Sílvio, em um primeiro nível, 1nais geral, o termo
orixá regrupa os elementos da natureza: "Orixá é terra, boa terra, é o mar, As pessoas chamam santo, eu não admito isso; o sentido da palavra santo não
corresponde com o orixá, não tem como, é um espírito da natureza é uma força da
é a água, a vegetação, é o céu, o vento, a chuva". Na comparação com santo,
natureza. [... ] São coisas totalmente diferentes, acho que santo se encaixa bem na

4 Este emprego diferenciado dos dois termos já foi assinalado por Trindade Serra (1978). 5 Segundo Sílvio, odum com orodum é "a mesma coisa que axé, é uma boa coisa".
r86 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA

condição humana e o orixá já não bate com nada disso. Mesmo se fosse uma lenda, forma humana: Ogum é o guerreiro, Oxóssi o caçador1 Xangô, o justiceiro1
ela não sobreviveria tanto tempo sem que não tivesse pelo menos um fundinho Oxum, a bela mulher.
de verdade: eu não posso admitir qu~ uma pes~oa, um homem se transforme num
Em um outro nível de comparação com os santos, Manuel aproxima os
leopardo, uma mulher se transforme num búfalo, numa borboleta, fica uma coisa
esquisita, meio estranha; mesmo um feiticeiro, por mais poderoso que seja, não orixás dos humanos, pois eles possuem atributos da vida mUndana:
consegue expelir fogo pela boca, fazer raios brilharem, fazer o vento explodir de
A gente não pode comparar, não pode entender no mesmo sentido, eu acho que
uma hora pra outra, fica uma coisa meio maluca comparar as duas coisas, é como
santo é aquele que mereceu uma posição, ele mereceu um título de honra da parte
se a gente tivesse ainda na onda daquela coisa do sincretismo, como se a gente
dos cristãos, e o orixá não se encaixa nisso, é um lance diferente, não tem nada a
admitisse esse sincretismo.
ver com a ideia de santo. Eu brinco com as pessoas aqui, eu digo: orixá, se a gente
Essa prüneira comparação cmn os santos coloca o orixá do lado da for comparar, não são santos coisa nenhuma, eles são os mais safados de todos, os
mais sacanas; as históris, as lendas não batem com esse título de santo.
natureza 1 da qual ele é uma força e um espírito. Estamos já no plural1 no
segundo nível de representação, onde o orixá se desdobrou: são orixás. Se1 Um segundo plano de diferenciação estabelece-se aqui; o aspecto hu-
segundo a lenda1 esse espírito da natureza é antropomórfico, trata-se, an- mano de seu antropomorfismo desdobra-se em uma multiplicidade de
tes, de seres excepcionais, de potências sobrenaturais que não têm relação traços psicológicos, físicos e sociais que são chamados de "qualidade" dos
com a condição humana. Na narração que se segue, Meire1 abiã da casa de orixás. Esta '~qualidade" é por vezes descrita como sendo um momento na
Yatemin, mostra bem essa dimensão sobrenatural. Note-se, por outro lado1 história do orixá quando ele adquiriu um traço especifico: Ogum que, em
que1 em sua imagem onírica1 é o santo que dá consistência ao orixá: uma briga, engole um cachorro e torna~se o irascível Ogumjá; Oxum que,
em uma batalha, torna-se a guerreira Oxum apará; Oxalá que1 em sua ín~
Eu acho que o orixá é uma pessoa, tudo bem, mas eu acho que é uma pessoa cheia de fância, é o agitado Oxaguiã, e, em sua velhice, o tranquilo Oxalufã etc. A
energia. Sabe quando você vê uma pessoa como se fossem luzes. Eu idealizo assim:
"qualidade" pode ser igualmente apreendida, na diferenciação, como uma
uma pessoa que não é igual a um índio, não é como essas pessoas, sei lá1 um César
que morreu há tanto tempo, um Napoleão ... Eu não vejo assim [... J Todas as vezes 1 organização no seio de uma família. É como explica o ogã Jorge:
que eu vi, que eu sonhei, eles estavam vestidos como os santos, como a gente vê na '
Na minha concepção, nós temos Jorge, existe o Jorge Silva, o Jorge Pereira, o Jorge
saída de um santo: eu não vejo o rosto daquela pessoa, eu vejo muito aquela coisa de
Augusto, existe a Maria, existe a Maria Joana ... O orixá também é assim, é por isso
luz1 sabe? Então eu penso que ele não é uma pessoa, eu tenho a impressão de que ele
que tem mil e tantos orixás, eu acho que a qualidade do orixá também é assim,
não é uma pessoa, como eu, como você[ ... ] Pelas lendas tudo bem, você pensa que é por isso que quando eu falo Ogum, existe Ogumjá, Ogum onirê, Ogum dilê ...
é uma pessoa, mas eu acho que é uma pessoa que viveu muito antes dessas pessoas
Então, são famílias, a gente cria mais ou menos assim, como famílias.
daqui.[ ... ] Eu acho que eles viveram na África, isso a gente lê em algumas lendas, as
lendas de Xangô, de Oxum de Iansã ... Então eu acho que eles seriam pessoas, meio A "qualidade" é, ainda, um sobrenome, como um registro civil que
bicho meio ... Tem um, acho que é Ossanha, que se confunde com as folhas, algumas diferencia:
lendas dizem que ele entrava nas matas e se confundia com as folhas; então eu não
sei, deve ser alguma forma de en~rgia que J?_?de _ficar da J:Uan_eira .comq_g@~r, até da Na minha opinião, é uma aldeia onde cada um tem o seu nome, por exemplo,
maneira deu~ ser hum;~~' nã~~--;~i;é-~cio"f~~t:;;h;~~ da ;~j~h~·~;·te? como São Paulo. Em São Paulo tem várias Carmens, né? Você já pensou se tivesse
uma aldeia só de Carmens? Seria preciso um sobrenome pra poder distinguir todas
O orixá1 como potencialidade dos elementos e da força da natureza, elas1 concorda? Então, eu acredito que seja mais assim, uma aldeia de Oiá onde
diferencia-se uma primeira vez em diversos orixás, sendo que a cada um cada uma tem o seu próprio nome, sua própria característica, sua "qualidade"1 e
pra distinguir, pra diferenciar cada uma como se fosse num RG, tem o sobrenome.
se atribui um domínio da natureza: a Ogum o ferro, a Oxóssi os bosques1
a Xangô o trovão, a Oxum o ouro e as águas etc. Esses últimos guardam A "qualidade", como traço de união cmn sua "condição humana", ante~
o poder de seres extraordinários/ ao mesmo tempo em que assumem uma cipa a atualização do orixá como santo. Mas essa "qualidade" não preexiste
188 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMl?.NTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA

à atualização. É somente por ocasião da "fabricação do santo", da persa~ ção dos orixás e, de outro, dos tipos psicofísicos dos adeptos ''feitos" para
nalização do orixá préMqualificado, que esta· "qualidade" assumirá corpo e esses orixás. Essa separação, ao congelar a dinâmica da "fabricação" do c
7
consistência. A aliança selada entre a pessoa e seu santo forma mna espécie santo e da pessoa, torna possível sua sistematização effi:_ uma tipologia. ., r oJV
de bloco, um "casal"6 indissociável: adepto-santo. Ora, este último será com Devemos então ver nesses traços, esboçados cotidianamel1te"pelos adeptos _lP\ 'iJ ~
efeito o referencial para a descrição que se fará dos orixás. Quando pedimos em suas discussões, a aplicação de uina mera teoria dos tipos psi~~lógicos~~"b'

~
a algué1n para falar de um orixá, a pessoa evocará suas caracteristicas gerais ão estaríamos, antes,·--~~'-"»•-v"•~·-'--~----~-~~-------·-------~-·:J;::.·-·~-
diante da fabricação dinâmica de novos tinos dV
ligadas à natureza e à sua condição de potência sobrenatural, ao mesmo essoas? Com efeito, essas descrições mostram algo de fundamental: essa
tempo e1n que descreverá os traços físicos, psicológicos e sociais das pessoas ''fabricação" não é possível senão na indissociabilidade do bloco santo-
"feitas" para esse orixá. Cmno mostra 1 por exemplo, Shirley, uma equede: adepto. Ora, como no sonho de Meire, é o santo (o orixá atualizado, perso-
nalizado) que dá consistência ao orixá em seus aspectos mais gerais. "Dar
Dizem que Ogum é um guerreiro, que Ogum é do ferro. As pessoas, geralmente as consistência" não é do domínio da metáfora ou da representação; o santo
pessoas de Ogum, são bravas, são nervosas, atacadas, são trabalhadoras, lutadoras.
não substitui o orixá nem o representa. Esse bloco indissociável, longe de
Ogum é um orixá muito bonito. Oxóssi é caçador, né? Dizem que ele é um caçador,
que é das matas, como meu pai de santo [que é feito para Oxóssi]: ele é sossegado, reproduzir o que era até então virtual, o orixá, é, antes, tomado em um
calmo, mas quando fica nervoso: sai debaixo, sai de perto dele! Elas [pessoas de processo criativo: "O virtua_l não se at~ali~ª"....P.2L§.~_m.çJ.h?J1Sil__,_mas pgr
Oxóssi] são lutadoras, lutam por aquilo que desejam, mas são pessoas sossegadas. divergênc~~-~-c!!!.~!.~gs:!.§!~Q:..A diferenciação ou a atualização são sempre
Oxumarê, eu não conheço muito bem, dizem que ele é meio cobra meio arco-iris, criadoras em relação ao que elas atualiza1n" (Deleuze, 1967).
mas eu não conheço, pessoas de Oxumarê eu não conheço muitas. De Xangô, as
pessoas de Xangô são muito mulherengas, ele é justiceiro, é o dono da justiça, dos
trovões, as pessoas dizem que o povo de Xangô é muito ciumento, mulherengo, A FABRICAÇÃO DA PESSOA E DE SEU SANTO
né? Porque Xangô foi marido de Oiá, de Oxum e de Obá. Deixa ver quem mais ... O
povo de Oxalá, a maioriá é meio falsa, dizem. Oxalá aparenta ser. .. dizem, que ele é Considera-se, de modo geral, que toda pessoa possui um corpo e uma
uma pessoa muito calma, muito sossegada, mas não é não, ele é muito vingativo,
alma enriquecidos de outras instâncias que a completam. É como diz uma
elas [as pessoas] são terríveis ... Oxum é vaidosa, algumas ... A minha não é muito
vaidosa não, às vezes eu sou, mas nem sempre .. filha de santo: "O ser humano é a mesma coisa que na Igreja católica ele 1

tem um corpo e uma alma, independenteinente de qualquer outra coisa


É interessante notar que, na maioria das vezes, essas dimensões serão, que ele venha a ter um dia, tá? Mas, para miln, ele tem um corpo e uma
nos estudos afrowbrasileiros, separadas: de um lado, será feita uma descri- alma, é normal, só que ele tem alguma coisa a mais, são essas coisas que
completam ele em tudo".
6 Como bem assinalou Olivier de Sardan (1994), são frequentemente evocadas metáforas A pessoa tem ainda o orí que apresenta essas duas dimensões: fisica-
-~

sociais para designar esta aliança (cavaleiro/cavalo, ~arido/esp~, .!!1~~.0~~); essas mente, tratar-sewia de um ponto preciso localizado no alto, no centro da
metáforas reenviam a modelos sociais comuns, o que acentua o aspecto cotidiano da própria cabeça; espiritualmente, ele seria uma entidade ou uma faísca divina da
possessão. Mas as metáforas têm seus limites. Apesar da proximidade semântica presente
na tradução do termo iorubá yawo (iaô) "' esposa, não se pode entender esta aliança como pessoa. ~-~nt~~.~~yes~S?.!!..~-~--s.~::~~: __?.~-~~-~-_Qr_i. Determinar esse santo
um casamento: aliança entre dois seres de_ mesma C§P.écie. A fim de manter seu caráter consiste em estabelecer seu enredo, sua relação com os outros orixás. O
hete~;;:~~;Ig;;-;t;;;;T~ol;;;i;·p;~;;~~~-~-~ Ü~le~ze-~Guattari (r98o), considerando-a, orixá, senhor da cabeça (olori), é auxiliado por seu ajudante (iuntó ou oju
sobretudo, como núpcias: a!!_~ES.~ ..~.~~!~.-??i.~!!i:E-2.§· As núpcias, dizem esses autores, são ori) e sustentado por um terceiro: carrego. O enredo do santo pode ser
sempre antinatureza, são o contrário do casal como oposição binária: marido-esposa ou
homem-mulher. Não se deve ver no "casal" adepto-santo uma transposição mecânica dessas igualmente chamado carrego de santo: o que ele carrega. Além desses três,
oposições. Isso explica as aspas. outros orixás associam-se ainda ao carrego, sendo que seu número varia
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA fNTIMA ALIANÇA
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o juntó e meu carrego é Ogum, o carrego é o terceiro santo, porque todo orixá traz
segundo a Casa e a Nação à qual ela pertence. Na organização dos três o seu carrego, é urna coisa da qualidade[ ... ] A qualidade da minha Iansã é egunita,
primeiros orixás, define-se a "qualidade" do santo, no sentido êtnico do não conheço nenhuma história sobre ela, a minha mãe de santo não gosta de ficar
termo. Como diz Zoca, 1'a qualidade vem do carrego, do enredo do santo da falando dessas coisas, então, eu é que sou muito curiosa, zolhuda e abelhuda, e
descobri pela boca dos outros. Desde que eu raspei o santo, sâbia que eu era de
pessoa, é aí que se detennina a qualidade do santo". Pode-se dizer que essa
egunita, dizem que cgunita é aquela qve toma conta dos icu, não sei se;é verdade,
organização estabelece-se em correspondência com as lendas e as histórias icu é o cemitério, apesar de que todas Iansãs são do cemitério, eguinta é a Iansã que
do orixá: uma filha de Oxum, por exemplo, pode ter como segundo santo toma conta dos cemitérios .. Geralmente quem é de egunita é de Iansã com Oxum
Oxóssi, que foi seu marido; para um filho de Obaluaiê, seu segundo santo e Ogum, entendeu? E outra coisa, icu !cemitério] tem muita influência em mimi
pode ser Iansã, que o protegeu cobrindo as feridas de seu corpo com ráfia, e antes eu tinha uma mania de ir no cemitério, de ficar lá sentada horas e horas. E a

assim por diante. Mas essas co-rrespondências pern1~n~c-;m pou~;iden­


cerimônia do candomblé que eu acho mais bonita é o axexê [cerimônia fúnebre],
é onde eu me sinto mais calma.
tes quando se percebe que dois santos de uma mesma "qualidade" podem
apresentar enredos diferentes. Henrique, que foi feito ogã, interroga~se a Mara foi "feita" equede há oito anos, mais tarde começou a sentir que
respeito: "alguns di~em que minha qualidade é uma tal. Minha mãe de s~:r_:-~~~e al?.!:?~~m-:_~~-l?.~ra p~-~.:~í~laL<_:>__q~~.I.5:almente acont.e_çeld._QQr
santo nunca me disse: sua qualidade é esta. Mas segundo o enredo, alguns ~~.2-"ªE-~!:!.~_.:_ÇJbü_g_ª·çªg::,. . ie_,SJ~tL<l_tLQS. Um outro elemento que vem

já disseram que eu era de Alunfun1, outros de Azauane, isto quer dizer que confirmar a "qualidade" de seu santo é a circunstância dessa aproximaM
é segundo o enredo: Obaluaiê, Iansã, Ogum. Mas, veja, conheço pessoas
ção. Em contrapartida, a "qualidade" parece legitimar essa mudança de
de Azauane que tem outro enredo, então começo a aborrecer minha mãe estatuto que, como já enunciei tnais acima, poderia ser objeto de críticas,
de santo, ela tem que me dizer!" xoxação: "Quando Iansã mais se aproximou de mim, quando senti que eu
A ideia de "qualidade" cotno diferenciação {um sobrenome) é, na reali- podia virar, foi durante um axexê. Foi aí que decidi ir ver tninha mãe de
dade, muito mais presente, e é na relação da "qualidade" com o enredo que santo para contar a ela o que acontecia". Ç_gg!lecer a "qualidade'' de sev
se procurará estabelecer as nuanças dessas diferenciações. Além disso, d 1 ~~nto torna-se um fator impo!~!l..!~ na tratna contínua dos laços atados CotlfY~di.~~L
segundo e o terceiro santos do enredo terão igualmente sua «qualidade"'
1

°
por ocasião da "feitura"; nesta trama, ~-ª-Ç..9J1..ê..~.!:!-1S:fiQ_sl~~...J?L9llll-ª~R~.~.§g~aJJ cQ,;;,_ · '7
respectiva, como explica Júlia, uma equede, que se mostra reticente em 9)0<! -~ti-".@.i.QgQ.
me revelar a qualidade de seu santo: A "feitura" do santo dá lugar à montagem de sua sede-altar (ibá). Par-
ticipam dessa montagem os elementos materiais que correspondem à sua
Oxum jimum que é bem velhinha, é a minha ... Ah, eu não podia nem falar e acabei "qualidade" e que a confirmam nesse mesmo ato: "Vou montar meu santo,
falando ... É a minha, a qualidade do meu santo é jimun. Jagun ebonã é a qualidade vou fazer o ibá do santo, cada orixá tem uma n1ontagem. Tem Iansãs que
do meu segundo santo, que é Omolu, ele é bem velhinho também. Oxalufã é [a
usam só barro, tem Iansãs que só usatn louça, varia segundo a qualidade'',
qualidade] do terceiro. Meu Oxalá. Também bem velhinho, é Oxalufã, que é aquele
bem velhinho mesmo. diz Dangeuê, equede. O senhor do ori é então "fixado" em seu ibá e no ori
da pessoa pelos a tos e sacrifícios rituais. O orixá, que até então era virtual,
Na busca da "qualidade" de seu santo, a pessoa procurará, por exemplo, atualizaMse, torna-se o santo da pessoa, ele é personalizado.
encontrar os indícios na sua própria história, que podem reiterar a exatidão O santo personalizado tem seu próprio nome, oruncó ou omorunc6
do enredo, como aqui, no caso de Mara: para as Casas queto, e dijina para as angola. Ele é proferido, por ocasião
da festa de apresentação pública do novo iniciado, pela pessoa em transe,
Quando a gente faz o santo, o jogo de búzios fala: o seu orixá é fulano, seu ajuntó
ou, ainda, no caso dos ogãs e das equedes, por uma pessoa igualmente em
é beltrano e teu carrego é sicrano. No meu caso, eu sou de Iansã com Oxum que é
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 193

transe. O nome do santo é uma espécie de resumo de sua história 7• Mas pronto, é interessante notar que a fabricação da pessoa e do santo encontra
observei um outro tipo de formação, em que o nome do santo compreende um primeiro estágio de finalização pelo ~'assentamento" da ·~qualidade". Os
aquele do orixá geral, seguido por outros atributos específicos que o sin- outros orixás serão "assentados" por ocasião das "obrigações" realizadas pelo
gularizam. Zoca, por exemplo, foi feita para Ogum, qualificado de Ogum ebomi a cada sete anos. Por outro lado, ter o maior númerO de orixás ''assen-
onirê; o nome de seu santo é Ogum alê faiobi, que segundo ela significa: tados" é um trunfo importante na demonstração de sua força, de·- seu axé.
"Ogum, frutos da lança de Exu". Outras instâncias espirituais também fazem parte do carrego do santo.
A essa primeira atualização do orixá como santo personalizado, a "fei- O mestre da cabeça tem um ~E~pessoal~. conce~~_9-o COI~?~~~-~<?~-~~av_~~:çn Gu- (?eSJ- "O
i_ntermediário entre a _p~~~9!'1:...~--~~:t:l ~,~~!:t2J.-~~~~l? . ~_?. ~.c:?-~~-"!:-.9:-~fç_1?1LP.a,nLo
0
tura", segue-se uma segunda, o transe de possessão que o atualiza como &-t

personagem. No campo semântico do transe, o termo mais empregado é ~_!Q..!:_p~~~~-12-~.~~~:- Com explica Zoca:
"virar no santo". De modo mais sintético, diz-se simplesmente "virar":
Exu-escravo é o escravo do orixá, ele briga pelo santo. Vamos supor, se uma pessoa
virar ou rodar daí o termo rodante: aquele que vira ou roda. Na indis- está fazendo macumba contra mim, meu exu tem obrigação de brigar por Ogum
---~.---M~~-"-'-"'-'--·-·---~-~-
sociabilidade do b~oco santo-adepto, a pessoa, mais sutilmente, "vira", [seu Santoj. Se não der pra Ogum tomar a frente, meu exu toma a frente. É por isso
<!.~svia-se
-·--•-"<Oodo
___,..que ela é, e seu corpo torna-se então o suporte desse santo.
_,_V"0"0-,0"-'"--
que tem exu, pra descansar Ogum.
Este último toma então consistência, aparece em um gestual específico
que é reconhecido por todos. Os dois termos do bloco santo-adepto estão Tata Leuê fala de _t~~~~~E~~2 como de um instru1nento para a satisJSY.-U"
sempre presentes: Zoca é conhecida no cotidiano como Zoca de Ogum. fação dos desejos e necessidades cotidianas: "exu-escravo é aquele que a
No momento do transe, o Ogum de Zoca designa seu santo personalizado. gente planta [assenta], é uma defesa, é o exu que trabalha, o exn pra quem
Quando se fala do santo como personagem, é preciso então lembrar-se do você faz seus pedidos, é o exu que responde por você no seu dia a dia".
seguinte: essa personagem que se vê dançar em uma festa é sempre o santo O santo carrega ta1nhém um egum. Con1o sua definição é bastante
daquela pessoa, naquele momento. A presença de duas categorias de pesso- imprecisa, fala -se de ~!Il!a~d_e_!1J11 al1s:e."tral,_ol1_~e-~1gg_é_m.m±e. nUJ'.alid!!sle
as deve, por outro lado, ser sublinhada: as rodantes ique "viram") e os ogã's
' nu_~::~.~~:':.!~.?· O ato de "assentar" este egum de santo nunca foi evocado
e as equedes {que não viram). Para estes últimos, o santo deles, privado nesses termos em minha pesquisa de campo. As únicas vezes em que ouvi
de uma imagem corporal, não tem como suporte material senão seu ibá. falar a respeito foi e1n referência ao caboclo. De outro lado, se toda pessoa
Por conseguinte, nunca se falará de seu santo e1n termos de personagem. possui um egum de santo, smnente os rodantes possuem.. utn caboclo,
..·-·--··-··--··-......
~--··----~-------·---~-- ······---" sen-
~------- ---··-----·-·~

A "fabricação" do santo estende-se no tempo: a cada "obrigação", um do que este é "assentado" em geral quando ocorre a obrigação de um ano de
novo orixá da trama será assentado sobre seu altar-sede e sobre o ori. Sendo "feitura". Nos processos de mudança de modalidade de culto, ? caboclo que
esta regra condicionada pelas possibilidades financeiras do adepto, uma vem da u1nbanda pode igualmente ser "assentado" e tornar-se um cab~~lo
"obrigação" pode às vezes se restringir a reativar o que já está "assentado": &·~;l;dQ~hlé:-·~;;;-·~g~~--d~ sant~:· O ep:JLde -~~pto não se ~-anif~sta por
__ ........... '-". _____ ....
~--·-·--. _. ---~-'"''"'" ,.,.. '__,
"""' ,_,~

"dá-se comida" ao santo, simplesmente. Mas, na "obrigação" de sete anos, meio da possessão, mas o exu que vem da u1nbanda, aquele que possui os
quando a pessoa torna-se ebomi, ela deve ter ao menos os três primeiros rodantes, pode por sua vez encontrar uma equivalência com ele.
santos "assentados". Se, como eu disse mais acima, o ebomi é considerado O santo dos rodantes possui tambén1 um mensageiro, seu erê que, em
geral, manifesta~se durante o período da "feitura" ou durante o período
entre a ''feitura" e a "obrigação" de um ano. Parte do carrego do santo, o
7 Roger Bastide (I 9 58) indica uma formação em duas ou três partes, em que o nome genérico
erê pode igualmente ser "assentado", Na elaboração desse carrego, exu,
do orixá é seguido por aquele de sua "qualidade" e, por vezes, por aquele da região africana
de onde é originário. caboclo e erê, que se colocam do lado da possessão, diferenciam as duas
r····
I94 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO
A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA I95

categorias de pessoa: o santo dos ogãs e equedes tem um ~~vo~.e um Eu cultuo mamiota8 que é uma divindade ewe. Trata-se de um orixá secundário,
que é só meu, que não tem nada a ver com o culto a orixá, é uma outra história. O
egum
··--- de santo,
-----· --'
" .
mas nunca terão nerp caboclo nem erê; somente os rodan-
culto à mamiota deve começar desde a infância. Você deve saber se você tem uma
tes pode1n "assentar" e ser possuídos por estes últilnos e por um eventual
mamiota ou não por meio de provas práticas. Eu cultuo mamiota como se faz no
exu vindo da urnbanda. Cada Casa e cada indivíduo encontrarão nessa Togo, tem uns seis meses, mas já conheço minha mamiota desde minha infância,
elaboração os elementos diferenciais para a fabricação da pessoa. E-~'f:!§, porque ela deve aparecer, deve conversar com a pessoa, deve possuir a pe'.Ssoa, enten-
E~lJ.gç_19~1?}!__~!~_s __d_~~~~:2-~~4~-~--.P.~P~~s ~a~t~p_te 4_iy~~sos- mensageiros, de? Quando eu era pequeno, eu já tinha minha mamiota ... É lógico que ela não iria
adivinhos, feiticeiros, brincalhões, curandeiros - na vida cotidiana dos possuir o corpo de uma criança, ela aparecia para mim. No início, eu tinha medo,
porque não sabia do que se tratava. Soube que era mamiota porque um cara do Togo
adeptos. Personagens lirninares, na charneira das dicoton1ias- candom-
veio à minha casa e, conversa vai, conversa vem, ele descobriu que eu tinha uma
blé/umbanda, religião/magia, África/Brasil-,.s_u~_pr~_sei1S'".l1.e..S§!'.SQ!i..dja­ mamiota, graças a essas provas práticas de que falei para você. Então, ele me ensi-
!lC>d.~Jl1&.rA toda . espéde...<!.e.r~Ço.IPJ29.§j_ç.ão.na_fu!J_gcj!ç_iip_s;l_a§..tg_<:lj&9_es. nou o culto, como a gente assentava, tudo: os rituais, o que era oferecido, quando
Se para as Casas engajadas na reafricanização a ideia de enredo e de e por que, os feitiços ... Antes de encontrar esse togolês, eu não sabia como cultuar,
carrego pode ser completamente abolida, nota-se que persiste ali uma não sabia como fazer, então, eu fazia como se faz com a Pombagira no Brasil. Ela
ficava furiosa. Eu não entendia direito por que eu tinha mais perdas do que ganhos.
multiplicidade de instâncias espirituais. Por exemplo: ao lado do olori (o Eu tratava como uma Pombagira e nada surtia efeito. Era porque ela se ofendia. Eu
senhor do ori), encontra-se um orixá determinado pelo odu (destino) da cultuava como se cultua no Brasil. Mas depois de ter começado a cultuar como o
pessoa, u1n Exu primordial, orixás que a pessoa pode decidir cultuar, po- togolês me ensinou, comecei a ter ganhos. O resultado foi realmente instantâneo.
tências espirituais diversas como a feiticeira Yami Oxorongá etc. Quando você tem mamiota, você ganha dinheiro, poder, mas perde a liberdade, não
pode mais se casar, entende? Você não pode ter relações sexuais em determinados
A atribuição ou não de um lugar aos caboclos, exus e erês pode igual-
dias da semana, senão você desperta a ira desse vodum que é um vodum muito
mente contribuir para o agendamento dessa multiplicidade. Manuelzinho, ciumento. Ele quer a pessoa só para ele, ele é capaz de defender a pessoa até mesmo
mesmo que engajado em u1n processo de reafricanização, ainda é possuído da ira de um orixá. Ele se põe na frente da pessoa, o orixá não consegue atingir essa
por un1a Pombagira da urilbanda, u1n exu fe1ninino. A fhn de remediar esse pessoa, tá? O nigeriano, em geral, não gosta muito desse tipo.de divindade porque
problema, ele introduziu em sua Casa um culto a um vodum ewe que lhe eles acham que como é uma divindade mais inferior, você fica longe da perfeição
do orixá, da dimensão mais divina. É uma coisa muito terra-a-terra. Aqui !com ma-
permitiu recolocar de 1nodo diferente esta Pombagíra da umbanda. Quan-
miota], você faz o feitiço: quero dinheiro, quero isso, quero aquilo e ela te dá. Não é
do o encontrei pela primeira vez, Manuelzinho falou-me de suas mudanças como essa coisa de divindade como com o orixá, né? Antes de encontrar o togolês, já
sucessivas de Casas, de pais_ de santo e mesmo de santos. Ao abrir essa existia a possessão e tudo o mais. Elas [as mamiotas] não costumam dar satisfação
espécie de inventário (4 Casas, 5 pais de santo, 3 orixás para os quais ele de nada aos humanos. Essa possessão era realmente uma enganação, ela não dizia
quem ela era e as pessoas pensavam que era uma Pombagira. Quando ela vem, ela
foi "raspado": Logunedé, Oxum, Oiá), ele assinalava sua busca incessante
explica as coisas da sua vida, como: faça isso, faça aquilo, presta atenção nisso,
de uma prática religiosa mais tradicional. Estávamos em uma daquelas coisas assim, faça tal feitiço, ela ensina o feitiço e tudo ... Isso se parece muito com
"reuniões de estudo" que ele organizava com Manuel de Odé e o ogã Jorge, a Pombagira que as pessoas conhecem por aqui e é por isso que quando ela virava
que se divertiam comentando esse inventário como se fosse de sua tradição era uma enganação. Essa possessão parece muito com aquela coisa de umbanda,
africana. Todos os elementos de uma "África tradicional" são convocados né? Porque ela conversa com as pessoas. Mas não é realmente uma Pombagira, é
uma coisa um pouco mais elevada e bem mais poderosa. Uma outra diferença: a
nessa composição: a Pombagira, mulher de rua, prostituta da umbanda, in-
Pombagira vive na rua, mamiota vive na casa da pessoa. A gente tem um quarto
venta para si um trunfo, uma princesa togolesa à qual Manuelzinho se alia separado só para mamiota, com móveis e tudo. Mamiota mora com a pessoa. Ela
para se tornar poderoso. Permito-me transcrever aqui, de modo exaustivo,
este discurso bastante interessante, que inventa uma legitimação para essa
8 Trata-se, aqui, certamente de Mammi Wata. Ao conservar a grafia mais próxima da pro-
personagem tão criticada pelas mais ferozes ortodoxias: núncia de Manuelzinho, eu restituo o aspecto muito pessoal da fabricação deste vodum.
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 197

.Jrc;/,af_
se parece com a Pombagira, mas é mais elevada e muito mais poderosa, o culto é
supersecreto, é um vodum, então tem a ver com ewe. No Togo, ela é tratada como
Essa.atualização não pressupô~ um~ i~ivi~E:aliz~2ª_2 nO_§~~t_do ~~g.g~ta~ ~~·:;o{~~~(/ :::r
uma princesa, ela é uma princesa. EU não falO muito disso porque é meu ás na
de indivíduo, isto é, de unjj!~gãc:_9~<?~~-~!' mas uma _singulan~a_&fl<L~ ~~~a r ,~Yr:.,:'!/,: 1 1
~~_9.nalizaç~: No lugar de uma identificação do ator~_adepto com a per- u '~lí..~.'J i
manga. Porque se os caras conhecem tudo o que eu conheço, elas não conhecem
[mamiota], entendeu? Isso quer dizer que você tem um espião a mais, uma pessoa
que pode agir por trás. Porque, você sabe, no Brasil, no meio do candomblé, vamos
sonagem-orixá, dá-se a substituição por um bloco indiss6ciá~~l, adepto- 4 vt~r (_~.e..,
santo, que, graças a um movimento mútuo de "virada", apareCe em un1a
0
~.... '
.
falar assim, existem muitas perseguições, muitas traições, muita macumba, muita
performance cujo gestual é reconhecido pelo grupo. O orixá personalizad~ ~'
feitiçaria; então, você tem de estar sempre ligado, né? Falar que se tem um exu, ,,.., "t') '

que se tem um egum, e também tenho; então, mamiota é a minha arma secreta. \o santo, não é o "reflexo de um ~u profundo", m_~s um ele!Eento da pe~~o _::.;:.>~."':z./?9"

As imagens da ~'coabitação" dessas instâncias espirituais no ori da


pessoa são muito variadas. Para Manuel de Odé, o primeiro santo é o dono
~ ue, em suas componentes_~~~~"~:t:~~g;ã'SêSõêíãí~l~I'I~-~~~':.~-e-~-~~ ~t<;~ _.:0
eterogênea e múltipla.
O esquetna a seguir poderia resutnir de modo diverso o que foi dito:
:s?cz~" :'? ";: 7
-q>S;'~R
«;-.p~~ttq:,
·~-t
da casa que acolhe seus hóspedes colocando-os em sua casa, seu lar, que
é o ori. Kilombo pens"'!- o ori como um reino, onde o primeiro santo é um
rei cercado por seus príncipes e princesas (o segundo, terceiro ... orixá do
enredo), por seu escravo (o exu-escravo} e, ainda, por um bufão (o erê).
Na constituição da pessoa, evoca-se também a presença de um anjo da
guarda cuja natureza permanece às vezes confusa. Alguns o consideram
\
como sendo o próprio santo, outros como uma entidade, diferente daquele,
que os protege. Observei, de outro lado, que ao sair de um transe, a equede
pode chamar a pessoa pelo nome, dizendo-lhe: "Teu anjo da guarda te cha-
Orixá Aliança:
ma!" Se a partida do santo é marcada por esse chamado do anjo da guarda, qualificado adepto-santo Possessão
uma distinção entre os dois parece se confirmar, sem que, entretanto, a
ligação entre eles se apague. Como explica Lucélia, filha de santo,
Orixá no
----o--o
plural
O anjo da guarda, pra mim, seria um espírito que me protege, que me acompanha
direto, o tempo todo, independentemente do orixá. Ele faz parte de mim também,
é claro. Ê ele que me faz ser o que eu sou, mas ele caminha junto com o santo, eu
acredito que os dois caminham muito juntos. Durante um certo tempo eu pensava
que o orixá era o meu anjo de guarda, porque eu acredito que o anjo da guarda tem
~o
muito a ver com o meu orixá, com o meu santo, entendeu?

Em outra perspectiva, considera-se que esse anjo da guarda não é senão Orixá no
singular
um modo de dizer eledá lprotetor da pessoa em iorubá). Ele pode igualmen-
te ser considerado como a ligação entre a pessoa e suas instâncias pessoais.
Por outro lado, ele é assimilado ao olori lo senhor do ori). Enfim, dir-se-á
que o anjo da guarda é o odu da pessoa, seu destino.
Em resumo, o ritual da "feitura" pode ser pensado com um processo em r" diferenciação 2
3
diferenciação e atualização z" atualização/
que o orixá que, existindo apenas enquanto ugt~ virtualidade, atualiza~. personalização
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 199

A:_rr1ultiplicidade e a hf!!'mgeneida~k. da pessoa, reenviando às suas Segato, r995l· Ela constitui igualmente um argumento de peso na concor-
componentes espirituais 9, não são por m:i.m consideradas do ponto de rência entre as Casas. Quando um filho de santo de uma outra Casa vem
vista interno e estático. Ao insistir sobre seu ~~~pe~,~9.. ~.?E~~l, eu gostaria consultar um pai de santo, este últhno não hesitará em anunciar, pelo
de recolocar essa !?5?.2.ª~~,~~--P~~.§:.~~ em uma dinâmica e1n que se alinham jogo de búzios, os erros cometidos no momento de sua Í~·iiura. Esses erros
\ jr~~t~l:P.-_!etaç_~~~_p·~ª~oai_~---~-~~Qgr:-ª§_g_fl_}).ovo_.-_§.._sentidQ.§,__ g!;!·ª-ªj~.os e negocia- podem ir de un1a simples ausência desse ou daquele ingredierífê sobre seu
ij@~..e_str:~!~!l_icos no in~ri.o.r:.das..Cas.a_s__QJJ_entre__ela_§. ibá à determinação equivocada do santo e de seu enredo. Kilombo, por
ocasião de uma conversa informal com um filho de santo de uma outra
Casa, que veio até ele para realizar um ebó, conta-nos diversas histórias:
TROCA DE CABEÇA: A DINÂMICA DA PESSOA
espécie de "publicidade" do poder absoluto do orixá e de sua capacidade
Na literatura antropológica, considerou-se como bastante raros os ''erros" de ad1ninistrá-la. Dentre essas histórias, veja-se aquela de uma de suas
cometidos na determinação do santo da pessoa. Trata-se de um ser dila- filhas de santo:
cerado pelo conflito e~tre as exigências de sua alma interna e a coerção
externa das representações míticas. Esse ser parte então em busca de uma Nalva de Oxumarê fez o santo cinco vezes e o santo nunca pegou ela de verdade,
ela fez Iansã, Iemanjá, Xangô ... Ela chegou aqui com uma mala de remédios, o
nova Casa de candomblé, onde seu "verdadeiro orixá" poderá lhe ser reve-
santo jogou tudo fora; na hora que eu disse o nome do santo, ele pegou ela; eu não
lado (Bastide, r983l. Este ser dilacerado sofrerá toda espécie de infortúnio troquei o santo, são os outros que não tinham feito nada, rasgar a cabeça é uma
e de doença (Cossard, r97o), sobretudo doenças mentais (Bastide, r958l. coisa, fazer o santo são outros quinhentos!
Além disso, tais erros são a prova de uma falta de "tradição": "Do ponto de
vista da ortodoxia, no entanto, isso é simplesmente impossível. Acontece, Para Kilombo, se Nalva "fez" o santo cinco vezes, isso não era uma
é verdade, que muita gente oferece sacrifício a outro orixá que não o seu, "verdadeira feitura"; em vez de praticar as incisões e os sacrifícios adequa~
ou usa um colar que nada tem a ver com o verdadeiro dono da cabeça. Sem dos, haviam unicamente rasgado a sua cabeça; o verdadeiro santo, foi ele
dúvida, é lastimável" (Angras, r983, pp. 222-2241. Seguindo esta autora, quem o fez! Estamos aqui, é evidente, em um discurso de legitünação de
quando há "autêntica tradição", instalamo-nos numa perturbadora prova seu poder, curiosamente muito próximo do discurso dos pesquisadores
da impossibilidade deste erro: "Ao chegar-se a iniciação, a coisa muda de citados mais aciina.
figura. O orixá não é fixado e recriado passivamente. Ele próprio participa O erro, na determinação do santo ou de seu enredo, explica o infortú~
do próprio participa do procesf?O iniciatório, a tal ponto que, no dia em que nio e retraça novas perspectivas para resolvê-lo. Sheila, neta biológica de
a noviça é apresentada solenemente à assembleia dos fieis, é ele mesmo Kilombo, e equede em sua Casa, atravessava um período muito difícil (sem
que grita pela sua boca. No momento de dar o Nome, é o deus quem fala trabalho, sua casa destruída por ocasião de uma tempestade, problemas de
e se nomeia para todos ouvirem" (idem, p. 224). Conclusão: '~~s família etc.), quando Kilombo, ao consultar o jogo de búzios, anuncia~ lhe
sabem quem eles são" (idem, ibideml. Aparentemente incontestável do que seus problemas vinham de uma exigência de Xangô, que pedia uma
ponto de vista religioso, tais proposições não tê1n pertinência alguma em oferenda. Ele preconiza um ebó para abrir seus caminhos e uma oferenda( .
'I
face da experiência cotidiana dos adeptos. , ;'a panela de Xangô", para acalmá-lo. Algum tempo depois, vendo pouc, I
A troca de cabeça pode ser uma prática voluntária e estratégica do jimelhora na sua situaçãq,_S_he~lacomeça a pressionilr_s".!l_'lVÔ Pilr."_'l':le.."lj'/
chefe de culto para a resolução de um problema da pessoa ou do grupo (cf. ~. bncontre outras soluções;.,. Como isso geraria inevitavemente alguns con-
~~""----·-·-·----,-----··
flitos, ela decide então jogar os búzios com outra pessoa. Esta últilna lhe
'-~-----·-·-·----·------ ··- ---····---···
··-··-·--·-··-·"-·-----·---~--~·-·

9 Este aspecto foi igualmente mostrado por Goldman (1987). diz que Xangô pedia o que lhe era devido, pois ele fora colocado de lado
200 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 20!

por ocasião da determinação do enredo de seu santo. Ela lhe diz ainda que Se é possível dizer que a doença está presente nesses relatos, não se
não se tratava de um simples erro, mas qu4 essa mudança fora necessária pode afirmar que a doença mental é evidente. Com efeito, a correspondên·
para que o santo de seu avô não fosse posto em perigo lO. Ela havia sido fei~ cia estabelecida entre doença n1ental e "cabeça trocada" apoia-se na ideia
ta para Oxum, acompanhada de Oxóssi e Ogum, mas Sheila estava agora segundo a qual a «feitura" operaria uma unificação do pSiquismo. A ('ca·
convencida de que seu enredo era, na verdade Xangô acompanhado de
1 beça trocada" representaria então uma desestruturação desse{. equilíbrio.
Oxu1n e Ogmn. Se tal "descoberta" impunha a ela muitas questões sobre Ora, nas histórias de vida dos adeptos, nota-se, antes, Ulna reorganização ~-~ ro~a..Jn\~:~
ça:o ClS
suas relações com seu avô e sobre sua maneira de consertar tal mudança, das componentes da pessoa. Se o aspecto psíquico faz dela parte, não se'-D"MO" .i
- 'i~~~
abria-lhe conjuntamente uma possibilidade de resolver os problemas que pode negligenciar seu aspecto social ou, mes1no, histórico. A "troca de ·
enfrentava e1n sua vida cotidiana. Sheila decide então procurar respostas cabeça" pode então ser compreendida como uma reorganização do lugar
em outro lugar. gue a pessoa ocupa no grupo1 na sociedade.
Encontrei diversas pessoas que estivera1n ou estavam na mesma si- Essas reinterpretações do enredo do santo podem se tornar, por outro
tuação de Sheila. Os problemas evocados como consequência de um erro lado, !!_ID<;l__yerdadeira reescrita da vida da p-~~or vezes, da histór~a
na determinação do enredo eram os mais variados. Assim como para a da Casa à qual ela pe~t:,ep-"e. A história de Albani, esposa de Mannel de
"feitura", essas pessoas apresentavam, na 1naioria das vezes, perturbações Odé, parece-me exemplar a esse respeito. Ela conta que, aos doze anos,
de ordem física, social, econômica etc., como se pode observar nos dois ficara gravemente doente dos puhnões. Sua mãe consultou diversos pais
trechos de entrevista: de santo até o momento em que descobriu que o problema de sua fiha ''não
era físico, mas espiritual". Esses problemas estava1n ligados ao pedido de
Perdi meu emprego, meu marido, minha vida desabou. Foi aí que percebi que tinha
urna iniciação pelo santo de sua mãe: ('Seu santo n1e usava, que era o que
alguma coisa de errado com meu santo. Decidi procurar de onde vinha esse erro[ ... ]
Vim aqui e ele me confi.rmou, eu não era de modo algum filha de Ogum xoroquê,
minha mãe mais amava, para obrigá-la a raspar". Com efeito, sua mãe
sou de Iansã (Cida, filha de santo). fez-se iniciar e Albani, conta ela, saiu do hospital vinte dias mais tarde.
Após a iniciação de sua mãe, as duas começaran1 a frequentar a Casa
Depois de um ano de feitura, as minhas dores de cabeça voltaram e eu comecei a es- de candomblé que pertencia à mãe biológica de Manuel, com quem, após
quecer o lado de novo [ficar paralisada de um ladoj; eu fui piorando, comecei a odiar
algu1n tempo, ela se casou. Albani pouco considerou as experiências de
as pessoas, precisava fazer alguma coisa[ .. ,] No sábado, eu acordei com um gosto de
sangue na boca, um gosto de sangue como se eu tivesse perdido todos os dentes [., .]
transe advindas nessa época, pois que desejava se "manter afastada da
Fui jogar búzios com Manuel: .ele disse que era uma coisa do santo, o santo estava macumba- nunca gostei disso". Até o dia em que caiu novamente doente
revoltado com tudo que tinha acontecido na outra casa. Ele disse que o meu santo dos pulmões. Os insucessos do tratamento proposto pelos médicos torna-
tinha sido feito errado, pior ainda, que eles não tinham é feito nada[ ... ] Foi estranho, vam evidente para ela a causa espiritual da doença. Foi ao pai de santo de
porque eu era filha de Oxum com Iansã e, de repente, alguém me diz pra você: não,
Manuel que, jogando búzios, confinnou a necessidade da iniciação. Albani
você não é filha de Oxum com Iansã, você é filha de Ogum com Iemanjá, então, você
leva um tempinho pra se acostumar (Angelina, filha de santo). fez-se então iniciar para Oiá. Alguns dias depois, o médico reconhecia
uma melhora de seu estado, após descobrir que era tuberculose: "Os re~
médios começaram a fazer efeito, comecei a me sentir melhor, engordei
15 quilos". Ela disse que tal melhora a levava "a acreditar um pouco mais
10 Kilombo realizava sua "obrigação" de 21 anos, quando Sheila "fazia o santo", Como are-
no candomblé". Mas, um ano depois de sua ((feitura"1 '(na data exata" de
clusão de ambos se deu no mesmo momento, uma relação se estabelecia entre seus santos
assim como outros laços entre eles se teciam: Kilombo e Sheila se tornaram irmãos de sua entrada em reclusão, sua mãe faleceu. Ela explica que, para ela, "era o
santo. santo que pedia alguma coisa, penso que era realmente uma coincidência/
202 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 203

uma pessoa que não sentia nada, que é hospitalizada por causa de uma O problema do enredo de seu santo retorna quando Albani dá-se conta
dor de estômago e sai dali morta, na mesm~ data [da reclusão de Albani]. de que Oxum pedia o que lhe era devido, desejando levar seus filhos. Com
Para mim, isso foi 1nais que um choque, foi uma bofetada enorme, do efeito, ela participara de um congresso 11 com Manuel durante o qual a mãe
tipo: acorde, tem alguma coisa de errado!" Albani disse que percebeu que de santo Sandra de Xangô (figura importante no movimento de reafricani-
fora "desviada de seu caminho". Desde a sua ''feitura", ela tinha dúvidas zação do candomblé em São Paulo) apresentou uma conferêndia sobre os
com relação à determinação do seu seu santo: "os búzios, nos outros pais abicus 12 :
de santo, sempre davam Oxum como primeiro santo; na casa de meu pai
Mãe Sandra de Xangô começou a explicar como eles eram e eu comecei a associar
de santo, Oxum também respondeu diversas vezes. Mas Oiá també1n, com os meus filhos. Aí me deu um desespero total. Depois eu fui falar com ela e
então ele decidiu fazer Oíá com Oxum em segundo. O terceiro é Oxóssi". expliquei como eram os meus filhos, meus problemas na gravidez e tudo mais.
Ela reconhece que depois de sua "feitura", ela ganhou a vida, 1nas perdeu Ela me disse que era possível que fosse isso, mas que a gente precisava ver nos
búzios. Ela me indicou um filho de santo dela, Carlos de Obatalá e eu fui procurar
muitas coisas: "meu pai de santo me !...~l~~u a vi_~L~-~-~I?..~~-.2..~~~? lado, ele
o Carlos. Ele jogou os búzios e descobriu que os meus dois filhos eram abicus.
}me deixou de pés e mãos amarradas: foi cobrado o quê? Foi cobrado uma
1
~~-tra vi~i~·~Aib~~i-di~se ~star c~~-de que o erro vinha do enredo de seu Albani informa~me que Manuel suspeitava disso tudo, mas que não
santo, que sua cabeça pertencia a Oxum e não a Oiá. Ela interrogou seu tinha certeza antes do congresso. Segundo Albani, o único orixá capaz de
pai de santo, que lhe explicou que a "qualidade" de sua Oiá era muito pró- manter um abicu na terra, capaz de impedi-lo de prosseguir seu destino
xima de Oxum, que era por isso que ela pensava pertencer a Oxum. Pouco de morrer, era Oxum.
convencida com essa explicação, ela afastou-se do candomblé, sem na rea- Quando encontrei Manuel pela primeira vez, ele logo me falou do grupo
lidade abandoná-lo verdadeiramente, e cmneçou a frequentar um culto de de discussão que criara com Manuelzinho e com o ogã Jorge, explicando~
origem oriental (Seicbo-No-Ie) que ela descreve como sendo uma "religião me que sua pesquisa estava centrada nos abicus. A preocupação de Manuel
oriental que cultua os rriortos e a natureza, isto é, quase a mesma coisa com relação a seus filhos era evidente, mas me pareceu também claro que
que o candomblé, com uma única diferença: a pessoa não entra e1n transe". nessa pesquisa vinha introduzir-se todo o trabalho de reafricanização de
Nesse meio tempo, Manuel decidira instalar-se em São Paulo, abrindo sua Casa. Para Albani, se não tivesse havido um erro na atribuição de seu
sua própria Casa de candomblé. Albani mantinha-se à distância até o dia santo, Oxum teria provavelmente evitado que seus filhos fossem abicus.
em que o santo de Manuel a designa para ocupar o posto de iá-quequerê. Para a Casa de Manuel, esse erro tornou~se um eixo importante na defi~
Seu retorno ao candomblé fo.i então concebido como u1na volta "às ori- nição de seu perfil.
gens". A Seicho-No-Ie é um parêntesis aberto em seu percurso que, uma Quando contatei Manuelzinho, depois do fechamento da Casa de Ma-
vez fechado, parece tornar mais forte e mais eficaz o candomblé: nuel, ele logo evocou a história de Albani e de seus filhos, como que para
me dizer o quanto Manuel não conseguira realmente se reafricanizar.
Fui para a Seicho-No-Ie pra mudar minha cabeça, mas a minha religião era o
Então, com um tom maledicente, ele "revelava~ me" que sempre soubera
candomblé. Lá eu estava cultuando do mesmo jeito, da mesma forma, só que um
pouquinho mais devagar. Porque no candomblé você já vira no santo, já faz o que que os filhos de Manuel não eram de modo algum abicus. Contou-me em
tem que fazer mais rápido, na Seicho-No-Ie a gente só reza ... Até o dia em que eu seguida que Albani fora à sua casa para j'assentar" Oxum, o que ele fizera.
vi a minha mãe, que já tinha morrido, sentada do meu lado, ela estava rindo do que
eles estavam fazendo lá, eu nunca mais voltei, e disse a mim mesma: eu volto pro I r IV Congresso Internacional da Tradição e da Cultura do orixá que se deu em São Paulo, em
candomblé, pras minhas origensi aqui, se pelo menos eu ver a minha mãe do meu 1990.
lado, eu sei como fazer para despachá-la e lá eu não saberia como fazer. 12 Título da conferência: O Conceito de Abicu na África e no Brasil. Albani explica que os
abicus são crianças que, se não morreram no parto, nascem para morrer.
204 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

Mas, garante-me ele ainda, seu jogo de búzios anunciara que ela era com
efeito filha de Ya Omi, a Dama dos Pássat:os, esta última tendo sido ''as-
sentada" mais tarde por um "africano".
2.
Socialização e aprendizado:
os códigos do transe

Considerando a "feitura" como uma fabricação da pessoa e


de seu santo, tento pôr em relevo, entre outros aspectos, o as-
pecto social da aliança daí decorrente. Como bem assinalou
Olivier de Sardan lr994), essa aliança é social, pois que impli-
ca uma socialização e um aprendizado. Informal, banalizado
no cotidiano das crianças que frequentam o candomblé, este
aprendizado é resultado da impregnação íntima de uma série
de códigos corporais partilhados pelo grupo. Trata-se, com
frequência, antes das núpcias la "feitura"), de um namoro em
que as diferentes modulações do transe informam o corpo
do abiã. Durante o período da "feitura", uma negociação das
modalidades dessas núpcias ocorre quando o iaô deve passar
por uma espécie de teste que coloca à prova sua capacidade de
cair ou não em transe. Selada a aliança por sacrifícios e atos
rituais, o ensaio do iaô colocará em exercício a apresentação
pública desse "casal" ou bloco.

AS CRIANÇAS BRINCAM DE MACUMBA

Najara, uma garotinha de dois anos e meio, corre no barra~


cão da Casa de culto, gritando: mãe, o caboclo chegou! Em
seguida, vemo-la conversar com ele no quintal. Mostra a ele
as marcas de uma vacina e alguns pequenos machucados que
206 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 207

tem na cabeça e na barriga. Pergunta~lhe se ele gosta de morangos, mas cem tornar~se pouco a pouco mais autónomos em relação às sugestões
ele diz não conhecer essa fruta. Com efeito, ele pouco parece compreen- dos adultos. Como os caboclos, que indicam quando os trechos tocados
der o que lhe conta a criança. Najara lhe diz então que seu pai se chama deve1n parar, ela toca com o pé o estrado onde estão os atabaques. Os
Kilombo; o caboclo responde "e eu, eu me chamo Sete Cruzeiros". De vez adultos diverte1n-se muito e Najara parece cada vez 1Úais engajada em
em quando, ele canta o que acaba de dizer. Najara pede para beber em seu sua brincadeira. Kilombo, seu pai, chega ao barracão, Naj'á'·ra joga~se a
copo. Ao final de certo tempo, uma mulher vem cobrir a cabeça do caboclo seus pés para realizar o gesto ritual de saudação, colocando sua cabeça no
com um tecido; após alguns sobressaltos do corpo, cmn a cabeça descober- chão (bater cabeça). Kilombo entra na brincadeira cantando e dançando
ta, u1na outra expressão aparece em seu rosto. Najara o cha1na: pai! Este a com ela. Subitamente, Najara para, com as mãos atrás das costas, com a
olha sorrindo e a abraça. Najara começa então a lhe contar que ela acaba de cabeça inclinada. Bárbara pergunta se o caboclo quer partir. Najara ba-
ver o caboclo. Ela dá detalhes de sua conversa com ele, explicando que ele lança a cabeça com um gesto afirmativo. Bárbara coloca suas mãos sobre
lhe deu vinho para beber, que ela lhe mostrou sua vacina e seu machucado seu peito, Najara sacode o corpo e, em seguida, grita: ''dizmãezinha!" Os
na barriga e na cabeça 1 • adultos riem 1nuito e saúdam em seguida o erê (espírito~criança). Najara
Em outro dia, Najara olha com interesse minha câmera desligada. Sua vai ao roncó e sai dali com duas chupetas na boca. Em seu modo já in~
mãe, com quem converso, sugere a ela: "Imite o caboclo para ela te filmar". fantil de falar ela acrescenta algumas deformações próprias aos erês. Ela
Najara, como muitas crianças de sua idade, mostra~se tí1nida. Ligo a câ~ dança um pouco com Bárbara, brinca com a câmera, diz para mim que se
mera. A mãe ainda a incentiva: "Vai, mostre para ela como faz o caboclo!" chama "espadinha de fogo", grita como os erês. Sua brincadeira dura mais
Najara hesita, fixando a câ1nera como se fosse posar para uma foto. Ao final ou menos uma hora, os adultos perguntam se o erê quer partir, ela recusa.
de alguns minutos, levanta-se, inclina a cabeça, fecha os olhos e começa a Sua mãe vai então para a cozinha para preparar o jantar, e Maria para
sacudir o corpo colocando suas mãos atrás das costas. Ela dá alguns passos passar roupa. Bárbara vai assistir à televisão, enquanto Najara fica na co-
para a frente, eu continuO a segui-la. Uma outra mulher, Maria, chamando-a zinha brincando de erê. De quando em quando sua mãe fala co1n ela, cha~
caboclo, pergunta se ela quer colocar a saia de caboclo. Ela balança a cabeça mando-a sempre de erê, perguntando~lhe do que gosta de fazer, de comer,
com um gesto afirmativo. Bárbara, sua irmã de oito anos, canta: "Caboclo onde mora, quem é sua mãe etc. As respostas de Najara se aproximam do
não veste saia, caboclo só anda nu!" Sua mãe diz a ela: "Dê o ilá do caboclo". universo particular dos erês. Em um determinado momento, eu a chamo
Najara curva-se para a frente, com as mãos sempre para trás, e dá um grito: "Najara" para verificar se a brincadeira continua, ela me responde: "não, é a
"heyoo!" Todos os que assistem à cena rie1n muito. Sua mãe, chamando-a espadinha de fogo". As duas mulheres, ocupadas com suas respectivas ativi~
agora caboclo, diz a ela para cumprimentar os presentes. Como os caboclos, dades, parecem agora ignorar por cmnpleto a brincadeira da garotinha. Esta
ela assim o faz tocando com seu mnbro direito o ombro direito da pessoa, última volta para o barracão, eu fico na cozinha. Sua mãe me diz mais tarde
em seguida com o ombro esquerdo o ombro esquerdo. Bárbara propõe para que Najara nunca usa chupeta e que gosta muito de brincar disso tudo; ela
irem ao barracão para dançar. Najara a segue, e a cada soleira de porta ela igualmente me diz que, por vezes, tem a impressão de que os espíritos do
realiza o ritual de girar com uma meia~volta sobre si mesma para transpor caboclo e do erê se aproximam de sua filha durante suas brincadeiras.
a porta recuando, sempre emitindo o grito do caboclo. Sublinharei nessas pequenas cenas dois aspectos fundamentais do transe
No barracão, Bárbara toca o atabaque, enquanto sua mãe dança com de possessão tal como ele é viveneiado pelos adeptos do candomblé: um
Najara. Esta emite os gritos do caboclo várias vezesi esses gestos pare- acontecimento ''normal" totalmente inserido no cotidiano deles, um jogo
de papéis legitimado pelo grupo. Com dois anos e meio, Najara já pode
I O trecho fílmico desta cena está disponível para consulta no MNHN (UMR CNRS 8575). reconhecer esse "desvio", essa desterritorialização totalmente "normal" de
208 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA iNTIMA ALIANÇA 209

seu pai durante o tempo em que ele ('vira" no caboclo ou, em outras ocasi~ brincadeira: elas se iniciam ''de mentira", mas se cortam <ide verdade". Essa
ões, no santo. Esse reconhecimento .é fruto ~e um aprendizado durante o iniciação ude mentira" das crianças ünprime em seus corpos uma verda-
qual as crianças experimentam e colocam à prova esse "desvio". Najara o deira cicatriz e atiça um verdadeiro desejo: ser pega pelo santo.
mostra bem aqui quaudo fala de seu pai para o caboclo e do caboclo para "Brincar de macumba" é também ''virar no santo de inentira": os me-
seu pai. Certa confusão pode iguahnente incentivar a criança a essa expe~ ninos dão o ritmo, as meninas dançam, dançam, dançam ... 'ia ggnte fecha
rünentação. Em outro momento, posterior ao que acabo de descrever, Ki- os olhos e 'dá santo' de mentirinha", explica Gabi, oito anos, neta biológica
lombo novamente virou em seu caboclo. Najara e outro menino o cha1nam de Kilombo que mora em uma casa que dá para o quintal do lugar de culto.
insistentemente: "caboclo! caboclo!" Como este não lhe respondia, Najara Quando brinca, ela gosta de fingir que ''dá" Oxun1, pois é o santo, assün o
então mudou de registro chamando-o: "pai, pai!" Mas, logo em seguida, a disseram, a que ela pertence. Denise fala de seu desejo, apesar da revelação
outra criança corrigiu-a, fazendo essa observação, tão frequentemente pro- do jogo de búzios do "avô" (Kilombo) que lhe anuncia que ela era equede:
nunciada pelos adultos quando uma criança exprime esse tipo de confusão: "sou equede, eu não 'viro', eu queria 'virar', eu sempre falo pra minha mãe:
"não é seu pai, é o caboclo!" Colocadas lado a lado essas cenas poderiam
1 'ai mãe, que vontade de 'virar no santo' [... ] Eu acbo legal mentir que tá
facilmente conduzir-nOs a ver nessa brincadeira de Najara uma simples virando no santo, eu acho legal, mas eu queria virar um dia, um dia eu
imitação. Mas isso seria bastante redutor e1n relação à informação que esse queria virar, só pra ver como é, como que a gente fica".
tipo de brincadeira pode trazer para a criança. Em sua "imitação" do caboclo Estas crianças acompanham, nas festas, suas mães 1 pais1 vizinhos,
ou do erê, Najara está sobretudo, aprendendo que a legitimação do grupo é
1 tias ... Entram na roda de santo e, por vezes, subitamente, têm uma verti-
indispensável para que esses diferentes papéis possam se desenvolver. gem, como um esquecilnento do tempo. Suelem conta:
Essas brincadeiras de criança evoluem para uma estruturação à qual
Tem dia, quando tem macumba [festa], a gente entra na roda, a gente dança, dan-
outros elementos mais íntimos e corporais vêm se juntar. Acompanhei
ça ... Um dia meu vô balançou o adjari [espécie de sininho] na minha cabeça, ele
uma dezena de crianças 2 ~ de cinco a treze anos, numa diversão que eles tava fazendo isso, passando, pra todo mundo virari daí, eu seilti tontura, dai saiu
chamam "brincar de 1nacu1nba". Meire tem doze anos, mora em uma eu e a Gabi da roda, nós sentamos lá nos degraus e ficamos olhando.
favela situada atrás da Casa de candomblé de Kilombo. Sua mãe, Beta, é
uma filha de santo da Casa. Meire conta que quando "brinca de macum- Uma "coisa diferenteH1 uma tontura sobrevém nas brincadeiras das
ba" com suas amigas ela escarifica (faz curas) seus braços com a ajuda de crianças. Um ligeiro arrepio, e, na barriga, aquele friozinhoí en1 certos
1

uma agulha ou de um fio de f~rro. O importante, diz ela1 "é que marque momentos, elas se sentem num outro lugar ... Meire conta que sua amiga
bem". Sua amiga Bárbara, filha biológica de Kilombo, também participa Tatiana, um dia1 quando brincavam, caiu e1n transe "de verdadeH. Suelem
da brincadeira: ela passa gordura de frango e pó azul em suas feridas, à fala de suas sensações:
ilnagem da pintura feita sobre o corpo dos iaôs. As meninas assim escari- -Outro dia, a Bárbara pegou as roupas de santo, você tava filmando, hé? Ela pegou
ficadas devem usar um turbante na cabeça e permanecer deitadas como se as roupas de santo, daí eu me senti virada, eu senti que tava virada no meu santo
estivessem reclusas para a "feitura". Denise de treze anos, irmã de Meire,
1
- O que você sentiu?
conta: "Sabe, minha irmã Meire, depois que ela faz as curas, ela põe a gen- -Uma coisa diferente.
-Diferente como?
te pra deitar, daí, a gente sente aquele friozinho na nossa barriga". É uma
- Ah, a gente sente que tá em outro lugar...

2 As descrições e as análises que seguem já foram tratadas em llm filme (Opipari e Timbert, Pode-se falar dessas brincadeiras como de uma imitação ingênua de
1997) e em um artigo (Opipari e Timbert, 2000). uma atividade ritual observada previamente? Deve-se ver em sua shnu-
210 0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 21 I

cada um tinha seu orixá, todas viravam, não ficava nenhuma acordada. Era gostoso
lação uma simples "mimicry infantil" (Caillois, 1967): um jogo em que se
quando a gente brincava assim, e eu brincava com Ogum, eu sempre falei: eu sou
brinca de acreditar, em que se brinca de f.a.zer-se acreditar, de fazer com do Ogum com Iansã! Eu brincava, virava no Ogum.
que os outros acreditem? Aó acompanhá-las em suas brincadeiras e em
seus relatos, essas crianças mostraram a importância da experiência cor- Cmn dezessete anos, Zoca foi "feita" para Ogum, qu'e -~nteriormente
poral na sua socialização e no aprendizado dos códigos do transe. Nesse se manifestara por ocasião de uma festa, fazendo-a cair dura (bolar): in-
sentido, "brincar de macumba" não pode ser comparado a "brincar de co- terpretada como sua vontade de ser "feito", o santo toma violentamente
merciante" ou "brincar de boneca", mesmo se nesses dois casos intervêm possessão do corpo da pessoa deixando-a completamente imóvel e rígida.
socialização e aprendizado. "Brincar de macumba" pode, antes, ser aproxi- Pergunto a Zoca se, antes da "feitura" Ogu1n havia se manifestado de
1

mado dos jogos corporais em que as crianças experilnentam as primeiras outro Inodo; ela responde:
-impressões e sensações de uma sexualidade em formação.
Sempre senti Ogum, desde criança eu dou o ilá do meu Ogum, quando eu virei
Quando a brincadeira dessas crianças intensifica-se, elas falam de
no Ogum pela primeira vez depois de ter tirado o quelê [colier], ele [Ogum] deu
uma perturbação, de. uma oscilação no limiar do transe: sentem-se quase o mesmo ilá que eu brincava de dar [... J Quando eu desvirei, meu pai e minha
"tmnadas pelo santo". A silnulação como imitação de um 1nodelo cede mãe falaram pra mim assim: "Zoca, aconteceu uma coisa incrível: é verdade que
aqui lugar ao simulacro tal qual Gilles Deleuze, revertendo o platonismo, sempre disseram que Ogum se aproximava de você, ele sempre encostou em você
o define: desde criança, e o mesmo ilá que você dava quando você brincava de candomblé é
o ilá do seu Ogum hoje em dia! Eu disse pra minha mãe: "é verdade, é sério mãe?"
O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que Minha mãe disse: "é, é verdade!"
nega tanto o original quanto a cópia, tanto o modelo como a reprodução. Pelo
menos das duas séries divergentes interiorizadas no simulacro, nenhuma pode ser De modo bastante evidente, as crianças que brincam de macumba vi-
desi&rnada como o original, nenhuma como a cópia. Não basta nem mesmo invo- venciam de perto o candomblé graças a redes de vizinhança, de família,
1

car um modelo do Outro, pois nenhum modelo resiste à vertigem do simulacro. de amizade etc. Zoca pertence à terceira geração de pessoas "feitas'' em sua
!Deleuze, 2009, pp. 267-268)
família. A mãe de seu pai foi feita para Iemanjá; seu pai, o ogã Tata Leuê,
No vivo de sua performance, um salto se opera: o falso-verdadeiro não para Ogum; e sua mãe, a equede Dangeuê para Oxumarê. Ela tem três ir-
pode mais mascarar o verdadeiro-falso de seu "transe~'. mãs "feitas": Mara para Iansã, Neia para Iemanjá e Editnari para Obaluaiê.
Essas '~brincadeiras de criança" são observadas com muita atenção pe- Suas duas outras irmãs não são ainda "feitas'', mas a cada uma se atribui
los adultos. Como a mãe de Najara, fala-se frequentemente de uma "apro- um santo: a Elka, Oxóssi; a Daniela, Oxumarê. Das crianças da quarta
ximação do santo". Aproximação cujos indícios são aquelas sensações geração, apenas uma, em nove, já é "feita", o filho de Edimari, Rafael de
corporais: arrepios, friozinhos, vertigens ... Mas brincando de macumba, Obaluaiê. Às outras crianças, já há um santo designado:
1

pode-se igualmente esboçar um processo de "construção" da personagem • Mara é faxineira, divorciada de seu marido, um pentecostal da Igreja
de seu próprio santo. Zoca conta que quando brincava de macumba com Universal do Reino de Deus; ela tem três filhos: Bruno de Oxóssi, Juliana
suas irmãs e suas primas, ela gostava de "dar Ogum", o santo que lhe fora de Iansã e Dandara de Oxum.
designado como sendo seu: • Edimari não trabalha. Casada com o ogã Henrique de Obaluaiê, ela tem
dois filhos: Rafael que é feito para Obaluaiê e Stefane a quem se atribui Euá.
A gente brincava, a gente pegava minhas primas, dava bori nelas, fazia o toque • Neia é faxineira, solteira; ela tem três filhos: Murilo de Exu, Dome-
[festa), entre nós, crianças. A gente se vestia com uns tecidos, com as roupas de
nica de Nanã, e a última, Indaiá, é considerada muito pequena por sua avó
santo, saía com elas como se fosse a saída de iaô, saída de santo e cada um virava,
para que seja possível lhe atribuir um santo.
2I2 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 2IJ

• Zoca não trabalha. Casada com o ogã Jéferson de Oxaguiã, ela tem Tomada a decisão de "fazer o santo", Neia jogou os búzios com seu fu~
uma filha, Nicole, a quem se atri~ui Oxup1. turo pai de santo uma semana antes de sua reclusão. Este anuncia a ela que
O cotidiano dessa grande família é cmnpleta1nente atravessado pela Iemanjá responde como primeiro santo, seguida por Xangô e, depois, por
presença do candomblé. Notar-se-á essa presença no mais banal dos voca- Oxmn. Sob pressão de sua. família, Neia aceita a determiliàÇão dos búzios
bulários: por exemplo, a avó grita "ajeum!" para chamar seus netos à mesa. com uma esperança: que Oxum assuma a dianteira respondendo eili. primeiro
Ela utiliza aqui o termo iorubá empregado no candomblé para dizer comida por ocasião da raspagem de sua cabeça. Mas, como isso não aconteceu, ela foi
ou comer. A atribuição de un1 santo permite às crianças uma familiaridade finalmente "feita" para Iemanjá. Até o último instante, quando seu santo ia
cmn os componentes daquele que mais tarde se tornará seu próprio santo. gritar (proferir o ilá) pela primeira vez, ela alimentava ainda aquela esperança:
Mas a concretização desse processo de "construção" da personagem
do santo desde a infância não é sempre semelhante àquele de Zoca. Para Eu pensava ... Quando a Iemanjá veio pela primeira vez depois que eu tirei o quelê,
Neia, sua irmã, este processo deu lugar a uma grande contrariedade. Neia eu pensava que ela ia vir com o ilá da Oxum, mas não veio, ela veio com o ilá dela
mesma. Eu pensava: "ah, ela vai vir com o ilá da Oxum, porque durante quinze anos,
conta que, desde pequena, lhe atribuíam o santo Oxum: "durante quinze
nas nossas brincadeiras, ela veio sempre com o mesmo ilá". Isso pode acontecer,
anos, todos me olhaVam e diziam; você é de Oxum! Eu ficava feliz, pois como aconteceu com a minha irmã Zoca, mas comigo não, comigo não foi assim ...
Oxum é um santo muito bonito, e eu então me iludia". Nas brincadeiras
de criança, Neia gostava de "dar Oxum": Contrariada, Neia deixa a Casa de seu pai de santo logo após ter reti~
rado o quelê: sinal de sua ligação constante, de sua submissão a seu santo
Nas brincadeiras eu era da Oxum, daí, minha irmã me arrumava, me vestia como
e ao chefe de culto. Se Iemanjá continua como seu primeiro santo, Neia
se fosse a Oxum mesmo, colocava a saia, colocava as coisas da Oxum todinhas, a
gente cantava e fingia que tava virada no santo, eu dava o ilá do santo ... Sempre considera que ela não exerce muita influência em sua maneira de ser. Para
eu era da Oxum, não podia ser de outro, não me deixavam virar em outro santo ela, é o terceiro santo, Oxmn, que a dirige: ('Iemanjá não me rege, não, nem
que não fosse Oxum. Xangô, quem me rege é Oxum, é ela que toma a frente. Por exe1nplo, todas
as decisões que eu devo tomar, eu tomo como se eu fosse da Oxum; eu sou
Com dezoito anos, Neia entrou em reclusão, com sua irmã Zoca e com toda calma, toda vaidosa, isso é a Oxum que me dá". Neia sustenta que
outras duas pessoas, para "fazer o santo''. Essa "feitura" foi encarada, sobre~ sua cabeça "foi trocada", mas seu entorno não concorda com isso. Sua mãe
tudo por sua família, como uma possibilidade de lhe dar referenciais, de a considera como uma verdadeira filha de Iemanjá por causa de seu físico
ordenar sua vida: "Eu não tinha cabeça, não era ajuízada, andava com más (cadeiras largas, o rosto muito redondo ... ), de suas atitudes un1 pouco lentas
companhias, minha vida era desregrada. Então minha mãe pensou que seu etc. Acrescenta ela que sua performance por ocasião do transe também
eu fizesse o santo ... Quem sabe se o santo não me mudaria?" Em outros não deixa dúvidas: nNeia, aquela de Iemanjá, ela é discrente, não gosta do
momentos, Neia diz também que "fez o santo" porque era louca. Parece~ me negócio, ela fica com o santo mas odeia isso, nossa Senhora! E ela dá uma
importante insistir aqui no aspecto social das razões da "feitura", assina~ Iemanjá tão bonita, é impossível que ela não seja de Iemanjá!"
lando de passage1n que essa "loucura", como o fato de "não ter cabeça", não Para Neia, essa '(troca de cabeça" resulta de uma manipulação de seu
está necessariamente relacionado a uma desordem psíquica para a qual pai de santo. Ele teria sido obrigado a isso para poder compor de modo
"fazer a cabeça" teria sido uma cura. Para Neia, isto foi um referencial harmonioso seu grupo de iaô (barco):
social, graças ao qual ela encontra hoje sua própria medida: "[O santo[ me
mudou, pelo menos durante um tempinho, mas eu ainda gosto das gandaias Tinha um Ogum pra sair, um Logunedé e um Oxóssi, todos santos quentes, eu ima~
e de um pagode, só que eu não ando mais com aquelas más companhias". gino assim; é, aliás, o que todos falam. Então ele precisava de um santo frio, porque
2!4 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 2I 5

só tinha santo quente. Ele precisava de um santo frio pra poder esfriar o barco, um
será possível notar cmno, no contexto do candomblé, os mesmos elementos
santo que trouxesse paz, que trouxesse tudo que é Iemanjá, e eu fui a isca dele.
podem ser reintegrados:
Iemanjá mordeu a isca, ficando no seu ori corno primeiro santo.
- Por que você vai na Igreja?
Até aqui, Neia nunca pensou em procurar um outro pai de santo para
- Porque lá me sinto bem, muito bem. Eu chego lá, fico lá, falo qlf_e eu quero
resolver essa contrariedade. Por outro lado, ela escolheu frequentar para- orar, que eu quero que eles orem prà mim. Mas eu não deixo mais eles orarem
lelamente a Igreja pentecostal Universal do Reino de Deus. Ela abre esse na minha cabeça, por causa do que aconteceu, então não deixo mais os crentes4
parêntesis de tempos em tempos, para respirar ou relaxar, para aumentar o orarem na minha cabeça.
-O que aconteceu?
intervalo entre os transes etn que ela "vira" etn Iemanjá. Uma conversão ao
- Ah, o pastor começou a rezar na minha cabeça e eu senti uma dor de cabeça ...
pentecostalismo implicaria uma ruptura que Neia não está em condições Meu corpo querendo crescer. .. Eu dizia pra minha amiga, vamos embora! E eles
de efetuar, dada a importante pressão que sofreria em sua família3 • E, além gritavam: "Sai, em nome de Jesus!" Acho que ele sentiu que tinha alguma coisa:
disso, há o constrangimento dos laços já tramados entre os orixás e seus "Sai em nome de Jesus!" E eu, eu queria ir embora, tentava levantar meu pé, meu
filhos. Doente, sua filha foi "prometida" ao santo que a curou. Neia está pé não saia do lugar, acho que era o santo que queria me pegar5 [ ... ] Porque eles
começaram a chamar muito, a gritar muito na mínha cabeça: "Sai, sai em nome
persuadida de que indo à Igreja, sua Iemanjá ficará contrariada, ofender~
de Jesus!" Dez crentes se ajuntaram, punham a mão na minha cabeça, no meu ori
se~áe virá, por conseguinte, muito menos. A abertura desse parêntesis é e ninguém pode colocar a mão no meu orí [... ]As orações deles são muito fortes, é
igualmente considerada como uma "técnica" de controle do transe basea~ muito forte a oração do crente. Todos eles gritavam. Acho que isto chama, que isto
da no exorcismo praticado pelos pentecostais. Segundo Véronique Boyer tem o poder de chamar o santo, porque eles começam a gritar, como loucos: "Sai
(r996b), esse exorcismo pressupõe uma possessão pelo santo da pessoa que em nome de Jesus!"[ ... ] Tem alguma coisa a ver com o santo porque a maioria dos
crentes que eu conheço já foi pai de santo. Então eles sentem. De repente, quando
dará identidade ao demónio. Mas Neia "engana" seu santo ficando entre os
estou com um pastor, ele sabe que eu sou do santo, ele sente que eu sou do santo.
dois: participando de uma festa de candomblé, ela recorre a certas técni~ Então, ele quer tentar chamar o santo para tirar ele de mim de uma vez por todas
cas do exorcismo penteéostal\preces, súplicas etc. J para evitar 1'virar" em [... ] Graças a Deus que ela não veio, porque se ela tivesse vindo, todo mundo ia
Iemanjá. Abrindo e fechando esse parêntesis, passando sem cessar de um dizer que eu estava com a coisa ruim mesmo. Graças a Deus que ela não veio!...]
-O que eles fazem se a pessoa virar no santo?
universo a outro, ela elabora uma interpretação bastante interessante desses
-Eles jogam água, começam a gritar: "Sai Satanás!" E o santo fica ali, o santo se
dois mundos. Como bem o mostra Véronique Boyer (1996b), na relação de invoca, eles até batem nele com um cinto, batem de verdade no santo, você já ima-
concorrência com os cultos de possessão, os pastores da Igreja Universal ginou isso? Bater no meu santo? [ela ri][ ... ] Eles dizem que é o Satanás que está ali.
alimentam-se do universo desses cultos reorganizando suas categorias,
sobretudo aquela da possessão. No longo trecho da entrevista que segue,
4 É assim que os pentecostais se autodenominam: crentes, isto é, aqueles que acreditam.
Estas sensações parecem~se de modo surpreendente com a descrição que Neia dá daquelas
3 Se é possível observar a existência de diversos pertencimentos religiosos no seio de uma experimentadas em uma festa de candomblé, quando ela "vira" no santo:
família, no caso de Neia isto parece difícil. Como evoquei mais acima, Mara, uma das -Quando eu viro no santo, eu sinto as minhas costas crescerem, minhas costas crescerem
irmãs de Neia, foi casada com um pentecostal. Durante seu casamento, ela afastou-se do e minha mão começa a formigar, dai eu já sei logo que eu vou virar.
candomblé mas nunca realmente o abandonou, e, igualmente, jamais frequentou de fato -Quando você vira, tem uma parte assim do seu corpo na qual você sente que o santo tá
a Igreja pentecostal. Ela explica: "Eu me afastei do candomblé porque ele não gostava dis- mais presente?
so, mas eu nunca consegui frequentar a Igreja. As crianças iam com ele, mas eu não. Lá, -Meu pé.
eles tinham o hábito de dizer que tinha uma Pombagira [exu fêmea] que impedia nosso -Como assim?
casamento de ir bem. Eu dizia: Que Pombagira, Luiz? Coloca uma coisa na tua cabeça: a -Meu pé, meu pé fica duro. Se eu quero tirar o pé do lugar eu não consigo. Aí, eu já sei
Pombagira sou eu que não te amo!". que é o santo mesmo.
216 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 217

Então Satanás se manifestou, eles batem, batem com a espada~de-sâo·jorgé, para


A releitura da possessão empreendida pelos pentecostais considera a
fazer sair o Satanás do corpo, eles batem, eu já vi[ ... ] Um dia, começaram a cantar
o hino, uma mulher começou a treiner, a treiner e, de repente, ela começou a se aliança con1 um orixá como uma deficiência. Para Boyer (1996b), a adesão
bater. Disseram que o Satanás tinha chegado, tinha manifestado. Daí, começaram aos dois universos é, pois, exclusiva. Mas não haveria um ''entre-dois" no
a bater nela, a bater nele: "Sai, Satanás! Sai do corpo desta mulher!" A mulher foi se qual a confrontação por vezes permitiria o diálogo? Boyet· indica ainda
batendo ... Sei que todo mundo ficou doidinho nesta igreja[ .. ] O que eles chamam que, no mercado religioso, a expansão em grande escala do pd~tecosta­
Satanás é o santo[ ..,]
lismo, à maneira de uma produção industrial, representa hoje uma real
-Como você viu que era o santo?
-Pela reação da mulher c porque o santo gritava. Ele gritava com o ilá de Oxóssi, a1neaça para os cultos de possessão que pennanecem n1ais próximos do
gritava o ilá e se batia. Os crentes seguravam os braços dela e o santo queria se artesanal. Mas, para melhor compreender a amplidão dessa ameaça e a
soltar. Foi uma tremenda confusão ... confrontação cmn os focos de resistência, seria preciso talvez se interrogar
-Você acha que eles têm a capacidade de tirar? sobre o que representa o pentecostalismo para os adeptos desses cultos de
-O demônio, como eles dizem? Sim, eles tiram, tiram.
-E o santo?
possessão. A hipótese desse parêntesis como uma respiração, sugerido pela
-Tiram, tiram .... Eu conheço, tenho muitas amigas que foram do candomblé e história de Neia, parece-me uma boa pista a ser seguida7• Por outro lado,
que hoje são crentes. a interação entre pentecostais e adeptos dos cultos de possessão fora da
-E você quer que tirem sua Iemanjá? Igreja, no seio de mna mesma família ou graças a redes de vizinhança e de
- Não, não quero nem que tirem, nem que ela fique. Se ela vier como vem, às
entreajuda, poderia igualmente fornecer outros elementos de reflexão. As
vezes, uma vez por ano já tá muito bom, tá bom para mim[ ... ] Não posso sair do
candomblé por causa de meus filhos, porque fora isso ... Mas a vida de minha filha brincadeiras das crianças dão, por exe1nplo, uma versão bastante original
está nas mãos do meu santo, é por isso que realmente ainda não saí de lá, porque dessa interação.
vou acabar saindo. Eu vou dizer: não quero mais, de uma vez por todas. Mas isso Neia não gosta que seus filhos brinquem de macumba. ''Eu bato neles,
só quando minha filha tiver uma certa idade e souber o que ela quer. No dia em são muito pequenos para já estarem nisso", mas ela não pode impedi-los
que ela arrumar um bom pai de santo e que ela der a obrigação então aí eu vou
de brincar: "O que posso fazer? Mesmo eu, mesmo eu nasci lá dentro ... "
poder sair do candomblé, de uma vez por todas, se não[ ... ]
-Como você faz para não virar? Seus filhos, seus sobrinhos e sobrinhas brincam de macumba cmn outras
- Ah, eu peço muito a Deus para que ele não me deixe "virar", rezo muito. A pri- crianças no pátio do prédio onde moram. Henrique e Edimari (irmã de
meira coisa que eu falo: "o sangue de Jesus tem poder!" Primeira coisa, depois eu Neia) contam, com muito humor, que nesse pátio, outras crianças, cujos
rezo, eu rezo, rezo muito. Então Iemanjá não tem como vir, não me pega mesmo
pais são pentecostais, vêm se juntar a seus sobrinhos e sobrinhas. Sua ma-
[... ]Quando estou de bom humor, eu falo: "ah, minha mãe, não me pega". Quando
estou de mau humor, cu xingO ela com os piores palavrões, então eu falo: "ah, essa
cumba transforma-se então, com muita frequência, em culto pentecostal,
coisa vai me pegar, ah, Senhor, não deixe essa coisa ruim me pegar!" Eu falo assim, e seus transes "de mentira" acabam por se tornar a presa de um exorcismo
eu grito em nome de Deus porque os crentes dizem que isso não é uma coisa de "de mentira".
Deus, né? Então eu grito em nome de Deus e tenho certeza de que ela não vem[ ... ]
Algumas vezes eu xingo, eu digo: "essa coisa ruim não vai me pegar". Porque se eu
vou numa saída de iaõ e que eu não quero, não tô a fim, que eu não quero "virar",
eu rezo muito, faço muita oração e isso não me pega, Carmen, isso não me pega,
eu digo bem forte: "Sai tentação!" As pessoas até ouvem, mas não dou a mínima.

7 Necessidade evocada por outros adeptos. Embora o pentecostahsmo não seja a única via
escolhida (veja-se, por exemplo, o caso de AI bani e a Seicho-No-Ie mencionado mais aci-
6 Folha utilizada no candomblé, conhecida igualmente como espada-de-ogum. ma), ele é, de longe, o mais citado.
2I8 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 2I9

SER ABIÃ: O NAMORO COM O SANTO sinais preliminares. Num certo limite, é como se fosse um tapa. O corpo
E O DOMÍNIO DOS CÓDIGOS DO TRANSE inerte e rígido da pessoa evoca a ausência de toda aliança com seu santo:

Não sei, eu desmaiei, então eu não sei. Depois me contaram que, a mãe de santo
Se a socialização dos abiãs !candidatos à "feitura") comporta elementos já jogou os búzios lá na hora e o santo dizia que queria a obrigação, que_,ele queria
presentes no aprendizado das crianças, ela incorpora outros códigos mais que raspasse e não tinha jeito (Lana, filha de santo}.
formais e ritualizados. Como evocado mais acima, o abiã assume algumas
funções na Casa ao ocupar um lugar na hierarquia religiosa. Participando Foi uma coisa engraçada, eu estava sentada, assistindo à festai de repente, foi como
se eu tivesse recebido um tapa na nuca. Caí de barriga pra baixo e não vi mais nada.
da roda de santo por ocasião das festas, o abiã é suscetível de bolar, isto
Foi como um desmaio (Zoca, filha de santo).
sendo percebido como o chamado do santo para que a ('feitura" seja realiza-
. da. Entretanto, notei, por outro lado, a presença de um grande número de Destaca~se com frequência uma mudança significativa das práticas
abiãs "que vira1n no santo"i diz-se então que o santo já vem "em pé", para rituais ocasionada pelo desaparecimento do "bolar". É como explica a
dançar. Em certos c_asos, os abiãs já "bolaram" uma vez. A realização de equede Dangeuê:
um bori "acahnando" ou "calando" o santo, este virá então "em pé". Mas
Hoje em dia tem muito pouco disso. Quase ninguém entra pra fazer o santo bolado.
a realização do bori não os deixa completamente ao abrigo do chamado
Está cada vez mais difícil de ver abiã bolar. O santo deles já vem em pé e já começa
do santo; eles podem, algum tempo depois, bolar novamente. E1n outros
a aprender a dançar.
casos, sobretudo para os abiãs que tiveram uma experiência na umbanda
ou que provêm de um meio em que o candomblé se faz fortemente pre~ Manuel de Odé fala desse desaparecimento como sendo uma adapta-
sente, o santo pode chegar de imediato "em pé", sendo que a experiência ção do orixá e1n sua concorrência com os espíritos da umbanda:
de bolar pode intervir mais tarde ou de modo algum. O chamado do orixá
não segue forçosamerite uma linha evolutiva que vai de utna possessão Estou achando que essa coisa de bolar está acabando, é difícil hoje em dia você ver
' isso. Antes, quando se cantava uma reza no meio do barracão, um fundamento
incontrolada a seu adestramento ou controle ritual. Longe de se apresentar
mais forte, todos os abiãs bolavam, seja quem fosse, mesmo que não estivesse
como regra obrigatória da adesão, ele surge aqui, antes, como uma lingua- sendo cobrado pelo santo, bolava. Hoje é difícil, você pode até cantar, fazer qual-
gem, como um código que assinala a hnportância da "feitura" enquanto quer coisa, é raro bolar um ou dois. É aquilo que eu te falei, o orixá se adaptou um
legitimação ritual das competências adquiridas. Ao reforçar essa ideia de pouco à realidade de São Paulo, ele prefere vir em pé pra não perder o lugar dele. Ele
deve dizer: "opa, eu não sei se um preto-velho ou um marinheiro não vão querer
código, dir~se~á que bolar é um "alerta~~, um "aviso": '~É a maneira que o
pegar o meu lugar, é melhor eu ficar aqui antes que alguma outra coisa pegue essa
santo tetn de avisar você: ~olha, eu preciso nascer, quero nascer, está na pessoa ... " Então, o abíã já vira e o santo dança. Bolar ficou raro, está acabando.
hora, se vira ou você tnorre'. É o alerta para o nascimento do santo" (Al~ Daqui a pouco os mais novos não vão saber mais o que é bolar.
bani, filha de santo). A violência da queda denota igualmente a exigência
e a autoridade do santo: "bolar é a manifestação de um santo que pede a Essa mudança significativa, que confere aos abiãs um estatuto mais
feitura. O que acontece é que a pessoa cai no chão, fica dura, sem nenhum atraente, pois que eles podem já "virar no santo" sem passar pelos preceitos
movimento, como se estivesse morta. Então, para mim, bolar é um pedido da "feitura" representa, com efeito, uma grande vantagem para as Casas
de feitura. É o santo que diz: 'olha, tá bom, basta, acabou, agora vamos que podem assim recrutar um maior número de adeptos.
fazer"' IMeire, abiã). Mas se o abiã "vira no santo", não se considera que o santo seja "feito".
A descrição que se faz da sensação de "bolar" é quase sempre aquela de Ele está presente, pode dançar, mas não existe verdadeiramente, isto é,
um desmaio total, como se o santo invadisse o corpo sem darpraticamente ainda não adquiriu um estatuto que lhe permite ser nomeado como o santo
220 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO
A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 221

específico de uma pessoa. Toda espécie de arranjo torna~se então possível dizado dos abiãs acaba por incorporar essas entidades, ao mesmo tempo
para explicar esta ambiguidade. Ao ir de yncontro à violência e à ausência assinalando uma diferença entre as duas modalidades. É interessante
de sensações preliminares do "bolar", esses arranjos acabam por desenhar notar que a Inanifestação de uma dessas entidades, o -~rê, assinala uma
diferentes 1nodulações e nuanças para o transe. Diz-se, por exemplo, que o passagem entre um banda e candomblé na diferenciação do trans~. Quando
santo do abiã não é forçosamente o seu. Seguindo a ideia da "feitura" como é ainda abiã, a pessoa recebe o erê de modo direto, segundo as m~dalídades
nascimento do santo, ele é algo que está ainda em fonnação, em gestação. da umbanda: a pessoa entra em transe e é vista diretamente assumir uma
Ainda indefinido, o santo do abiã pode, então, mudar no momento da atitude infantil. Isto muda depois da "feitura". O erê manifesta-se segundo
"feitura". Manuel fala de um namoro em que o santo não toma por com- as modalidades do candomblé: a pessoa entra em transe, assume o gestual
pleto a cabeça lori) da pessoa, dela se aproxima levemente. Esta ideia de de seu santo !ela "vira no santo"). Com um gesto ritual específico, chama-
namoro lembra aquela de irradiação; uma vez que o abiã ainda não selou se o erê e a pessoa assume uma atitude infantil. A saída do transe obedece
aliança com seu santo, admitir-se-á que, quando dança, ele somente sofre inversamente ao mesmo esquema ierê/santo/saída do transe). A diferença
sua irradiação. Ângela, uma moça de 24 anos, abiã, fala dessa irradiação: entre os dois erês repousa sobre a ideia segundo a qual, na umbanda, o erê
é uma entidade autónoma, enquanto no candomblé ele é o mensageiro do
-Você já bolou ou já virou no santo?
santo. Ele é então chamado erê de santo.
-Não, eu nunca bolei e, virar mesmo, eu nunca virei. Eu sinto uma irradiação
forte de Iansã quando eu danço na roda, ela não me pega completamente, ela só Em outras Casas, os abiãs que "viram" já no santo, mesmo que não
irradia. sejam ainda "feitos", podem "virar" no erê de santo: o mensageiro do orixá.
-Como é que é essa irradiação? Isso pode dar lugar .a arranjos bastante inéditos e criativos, já que o erê, a
- Ah, você sente assim ... É como se você ... É igual um orgasmo, é difícil de expli-
priori, "nasce" na "feitura", com o santo. Por ocasião de uma festa dedicada
car, é a sensação de um orgasmo: arrepio na nuca, adormecimentos, o coração bate
mais depressa ... Mas eu queria saber o depois, como é que é o depois ...
aos erês, encontrei uma abiã que "virava no santo". Seu erê veio no momen-
-Depois? to esperado, seguindo as modalidades do candomblé. Isso mostrava então
- É, depois: como é receber o santo mesmo, como a gente fica. Tem gente qué que se tratava de um erê de santo. O papel de Inensageiro do êre se deve,
mesmo no frio não sente nada ... Mas já está demorando muito pra eu saber como entre outras coisas, ao fato de que este último possui o atributo da fala,
é, eu sou tão curiosa ...
atributo ausente no santo. Os erês têm um nome, que sempre se relaciona
com o santo da pessoa, e uma idade, na maioria das vezes determinada
Ângela pode dançar na roda, como se já tivesse um santo; os sinais que pelo seu tempo de "feitura". Perguntei a esse erê 8 seu nome, e ele me res~
precedem sua chegada, já incorporados, parecem dar a ela a legitimidade pondeu "Lança-azul", referência direta à arma e à cor de seu santo, Ogum.
da presença do santo. A analogia que ela estabelece com o orgasmo poderia Quando lhe perguntei sua idade, mostrou-me o bastão que segurava ver-
se aproximar daquela experiência corporal a que me referi antes, a propó- ticalmente e no meio do qual ele mantinha o dedo perpendicularmente,
sito da brincadeira e do aprendizado das crianças. dizendo-me: "Assim", eu não compreendia. Ele insistiu: "pela metade,
Se um abiã pode já "virar" no santo, a presença de outras instâncias ainda não nasci, ainda não fui raspado''. Pela metade: isto quer dizer, em
espirituais são igualmente possíveis. Para aqueles que vêm da umbanda,
é recorrente ver um caboclo, um erê ou um exu se manifestar por ocasião
das festas que lhes são dedicadas. Na Casa de Yatemin, os abiãs recebem 8 Este diálogo é encontrado em um filme (Opipari e Timbert, 1999), cuja problemática gira
em torno do objeto das imagens captadas por ocasião do transe de possessão e do estatuto
um caboclo, um exu, um erê, um preto-velho etc. Com efeito, nessa Casa
dessas imagens em face das pessoas. O papel desempenhado pelos erês no candomblé pa-
que conjuga as duas modalides de cnlto, umbanda e candomblé, o apren- receu-nos um meio privilegiado para colocar estas questões.
A POSSESSÃO: UMA fNTIMA ALIANÇA 223
222 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO

parte, parcialmente nascido, parcialmente feito? Ou, ainda, a metade, o ligados às "obrigações" e à "feitura'' e durante certas festas e1n que o cha-
que não é "um", o que ainda não é totalmente, embora já atualizado? mado de todos os orixás ao mesmo tempo é necessário.
Por outro lado, a ambiguidade de um santo que dança se1n ter real· Este ritual de teste pode ser repetido durante três dias, até o n1omento
mente nascido faz emergir uma categoria particular de transe, muito em que a pessoa tiver dado os sinais de aproximação do santó ou, ainda, for
próxima da brincadeira das crianças, o equê: o falso transe. Se o equê tomada por ele. Se nenhuma sensação ou perturbação for verifkàda, pode-
de uma pessoa já "feita" é alvo de acusações e uma vergonha para aquele se recorrer a outros testes, como, por exemplo, banhos sob cachoeiras,
que se deixa pegar em flagrante simulação, quando u1n abiã "dá equê", ele oferendas em bosques ou estradas etc. Em geral, os candidatos a rodantes,
suscita, ao contrário, uma condescendência da parte dos outros membros aqueles que "vira1n no santo", já manifestam esses sinais no adarrum.
da Casa. É evidente que essa aceitação impõe àquele que "dá equê1' u 1n Os litígios são mais delicados quando se trata dos ogãs e das equedes.
· verdadeiro dmnínio dos códigos do transei esse equê "cultivado" é então ~destramento do corpo, o adarrum é igualmente percebido co1no um
visto como um exercício pelo qual o abiã adquire experiência e compe~
amansamento do santo. Este deve tornar perceptível sua presença, quando
tência. Seguindo o r;::xemplo da brincadeira das crianças, "dar equê" pode a pessoa nunca teve a experiência do transe, ou, ainda, manifestar-se leve-
igualmente ser percebido como um divertimento. A fruição estética da mente, sem a violência do "bolar". A escuta atenta das sensações descritas
música, das coreografias e das roupas é frequentemente evocada pelos pelo iaô e, sobretudo, a observação das reações de seu corpo permitirão
abiãs como um grande atrativo e um verdadeiro prazer. Se as crianças, um julgamento sobre sua capacidade ou não de cair em transe. Todo ro-
de simulação em shnulação, beiram o transe em suas brincadeiras, para dante sendo passível de "virar no santo'' ao som do adarrum, os ogãs e as
o abiã que ~'dá equê" um salto pode também se operar. Sua performance, equedes, livres dessa obrigação, desempenham um papel fundamental no
conduzida pelas sensações que já infonnaram seu corpo, pode levá~lo a desenrolar desse ritual.
reahnente ~~dar o santo". Assisti a um adarrum na Casa do pai de santo Sílvio: tratava-se de
testar uma jovem candidata a equede, e um jovem candidato a ogã. Esse
ritual era dirigido pelo ogã da Casa, Henrique 9 e sua sogra, Dangeuê,
A MODALIDADE E A MODULAÇÃO DA ALIANÇA:
equede de uma outra Casa que, segundo Sílvio, possui um conhecimento
O ADARRUM E OS ENSAIOS DO IAÓ
notório desse ritual.
Embora tenha vivenciado essas diferentes modulações do transe o iaô Em reclusão há uma semana, e após ter realizado uma série de ebós e
' ' o ritual do bori, os dois jovens neófitos imn ser submetidos, pela segunda
durante o período da "feitura" e antes da raspagem da cabeça, deve obri-
gatoriamente passar por um teste: o adarrum. O adarru1n legititnará as vez, ao teste do adarrum. Apesar de eles aflrmaretn não ter tido nenhuma
competências adquiridas fora do contexto formal da ~'feitura", colocando sensação devida à presença do santo, a equede Dangeuê havia percebido,
à prova sua capacidade de cair ou não em transe. Esse teste implica toda ao longo do primeiro teste, alguns sinais de sua receptividade: no caso da
moça, alguns leves tremores nas mãosi no caso do rapaz, certo desequi~
uma técnica de preparo do corpo da pessoa que deve estar "descontraído",
"aberto", "livre de toda solicitação exterior", para poder sentir a presença líbrio e1n seus movimentos, como uma vertigem. Henrique, que era da
do santo ou, n1esmo, para recebê-lo. mesma opinião, explicava-me que durante muito tempo os dois candida-
Adarrum é a designação de um ritmo tocado em três trechos, nos quais
a cadência do toque dos ata baques a cada vez se duplica e se acelera. Sendo Filmei este ritual e assisti posteriormente a estas imagens com Henrique; em seguida,
o único ritmo capaz de chamar todos os orixás, sem distinção, ele só é em outro dia, com Dangeuê e três de suas filhas. A descrição que segue se baseia em seus
tocado em ocasiões bastante precisas: quando ocorrem . rituais privados comentários e explicações.
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tos havia1n sido persuadidos de seu estatuto de ogã e de equede, o que os juntam-se aos neófitos no salão. Acompanhado por dois outros ogãs, Hen-
impedia agora de aceitar a present;a dessa~ sensações: rique começa a tocar o adarrum. Voltados para os ata baques, cercados por
Ser equede ou ogã não é qualquer coisa, tem que ser bem testado, você não pode Dangeuê e pelos ebomís, os neófltos, com um pé diante do outro, projetam
falar assim : "olha, Carmen, você é equede". Você vai ficar com aquela coisa na ca- o peso do corpo como um balanço. Mantendo esse ritmo~ ·Mara, Edimari
beça: "eu sou equede, eu sou equede, todo mundo diz que eu sou equede". Na hora e Dangeuê começam a agitar a mão direita, indicando a eles :Pâ'ra fazer a
H, mesmo que o santo se aproxime de você, você vai dizer "não, eu sou equede". mesma coisa. A cadência do toque dos atabaques dobra, os neófitos devem
No caso deles, já é isso, ela já está frequentando a Casa já faz algum tempo, sem-
então girar sobre si 1nesmos. Dangeuê agita o sino (adjari) perto da cabe-
pre disseram pra ela que ela era equede. Para o menino, é a mesma coisa, sempre
disseram pra ele que ele era ogã, eles não querem aceitar que isto seja diferente. ça deles, gritando, com a ajuda dos ebomis, os chamados a seus santos
respectivos: "Omiô odoiá!", "Epa babá!" A intensidade da música e dos
Henrique con1eça o ritual louvando Oxóssi, o rei queto, Nação a que n1ovimentos aumenta. Os ata baques não param nunca1 as acelerações e os
pertence a Casa: "Queto re queto re, ameran que ti opá" 10 • Os neófitos retardas do ritmo repetem~se continuamente. Após terem girado, os candi~
dançam acompanhando Dangeuê e quatro ebomis: Mara e Edimari, filhas datas retomam o movimento de balanço, se1npre agitando a mão. Mara e
biológicas de Dangeuê, Cristina, esposa de Sílvio, Cosme, filho de santo da Edimari tocam na testa dos neófitos, massageiam suas costas e seu peito.
Casa. O segundo canto evoca Xangô para "abrir o pensamento'', tornando-os Segundo Dangeuê, esses gestos permitem uma 1naior descontração do cor-
mais receptivos: "Ba ilaxé onia que bafonin, ba ilaxé". Por intermédio deste po, "relaxa1n o coração'' da pessoa, o que favorece a manifestação do santo.
"canto de fundamento", o santo da pessoa pode dela se aproximar até tomar A alternância da cadência dos atabaques parece pouco a pouco produzir
seu corpo. Henrique explica que o toque (riuno) de Xangô, contrariamente um efeito de encavalamento em que o retardo e a aceleração fundemMse en1
ao adarrurn, somente chama alguns orixá.s sobretudo aqueles com os quais
1 um só movimento. Relaxamento e intensificação dos gestos sobrepõem-se
este último entretém uma relação de afinidade: o santo da moça, Iemanjá., igualmente, os gritos chamando os santos também intervêm durante os
e aquele do rapaz Oxalá, são considerados como, respectivamente, mãe e
1 momentos de descontração. Para Henrique, é o 1TI01nento crucial do ritual,
1
pai de todos os orixás, logo de Xangô. Após diversas repetições deste canto, , aquele em que a pessoa deve desligar-se de tudo o que a cerca: "É para se
alguns santos dos ebomis começam a se manifestar para dançar cmn os ne- desligar, porque, às vezes, a pessoa pode estar aqui mas estar ligada em
ófitos: inicialmente, Logunedé de Cosme, etn seguida Ossaim de Cristina. algmna outra coisa, ela tem que se desligar. Quando ela está girando ela
Dangeuê dança com eles agitando o duplo sino ladjari) e chamando o santo entra em órbita, ela não está sabendo de mais nada, não olha fixo mais as
da moça, lemanjá: "Omiô odoiá!", e do rapaz, Oxalá: "Epa babá!" Até este coisas". Momento igualmente fundamental para a observação das reações
momento da visualização das imagens, Henrique não havia 1nencionado dos neófltos. Vendo as imagens, Henrique indica os sinais de presença
nenhum sinal de receptividade ou perturbação por parte dos neófltos. do santo nos dois candidatos; o desequilíbrio do rapaz que parece sair de
Após algumas voltas de dança, os santos são conduzidos ao quarto ri- seu eixo e o ritmo titubeante da moça: "Aqui dá pra perceber que ele está
tual (roncó), acompanhados por Mara. Esta "vira no santo", mas sua Iansã desequilibrando, olha só, quando ele roda parece que ele está saindo do
não volta para o salão para dançar. Uma vez saídos do transe, os ebmnis eixo, ele não virou no santo nesse dia, n1as um dia ele vai virar [... J Olha a
menina, ela não está rodando numa cadência só, ela está indo pra lá e pra
!O As informações sobre os cantos me foram dadas por Henrique, oralmente; a transcrição per-
cá, na minha opinião ela roda, ela vira no santo". É interessante notar aqui
manece assim a mais próxima de sua pronúncia. Como a maioria dos filhos de santo com
os quais trabalhei, Henrique fornece o sentido desses cantos de modo global, em sua relação que, no interior do termo "rodar", desenha-se uma ligação, não na conti-
com o ritual, e não em uma tradução palavra por palavra. Se não se dá aqui outra tradução nuidade de uma imagem metafórica, mas no salto de u1n ato vertiginoso
é porque o que me interessa aqui é a apropriação da língua ritual feita pelos adeptos. entre o fato de girar sobre si e aquele de "virar no santo".
226 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 227

Após ter retomado três vezes as três cadências que compõem a estrutura Para encerrar o ritual, Henrique entoa dois cantos de louvor aos seM
do adarrum, Henrique inicia imediatamen.te o alujá de Xangô, um outro nhores de todos os oris: Ietnanjá - "Marilê mari vodum oxarinã Iemanjá
ritmo que, como ele explica, pode igualmente chamar os orixás: "Quando vodum xarenã oniá araiê marelê marevodun oxarenã"- e Oxalá- '(O/uM
você está percebendo que a pessoa está sentindo o santo, aí é que você tem rurô orolê ailalá ô babacunhê legibô, ilê ifá mojuá babá, emô juauê relelê
que insistir mais para chamar o santo, o alujá também chama o santo". Mas mojuá aluá, é maó, é maó, ilá oxê": No terceiro adarrum, os neÓfitos tamw
Sílvio, que até então estava ocupado com outras tarefas da Casa, aparece bém não caíram em transe, sua saída pública co1no ogã e equede deu-se
subitamente no salão para fazer Henrique parar, repreendendo-o por colo- três dias depois do último teste. Apesar das dúvidas levantadas no decorrer
car em perigo a saúde física dos neófitos. Ofendida, Dangeuê responde de do ritual, a manipulação estratégica de suas regras terá permitido a Sílvio
modo irânico: "Você sabe melhor do que eu ... eu sou só equede ... O senhor aumentar o número de filhos de santo de sua Casa. Se as certezas de HenM
me pediu pra dar o adarrum, é o que esta1nos fazendo, a gente está fazendo rique, Dangeuê e suas filhas se confirmarem mais tarde, o pai de santo terá
o que precisa ser feito, a gente cantou para Iemanjá, cantou para Oxalá ... " sempre uma marge1n de manobra para evitar as eventuais fofocas e críticas.
Mas Sílvio permanece irredutível em sua exigência de se parar ali: ('O Con1o já disse acima, em sua Casa, a confirmação do estatuto de ogã e de
menino tem problema de pressão baixa, gente, a gente não pode exagerar equede não se dá realmente senão com a obrigação de sete anos de feitura ...
muito não!" A reação de Sílvio somente faz aumentar as certezas dos outros O período de reclusão, durante o qual a aliança entre o neófito e seu
quanto à vulnerabilidade dos candidatos. Dangeuê me explicará mais tarde: santo será selada, é igualmente pontuado pelo aprendizado de cantos,
"Ele fez isso porque ele sabia que se a gente continuasse eles iam rodar, iam rezas, passos de dança, regras do protocolo ritual etc. Após a raspagem
virar [no santo], eu tenho certeza de que eles rodam, mas o Sílvio não quer da cabeça, a "feitura" propriamente dita, os iaôs que entram em transe
tnudar as coisas, o pai do menino quer que ele seja ogã, a menina também, (rodantes) realizarão durante três dias o ritual do perfuré. Como explica
encafifou que é equede, ele não quer mudar isso. Eles vão ser feitos ogã e Lindinha, uma iá~quequerê,
equede, mas, antes dos Sete de feitura, eu tenho certeza que eles vão virar
o perfuré é um ensaio do iaô e do santo, o iaô aprende a dançar para o santo do pai
[no santo], essas coisas a gente sente". Suas filhas compartilham da mes-
de santo e para o santo dele; depois, com o tempo, ele vai aprender tudo, o santo
ma opinião. Edimari me coloca a par de suas observações no tnomento do dele também vai aprender a vir pra dançar. Geralmente, quando a pessoa ainda
adarrum: "A menina suou muito, ela tava tonta e surda, ela sentiu tudo isso, não vira mesmo, completamente no santo, o santo dela começa a encostar, a se
como eu também, no meu adarrum". Mara igualmente me mostrou nas aproximar durante o perfuré.
imagens o desequilíbrio do r~paz, acrescentando a isso, etn tom de .fofoca,
uma suposição sobre uma característica de sua pessoa que o impediria de O desenrolar do perfuré, como um ensaio geral de teatro, segue de muito
ser ogã: "Olha, ogã não pode ser adéu, ogã não tem pé de dança, o menino perto o protocolo da festa de apresentação pública do novo iniciado; este
é adé, ele é 'mocinha', ele não pode ser ogã, ele tem pé de dança". O comenM último já traz a pintura corporal, as vestes e as insígnias rituais. Geralmen~
tário de Mara mostra bem que o teste do adarrum, como todo ritual, não te, o iaô sai do quarto ritual (roncó) em um estado de transe que prefigura
é um sistema fechado: na construção de um discurso sobre a capacidade a presença do santo, sendo que as intensidades desse transe variarão no
ou não de cair em transe, outros universos de representação, estratégias e transcorrer da festa, até a tomada efetiva do corpo pelo santo; esta ocorrerá
disputas, podetn igualmente desempenhar um papel distintivo 12 .

autora considera a possessão no candomblé como fator de diferenciação na construção dos


II Gíria no candomblé para "bicha". gêneros; as fronteiras do campo do feminino seriam então desenhadas pela oposição ao que
I2 A questão levantada por este comentário foi desenvolvida por Patricia Birman (I995). Esta dali é excluído: a masculinidade plena dos ogãs.
228 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 229

em um momento preciso, diante de todo o público. Ao longo dos três dias De modo geral, a primeira saída tnostra o novo estatuto da pessoa: ela
de perfuré, uma atençao é especialmente dada a cada gesto, a cada postura está "feita". Ela realizou os rituais da "feitura" sobre uma esteira (ení) que
do iaô, pois é pelas variações destes que serão identificadas as modulações aparece igualmente em públíco nas tnãos da pessoa q~e ajudou o pai de
do transe que culminam na efetiva presença do santo em seu corpo. Seu santo durante o "nascimento" do iaô e de seu santo. O iaô us~.Pa cabeça
estatuto de novo iniciado e de aprendiz é sublinhado pelos gestos da pessoa dois elementos que resumem os atos realizados. O cone de erVas macera-
(o pai de santo ou a iá-quequerê da Casa) que o conduz: ela o puxa pela saia das (adoxu) colocado sobre a incisão feita sobre o ori evoca a "fabricação"
ou pelo colar de iniciação (quelê), mostra-lhe os movimentos dançando do prin1eiro iaô: a galinha d'angola 13 • Como explica Lindinha, ''o primeiro
diante dele ou segurando-o pelos braços o faz girar de tempos em tempos
1 iaô foi a galinha d'angola, foi Oxum quem fez o primeiro iaô, foi ela quem
sobre si mesmo, toca seu peito e suas costas a fim de garantir o domínio colocou o adoxu na galinha d'angola, é por isso que na saída de iaô a pes-
do transe ou, como dizem os adeptos, "para segurar o santo". Em um certo soa sai toda pintada com o adoxu na cabeça, feito uma galinha d'angola;
momento, um canto vem marcar o 1nomento preciso em que o santo deve a galinha d'angola é um bicho que foi feito". Um fio de ráfia em volta da
aparecer de modo ma~s intenso: "Era un auá toruaxé, ê toruaxé/era un auá cabeça segura na testa uma pluma vermelha de papagaio lacodidé). Segun-
toruaxé, ê toruaxé/ era un aô". do Kilombo, a pluma é uma referência a Exu: "acodidé pertence a Exu, por
Muito próximo do que ocorre durante o adarrum, o iaô deve girar sobre isso que ele é vermelho, se1n Exu não se faz nada, é Exu que começa tudo,
si mesmo várias vezes, a pessoa que o conduz o cerca con1 seus braços sem ele nenhum iaô pode ser feito". Essa primeira saída coloca em relevo
para impedi~lo de cair no momento de seus desequilíbrios. A saudação a o nascimento do iaô e de seu santo que está ainda se fazendo; a pessoa
seu santo é gritada se1n cessar, o adjari é tocado com insistência sobre sua está em transe mas seu santo não está totalmente diferenciado. Esse duplo
cabeça. Como explica Lindinha, esse canto "está saudando a feitura, está nascimento é retomado por um canto entoado a cada volta do iaô ao roncó:
dizendo que a pessoa recebeu o axé, que a vinda do santo é um axé para a
E orixá jejé
pessoa, pro pai de santO e pra Casa, que ele está trazendo um axé". Ainda
iaô nonbo lonã
segundo Lindinha, esse canto acompanha o momento em que o santo '
iaô nonbo lonã.
"está aprendendo o perfuré, está aprendendo a vir pra dançar, pra dançar
certinho, para assim, no dia da festa, não fazer feio. É por isso que tem o Segundo Lindinha, com este canto "a gente está dizendo: 'iaô, tá na
perfuré''. O iaô, visivelmente em um transe mais intenso, dir-se-á "virado hora de se recolher pra dentro, o orixá recebeu o ejé [sangue sacrificialjl',
no santo", começa então a dançar para o orixá da Casa, e, em seguida, para o iaô foi feito"'.
seu próprio santo: "O santo aprende a dançar para ele mesmo". Por ocasião da segunda saída, os atributos usados pelo iaô mostram
Por ocasião da apresentação pública do iaô, este sai sucessivamente uma primeira diferenciação. Pode-se já distinguir o orixá sob seu aspecto
quatro vezes do quarto ritual (roncá) usando roupas, pinturas corporais e geral pelas cores de suas roupas. Em certas Casas, dir-se-á que a diferen-
atributos diversos. A cada uma dessas saídas, vê-se desenhar o processo ciação de sua "qualidade" é igualmente já visível. As saídas sucessivas
de singularização operado pela "feitura". Nessa festa, na segunda saída do estruturam-se em um crescendo ao longo do qual intervêm diferentes
roncá, encontra-se a sequência do perfuré, do ensaio do iaô e de seu santo, intensidades do transe. O que já foi experimentado, ensaiado durante o
que será agora colocado à prova diante de um público muito frequentemen-
te bastante exigente e crítico. A combinação de diferentes elementos que
I3 Vogel et al. (1993) mostram o papel de artefato simbólico desempenhado pela galinha
determinam as características das saídas varia de acordo com a modali- d'angola na "feitura".
dade de culto de cada Casa. 14 O que designa a realização da "feitura".
230 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 23I

perfure, aparece agora quando o iaô é levado a manifestar explicitamente a a iaô entra no roncó, e ainda era possível ouvir certo murmúrio vindo de
figuração do santo em seu transe. Isto prepara o que acontecerá na próxima algumas pessoas do público. Os ata baques calam-se. Kilombo, em tom ao
saida, a terceira. Esta última, chamada igualmente oruncó ou omoruncó mesmo tempo grave e irritado, profere um longo discurso:
(o nome), é o momento unanimemente reconhecido como o mais intenso,
Tem gente que finge que está com o santo. Eu não mando ningué:m fechar os
quando o santo se mostra em sua singularidade, gritando seu nome para olhos, porque eu sei a hora que o orixá pega a pessoa, porque está ch.eio de equê
o público. Curiosamente, isto se dá em uma encenação explícita, em que [falso transe] safado por ai, tá cheio de mentira e safadeza. Tem gente que é cheio
um pequeno intermezzo cômico não faz senão aumentar a expectativa do de querer botar defeito nas coisas dos outros que nem olha pra própria bunda, e
vocês tomem cuidado que eu já estou ficando arretado, eu não gosto de cochicho ...
público. Uma pessoa de prestígio, um ebomi escolhido entre o público pelo
Nasceu ontem, orixá não precisa pegar a pessoa, pega quando bola, ele vai apren-
pai de santo, conduz o iaô em transe para o centro lixé) do salão. Rodando dendo, devagarinho. Quem faz o próprio santo é a própria pessoa. Se ela gosta do
ao redor do ixé, o ebomi pede ao santo que pronuncie seu nome; o santo o orixá, modela o orixá da maneira como ele é. Orixá é encantado, orixá não está
faz falando-lhe ao ouvido. O ebomi pergunta então ao público: "Alguém ai pra vir toda hora. E ela [a iaô] tem orixá, porque o orixá dela está em terra. Por
ouviu alguma coisa?".Todos respondem: "Não!" A 1nesma encenação dá~se isso é melhor vocês pararem com essa conversa que eu já estou cansado ... O orixá
nasceu ontem, é iaô, é uma criança, uma criança que nasceu ontem sabe andar,
uma segunda vez; na terceira, o ebomi pede ao santo: "Vamos, meu pai [ou
sabe dançar? O senhor vem de uma casa que só quer saber de frescura, que não
minha mãe], fale bem alto para todo mundo ouvir!" O iaô em transe gira quer saber se a pessoa está com o santo, só quer que ela dance. Eu não, eu gosto de
sobre si mesmo, pula no ar e grita o nome de seu santo. O público aplaude, ver se a pessoa está irradiada pelo orixá, se está com santo ... Não é porque eu sou
os atabaques soam em ritmo acelerado e, entre os filhos de santo da Casa sabido, é porque eu sinto o orixá, porque eu tenho um orixá, ele roda em mim, e
eu fico muito agradecido por Deus ter me dado essa incumbência ... É no ori, na
e o público, diversas pessoas "viram no santo": ((outros santos viram pra
morada do eleda, é aqui que o santo mora. E para o santo não está fácil de vir na
saudar a chegada do recém~ nascido, do novo santo que acabou de nascer",
terra, não. É que eu tenho muita paciência, os meus vêm.
explica a equede Mãe Júlia. Este grito no ar inaugura uma passagem,
marca um salto, aquele da atualização do santo, de sua singularização 15 • Kilombo explica de modo veemente alguns elementos que tentei mos-
Na quarta saída, chamada saída do rum, o iaô usa as roupas, as insíg- ' trar aqui: ele fala das variações de intensidade do transe pelas quais é
nias, os aparatos de seu santo. O bloco santo-adepto aparece pela primeira possível construir um discurso sobre a presença ou não do santo, deste
vez em público: o santo daquele iaô, naquele momento. Como resume lento processo de aprendizado do iaô e de seu santo. Ao evocar o duplo
muito bem Sílvio, "a saída de iaô é o seguinte: tudo o que foi feito é mos- nascimento, do santo e do iaô, ele põe em evidência o processo de '(fabri-
trado, as cores de todos os orixás são concretizadas. Aí, vem o batizado caçãd' e de "modelagem" que lhe é intrínseco: ((Quem faz o próprío santo
que é o nome do santo. Em todo batizado tem a festa, então o santo sai é a própria pessoa. Se ela gosta do orixá, modela o orixá da maneira como
para o rum, para a festa. Ele sai mostrando que ele já está existindo nesse ele é ". Isto poderia introduzir o capítulo seguinte.
mundo nosso".
Por ocasião de uma festa de saída pública de um iaô na Casa de Ki-
lombo, na segunda saída, alguns membros do público riam demonstrando
explicitamente suas críticas, xoxações. Kilombo, muito seria1nente, ad-
verte: ('Ainda três [cantos] e vocês vão ver!" Os três cantos são entoados,

r 5 Como acima evocado, o santo dos ogãs e das equedes não se manifestam por meio de seu
corpo, seu nome será gritado pelo santo de uma outra pessoa.

A tores e personagens de um teatro
do acontecimento

Gostaria agora de voltar à ideia mais geral de possessão em


que "deuses, espíritos e gênios 1n_yestem' o cQmg_de l.!.ffi_g:.r
}fm~ano durante o temQ.Q..A~-~!~--!!.~-~S!~~:. Essa ideia pres~
supõe um sujeito, Q_ santo, que "investe" o corpo do adepto.
Possuído, ~~te últi!._1!_Q.J.9J}!ª.:.s~....9_l!t~ª-.fQ!.~_g_gue ele mesmo.
Ora, na expressão êmic~~Y.!~~-!:1:9-~~nt~?'', e~te sujeito nã~ é
dist~nt2:_~~.? há prime~_:.?..!.e:~~'?.(..9_.~~-!9.~~ptoL_g_ue
possua o segundo; no limite, poder-se-ia dizer que eles se
·~-------··----·-· --
posSlJ_Ç.ffiJ1IY:!:~,!§.JlJ._çp.J.~ Nesse caso, quem se torna quem ou o
que, quando se reconhece em um transe o "Xangô de Lucélía"
e não apenas Xangô, nem somente Lucélia? O que ocorre nes-
se duplo movimento no interior do qual o bloco santo-adepto
permanece indissociável? Um pensamento que abole a ideia
de origem para desposar a de aliança, como o pensamento de
Deleuze e Guattari (1980), pode, ainda uma vez, fornecer aqui
algumas ferramentas para uma primeira leitura. Esses autores
falam de alianças entre dois reinos, de núpcias antinatureza
opostas à ideia de casal como "máquina binária" (masculino~
feminino, homem-animal...). Aqui, os dois termos da aliança,
por u1n movimento de dupla captura, entram em um devir.

r Cf. Olivier de Sardan, 1991.


234 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 235

Poder~se-ia então dizer que na aliança entre o adepto e seu santo, os dois santo2 • Mas, sob o aspecto de acontecimento da performance, "tornar efe-
são pegos em um único bloco de dc;vir; "vir,ar no santo" é tão somente um tivo" deve ser apreendido enquanto processo dinâmico. No acontecimento
-----------··· ~

produto dessa aliança. Nessa dupla captura, o adepto não imita nem assi- do transe, essa efetuação nunca é própria da mente esgotada; a aliança
mila um modelo de santo, ele entra, por assim dizer, em mn devir-santo entre o adepto e seu santo está sempre sendo selada. ó- côrpo do adepto,
ao mesmo tempo em que o santo (enquanto atualização do orixá) entra, de visto mais frequentemente pela antropologia como receptáculô" das repre-
certa maneira, em um devir-outra coisa. O devir-santo do adepto deve ser sentações míticas, é aqui o lugar do sentido dessa performance: quando
qualificado enquanto tal, sem que haja um termo "adepto tornado santo". da "feitura'' (raspagem da cabeça, escarificações, pinturas, derramamento
A ideia de transcendência que, sustentada pela oposição sagrado-profano, do sangue sacrificial...) e do transe (transformação de seus gestos, de suas
pressupõe mna origem (o divino ou o mito) à qual o adepto acederia, cede expressões, de sua atitude ... ). Esse corpo afasta-se da normalização de um
aqui lugar à imanência dessa aliança. O que é real é esse bloco de devir organismo preestabelecido para se tornar uma superfície onde emergem
(santo-adepto) e não o termo "santo", supostamente fixo, pelo qual passaria subjetividades produtoras de formas heterogéneas de existir.
o adepto. Se há um devir-santo do adepto no transe, é porque ele é pego Mostrei no capítulo anterior como, na socialização e no aprendizado
em um devir-outra cOisa do santo. Adepto e santo encontram-se em uma dos códigos do transe, uma atenção particular é dada a seu aspecto corpo-
desterritorialização comum e assimétrica: a "feitura" (em que ele "nasce" ral. Tentarei agora mostrar como, na intimidade dessa aliança, trama-se
de outro modo) e o transe para o primeiro, a personalização (atualização do uma rede sutil de acordes, de tonalidades e de ritmos entre o adepto e seu
orixá) para o segundo. santo. Como este último adquire, pouco a pouco, por uma lenta modula-
Nessa dupla captura, a pessoa "vira", ela não morre, nem mesmo desa- ção, uma maneira de ser, um estilo próprio em suma, e, para retomar a
parece para ceder lugar ao santo; ela desvia-se do que é e seu corpo assume expressão de Kilombo, como "o santo é feito pela própria pessoa".
uma atitude particular. Adotando uma perspectiva mais geral em que o santo é considerado
Esses devires operam-se tão somente sobre o plano do atual. Insisto como sujeito distinto na possessão, os pesquisadores tenderam a negligen-
nisso: "virada", a pessoa não ilnita nem assimila um modelo de santo; ciar esse aspecto corporal. O pressuposto de base, a superioridade da alma
algo de inédito sobrevém. Reconhece-se em sua atitude, não um deus, um (do espírito ou do psíquico ... ) sobre o corpo, conduziu-os a privilegiar tanto
gênio, um orixá qualquer, mas seu santo personalizado, singularizado as representações míticas das instâncias espirituais quanto os componen-
em um espaço e em um tempo precisos: o santo daquela pessoa naquele tes psíquicos da pessoa.
momento. A dupla captura atualiza-se uma primeira vez por ocasião da Como já assinalei, para certos autores, a origem de tudo estando no
"feitura" e é reativada a cada ocorrência do transe. Disso resulta um úni- mito, o ritual da possessão é reduzido à sua eterna repetição. Eles buscam,
co bloco formado por duas expressões tais como: "Lucélia de Xangô" e "o às vezes mesmo na África, aquelas narrativas míticas que dão um sentido
Xangô de Lucélia". à história e que são contadas em todas as festas e em todas as vezes que
Essa leitura da possessão coloca em relevo o aspecto corporal do transe uma pessoa entra em transe. A autenticidade do fenômeno está aí: na
e da experiência vivida pelos adeptos, pois que ela logo se coloca do lado da tradição como repetição dessa origem e perpetuação do mito. A eficácia
performance, entendida aqui como efetuação. Como já assinalou Patrícia
Birman (1995), os rituais praticados durante a "feitura" são, antes de tudo,
eficazes. Para os adeptos, a "feitura" e o transe não simbolizam simples- 2 Como mostra Birman (1995), a questão da valorização da dimensão simbólica em detri-
mento do aspecto eficaz e performativo dos rituais já foi observada por Herrenschmidt
mente alguma coisa, eles são performatívos no sentido em que tornam (I979) como uma consequência resultante da perspectiva cristã que separa de modo radical
efetivo o que é simbolicatnente evocado: a aliança entre o adepto e seu o sagrado e o profano.
0 CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA iNTIMA ALIANÇA 237

simbólica do transe repousa então sobre a abolição das supostas fronteiras ciência." 3 (Augras, r 983, p. 77). Ora, essa "inconsciência" não apagou a fala
entre o sagrado e o profano. O treçho segqinte, bastante poético dentre do corpo. Essas sensações físicas não forneceriam, justainente, matéria
tantos outros, de Bastide, mostra bem essa perspectiva: para uma compreensão menos etérea do transe? Não seriam elas um fator
diferencial em suas modulações?
Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos Tremores, a mão que se torna fria, mn calor que sobe dos péS à cabeça,
tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de
um torpor, um buraco negro, uma voz que se afasta, un1 zumbido, uma luz,
vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos metamor·
fosearam·se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos um branco, uma silhueta ... Prestando ouvido aos enunciados êmicos do
os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria; Ogum transe, eu gostaria aqui de mostrar que a singularidade de cada experiência
guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxwn é toda feita de volúpia carnal. Por um íntima emerge de seu encontro com o que lhe é exterior: as formulações
momento, confundiram·se África e Brasil; aboliu~se o oceano, apagou~se o tempo coletivas, o relato de outras experiências, uma circunstância particular
da escravidão. Eis presentes aqui os orixás, saudando os tambores, fazendo icá ou
que afeta a vida da pessoa ou do grupo etc. Ao sabor desses encontros, dos
dobalé diante dos sacerdotes supremos, dançando, algumas vezes revelando o futu-
ro ou dando conselho~. Não existem mais fronteiras entre natural e sobrenatural; diferentes agendamentos resultantes e em função do tempo de iniciação,
o êxtase realizou a comunhão desejada (Bastide, 2009, p. 39}. toda uma gama de enunciados se diferenciará. Nas relações que o adepto
entreté1n com seu santo na vida cotidiana, igualmente se-esboçará, em sua
Em urna outra perspectiva, sem que urna exclua a outra, o psíquico singularidade, a personagem do santo. Se a inconsciência e o esquecimento
ou o psicológico explicam o transe a partir da consciência. Esta última estão, evidentemente, presentes nesses enunciados, eu não os considero
pode ser alterada ou apagada quando se mergulha na inconsciência. A como elementos discriminatórios que conduzem a uma tipologia do transe.
alteração do estado de consciência é visível na amnésia que ela provoca, e Pelo contrário, gostaria de entrever, na modulação de suas intensidades,
o esquecimento de tudo o que ocorreu durante o transe pode igualmente o processo de produção de subjetividades do bloco santo-adepto no seio
ser a prova de sua autentidade e realidade (Bastide, 1958). Por outro lado, desses diversos agendamentos. Trata-se, aqui, de apreender o 1nais íntimo
a inconsciência torna·se a condição inevitável para o surgimento do Ou- dessa aliança em superfície e não de extrair sua razão no 1nais profundo do
tro profundo (Augras, 1983, r992), para a expressão da personalidade do psiquismo1 tampouco de explicar sua origem por qualquer transcendência.
ancestral reinculeado (Verger, 1957), para o desabrochar do eu recalcado
que, magnificado pelo divino, torna-se uma nova personalidade (Cossard-
NO "QUASE" DA DUPLA CAPTURA: UM APRENDIZADO MÚTUO
Binon,. 1970), e assim por diante. Reduzidos ao inconsciente e ao esque-
cimento, toda enunciação, todo discurso êrnico sobre o transe parecem Nos relatos das primeiras experiências de transe ocorridas por ocasião da
então confinados a certo silêncio. Em contrapartida, esse silêncio parece "feitura", sobretudo no momento do sacrifício ritual (orô) 4 , mna alternân·
garantir ao fenômeno do transe uma boa parte de inexplicável, de desco- cia de sensações corporais, um movimento de vaivém no controle de suas
nhecido e de misterioso, a boa dose para alimentar o que Jean-Pierre Oli- ações e de suas faculdades parecem anunciar a aproximação do santo, seu
vier de Sardan (1986) chama "a ideologia 'encantada' do transe". A "avidez "nascimento". Elias, iaô na Casa de Kilombo, saído de reclusão há uma
de un1 certo exotismo" ou, ainda, a busca de "um sagrado perdido'' parece semana1 fala aqui de suas sensações:
tornar cego, ou, antes, surdo, aquele que finge procurar nessa palavra já
fadada ao mutismo a chave do "mistério": "as sacerdotisas não sabem
3 Os itálicos são meus,
dizer o que acontece no transe: o corpo treme todo, a cabeça gira, tem-se 4 Momento em que se considera que o santo "come" pela primeira vez sobre a cabeça de uma
a impressão de estar à beira de um grande fosso escuro. Depois, a incons- pessoa.
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 239

Durante o orô eu tive essas reações: vira e não vira, ele [o santoj vinha, eu sentia AGENC!AMENTOS NO OCO DA DUPLA CAPTURA
as coisas, mas estava ouvindo o que o pessoal estava falando. Eu acho que, de certa
forma, eu virei [... J Sentia uma tremedeira, rtão sabia me controlar, sabe, quando
você está dentro da água, você tá com frio, está batendo os dentes, o corpo começa Mara foi "feita" equede quando era ainda criança. Ao final de quinze anos,
a mexer todinho, os ombros começam a mexer daquele jeito, umas coisas ... Dá ae
ela começava a experimentar sensações \tremores, dor' .barriga/ ausên-
uns trancas, você sabe, é tipo um branco. cias ... ) que foram identificadas como sendo o sinal e1nitido por séü santo de
seu desejo de "virar••. Se a presença dessas sensações punha em dúvida seu
Evocando suas experiências posteriores, Elias bem mostra as varíações estatuto de equede, na elaboração de seu discurso sobre o processo de mu-
do ritmo, as modulações da dupla captura: dança desse estatuto, Mara confessa que esse desejo de ''virar" era também
o seu: "eu achava muito bonito o orixá na cabeça dos outros, sempre achei
Eu não virei realmente, eu sinto essas tremedeiras assim, mas eu estou consciente,
aquilo muito bonito e sempre quis realmente 'virar"'. Por ocasião de sua
porque ele me pega, mas me pega aos poucos, sabe? Parece que te jogam um raio e
você sente aqueles negócios e depois isso já para. Então, por exemplo, na festa da "obrigação" de sete anos de "feitura", confirmação de seu estatuto de eque-
saída, eu estava dançando, de repente, era eu que estava ali, consciente; de repen- de, tudo a levava a crer que Iansã podia enfim "virar". Em seu relato, certa
te, sentia aqueles negócios e já não era mais eu, quer dizer, era eu, mas sentindo dratnaticidade envolve esse momento tão esperado. Mara podia sentir apre-
aquelas coisas dele, a irradiação dele. Aí, daqui a pouco, eu continuava dançando,
sença de seu santo, 1nas toda a dificuldade repousava sobre o conflito entre
ele parava, e era eu de novo dançando sozinho. Era assim, ele vinha aous poucos,
vinha um pouquinho, me deixava, depois voltava de novo, sempre assim.
seu tnedo de não mais voltar e seu desejo de uma plena presença do santo:

Quando fizeram os atos para chamar o santo, nos primeiros dias eu não sentia
'~Estarconsciente", definido ao 1nesmo tempo pelo pensamento interior
nada, daí começaram a me apertar, a fazer pressão, foi quando eu comecei a sentir,
e pela percepção auditiva e visual do exterior, varia aqui com a perda de mas eu tinha medo de ir e não voltar. Iansã me pegou os dois dias antes do orô;
controle do corpo: no início foi difícil pra eu aceitar, eu sentia meu corpo ir, minha cabeça ir mas
eu ainda conseguia falar, eu falava: não é Iansã é Mara! Daí jogavam os búzios e
1
Eu estou consciente, mas é incontrolável as coisas que a gente tem de fazer, ele faz, falavam: mas Iansã está presente. Eu falava: não está, não, sou eu que estou aqui!
o que ele quer fazer ali, eu não consigo me segurar. Ele pega meu corpo para ele, Então foi difícil, o pessoal me preparava: é assim mesmo, no início você vai sentir
é um negócio assim, é o que eu penso, ele pega o corpo para ele, eu fico só com o assim. Eu dizia: "não, não não, se ela quiser vir, que venha direito, eu não quero
meu pensamento. Eu fico pensando nas coisas, vendo as coisas, ouvindo o que as falar, não quero ouvir, não quero ver".
pessoas estão cantando em volta de mim ali, é isso o que eu sinto.
Para Mara, toda percepção ou contato com o exterior deve ser apagado
Essas modulações instauram para Elias uma presença incompleta de seu para que a presença do santo seja "correta"; ela então estabelece a regra
santo. Essa inconclusão abre a brecha para um duplo aprendizado, apreensão para que a aliança se efetue: não falar, nada ver e nada ouvir. Ela continua:
e compreensão mútuas em que se opera a "tnoldagem" de seu santo:
Antes do orô, eu já tinha sido catulada, raspada, já tinha passado por todos os
Algumas coisinhas eu ainda consigo fazer, mas ... Por exemplo, dizem que quando preceitos, já estava de quelê e estavam chamando porque à noite seria feito o orô,
a gente faz o santo, ele não sabe dançar. A gente tem de saber dançar para ele tam- e era preciso que Iansã viesse comer. No início, perguntavam para mim: "é Iansã?
bém saber. Quando ele vinha assim, na festa da saída, eu tentava ajudar ele, era Se for Iansã, se for Oiá, solte o ilá". Eu respondia: "não, não é Iansã, é Mara". Daí
ele me ajudando e e eu ajudando ele. Eu tinha um pensamento que ficava comigo falavam pra mim: "calma, Mara!" Porque realmente eu estava nervosa, daí passava
assim: "oh, meu pai, vem por inteiro, porque eu sei que o senhor vai fazer mais mais um tempo, eu tremia, tremia, eu sentia meu rosto tremer muito, a boca, o
bonito do que eu!" Eu ficava assim, tentando dançar ali até ele vir, algumas coisas peito, aquela tremedeira na carne ... Daí perguntavam de novo e eu: "não, não,
assim dá pra mim fazer. sou eu". Eu tentava abrir os olhos, acontecia de abrir. Às vezes eu enxergava e às
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA

vezes eu não enxergava, entendeu? Então eu pensava comigo: "com certeza está se
conservar uma alta posição na hierarquia, tornando~se eborni. Ora, para
aproximando, mas eu não estou entendendo, por que não me pega de uma vez?'' Eu
me lembro da última palavra que eu escutei: "se for Iansã solte o ilá". A sensação Mara, a presença do santo de uma ebomi não pode se dar sem ser completa
que eu tive é como se alguma coisa tivesse pulando da minha garganta. Depois e concluída: "Agora1 quando eu viro, eu não vejo nem ouço nada. Graças à
disso, eu não enxerguei nem ouvi mais nada. Deus1 porque, sinceramente, eu acho que vento (meu pai'se'mpre me falou
que orixá é u1n encantado, um vento) eu acho que o vento tem ~ae vir e te
Na realização dos atos rituais (raspar a cabeça, cumprir os preceitos, pegar. Não tem nada desse negócio de ficar vendo, nem ouvindo nada, não".
usar o colar... ) traçam~se as linhas do devir~santo de Mara. Nada ver nem
ouvir é, para ela, o caminho da desterritorialização; o grito (ilá), a expres~
NO ACONTECIMENTO DA DUPLA CAPTURA: HISTÓRIAS CRUZADAS
são da personalização, da singularização de seu santo. Esta presença "com~
pleta" de sua Iansã, se1n variações de intensidade de sua percepção auditiva Zoca, uma das irmãs de Mara, traça no percurso de suas percepções e
e visual, tornou-se para Mara a modalidade da dupla captura. Quando ela sensações, uma curva de variações que vai até a perda da noção de tudo:
assinala nas experiências posteriores, a ocorrência dessas variações1 estas
adquire1n um outro sentido. Elas não são mais a expressão da inconclusão No início, eu escutava e via muito. Eu via como num lugar muito escuro, eu via só
dessa dupla captura, mas aquela da relação estabelecida com o próprio um vulto na frente me guiando, eu tentava abrir o olho e eu via um buraco enorme,
escuro. Eu tinha medo desse buraco. Mas escutar eu escutava bastante. Dependen-
santo. No seu caso1 urna relação de punição:
do da pessoa que estivesse comigo eu sabia que era aquela tal pessoa que estava na
minha frente. Se eu fosse fazer qualquer movimento, eu não sentia, eu não sabia
Depois do orô, eu virava direto, sem escutar nem ver nada, mas acontecia de Iansã nada do que eu estava fazendo. As primeiras vezes que eu virei no Ogum, a única
me pegar e me largar \... ] A primeira vez que ela me largou foi no dia da festa da coisa que acontecia antes é que eu me sentia enorme. Parece que vai entrando um
saída. Eu vestida e tudo, toda bonitona e senti que era eu. No que eu bato o olho, negócio, assim, que vai te esticando, você vai crescendo, seu rosto vai modificando.
ainda bem que eu estava de adê !adereço de pérolas sobre os olhos], ninguém viu Eu me sentia enorme. Era a única coisa que eu sentia antes de virar1 que me dava
que eu abri os olhos. No que eu bato o olho: "Jesus, o que que eu tô fazendo aqui?'' até um certo medo. Eu me dizia: gente, eu estou modificando, estou inchando! O
Daí, eu pensei comigo: ''ai me pegue, pelo amor de Deus!" Mas foi uma coisa ins* seu corpo vai inchando, vai inchando e você vai perdendo a noção das coisas, dá
tantânea, na hora que falaram assim: "é a vez de Iansã dançar", eu me levantei, e até medo [... J. Hoje em dia é diferente, começa a vir aquele zoumm no ouvido,
falei para mim: "e agora? Eu vou ter que fazer o papel, pior que eu não sei o ilá nem de repente, eu não vejo mais nada, não escuto mais nada, perco a noção de tudo.
nada, o que eu devo fazer?" Mas eu sabia que Iansã ia me pegar, porque quando
levantam o santo, começam a saudar e tudo, ele vem. Logo eu já me apaguei de
novo. No início, aconteceram várias vezes de Iansã me largar em momentos assim. Nota-se, inicialmente1 no crescendo das percepções, o laço estreito
Acho que era pra punir a gente, um pouco a minha Casa e eu também. estabelecido por Zoca entre a alteração do corpo e da consciência. Aqui,
con1o no relato de Elias, não há superioridade da instância psíquica sobre
Segundo Mara, punição para a Casa onde ela foi "feita" equede (o que o corpo. Os dois exprimem uma única e só coisa: o "desvio" da pessoa, sua
impedia o seu santo de "virar") e punição para ela mesma que, antes de desterritorialização.
"virar", não dava in1portância a seu santo: "Antes de virar1 eu desprezava o Por outro lado, para Zoca, a progressão desse crescendo, ligada aos anos
sant01 eu não acreditava no que eu carregava na cabeça". A Iansã de Mara de "feitura", não é forçosamente linear, corno parece ser para sua irmã
pune o que provocava uma recusa de sua presença recusando-se agora a Mara. Segundo a circunstância do transe, segundo o momento de sua vida/
estar presente. Essa dupla punição, agenciada no oco da dupla captura, a perda da "noção de tudo" pode variar. Esses "incidentes" dão um outro
reforça e legitima ao mesmo tempo esta última e o novo estatuto atestado sentido à presença do santo. Aqui, por exemplo, seus gestos são tomados
de Mara. Apesar da perda de seu posto de equede, como rodante ela pôde como a expressão de um descontentamento:
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 243

Pra não dizer que eu não sinto mais nada, às vezes eu sinto. Uma vez, eu senti modelagem de seu santo que se opera em seu corpo. Em seu relato, é inte~
uma coisa com a Nicole [sua filha], faz pouco tempo. A Nicole estava chorando,
ressante notar que não é "o esquecimento de tudo" que parece autenticar
chorando, eu estava virada. Nisso eu' acho que Ogum [santo de Zoca] foi pegar
a Nicole; quando Ogum pegou ela, ele levantou a Nicole e jogou ela na cadeira. seu transe. É, antes, o fato de manter uma percepção do corpo e do exterior
Quando Ogum fez isso eu escutei a Nicole chorando e senti que era a Nicole que que lhe permitirá avaliar a presença efetiva de seu santO:-
estava no meu colo. Daí eu pensei comigo: "meu Deus, o que está acontecendo?"
Nunca aconteceu de eu conseguir sentir, eu tô sentindo a Nicole chorando! Daí, eu Quando eu viro no santo é como se eu fosse ... Eu posso ouvir sua voz, não adianta
fui tentar acalmá-la, mas eu não consegui. Isso passou rapidinho. Eu não consegui dizer que a gente não ouve nada, é uma piada, eu posso ouvir sua voz, mas longe,
mais ver o restante, o que aconteceu com Ogum e com a Nicole [... ] Quando eu sabe? É uma coisa ... Você realmente se sente tomada, o santo não pega todo seu
desvirei, o Jéferson [marido de Zoca] falou para mim: "Ô Zoca, o Ogum fez isso, corpo nem toda sua cabeça, como dizem as pessoas, mas ele pega ... Você sente que
isso, isso com a Nicole". Mas eu não me lembrava, entendeu? Eu vi, mas eu não você não está ali, que você é metade você e metade o santo[ ... ] As pessoas dizem
me lembrava realmente de tudo o que aconteceu. Eu acho que eu vi as coisas, para assim: "ah, se você virou no santo, você não sente nada, não vê nada, não ouve nem
poder ver o que Ogum estava fazendo com a minha família, ele estava me cobrando vê nada!" Acho que é uma mentira. Depois de um certo tempo, você consegue fazer
e, pra mostrar a cobrança, ele fez isso com a minha filha. mais coisas, o santo consegue se aproximar mais de você. Quando a gente tem sete
anos de santo, ele se aproxima mais do que nunca. O santo pega seu corpo inteiro,
Esses "incidentes", pequenos acontecimentos, objetos de longos comen~ mas você ainda pode ouvir um pouco as coisas, bem longe é verdade, mas você
tários e de frequentes fofocas, entram no enredo das histórias pessoais. pode ouvir. Mas antes de ter sete anos de santo, o santo pega metade do corpo; a
Qualquer santo pode abraçar uma pessoa em sinal de afeição, fazer-lhe outra metade, é você que tem de controlar. Por exemplo: eu não sei dançar; se você
não sabe dançar, o santo não tem pé de dança. O santo não nasceu sabendo dançar.
um gesto de aprovação, mas, por vezes também, de desaprovação, puni~
Então, o pai de santo deve ensinar a pessoa a dançar. Quando o santo vem, o resto
ção etc. É verdade que isso se repete a cada festa. Mas para além dessa do corpo, é a pessoa que tem de fazer ele dançar j ... ]. Então, eu não sei dançar e
repetição, esse gesto torna-se um acontecimento, uma pequena história meu santo também não.
que atravessa a história das personagens e dos atares da cena, quando se
reconhece que se trata dO santo de tal pessoa que abraça uma outra em Nesse processo de entendilnento mútuo, os acordes entre Angelina e
um dado momento. Pode-se dizer a respeito desse "incidente" ocorrido seu santo por vezes destoam. Nessa dissonância, esse último adquire um
com Zoca que foi simplesmente Ogum-guerreiro que "brilha no fogo da estilo bastante particular: "Ele dança à moda dele, porque ele vai mais rá-
cólera"? Essa cólera, atualizada pelo Ogum de Zoca naquele dia, naquele pido do que eu. Quando você não tem pé de dança, ele dança do jeito dele.
momento, não seria, antes, uma ira, fruto do cruzamento da história de Então, ele é um santo espalhafatoso, como o povo fala: 'ah, seu Ogum é
seu santo, daquela de sua filha, de sua família e de sua própria história? muito espalhafatoso, é muito atrevido ... "'.
Para Manuel de Odé, esse estilo, esse modo de ser do santo, forjados em
O ESTILO DO SANTO: uma diferenciação em relação ao tempo de "feitura", torna-se perceptível
AGENCIAMENTOS DE ENUNCIAÇÕES E DE HISTÓRIAS pela maneira de ficar mais ou menos "à vontade" do santo e da pessoa:

O crescendo das sensações e percepções descrito por Zoca é igualmente O santo vai aprendendo com você como se locomover, como se movimentar a cada
evocado por outros adeptos, mas, para alguns, a perda total da consciência situação, a cada fato. Ele acaba sendo um orixá individual, com características
não ocorre forçosamente ao final da progressão. No devir-santo da pessoa, diferentes, pela sua cabeça, pela sua própria condição. É como se você interferisse
na existência do santo, segundo o seu critério. Na prática, você percebe isso muito
certo controle do corpo pode ser um bom meio para que se estabeleça
num ebomi por exemplo; para ele a incorporação nunca é a mesma da de um iaô. O
u1n acorde mútuo para que "o passo da dança" possa afinar-se. Angelina, ebomi já passou por várias experiências, não se incomoda mais, e o santo pode ficar
filha de santo de Manuel de Odé, "feita para Ogum" há cinco anos, fala da mais à vontade. O santo de um pai de santo tem um jeito de dançar, uma maneira
244 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 245

de conversar com as pessoas diferente do de um iaô. Porque o corpo dele já fica à


quentemente apreendidos, nas críticas dos adeptos, como uma falta de com-
vontade, ele já conhece o que tem, ele se entrega mais facilmente. O iaô, parece que
petência. A performance sai do tempo do ritual, seu sentido está alhures:.o
ele fica meio com medo, sem saber o qUe vai faz'er, como se estivesse esperando.
O santo tem que aprender com aquele indivíduo, respeitando a individualidade de santo é um santo cossi (ignorante) e a pessoa não tem axé. Mas esses ~~inci­
cada um, para se comportar de uma maneira que não fira essa individualidade. Por dentes" podem igualmente assumir urna outra amplitude, enriquecendo a
isso a diferença. Cada santo vai ter seu jeito de dançar. Quando a gente diz que al- festa ritual com uma outra história, saída da vida cotidiana dos'~deptos. A
guém dá um santo bonito, é por ai que a gente vê, pela maneira dele ficar à vontade.
manifestação do Oxóssi de Kilombo por ocasião de urna festa de erê em sua
Casa mostra, nos cruzamentos dessas temporalidades heterogéneas (tempo
"Dar um santo bonito" é também ter u1n conhecimento dos cantos, dos do ritual, da vida cotidiana, da história mítica, da história do santo ... ), a
códigos e dos protocolos rituais. Ao adquirir esse saber, a pessoa é igualmen- amplidão desse acontecimento. Kilombo dizia na época que seu Oxóssi não
te capaz de modelar o estilo de seu santo1 como explica a equede Dangeuê: se Inanifestava há muito tempo por causa de um grave descontentamento/
cujo motivo não fora explicitado. Paralelamente a isso, corria mn rumor na
A pessoa dá santo bonit91 quando o santo entende o que está se falando, o que está Casa: a doença de um ogã teria sido causada por uma vingança desse santo;
se cantando. Porque não adianta nada você dar santo e o ogã estar lá, cantando, e '~Oxóssi é n1uito vingativo", dizia-se. Kilmnbo não refutava nem confirmava
você não entender nada do que o ogã está falando. O santo também tem que en-
essa hipótese; tentava, por outro lado, ajudar esse ogã, realizando diversos
tender. Isso vem do filho de santo, isso vem da mente da pessoa, o filho tem que
ebós. O tnotivo da vingança: embora "suspenso" na Casa de Kilombo por
aprender as coisas para passar para o santo. Então, quando a pessoa dá um santo
bonito mesmo, você não precisa ficar puxando ele, você solta, ele dança pra lá e Oxóssi, o ogã se fizera iniciar em uma outra Casa. Contudo, casado co1n
pra cá. Ê aí que ele dá um santo bonito. Agora, tem santos que são totalmente uma filha de santo de Kilombo, ele continuava a participar das festas e dos
atrapalhados, você precisa ficar puxando, ficar falando o tempo todo com eles. rituais na Casa deste último. Já grave1nente doente, ele cantara bastante
ao longo de toda aquela festa de erê. No final da festa, depois do último
A manifestação dos santos nas festas públicas segue os fragmentos das canto de saudação a todos os orixás, no silêncio dos atabaques, Kilombo
histórias míticas reconhecidas pelo grupo: em mn momento preciso1 assina- ~~vira"no Oxóssi. Os atabaques recomeçam para que este último dance. No
lado pela música, os Ogum indicarão por seus gestos que estão guerreando; final de alguns minutos, ele dirige-se àquele ogã que, muito emocionado,
as Oxum, que estão tomando banho; os Oxóssi que estão caçando, e assim toca o solo antes de abraçá-lo demoradamente. Os atabaques redobram o
por diante. Ao comentar essas festas, os adeptos não colocarão o acento na ritmo, os gestos de saudação do público tnultiplicam-se com certa efusão.
própria história: dizer que Oxum se banha ou que Oxóssi caça pode parecer, Essa irrupção inesperada do Oxóssi de Kilombo foi, evidentemente, muito
efetivamente, sem nenhum interesse, já que essa história é conhecida de comentada em seguida. A maioria dizia que Oxóssi enfim perdoara ao ogã
todos. Acentua-se, em contrapartida, a maneira pela qual essa história foi sua infidelidade. Um mês 1nais tarde, este último faleceu. Kilombo, que
contada naquele dia, por aquele santo: como o santo de tal pessoa soube gostava bastante dele, experimentou então um grande sentimento de culpa,
bem contá-la, como o santo de tal outra não soube contá-la tão be1n. Duran- pensando que seu Oxóssi, sentindo-se traído, havia lhe dado o câncer que
te a festa ritual, o estilo do santo atravessa o fragmento de história mítica o matara. Com efeito, dizia-se agora que Oxóssi era vingativo, mas que
para tecer outras histórias ancoradas na vida das pessoas que participam aquele de Kilombo era particularmente cruel. A doença do ogã resumia-se a:
dessa festa. Essa performance pode assumir um movimento totalmente "Oxóssi está comendo-o como u1n caranguejo". Sua irrupção por ocasião da
diferente quando, no lugar de mna travessia, a irrupção de um santo etn festa dos erês era agora evocada não mais como um perdão concedido 1nas
momentos imprevistos nas sequências de u1na festa quebra o tempo do como um adeus. A personagem do Oxóssi de Kilombo desenhava-se agora
ritual tornando-o ora vazio, ora pleno de sentido. Esses "incide:t?-tes" são fre- com os traços mais acentuados da vingança e da crueldade.
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 247

Além disso, o estilo, a maneira de ser do santo defineHse na intimidade chegar a uma tipologia sobre o falso ou o verdadeiro transe, significa, de
evidenciada pela enunciação meticulosa das. sensações e das percepções modo evidente, permanecer colado a esse discurso sem levar em conside-
que anunciam sua chegada. Frequentemente, é em torno de um traço ração que, no jogo das relações entre as pessoas, o santo de equê de alguém
específico que se elabora esse estilo e que se constrói, de modo totalmenH pode se tornar um dia um santo muito bonito e vice-vei:sa:
te singular, a personagem do santo. Quando Marlene "vira", sua Oxum O fim do transe é igualmente assinalado por uma série dé<Sensações
profere um ilá sob a forma de um doce gemido, e, de seus olhos fechados, corporais. Por meio delas, pode-se, por exemplo, destacar a real transfor-
escorrem algumas lágrimas. Ela conta: mação do corpo como expressão da desterritorialização da pessoa. Em seu
relato, Albani bem mostra esta transformação que, por outro lado, torna
Quando eu vou virar, me dá muita vontade de chorar ... Dá vontade de chorar evidente para ela a presença do santo:
mesmo. Acho que é porque a minha Oxum é muito chorona, muito manhosa ...
·Me disseram que ela chora muito quando eu estou virada nela, é por isso talvez Depois, quando eu volto, eu não me lembro o que aconteceu, só ficam essas sen~
que me dê essa vontade de chorar... sações de ver as coisas e de não poder fazer nada, não poder controlar meu corpo.
Mas, quando eu volto ao meu estado normal, minha filha, é uma crise de bronquite
Se o choro é uma atitude típica de Oxum, nem por isso todas as Oxum infeliz, violenta. É por isso que eu acredito que eu tenho, que realmente eu virei no
choram. Parece que há nessa elaboração de um estilo uma boa medida a ser santo, devido a essa consciência que a gente tem de se sentir e não se controlar. Mas
também porque eu ando daqui ali na esquina, tenho falta de ar; e o santo, virado,
respeitada, aquela de um justo meioHtermo para que se produza um efeito
ele dança a noite inteira e não sente nada. Só que, depois que ele vai embora, dá
pelo qual não mais se distingue no bloco santo~adepto o que pertence a um licença, eu tenho que sair correndo depressa, eu tenho que catar uma bombinha
ou ao outro. Durante uma entrevista, Mãe Júlia, equede na Casa de Kilom- de Aerolin e usar porque eu estou completamente sem fôlego, eu não consigo
bo, embora reconhecesse no choro um atributo de Oxum, via certo exagero respirar de tão cansada que eu estou [... j. Quando eu estou virada, eu não sinto
nada, cansaço nenhum, eu estou perfeita, é uma outra coisa, é uma outra pessoa
na Oxum de Marlene, como se a boa medida houvesse sido ultrapassada:
ali, é como se eu nunca tivesse tido problema nenhum de respiração. É como se os
meus dois pulmões funcionassem, mas depois que eu desvirO, eu quero respirar e,
Oxum é toda dengosa e doce, a Oxum verdadeira mesmo é toda dengosa, até no
cadê? Não tem mais oxigênio, não tem mais nada ... Isso sem contar o cigarro; eu,
modo dela dançar, ela dança num dengo ... E quem está virado mesmo na Oxum, a
se estiver acordada, de quinze em quinze minutos eu estou de cigarro na mão; e o
gente vê que ela é assim ... Tem umas que choram, a da Marlene chora, mas Oxum
não é chorona assim, não. santo, virado, pode dançar a noite toda, pode fazer o que ele quiser que não sente
vontade de fumar.

Para seu pai de santo, Kilombo, essas lágrimas são objeto de um gesto
Além disso, de volta do transe, a condição física da pessoa traduz o
de reverência, ele as enxuga com frequência para com elas umedecer seu
estado dos laços entretidos, naquele momento, pela pessoa com seu santo.
próprio rosto. Ele comentava um dia: "Marleninha tem santo mesmo, ela
Este pode, por vezes, desempenhar um papel regulador na vida do adepto,
dá uma Oxum 1nuito bonita".
como explica Angelina:
Assunto de predileção nas conversas, o estilo de um santo pode ser o
alvo de toda espécie de comentários, que vão da maior admiração à crítica Tem vezes que ele me deixa leve, mas quando ele quer me quebrar inteira ... Ele
vem, quando ele vai embora, eu acabo. Quando eu acordo estou toda quebrada: dor
mais feroz (xoxação). Quando em uma perfonnance se reconhecem gestos
de cabeça, dor nas costas, a perna que dói, não sei mais o que dóL Ai eu posso ter
próprios da pessoa, ela será criticada afirmando-se que o santo tem vícios, certeza que Ogum queria aprontar alguma comigo, porque eu devo ter feito alguma
ou, ainda, indo mais longe, dir-se-á que a pessoa dá equê [falso transe]. coisa errada que ele não gostou. Quando ele está satisfeito comigo, eu posso virar
"Santo viciado", "santo de equê" são categorias muito flutuantes de um no santo e fazer qualquer coisa, posso pegar um peso de cem quilos e não sentir
discurso crítico de acusação. Buscar a unanimidade nesses comentários nada, e ficar me sentindo superbem depois, quando eu desviro.
'
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 249

A DUPLA CAPTURA NO COTIDIANO:


A irmã mais velha de Bárbara, feita igualmente para Iansã e a mais
PRODUÇÃO DE SUB)ET~J\.1)_~_8
antiga filha de santo da Casa, para um instante de varrer o corredor que
liga sua casa ao quintal para saudar a Iansã de Bárbara. Esta última volta-
Os laços entretidos com o santo são ainda 1nais evidentes fora das festas se então para Andinho, o sobrinho de Bárbara, para espalh~r um pouco do
rituais, sendo que o transe pode intervir em contextos heterogêneos nos pó pemba sobre sua cabeça, passando, sobretudo, as mãos sobre:~eus olhos
quais se entrecruzam diversos ele1nentos: contextos públicos ou privados, (Andinho tem um estrabismo bastante acentuado). O 1nenino parece um
com presença ou não de um objeto ritual e/ou da música, fora ou na Casa pouco surpreso, o que faz os outros presentes rirem. Kilombo aproxima-se
de candomblé etc. A "normalidade" ou, ainda, a banalidade dessa interven~ para dizer: "Oiá logun erê 6 ! É isso, ela gosta de cuidar das crianças". Muito
ção parece evidente para os adeptos, cmno explica Lana: descontraído, ele interpela a criança: "E você, seu filho da puta, não vai
virar no troço". As pessoas riem ainda mais.
Acho que está aí a força do santo, maior do que o toque !festa ou o som dos ata·
A Iansã de Bárbara começa então a passar suas mãos sobre o próprio
baques], que a cantiga, maior que o adjá, maior do que qualquer coisa. É'~
\que ele está ali te protegendo. Então ele vem nesses 1110mentos porque ele está te corpo e a mãe de Bárbara lhe diz: "Tira tudo dela ... " Sheila, sobrinha de Bár-
IJ~jgçl~uJ..do. Afinal de contas, se ele está ali é para te ajudar. Se você está precisando, bara e equede da Casa, aproxima-se para perguntar se ela quer ir embora.
\
por que ele não viria te ajudar, ~~~m pouco de calma? Por que ele não viria Diante do gesto afirmativo, Sheila acompanha-a até o quarto consagrado
para ajudar alguém que está precisando também, al~ém d~ tua família? Eu acho a Iansã. Durante a preparação da saída do transe, a mãe de Bárbara dirige-
isso normal, eu acho até que tem que ser assim, porque só no toque, na festa?
se a Iansã para dizer que ela pode, se desejar, proferir seu grito (ilá). Ela
O santo está o tempo todo com a gente, por que não virar quando a gente está
precisando mesmo? pede então à equede para passar um pouco de pó pemba sobre a língua de
Bárbara, reiterando: "A senhora já pode soltar o ilá, minha 1nãe, se a se-
5
A esse respeito, a história de Bárbara , garota de oito anos, e da mani- nhora quiser, agora a senhora já pode". Logo antes de sair do transe, Iansã
festação de seu santo em Sua vida cotidiana, é exemplar: Bárbara chega ao profere pela primeira vez o ilá. Bárbara te1n smnente oito anos e é apenas
quintal da Casa com um passo lento, mão na cabeça, e diz a seu pai que tem a segunda vez que ela "vira" na Iansã. De volta do transe, ainda 1nuito
muita dor. Este último canta uma reza, assoprando um pó ritual(pemba) de cansad,a, ela vai repousar.
um lado e do outro da cabeça da garotinha. Bárbara cai em transe. Kilom- O dia retoma seu curso, saio com Kilombo para visitar um de seus ami-
bo saúda Iansã ao mesmo tempo em que cobre certos pontos do corpo de gos. No início da noite, voltamos à Casa e encontramos a mãe de Bárbara à
Bárbara com o pó pemba. A Iansã de Bárbara vira-se para Kilombo, pondo sua porta, desesperada. Bárbara está com febre e delirando. Partimos com
seus dedos ao redor dos olhos. Kilombo parece compreender imediatamen- urgência para o hospital mais próximo. Ante a gravidade de seu estado,
te o gesto: "Ah! Olho gordo!" A Iansã de Bárbara aquiesce com a cabeça, um médico é imediatamente mobilizado para atendê~la. Ele começa a
confirmando assim sua interpretação. Em seguida, Kilombo pede a ela para auscultá-la, avisando-nos que suspeita de meningite. Muito preocupado,
assoprar leve1nente o pó pemba que ele derra1nou em sua mão. O restante, Kilombo aproxima-se de Bárbara e, em seu delírio de febre, ela lhe diz:
ele passa, uma vez mais, em alguns pontos do corpo de Bárbara, dirigindo- "Não me deixe ir embora, meu pai, eu tô sentindo que eu tô indo embora".
se a Iansã: ''Cuida bem dela, deixa ela boa para dormir bem e descansar em O médico está ainda auscultando-a quando Kilombo "vira" no seu caboclo.
paz, só pra descansar". Este começa então a roçar o corpo de Bárbara com suas mãos. O médico
afasta-se um pouco, deixando lugar para o caboclo. Ele me diz mais tarde
Esta história e a importância por ela assumida na vida de Bárbara motivaram várias sequên-
cias do filme Bárbara e seus Amigos no País do Candomblé (Opipari e Timbert, 1997). 6 Trata-se aqui da qualidade de sua I~nsã.
250 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 25!

estar habituado com esse tipo de manifestação em sua prática nos hospi ~ envolvidos nisso. Então, ele não queria que eu ficasse no meio dessa turma. Foi por
isso que ele me catou, para avisar minha mãe e meu pai. Quando eu virei, minha
tais. Um ou dois minutos mais tarde, pede~n.os para sair, pois Bárbara será
mãe chamou o erê e ele contou tudo.
conduzida a um hospital especializado.
Lilica, uma filha de santo que veio conosco, conduz o caboclo para Uma vez mais, diferentes tempos se entrecruzam .. ·A--Ünha do tempo 0/1 ,Jlo. Yi \_]
fora, para a entrada do hospital. Antes que Lilica o faça sair do transe, o . t. o) cotidiano é rompid!}'elo_:"rnl?o__de um ritua~ que se instala, 'pelo te;:;;po h".Y;J $}
caboclo nos diz que Bárbara tem um problema na barriga. A meningite \Jl"""'· v'· virtual do santogue_ se atl!.~J!~~·
foi em seguida confirmada e Bárbara permaneceu no hospital por mais de ~ iJj--'9.-'.: / Algumas d~sas r~g·;~~-·ditadas no decorrer da "feitura", sobretudo aqueM
mn mês. Como a Iansã de Bárbara, o caboclo de Kilombo "veio a tempo" [ou a:i-fJ,t
St:. Vbr~tfV.:él_.
ligadas à comida ("quizila de boca"), permanecerão para sempre. A per-
para ajudá-los. Os prognósticos de mau-olhado ou problema na barriga não sonalização do santo e o estabelecimento de um laço íntimo com a pessoa
\\~,._'?]
foram questionados, simplesmente não se fala mais neles. Essa história se expressam nessas quizilas. Estas modulam·se, mudam, atenuam·se de
tornou-se lendária na Casa; as irrupções da Iansã de Bárbara e do caboclo acordo com as díferentes negociações que a pessoa empreende com seu
de Kilombo são sempre evocadas por todos com muita emoção. Os laços santo. A violação de uma quizila de boca não desencadeia forçosamente o

\;:::~ç:;; ::~;~;;:;;.~::~::~od:;:~!~;;:i~~:;g~~~~_a~:~-;~;;~;~~
entre a garotinha e seu santo ficaram ainda mais estreitos; para Bárbara,
é sua Iansã que salvou urna vez mais sua vida. Na primeira vez, quando \ /
tinha dois anos, um outro problema de saúde a levava a "fazer" o santo. \ ~ilombo queixava-se de urna terrível dor nas costas; no fim do d1a, o achado!
Esse encontro do tnédíco com o caboclo parece banalizado dado o respeito Ele declarava aos filhos de santo presentes na Casa: "Mas é isso, comi aba-
mútuo do papel e da função terapêutica de cada um. caxi!" Todos pareciam compreender, menos eu; ele me explica: "Meu santo
Essas irrupções do transe no cotidiano colocam com frequência em não gosta de abacaxi, abacaxi é a quizila dele!".
cena uma outra personagem. O santo cede lugar a seu tnensageiro, o erê, -0-.JLtmJiL<;.~.P!Jlr.ª opera-se igualmente de acordo com modalidades di-
que poderá, com a ajuda da fala, desvendar as razões de sua vinda. Isso é ferentes e por manifestaçõ~~c!"-.!!l.~QOJ.i)l!Cnsidade~.<:.~g'M'Jª.d_'?_tra!'~~./1
muito frequente durante o período da feitura, quando a pessoa ainda usa Mesmo sem "virar" e em mmnentos muito diferentes, a pessoa RQ.de re-
o quelê, o colar que a liga constantemente a seu santo. No decorrer desse ~E_~ece~_!i_p~~~~~_2~"""~~-~~-~--.~~I2!Q,~um3..~.~!1~S~9t.-ll~udanç~cie
período, a pessoa deve respeitar uma série considerável de interditos \não atitude, um modo de agir. Fala-se então de presença, de irradiação, de
~-----·~·-'-•w•-"-···-·-
se sentar em uma cadeira, não se olhar no espelho, não comer certas coisas aproxilnação do santo ... Essas sensações podem ser assimiladas àquelas
etc.). A ruptura de uma dessas regras pode desencadear o transe. A falha experimentadas no início do transe, como se dá para Marlene:
é então denunciada pelo erê. Mas se os interditos (quizilas) estabelecidos
No meu caso, com a Oxum, quando eu sinto que ela está perto, sei lá, eu sinto
durante o período do uso do quelê são em seguida abolidos, alguns, mais uma vontade de chorar, sem mais nem menos, sem ter motivo, sem estar magoa-
gerais, subsistem. Suas transgressões serão então assinaladas pelas denún~ da, assim, vontade de chorar. Às vezes eu até me escondo para chorar, porque eu
das do erê. O exemplo de Zoca é um dos 1nais frequentes, as drogas sendo falo pra mim mesma: "se os outros me verem chorando vão pensar que eu estou
com algum problema"; mas não, no meu caso, eu sinto a presença dela assim: na
consideradas cmno uma quizila para todos os santos:
vontade de chorar.
Eu ~~~E~~~t!~ . ~·ünha J2!i!XB1.\?Q!!!.!![1S amjgQ.s, e, de repente,~~nti q~~.Q~p
estava me catando. Aí, eu sai correndo pela rua, igual uma louca. Quando eu Por essas irrad_~p~~~~~~~~- ~g~<;l:J!P.:~!?:~.~ .!:1.~-ª· r~~~ . 4~- ~_fj.l1_Í~-~ª·~~-~~_ge
cl;"~guei ;;-~~;;,-;bri a porta e Ogum me catou. Minha mãe até tomou um susto. o adepto e seu. santo. Por exemplo, a partír de um traço característico, a
Ele me catou porque eu estava com umas amizades que se envolviam com tóxico. r;:;;-xi;:;,ida"d;do s~~~o pode transformar de certo modo a própria fisiono-
Para o santo isso é uma quizila, maconha, essas coisas, e meus amigos estavavam mia da pessoa. Para Rosa de Ogum, esse traço é a masculinidade: "Eu sei
O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 253

que Ogum está me irradiando quando eu não me sinto nem mn pouco Quando a intensidade da irradiação aumenta, ela pode por vezes dar
feminina, eu olho no espelho e vejo que fico .com fisionomia de homem". lugar a um transe, como conta Zoca:
Essas afinidades podem igualmente ser sublinhadas por certas atitudes e
Ogum me irradiou uma vez quando eu estava brigando com ,-uma pessoa. Essa
certos comportamentos, como explica Lana:
pessoa veio me falando uma série de coisas, isso me deixou com U!Pa raiva, foi
Eu sei que Ossanha é o dono das folhas, que ele tem o mistério de todas as folhas, aí que ... Eu fiquei cega na hora, foi' aí que eu peguei o facão e fui p!~ cima dessa
de todas as ervas. Eu sinto que eu tenho muito a ver com ele porque eu não sou de pessoa. AMara, que estava perto, viu que eu estava fora do meu estado normal, que
ficar contando meus segredos para as pessoas. Eu sinto a presença do meu santo eu ia matar essa pessoa, então, ela gritou : "ogunhê!" Foi aí que Ogum me catou
assim: quando ele está próximo de mim, eu tenho uma vontade de ficar sozinha, eu de vez. Então, chamaram o erê, e o Ferreirinho [o erê] falou para Mara que Ogum
tenho vontade de solidão, porque Ossanha é solitário, ele fica nas matas sozinho. estava me irradiando para eu matar essa pessoa.

·Contrariamente a um processo rígido de identificação, essa rede de Articuladas às modulações das sensações corporais, as imagens oní-
afinidades tece-se continuamente. Na história deCida, que foi feita inicial- ricas desempenham um papel ativo na trama da rede dessas afinidades e
mente para Ogum e alg~ns anos tnais tarde para Oiá, é possível apreciar a na construção das personagens. Isso se produz desde a "feitura", quando o
dinâmica dessa trama em que os traços de virilidade e de corage1n do pri- pai de santo busca nos sonhos dos iaôs os sinais da aprovação do santo, as
meiro santo apagaram-se cedendo lugar à feminilidade enérgica do segundo: indicações que ajudarão a definir seu nome \omoruncó), aquele do erê etc.
Depois da "feitura", aparecendo nos sonhos ou nas visões oníricas do
Veja o que acontece: com Ogum, eu era uma pessoa que parecia um homem, eu
sentia que Ogum me irradiava quando eu ficava arrogante. Eu não tinha medo de adepto, essas personagens entram na sua história pessoal e cotidiana, pre-
homem, medo de enfrentar um homem. Agora, como filha de Oiá, eu sou uma vendo o futuro, indicando-lhe soluções para seus problemas, advertindo-o
pessoa completamente diferente, quando Oiá está me irradiando, eu me sinto sobre um perigo etc. Ainda uma vez, é em torno de alguns traços que pou-
muito mulher, eu sinto vontade de ir à luta, eu sinto uma disposição incrível, Oiá co a pouco se elabora a construção da personagem do santo, como mostra
é uma mulher guerreira.
Zoca ao estabelecer uma relação entre as percepções durante o transe e
A rede de afinidades entre o santo e o adepto explica por vezes para esse os traços característicos de seu santo, percebidos durante uma aparição:
último os sucessos e as conquistas na vida cotidiana:
No corpo, ele praticamente toma conta de tudo. Então dá para sentir totalmente
Eu acho que eu tenho tudo a v~L<22!.!!}~::-~R~J~::~5!~~ho .5L'::.3:'! a presença dele: ele no meu corpo, porque eu me sinto enorme, eu me sinto um
~~~!~J2!2P!.~~~~~~~ã.
1
Eu acredito mesmo, eu acho que são nas coisas da vida da gente homem, minhas mãos crescem. Aqui em mim, principalmente nessa parte aqui,
ique a gente sente a irradiação dela, nas coisas que a gente conquista e faz. Quando nos ombros, parece que incha, eu me sinto um homão, desses bem fortes mesmo.
a gente sente que ela está distante, não sente a irradiação. Tudo que eu consigo de Porque Ogum é um ferreiro, um guerreiro, o meu Ogum é um negão bem bonito,
material, é lansã. Eu acredito que Iansã até hoje não me virou as costas, acredíto eu já vi ele, ele é um negão bem bonito, cheio dessas pulseiras escravas de ferro
que ela está de bem comigo, ela está sempre do meu lado (Mara, filha de santo). na perna. Eu ja vi o meu Ogum, não dormindo, eu estava acordada. Eu, deitada
na cama, ele entrou, aquele homão, um negão bem bonito. Ele começou a fazer
Mas é igualmente possível detectar nessa rede de afinidades a origem um gesto para mim de aláfia [aprovação], eu fiquei meio assustada: porque que ele
dos problemas encontrados: estava me dando aláfia? Depois de um tempo, eu entendi, foi quando o Jéferson,
meu marido, arrumou serviço. Nós tínhamos dado um agrado [oferenda] para ele,
Se o dia corre bem para mim, se eu tenho clientes, se dá para viver com a minha para Ogum, pedindo para ele encontrar esse serviço; daí eu entendi que ele veio
família, se dá para manter a família, é porque o orixá está contente comigo, ele está me mostrar que estava alafiando [aprovando] nosso pedido.
próximo de mim. Se a coisa aperta muito além da realidade, é porque tem alguma
coisa, ele está enfezado, tenho que acalmá-lo (Manuel de Odé, pai de santo). No relato de Sílvio, a gula de Oxóssi é evidenciada como traço comum,
traço de união entre ele e seu santo:
254 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO A POSSESSÃO: UMA ÍNTIMA ALIANÇA 255

Meu Oxóssi é tudo na minha vida, ele é um encantado que eu já vi através de Com o santo, eu sinto que meu corpo parte assim: eu viajo num túnel, eu vou dor-
sonhos. É um caboclo 7, um mestiço, um moço moreno, do olhão grande, enorme, mindo devagarzinho. Não é aquele túnel escuro, é aquele lugar que foi preparado
alto, mas meio preguiçoso. Ele gosta ·muito de' caçar, se sentar e comer. Ele caça pra gente ir dormindo devagar. Quando meu Oxóssi me pega, ou Oxum, eles vão
bastante, mas come muito mais. Quando eu estou desesperado, eu sonho sempre embora e me deixam muito bem. Eles me deixam com o corpo ótimo, me deixam
com ele me dando uma solução, mas sempre comendo; eu acho que é por isso que mais novo, mais jovem, me deixam com uma força pra caritar~,"pra dançar. Agora,
eu sou guloso, que eu gosto tanto de comer, gosto de comer coisas boas, né? Eu já meu caboclo não. Ele já me deixa cansado, me deixa velho, me 'dt:ixa dois três
gosto de comer carne, tipo Oxóssi, eu gosto de comer com bastante fartura. dias assim, com muito sono, com muito peso no corpo. Antes de virar no caboclo,
vai dando uma tremedeira na carne, minha carne vai repuxando e meus ombros
Mostrei até aqui a trama dessa rede, operada na construção da persona- vão chacoalhando, meu corpo todo vai chacoalhando. É uma coisa que eu não
gem do santo, trama que tem como ponto de ancoragem a aliança selada consigo explicar, não parece que eu durmo, parece que eu desmaio. Quando eu
entre a pessoa e o dono de seu ori (cabeça). Outras instâncias espirituais volto do caboclo, Seu Gentil, eu sinto o corpo ruim, parece que eu levei uma surra.
presentes na vida do adepto tornam complexa ainda essa trama. Essa rede Às vezes, parece que eu andei bastante a pé. Eu não me sinto muito bem não, eu
estou com a minha família, mas eu me sinto um pouco só, como os índios. Antes
sutil de acordes e de ritmos é igualmente tramada entre a pessoa e seu
de virar no exu, Seu Tranca-rua, é a mesma coisa do caboclo, agora Seu Tranca-rua,
segundo santo, o ajudante do dono da cabeça lori). Menos intensa antes da quando ele vai embora, eu tenho vontade de ir pra rua, passear, beber, dançar. Ele
obrigação de sete anos de "feitura", sua presença torna-se mais explícita me deixa meio maloqueiro, depravado, eu tenho vontade de sair quando ele vai
em seguida, quando o adepto é passivei de "virar" nesse segundo santo. O embora. Sete-saias, que é a pombagira [exu feminino], é a mesma coisa: eu quero
acabar logo o que eu estou fazendo pra sair pra rua, pra ver gente, pra conversar,
movimento de dupla captura opera-se quando a pessoa "vira" no seu erê,
pra beber. Ai eu tenho vontade de beber batida, St Rémy, Martini, nada de cerveja,
assim como quando ela ('vira" no seu caboclo e no seu exu. Ao tecer essa nada de vinho, nada de cachaça, é isso que eu sinto: cada espírito me deixa mais
rede de afinidades entre a pessoa e essas diferentes instâncias espirituais, doido da maneira dele.
constrói-se igualmente suas personagens. Pode-se tornar cmnplexa ao
infinito essa rede a cada vez que uma nova instância espiritual ali se ins~
creve, e encontra-se aqui precisamente a construção da pessoa heterogênea
e múltipla da qual falei mais acima. Esses movimentos de dupla captura
traçam histórias, não uma, aquela de um mito fadado à repetição, mas
histórias inscritas no acontecimento da performance, ancoradas nos dife-
rentes contextos da vida cotidiana dos adeptos. É por isso que, retomando
a metáfora do teatro, só é possível considerar a possessão como um teatro
do acontecimento.
Para concluir, eu gostaria de citar aqui o relato das experiências de
transe vivenciadas por Silvio de Oxóssi. Este "vira" no seu santo dono de
sua cabeça IOxóssi), no seu ajudante IOxum), num caboclo (Seu Gentil) e
nos dois exus (Seu Tranca-rua e Sete-saias). Talvez assim se possa entre-
ver como a fala do corpo se torna o enunciado dessa trama complexa, da
multiplicidade e da heterogeneidade da pessoa:

7 O termo caboclo é aqui empregado por Silvio no sentido comum de mestiço.


!

v.
feituras e performance:
potência criadora no seio dos
cultos de possessão
A probletnática das relações estabelecidas entre religião e
magia, sagrado e profano, individual e coletivo, África e Bra~
sil etc. -linha que atravessa este texto- possibilita percor~
rer novas vias para abordar certas questões que balizam os
estudos consagrados aos cultos afro-brasileiros. Essas oposi-
ções binárias, que servem de base para a cartografia desses
cultos a partir da qual o candomblé foi definido no contexto
da cidade de São Paulo, regem a fabricação das tradições re-
ligiosas. Elas são reforçadas por meio das relações travadas
entre os adeptos e os pesquisadores quando a "pureza" e a
autenticidade proclamadas pelos primeiros recebem o aval
científico dos segundos. Esses laços são dinamizados quando
o movünento de reafricanização, empreendido por certos
chefes de culto, torna~se, no discurso acadênüco, a marca de
distinção do "candomblé paulista".
Desatar esses laços torna-se, pois, necessário para o desen~
volvimento de uma problemática que se apoia no rompimen·
to da cadeia dessas oposições binárias. Para tanto, a postura
metodológica e o ponto de vista a serem adotados não podem
mais se limitar a um posicionamento de "boa distância" a fim
de manter certa alteridade. Muito pelo contrário, o desafio
aqui lançado é de permanecer ao mesmo tempo próximo e
diferente. Forjada na diferença (de olhar e de ponto de vista)
260 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO FEITURAS E PERFORMANCE 26!

entre os adeptos e o pesquisador, essa alteridade não pode se tornar efetiva Essa ideia de origem pressupõe uma distinção entre, de um lado, a
senão quando a diversidade das experiências dos próprios atores sociais for "coisa primeira" ou o modelo original e, de outro lado, sua representação
mantida. Dito de outro modo, para que o papel de ator social seja realmente ou suas cópias. Ela igualmente estabelece uma distinção entre a verda-
colocado en1 evidência, é indispensável considerar as significações êmicas deira, a boa cópia desse modelo e a falsa, a pura e a imPi.ir"ã, a_ autêntica e
de seus comportamentos e de suas práticas, e, ao mesmo tempo, colocar a corrompida etc.
em perspectiva as diferenças e as singularidades de cada experiência. Em No contexto do candomblé em São Paulo, a fabricação das tradições é
uma visão mais geral, ao adotar tal procedimento metodológico, defendo geralmente considerada a partir da existência de um modelo: uma Áfri-
que sejam consideradas as representações êmicas, para além de uma única ca-modelo para onde vão alguns pais de santo ou um modelo de África
ortodoxia, as vozes e os olhares menores que forjam, na prática cotidiana veiculado nos estudos antropológicos, importado pelos "africanos" nos
do candomblé, esse componente fundamental da cultura brasileira. cursos de iorubá, nas apostilas etc. Considera-se, então, que os adeptos do
O trabalho de construção da identidade do grupo e de cada indivíduo candomblé ''bricolam" ou "fabrica1n" suas tradições a partir desse modelo;
opera-se no jogo de visibilidade da hierarquia religiosa e da competência de certo modo, eles se reafricanizariam ao recuperá-lo. Isso permitiria
ritual de cada um. A elucidação das tramas inextricáveis operadas entre afirmar que teriam reencontrado um sentido perdido ou esquecido: 1'ago-
magia e religião coloca em destaque a singularidade pela qual os adeptos ra, os adeptos sabem por que eles cantam tal canto, por que realizam tal
do candomblé inventam para si um lugar (macumbeiros, herdeiros mais gesto". Para alguns pesquisadores, evidentemente importa pouco saber
"puros" e "autênticos" da "tradição africana" etc.) e se tornam sujeitos de em que medida esse modelo é também construído. Mas, na duplicação
sua própria história. Ao abordar essas questões, convém recolocar a figura especular destas fabricações, subsiste, todavia, a ideia de um certo resíduo
do cliente- ator menor com frequência deixado de lado pelos estudos afro- de originalidade ou de autenticidade quando eles falam do mais ou do
brasileiros- na estrutura e no funcionamento das Casas de candomblé. Por menos "africanizado''. O menos "africanizado" é, sem dúvida, aquele que
ocasião das festas públicas, verdadeira vitrine da hierarquia, ou no momen- não produz senão uma cópia degradada, defeituosa, imperfeita, lacunar.
to dos serviços rituais, o cliente assume um papel pivô na mise en scêne Construído, fabricado ou inventado, o ·~modelo'' persiste.
desses serviços e na legitimação do poder do chefe de culto. Ao tomar esse Abolir essa ideia de orige1n significa considerar que esse "modelo" não
caminho, afasto-me de um postulado que tende a reduzir as modalidades e existe a priori. A fabricação das tradições opera-se pelo trabalho de com-
as práticas do candomblé às leis de um mercado religioso aberto, no qual o posição e de agendamento de elementos compósitos, vindos de universos
modelo de "candomblé africanizado" pareceria ser o mais eficaz, para pôr em culturais n1uito diversos. Dessa recomposição emerge uma pluralidade
evidência a heterogeneidade empírica desse mercado como expressão das de "Áfricas" e de "tradições". Uma ruptura fundamental opera-se. Nada
singularidades dos indivíduos e dos grupos aos quais eles pertencem. Desse nos autoriza a designar mna concepção ou uma prática mais próxima ou
ponto de vista, o discurso de "purificação", sustentado pelos partidários do mais afastada do "modelo", mais verdadeira ou mais autêntica. A dupla
"candomblé africanizado", não pode ser tomado em seu nível aparente de pesquisador-adepto, tal como foi historicamente constituída e perpetuada,
depuração, mas deve ser apreendido e analisado em seu trabalho de compo- vacila. Os partidários da ortodoxia perdem os fundamentos para ditar as
sição e agendamento dos elementos heterogéneos de uma "África" que não regras imutáveis que instituem e classificam os cultos afro-brasileiros.
é verdadeiramente nem modelo original nem matriz autêntica. Somente As análises aqui empreendidas, aliás, não fazem aparecer "uma imagem"
o abandono da ideia de uma origem permite apreender melhor a potência clara e fixa dos contornos do candomblé tal como é praticado no contexto
1
criadora que intervém nesses processos pelos quais essa ' África" é constan- da cidade de São Paulo. Em contrapartida, a perspectiva proposta privile-
temente fabricada como tradição. gia o aspecto processual, o "estar se fazendo" destas imagens que podem
262 O CANDOMBLÉ: IMAGENS EM MOVIMENTO FEITURAS E PERFORMANCE

ser entrevistas unicamente em sua pluralidade e em seu movimento. Isso a qual o candomblé apareceria como refúgio para urna população que aí
conduz finalmente a uma percepção de um sistema heterogêneo, apreen- encontraria uma "compensação" para sua posição subalterna de dominado
dido em seu aspecto acontecimental e perfonnativo, em que as "falhas", ou, ainda, para uma população ~~desencantada" que aí encontraria uma
as "lacunas" e as contradições aparecem, na realidade, como condições "compensação" psíquica qualquer. Se a hipótese do ~indomblé-refúgio
mesmas de seu funcionamento. pôde efetivamente ser verificada em certas épocas, convém pg'rmanecer
Uma ideia de origem está igualmente em obra na percepção corrente do vigilante diante de toda redução a essa única interpretação, no mínimo
fenômeno da possessão. Inicialmente, haveria o sagrado ou a coisa sagra- porque as relações de força e de dominação não são sempre as mesmas
da; em seguida, sua representação pelo mito; e, enfim, sua manifestação em todo tempo e em todos os níveis. Além disso, essa "compensação",
no ritual. Esta hierarquia serve de base para a concepção usual do orixá: que pressupõe uma deficiência, é de fato a expressão de uma impotência.
divindade africana que carrega características e traços ditados pelo mito, Defendo a superação dessa perspectiva. Colocar em evidência o aspecto
traços que seriam reproduzidos pelo adepto por ocasião do transe. Partindo processual e performativo das 1nanifestações e práticas culturais permite
da noção êmica de inic~ação, o orixá surge aqui de modo diferente, em sua apreender a emergência de uma potência criadora que age na construção
produção, como feitura: processo em que, ao mesmo tempo, ele, o orixá, e a da própria história dos atores sociais. Longe de ser considerada sob um
pessoa do adepto são moldados. Essa mútua fabricação ou feitura estabele- aspecto essencialista ou ontológico, como "força interior" que o adepto do
ce uma aliança entre o adepto e o orixá singularizado, seu santo. Invalidar candomblé adquiriria e que cresceria à tnedida de seu desenvolvimento na
essa referência a utna origem põe abaixo a dicotomia sagrado~profano e a prática ritual, essa potência criadora deve ser, evidentemente, tomada sob
desintegra. O mito, que dava um sentido aos gestos e à prática do transe, un1 aspecto material, sócio~ histórico, como motor da fabricação social e
não mais se apresenta aqui previamente, não mais aparece como modelo simbólica das relações humanas.
original repetido a cada ocorrência do transe. Essa hierarquia desmorona~
se então em benefício de uma íntima aliança. A possessão não mais pres~
supõe uma separação entre um sujeito, o santo, e seu objeto, a pessoa do
adepto. Essa dicotomia não é mais operante. Ela desagregou-se ao perder
a separação que a fundava. A possessão é então imediatamente colocada
sobre um único plano, aquele da imanência; ela vê-se inscrustada, intima~
mente entrelaçada, ao longo da história da pessoa. Sob seu aspecto perfor-
mativo, o transe de possessão é apreendido como uma dupla captura. Ele
reatualiza essa feitura mútua a cada vez que sobrevém. No momento do
transe, e na vida cotidiana, santo e adepto formam um bloco indissociável:
o santo de tal pessoa no transe, a pessoa de tal santo na vida cotidiana.
Assim ancorado nas histórias individuais e nas relações sociais entretidas
pelos adeptos, ele não corresponde mais nem à transcendência espiritual
(segundo uma imagem da filosofia ocidental cristã), nem à compensação
psíquica ejou social consideradas por certos autores.
A leitura do fenômeno religioso aqui proposta refuta, no fim das con-
tas, toda uma visão restrita da interação do político e do religioso segundo
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Estes filmes podem ser encomendados por e-mail opiparitimbert@hotmail.com
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