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ANTES DE LER
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“Se você encontrar erros de ortografia durante a leitura deste e-book, você
pode nos ajudar fazendo a revisão do mesmo e nos enviando.”
Precisamos de seu auxílio para esta obra. Boa leitura!
E-books Evangélicos
A Mensagem de
RUTE
David Atkinson
ABU EDITORA
LIVROS PARA GENTE QUE PENSA
A MENSAGEM DE RUTE
1a Edição -1991
Um típico rolo hebraico dos cinco livros de Moisés, chamados de Lei (Tora). Este
exemplar, com cabos modernos, esteve em uso numa sinagoga em Jerusalém durante um
período de 200 anos ou mais até ser aposentado em 1924 devido ao desgaste e
desbotamento da tinta. (Foto gentilmente cedida por D. J. Wiseman.)
O texto bíblico utilizado neste livro é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da
Sociedade Bíblica do Brasil, exceto quando outra versão é indicada. Comentários do
autor quanto às diferentes versões inglesas foram, sempre que possível, adaptados às
principais versões da Bíblia em português.
Fala Hoje constitui uma série de exposições, tanto do Antigo como do Novo
Testamento, que se caracterizam por um triplo objetivo: expor acuradamente o texto
bíblico, relacioná-lo com a vida contemporânea e proporcionar uma leitura agradável.
Esses livros não são, pois, "comentários", já que um comentário busca mais
elucidar o texto do que aplicá-lo, e tende a ser urna obra mais de referência do que
literária. Por outro lado, esta série também não apresenta aquele tipo de "sermões" que,
pretendendo ser contemporâneos e de leitura acessível, deixam de abordar a Escritura
com suficiente seriedade.
As pessoas que contribuíram nesta série unem-se na convicção de que Deus ainda
fala através do que já falou, e que nada é mais necessário para a vida, o crescimento e a
saúde das igrejas ou dos cristãos do que ouvir e atentar ao que o Espírito lhes diz através
da sua Palavra tão antiga e mesmo assim sempre atual.
J. A. Motyer
J. R. W. Stott
Editores da Série
ÍNDICE
I - As Lágrimas
1. Partindo (1:1-7)
2. Voltando para casa (1:8-22)
II - Asas de Refúgio
3. G raça e Gratidão (2:1-13)
4. Um lugar na família (2:14-23)
III - O Parente-Remidor
5. O levir e o god
6. Fé em ação no amor (3:1-18)
IV - A Redenção e a Alegria
7. Amor acima da lei (4:1-12)
8. Temos uma história (4:13-22)
Senhor seja contigo
Prefácio do Autor
Já se passaram alguns anos desde que eu tentei, pela primeira vez, apresentar
alguns sermões sobre o livro de Rute para uma congregação onde tive o privilégio de
servir como pastor. Num período de sofrimento pessoal em minha própria vida e na vida
de nossa família, de repente eu me vi pregando sobre Noemi e sobre como Deus ficou ao
lado dela. Descobri que o Deus de Noemi também estava ao nosso lado e que, mais do que
nunca, eu estava aprendendo a dar um significado muito mais rico a palavras tais como
"providência" e "graça".
Mais tarde, em um outro pastorado, alguns amigos também me incentivaram a
apresentar parte do livro de Rute em uma reunião semanal da igreja. Naquela ocasião,
a bondade demonstrada para conosco reforçou a minha convicção de que o cuidado de
Deus por nós é percebido e recebido, na maioria das vezes, através do cuidado que os
outros nos demonstram. Boaz é um bom exemplo de como o padrão do fiel amor de Deus
para com o seu povo deve ser o padrão do nosso relacionamento uns com os outros. Nós,
que vivemos deste lado da encarnação, do Calvário e da sepultura vazia, conseguimos
entender o significado da graça redentora e do amor fiel com muito mais riqueza de
detalhes do que o autor do livro de Rute jamais foi capaz de compreender.
Ao trabalhar, mais recentemente, sobre esse livro, o que mais tem me
impressionado é a profunda fé do autor e a maneira com que ele (ou ela) cria firmemente
que todas as coisas se encaixam dentro dos cuidados providenciais de um Deus cheio de
graça. Foi esta convicção que eu tive o privilégio de fortalecer um pouco mais em tempos
de dificuldade: que, em Cristo, Deus nos dá aquilo que precisamos para enfrentar as
incertezas. Isso, creio eu, faz parte do significado da fé.
Que Deus use esta exposição para ajudar outros a descobrir algo mais
doseucuidadoedasua graça, para que se sintam mais à vontade sob o "refúgio de suas
asas".
Principais Abreviaturas
David Atkinson
Introdução
Providência?
"É noite, está escuro e eu estou com medo." Assim diz o juiz ao padre no filme de
Bergman, "O Ritual", gritando para o desconhecido todo O medo, o silêncio e a solidão de
grande parte do nosso mundo desmoronado do século vinte. Em "O Sétimo Selo", outro
de seus filmes, um dos personagens, buscando, talvez, uma indicação para o lignificado de
algumas das questões e incertezas da vida e da morte, diz: "Transformamos em ídolo o
nosso medo e o chamamos de Deus".
A voz de Bergman, vinda da incerteza e do medo da vida vivida apenas dentro da
perspectiva desta ordem natural, ou, quando muito, de uma perspectiva dentro da qual a
questão "Onde estás, ó Deus?" parece nunca obter uma resposta, fala em nome de muitos
outros nos quais uma viva fé em Deus e na sua graciosa intervenção com este mundo já se
extinguiu. Seus olhos parecem perceber apenas o fluxo e o refluxo dos acontecimentos e
das experiências; suas mentes não conseguem discernir qualquer padrão ou significado;
eles perderam o contato (se é que chegaram a captá-lo algum dia) da mão do Deus
invisível que tudo governa, que tudo planeja e cujos propósitos dão significado à história,
tanto a nível mundial como individual.
Ao contrário dos personagens de Bergman, a fé na providência de Deus (nome
generalizado que os cristãos deram à atual atividade de Deus no mundo) está muito viva
nos personagens principais e no autor desconhecido do pequeno livro de Rute. A
história acontece "nos dias em que julgavam os juizes", dias em que, como veremos, a fé em
Deus estava ameaçada por muita coisa "sombria" e "temível". Mas, mesmo num contexto
em que a fé era desafiada, o autor insiste conosco, os seus leitores, para que tenhamos
certeza da alegria na garantia da providência de Deus.
Antes de examinar os detalhes do livro de Rute, vamos rever o que nós, os cristãos,
costumamos entender pelo termo "providência", e destacar algumas das dificuldades que
se opõem à fé nos dias de hoje. Retrocederemos, então, a um mundo totalmente diferente
do nosso, à Palestina do século XI ou XII a. C., "nos dias em que julgavam os juizes", e
descobriremos que, de certa forma, os desafios à fé na providência de Deus naquela
época não eram tão diferentes dos desafios de hoje.
O significado de "providência" é bem expresso pêlos cristãos de um período
anterior ao nosso:
Deus, o grande Criador de todas as coisas, realmente sustenta, dirige, predispõe e
governa todas as criaturas, ações e coisas, desde a maior até a menor, através de sua
sapientíssima e santíssima providência, de acordo com a sua previsão infalível e com o
livre e imutável conselho de sua própria vontade, para o louvor e a glória de sua sabedoria,
seu poder, sua justiça, sua bondade e sua misericórdia.1
Ou, atualizando um pouco a linguagem, os cristãos acreditavam que Deus não
apenas criou o mundo, de modo que nós, como criaturas suas, dependemos dele para a nossa
existência, mas também sustenta e governa o seu mundo, de forma que dependemos
constantemente dele para recebermos "vida, respiração e tudo o mais".2
Neste ponto talvez convenha estabelecer uma diferença entre a atividade criadora e
sustentadora de Deus, por um lado, e, por outro, a sua providência geral e especial (com as
quais lidaremos de forma especial no livro de Rute). Alguns autores usam a palavra
"providência" como sinónimo da atividade de Deus ao orientar e governar a ordem das
coisas que criou.3 Neste sentido, como observa Michael Langford, a providência já é parte
integrante da ideia cristã da criação. "Dentro da própria noção do universo criado já
temos a ideia de uma ordem que tem suas próprias leis, sua própria causalidade e sua
própria independência relativa."4 Semelhantemente, os cristãos falam da atividade
sustentadora de Deus como sendo a mantenedora dessa espécie de ordem, dentro da qual
acontecem as mudanças e o progresso na criação. Assim, num sentido mais amplo,
"providência" inclui também a atividade mantenedora de Deus. Contudo, é geralmente
num sentido pouco mais restrito que se usa o termo "providência", ou seja, para descrever
"o governo ou a direção da natureza, do homem e da história". 5 É neste sentido que
usaremos o termo quando estivermos tratando do livro de Rute.
Muitos autores cristãos aconselham estabelecer uma diferença entre providência
geral e providência especial. A primeira "refere-se ao governo do universo através de leis
universais que controlam ou influenciam o mundo sem a necessidade de atos específicos
ou ad hoc da vontade divina".6 A providência especial, por sua vez, trata de
acontecimentos específicos que são entendidos pelo homem de fé como evidências
particulares da atividade de Deus. "Providência", assim, indica um modo especial de
interpretar os acontecimentos e a natureza, o homem e a história. A bem da clareza,
convém distinguirmos entre "providência" e "milagre", que se refere especificamente a
uma exceção irrepetível de uma lei da natureza que, em circunstâncias normais, seria
demonstrável. "Providência", pelo contrário, é "o governo ou a direção da natureza, do
homem e da história; não é a manipulação destas ordens com a introdução de fatores
causais que levariam à mistificação dos cientistas".7
A fé na providência reconhece a dependência criada do mundo e também a sua
eventualidade, isto é, Deus poderia ter criado o mundo de maneira diferente. A "providência"
reconhece tanto a soberania de Deus no mundo quanto a liberdade do homem de viver
de maneira responsável dentro dos limites estabelecidos por Deus. "Para os cristãos, o
mundo e a história não são essencialmente significativos por si mesmos, mas têm a ver com
Deus e os seus propósitos".8 Toda interação de Deus com o seu mundo (seja escolhendo
Abraão para ser o pai de uma nação ou estabelecendo sua aliança no Sinai; sejam os
acontecimentos do nascimento, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo ou o
estabelecimento da igreja cristã e o derramamento do Espírito Santo, ou seja a
experiência contemporânea dos cristãos), tanto a nível global como pessoal, está alinhada
com o seu propósito geral para a criação, "de compartilhar sua vida, amor e glória com
uma outra realidade sobre a qual ele seria o Senhor".9 Esse Deus, assim crêem os
cristãos, revelado em Cristo e comprovado nas Escrituras, existe; ele se importa, ele
governa, ele provê.
Em tal visão de Deus há extremos que devem ser evitados. O deísmo, por exemplo,
separa Deus totalmente do seu mundo: ele o criou, afirma, e agora o mundo tem que
seguir o seu próprio curso. O panteísmo confunde Deus com tudo o que ele criou. A fé
cristã, contrastando com estes dois extremos, entende que Deus é um ser isolado e
maior que a sua criação, mas está intimamente envolvido com ela em cada
acontecimento. De igual forma, ao contrário da noção epicurista de que o mundo não
passa de um acidente do acaso (um ponto de vista ainda largamente defendido),10 e
também da filosofia estóica de que nos encontramos nas mãos de um destino cego, os
cristãos crêem que o Deus Criador, vivo, pessoal, racional, santo e amoroso, sustenta e
governa o seu mundo.
Tal fé na providência de Deus provê um firme ponto de apoio a partir do qual
podemos procurar entender o mundo. Para nós, as glórias e as tragédias dos
acontecimentos nacionais e globais ou as alegrias e sofrimentos da vida familiar quotidiana
não têm significado apenas dentro da história humana ou da biografia pessoal. Seu
verdadeiro significado faz parte do propósito de um Deus que se revelou como amor e
santidade, como pessoal e infinito, como Criador e Redentor, como sustentador e
governador.
Desta forma as alegrias humanas são enriquecidas, e as incertezas da vida são
colocadas no contexto de uma fé com a qual se pode enfrentá-las. A "providência" diz
que Deus está conosco, que Deus nos ama, que Deus governa e que Deus provê. É a fé
nesse Deus que orienta cada capítulo do livro de Rute.
Desafios à fé
Uma fé como a que descrevemos sofre a ameaça de muitas pressões que isolam,
confundem e dão medo, na vida deste nosso século. Ou, quem sabe, deveríamos dizer que
a doutrina da providência tem sido negligenciada. Comparemos nossas atuais atitudes
com o que J. H. Newman disse há cem anos atrás: "O que as Escrituras exemplificam acima
de tudo, desde a primeira até a última página, é a providência de Deus, e esta é quase a
única doutrina sustentada de comum acordo pela maioria" das pessoas religiosas.11
O nosso século, além de ter passado por guerras mundiais de imensa destruição e
de experimentar crescentes pressões para que aguarde e se prepare para mais uma,
também tem sido angustiado por enormes questões apocalípticas que ameaçam alterar
toda a noção do que significa ser humano. O sacrifício de crianças entre os cananitas
parece nada em comparação com a matança, em escala sem precedentes, de crianças que
nem chegam a nascer, nos dias de hoje. Além disso, embora se reconheçam as inúmeras
pressões sociais que há por trás dos muitos pedidos de interrupção de gravidez, o aborto
geralmente é discutido apenas em termos de "direitos" e "benefícios" dos que já nasceram.
Isto tem desencadeado um profundo efeito em nossa consciência social com referência ao
que tradicionalmente se tem ensinado como "santidade" da vida. Muitos argumentos a
favor do aborto levam logicamente à justificação do infanticídio. Cresce cada vez mais a
pressão para que se aplique aos idosos a chamada "morte com dignidade" e para que se
negue a vida a algumas crianças que nascem com defeitos. Centenas de milhares de pessoas
do nosso mundo morrem de fome devido à negligência da conhecida fartura do
Ocidente, e porque os chamados "poderes" preferem usar os menos privilegiados como
joguetes políticos em vez de se disporem a resolver os problemas através de uma justa
distribuição da rica fartura da terra de Deus.
Tudo isto e muito mais traz à tona a questão que os cristãos costumam proclamar:
que cada pessoa é preciosa porque foi criada "à imagem de Deus". A disponibilidade da
tecnologia para o controle da natalidade (que, como qualquer outro benefício é passível de
abusos), aliada aos meios de comunicação e outras pressões que apoiam a chamada
"permissividade", contribui de maneira crescente para uma total separação entre os
aspectos unitivos e procriativos da relação sexual, e entre a relação sexual e o casamento
heterosexual, desafiando assim o pensamento tradicional cristão quanto ao significado da
masculinidade e da feminilidade.12 A crescente promessa do que podemos fazer na pesquisa
científica e biomédica, sem a ideia correspondente do que temos o direito de fazer;13 o poder de
que dispõem os monopólios multinacionais para tragar os interesses e os direitos dos
indivíduos; tudo isto, a seu próprio modo, apresenta a questão: "O que é o ser humano?" E
o flagelo do racismo ameaça com violência e guerra em muitos lugares.
G. C. Berkouwer escreveu:
O século vinte, embora produzindo muita coisa boa, não permanecerá para sempre como o
século dos campos de concentração e dos pogroms, da guerra e do ódio, do ataque contra a
dignidade da própria humanidade? E não devemos suspender a respiração diante do que está por
vir?14
Para muitos o ateísmo parece ser a única conclusão lógica e per-missível diante da
evidência de nosso tempo.
Concluindo esta discussão, podemos isolar três fatores específicos que têm
desafiado a fé na providência de Deus: outros deuses, uma cultura dividida e o problema
do mal.
Outros deuses
Não se trata apenas de que "o homem moderno não crê na realidade de Deus", mas,
expondo de maneira mais positiva, que "um ateísmo cultural cada vez maior" constitui de
fato a fé deste século.16 Esta fé, o secularismo, reflete uma ideia do homem como senhor
total do seu próprio destino, das coisas materiais como a fonte primeira dos valores, e da
ordem natural como abrangendo toda a realidade. O homem como centro dos
relacionamentos humanos, o materialismo nos valores humanos e a crença de que este
mundo é o fim de todas as coisas — eis aí as características da fé do homem moderno.
Portanto, "cornamos e bebamos, que amanhã morreremos". É verdade que, ao lado desta
fé, há sempre a expressão do desejo de conhecer o significado da "noite", das trevas e do
medo: "Morremos apenas uma vez e por tão longo tempo." Mas o que realmente domina o
nosso mundo é "o ateísmo cultural cada vez maior", e estes outros deuses (humanismo,
materialismo, naturalismo) representam um forte desafio à ideia cristã da providência de
Deus.
O problema do mal
Sem dúvida, a maior ameaça à fé na providência de Deus é a realidade do mal em
nosso mundo. Não apenas os campos de concentração e os pogroms, mas também a dor do
luto, as manchetes sobre mais uma seca ou um furacão devastador, a cruel desigualdade
de oportunidades e prosperidade em diferentes partes do mundo, o câncer do nosso
vizinho, tudo isto levanta a pergunta: "Onde está Deus?" Como, num mundo onde tanto
mal parece não ter sentido, podemos continuar acreditando na manutenção e no governo
providencial de Deus? Para o crente cristão, parte do significado da fé é que é o dom de
Deus que nos capacita a enfrentar as incertezas e a aparente falta de significado (que o
Pregador chamou de "vaidade")27 de grande parte da história deste mundo desmoronado.
Mas imaginar que essa fé nunca se sente ameaçada pela maldade do homem para com o
homem, ou pêlos azares da "natureza", é superproteção bem-avenrurada ou estupidez
obstinada.
Há, deste lado do céu, muitas coisas cujo significado encontra-se escondido no
mistério de Deus. Há muitas experiências que muitos de nós teríamos preferido não
atravessar. Embora grande parte do mal possa ser entendida em termos do abandono
pecaminoso, por parte do homem, dos padrões de vida que, como ensina a fé cristã,
personificam a vontade de Deus, há muita coisa que não tem explicação ou causa
humana. A nossa fé na providência de Deus deve ser suficientemente grande para enfrentar
estas incertezas, como também para lidar com os sentimentos dolorosos e às vezes amargos
que elas j;oram. Conforme veremos, os personagens do livro de Rute também tiveram de
enfrentar incertezas. Descobriremos também como, para eles, a fé em Deus foi um dom
que ajudou a enfrentar tudo.
Outros deuses
Como os povos de hoje, os cananeus da antiguidade estavam absorvidos pela busca
do segredo da prosperidade. Como fortalecer a economia? Como garantir empregos
para todos? Como prover um salário adequado às necessidades e à manutenção dos
padrões de vida? Considerando que sua economia era predominantemente agrícola, sua
busca da prosperidade focalizava a necessidade de uma terra fértil que desse colheitas
abundantes e rebanhos férteis, e de um casamento fértil que produzisse, no devido tempo,
trabalhadores e herdeiros para a fazenda. A religião era, segundo pensavam, a chave da
prosperidade. Apenas Deus podia criar a fertilidade, e particularmente o deus Baal, que
significa "senhor", ou "dono". Baal era o nome de sua divindade masculina. Na crença
cananita, ele era o dono da terra e controlava a sua fertilidade. Sua companheira feminina
era Astarte (pi. Astarote).30 Baal e Astarte eram entendidos como divindades cósmicas que
habitavam nos céus e também eram associados a localidades particulares. O ciclo regular
da natureza e a fertilidade do solo, a nova vida da primavera seguindo-se à esterilidade do
inverno, eram devidos às relações sexuais entre Baal e sua companheira.
O homem não era um simples espectador deste casamento dos deuses. Era
extremamente importante que os deuses não se esquecessem disso, e a técnica
empregada para lembrá-los constante-mente das necessidades da terra era a "mágica
imitativa". As pessoas realizavam, na terra, atos equivalentes àqueles que desejavam que
os deuses realizassem nos céus. Por este motivo, os santuários de Baal, geralmente
localizados nos altos desnudos das montanhas para terem mais chances de serem vistos
pêlos deuses, eram cenários de ritos sexuais orgíacos. Homens e mulheres se alistavam no
serviço do deus e copulavam livremente com os adoradores femininos e masculinos.
Tal religião parecia atraente a Israel, que acabara de se envolver com um estilo de
vida agrícola. Como Anderson observa,31 não nos surpreende que os israelitas, não
acostumados com a agricultura, se sentissem tentados a buscar os deuses da terra.
Naturalmente, na mente israelita, a fertilidade da terra e a prosperidade entre o povo
faziam parte das bênçãos prometidas e associadas à aliança que Javé fizera com eles e suas
famílias. O desfrute dessas bênçãos da fertilidade e da prosperidade estava ligado às
obrigações da aliança que o povo tinha com Javé, de viver em obediência responsiva à
vontade deste. Tal princípio, engastado talvez de maneira mais clara na bênção e nas
maldições do capítulo 28 de Deuteronômio, é o padrão da aliança desde os primeiros
dias: "Eu serei vosso Deus; vós sereis o meu povo."32 "Se ouvires a voz do Senhor teu Deus,
virão sobre ti e te alcançarão todas estas bênçãos."33 Mas a fascinação dos outros deuses
era forte.
Hoje, a atração não se encontra na mágica imitativa para sacudir a memória de Baal.
É, antes, o engano da crença vã de que "as leis económicas", "as políticas monetárias", "o
comércio livre", "a nacionalização", ou seja lá o que for, vão por si mesmos gerar
prosperidade, se nos submetermos a eles e os adorarmos. Com muita facilidade nos
esquecemos de que a santidade obediente em atender o que sabemos ser a vontade de
Deus será sempre o fator principal da força, da harmonia e da prosperidade social.
Conforme comentou Len Murray, na reedição do livro de William Temple, Christianüy and
Social Order (Cristianismo e Ordem Social): "É um constante lembrete da verdade das
palavras de R. A. Butler, que 'se não for tocada pela moralidade e pelo idealismo, a
economia é uma atividade árida e a política é inútil'".34 Se em lugar de "moralidade"
colocarmos "santidade" e, em vez de "idealismo", "interesses espirituais", a questão fica
ainda mais incisiva. Os problemas fundamentais que jazem no âmago da vida nacional
não são económicos ou políticos, mas espirituais: ou seja, a falha em perceber que a
adoração da economia ou da teoria política é uma idolatria que nos cega em relação ao Deus
vivo. Assim como nos dias em que os juizes julgavam, também hoje a fé na providência de
Deus não pode andar confortavelmente de mãos dadas com a fascinação pêlos outros
deuses.
Rowley observa:
A vida benéfica ... conforme nos é apresentada no Antigo Testamento, é a vida que é
vivida em harmonia com a vontade de Deus e que se expressa na vida diária em reflexo do
caráter divino traduzido em termos de experiência humana, que extrai a sua inspiração e a sua
força da comunhão com Deus na confraternização do seu povo e na experiência particular, e
que sabe como adorar e louvá-lo em público e também na solidão do próprio coração.37
Contudo, nos dias em que os juizes julgavam, as pessoas que tinham fé ficavam
tolhidas na tensão entre a vontade de Javé, que eles sabiam ter relevância para cada área da
vida, e a ordem social vigente, com o seu ciclo de padrões da vida agrícola. O povo estava
rodeado pela religião de Baal. Parece que esta tensão às vezes se comprovava pela
tentação de deixar Javé mais à vontade, deixando-o agir em apenas um cantinho da vida
e sendo, nos demais aspectos, abertos aos métodos mais naturalistas do culto a Baal. Esta
tendência de manter o culto a Javé e a Baal lado a lado é expresso por B. W. Anderson desta
forma: "Para Javé eles olhavam nos períodos de crise militar; para Baal, voltavam-se para
ter sucesso na agricultura."38
Como é fácil relegar Deus a apenas determinadas áreas de nossos interesses! Este,
porém, é o primeiro passo decisivo para a divisão cultural, que já mencionamos antes, na
qual o verdadeiro significado de Deus e da vida humana se perde na fuga rumo ao
subjetivismo e ao pietismo.
Existe, realmente, uma verdadeira "separação" para o povo de Deus, mas não em
termos de divisão entre o "sagrado" e o "secular", sendo que os interesses de Deus se
encaixam no primeiro. Isso, infelizmente, foi exemplificado pela observação do Lorde
Melbourne, Primeiro Ministro da Rainha Vitória, depois de ouvir um pregador
evangélico, ao dizer que se a religião interfere com os negócios particulares da vida, isso
já é demais!39 Não, para o povo de Deus a verdadeira separação é a sua característica de
povo chamado para formar a família da aliança de Deus, perceptível em suas reações
corporativa e individual, de santidade obediente a Deus e de serviço prestado ao
próximo, expresso em cada área da vida e dos relacionamentos humanos.
A fé na providência de Deus e no seu ativo envolvimento em toda a vida não dura
muito tempo quando Deus é mantido "guardado" em um canto, enquanto esperamos
para ver o que Baal tem a oferecer.
O problema do mal
Não devemos imaginar que o período dos juizes foi totalmente sem fé! Se houvesse
tempo, o escritor de Hebreus teria desenvolvido mais a rápida citação que fez da fé de
Gideão, Baraque, Sansão e Jefté.40 Longe de serem homens perfeitos, é verdade, mas
homens que conheciam o seu Deus e que, à sua própria maneira, demonstraram a
realidade de uma fé viva. Eles trouxeram um pouco de liderança e orientação a um povo
confuso e ameaçado por novas circunstâncias. Mas isto foi convulsivo e passageiro, e não
houve estabilidade duradoura. Foi também um período de grande maldade. A apostasia
do povo provocou o castigo de Deus.41 Os homicídios e a guerra, os estupros e os saques
faziam parte da ordem do dia. A poli rica inimiga da devastação da terra42 acabou com a
economia agrícola.
A segunda parte do livro de Juizes43 descreve um quadro sinistro de inquietação civil
e de violência, de desintegração social, de imoralidade sexual, de agressões e de guerras.
As pessoas que tinham fé entendiam isto em termos do juízo de Javé por causa do
fracasso do povo em viver segundo a justiça de Javé. "Naqueles dias não havia rei em Israel:
cada um fazia o que achava mais reto."44
Mas como Deus podia permitir este mal? Onde ficavam agora as bênçãos da
aliança? Como podiam ter fé na providência de Deus? Será que ele ainda se preocupava
com cada aspecto da vida? Tais perguntas deveriam se esgotar facilmente na mente
daqueles cujo destino se resumia simplesmente em acatar o mal aparentemente sem fim.
A atração exercida pêlos outros deuses e a tentação de desligar os interesses de Javé
da vida quotidiana; o caos social, a miséria pessoal e a dura experiência do juízo divino: é
isto que caracteriza de maneira especial "os dias em que julgavam os juizes". A
abrangência do l;vro de Juizes é imensa (lutas nacionais e internacionais) e o ambiente é
sombrio e difícil para quem crê na providência de Deus.
O livro de Rute
É na escuridão dessas questões que reluz o livro de Rute.45 Embora tenha sido
escrito bem depois dos acontecimentos descritos,46 o autor coloca a história "nos dias em
que julgavam os juizes".47 É uma história de encanto e deleite. De acordo com A.
Weiser, Goethe a chamou de "a mais bela obra completa em escala reduzida, que nos foi
dada como um tratado ético e um idílio". Ele também cita o veredito de Rud. Alexander
Schroeder: "Nenhum poeta do mundo escreveu um conto mais belo."48
O livro de Rute é uma história sobre gente muito comum que enfrenta
acontecimentos muito comuns. Aqui vemos Noemi, que passou por muitas
dificuldades, fome e perda de entes queridos, mas que finalmente encontrou paz e
segurança. Encontramos Rute, a moça estrangeira de Moabe, que se apegou à sua
sogra Noemi e ao Deus desta, recebendo a sua bênção. E encontramos Boaz, o parente
afim de Noemi, que foi bondoso para com Rute e Noemi e que, casando-se com Rute,
entrou no propósito de Deus para a história: história tão significativa que o grande rei
Davi49 e, portanto, o próprio Senhor Jesus Cristo,50 encontram-se entre os seus
descendentes.
Das muitas genealogias apresentadas no Antigo Testamento, sabemos que até o
período de Cristo os crentes em Javé preservavam a árvore genealógica através de
séculos de sua história. É sobre essa tradição que o nosso autor se apoia. Conforme
comentário de G. A. F. Knight, "não temos motivos para duvidar que houve uma Noemi
que realmente foi a Moabe com o marido e os dois filhos."51 Estamos, segundo consta,
lidando com uma história real. Como todo historiador, o autor do livro de Rute
selecionou, dentre todos os acontecimentos, aqueles que melhor serviam aos seus
propósitos de escritor.
Quais eram exatamente estes propósitos tem constituído um assunto para
discussão entre especialistas do Antigo Testamento. Há muitos que pensam que o
livro foi escrito depois do exílio, como reação aos aparentemente rígidos pontos de vista
de Esdras e Neemias, que faziam o povo de Deus lembrar sua exclusividade; aqueles que
se casaram com estrangeiros foram chamados de volta à fé dos seus pais, na qual tais
casamentos mistos eram banidos.52 Alguns dos que tinham feito tais casamentos agora
tinham filhos. "Teria sido o clamor de algum desses filhos", pergunta Knight,53 "que
levou um escritor totalmente desconhecido (talvez até uma mulher) a escrever este
pequeno livreto que nós intitulamos de Livro de Rute?" Essa explicação é atraente, pois
Esdras parece ter estendido a proibição legal contra o casamento com os cananeus54
também ao casamento com moabitas, amonitas e egípcios. E Rute era moabita. Se o
grande rei Davi é descendente de um casamento misto com uma moabita, Esdras não
estaria sendo demasiadamente estrito anulando tais casamentos? Mas55 a proibição legal
da Tora contra o casamento misto com os cananeus era uma proteção contra a idolatria,
e a extensão da preocupação de Esdras para com outras nações idólatras era ade
quada, especialmente no novo ajuntamento dos israelitas exilados novamente como
nação. Afinal, os moabitas eram proibidos pela lei de entrar na congregação.56 Portanto,
dizem alguns, talvez o livro de Rute fosse um tratado contra essas disposições da Tora.
Mas tudo isso coloca a composição de Rute numa data muito tardia, com o que não
concordamos. E parece muito difícil discernir uma intenção tão polémica na história.
Rute realmente não parece ser um tratado político.
Outra sugestão é que o livro de Rute foi escrito muito antes do período de
Esdras, durante ou pouco depois da época do próprio rei I Davi. (Há uma tradição
rabínica que diz que o autor foi Samuel, mas dgora ninguém usaria tal argumento.)
Uma data assim tão precoce, talvez do tempo de Salomão, explicaria a conclusão, de
outra forma um tanto surpreendente, do livro com uma genealogia que leva ao
próprio rei Davi. Não há motivos textuais para considerarmos a genealogia como
adição posterior. Seria uma história tradicional que foi então registrada junto com outra
literatura sobre o grande rei?
Ou teria sido a história de Rute escrita deliberadamente a fim de prover uma
ilustração e definição para o conceito de "redenção"? No decorrer da história são-nos
apresentadas as diversas práticas legais do antigo povo de Israel relacionadas com os
deveres da família e os direitos de propriedade. Vamos gastar algum tempo
examinando o significado do levirato (concernente aos costumes matrimoniais quando o
homem da casa morria) e especialmente do goel (o "parente remi-dor"). Eles apontam
para a ideia israelita da redenção, da terra e do povo. Mostram como a lei era
interpretada e em que espírito de amorosa generosidade ela era aplicada. E, diversas
vezes, as características do povo nesta história combinam com o que ele cria sobre o
caráter de Deus. Seria para expressar sua ideia sobre a graça redentora de Javé que o
escritor selecionou esta história em particular, tratando especialmente destes temas?
Rute certamente permanece em notável contraste com a severa e legalista adesão aos
códigos da lei que colocam a lei de Deus fora do contexto da aliança de Deus, e que reduz
a fé viva a um moralismo frio.
Ou será que o livro de Rute foi simplesmente escrito para contar, numa história
de grande beleza, os acontecimentos que envolveram as perdas de Noemi e o
casamento de Rute, talvez para incentivar virtudes tais como o amor e a fidelidade
nos relacionamentos familiares?
Não conhecemos o propósito exato do nosso autor. Mas o que está claro é que,
através de sua leitura, aprendemos algo da vida rural do século XI ou XII a. C. na
Palestina, a rotina do dia-a-dia, a necessidade do trabalho, as alegrias familiares, a dor
da morte, a separação dos parentes, o relacionamento com a sogra. E, na ilustração de
pureza, inocência, fidelidade e lealdade, dever e amor, o escritor deseja que os seus leitores
percebam a mão de Deus, que cuida, sustenta e provê.
Gastamos muito tempo observando que a história foi colocada no período dos
juizes. É como se o autor quisesse que soubéssemos que houve um outro lado da vida na
época dos juizes. Certamente houve os grandes líderes carismáticos de Juizes 4-16, com seu
sucesso inter-t mi tente e seu fracasso geral em proporcionar estabilidade e segurança ao
povo de Deus. Houve igualmente a apostasia, violência, imoralidade e guerra civil de
Juizes 17 - 21. Mas não havia fé: fé viva na providência cheia da graça de Deus, que
enriquecia e satisfazia. Talvez o autor conte a história dessa forma para destacar o fato de
maneira especial e para reacender esse tipo de fé em seus leitores.
Com uma fé assim, o nosso escritor apega-se a um valor da vida humana que é
precioso para Deus e para os outros e a uma compreensão dos propósitos de Deus em seu
mundo, transcendendo as barreiras raciais, e a um prazer no envolvimento do Todo-
Poderoso com os problemas de uma família comum que ora pelo seu pão de cada dia.
Procurando acompanhar a fé do autor na providência de Deus, descobrimos a
segunda história (a perspectiva divina) que permeia a história humana, e aprendemos
hoje, quando muitos têm medo "da noite e das trevas", que o Deus de Israel quer ser
conhecido como o nosso Deus. Vivendo, como vivemos, do lado de cá do Calvário e da
sepultura vazia, com o conhecimento que temos da encarnação e da ascenção do Senhor,
podemos dar à expressão "parente remidor " um significado muito mais completo do que
Noemi, Rute ou Boaz foram capazes de entender. Mas nós, à nossa moda, podemos
compartilhar com eles do conhecimento de que "sob suas asas", nos sofrimentos e nas
alegrias do nosso dia-a-dia, podemos encontrar a segurança do seu "refúgio".57
Densas trevas
envolvem o meu ser.
Sozinha.
Com medo.
Minha mente é um sorvedouro
voltado para dentro
na direção de uma eternidade de sofrimento intolerável.
Eu costumava estender a mão
nas trevas desconhecidas com esperança.
Mas minha alma foi arrancada de mim, e eu já não tenho mais esperança.
Foi como um poço. Profundidade insondável. Humilhação tortuosa. Apenas o som de minhas
lágrimas na impenetrável escuridão.
Eu me lembro desse poço,
e do medo,
e da desesperança
de uma eterna agonia da mente,
e da peregrinação cruel
no deserto inexplorado.
Agora eu me encontro neste oásis,
neste porto inesperado,
neste refúgio.
Eu não mereci esta graça
de ser arrancada daquelas profundezas todo-poderosas.
Eu não tinha esperanças,
mas quando voltei pelo caminho que trilhava,
vi uma mão cheia de graça
e um sorriso amoroso.
Eu vi uma luz orientadora
e senti uma asa protetora.
Aninhando-me no seu calor,
meu coração gelado se derreteu.
A negrura de minha alma
desabrochou em milhares de flores.
Minhas lágrimas se transformaram em jóias, e minha amargura em mel.
Mas eu me lembro do poço.
Mantém-me, ó Senhor,
Segura
no refúgio das tuas asas.
Elisabeth
PARTE I
AS LÁGRIMAS
1:1-7
1. Partindo
A fome (1:1)
Nos dias em que julgavam os juizes, houve fome na terra; e um homem de Belém de Judá saiu a
habitar na terra de Moabe, com sua mulher e seus dois filhos.
Mudar de residência não é uma tarefa que a maioria das pessoas assume com
leviandade. É uma coisa dispendiosa e inquietante. Implica arrancar raízes e deixar
amigos e vizinhos. Geralmente leva a procurar uma nova casa, estabelecer uma nova
vizinhança, conhecer outras pessoas. Para uma família é um verdadeiro terremoto.
Embora Elimeleque certamente não tivesse a mesma quantidade de utensílios domésticos
para transportar que um chefe de família moderno, não foi uma decisão menos
importante para ele. Ele resolveu sair de Belém por causa de uma fome.
Belém de Judá era uma cidade, cerca de oito quilómetros ao sul da atual Jerusalém.
Seu nome significa "casa do pão", nome que aponta para a incomum fertilidade daquela
região para o plantio de cereais (como o esclarece o capítulo 2 do livro de Rute), Também
destaca que a fome era fora do comum. Alguns comentaristas crêem que a fome local na
região de Belém (aparentemente não havia tal dificuldade cerca de oitenta quilómetros a
sudeste, em Moabe, do outro lado do atual Mar Morto) devia-se em parte às pilhagens
associadas com o período caótico dos juizes. A invasão midianita no período de Gideão, por
exemplo,4 destruiu a lavoura e o gado.
Por causa da fome, Elimeleque decidiu que ele e sua família iriam morar durante
algum tempo como estrangeiros residentes (peregrinos) na terra de Moabe.
Não temos certeza do que o induziu a partir. Embora a religião cananéia
procurasse controlar o processo da natureza com os seus niveis da fertilidade, o povo de
Javé fora ensinado a confiar nele conquanto à prosperidade da terra. Será que a fome, na
mente de Elimeleque, era um sinal do descontentamento divino?5 Não sabemos. Sabemos
que outros belemitas permaneceram na terra à espera tio final da fome e, ao que parece,
passaram muito melhor do que lilimeleque (versículo 6). À luz dos acontecimentos
subsequentes, fie.imos imaginando se o autor não pretende nos levar a pensar que
lilimeleque não foi sábio na sua atitude! Certamente a viagem não alcançou o seu
objetivo: escapar da morte. Todos os três homens da fnmília morreram em Moabe. Além
disso, com a mudança, morreram numa terra estranha, deixando Noemi, a viúva, muito
mais desolada do que se tivesse permanecido na companhia dos seus conhecidos.
Ali, com tantos lugares, por que ir a Moabe?!
Localizada no planalto, ao leste do Mar Morto, Moabe era povoada pt-Ios
descendentes de Ló.6 Embora não tivessem sido atacados pêlos israelitas em seu retorno à
terra prometida depois do êxodo, apesar de sua falta de amabilidade característica, os
moabitas não deviam ser admitidos na congregação de Israel.7 Por quê? Eles eram
adoradores ile Camos, um deus ao qual aparentemente se faziam sacrifícios humanos. Os
moabitas eram, às vezes, chamados de "povo de Camos".8 Além disso, durante o primeiro
período dos juizes, Eglom, rei de Moabe, invadiu a terra dos israelitas e manteve o povo
de Israel na escravidão durante dezoito anos.9 Portanto, era um lugar muito estranho
para um crente em Javé, habitante de Belém, escolher para morar. Por que não foram para
algum lugar onde se adorava Javé? Será que era falta de confiança na providência de
Deus? Embora elogiando o pretenso desejo de Elimeleque de cuidar de sua família
durante a fome, Matthew Henry pergunta como se poderia justificar a mudança a Moabe.
"Aborrecer-nos com o lugar no qual Deus nos coloca e abandoná-lo na primeira
oportunidade, logo que nos deparamos com algum desconforto ou alguma inconveniência,
é evidência de um espírito descontente, desconfiado e instável."10
Não temos dados suficientes para saber se a atitude de Elimeleque justifica o
comentário de Matthew Henry. Porém, mesmo que a atitude de Elimeleque implique falta
de fé ou expressão de descontentamento para com Javé, o restante do livro de Rute
demonstra amplamente que a providência graciosa de Deus não é limitada pela loucura
do homem. A alegria final na família e o propósito de sua história, resultante da entrada
de Rute no cenário, demonstram a rica benignidade da providência de Deus. Ver que tais
benefícios foram colhidos como resultado de uma conduta impensada é uma evidência
de seu amor. Felizmente, a providência de Deus cobre até os nossos erros!
Os nomes (1:2-5)
Este homem se chamava Elimeleque, e sua mulher, Noemi; os filhos se chamavam Malom e
Quiliom, efrateus, de Belém de Judá; vieram à terra de Moabe e ficaram ali. 3 Morreu Elimeleque, marido de
Noemi; e ficou ela com seus dois filhos, 4os quais casaram com mulheres moabitas; era o nome duma Órfã, e o
nome da outra Rute; e ficaram ali quase dez anos. 5 Morreram também ambos, Malom e Quiliom, ficando
assim a mulher desamparada de seus dois filhos e de seu marido.
Para o nosso autor, os nomes são significativos. Temos alguns personagens no
livro cujos nomes não são mencionados, como o "resgatador" que aparece em Rute
4:1. Portanto devemos presumir que, se o escritor nos cita nomes, é com algum
propósito especial. Na maneira hebraica de pensar, saber o nome de uma pessoa é
conhecer o seu caráter, conhecer a pessoa. O nome é a pessoa. Quando Abrão se tornou
uma nova pessoa, ele recebeu um novo nome.11 Quando o nome de uma pessoa é
destruído ou retirado, a pessoa, é extinguida da memória humana, como se nunca
tivesse existido.12 Era uma coisa terrível ser deixado sem nome nem descendentes.13
Portanto, quando Deus diz o seu próprio nome, está falando do seu caráter e comparti
lhando o seu próprio ser com aqueles aos quais falou.14 "Javé" é o seu nome pessoal, o
nome do Deus da aliança.
Elimeleque significa "meu Deus é rei". Alguns comentaristas, como Henry, que já
citamos acima, imaginam que talvez haja alguma censura implícita no fato de citar
este nome. Não deveria tal nome expressar dependência e confiança em Deus? Com
certeza deveríamos lembrar que para todo aquele que pode dizer "meu Deus é rei",
embora não receba uma promessa de uma vida livre de problemas, há sempre a
promessa do pão de cada dia e a certeza de que não há necessidade de ficar
morbidamente ansioso por causa do amanhã.15 Parte do significado da fé pode ser
expressa declarando que a f é é aquilo que Deus nos dá para nos ajudar a enfrentar
as incertezas da vida. Será que Elimeleque vivia de acordo com o seu nome?
Noemi significa "amável, encantadora, agradável". E o comovente significado
deste nome destaca-se mais tarde, quando Noemi volta de Moabe com sua nora Rute,
entristecida pelas experiências amargas que ela cria ter recebido da mão do Senhor.
"Não me chameis de
Noemi", ela diz aos seus vizinhos, "chamai-me Mara; porque grande .unargura
me tem dado o Todo-poderoso" (1:20).
Malom e Quiliom, os filhos de Noemi, aparentemente tinham antigos nomes
cananeus, mas foram aqui mencionados devido ao seu sig-n i ficado dentro do cenário,
para que entendamos as lágrimas e o sofrimento do restante de Rute 1. "Malom" parece
estar ligado a uma raiz cujo significado é "estar enfermo"; e "Quiliom" significa algo
assim como "enfraquecer", ou "definhar", ou até mesmo "aniquilação".
Órfã e Rute são nomes moabitas e os seus significados não são muito claros. Mas o
que está claro é a sua nacionalidade. Os filhos de lïlimeleque casaram-se com
adoradoras de Camos e, embora tal casamento não fosse aparentemente proibido,16 os
moabitas não eram admitidos na congregação para o culto.17
A família, diz-nos o autor, era de efrateus. Efrata é uma palavra geralmente
associada com Belém, mas o seu significado é muito incerto. As passagens onde
aparece sugerem que há uma dignidade especial ou alguma importância em se estar
ligado a um efrateu. Aqui, provavelmente, indica que estamos sendo apresentados a
uma família bem estabelecida. Certamente, quando Noemi voltou, não era uma
pessoa sem importância (1:19). Talvez, como sugere Leon Morris,18 sua família
pertencesse à "aristocracia" local, uma família que, quando partiu para Moabe, era
conhecida como de pessoas ricas ("Ditosa eu parti", 1:21). Mas a riqueza e o prestígio
não são garantias de felicidade material ou de ausência de sofrimento. A fome
angustiou a família o suficiente para que esta abandonasse o seu lar e partisse para
Moabe. Depois, além da perda do conforto físico e da segurança do lar, veio a dor, não
de uma morte, mas de três. Noemi, em quem se concentra este primeiro capítulo de
Rute, ficou sozinha, sem lar, sem marido, sem filhos, sem amigos, sem esperança, sem
herança. O que o culto a Javé significava para ela agora?
A morte (1:3-5)
Morreu Elimeleque... 5Morreram também ambos, Malom e Quiliom, ficando assim a mulher
desamparada de seus dois filhos e de seu marido.
A morte, num certo sentido, é um dos acontecimentos mais naturais da vida,
mas, num outro, é o menos natural. Todos os homens são mortais;19 o tempo de
permanência do homem aqui na terra é limitado. A morte inexoravelmente lembra o
homem de sua fragilidade e limitação; limitação essa (o salmista nos diz) da qual o Senhor
não fica esquecido, e que faz par te do significado da compaixão que sente para com o seu
povo: "Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que o
temem. Pois ele conhece a nossa estrutura, e sabe que somos pó."20 Assim como toda a
"natureza", a morte faz parte do homem desde o princípio. E certas casas funerárias
modernas parecem recusar-se a crer que ela seja real.
Que significado, ficamos imaginando, o crente em Javé dava à morte quando
Noemi ficou desamparada de seus dois filhos e de seu marido? Eles não tinham consciência da
transformação do significado da morte trazida pelo Novo Testamento. Eles tinham muito
menos fundamento do que nós para crer na vida após a morte. Não poderiam ter entendido
a plenitude do significado das palavras de Paulo sobre a morte, que "perdeu o seu
aguilhão", ou da sua descrição da morte como um simples "adormecer".21 Mas não
devemos esquecer a confiança de Davi em que estaria com o seu filho morto,22 nem o
pensamento positivo dos Salmos 49 e 73. Mesmo para um homem de fé do Antigo
Testamento, morrer era "dormir com os seus pais", ou "ser reunido ao seu povo".23 E o
desespero expresso em passagens tais como o Salmo 88 parte daquele que se julga
alienado da compaixão de Deus, morrendo sob a sua ira, e não de um crente plenamente
confiante na graça de Deus.
Mas é a ressurreição de Jesus Cristo que dá forma àquilo que para o cristão agora é
uma certeza: para o crente a morte proporciona comunhão infinita com o Senhor.24 Para o
cristão, morrer é "zarpar rumo a outra terra".25 Nossos corpos são preparados para uma
vida espiritual mais completa, preparados para a vida no céu, com seus correlativos
celestiais mais ricos do que os corpos físicos que são apropriados para este mundo de
espaço e tempo.26 A esperança cristã aguarda "aquela grande multidão que ninguém
pode enumerar", cujas roupas foram alvejadas "no sangue do Cordeiro", que ficarão em
pé diante do trono de Deus e o servirão "de dia e de noite no seu santuário".27
Algumas partes do Antigo Testamento dão indicações destas afirmações de fé. Isaías,
numa seção que poderia ser considerada como a base da fé no destino pessoal, como
também da sorte da nação, fala do tempo quando o Senhor "tragará a morte para sempre
e assim enxugará o Senhor Deus as lágrimas de todos os rostos." Então ele afirma que "os
vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e exultai, os
que habitais no pó."28 E nas visões apocalípticas de Daniel, ele se estende pela fé em busca
daquilo que talvez apenas perceba indistintamente: "Muitos dos que dormem no pó da terra
ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para a vergonha e horror eterno."29
Mas, de um modo geral, a morte no Antigo Testamento é um estado nmbíguo e
escuro. De um lado, os mortos são às vezes considerados como aqueles que foram
separados da esfera da influência de Javé. A morte para eles significa o fim de um
relacionamento consciente com Deus; já não se ouvem mais louvores a Javé. A morte é o
rei dos terrores.30 O submundo tenebroso do Seol, o lugar dos mortos, é um local profanado
que enfatiza o horror da morte. O crente em Javé não deve tentar alcançar aqueles que
morreram, nem deve, como os demais cananeus, ocupar-se em rituais da morte, como
cortar o cabelo ou ferir sua carne como um reconhecimento do poder da morte.31 O povo de
Moabe, entre o qual Noemi habitava, possivelmente tinha atitudes para com a morte que
eram intoleráveis para o crente em Javé (indicadas, talvez, pelo modo como Amos teve de
denunciá-lo porque "queimou os ossos do rei de Edom, até os reduzir a cal"32).
Por outro lado, também encontramos no Antigo Testamento uma forte fé em Javé
como Senhor, e o Senhor da vida.33 Nenhum outro soberano pode reinar no reino da
morte. Assim, neste vácuo, a fé em Javé cria indícios de esperança. O salmista, quando se
encontra à beira da morte, clama a Javé para que se lembre dele; e, em outra passagem, o
poeta expressa a certeza de que Deus vai recebê-lo através da morte numa outra vida.34 Ou,
então, mesmo que venha a fazer a sua cama no Seol, "lá estás também". O Senhor não vai
abandoná-lo.35 Há um sentido no qual, no momento da morte, Javé vai "arrebatar" o
crente para que fique em comunhão com ele.36 O próprio Deus está presente junto ao crente
na vida e na morte, e não vai abandoná-lo no reino de Seol.
Quanto desta fé crescente Noemi partilhava nós não sabemos. Talvez ela tivesse
vislumbres dessa verdade que nos foi totalmente revelada no Novo Testamento: para
aquele que se aproxima de Deus pela fé, a morte, num certo sentido, já ficou para trás. Os
crentes cristãos são "batizados na morte de Cristo"37 e, embora a sua morte física ainda
tenha de acontecer porque a glória completa ainda não foi revelada,38 sua comunhão
contínua com o Senhor é coisa segura.
Mas seja quanto for que Noemi tenha captado sobre o significado da morte para o
crente em Javé, existem dois aspectos de suas próprias circunstâncias que são evidentes.
Primeiro, seu marido e filhos haviam morrido prematuramente. Como podemos nos
identificar bem com a tristeza do Antigo Testamento, quando enfrentamos aquilo que os
que ficam só podem classificar de morte prematura! Abraão morreu em idade avançada,
um homem velho e cheio de anos. Numa vida assim há realização, como na de Jó, que
viu seus filhos, netos e até mesmo bisnetos.39 Mas a morte de uma pessoa jovem tem um
tom de tragédia: "Em pleno vigor de meus dias hei de entrar nas portas do além; roubado
estou do resto dos meus anos."40 Hagar, a mãe, lamenta a morte iminente de seu filho:
"Assim não verei morrer o menino"; e Davi sofre com a morte do seu filho. 41 Para Malom e
Quiliom certamente, e podemos imaginar que também para Elimeleque, a morte chegou
cedo na vida; eles foram "roubados" do resto dos seus anos. E Noemi ficou desamparada de
seus dois filhos e de seu marido muito cedo na vida.
Em segundo lugar, embora o livro de Rute apenas nos dê um rápido vislumbre de fé
em que a morte não seja o fim da comunhão (1:17), havia uma certeza. O nome do homem
não deve ser esquecido. Seu nome permaneceria na sua herança. Como era importante
para ele, portanto, que tivesse um filho (4:5,10)! E como deveria ser desespera-dor, portanto,
para Noemi o fato de que, além de ter perdido os três homens de sua família, ela não
tivesse um único herdeiro através do qual os nomes deles continuassem e sua herança
ficasse garantida! Seus homens morreram, e com eles os seus nomes!
Aqui o autor coloca um desastre em cima do outro na vida de Noemi, dando-nos
um senso real do choque que atinge uma pessoa nessas condições. Ela certamente não
havia merecido; com certeza fora inesperado. Não estaremos penetrando aqui no lado
oculto da providência de Deus: o fato de que certos sofrimentos nossos parecem
insuportáveis; algumas de nossas circunstâncias parecem tão injustas; e algumas de nossas
perguntas ficam sem respostas?
Com Noemi aprendemos que fé, às vezes, significa uma disposição de deixar essas
perguntas como mistérios de Deus, na confiança de que, em dias melhores, ele tem se
mostrado fidedigno.
1:8-22
2. Voltando para casa
A verdadeira fé sempre pode ser avaliada pêlos frutos do amor; 1 e Rute, a moabita
que veio a crer no Deus de Noemi, devia ter aprendido com esta a realidade da fé,
experimentando seus benefícios através do amor praticante de sua sogra para com ela.
Noemi surge agora como a personagem principal de Rute 1. No desdobramento da
"outra história", o tema da providência de Deus na sucessão dos acontecimentos de
situações humanas nas quais Noemi e suas noras se encontram, e a subsequente provisão
divina para com Rute e Boaz, vamos nos concentrar primeiro em Noemi e especialmente
na fé inabalável de Noemi em Javé. Especificamente aqui vemos como a sua fé se
demonstrou ativa em amor.2
Antes de mais nada, a preocupação amorosa de Noemi com suas noras encontra sua
expressão na oração. Como já se disse com muito acerto: "O que um homem crê ou não crê a
respeito da oração é uma boa indicação de suas crenças religiosas de um modo geral. O que
ele crê sobre a oração é uma indicação do que ele crê sobre Deus. Mais particularmente, o
que o homem faz com a oração é uma indicação do que ele crê a respeito dela."3
A oração é, e sempre foi, o lado ativo da doutrina da providência. A oração é o
reconhecimento, não do benefício psicológico de algum exercício mitológico, mas do fato de
que nós cremos que Deus existe, que Deus se importa conosco, que Deus está no controle e
que Deus providencia tudo, e cremos de tal modo que estamos dispostos a fazer alguma
coisa com base nisso, isto é, a falar com ele. A providência nos lembra que não passamos de
criaturas, que somos dependentes de Deus e que, junto com o mundo todo, estamos sob o
senhorio de Deus; a oração é uma atividade pela qual reconhecemos que não podemos ser
nosso próprio senhor. A providência nos lembra que nem tudo é desesperadamente
absurdo ou sem sentido; a oração é a nossa maneira de dizer "sim" diante da convicção de
que Deus está operando os seus propósitos na natureza, nos homens e na história. A
providência é um lembrete de que o Senhor é um Deus de graça e generosidade; a
oração é a nossa maneira de responder ao seu convite para fazermos parte da família da
sua aliança, para sermos seu filho ou sua filha, seus cooperadores neste mundo. A
providência nos lembra que o Deus vivo não é um destino imutável diante do qual só
podemos manter silêncio e ficar passivos; a oração é a nossa reação diante do convite de
Deus para que partilhemos da comunhão com ele, uma expressão da nossa união com
ele. Como disse P. Forster:
A profundidade do senhorio de Deus é tal que ele permite que tenhamos um
lugar no seu governo do mundo ... isto aponta para a seriedade de nossas ações como
cristãos. Não significa que estejamos segurando as rédeas do governo do mundo. Elas
estão nas mãos de Deus. Mas nós temos o nosso lugar no seu exercício. Em sua
onipotência e onisciência supremas, Deus quer partilhar sua vida conosco.4
Forster prossegue dizendo que Deus vai retificar e compensar nossa oração
quando a responder. Não que a nossa oração seja a coisa certa e segura a fazer, e a resposta
de Deus a coisa incerta e insegura. Pelo contrário, nós é que somos desafiados na oração,
e não Deus.
Portanto, através da oração nós expressamos a nossa confiança na providência de
Deus e descobrimos como a nossa própria vontade deve ser alinhada com a sua
vontade soberana e cheia de amor por nós. A nossa ação na oração se encontra na sua
resposta transformadora.
Isto aconteceu com Noemi em sua oração a favor de Rute e Órfã. Ela orou como
alguém que conhecia o seu Deus como o Senhor da aliança. A sua oração aqui é de
confiante entrega do futuro nas mãos do Senhor. Ao pensar em suas noras e nas
necessidades delas, Noemi ora pedindo que o Senhor, o Deus da aliança, use de benevolência
para com elas.
O amor da aliança
Benevolência (versículo 8) traduz a palavra central do relacionamento de Deus com o
seu povo através da aliança: hesed, amor constante e fidelidade. É uma palavra "que
combina o calor da comunhão de Deus com a segurança da sua fidelidade".5 É a palavra
de amor que Moisés canta ao louvar o redentor,6 e pela qual o povo é convocado para a
comunhão da aliança com ele. Noemi louva a Deus por seu hesed em 2:20, e Rute é
louvada pelo seu em 3:10. Portanto, é uma palavra que nos diz algo do cará ter do Deus da
aliança, e também diz algo das pessoas que demonstram esse caráter em suas vidas. Vamos
retornar a este assunto no capítulo 4.
O correlativo desta palavra no Novo Testamento é ágape, que descreve o amor
sacrificial de Deus pelo seu povo e o amor que ele espera que o seu povo demonstre em
troca disso. Talvez a definição mais aproximada é a que encontramos em l João 4:10-11:
"Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou,
e enviou o seu Filho como propiciação pêlos nossos pecados. Amados, se Deus de tal
maneira .nos amou, devemos nós também amar uns aos outros."
Noemi confia no Deus do amor e entrega Rute e Órfã aos cuidados dele. Suas noras
demonstraram uma bondade maravilhosa para com ela e sua extinta família; que Deus
demonstre o seu amor para com elas. Sua preocupação particular era que elas
retornassem às suas próprias famílias em Moabe, onde aparentemente pelo menos os pais
de Rute ainda viviam (2:11), e que se casassem novamente.
Um lar
O Senhor vos dê que sejais felizes, cada uma em casa de seu marido', isto indica principalmente o
anseio por um "lugar de descanso".7 A palavra não se refere apenas ao fim dos
problemas e do sofrimento (que Rute e Órfã pudessem superar a dor de suas perdas),
mas também à experiência positiva da segurança e do conforto divinos. "Volta, minha
alma, ao teu sossego (descanso)", canta o salmista, "pois o Senhor tem sido generoso para
contigo."8
Para entender o pleno significado da oração de Noemi, temos de saber alguma
coisa sobre a situação das mulheres viúvas naquele tempo. Considerando que o status
das mulheres na sociedade do Antigo Testamento era muito aquém do que lhes foi
concedido por Jesus 110 Novo Testamento (na sua maneira de tratar a mulher junto ao poço,
com a siro-fenícia, Maria e Marta, como também no que ensinou sobre o divórcio,
garantindo às mulheres direitos iguais aos dos homens),9 a situação da viúva era ainda
pior. A esposa estava incluída na propriedade do marido, podendo ser repudiada, e não
tinha direito de herança.10 Era, entretanto, bem superior a uma escrava e, especialmente
quando nascia um filho do sexo masculino, era respeitada dentro da família. Mas a sua
segurança repousava no marido e ela tinha poucos direitos próprios.
Portanto, quando morria o marido, a viúva (especialmente se tivesse filhos
pequenos para sustentar) ficava em posição muito difícil. A palavra traduzida para
"viúva" não apenas indica a morte do marido, mas também dá ideia de solidão,
abandono e desamparo.11 As viúvas eram geralmente mencionadas junto com os órfãos
e os estrangeiros.12 Elas tinham necessidade especial de proteção, e Javé cuida delas de
maneira singular." Portanto, o povo era convocado a cuidar do direito das viúvas e
diversas leis do Pentateuco procuravam aliviar o destino delas.14 Contudo, a queixa do
tratamento injusto recebido pelas viúvas é um tema constante nos profetas.15
A única esperança que restava de recuperar o status social para uma viúva ainda
jovem era casar outra vez. Toda a profundeza de sentimentos extraídos de sua
própria viuvez Noemi colocou em sua oração em favor das duas jovens: O Senhor vos
dê que sejais felizes, cada uma em casa de seu marido.
Javé, o Senhor.
O que significa a fé em Javé em períodos de aflição? Mais tarde voltamos os olhos
para o sofrimento e, às vezes, discernimos o bem que veio após ele. Outras vezes, não.
Frequentemente, podemos crer, o sofrimento nos confronta, mais que qualquer outra
coisa, com a transitoriedade e fragilidade de nossas vidas. O sofrimento, como bem se
vê no livro do Dr. Martin Israel, The Pain that Heals (O Sofrimento que Cura), pode nos
colocar em contato com dimensões mais profundas da vida espiritual. O sofrimento (que
o Dr. Israel chama de "a face escura" de Deus) pode ser o caminho para o crescimento e a
maturidade do caráter: dor que cura. Mas na hora não sentimos assim. Na hora, como o
testifica a experiência de Noemi, a essência da confiança, durante toda a experiência da
aflição, é nos colocarmos humildemente debaixo da mão de Deus, da qual recebemos o
golpe, na firme crença de que (apesar de todas as aparências) é a mão do Pai de amor.
"Garante-me, ó Senhor, a força de atravessar o vale da sombra da morte de modo
que, ao sair do outro lado, eu seja uma pessoa melhor, mais compassiva, mais aproveitável
por ti como testemunha e mais útil ao meu irmão como servo."29
Uma fé assim deve ter tido uma influência vital na vida de Rute.
A fé de Rute (l:14b-18)
Órfã com um beijo se despediu de sua sogra, porém Rute se apegou a ela. l5Disse Noemi: Eis que tua
cunhada voltou ao seu povo e aos seus deuses; também tu, volta após a tua cunhada. l6Disse, porém, Rute:
Não me instes para que te deixe, e me obrigue a não seguir-te; porque aonde quer que fores, irei eu, e onde quer
que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. l7Onde quer que morreres,
morrerei eu, e aí serei sepultada; faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver, se outra cousa que não seja a morte
me separar de ti. wVendo, pois, Noemi que de todo estava resolvida a ir com ela, deixou de insistir com ela.
Enquanto Órfã deu prova do seu amor na obediência ao desejo de Noemi de que
partisse para se casar novamente, Rute demonstrou o seu amor tornando-se sua filha.
Lemos que Rute se apegou a Noemi (versículo 14). Este verbo é a palavra que expressa um
"apego" fiel e sincero em um relacionamento pessoal, como o do homem com a esposa
no jardim do Éden.30 Também é usado em relação à sincera fidelidade que Deus espera
do povo da aliança em resposta à sua iniciativa da graça salvadora.31 Rute, a moabita,
ex-adoradora de Camos, está demonstrando uma qualidade de vida característica do
povo de Javé.
Apesar de Noemi citar o exemplo de Órfã e da óbvia adequabili-dade de que
Rute permaneça com o "seu povo", e apesar de que, de acordo com a sabedoria
humana, uma adoradora de Camos devesse obviamente permanecer onde os "seus
deuses" eram adorados, Rute insiste em ficar com Noemi. O nosso autor apresenta aqui
as palavras de Rute, sua clássica e bela afirmação de fidelidade, determinação e
compromisso de amor. Rute quer compartilhar do futuro de Noemi: sua viagem, seu
lar, sua fé. É a promessa de uma fidelidade sincera na vida e para toda a vida. Ou, por
que não dizer, além da vida: os membros de uma família partilhavam do mesmo chão
ao serem sepultados, pelo menos na Palestina primitiva;32 e supomos que isto também
acontecia com o povo de Rute. Como diz Leon Morris, a firme determinação de Rute
é que nada, nem mesmo a morte, vá separá-la de Noemi.33 E no centro desta expressão
de amor e compromisso para com Noemi (na viagem, no lar, na família, na vida e na
morte) está o compromisso de adorar o Deus de Noemi. Embora, num certo sentido, seja
verdade que Rute talvez pensasse que uma mudança para Belém poderia implicar a
necessidade de reconhecer "o deus de Belém",34 num outro, a sua fé mostra-se
explicitamente mais profunda. Rute está disposta a colocar nos seus lábios o nome do
Deus da aliança de Noemi, Javé, o Senhor, numa determinada profissão de fé naquele
que fundamenta o seu juramento. Faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver: esta expressão
deveria incluir um gesto invocando a punição de Javé sobre ela, caso deixasse de
cumprir o seu voto.
A fé de Noemi com certeza era tão eficaz, mesmo na adversidade, apontando
para o governo soberano de Javé, que Rute, através do testemunho de Noemi, foi
agora capaz de exercer a sua própria fé no Deus dela e de se considerar agora como
parte do povo da aliança de Javé. Não teria sido precisamente a fé de Noemi, em meio
às incertezas, que mostrou a Rute o Senhor?
Com que frequência o Senhor usa as experiências do seu povo, especialmente
em períodos de aflição e dificuldades, para atrair outros a si! Quando Moisés foi ao
encontro de Jetro, seu sogro, ele contou "tudo o que o Senhor havia feito a Faraó e aos
egípcios por amor de Israel, todo o trabalho que passaram no Egüo, e como o Senhor os livrara."
Jetro se regozijou pelo livramento cheio de graça de Deus: "Agora sei que o Senhor é
maior que todos os deuses."35
Da mesma forma, Paulo, preso sob a guarda romana, o que ele considerava
como parte de sua "incumbência"36 para com Cristo, escreve aos leitores em Filipos:
"Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes
contribuído para o progresso do evangelho."37 Por meio dos seus sofrimentos a igreja foi
incitada a uma renovada devoção e Cristo foi pregado.
Aqui, nesta passagem, o Senhor está atraindo Rute à fé, certamente usando como
testemunho persuasivo a experiência da graça de Noemi através da aflição. Um Deus
que se revela no vale das sombras é digno de nossa confiança também nos dias de
maior conforto.
O Todo-poderoso
O título divino traduz a palavra hebraica Shadai, geralmente usada no Pentateuco
e particularmente em Génesis. Discordam os autores sobre o significado de sua raiz,
sugerindo alguns que mais provavelmente a etimologia relacione "Shadai" com
"montanha", no sentido qualitativo de possuir durabilidade, solidez e veracidade.38
Contudo, se verificarmos o seu uso em Génesis, descobriremos três referências que
podem esclarecer o seu significado, levando-nos ao pensamento de Noemi ao usá-lo.
Primeiro, em Génesis 17:1, descobrimos que Deus fez a um Abraão de noventa e
nove anos de idade a promessa de gerar filhos, e se revela como "Deus Todo-poderoso".
Aqui ele é o Deus que pode transformar a impotência do homem em bênção, para o
bem do próprio homem e para a sua glória. Segundo, em Génesis 43:14, o velho Jacó,
em sua perplexidade, concorda relutantemente com que os seus angustiados filhos
retornem ao Egito, levando o irmão mais moço para o (até então) ainda não
identificado José: "Deus Todo-poderoso vos dê misericórdia perante o homem."
"Shadai" aqui fala da esperança da proteção de Deus para um período de incertezas. E,
terceiro, em Génesis 49:25, a profecia de Jacó sobre os seus filhos fala da futura
"fertilidade" de José apesar de todo o "embaraço", e o atribui ao "Todo-poderoso, o
qual te abençoará com bênçãos dos altos céus, com bênçãos das profundezas, com
bênçãos dos seios e da madre." Depois de treze anos de sofrimento e isolamento na
prisão, José é elevado a primeiro ministro do Egito! Esse tipo de bênção é
característico de Shadai.
E é com referência a esse aspecto do caráter de Javé descrito por "Shadai" ("o
Deus que é melhor quando o homem está na pior", como J. A. Motyer uma vez
expressou) que Noemi apresenta a estrutura de sua fé naquele em quem ela deposita o
seu sofrimento. É como se ela dissesse: "Vocês podem ver a amargura que tenho
experimentado: a fome, a perda de entes queridos, as dúvidas, as separações, o
aparente desespero; mas eu conheço Deus como Shadai, e posso deixar as explicações, e
até mesmo a responsabilidade, desta amargura com ele."
Será que ela não estava conseguindo enfrentar a realidade? Será que Noemi
estava errada em pensar assim? Será que ela estava acusando Deus do mal que
sofria, usando aquele tipo de astuta explicação mais apropriada aos inúteis
consoladores de Jó ao invés de observações que eram fruto de uma fé amadurecida?
Não nos parece assim. Antes, parece que é exatamente a chave de como uma pessoa de
fé aprende a enfrentar a dor e a incerteza das muitas tribulações da vida. Em um
mundo, no qual, da perspectiva humana, as palavras do Pregador parecem
sobremodo verdadeiras ("Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e
eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento")3'1, suas outras palavras podem
fornecer o contexto completo, a perspectiva mais ampla dentro da qual a "vaidade"
pode ser enfrentada: "não sabes as obras de Deus, que faz todas as cousas".40 É a
pessoa que conhece o seu Deus como Shadai que pode perceber a outra história: que
até mesmo a aparente falta de significado do sofrimento terreno faz parte de um
padrão da providência, e pode ser enfrentada quando colocada nas mãos de Deus. E
não apenas Shadai, pois o Deus que se revelou nessa característica é o Deus que
também declarou o seu nome ao seu povo: Javé, um nome que aponta para o seu amor
expresso na aliança. E Noemi sabe que o Shadai com o qual ela pode deixar sua
amargura é o Javé que a trouxe para casa.
Conta-se a história de um pregador que usava como ilustração os fios
emaranhados do avesso de uma tapeçaria, destacando que grande parte da experiência
desta vida "debaixo do sol", neste mundo decaído e afligido pelo pecado, em todos os
seus diferentes caminhos, geralmente nos parece ser uma confusão de cores sem relação
alguma, fios soltos e nós indesembaraçáveis. Apenas quando o outro lado da tapeçaria
se torna visível é que esses mesmos fios nos apresentam o que foi bordado: "Deus é
Amor". Talvez não vejamos o outro lado, que nós chamamos de "outra história", que
está sendo escrito ao longo e ao redor da história humana a qual nós lemos às vezes
de maneira tão dolorosa. Mas a fé é a garantia divina de que esse outro lado existe, e
de que, no seu amor, até mesmo o sofrimento tem um significado.
Este é um tema exemplificado em outras passagens das Escrituras. Quando o
salmista ficou desesperado por causa da prosperidade dos perversos e da aparente
futilidade de uma vida honesta, de modo que até a sua própria fé parecia estar sendo
tragada pela calamidade e pela dúvida, ele achou que era "mui pesada tarefa" tentar
compreendê-lo. "Até que entrei no santuário de Deus": então o homem perverso e ele
mesmo foram vistos a uma nova luz. Ele pôde, apesar da contínua incerteza,
exclamar: "Todavia, estou sempre contigo, quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no
Senhor Deus ponho o meu refúgio."41 Davi também, no Salmo 30, chegou a "clamar" a
Deus pedindo ajuda. Ele experimentou o que chama de "ira" de Deus. Ele chora e
suplica a Deus, e descobre que até mesmo a profunda tristeza pode produzir alegria. O
visitante noturno que chega vestido de "choro" é transformado pela luz do dia em
exclamações de alegria.42
Nosso Senhor Jesus, também, ajudou os discípulos a entenderem suas
perplexidades e dúvidas a uma nova luz e de uma perspectiva diferente. Quando,
falando do sofrimento de um homem que nascera cego, eles perguntaram a Jesus "Por
quê?" Eles não foram informados da causa ativa do sofrimento, mas apenas da causa
final: "para que se manifestem nele as obras de Deus".43
Mas é na própria pessoa de Cristo que a plena revelação desta verdade se torna
clara. O Novo Testamento o apresenta como o servo sofredor de Deus, como o Cordeiro
de Deus sobre o qual foram colocados os pecados e as dores do mundo. Em Cristo, e em
particular na vida de Cristo derramada na morte da cruz, o próprio Deus entrou e
compartilhou das profundezas do sofrimento e do pecado deste mundo. Ele assumiu
sobre os seus ombros a responsabilidade de resolver este assunto. Na horrível ruptura
da comunhão entre o Pai e o Filho, focalizada no grito de abandono, Deus demonstrou
o seu desejo de que a graça preciosa fosse conhecida em cada separação e sofrimento
humano; ele ouve cada oração com o grito: "Meu Deus, por quê?" Além disto, com
espantosa condescendência, ele nos convida a lançar sobre ele nosso pecado e nosso
sofrimento, e até mesmo, poderíamos dizer, a desabafar sobre ele nossa ira, pois ele a
pode suportar. Não é isto que acontece em alguns daqueles difíceis salmos
"imprecatórios", quando o autor dá vasão à sua ira?
Frank Lake cita Robert Leighton, arcebispo de Glasgow no século XVII, que
escreveu a uma mulher muito deprimida: "Eu a convido a lançar a sua raiva 110 seio de
Deus." Então Lake prossegue, dizendo o seguinte em um parágrafo muito comovente:
O propósito da cruz de Cristo é atrair sobre ele a justa ira dos inocentes aflitos,
que não podem se defender nem se vingar adequadamente para dar um fim à injustiça
do momento e que tendem, portanto, a adiar e inevitavelmente transferir a reação, de
modo que outras pessoas, relativa ou totalmente inocentes, vêm a sofrer. Cristo foi
crucificado para que agora a nossa ira possa se esgotar, obedientemente e na fé,
ferindo aquele que foi providenciado, o Cordeiro de Deus. Pecado passa a ser, então,
"não crer em Jesus", não confiar nele para assumi-la e, ao assumi-la, acabar com ela.44
Precisamos aprender, na vida pessoal e pastoral, a aplicar o evangelho da graça
de Deus em Cristo às mais profundas necessidades emocionais. Nossos sentimentos
também estão dentro do escopo da providência de Deus.
Neste primeiro capítulo de Rute, Noemi compartilhou conosco a sua fé em
Deus. É uma fé cujo brilho contrasta com as trevas dos seus sofrimentos. Ela viu a mão
do Senhor na restauração da bênção de Belém; reconheceu a mão divina levantando-se
contra ela na amarga experiência da morte; buscou o seu cuidado e proteção para Órfã
e Rute; deu testemunho do Todo-poderoso na dor, quando de sua volta às antigas
amizades. Esta é uma fé e uma confiança em Javé que reluz maravilhosamente na tela
de fundo obscura e cheia de dúvidas dos dias em que os juizes julgavam. É a fé em
Javé que levou Rute a confiar nele: a fé na qual se baseiam os subsequentes capítulos
de nossa história.
Rute e Boaz assumem os papéis principais no restante do livro. Noemi, porém,
volta no capítulo 2 de Rute como a intérprete à luz da providência de Deus; e, em Rute 3 e
4, ela é o agente de bênçãos divinas providenciais aos outros.
O amor é quente como as lágrimas,
O amor são lágrimas: Pressão na cabeça, Tensão na garganta, Dilúvio, semanas
de chuva, Montes de feno inundados, Mares sem forma entre as sebes; Antes tudo era
verde.
O amor é ardente como fogo,
O amor é fogo: Todo tipo: fogo do inferno, Cheio de avidez e orgulho, Desejo
lírico, forte e doce, Risonho, mesmo quando desejado, E essa chama celeste De onde
vem todo o amor.
O amor é suave como a primavera,
O amor é primavera: Cânticos de aves pelo ar, Aromas frescos nas matas, A
sussurrar: "Coragem!" Dizendo à seiva, ao sangue: "Calma, segurança e repouso São
bons; mas não o melhor."
O amor é duro como os cravos,
O amor são cravos: Duros, grossos, martelados Nos nervos mediais daquele
Que, tendo nos feito, sabia O que ele tinha feito, E vendo (com tudo isso) A nossa cruz
e a dele.
C. S. Lewis (1898-1963)
PARTE II
ASAS DE REFÚGIO
2:1-13
3. Graça e gratidão
O segredo (2:1)
Tinha Noemi um parente de seu marido, senhor de muitos bens, da família de Elimeleque, o qual se chamava
Boaz.
Enquanto a maior parte das histórias de detetives guarda seu segredo até a
última página, o escritor desta nos revela um segredo bem no começo deste capítulo. Ao
fazê-lo, ele nos dá mais uma indicação do propósito geral deste livro e de sua preocupação
em não nos deixar ignorantes a respeito dele. A esta altura da história, nem Noemi nem
Rute sabiam que não muito longe de sua casa morava um homem de considerável riqueza e
influência que era seu parente, ou melhor, parente do falecido marido de Noemi. O dia da
vida de Rute contido em Rute 2:1-22 é o dia em que ela vem a conhecer esse homem, Boaz. No
final do dia, depois do trabalho, ela conta a Noemi o que aconteceu. Só então ela
percebe o verdadeiro significado do seu encontro (2:20). Até então, Rute não havia notado
que o encontro não fora acidental, mas parte do propósito de um Deus cheio de graça e
cuidado.
Mas nós, os leitores, somos informados sobre Boaz neste primeiro versículo. Com
esta informação, nosso contador de histórias está nos preparando pelo seguinte motivo:
quando, mais tarde, Rute vem a conhecer Boaz de um modo que lhe parece puramente
acidental, nós já estaremos informados. Por trás dos aparentes acasos dos encontros
comuns do dia-a-dia, Deus expressa o seu cuidado e a sua determinação providencial, a
sua graça da aliança.
Quem era Boaz e por que esta informação é tão significativa para nós? Embora o
significado do seu nome não seja claro (parece ser algo relacionado com "rapidez" ou
"força"1), duas coisas importantes ficamos sabendo a respeito dele. Em primeiro lugar, Boaz
é umparente de Elimeleque, um membro da família de Elimeleque. Em segundo lugar, Boaz
é senhor de muitos bens. Vamos examinar uma expressão de cada vez.
Um parente
A importância crucial do elo familiar de Boaz se tornará mais clara no devido tempo. É
importante, porém, que saibamos deste relacionamento, uma vez que é apenas por
causa deste parentesco com Noemi que Boaz cumpre o papel no qual mais tarde se
encaixa a história. Por "família", o Antigo Testamento naturalmente se refere a uma rede
de relacionamentos muito mais ampla do que o nosso conceito de uma família nuclear
moderna, constituída de mãe, pai e filhos. A família do Antigo Testamento consiste de
todos aqueles que estão unidos sob o mesmo teto. Assim, a "família" de Noé incluía sua
esposa, seus filhos e suas noras.2 A família de Jacó incluía três gerações.3 Os servos e até
mesmo os estrangeiros residentes eram incluídos na família, como as viúvas e os órfãos
que viviam sob a proteção do chefe da casa.4 A família no antigo Israel ficava no centro de
uma série de relacionamentos ligados: com Deus, com Israel (o povo de Deus como um
todo) e com a terra.
A família era o centro do relacionamento principal da aliança do povo com o seu
Deus. Assim, os filhos de Noé com suas esposas (e os filhos, se houvesse) estavam
incluídos na aliança feita com Noé.5 Quando Deus fez sua aliança com Abraão, todo
macho (inclusive "o que tem oito dias") devia ser circuncidado. Até mesmo as criancinhas
eram bem recebidas na membresia da aliança, com base única na sua participação na
família.6 Na noite de Páscoa, um cordeiro foi providenciado "para cada família".7 Toda a
família permaneceu segura no local demarcado pelo sangue do Cordeiro. Deus operava
nas famílias; o seu relacionamento com o seu povo, na aliança, focalizava a vida familiar.
A família era a unidade básica da estrutura social dos israelitas. Era também a
unidade básica e beneficiária do sistema israelita de propriedade da terra, porque a terra,
em última análise, pertencia a Deus e era concedida às famílias como herança.8 Portanto, na
maneira de ver dos israelitas, que se consideravam o povo da aliança de Deus, as áreas
social e económica estavam ligadas à família como seu centro focal. A solidariedade da
família era, portanto, extremamente forte no antigo Israel, e os membros da família num
sentido mais amplo tinham a obrigação de ajudar e proteger uns aos outros quando
houvesse necessidade. Isto se via não apenas na convicção de que o nome da família de um
homem devia ser preservado em sua herança, mas também no costume do "levirato" (que
discutiremos na seção 5), através do qual isto se tomava possível. Conforme veremos, o
papel que Boaz desempenha mais tarde na história deriva do fato de ele ser um parente:
alguém da família de Elimeleque. Como que para garantir que nós não percamos a
importância do ponto, o fato é repetido novamente no versículo 3.
Talvez valha a pena refletir que grande parte do interesse cristão pelo bem-estar da
"vida familiar" nos dias de hoje tem uma ênfase totalmente diferente da solidariedade
familiar do Antigo Testamento. Como J. Gladwin observa com acerto,9 devemos ter o
cuidado de não nos concentrarmos demasiadamente em determinados padrões culturais
da classe média ocidental, crendo serem eles necessariamente um modelo bíblico. Seria
mais importante procurar, dentro de nossos próprios termos e de nossa própria cultura,
descobrir maneiras de refletir a interligação dos relacionamentos familiares com a terra e
com a sociedade que o Israel do Antigo Testamento conhecia em seu contexto em Deus. C. J.
H. Wright escreveu:
Ainda que, naturalmente, não sejamos uma nação teocrática redimida como o era Israel,
certamente podemos desejar produzir uma sociedade que refuta, num certo sentido, o triângulo
dos relacionamentos dentro do qual a família estava estabelecida no Antigo Testamento. Isto
significa uma sociedade na qual as famílias desfrutariam de um grau de independência económica
com base na participação equitativa da riqueza da nação; na qual a família pudesse sentir alguma
relevância social e algum significado dentro da comunidade; na qual cada família tivesse a
oportunidade de ouvir a mensagem da redenção divina de um modo culturalmente relevante e
significativo, tendo a liberdade de reagir. Idealístíco? Talvez. Mas pelo menos é um idealismo
bíblico que de fato parece mais realista do que a crença que busca uma sociedade moralmente
revitalizada, desejando apenas uma maior coesão familiar, sem atacar as forças económicas que
solapam a própria coisa desejada.10
Precisamos afirmar não apenas a família mas também as condições sociais dentro
das quais a coesão familiar se torna economicamente viável e socialmente digna.
Gratidão (2:4)
Eis que Boaz veio de Belém, e disse aos segadores: O Senhor seja convosco. Responderam-lhe eles: O
Senhor te abençoe.
Tem-se dito com frequência que um dos propósitos com que o livro de Rute foi
escrito foi a oposição à rígida impermeabilidade da aplicação das leis contra o
casamento inter-racial que aconteceu no período de Esdras e Neemias. Conforme já
sugerimos, entretanto, é provável que o livro de Rute tenha sido escrito antes do exílio;
de qualquer forma, ele não tem o aspecto de um tratado polémico político. Não
obstante, seja como for, o livro não apresenta sérios empecilhos àqueles que pensam no
povo de Deus, no Antigo Testamento, como a raça israelita para a qual a questão do
casamento inter-racial estava sujeita a sanções legais. Este é um ponto de vista comum. A
própria Rute se considerava "uma estrangeira". Um rápido exame das leis do
Pentateuco que proibiam o casamento entre israelitas e estrangeiros também parece apoiar
o ponto de vista de que o povo de Deus era definido em termos raciais. Assim, em
Deute-ronômio 7:3, o povo de Deus, na iminência de entrar em Canaã, é comparado às
nações que já ocupavam a terra, e recebe esta advertência: Não "contrairás matrimónio
com os filhos dessas nações: não darás tuas filhas a seus filhos, nem tomarás suas filhas
para teus filhos! Isto não parece enfatizar uma preocupação com a pureza racial entre o
povo de Deus? É um princípio que, nos últimos anos, tem sido explorado
consideravelmente na política do "apartheid" da África do Sul. Mesmo assim, é um ponto
de vista erróneo.
Em um artigo sobre "Racismo e a Bíblia", John Austin Baker começa dizendo o
seguinte: "Quando buscamos orientação e sabedoria na Bíblia para os nossos problemas
raciais, a primeira coisa, e a mais importante, que devemos absorver é que a Bíblia não
tem absolutamente nada a nos dizer."32
O que ele quis dizer com esta declaração totalmente sem artifícios é que "raça", nos
termos em que refletimos, é um conceito do qual os escritores da Bíblia não tinham a
mínima ideia. As diferenças, para não dizer antagonismos, do mundo antigo não eram
sobre raça, no nosso sentido étnico ou de diferenças de cor; tinham a ver com cultura,
tradição e religião. O único tipo de discriminação que encontramos no Antigo Testamento é
a cultural e a religiosa, e não a racial. Na verdade, a proibição deuteronômica sobre
casamentos mistos, que citamos pouco atrás, foi feita para justificar a lei: não era uma pre
ocupação com raça, mas com religião. Os casamentos com mulheres estrangeiras foram
proibidos, "pois elas fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros
deuses".33 Além disto, os motivos subjacentes na linha dura assumida por Neemias
depois do exílio foram precisamente os mesmos: o casamento com "mulheres estrangeiras"
seria o mesmo que (como aconteceu com Salomão34) seduzir o povo de Javé à adoração de
outros deuses. Não é uma proibição de casamento inter-racial, mas, sim, uma forte
proibição de casamento inter-religioso. Mas mesmo esta proibição não devia enfatizar a
exclusividade como tal. Esdras e Neemias não desistiram da visão universal de "Deutero-
Isaías".35 Eles, antes, insistiram numa base moral e religiosamente definida sobre a qual
uma tal visão de missão mundial poderia ser realizada.36 O povo de Deus deve ser reconhe
cido por suas diferenças culturais, morais e religiosas. Mas não se trata, de forma
alguma, de uma questão de "raça".
Isto acaba com qualquer tentativa de defender a segregação racial e a discriminação
com base num suposto princípio bíblico de "pureza racial". O primeiro princípio sobre o
qual se deveria basear qualquer discussão cristã da questão racial é que "no que se refere
à raça humana, só existe um único grupo".37 Ser membro do povo da aliança de Javé,
portanto, é uma questão de fé na promessa universal de graça, e não uma questão de
raça, cor ou antecedentes étnicos. E este sempre tem sido o padrão de fé do Antigo
Testamento. Com certa ironia, Baker comenta sobre os "partos, medos e elamitas e os
naturais de Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto e Ásia; da Frigia e da Panfília, do
Egito e das regiões da Líbia nas imediações de Cirene, e romanos que aqui residem, tanto
judeus como prosélitos, cretenses e árabes", mencionados em Atos 2, destacando o fato de
que eles estavam reunidos em uma comunidade universal sob a antiga aliança para prestar
culto em Jerusalém quando o dom pen tecos tal do Espírito Santo foi derramado. O que os
unia inicialmente era sua fé em Javé.
E foi o que ocorreu com Rute e Boaz. Embora Rute se entendesse como uma
"estrangeira", Boaz a recebe como membro da família de Javé, sob cujas asas ela veio buscar
refúgio.
A insistência do evangelho do Novo Testamento, em que a graça de Cristo e a f é dos
cristãos transcendem todas as barreiras raciais e devem ter expressão nos relacionamentos
da comunidade,38 baseia-se na convicção fundamental de que Deus "de um só fez toda
raça humana".39 O Salvador que os cristãos proclamam é um salvador universal que
participa de nossa humanidade comum. O diálogo do próprio Jesus com a mulher de
Samaria, junto ao poço de Sicar,40 destaca esse mesmo ponto. E é esta insistência do Novo
Testamento que é prefigurada na generosa atitude de Boaz, o belemita, para com Rute, a
viúva de Moabe.
Como é que me favoreces e fazes caso de mim? (2:10). Já percebemos que Rute se considerava
dependente da graça. Face a face com Boaz, ela novamente reconhece na solícita
generosidade deste os sinais da graça ("favoreces"). Boaz obviamente já tinha ouvido falar
da volta de Noemi e Rute de Moabe a Belém (versículo 11). Sabia que Rute aceitara a fé
em Javé e ouvira do seu devotado serviço à sogra, o que era provavelmente reforçado pela
notícia da persistência de Rute o dia todo no trabalho (2:7). Ele sabia que ela desistira de
sua família e amigos, de sua religião e da companhia de seus compatriotas para ficar com
Noemi. Boaz sabia que Rute, tal como Abraão,41 deixara a casa de seu pai e a sua parentela
para ir a uma outra terra, não sabendo o que lhe reservava o futuro. E ele sabia que isto era
uma prova da profundeza da fé recém-descoberta de Rute em Javé (2:12), uma fé que se
expressava em amor.
A notícia de que aquela era a moça moabita que veio com Noemi da terra de Moabe não
surpreendeu a Boaz quando ele perguntou ao encarregado dos segadores quem era a nova
jovem que rebuscava no campo (versículo 5). Boaz imediatamente responde com a
instrução de que ela deve ser tratada com respeito (versículo 9). Rute recebe esta
iniciativa como um sinal da graça (versículo 10), outra indicação para ela, talvez, da graciosa
providência do seu novo Deus.
Aqui, porém, um outro aspecto do significado da graça começa a se tornar claro. Já
falamos do relacionamento cheio de graça entre uma pessoa e Deus, que capacita colocar as
mudanças e as oportunidades dos acontecimentos deste mundo dentro de uma nova
perspectiva: ver "o mundo inteiro nas mãos dele". Também mencionamos a graça através
do sofrimento, o qual sustentou Noemi em suas amargas experiências: uma graça que é
suficiente, que é "perfeita" em situações de fraqueza humana. Vemos aqui que a graça
também tem muito a ver com a provisão das necessidades pessoais. Em sua graciosa
providência, além de governar o seu mundo, Deus também o sustenta e provê o
necessário. O salmista adora a Deus pela sua grandeza, não apenas como Criador, mas
também como sustentador e provedor.42 O mundo não é apenas um mundo ordeiro
(como o indica a nossa compreensão da criação e o fato de o empreendimento científico ser
possível); é, como dissemos, um mundo contingente, lembrando-nos a nossa contínua e
constante dependência da graça mantenedora de Deus. A manutenção e aprovisão de
Deus para o seu mundo também são um aspecto de sua graça. E a sua provisão cheia de
graça para conosco geralmente se expressa através da generosidade cheia de graça dos
outros. É Noemi quem, naquele mesmo dia (2:20), relaciona mais claramente a
generosidade de Boaz com a provisão cheia de graça de Deus; mas talvez mesmo antes essa
relação já tivesse começado a despontar na mente de Rute. Boaz empenhou-se em ser gentil:
"Não vás colher a outro campo ...ficarás com as minhas servas ... e irás após elas ... Quando tiveres
sede... bebe do que os servos tiraram" (2:8-9). Certamente suas palavras gentis e a oferta de
pelo menos uma posição temporária em sua casa (ficarás com as minhas servas) foram um
conforto para a viúva de Moabe. Talvez fossem para ela o primeiro sinal do fim do
escuro túnel que ela vinha atravessando desde a morte do seu marido. Foram um sinal
de esperança.
Humildade e responsabilidade
"Deixa-me rebuscar... Então ela, inclinando-se, rosto em terra... não sendo eu nem ainda como uma
das tuas servas (2:7,10,13). Se Boaz percebeu em Rute a devoção de sua lealdade para com
Noemi, não poderia deixar de perceber nela a sua humildade em relação a ele. Embora a lei,
como já vimos, exigisse o cuidado para com os pobres, Rute não insistiu em seus direitos.
Humildemente ela pedira permissão ao servo encarregado: Deixa-me rebuscar. Este
humilde reconhecimento de sua dependência também se vê na sua outra resposta: "Mas o
que estou dizendo ao me chamar tua serva? Eu não sou digna de ser comparada com a
menos importante das tuas servas!"43
Em seu importante comentário sobre direitos humanos (Human Rights: a Study in
Biblical Themes), Christopher Wright começa, não com "direitos", mas com a
"responsabilidade para com Deus", que ele considera como a característica essencial do
que significa ser humano.
Não podemos escapar à responsabilidade, pois isto não está em nosso poder como
criaturas. Mesmo tentar negá-la é reconhecer sua realidade. Assim Caim, até mesmo ao
tentar isentar-se da responsabilidade para com o seu irmão, pelo simples fato de responder
a Deus, admite a sua responsabilidade para com o seu Criador. E inseparável dessa
responsabilidade primeira está o fato de que Deus nos considera responsáveis pelo nosso
próximo. Considerando que não podemos escapar ao fato intrínseco de nossa constituição
humana, que é a responsabilidade para com Deus, tampouco podemos fugir ao seu
correlativo divinamente imposto, a nossa obrigação diante de Deus pêlos outros seres
humanos.44
As características que mais se destacam em Boaz, um homem de fé, e em Rute, uma
mulher de fé, aqui neste parágrafo, são as suas respectivas recusas de se apegarem aos
seus direitos (Boaz como proprietário, Rute como rebuscadora). Temos, antes, evidências
de sua humilde disposição de expressar a fé em Deus cuidando (Boaz para com Rute), e de
gratidão e humildade aceitando o cuidado (Rute para com Boaz). Uma fé viva, às vezes, é
demonstrada no ato de dar, outras vezes, na disposição de aceitar com gratidão.
Como já notamos antes, nunca devemos formular a nossa compreensão da
providência soberana de Deus de tal forma a diluir a nossa responsabilidade humana. A
graça de Deus não elimina a nossa liberdade; antes, a graça cria a liberdade. E a primeira
premissa de toda moralidade é que a pessoa moral é responsável. Na Bíblia, a
responsabilidade fica atribuída às pessoas feitas à imagem de Deus, e contém o senso de
"resposta" ao Criador, que nos considera responsáveis. Nossa compreensão cristã da
queda humana, na qual o pecado desordenou todos os aspectos de nossa personalidade e
relacionamentos, significa que uma responsabilidade humana totalmente restaurada
deve estar ligada à nossa total restauração como pessoas, à medida que nos tornamos
mais e mais semelhantes a Cristo. Assim, como em todos os aspectos da vida cristã, há
uma ambiguidade no exercício de nossa responsabilidade entre o "agora" do hoje e o "ainda
não" do futuro dia do Senhor. A responsabilidade é, portanto, uma admissão e um alvo.
Devemos ficar atentos aos efeitos debilitantes dos pecados de outras pessoas, e dos
nossos próprios, no exercício de nossa responsabilidade, mas não temos a liberdade de
anular a nossa responsabilidade moral por causa de qualquer tipo de determinismo.
Toda a nossa vida está sob o que
Barth certa vez chamou de "mandato global da liberdade responsável".'15 Ser
responsável é viver como se prestássemos conta a Deus e cuidássemos dos outros, dentro dos
limites da liberdade que temos neste mundo.
E existem limites. O fato de ser um mundo criado, estabelece limites à nossa liberdade.
Somos livres como criaturas de Deus; portanto tal liberdade não é arbitrária. O fato de nossa
constituição física, genética e psicológica coloca limites à nossa liberdade; somos o que somos, em
certo sentido, por causa do que foram os nossos pais. Há limites estabelecidos pelas
personalidades e necessidades dos outros: a lei do amor nos obriga a não exercer a nossa
liberdade às custas da humanidade de qualquer outra pessoa. Somos obrigados, antes, a
exercê-la para o maior bem dos outros. A existência do pecado também coloca limites à
nossa liberdade, de tal forma que nem sempre somos capazes de fazer o que sabemos ser o
bem, mesmo quando desejamos fazê-lo. E há limites morais à nossa liberdade, que indicam que,
às vezes, temos que dizer "não devemos" quando a tecnologia diz "podemos". Estes limites
precisam ser enfatizados em nosso contexto de devastação ecológica, na licenciosidade sexual, na
proliferação das armas nucleares e no congelamento dos embriões humanos.
Responsabilidade é aprender a "amar dentro dos limites"46, é um diálogo responsável
com as restrições que nos são impostas, sempre abertos à direção e à graça de Deus, sempre
abertos às reivindicações éticas prioritárias das necessidades dos outros. E isto que a ex
periência da fé em Deus significava para Boaz e Rute. Podemos aprender com eles a
importância de se viver dessa forma.
O Senhor da Aliança
O Senhor retribua o teu feito, c seja cumprida a tua recompensa do Senhor Deus de
Israel, sob cujas asas vieste buscar refúgio (2:12-13). Javé, o Senhor, como já observamos
anteriormente, é o nome do Deus de Israel na aliança. De acordo com Êxodo 6:2s., o
significado deste nome foi esclarecido a Moisés47 quando Deus prometeu, lembrando
sua aliança com Abraão, Isaque e Jacó, libertar e resgatar "com braço estendido" o seu
povo, então escravo no Egito. Foi Javé, o Senhor, quem, de acordo com Êxodo 19:3ss.,
chamou Moisés e estabeleceu com ele a sua aliança no Sinai, uma aliança na qual
percebemos pela primeira vez a ideia do "povo escolhido". Foi sob o nome Javé que,
segundo Êxodo 20:lss., Deus enunciou os Dez Mandamentos, essa destilação
fundamental de princípios e preceitos que descrevem o caráter de Deus e também o
padrão de vida apropriado a um povo que fez aliança com Deus, que mais do que
qualquer outra coisa estabeleceu os limites morais para o povo de Deus, e que, em
maior ou menor extensão, se reflete em todas as outras leis do Pentateuco, no Antigo
Testamento, como também no Sermão do Monte e nas cartas de Paulo, no Novo
Testamento.
A aliança do Sinai foi modelada segundo os tratados de suserania
comparativamente comuns no antigo Oriente Médio. Quando os reis dos grandes
impérios (o Egito, os hititãs, a Assíria) conquistavam um reino menor, eles podiam
permitir que o rei subjugado retivesse o governo do seu reino, contanto que fizesse
um juramento de vassalagem ao conquistador.48 Através desse tratado de suserania, o
subjugado jurava vassalagem ao "grande rei" conquistador. Esta terminologia passou
para o registro israelita no seu relacionamento pactuai com Deus. Contrastando a
aliança do Sinai com a aliança abraâmica que a precedera e a aliança davídica que se
seguiu a ela, G. J. Wenham escreve:
A aliança do Sinai não teve como modelo um privilégio real, mas sim um tratado de
vassalagem, uma forma legal em que as obrigações do vassalo são muito mais proeminentes.
Mas mesmo então as leis são estabelecidas em um contexto de graciosa iniciativa divina. A
obediência à lei não é fonte de bênção, mas aumenta a bênção já concedida.49
Há, portanto, um padrão de escolha divina e iniciativa da graça, de obediente reação
humana em adoração e serviço, que, por sua vez, leva a um gozo maior de outras bênçãos
divinas.
Voltando agora à oração de Boaz em favor de Rute (2:12), podemos ver uma clara evidência
da consciência que este tinha de ser membro dessa família pactuai do Deus de Israel. O seu
conhecimento de Deus como Javé, o Senhor; a sua descrição da graça de Javé em termos de "asas
de refúgio"; seu reconhecimento, então, da reação humilde e obediente de Rute para com a
graça, em sua devoção a Noemi; e, finalmente, sua expec tativa de que o Senhor a abençoaria
plenamente, tudo indica o padrão do relacionamento de Deus com o seu povo dentro da aliança.
"Nestas palavras", comentam Keil e Delitzsch sobre este versículo, "vemos a piedade genuína
de um verdadeiro israelita." "Retribuição" e "recompensa"
A devoção cristã sempre teve a devida cautela de não fazer o bem "por amor a
uma recompensa". Mas as palavras que Boaz usa aqui são "retribuição" e
"recompensa". Essa oração de Boaz pedindo a Deus um "pagamento" para Rute por
seu devotado serviço deve ser entendida no contexto de sua fé no Senhor da aliança.
A palavra "retribuição" é usada com diversas e diferentes nuances no Antigo
Testamento. Está relacionada com a palavra "paz". Pode ter sentido de "pagamento",
como quando Eliseu diz à mulher de um dos filhos dos profetas: "Vai, vende o azeite,
e paga a tua dívida."50 Pode ter o sentido de "reparação". Se umboi ou umjumento
caísse em uma cova que fora aberta por um homem e ficara sem cobertura, a lei do
Livro da aliança exigia que ele fizesse a "reparação".51 Semelhantemente, "quem matar
um animal, o restituirá: igual por igual".52 A mesma palavra é, às vezes, usada
também para "restituição" ("Restituir-vos-ei os anos que foram consumidos pelo
gafanhoto migrador"53) e para "fazer paz".54 A palavra "recompensa", entretanto, é
uma palavra pouco usada no Antigo Testamento, aparecendo outra vez apenas em
Génesis,55 sempre no sentido de "salário".
A oração de Boaz é, portanto, que Deus "recompense convenientemente" a Rute
por todo o seu sofrimento e altruísmo para com Noemi, que ela seja "suficientemente
paga" e "restaurada a uma condição de inteireza e paz" novamente.
Mas por que deveríamos nos preocupar com "pagamentos" e "recompensas"?
Não parece que, deixando de lado a piedade, passamos a um prudente interesse pelo
que poderíamos receber por causa dela? Será que a fé de Boaz aponta para uma crença
que diz ser preciso ganhar o favor de Deus através de serviço sacrificial? O Novo
Testamento não destaca principalmente que somos justificados pela graça mediante a
fé, e não pelas obras?56 Mas então nos lembramos de que o Novo Testamento também
parece ter muito a dizer sobre recompensas. Jesus fala de um "grande galardão nos
céus" para aqueles que são perseguidos.57 Ele ensina que o Pai que vê seus filhos dando
esmolas, orando e jejuando em segredo, irá recompensá-los.58 Nem um copo de água
fresca ficará sem recompensa; e Deus é chamado de "galardoador" daqueles que o
buscam, e aquele que recompensa seus profetas e santos.5'' E agora? Talvez seja
conveniente fazer aqui uma distinção entre o que se costuma chamar de recompensas
"arbitrárias" e aquelas que são "verdadeiras" recompensas. As recompensas
arbitrárias não têm qualquer relação direta com o comportamento que as causou.
Não há necessariamente nada de errado em se ser recompensado arbitrariamente
(como receber dinheiro por uma pintura a óleo que você criou). Seria um erro, 110
entanto, buscar a recompensa arbitrária só por amor a ela. É este o defeito dos
hipócritas que tocam suas trombetas e oram nas esquinas e desfiguram seus rostos
quando jejuam "para serem vistos pêlos homens".
As "verdadeiras" recompensas, pelo contrário, são consequências diretas e
integralmente relacionadas com o comportamento (como a satisfação de ser capaz de
pintar depois de muita prática). Assim, a verdadeira recompensa de se dar esmolas,
orar e jejuar é o relacionamento com Deus, o que essas atividades pretendem
expressar. Portanto, quando Jesus insiste em que as boas obras deveriam ser feitas
sem interesse em recompensa,60 ele também dá a entender que a "verdadeira"
recompensa pela bondade deve ser deixada com Deus. Um precioso
relacionamento com Deus é a "devida recompensa" da obediência amorosa em
resposta à sua iniciativa de graça e amor. A Edição Revista e Corrigida capta o
sentido, se não a tradução exata, de Génesis 15:1: há algo do próprio Deus experimen
tado em todos os seus benefícios.62 A sua palavra a Abraão foi: "Não temas ... eu sou o
teu escudo, o teu grandíssimo galardão." Calvino, comentando este versículo, diz
que a palavra "galardão" tem a força de "herança" ou "felicidade". Ele insiste que
deveríamos gravar profundamente em nossas mentes que só em Deus temos a
mais elevada e completa perfeição de todas as coisas, e que "seremos
verdadeiramente felizes quando Deus nos for propício; pois ele não somente
derrama sobre nós a abundância de sua bondade, mas oferece-se ele mesmo a nós
para que o desfrutemos."63
Qualquer pessoa que esteja completamente convencida de que a sua vida
está protegida pela mão de Deus, e de que ela nunca pode ser miserável enquanto
Deus for gracioso para com ela; e que, conseqüentemente, recorra a esta certeza
em todos os seus cuidados e problemas, encontrará o melhor de todos os remédios
para todos os males. Não que os fiéis possam ficar inteiramente livres de temores e
cuidados quando sacudidos por temporais de lutas e misérias, mas porque a
tempestade é acalmada no seu próprio peito; e, assim, sendo a defesa de Deus
maior do que todo perigo, a fé triunfa sobre o medo.64
A oração de Boaz em favor de Rute fala de sua experiência de um
relacionamento rico com Deus como a "devida recompensa" por sua lealdade para com
Noemi, resultante, segundo ela crê, da nova fé no Deus da aliança de Israel.
As asas de refúgio
A oração de Boaz termina com esta frase, que de diversas maneiras focaliza o
tema de todo o livro. Ela inclui este gracioso quadro de Deus como uma águia que
estende as asas sobre os seus filhotes. O hino de Moisés registrado em Deuteronômio
32:lls. usa a mesma imagem: "Como a águia desperta a sua ninhada, e voeja sobre os
seus filhotes, estende as suas asas, e, tomando-os, os leva sobre elas, assim só o
Senhor o guiou." Figuras semelhantes encontramos nos salmos. As "asas" de Deus
descrevem um lugar de segurança ("Esconde-me, à sombra das tuas asas, dos
perversos"65) ou um lugar de refrigério ("Como é preciosa, ó Deus, a tua benignidade!
por isso os filhos dos homens se acolhem à sombra das tuas asas. Fartam-se da
abundância da tua casa, e na torrente das tuas delícias lhes dás de beber" 66). Em outras
passagens a figura é de um lugar de quietude na tempestade ("Tem misericórdia de
mim, ó Deus, tem misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia; à sombra das
tuas asas me abrigo, até que passem as calamidades"67). Algumas vezes descreve um
lugar de auxílio e descanso ("Porque tu me tens sido auxílio; à sombra das tuas asas eu
canto jubiloso"68). Outras vezes o pensamento é de esperança quando as circunstâncias
amedrontam ("O que habita no esconderijo do Altíssimo, e descansa à sombra do
Onipotente, diz ao Senhor: Meu refúgio e meu baluarte, Deus meu, em quem confio.
Pois ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa. Cobrir-te-á com as
suas penas, sob suas asas estarás seguro: a sua verdade é pavês e escudo. Não te
assustarás ,.."69). Segurança, refrigério, quietude, auxílio, descanso, esperança: estas
são as palavras associadas com as "asas" de Deus.
Há no ser humano um anseio básico por Deus, captado na figura do filho
pródigo longe do lar, e na afirmação de Agostinho, de que nossos corações não
encontram paz até que encontrem o seu repouso em Deus,70 e na "noite, no escuro
e no medo" citados por alguns dos nossos escritores contemporâneos. Como satisfaz
à pessoa "alienada", aquela que se sente "sozinha na insensível imensidão do
universo",71 descobrir que, longe de estar "em pedaços" a antiga aliança, Deus está
presente: Deus se importa, Deus governa, Deus provê.
Ó Senhor nosso Deus, que o abrigo de tuas asas dê esperança. Protege-nos e
preserva-nos. Tu serás o Sustento que nos dá o apoio desde a meninice até quando as
nossa cabeças ficarem grisalhas. Quando tu és a nossa força, nós somos fortes, mas
quando a nossa força é a nossa própria, somos fracos. Em ti habita o nosso bem para
sempre, e quando nos desviamos de ti, voltamo-nos para o mal. Faze que finalmente
voltemos para o lar, ó Senhor, para que não nos percamos, pois em ti habita o nosso bem
que não tem mácula, pois és tu mesmo. Não tememos que não haja lar para retornar.
Nós nos afastamos dele; mas o nosso lar é a tua eternidade e ela não desmoronou
porque nós nos afastamos.73
Que Rute encontre no Deus de Israel tal provisão para as suas ' necessidades!
Sua porção foi a de uma viúva sozinha em terra estranha, e parece que ela agora se
encontra em contínuo perigo de ser molestada (2:22). Ela passou fome, mudanças,
ansiedade e sem dúvida ficou emocionalmente esgotada. Como precisa de um lugar de
segurança e refrigério! Ela anseia por encontrar quietude, repouso e uma nova
esperança. A oração de Boaz é que ela encontre tudo isto através da sua confiança em
Javé.
Como nos revela o restante da história, descobrimos que aquele que fez esta
oração é de fato aquele através de quem ela será atendida! É através do próprio Boaz
que Rute recebe segurança, refrigério e alimento, encontra um lugar de repouso na
alegria do casamento e a esperança de um novo lar e um novo nome familiar. Nós, na
qualidade de povo da aliança de Deus, o Israel que pertence a Cristo, podemos fazer
acertadamente a mesma oração para nós e para os outros. Podemos experimentar o
refúgio de suas asas e ao mesmo tempo estar prontos para ser o meio de outros
passarem pela mesma experiência. Como Helmut Thielicke expõe no final do seu
grande sermão sobre o filho pródigo e o pai que o aguarda. "Há para todos nós uma
volta ao lar, porque existe um lar."74
2:14-23
4. Um lugar na família
Na fé do povo de Deus não existe lugar para legalismo. Um apego frio à letra
restrita cia lei expulsa a lei da aliança da graça, em cujo âmago se encontra um
relacionamento de generoso amor, o qual a lei pretende salvaguardar e, através do
exercício da obediência, aprofundar e enriquecer. Estes versículos apontam não
meramente para a suficiente provisão das necessidades de Rute, mas, como os cestos
que sobraram depois que 5.000 foram alimentados,1 para uma generosidade que lhe
deu muito mais que ela pediu. Boaz lhe oferece grãos frescos tostados, os quais ela
comeu, e se fartou, e ainda lhe sobejou tanto que ela pôde oferecer a Noemi quando voltou
para casa (2:18). Boaz disse que ela podia rebuscar até entre as gavelas, quando a lei só
mencionava as margens do campo. Boaz até disse aos seus servos que deixassem
"também dos molhos algumas espigas" ("de propósito", como diz certa versão) para
que sobrasse mais para Rute colher. Já comentamos antes2 a generosa atitude de
Boaz, que vai além das exigências restritas da lei.
Mas é preciso lembrar que na religião israelita a lei nunca foi um código externo
que exigisse mera subserviência legalista. A lei deve ser entendida dentro do contexto
da aliança, dentro da ordem total da vida do povo sob o governo do Deus da aliança.
Foi a separação da lei como uma categoria distinta do relacionamento da aliança,
particularmente no período intertestamentário, que levou ao desenvolvimento da
abordagem legalista do Antigo Testamento, vista no ensino farisaico condenado por
Jesus. Não, a lei, certamente no tempo do Deute-ronômio, senão antes, era parte
integrante da "esfera de operação da vida espiritual e moral, onde a compulsão
externa devia ser substituída pela decisão moral pessoal".3 No material
deuteronômico em particular, o mandamento mais importante é o de amar a Deus, e
"cada uma das regras só deve ser entendida corretamente como sendo a vontade de
Deus se ela for compreendida corno a expressão detalhada de uma injunção total de
amor, através da qual Deus reivindica alguém como propriedade sua, não apenas em
uma ou outra obrigação específica, mas na integridade pessoal do ser humano."4
"Estas leis, que tão facilmente podem ser aceitas em um sentido legalista como
definições casuísticas individuais sem qualquer relação umas com as outras, devem ser
entendidas como a aplicação e prática, em situações concretas particulares, do mais
importante mandamento, o do amor."5
Portanto, o que vemos em Boaz é uma indicação de sua generosidade cheia de
graça, a qual, indo além da letra da lei no que se refere à respigadura, demonstrou o
interesse espiritual por cuja causa a lei foi estruturada, isto é, que o amor a Deus se
expressa no cuidado e no amor aos pobres. Ao agir assim, Boaz compartilha algo do
caráter do Deus que nos foi revelado mais plenamente em Cristo, o qual, como ensina
o apóstolo, "é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos,
ou pensamos."6
Após trabalhar com afinco o dia inteiro, Rute debulha a cevada e leva para casa
um enorme efa (cerca de 22 litros; era o nome de um recipiente suficientemente
grande para caber dentro dele uma pessoa),7 para a evidente surpresa e alegria de sua
sogra. Noemi ora, abençoando o benfeitor de Rute, antes mesmo de saber quem ele é,
e quando Rute lhe conta que o seu nome é Boaz, Noemi explode em uma oração de
ação de graças e bênçãos: Bendito seja ele do Senhor, que ainda não tem deixado a sua benevolência
nem para com os vivos nem para com os mortos. A razão exata por que ela ficou tão exultante e
por que ela mencionou os "mortos" (de fato uma referência ao seu falecido marido
Elimeleque) vai se tomar mais clara dentro em breve.
Mas, antes, vamos parar na palavra aqui traduzida como "benevolência", e tentar
explicar um pouco mais o significado da "benevolência" do Senhor à qual Noemi se refere.
Esta palavra, hesed (já usada anteriormente por Noemi com referência a Deus, em sua
oração em favor de Órfã e Rute, e em 3:10, por Boaz, desta vez em favor de Rute) é uma das
palavras características do relacionamento da aliança. Quando lemos sobre alianças de
compromisso de amor entre pessoas (como entre Davi e Jônatas), "o tipo de
comportamento que nor-' malmente se espera das pessoas implicadas" é o descrito pela
palavra hesed? É o calor do amor leal' combinado com "camaradagem fraternal" e com um
senso de fidelidade jurada e digna de confiança. É a palavra usada frequentemente para
descrever a fidelidade e o amor que Deus prometeu ao seu povo ao fazer a aliança.10 Como
Eichrodt ilustra, o poderoso remidor do Egito e o doador da lei no Sinai é o amoroso
protetor que continua fiel às suas promessas. Este Deus ensina ao seu povo a sua
lealdade e amor,11 ajudando-o em suas peregrinações pelo deserto e perdoando os seus
pecados.12 Mesmo quando Deus castiga, ele o faz a fim de restaurar um relacionamento
interrompido.13
"O caráter imutável da amorosa disposição divina" é belamente refletido na
descrição de uma notável lealdade humana em termos da constância amorosa que Javé
deseja e demonstra. Assim Davi deseja demonstrar a Jônatas "a bondade do Senhor" e,
num período posterior de sua vida, pergunta: "não há ainda alguém da casa de Saul para
que use eu da bondade de Deus para com ele?"14
As frequentes imagens de Deus no Antigo Testamento como sendo o Pai-Pastor do
seu povo também expressam algo do significado especial da mentalidade israelita do
hesed de Javé. Ele é "Pai", primeiramente porque ele é o Criador, o que lhe dá o direito
à adoração do seu povo; mas a sua paternidade se expressa em compaixão e ele até é
conhecido como o Pai dos órfãos.15 Ele é o Pastor que dá ao povo de sua aliança o
sentimento de forte segurança em ser o "povo do seu pasto, e ovelhas de sua mão".16
O caráter de hesed talvez seja mais claramente percebido pela disposição de Javé
(que o seu povo só veio a apreciar pouco a pouco) de permitir que o seu amor continue a
fluir misericordiosamente rumo ao seu povo, mesmo quando o pecado deste ameaça
interromper e até mesmo destruir o relacionamento da aliança. Isto introduz no conceito
do amor leal também a ideia de uma misericórdia não merecida. Em nenhuma outra
passagem isto se percebe tão claramente como na história da vida de Oséias: o "amor
apesar de",17 que estabelece um paralelo entre o contínuo amor do profeta pela mulher
adúltera e o amor fiel e misericordioso de Javé por Israel, apesar de os israelitas terem se
voltado para outros deuses. Como Eichrodt destaca mais uma vez, isto contribui para um
aprofundamento da imagem de pai aplicada a Deus. Ouçam como Oséias se expressou:
Mais tarde, Jeremias (diz Eichrodt novamente) vai ainda mais longe:
Ele vê o relacionamento de pai como uma imagem de amor que não morre, o tipo de
amor que toma o filho perdido novamente em seus braços com emoção ardente, sempre
que esse filho retorna, penitente; e isso apesar do fato de que nem mesmo o próprio amor
pode apresentar um motivo para o triunfo dessa compaixão sobre a mais justificável
indignação, mas fica consciente de seu próprio comportamento apenas como um
imperativo interior incompreensível.19
Aqui ele se refere a Jeremias 31:20 ("Não é Efraim meu precioso filho? Filho das
minhas delícias? pois tantas vezes quantas falo contra ele, tantas vezes ternamente me
lembro dele; comove-se por ele o meu coração, deveras me compadecerei dele, diz o
Senhor"). O tom destas palavras nos faz pensar na parábola de Jesus registrada em Lucas
15, do pai à espera do filho pródigo.
O hesed que faz parte da "lógica" de um relacionamento de aliança transforma-se
agora em um rico dom da graça, dado a pessoas que não têm direito a ela. "A
qualidade miraculosa deste novo amor reside não apenas na condescendência do Deus
exaltado, mas também, muito mais interiormente, no mistério de uma vontade divina
que busca comunhão com o ser humano."20
Este é o cará ter do Deus que Noemi conhece como Javé e ao qual ela se confiou.
Talvez ela não tivesse a compreensão perfeita que nós temos e que é tão
eloquentemente exposta nos profetas. Mas temos aqui grandes indicações de que, até
mesmo em seu entendimento talvez mais limitado, Deus se revelou a ela como o Deus
cujo dom da graça é dado mesmo àqueles que não têm direito a isso. Este hesed, esta
misericordiosa e graciosa bondade, ela percebe na graciosa generosidade de Boaz para
com Rute. Toda a atitude mental de Noemi fora de observar a mão do Senhor nas
circunstâncias de sua própria vida. Anteriormente ela se apegara à graça divina no
meio do sofrimento provocado pela morte. Agora ela experimenta a graça de sua
provisão através da generosidade de um rico fazendeiro. Nós também podemos
aprender a ver a mão de um Deus cheio de graça em todas as circunstâncias da nossa
vida.
Agentes da graça
Convém agora destacar o fato de que Noemi percebe a graciosa mão de Deus
agindo através de ações humanas. Como já vimos arites, também aqui não há
qualquer indicação de que a graça e a bondade de Deus excluam a agência humana.
Pelo contrário, é muitas vezes pela agência humana (neste caso, Boaz) que recebemos
a bondade cheia da graça de Deus.
Encontramos exatamente o mesmo padrão em um dos parágrafos do apóstolo
Paulo sobre a graça, em sua segunda carta aos coríntios. Ele diz a seus leitores que
deseja que conheçam a graça de Deus, que ele expõe como "a graça de nosso Senhor
Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que pela sua pobreza vos
tornásseis ricos".21 Mas nesta passagem ele está falando sobre dinheiro! E ele prossegue
ensinando aos coríntios a igualdade social.22 A graça de Deus neste contexto se vê no
generoso comportamento das igrejas da Macedônia, "porque no meio de muita prova
de tribulação, manifestaram abundância de alegria, e a profunda pobreza deles
superabun-dou em grande riqueza da sua generosidade. Porque eles, testemunho eu, na
medida de suas posses e mesmo acima delas, se mostraram voluntários, pedindo-nos,
com muitos rogos, a graça de participarem da assistência aos santos".23 Então ele insiste
que os coríntios também abundem nesta graça: "Porque não é para que os outros
tenham alívio, e vós, sobrecarga; mas para que haja igualdade."24
A fé na graça de Deus nos obriga, diria Paulo, a trabalhar muito servindo uns
aos outros. E este serviço incluiria a preocupação pela igualdade na distribuição dos
recursos e, portanto, pelas estruturas sociais e pelas prioridades que talvez impeçam
uma justa distribuição da rica abundância da terra de Deus. Não há sentido, no livro de
Rute, em que os que estão no poder usem os menos privilegiados como peças de jogo
para benefício pessoal. Pelo contrário, a impressão é de que a fé na provisão graciosa de
Deus faz par com uma preocupação de expressar essa graça nos relacionamentos
pessoais com os outros e, de modo particular, no cuidado para com os menos
afortunados. Talvez o apóstolo Paulo insistiria conosco para que abríssemos o "Relatório
Brandt", que versa sobre a ajuda do Norte rico para o Sul pobre, ao lado do livro de
Rute, ao falarmos sobre a generosa provisão de Deus.
Karl Barth sugeriu certa vez que o significado interior e o propósito de nossa
criação como seres humanos à imagem divina foi expressar a "fidelidade da aliança" em
nossos relacionamentos uns para com os outros, e que o significado interior e o
propósito de toda a ordem criada foi de constituir a estrutura externa para a
possibilidade de manter essa aliança e a sua condição. Nossas vidas e nossos relacio
namentos existem para refletir a vida de Deus e os relacionamentos de Deus. A questão
ética para os cristãos sempre se destaca na seguinte questão: como, nesta situação e
neste contexto, eu vou (nós vamos) dar expressão ao caráter de Deus e à sua aliança da
graça?
O PARENTE REMIDOR
5. O levir e o goel
Vamos agora nos afastar um pouco do texto de Rute para examinar dois aspectos
das leis e da vida do antigo Israel que nos são um tanto estranhos: o levir e o goel.
O primeiro, o levir (uma palavra latina que traduz o hebraico "cunhado"), refere-
se aos deveres de família mencionados em Rute 3:13, que diz: "se ele te quiser resgatar".
O levirato regulava os costumes referentes ao casamento quando o homem da casa
morria.
O segundo, o goel, é um parente achegado que agia como remidor de pessoas ou
propriedades. O verbo g'l significa "comprar de volta" ou "remir", mas,
fundamentalmente, seu significado é "proteger".1
Estas duas instituições familiares estão ligadas entre si em diversos pontos da
narrativa de Rute e, antes de estudarmos mais detalhada-mente Rute 3 e 4, precisamos
esclarecer bem o que estes costumes envolviam. Vamos examiná-los um de cada vez.
O levir
O levirato se refere a uma antiga instituição matrimonial que envolvia um cunhado.
Se um homem morria sem deixar filhos, o "nome" do morto era perpetuado através do
casamento da viúva com outro homem (o irmão do morto, por exemplo) e através dos
filhos que ela tivesse com ele "para" o morto. Muito papel e tinta já foi gasto pêlos
estudiosos sobre o propósito e a prática do levirato no antigo Oriente Próximo, e este não é
lugar para resumir toda esta discussão. Basta dizer que uma prática deste tipo foi
comprovada em diversas formas nas culturas assíria, hitita e ugarítica,2 como também no
antigo Israel. Na verdade, só encontramos três passagens no Antigo Testamento nas
quais se menciona a prática do levirato, e as aparentes dis-crepâncias entre elas deram
lugar a discussões que parecem não ter fim.3 Uma dessas passagens é o livro de Rute, e
as outras duas, Génesis 38 e Deuteronômio 25:5-10, são ambas mencionadas nesse livro.
Vamos começar com a história de Judá e Tamar, em Génesis 38. Judá estava separado
dos seus irmãos (versículo 1) e casado com uma mulher cananéia. Eles tinham três
filhos, o primeiro dos quais, Er, também se casou com uma cananéia. O seu nome era
Tamar. Er morreu sem deixar filhos (versículo 7). Assim tornou-se necessário o costume
familiar chamado levirato. Judá diz ao segundo filho, Onã: "Possui a mulher de teu irmão,
cumpre o levirato e suscita descendência a teu irmão" (versículo 8). A ideia era que o filho
fosse "para" Er, o irmão mais velho falecido. Isto perpetuaria o nome de Er e provavel
mente também preservaria a sua propriedade.4 Um filho nascido desta segunda união
seria o herdeiro do irmão mais velho. E a viúva (também um "capital ativo" da família)
ficaria dentro da família, não retornando à casa do seu pai como uma viúva deveria fazer
se não se casasse outra vez. Onã, entretanto, não estava disposto a criar filhos para o seu
irmão. Ele apenas finge cumprir o seu dever fraternal e, por causa de sua falta de
responsabilidade e falta de caridade, incorre no desagrado de Deus. Ele também morre
(versículo 10). De acordo com o costume do levirato, agora Judá é obrigado a dar a
Tamar o seu terceiro filho. Mas, tendo visto o que aconteceu aos seus dois outros filhos,
através do seu relacionamento com Tamar, não quer arriscar-se a perder também o único
filho que lhe resta (versículo ll).Então ele diz a Tamar que terá de esperar até que Sela fique
mais velho (mais tarde, torna-se claro pela história que Judá nunca pretendeu que Sela
fosse o levir de Tamar: versículo 26), e aconselha-a a ir morar temporariamente "em casa
de seu pai".
Tamar, entretanto, percebendo que Judá desejava que ela se ausentasse
definitivamente de sua casa, toma agora a iniciativa, disfarçando-se de prostituta, e fica
grávida do próprio Judá. Está claro que ela acreditava que o levirato podia ser cumprido
tanto pelo sogro como pelo genro. Como uma devota cananéia de Astarote, a ação de
Tamar se entende em termos de uma prostituição cultual sagrada, e não simplesmente
sórdida prostituição. Tais costumes cananeus haviam sido proibidos ao povo de Javé.5
Tamar, entretanto, é elogiada por Judá (versículo 26), e implicitamente pelo narrador.
Apesar da culpa que ela atraiu para si e Judá através do seu ato, o que domina a
narrativa é o importante senso de dever para com o nome do irmão falecido. Como era
importante que o nome do falecido não desaparecesse sem uma herança! Como era
importante que ele tivesse um filho!
Quando nos voltamos para Deuteronômio 25:5-10, a lei parece refletir, de um
certo modo, uma ideia mais restrita da prática do levirato do que a exemplificada em
Génesis 38. A lei diz o seguinte:
Se irmãos morarem juntos, e um deles morrer, sem filhos, então a mulher do que
morreu não se casará com outro estranho, fora da família; seu cunhado a tomará e a
receberá por mulher, e exercerá para com ela a obrigação de cunhado. O primogénito que
ela lhe der será sucessor do nome do seu irmão falecido, para que o nome deste não se
apague em Israel. A seguir vem a provisão para o caso de o irmão não desejar cumprir o
seu dever e para o tratamento humilhante que deve receber neste caso:
Porém se o homem não quiser tomar sua cunhada, subirá esta à porta, aos
anciãos, e dirá: Meu cunhado recusa suscitar a seu irmão nome em Israel; não quer
exercer para comigo a obrigação de cunhado. Então os anciãos da sua cidade devem
chamá-lo e falar-lhe; e, se ele persistir, e disser: Não quero toma-la; então sua cunhada
se chegará a ele na presença dos anciãos, e lhe descalçará a sandália do pé, e lhe cuspirá
no rosto, e protestará, e dirá: Assim se fará ao homem que não quer edificar a casa de
seu irmão; e o nome de sua casa se chamará em Israel: A casa do descalçado.
Alguns mestres acreditam6que esta era a revisão israelita de uma lei cananéia mais
antiga. Seja qual for a data do Deuteronômio, muitos estão convencidos de que a matéria
da lei contida nesta seção vem de um período anterior7 e, assim, reflete um costume muito
antigo. A lei, o que acontece com algumas outras do Deuteronômio, tem um estilo
casuístico, como o do Antigo Livro da Aliança, em Êxodo 20:18-23. Os pontos principais aqui
em Deuteronômio 25 são quatro.
Primeiro, a lei se refere a "irmãos que morarem juntos". Isto pressupõe um arranjo
de "grande família" e, segundo von Rad,8 dá a impressão de que a lei do levirato era
considerada válida apenas nesse contexto. Talvez o Deuteronômio preveja uma situação
na qual o chefe da "grande família" já tenha morrido (ao contrário de Judá, em Génesis 38).
Ou talvez refuta um endurecimento da lei à medida que se desenvolvia.
Em segundo lugar, a lei deuteronômica enfatiza a obrigação de um irmão "tomar... a
mulher do que morreu" (versículos 5,7), exercendo para com ela a responsabilidade de
irmão do marido. Não estamos tão interessados nos direitos do irmão, mas sim na
obrigação familiar de continuar com o nome do falecido.
Em terceiro lugar, esta passagem de Deuteronômio indica que a obrigação não era
absoluta (versículos 7-9a). Havia aqui, em contraste com o costume ilustrado em Génesis 38,
um elemento de escolha.9Há, contudo, um senso explícito de vergonha na recusa do
irmão, e a cerimónia do versículo 9 tinha a intenção de sujeitá-lo à humilhação pública.
Finalmente, o propósito era um meio de perpetuar a vida e o nome do falecido:
"para que o nome deste não se apague em Israel" e "edificar a casa do seu irmão"
(versículos 6-9). Fatores económicos, tais como manter inteira a propriedade da família,
tinham talvez alguma importância; mas é o desejo de ter filhos, especialmente filhos
homens, para manter vivos o nome e a herança do pai, que eram crucialmente
importantes. Leggett descreve isto como um "dever de amor",10 e cita Pedersen dizendo:
Se um homem, depois de contratar casamento, morresse sem deixar filhos, então
ele morria totalmente. É este apagar da vida que tinha de ser evitado. Seu parente mais
próximo, o irmão, tinha de realizar este ato de amor a fim de protegê-lo da exterminação.
A esposa, cujo objetivo na vida era dar-lhe um filho no qual sua vida fosse ressuscitada,
devia cumprir o dever para com ele.11
Exatamente por que o costume do levirato desenvolveu-se em Israel, ou nas
culturas vizinhas, ainda não está claro. Como observa Rowley: "Os motivos e as ideias
que cercam qualquer costume são mais complicados do que as nossas mentes ordenadas
desejariam. Os costumes surgiam de uma situação complexa, pois a vida sempre é
complexa, e eram mantidos por um complexo de razões."12
O que parece proeminente no Antigo Testamento é a importância do nome da
família: que o falecido sem filhos tivesse um filho e que sua viúva tivesse, portanto, o
direito à maternidade como expressão de sua lealdade para com o marido falecido e de
seu interesse de dar continuidade à herança dele.
As únicas outras referências ao levirato estão no livro de Rute,13 particularmente nos
capítulos 3 e 4. Temos aqui uma outra ilustração da maneira como o costume do levirato
era praticado em Israel. Os detalhes aqui não são idênticos à situação de Génesis 38 e
Deuteronômio 25. Não há um sogro envolvido no caso de Rute, nem uma situação de
"irmãos vivendo juntos". Mas as discrepâncias entre as narrativas não são irreconciliáveis
se nós entendermos que Deuteronômio estabelece uma forma legal e Génesis 38 e Rute 4
dão ilustrações de como o costume funcionava em circunstâncias particulares, em
determinadas épocas da história de Israel. Na verdade, toda a istituição parece que é
entendida e interpretada de maneira mais ampla em Rute do que o indicaria a lei restrita
de Deuteronômio 25. Se o levirato era, como o sugere Leggett, uma manifestação especial
de amor familiar, então deveria ser predominante quando a necessidade o exigisse.
Afinal, foi para isso que esta lei foi criada.
Na história de Rute, os deveres do levirato passavam para o parente mais próximo,
fosse quem fosse. Por isso é que Noemi se regozija ao descobrir que Boaz é o homem que
ajudou Rute; porque ele é "um dentre os nossos resgatadores". Poderia se esperar que ele
agisse como levir de Rute, dando-lhe um filho para Elimeleque. Mas logo descobriremos
um desvio na história. Como o próprio Boaz mais tarde esclarece, "ainda outro resgatador
há mais chegado do que eu" (3:12). Mas antes de verificarmos como, na providência de Deus
(diria Noemi), este resgatador não estava capacitado a cumprir os deveres de levir, e como a
alegre tarefa reverte para Boaz, vamos examinar essa outra antiga instituição entretecida com
o levirato na história de Rute: o goel.
O goel14
Já percebemos anteriormente no comentário da história de Rute que havia um forte
sentimento de solidariedade familiar entre o povo de Javé. Os membros da família tinham
o dever de cuidar e proteger uns aos outros. Havia certas situações definidas pela lei na
instituição do goel no antigo Israel, nas quais estas obrigações tinham de ser expressas em
ação. Embora haja, como de Vaux nos informa, analogias entre outros povos,15 a instituição
do goel em Israel assumia uma forma especial, porque, como veremos, estava relacionada
com o status especial de Israel como povo da aliança de Javé.
Mencionamos que o goel era o "protetor", o parente mais próximo cujo dever era, em
determinadas circunstâncias como, por exemplo, em situações de necessidade, agir como
"remidor". Quatro dessas situações foram descritas no Pentateuco.
Em Levítico 25:25-28, após um lembrete de que a terra pertence a Javé, encontramos
a seguinte possibilidade:
Se teu irmão empobrecer e vender alguma parte das suas possessões, então virá o
seu resgatador, seu parente, e resgatará o que seu irmão vendeu. Se alguém não tiver
resgatador, porém vier a tornar-se próspero e achar o bastante com que a remir, então
contará os anos desde a sua venda, e o que ficar restituirá ao homem a quem vendeu, e
tornará à sua possessão. Mas, se as suas posses não lhe permitirem reavê-la, então a que
for vendida ficará na mão do comprador até ao ano do jubileu; porém no ano do jubileu
sairá do poder deste e aquele tornará à sua possessão.
Isto destaca a importância de um homem manter a sua propriedade e herança (até o
ano do jubileu) e a do papel do "parente próximo", o goel, como resgatador da
propriedade que foi vendida. O goel é o parente mais próximo, responsável por evitar
que a propriedade da família se perca. É esta redenção da propriedade que se destaca na
narrativa de Rute 4.
Em segundo lugar, em Levítico 25:47-49, a redenção não é a de uma propriedade, mas
de uma pessoa:
Quando o estrangeiro, ou peregrino, que está contigo, se tomar rico, e teu irmão
junto dele empobrecer, e vender-se ao estrangeiro ou peregrino que está contigo, ou a
alguém da família do estrangeiro, depois de haver-se vendido, haverá ainda resgate para
ele; um de seus irmãos poderá resgatá-lo: Seu tio, ou primo, o resgatará; ou um dos seus,
parente da sua família, o resgatará; ou, se lograr meios, se resgatará a si mesmo.
Aqui, o goel, o parente remidor, age para libertar um membro de sua família que,
devido a dificuldades financeiras, foi forçado a vender-se como escravo.
A terceira circunstância encontra-se mencionada em Números 35:16ss., que
discute um dos aspectos mais sérios da solidariedade familiar: o da vingança de sangue.
O sangue de um parente assassinado devia ser vingado com a morte de quem o
derramara, ou com a morte de alguém de sua família. Sobre isto de Vaux comenta:
Em contraste com a lei beduína... a legislação israelita não permite compensação em
dinheiro, alegando para isto um motivo religioso: o sangue derramado contamina a terra
na qual Javé habita e deve ser expiado com o sangue de quem o derramou.16
A lei diz: "O vingador do sangue, ao encontrar o homicida, matá-lo-á" (versículo
19). Ser "o vingador do sangue" era uma das mais solenes responsabilidades do goel na
comunidade no deserto.17 Destaca de maneira notável a responsabilidade coletiva do
grupo familiar de cuidar dos membros fracos e oprimidos.
Finalmente, o goel podia atuar como curador, recebendo pagamentos devidos como
reparação de erros cometidos contra um parente. Números 5:8 menciona esse papel do
goel: "Se esse homem não tiver parente chegado, a quem possa fazer restituição pela
culpa, então o que se restitui ao Senhor pela culpa, será do sacerdote." Novamente, aqui,
o goel é uma instituição de solidariedade familiar e um lembrete da responsabilidade
coletiva.
Como Leggett destaca, estes deveres entre o povo de Israel brotam do
relacionamento da aliança para a qual foram chamados por Javé. Leggett diz:
Estes deveres, que foram todos prescritos nas leis do Antigo Testamento, só os
entendemos a partir dos antecedentes da aliança na qual Israel como povo se tornou
propriedade única de Javé (Êx 19:5), povo esse em cujo meio ele habitava (Êx 25:8). A terra
era de Javé e fora dada a Israel através da intervenção salvadora do poderoso Senhor da
história. Portanto, a terra não devia ser vendida em perpetuidade (Lv 25:23), mas devia,
antes, ser remida (Lv 25:24). Javé remira o povo de Israel tiraiido-o do Egito, ato através do
qual eles se tomaram seus servos (Lv 25:37, 55). Da mesma forma, um israelita
empobrecido que se vendia como escravo devia ser remido pelo goel (Lv 25:55). Toma-se
evidente, então, que as responsabilidades e os privilégios da instituição do goel derivavam
do ato redentor de Javé, libertando Israel da escravidão no Egito e introduzindo-o na Terra
Prometida... O relacionamento dos israelitas uns com os outros em termos da instituição do
goel fundamenta-se no seu relacionamento comum de aliança com Javé: "Andarei entre
vós, e serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo" (Lv 26:12).18
A instituição do goel ilustra, assim, a ênfase que o Antigo Testamento dá ao povo de
Deus como comunidade e à solidariedade do grupo familiar. As responsabilidades do goel,
de agir como redentor, são responsabilidades familiares. Mas são também um reflexo de um
laço mais forte do que o relacionamento físico: o da lealdade da aliança. A ênfase especial dada à
instituição do goel em Israel deve ser considerada, portanto, dentro do relacionamento
especial da aliança entre o povo e Javé, e o modo de vida pelo qual toda a vida ficava
relacionada com ele através da aliança.
A terra e o povo
Um dos aspectos interessantes da função do goel dentro da aliança é que este remia
tanto a terra como a pessoa. Embora nas leis do Pen-tateuco os valores pessoais sempre
tivessem precedência sobre os interesses materiais, a terra (o mundo material) não era
desconsiderada. E isto importa na compreensão bíblica da vida humana. Um aspecto
constante do Antigo e do Novo Testamento é que, apesar das diferenças de ênfase sobre
"corpo" e "alma", a coisa mais importante a dizer sobre os seres humanos é que as nossas
vidas são uma unidade: uma unidade psicossomática com potencial espiritual. No
Antigo Testamento, conceitos tais como coração, alma, carne e espírito, e palavras usadas
para as diversas partes do corpo (boca, mão, pé) são geralmente intercambiáveis na poesia
hebraica. Cada uma delas pode representar a pessoa "inteira", expressada em diferentes
maneiras. Não existe um dualismo corpo-alma.
No Novo Testamento, de igual forma, não há qualquer ideia de alma separada do
corpo (antes, o corpo físico é o veículo da experiência com este mundo físico de todo o
nosso ser) tal como o corpo "espiritual" será na ressurreição. Precisamos ter o cuidado de
não pensar que apenas uma parte da vida é relevante para Deus: apenas a parte da vida
que pode ser remida. Não: todo o nosso ser, psicológico e físico, interessa ao Remidor,
assim como o nosso ser pessoal dentro do contexto mais amplo de toda a ordem natural.
Paulo, em Romanos 8:18ss, indica que todo o mundo físico está "gemendo" com dores de
parto de uma nova criação; o Redentor do mundo não é apenas o meu Redentor, e não é
o Redentor apenas de pessoas, mas também de toda a ordem natural do mundo. Um
ponto de vista assim unificado vai nos ajudar a fugir da desastrosa dualidade de grande
parte da filosofia moderna que tende a manter Deus "separado", restringindo-o a apenas
um canto dos nossos interesses. Dentro dos propósitos da aliança de Deus, o parente
remidor tem responsabilidades tanto no campo material como no pessoal.
Javé, o Goel
A palavra goel (ou os verbos e substantivos associados à mesma raiz), que é usada
em relação ao "parente remidor" israelita, também é usada pelo povo de Israel em relação
ao seu Deus da aliança, Javé. No começo, quando o próprio Deus se revelou a Moisés
como Javé e o comissionou a negociar com o faraó a libertação dos escravos israelitas do
Egito, ele disse a Moisés:
Portanto dize aos filhos de Israel: Eu sou o Senhor, e vos tirarei de debaixo das cargas
do Egito, vos livrarei da sua servidão e vos resgatarei com braço estendido e com
grandes manifestações de julgamento. Tomar-vos-ei por meu povo, e serei vosso Deus; e
sabereis que eu sou o Senhor vosso Deus, que vos tiro de debaixo das cargas do Egito.
E vos levarei à terra, acerca da qual jurei dar a Abraão, a Isaque e a Jacó; e vo-la darei
como possessão: Eu sou o Senhor. ^
O ponto central da chamada do povo para ser o povo da aliança de Deus, e a sua
promessa de uma nova esperança em uma nova terra, é o ato da redenção do Egito.
Como é importante que o Senhor seja o seu parente, o seu remidor!^
Mais tarde, lemos, especialmente em Isaías 40-55, que Deus muitas e muitas vezes
descreveu-se como "o Senhor, e o teu Redentor... o Santo de Israel".20 Da mesma forma,
Jeremias cita a referência de Deus à opressão dos povos de Israel e Judá sob o cativeiro,
e então a sua palavra: "O seu Redentor é forte, o Senhor dos Exércitos é o seu nome;
certamente pleiteará a causa deles".21 Era assim, também, que os salmistas entendiam
o seu Deus: "Rocha minha e redentor meu".22 "Aproxima-te de minha alma, e redime-a;
resgata-me por causa dos meus inimigos".23 "Porque ele acode ao necessitado que
clama, e também ao aflito e ao desvalido. Ele tem piedade do fraco e do necessitado, e
salva a alma aos indigentes. Redime (g'l) as suas almas da opressão e da violência, e
precioso lhe é o sangue deles".24 "Tu és o Deus que operas maravilhas... Com o teu
braço remiste o teu povo".25 O Senhor é "quem da cova redime a tua vida, e te coroa de
graça e misericórdia".26 Ele "salvou-os das mãos de quem os odiava".27 "Digam-no os
remidos do Senhor, os que ele resgatou da mão do inimigo".28
Assim, Deus é compreendido como o tipo de Deus que fica ao lado dos
oprimidos, que chama um povo para ser a sua família da aliança, libertando-o da
escravidão, que com o seu poderoso braço liberta os cativos e lhes oferece uma nova
liberdade e uma nova esperança. Esta é uma expressão do seu amor e da sua
misericórdia; um profundo interesse pelo bem-estar material, emocional e espiritual do
seu povo. Este é o caráter que também deve ser visto no "parente remidor" de Israel:
aquele que através de suas ações em benefício dos necessitados está demonstrando
dentro do relacionamento familiar algo do caráter do seu Deus da aliança. E, da sua
posição de inevitável necessidade, é esse tipo de expressão de amor que Noemi e Rute
buscavam quando Noemi transmitiu a sua nora as boas novas sobre o seu elo familiar
com Boaz.
O preço da redenção
Portanto, a ênfase principal da palavra goel é, em termos gerais, obrigação
familiar. Dentro disto, particularmente quando se usa goel com referência às
necessidades humanas, a palavra também carrega em si o senso de pagamento de
preço.29 Isto implica na ideia do esforço e preço da parte do remidor por amor ao
parente. Às vezes significa o pagamento de um resgate, um preço de redenção, como
resultado do relacionamento familiar. Nas passagens em que o Senhor é chamado de
goel geralmente há alguma implicação sobre o preço da redenção. Em Isaías 52:10,
depois de descrever a alegria do retorno dos exilados, o profeta exclama: "O Senhor
desnudou o seu santo braço à vista de todas as nações." É como diz Michael Green: "A
redenção do povo de Deus foi cara."30 Da mesma forma, em Isaías 43:3-4, a ideia de um
preço alto na redenção está evidente: "Porque eu sou o Senhor teu Deus, o Santo de Israel,
o teu salvador; dei o Egito por teu resgate, a Etiópia e Sabá por ti. Visto que foste precioso
aos meus olhos, digno de honra, e eu te amei, darei homens por ti e os povos pela tua
vida." Green cita um comentário de Westcott: "Não se pode dizer que Deus pagou ao
opressor egípcio qualquer preço pela redenção do seu povo. Por outro lado, a ideia do
emprego de uma força gigantesca, a ideia de que a redenção custou muito, está presente
por toda parte. A força pode ser representada pelo poder, pelo amor ou pelo auto-
sacrifício divinos, que finalmente se tornam idênticos."31
Às vezes, como observa Leon Morris,32 a Bíblia usa a terminologia da redenção
das ações salvadoras de Javé precisamente para dar esta ênfase ao seu "esforço": "... vos
resgatarei com braço estendido".-33 "Tu és o Deus que operas maravilhas, e, entre os
povos, tens feito notório o teu poder. Com o teu braço remiste o teu povo."34 O esforço,
diz Morris, é considerado como o "preço" que aponta para a metáfora da redenção. A
ação de Javé custou-lhe ele mesmo,
Como enfatizaremos mais tarde na ação remidora de Boaz,35 agir como goel
naquelas circunstâncias teria sido muito custoso. Envolvia sacrifício pessoal. É
importante que mantenhamos unidos estes dois aspectos das funções do goel: os
aspectos relacionados com a posição do redentor e o pagamento do preço como
significado da redenção.
3:1-18
6. Fé em Ação no Amor
Obediente, Rute fez exatamente como foi instruída por sua sogra. Não sabemos o
que motivou Rute, além de sua sincera lealdade para com Noemi. Como Boaz observa
mais tarde, deveria haver muitos jovens mais atraentes à disposição de Rute (3:10) além
deste solteirão, se ela preferisse ir "atrás" deles. Mas Rute aprendera a importância da
herança de um marido e de um descendente do sexo masculino para o povo de Javé
naquele tempo, a importância que tinha para Noemi a herança de Elimeleque e
Malom. Rute sabia que Noemi era idosa demais para ter filhos (1:11). Órfã retornara a
Moabe. Agora a importante tarefa era dela. Totalmente à parte, portanto, de qualquer
desejo pessoal de ter um marido e uma família, que podemos bem imaginar que Rute
sentia, ela sabia que agora fazia parte da família da aliança de Javé, e estava pronta a
assumir a sua parte no costume do levirato por amor a Javé e pela herança de um
membro do seu povo. E agora tinha chegado o momento.
A colheita era também um período de festa,4 e depois da festa, Boaz foi dormir,
observado por Rute, que estava disfarçada. Depois que ele adormeceu, ela se
aproximou silenciosamente e se deitou aos seus pés: uma posição de humildade, até
mesmo de súplica. Passou-se o tempo. Então, diz-nos o autor no seu jeito vivo de
contar as coisas: meia-noite! Boaz assustou-se. Sentou-se e eis que uma mulher estava deitada a
seus pés!
Podemos imaginar a tensão que houve na conversa sussurrada: "Quem és tu? O
que queres?" E, então, Rute se revela com humildade característica: "Sou Rute, tua serva."
Mas por que ela estava ali? Ela faz o seu pedido crucial: "Estende a tua capa sobre a tua serva,
porque tu és o meu goel". Era um delicado pedido de casamento. O "estender a capa" é
mencionado por Ezequiel na passagem que citamos, nas palavras de amor do Senhor a
Jerusalém:
Passando eu por junto de ti, vi-te, e eis que o teu tempo era tempo de amores;
estendi sobre ti as abas do meu manto, e cobri a tua nudez; dei-te juramento, e entrei
em aliança contigo, diz o Senhor Deus; e passaste a ser minha.5
Cooke cita uma interessante ilustração desta prática através da qual um parente
achegado reivindicava uma viúva por esposa:
O costume prevalecia entre os árabes antigos; uma boa ilustração nos é dada no
comentário de Tabari sobre o Corão... "Em Jahiliya, quando o pai, o irmão ou o filho de
um homem morria deixando viúva, o herdeiro do homem morto, se viesse
imediatamente e jogasse a sua capa sobre ela, tinha o direito de casar com ela e
receber o dote (isto é, que já fora pago) do seu senhor (falecido), ou de dá-la em
casamento, ficando com o seu dote."6
Como podemos ver pela sua resposta, Boaz certamente entendeu o pedido de
Rute em termos de casamento. "Melhor fizeste a tua última benevolência que a primeira,
pois não foste após jovens" ('í-10). Para que não tenhamos a ideia de que Rute estivesse
fazendo alguma coisa imprópria, ou até mesmo imoral, pedindo a Boaz que se casasse
em levirato com ela (um procedimento que estaria totalmente fora de cogitação num
casamento comum), o autor esclarece que ela sente confiança em fazê-lo porque Boaz é
"seu resgatador". Na realidade, como veremos logo no decorrer da história, havia um
outro parente mais achegado do que ele, mas isto não muda o fato: Rute pede que
Boaz seja o seu goel e o seu levir. Era um empreendimento arriscado. Rute estava se
colocando em uma situação de extrema vulnerabilidade, na qual ela poderia ter sido
facilmente explorada. "É pelo heroísmo da lealdade que ela se envolve em uma
situação tão difícil. Ela nada deseja para si mesma, apenas um herdeiro para o seu
marido."7 A frase "estende a tua capa", que Keil e Delitzsch traduzem como "o canto da
coberta", lembra-nos (embora não seja uma expressão idêntica) as "asas" de Javé sob as
quais Rute veio buscar refúgio (2:12). Pertencendo agora ao povo da aliança de Javé,
ela busca a proteção das "asas" de Boaz através do casamento.
A graça do remidor
Agora começamos a ver com mais clareia como o nosso escritor entende a graça e
a providência de Deus. Já observamos antes a compreensão da graça através do domínio
soberano e providencial de Deus sobre os acontecimentos, como existe uma outra história
a ser escrita através dos acontecimentos das escolhas e das circunstâncias humanas.
Percebemos como geralmente há uma graça especial através das circunstâncias do
sofrimento, a qual nos apresenta, de maneira não acessível em outras circunstâncias, aos
recursos do conforto todo-poderoso de Deus. Depois vimos como a graça esteve ligada à
provisão, de maneira muito material, na oportunidade que Rute teve de rebuscar nos
campos de Boaz e através da generosidade do próprio Boaz. E agora somos apresentados
ao resgatador. Os benefícios da bondosa providência de Deus no pensamento do autor de
Rute estão ligados à pessoa de Boaz, o parente remidor, através de quem veio grande
parte destes benefícios.
Da nossa perspectiva neotestamentária tambémpodemos ver como grande parte da
graciosa providência de Deus para conosco está ligada, no pensamento dos escritores do
Novo Testamento, à pessoa de Cristo. É nele que Deus estabeleceu seus propósitos para o
mundo, "de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as
cousas, tanto as do céu como as da terra".15 Este é o "eterno propósito que estabeleceu em
Cristo Jesus nosso Senhor, pelo qual temos ousadia e acesso com confiança, mediante a fé
nele".16 É em Cristo que entendemos Deus como "o Pai de misericórdias e Deus de toda
consolação... que nos conforta em toda a nossa tribulação".17 "Porque, assim como os
sofrimentos de Cristo se manifestam em grande medida a nosso favor, assim também a
nossa consolação transborda por meio de Cristo".18 Além disso, é através de Cristo que os
ricos recursos da provisão de Deus nos são transmitidos. Conhecemos a Cristo, diz
Calvino, na medida em que conhecemos os seus benefícios. E conhecemos "a graça de
nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que pela sua
pobreza vos tornásseis ricos".19 E através dele, quer nossas circunstâncias sejam de
"escassez" ou de "abundância",20 podemos aprender, em qualquer situação, a estar
contentes, na confiança de que "o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de
suprir em Cristo Jesus cada uma de vossas necessidades".21
Cristo, nosso "parente remidor", traz consigo "o perdão de nossos pecados e todos
os outros benefícios de sua paixão", chamando-nos para sermos membros de sua família,
penetrando conosco na dor do nosso sofrimento e carregando-a conosco, encorajando-nos
a confiar em nosso Pai celestial para nos dar o pão nosso de cada dia, e recebendo-nos
finalmente no banquete das bodas do Cordeiro quando, na consumação de nosso futuro e
nossa esperança, com a grande multidão que homem nenhum pode contar, nos uniremos
aos cânticos de "Aleluia! pois reina o Senhor nosso Deus, o Todo-Poderoso!"22
Lei e amor
Há, entre certos cristãos, uma tendência de polarizar lei e amor. Às vezes a lei é
considerada como uma característica do Antigo Testamento e o amor como a nova e
radical proclamação do Novo. Essa polaridade entre os Testamentos não existe na mente
dos autores bíblicos. Na verdade, é nos textos do Antigo Testamento sobre o "amor a
Deus" e "amor ao próximo"23 que Jesus baseia toda a lei e os profetas.24 Nem tampouco nos
escritos bíblicos existe qualquer polaridade entre a lei e o amor propriamente ditos. E
muito menos no livro de Rute. Boaz é uma pessoa obediente à lei. Para ele a lei dá
orientação para a vida de uma pessoa dentro da família pactuai de Deus. Mas para ele a
lei não é apenas um código legal, e sim um lembrete de que ele faz parte da família
pactuai de Deus. A lei para Boaz é Tora (instrução paternal de Deus), não um código
legal moralista. A Tora de Deus é orientação em amor. É a aplicação do caráter do Deus
da aliança às situações específicas da vida diária.
Quando Jesus diz a seus ouvintes que ele não veio abolir a lei, mas sim cumpri-la,25
certamente também não está considerando a Tora em termos de código legalista, mas como
uma instrução paternal do Deus da aliança para os seus filhos. E Jesus torna explícito o
que está implícito na narrativa de Boaz: que o amor, embora nunca seja menos importante
que a lei, sempre vai além desta por amor dos outros. Jesus penetra no âmago do
propósito da lei, por trás das interpretações dos escribas que a reduziram a um código
todo-suficiente, para mostrar o tipo de justiça (relacionamento certo) que excede aquele dos
escribas e fariseus do seu tempo.26 A lei é orientação em amor, e provê exemplos específicos
do significado da obediência em amor em determinadas situações.27 Quando nos
concentramos apenas no "amor", logo a palavra perde todo o seu conteúdo, podendo
servir de disfarce para todo e qualquer comportamento que "parece bom" ou que "a gente
sente que está certo". Não há qualquer prdteção contra a auto-indulgência pecaminosa
ou contra a estupidez declarada. Quando nos concentramos apenas na "lei", fora do
contexto pactuai da redenção e de uma alegre reação à graça, logo transformamos a lei em
legalismo, moralidade ou moralismo, e a liberdade da fé transforma-se em luta para
guardar as regras: uma escravidão da qual Cristo nos libertou.
Lutemos para criar uma ética de "vassalagem"28 para com o nosso Senhor remidor, o
qual, como dom da sua graça, nos deu uma lei para nos orientar em amor. E que, além
disso, gravou a lei em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Precisamos da
Palavra, para que impeça que caiamos em uma moralidade de subjetivismo e relatividade.
Precisamos do Espírito para que implante em nós uma motivação rica e cheia de
consideração para com os outros, motivação que flui da lei com o significado do amor e que
nos capacita a ir além de sua letra estrita, na direção que ela nos aponta, por amor ao
próximo e movidos pelo gozo da nossa resposta ao amor remidor de Cristo.
Boaz nos dá mais um exemplo do significado do amor que vai além da lei, na
maneira como resolveu as complexas negociações que veremos agora em Rute 4.
Meu divino Protetor, Quero em Ti me refugiar; Pois as ondas de terror Ameaçam me
tragar! Quase estou a perecer! Dá-me a tua proteção; Pois guardado em teu poder Não receio o
furacão.
Outro amparo não achei; Sem alento venho a Ti; Se me negas morrerei, Voz da morte eu já
ouvi. Eu confio em teu amor E na tua compaixão; És meu forte defensor, Não me largue a tua mão.
Tudo o que eu desejo dás, Cristo meu, e ainda mais; Dás-me força e tua paz, Sempre Tu
comigo vais. O teu nome santo é, E eu injusto e fraco sou; Ponho em Ti a minha fé, Sei que em Ti
seguro estou.
Graça imensa em Ti se achou Para tudo perdoar; Sangue teu se derramou, Nele quero me
lavar. Fonte Tu de todo bem, Dá-me sempre de beber! Confortar minha alma vem; Queiras sempre
me valer.
Charles Wesley (1707-88)
PARTE IV
A REDENÇÃO E A
ALEGRIA
4:1-12
7. Amor além da lei
Um ponto de importância particular vem agora à luz neste parágrafo: Boaz se casa com
Rute. Até agora não se falou nada além do dever do levirato. Este dever nem sempre
implicava casamento de fato. No caso de Judá e Tamar, não houve casamento. Não
sabemos se o parente que acabou de expressar sua incapacidade de agir como goel poderia
realmente se casar com Rute, ou se apenas agiria como levir até o nascimento da criança.
Talvez ele já fosse casado, com uma herança a salvaguardar para os seus próprios filhos.
Mas com Boaz a situação era diferente. Rowley acha muito provável que Boaz não tivesse
filhos. Talvez fosse solteiro. Poderia ser viúvo. Certamente era um homem mais velho, rico
e influente. Ele disse que se sentia honrado porque Rute se aproximara dele, e não dos
jovens da cidade. E agora, além de querer cumprir as responsabilidades de levir, também se
casa com Rute.
Podemos imaginar a cena: além dos anciãos, também todo o povo foi convocado para
testemunhar o que estava acontecendo. Há uma conotação de alegria no ar, a julgar pela
reação do povo (4:11-12). A cerimónia do sapato20 foi encenada (um costume
aparentemente em desuso na época em que o autor estava escrevendo o livro). Através
dela validava-se uma transação (neste caso, a transferência dos direitos de resgatador a
Boaz): uma das partes interessadas tirava o seu sapato e o dava à outra. Através disto o
resgatador abandonou o seu direito de redenção em favor de Boaz.
Na lei deuteronômica referente aos deveres do levir,21 quando este se recusava a
cumprir o seu dever, sua sandália lhe era tirada: ele era despojado dos seus direitos, em
sinal de humilhação pública. Em Rute 4, entretanto, o ambiente é de alegria. E todo o povo
participa da celebração. Este é um aspecto do casamento que não se deveria perder. Nos
dias de hoje, muitos consideram o casamento apenas como uma aliança particular entre
duas pessoas, que pode ser feita (e até mesmo desfeita) à vontade delas, por sua escolha
pessoal. Mas a sociedade sempre teve interesse na formação de um novo laço conjugal e no
surgimento de uma nova unidade familiar na sociedade. Apesar da grande variedade de
contextos culturais, das expectativas do casamento e do relacionamento social entre os
sexos, o modelo pactuai de casamento que podemos perceber tanto no Antigo como no
Novo Testamento traz consigo o fato de ser o "casamento" entendido tanto em termos
pessoais e relacionais, quando olhamos para o casal, quanto em termos sociais, quando
nos afastamos deste e observamos o seu lugar no grupo social mais amplo. Um dos três
suportes sobre os quais se baseia o casamento pactuai, conforme exposto em termos
simples pelo narrador de Génesis 2:24 ("deixa o homem pai e mãe", "e se une a sua
mulher", "tornando-se os dois uma só carne") torna isso muito claro. O "deixar" é uma
declaração pública de que o casamento está sendo feito. É a ocasião na qual o casal recebe
junto o apoio público dos seus amigos e da sociedade na nova unidade social que estão
criando. É a ocasião em que o casal também aceita sua vocação para ser uma nova unidade
dentro da sociedade: viver dentro da sociedade um relacionamento que de alguma forma
reflete o relacionamento pactuai de Deus com o seu povo. Em um de seus sermões
Bonhoeffer diz o seguinte:
O casamento é mais do que o amor de vocês um pelo outro. Tem uma dignidade e
um poder mais elevados, pois é uma santa ordenança de Deus... Em seu amor vocês só
vêem o céu de sua felicidade, mas no casamento vocês são colocados em um posto de
responsabilidade para com o mundo e a humanidade. O seu amor é propriedade
particular de ambos, mas o casamento é uma coisa mais do que pessoal: é um status, um
cargo... que os liga um ao outro à vista de Deus e dos homens.22
As perguntas que se fazem hoje ("Para que casar?", "Por que se preocupar com
um pedaço de papel?") são respondidas em termos de responsabilidade para com a
sociedade e de um reconhecimento de que o nosso equivalente dos anciãos e todo o povo
tem um certo interesse na formação de um novo grupo familiar.
O testemunho público sempre faz parte da aliança. E a importância social do
testemunho público retém este aspecto do significado do casamento. Mas há também um
valor pessoal. O testemunho público serve, entre outras coisas, como um contraforte no
casamento contra a desintegração nos períodos quando o relacionamento está sob
tensão. É um lembrete constante de que se fizeram promessas, obrigações foram
assumidas e orações feitas pedindo graça e recursos. Os votos não são um mero assunto
particular, mas foram assumidos e testemunhados publicamente. Um senso de
responsabilidade para com a comunidade cristã mais ampla nos ajuda a manter as
nossas promessas e nos apoia nos períodos difíceis quando o nosso compromisso de amor
fiel é posto à prova.
A importância da celebração não deve ser desprezada! Lewis Smedes escreve o
seguinte em seu excelente livro Sex in the Real World:
Há uma coisa mais a respeito do casamento que exige uma festa de casamento: é a
necessidade que o homem tem de festejar. A vida humana parece precisar de momentos
separados para celebração e festejos. Destacamos os aniversários, as formaturas, os
nascimentos e quaisquer outros acontecimentos em nossas vidas, interrompendo a rotina
de nosso estilo de vida com uma festa. As pessoas precisam de alguma coisa para brincar;
e a comunidade também precisa. E os casamentos são festivais que celebram o começo de
uma nova aventura. A bênção de Deus sobre o matrimónio, invocada num casamento, é
realmente um ato de celebração: o casamento afirma que está acontecendo uma coisa boa e
importante... Os casamentos são o começo público de um novo empreendimento, que no
seu âmago original é um empreendimento particular. Como todos os empreendimentos
privados, precisa do apoio e do controle da comunidade. Os casamentos não são um truque
da sociedade para manter os jovens dentro da linha; é o método desta sociedade de receber
no seu meio um novo empreendimento de amor.23
Para Boaz, à porta da cidade, a celebração começou mesmo sem que Rute estivesse ali!
Mas "todo o povo" estava presente, não apenas para testemunhar, mas para fazer orações.
A reação imediata do povo diante desta demonstração de amor remidor foi dupla:
testemunhar e orar. Ser testemunha neste contexto, lembra G. A. F. Knight, "significa falar
disso aos outros e permitir que seja claramente percebido no próprio comportamento e
atitude para o restante da humanidade".24 Ele aponta as semelhanças de pensamento entre
muitos dos aspectos do livro de Rute e a ideia contida nos últimos capítulos de Isaías. "Eu,
eu sou o Senhor, e fora de mim não há salvador... vós sois as minhas testemunhas, diz o
Senhor ",25 E, mais adiante, o profeta lembra ao povo: "Pouco é o seres servo, para
restaurares as tribos de Jacó, e tornares a trazer os remanescentes de Israel; também te dei
como luz para os gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra".26
Através do ato de auto-sacrifício de Boaz, Rute foi estabelecida como membro do
povo de Deus. Boaz expressou na prática o que ele mesmo cria ser a ação de Deus para
com o seu povo. Esta é sempre a vocação do povo de Deus: pessoas que são remidas devem
ser agentes da redenção de outras. Disto o povo deu testemunho.
Este testemunho veio junto com oração invocando a bênção de Deus sobre a nova
família. Quanto este livrinho palpita com a vida de oração! A reação de Noemi diante das
notícias vindas de Belém de que a fome terminara foi mandar suas noras de volta aos
seus lares moabitas com oração (1:8). A saudação rotineira que Boaz fazia aos seus
trabalhadores, e também a resposta deles, eram orações (2:4). A generosa saudação de
Boaz a Rute para que rebuscasse em seus campos foi feita em forma de oração (2:12). E
Noemi orou dando ação de graças em alegre reação diante da volta de Rute para casa
com notícias sobre Boaz, no final do seu dia de trabalho (2:20). Boaz respondeu à visita
noturna de Rute com uma oração (3:10). E agora todo o povo reage com oração diante da
transação à porta da cidade, pedindo a bênção de Deus para Boaz e Rute. Tudo isto nos
faz ver claramente a profunda espiritualidade do autor deste livro. Cada aspecto da
vida, desde a miséria até a alegria, da rotina ao extraordinário, no trabalho diário e no
relacionamento social, como também nos momentos de intimidade, é vivido na fé em que
Deus está ali e se importa com as pessoas. Além disso, também as atitudes humanas,
como já vimos, apontam para o caráter de Deus. Notamos a maneira como o hesed de Boaz
corresponde ao hesed de Javé. Ë interessante também recordar a maneira como o
casamento pactuai do homem com uma mulher geralmente é usado como uma analogia
do relacionamento de Deus com o seu povo pactuai, e, "através de iluminação recíproca",27
como o pacto de Deus provê um padrão e um significado à vida matrimonial humana. Na
verdade, todos os relacionamentos humanos devem seguir o modelo divino e por sua vez
revelar algo da maneira como Deus faz seus relacionamentos dentro do pacto com o seu
povo.
Agora, pois, a oração do povo produz uma consciência da mão de Deus nas
resoluções tomadas à porta da cidade. E, como Knight destaca, isto encerra implicações
sobre o que o autor deste livro pensa de Deus. A maneira como ele conta toda a ação de
Boaz como goel, remindo a terra e oferecendo à família de Elimeleque um futuro e uma
esperança através de seu próprio compromisso de casamento com Rute, tudo isto
mostra como o autor vê o caráter de Deus. Se um simples homem, uma criatura de
Deus, podia agir desta maneira, usando o seu poder para remir uma pária,
introduzindo-a na comunhão com o Deus vivo, então certamente, diz Knight, o autor
devia perceber que Deus é pelo menos igualmente compassivo para com todas as
"Rutes" (de Moabe, da Babilónia e de qualquer outro lugar), e o próprio Deus deve ser um
"Deus de redenção com o desejo e o poder de remir todos os párias, atraindo-os para a
comunhão consigo mesmo".28
É para este Deus que o coração do povo se voltou em oração. O povo foi testemunha
de um ato de amor remidor. Agora esse povo busca a bênção de Deus. E o seu interesse
em Boaz, sua esposa e sua nova família é triplo.
Primeiro, a esposa: o Senhor faça a esta mulher, que entra na tua casa, como a Raquel e como a Lia,
que ambas edificaram a casa de Israel. Raquel e Lia foram as duas esposas de Jacó; e dos seus filhos
e dos filhos das concubinas de Jacó, que de certa forma também foram filhos delas,
descendia toda a nação de Israel. Que Rute, também, se torne antepassada de uma raça
famosa. Que ela tenha muitos descendentes dentro da família e dos propósitos de Deus.
Depois, o marido: e tu, Boaz, há-te valorosamente em Efrata, efaze-te nome afamado em Belém.
Que o próprio Boaz seja enriquecido através deste casamento e sua descendência. Que ele
adquira poder e fama. Como traduz Cooke, "que o teu nome seja proclamado". Não esta
mos apenas interessados em manter o nome de Elimeleque. Através deste casamento com
Rute, a própria família de Boaz também será estabelecida.
Finalmente, a futura família: Seja a tua casa como a casa de Perez. Perez foi mencionado
possivelmente por diversos motivos. O primeiro é que ele foi o mais importante dos
dois filhos gémeos nascidos do relacionamento de levirato entre Judá e Tamar. O paralelo
com esta situação está claro. Mais do que isto, porém, há o fato de que Perez é um dos
antepassados dos belemitas que descendiam de Judá.29 A expressão casa de Perez
provavelmente destaca o grande número de descendentes seus, dentre os quais algumas
das pessoas à porta da cidade. Perez era certamente um dos antepassados de Boaz.30 O
povo orou para que Boaz, como o seu antepassado, tivesse uma família numerosa e
renomada. E se Boaz não tinha filhos, como alguém já sugeriu e parece ser mais do que
provável, que "a prole" que o Senhor lhe desse daquela jovem, como dizia sua oração,
fossem herdeiros, não somente de Elimeleque, mas também de Boaz.
4:13-22
8. Nós temos uma história
"Uma só carne" (4:13)
Assim tomou Boaz a Rute, e ela passou a ser sua mulher, coabitou com ela, e o Senhor lhe concedeu que concebesse,
e teve um filho.
O dom da vida
Pela oração que os anciãos acabam de fazer fica explícito que eles consideravam
os filhos como um dom de Deus. Isto é enfatizado pelo comentário do nosso autor. Ele
não conta simplesmente os acontecimentos: coabitou com ela (expressão comum no Antigo
Testamento para indicar relação sexual)... e teve um filho. Ele une os dois acontecimentos
com o seguinte: o Senhor lhe concedeu que concebesse.
Se há um tema que domina o livro de Rute acima dos outros, é o da providência
soberana de Deus e da nossa dependência dele como humanos. Deus é a fonte da vida.
A vida, assim como suas bênçãos, é um dom da sua mão. E particularmente aqui a
concepção de um filho é entendida como um dom de Deus.
Em que ponto se inicia a vida humana pessoal? O testemunho bíblico responde
inequivocamente: na concepção. E muitos pensadores seculares modernos concordam
com isto. Na concepção, todos os genes humanos já estão presentes e, embora algum
tempo se passe antes do desenvolvimento do córtex cerebral, do qual depende o
funcionamento da verdadeira capacidade humana, no feto que acaba de ser concebido,
estamos, de qualquer forma, na presença de um ser humano em processo de formação.
Evidências crescentes existem de que as primeiras experiências do feto são muito
significativas. Particularmente nos três primeiros meses da vida fetal, a saúde e o bem-
estar da mãe, bem como as experiências do feto através dela, têm um efeito marcante
sobre o desenvolvimento da personalidade.5
Isto está muito longe da linguagem de "produtos da concepção" e "tecido
uterino" que se tornou o jargão de certos propagandistas do aborto. Mesmo se
tivéssemos alguma dúvida quanto ao status da vida nascente no útero, o ónus da prova
recairia pesadamente sobre qualquer um que decidisse que o feto não deveria ter o
benefício da dúvida.
Mas o testemunho bíblico não deixa dúvidas. Há muitas alusões bíblicas à vida
humana antes do nascimento.6 Até mesmo o agnosti-cismo do Pregador ("Assim como tu
não sabes... como se formam os ossos no ventre da mulher grávida, assim também não
sabes as obras de Deus, que faz todas as cousas") contém uma afirmação: o ventre não
contém apenas um "corpo", mas também um "espírito vivente".7 A lei do Pentateuco
estruturada para proteger a mulher grávida e a vida do feto exige que, se uma mulher
entrar em trabalho de parto prematuro por causa de uma briga na qual ela tenha sido
inadvertidamente machucada, seja ela compensada através de uma multa; se ela ou a
criança forem machucadas, "então darás vida por vida".8 No antigo Israel a morte do
feto era considerada como "a mais bárbara crueldade, que exigia o julgamento de Deus".9
Jeremias dá testemunho das palavras de Deus: "Antes que eu te formasse no ventre
materno, eu te conheci",10 como também Paulo, que reconheceu que Deus o chamara
antes do seu nascimento.11 No Salmo 139 o salmista recorda que Deus já o conhecia
desde o ventre materno. Além disto, o primeiro capítulo do Evangelho de Lucas
parece mostrar que há na vida de João Batista uma indicação de alguma determinação
pré-natal de personalidade e caráter. "Pela ordenação e dom de Deus, uma nova vida é
concebida, uma nova criação, uma vida totalmente única e insubstituível, com um destino
específico, identificável e pessoal".12 Esta é também a crença expressa pelo autor de Rute. A
concepção é um dom do Senhor. Visto à luz disto, todo o debate sobre o aborto,
argumentado geralmente em termos de direitos conflitantes ou de consequências
benéficas, assume uma dimensão mais profunda. Se estamos diante de um ser humano
em processo de formação, um ser humano com um destino pessoal sob a mão de Deus
desde o momento da concepção, o ónus da prova jaz pesadamente sobre aqueles que
decidem acabar com a gestação. A questão do aborto pode ser levantada apenas
dentro da categoria da justificável proteção à vida humana.
O feliz resultado da história: o filho que Rute teve e que, portanto, também é o de
Noemi, na família de Elimeleque, está rodeado de orações de gratidão a Deus. É esta
oração que completa o círculo da história e proclama novamente o governo providencial e
o cuidado de Deus. O foco de atenção é novamente Noemi. Ela deixou Moabe sem o seu
marido e sem os filhos. Foi recebida em Belém pelas mulheres que viram sua dor e
ouviram a sua amargura. Agora elas partilham de sua alegria: Seja bendito o Senhor, que não
deixou hoje de te dar resgatador!
Novamente se enfatiza o senso de solidariedade familiar. O filho é de Rute, tua nora,
que te ama, mas também será para Noemi o restaurador da tua vida, e consolador da tua velhice.
Como filho de Malom através do levirato, ele também é herdeiro de Elimeleque. Através
dele o nome da família de Elimeleque não desapareceu até o dia de hoje. Através dele os
propósitos de Deus foram executados. Rute e Noemi receberam um futuro e uma
esperança. Mas os propósitos de Deus na tela mais extensa da história do mundo
também foram realizados, conforme veremos. Talvez tenha sido muito apropriado que a
criança fosse chamada de Obede: "Servo", o servo do Senhor.
Notas de Rodapé
As notas de rodapé não foram Revisadas, por não possuir o livro impresso e conter
muitos erros ortográficos.
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