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Dossiê Manifesto Comunista

Manifesto
do Partido Comunista
KARL MARX e FRIEDRICH ENGELS

M ESPECTRO RONDA A EUROPA - o espectro do comunismo.

U Todas as potências da velha Europa aliaram-se numa


sagrada perseguição a esse espectro, o Papa e o Czar, Met-
ternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães.
Onde está o partido de oposição que não tenha sido difamado
como comunista pelos seus adversários governistas, onde está o
partido de oposição que não tenha arremessado de volta, aos
opositores mais progressistas tanto quanto aos seus adversários
reacionários, a pecha estigmatizante do comunismo?
Duas coisas decorrem desse fato.
0 comunismo já é reconhecido como uma potência por todas
as potências européias.
Já é tempo de os comunistas exporem abertamente, perante o
mundo todo, sua maneira de pensar, os seus objetivos, as suas
tendências, e de contraporem ao conto da carochinha sobre o espectro
do comunismo um manifesto do próprio partido.
Com esse objetivo, reuniram-se em Londres comunistas das
mais diversas nacionalidades e esboçaram o seguinte manifesto, que
está sendo publicado em idioma inglês, francês, alemão, italiano,
flamengo e dinamarquês.

1 Burgueses e Proletários (1)


A história de todas as sociedades até o presente (2) é a história
das lutas de classes.
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo,
membro de corporação e ofícial-artesão, em síntese, opressores e
oprimidos estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram
uma luta ininterrupta, ora dissimulada, ora aberta, que a cada vez
terminava com uma reconfiguração revolucionária de toda a
sociedade ou com a derrocada comum das classes em luta.
Nas épocas remotas da história, encontramos por quase toda a
parte uma estruturação completa da sociedade em diferentes esta-
mentos, uma gradação multifacetada das posições sociais. Na Roma
antiga temos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média,
senhores feudais, vassalos, membros de corporação, oficiais-artesãos,
servos, e ainda, em quase cada uma dessas classes, novas gradações
particulares.
A moderna sociedade burguesa, emergente do naufrágio da
sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Ela apenas
colocou novas classes, novas condições de opressão, novas estruturas
de luta no lugar das antigas.
A nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se, contudo,
pelo fato de ter simplificado os antagonismos de classes. A sociedade
toda cinde-se, mais e mais, em dois grandes campos inimigos, em
duas grandes classes diretamente confrontadas: burguesia e
proletariado.
Dos servos da Idade Média advieram os burgueses extra-murosl
das primeiras cidades; deste estamento medieval desenvolveram-se
os primeiros elementos da burguesia.
A descoberta da América, a circunavegação da África criaram
um novo terreno para a burguesia ascendente. Os mercados das
índias Orientais e da China, a colonização da América, o intercâmbio
com as colônias, a multiplicação dos meios de troca e das mercadorias
em geral deram ao comércio, à navegação, à indústria um impulso
jamais conhecido; e, com isso, imprimiram um rápido desenvol-
vimento ao elemento revolucionário na sociedade feudal em
desagregação.

1
Pfahlbürger no original ("burguês da paliçada"); o termo designa os habi-
tantes de um espaço situado entre as muralhas do castelo e uma circundante
fronteira de paliçada. Em sua condição social, o Pfahlbürger corresponde
parcialmente ao "vilão" do feudalismo português. Em sentido figurado,
Pfahlbürger significa uma pessoa demasiado limitada, de concepções con-
vencionais e enrijecidas. (N. d. T.)
O funcionamento feudal ou corporativo da indústria, existente
até então, já não bastava para as necessidades que cresciam com os
novos mercados. A manufatura tomou o seu lugar. Os mestres de
corporação foram sufocados pelo estrato médio industrial; a divisão
do trabalho entre as diversas corporações desapareceu perante a
divisão do trabalho no interior da própria oficina particular.
Mas os mercados continuavam a crescer, continuava a aumentar
a necessidade de produtos. Também a manufatura já não bastava
mais. Então o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção
industrial. A grande indústria moderna tomou o lugar da
manufatura; o lugar do estrato médio industrial foi tomado pelos
milionários industriais, os chefes de exércitos industriais inteiros,
os burgueses modernos.
A grande indústria criou o mercado mundial, que a descoberta
da América preparara. O mercado mundial deu ao comércio, à
navegação, às comunicações por terra um desenvolvimento incal-
culável. Este por sua vez reagiu sobre a expansão da indústria, e na
mesma medida em que indústria, comércio, navegação, estradas de
ferro se expandiam, nessa mesma medida a burguesia desenvolvia-
se, multiplicava seus capitais, empurrava a um segundo plano todas
as classes provenientes da Idade Média.
Vemos, portanto, como a própria burguesia moderna é o
produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série
de revoluções (Umwälzungen) nos meios de produção e de
transporte.
Cada uma dessas etapas de desenvolvimento da burguesia veio
acompanhada de um progresso político correspondente. Estrato
social oprimido sob o domínio dos senhores feudais, associação ar-
mada e com administração autônoma na comuna (3); aqui cidade-
república independente, ali terceiro Estado tributário da monarquia;
depois, na era da manufatura, contrapeso à nobreza na monarquia
estamental ou absoluta; base principal das grandes monarquias de
uma forma geral, a burguesia conquistou finalmente para si, desde
a criação da grande indústria e do mercado mundial no moderno
Estado representativo, o domínio político exclusivo. O poder estatal
moderno é apenas uma comissão que administra os negócios comuns
do conjunto da classe burguesa.
A burguesia desempenhou na história um papel extremamente
revolucionário.
Onde quer a burguesia tenha chegado ao poder, ela destruiu
todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Ela rompeu
impiedosamente os variegados laços feudais que atavam o homem
ao seu superior natural, não deixando nenhum outro laço entre os
seres humanos senão o interesse nu e cru, senão o insensível
"pagamento à vista". Ela afogou os arrepios sagrados do arroubo
religioso, do entusiasmo cavalheiresco, da plangência do filisteísmo
burguês, nas águas gélidas do cálculo egoísta. Ela dissolveu a
dignidade pessoal em valor de troca, e no lugar das inúmeras
liberdades atestadas em documento ou valorosamente conquistadas,
colocou uma única inescrupulosa liberdade de comércio. A
burguesia, em uma palavra, colocou no lugar da exploração ocultada
por ilusões religiosas e políticas a exploração aberta, desavergonhada,
direta, seca.
A burguesia despojou de sua auréola sagrada todas as atividades
até então veneráveis, contempladas com piedoso recato. Ela
transformou o médico, o jurista, o clérigo, o poeta, o homem das
ciências, em trabalhadores assalariados, pagos por ela.
A burguesia arrancou às relações familiares o seu comovente
véu sentimental e as reduziu a pura relação monetária.
A burguesia revelou como o dispêndio brutal de forças, que a
reação tanto admira na Idade Média, encontrava a seu complemento
adequado na mais indolente ociosidade. Apenas ela deu provas
daquilo que a atividade dos homens é capaz de levar a cabo. Ela
realizou obras miraculosas inteiramente diferentes das pirâmides
egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas, ela executou
deslocamentos inteiramente diferentes das Migrações dos Povos e
das Cruzadas.
A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente
os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e,
assim, o conjunto das relações sociais. Conservação inalterada do
velho modo de produção foi, ao contrário, a condição primeira de
existência de todas as classes industriais anteriores. O revolucio-
namento contínuo da produção, o abalo ininterrupto de todas as
situações sociais, a insegurança e a movimentação eternas distinguem
a época burguesa de todas as outras. Todas as relações fixas e
enferrujadas, com o seu séquito de veneráveis representações e
concepções, são dissolvidas; todas as relações novas, posteriormente
formadas, envelhecem antes que possam enrijecer-se. Tudo o que
está estratificado e em vigor volatiliza-se, todo o sagrado é profanado,
e os homens são finalmente obrigados a encarar a sua situação de
vida, os seus relacionamentos mútuos com olhos sóbrios.
A necessidade de um mercado cada vez mais expansivo para
seus produtos impele a burguesia por todo o globo terrestre. Ela
tem de alojar-se por toda parte, estabelecer-se por toda parte,
construir vínculos por toda parte.
Através da exploração do mercado mundial, a burguesia
configurou de maneira cosmopolita a produção e o consumo de
todos os países. Para grande pesar dos reacionários, ela subtraiu à
indústria o solo nacional em que tinha os pés. As antiquíssimas
indústrias nacionais foram aniquiladas e ainda continuam sendo
aniquiladas diariamente. São sufocadas por novas indústrias, cuja
introdução se torna uma questão vital para todas as nações
civilizadas, por indústrias que não mais processam matérias-primas
nativas, mas sim matérias-primas próprias das zonas mais afastadas,
e cujos produtos são consumidos não apenas no próprio país, mas
simultaneamente em todas as partes do mundo. No lugar das velhas
necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas
necessidades, que requerem para a sua satisfação os produtos dos
mais distantes países e climas. No lugar da velha auto-suficiência e
do velho isolamento locais e nacionais, surge um intercâmbio em
todas as direções, uma interdependência múltipla das nações. E o
que se dá com a produção material, dá-se também com a produção
intelectual. Os produtos intelectuais das nações isoladas tornam-se
patrimônio comum. A unilateralidade e estreiteza nacionais tornam-
se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturas nacionais e
locais vai se formando uma literatura universal2.

2
Provável referência de Marx e Engels ao conceito de literatura universal
(Weltliteratur) exposto por Goethe a Eckermann em 31 de janeiro de 1827.
Goethe também traça um paralelo entre a constituição da literatura universal e
a expansão internacional do comércio. (N. d. T.)
Através do rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos
de produção, através das comunicações infinitamente facilitadas, a
burguesia arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para
dentro da civilização. Os módicos preços de suas mercadorias são a
artilharia pesada com que ela põe abaixo todas as muralhas da China,
com que ela constrange à capitulação mesmo a mais obstinada
xenofobia dos bárbaros. Ela obriga todas as nações que não queiram
desmoronar a apropriar-se do modo de produção da burguesia; ela
as obriga a introduzir em seu próprio meio a assim chamada
civilização, isto é, a tornarem-se burguesas. Em uma palavra, ela
cria para si um mundo à sua própria imagem.
A burguesia submeteu o campo ao domínio da cidade. Ela criou
cidades enormes, aumentou o número da população urbana, em
face da rural, em alta escala e, assim, arrancou do idiotismo3 da
vida rural uma parcela significativa da população. Da mesma forma
como torna o campo dependente da cidade, ela torna os países
bárbaros e semibárbaros dependentes dos civilizados, os povos
agrários dependentes dos povos burgueses, o Oriente dependente
do Ocidente.
A burguesia vem abolindo cada vez mais a fragmentação dos
meios de produção, da posse e da população. Ela aglomerou a popu-
lação, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade
em poucas mãos. Conseqüência necessária disso tudo foi a
centralização política. Províncias independentes, quase que tão-
somente aliadas, com interesses, leis, governos e sistemas aduaneiros
diversificados, foram aglutinadas em uma nação, um governo, um
interesse nacional de classe, uma fronteira aduaneira.
Em seu domínio de classe que mal chega a um século, a
burguesia criou forças produtivas em massa, mais colossais do que

3
Idiotismus, no original. Em sua "Introdução ao Manifesto Comunista", E.
Hobsbawn observa quanto a essa expressão que, embora os seus autores
partilhassem do costumeiro desprezo do citadino pelo mundo rural, ela possui
antes o sentido de "horizontes estreitos" do que "estupidez". "Ela fazia eco ao
sentido original do termo grego 'idiotes', do qual derivou o significado corrente
de 'idiota' ou 'idiotice', a saber, uma 'pessoa preocupada apenas com seus pró-
prios assuntos particulares e não com os da comunidade mais ampla'." (In
Sobre História, Companhia das Letras, 1998, p. 298.) (N. d. T.)
todas as gerações passadas em conjunto. Subjugação das forças da
natureza, maquinaria, aplicação da química na indústria e na
agricultura, navegação a vapor, estradas de ferro, telégrafos elétricos,
arroteamento de continentes inteiros, canalização dos rios para a
navegação, populações inteiras como que brotando do chão - que
século passado poderia supor que tamanhas forças produtivas
estavam adormecidas no seio do trabalho social!
Nós vimos portanto: os meios de produção e de circulação,
sobre cujas bases a burguesia se formou, foram gerados na sociedade
feudal. Em um certo estágio do desenvolvimento desses meios de
produção e de circulação, as relações nas quais a sociedade feudal
produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da
manufatura, em uma palavra, as relações feudais de propriedade,
não correspondiam mais às forças produtivas já desenvolvidas. Elas
tolhiam a produção, em vez de fomentá-la. Transformavam-se assim
em outros tantos grilhões. Precisavam ser explodidas, foram
explodidas.
Em seu lugar entrou a livre concorrência, com a constituição
social e política que lhe era adequada, com o domínio econômico e
político da classe burguesa.
Sob os nossos olhos processa-se um movimento semelhante.
As relações burguesas de produção e de circulação, as relações
burguesas de propriedade, a moderna sociedade burguesa, que fez
aparecer meios de produção e de circulação tão poderosos, assemelha-
se ao feiticeiro que já não consegue mais dominar os poderes
subterrâneos que invocou. Há decênios a história da indústria e do
comércio vem sendo apenas a história da revolta das modernas for-
ças produtivas contra as modernas relações de produção, contra as
relações de propriedade que constituem as condições vitais da
burguesia e da sua dominação. Basta mencionar as crises comerciais
que, em sua recorrência periódica, questionam de maneira cada vez
mais ameaçadora a existência de toda a sociedade burguesa. Nas
crises comerciais extermina-se regularmente não apenas uma grande
parte dos produtos fabricados, mas também das forças produtivas
já criadas. Deflagra-se nas crises uma epidemia social que a todas as
épocas anteriores apareceria como contra-senso - a epidemia da
superprodução. A sociedade encontra-se remetida subitamente a um
estado de momentânea barbárie; uma epidemia de fome, uma guerra
geral de extermínio parecem ter-lhe cortado todo suprimento de
alimentos; a indústria, o comércio parecem aniquilados - e por quê?
Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados
suprimentos de alimentos, demasiada indústria, demasiado
comércio. Ás forças produtivas que estão à sua disposição já não
servem mais ao fomento das relações de propriedade burguesas; ao
contrário, elas se tornaram por demais poderosas para essas relações,
são tolhidas por elas; e tão logo superam esse obstáculo, levam toda
a sociedade burguesa à desordem, põem em perigo a existência da
propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se demasiado
estreitas para abarcar a riqueza gerada por elas. - Através de que
meios a burguesia supera as crises? Por um lado, pelo extermínio
forçado de grande parte das forças produtivas; por outro lado, pela
conquista de novos mercados e da exploração mais metódica dos
antigos mercados. Como isso acontece então? Pelo fato de que a
burguesia prepara crises cada vez mais amplas e poderosas, e reduz
os meios de preveni-las.
As armas com as quais a burguesia derruiu o feudalismo
voltam-se agora contra a própria burguesia.
Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem a
morte; ela produziu também os homens que portarão essas armas -
os operários modernos, os proletários.
Na mesma medida em que a burguesia, isto é, o capital,
desenvolve-se, desenvolve-se o proletariado, a classe dos modernos
operários, os quais só subsistem enquanto encontram trabalho, e só
encontram trabalho enquanto o seu trabalho aumenta o capital. Esses
operários, que têm de vender-se um a um, são uma mercadoria como
qualquer outro artigo de comércio e, por isso, igualmente expostos a
todas as vicissitudes da concorrência, a todas as oscilações do mercado.
O trabalho dos proletários perdeu, pela expansão da maqui-
naria e pela divisão do trabalho, todo caráter autônomo e, com isso,
todo atrativo para o operário. Ele torna-se um mero acessório da
máquina, do qual é exigido apenas o mais simples movimento de
mãos, o mais monótono, o mais fácil de aprender. Os custos que o
operário causa restringem-se por isso quase que tão-somente aos
alimentos de que ele carece para o sustento próprio e para a
reprodução de sua espécie (Rasse). Mas o preço de uma mercadoria,
portanto também do trabalho, é igual aos seus custos de produção.
Na mesma medida em que cresce o caráter repugnante do trabalho,
diminui por isso mesmo o salário. Mais ainda, na mesma medida
em que a maquinaria e a divisão do trabalho aumentam, aumenta a
massa do trabalho, seja pela multiplicação das horas de trabalho,
seja pela multiplicação do trabalho exigido em um tempo
determinado, pelo funcionamento acelerado da máquina etc.
A indústria moderna transformou a pequena oficina do mestre
patriarcal na grande fábrica do capitalista industrial. Massas de
operários, aglomeradas na fábrica, são organizadas de forma
soldadesca. Como soldados rasos da indústria, são colocados sob a
supervisão de uma hierarquia completa de suboficiais e oficiais. Eles
não apenas são servos da classe burguesa, do Estado burguês;
diariamente e a cada hora eles são escravizados pela máquina, pelo
supervisor e, sobretudo, por cada um dos fabricantes burgueses.
Esse despotismo é tanto mais mesquinho, odioso, encarniçado,
quanto mais abertamente ele proclama o lucro como o seu objetivo.
Quanto menos o trabalho manual requer habilidade e dis-
pêndio de forças, isto é, quanto mais a indústria moderna se desen-
volve, tanto mais o trabalho dos homens é sufocado pelo das mu-
lheres. Diferenças de sexo e de idade não têm mais qualquer validade
social para a classe operária. Só restam ainda instrumentos de
trabalho que, de acordo com idade e sexo, perfazem custos variados.
Se a exploração do operário pelo fabricante está terminada no
momento em que aquele recebe seu salário em dinheiro vivo, abatem-
se sobre ele então as outras parcelas da burguesia, o proprietário do
imóvel, o dono da mercearia, o penhorista etc.
Os pequenos estratos médios até hoje existentes, os pequenos
industriais, comerciantes e os que vivem de pequenas rendas, os
artesãos e os camponeses, todas essas classes decaem no proletariado,
em parte porque o seu pequeno capital não basta para o grande
empreendimento industrial e sucumbe à concorrência com os
capitalistas maiores, em parte porque a sua habilidade é desvalorizada
pelos novos modos de produção. Assim recruta-se o proletariado
de todas as classes da população.
No início lutam os operários isolados, depois os operários de
uma fábrica, depois os operários de um ramo industrial, numa
mesma região, contra um burguês particular, que os explora dire-
tamente. Eles dirigem os seus ataques não apenas contra as relações
de produção burguesas; eles os dirigem contra os próprios instru-
mentos de produção; eles aniquilam as mercadorias estrangeiras
concorrentes, destroçam as máquinas, ateiam fogo nas fábricas,
buscam reconquistar a soterrada posição do trabalhador medieval.
Nessa etapa os operários formam uma massa dispersa por todo
o país e fragmentada pela concorrência. Agregação em massa dos
operários ainda não é a conseqüência de sua própria associação,
mas sim a conseqüência da associação da burguesia que, para alcançar
seus próprios objetivos políticos, tem de mobilizar todo o
proletariado, o que por enquanto ela ainda consegue. Nessa etapa,
portanto, os proletários combatem não os seus inimigos, mas sim
os inimigos de seus inimigos, os resquícios da monarquia absoluta,
os proprietários de grandes territórios, os burgueses não-industriais,
os pequenos burgueses. Toda a movimentação histórica está
concentrada assim nas mãos da burguesia; toda vitória assim
conquistada é uma vitória da burguesia.
Mas com o desenvolvimento da indústria não apenas se
multiplica o proletariado; este é agregado em massas cada vez
maiores, sua força cresce e torna-se mais perceptível para ele. Os
interesses, as situações de vida no interior do proletariado
equiparam-se cada vez mais, à medida que a maquinaria dissipa
cada vez mais as diferenças do trabalho e, por quase toda parte,
comprime o salário para um nível igualmente baixo. A crescente
concorrência entre os burgueses e as crises de comércio daí
resultantes fazem o salário do operário oscilar cada vez mais; o
aperfeiçoamento incessante da maquinaria, desenvolvendo-se com
crescente rapidez, torna cada vez mais insegura toda a sua condição
de vida; cada vez mais, as colisões entre o operário particular e o
burguês particular assumem o caráter de colisões entre duas classes.
Os operários começam a constituir coalizões contra os burgueses;
eles congregam-se para a garantia de seus salários. Chegam mesmo
a fundar associações permanentes com a finalidade de criar provisões
de mantimentos para eventuais revoltas. Aqui e acolá, a luta eclode
em sublevação.
De tempos em tempos triunfam os operários, mas apenas
provisoriamente. O resultado efetivo de suas lutas não é o êxito
imediato, mas sim uma união operária em crescente expansão. Ela é
fomentada pelos meios de comunicação que, gerados pela grande
indústria, se avolumam e colocam os operários das diversas
localidades em contato mútuo. O mero contato, porém, basta para
centralizar as muitas lutas locais, com caráter semelhante por toda
parte, em uma luta nacional, em uma luta de classes. Mas toda luta
de classes é uma luta política. £ a união, para a qual os burgueses da
Idade Média, com seus caminhos vicinais, necessitaram de séculos,
os proletários modernos, com as estradas de ferro, a executam em
poucos anos.
Essa organização dos proletários em classe, e com isso em
partido político, é a todo momento rompida pela concorrência en-
tre os próprios operários. Mas ela ressurge sempre de novo, mais
forte, mais sólida, mais poderosa. Ela impõe o reconhecimento de
interesses particulares dos operários em forma de lei, à medida que
se aproveita das cisões internas da burguesia. É o caso da lei da
jornada de dez horas, na Inglaterra.
As colisões no interior da velha sociedade promovem em geral,
de múltiplos modos, o processo de desenvolvimento do proletariado.
A burguesia encontra-se em luta contínua: no início, contra a
aristocracia; mais tarde, contra as frações da própria burguesia cujos
interesses entraram em contradição com o progresso da indústria; e
sempre, contra a burguesia de todos os países estrangeiros. Em todas
essas lutas, ela se vê obrigada a apelar ao proletariado, a reivindicar
a sua ajuda e, assim, a engolfá-lo no movimento político. Ela mesma,
portanto, leva ao proletariado os seus próprios elementos de
formação4, isto é, armas contra si mesma.

4
Na edição de 1888 lê-se: "os elementos de sua própria formação política e
geral".
Além disso, como vimos, contingentes inteiros da classe
dominante são arrastados para o proletariado em virtude do
progresso da indústria, ou pelo menos ameaçados em suas condições
de vida. Também esses contingentes levam ao proletariado grande
quantidade de elementos de formação5.
Em tempos, por fim, em que a luta de classes se aproxima da
decisão, o processo de dissolução no interior da classe dominante,
no interior de toda a velha sociedade, assume um caráter tão violento,
tão estridente, que uma pequena fração da classe dominante se
desliga dela e se associa à classe revolucionária, à classe que traz o
futuro em suas mãos. Por isso, assim como outrora uma parcela da
nobreza passou para a burguesia, uma parcela da burguesia passa
agora para o proletariado, e notadamente uma parcela dos ideólogos
burgueses que se alçaram à compreensão teórica do movimento
histórico em sua totalidade.
De todas as classes que se defrontam hoje com a burguesia, só
o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As classes
restantes vão se degenerando e afundam sob a grande indústria; o
proletariado é o seu produto mais genuíno.
Os estratos médios, o pequeno industrial, o pequeno comer-
ciante, o artesão, o camponês, todos eles combatem a burguesia para
salvar sua existência, enquanto estratos médios, do naufrágio. Eles,
portanto, não são revolucionários, mas sim conservadores. Mais
ainda, são reacionários, procuram girar para trás a roda da história.
Se eles são revolucionários, então só o são com vistas à sua passagem
iminente para o proletariado, e assim defendem não os seus interesses
atuais, mas os futuros, assim abandonam a sua posição própria para
colocarem-se na do proletariado.
O lumpenproletariado, esse apodrecimento passivo das camadas
mais baixas da velha sociedade, é parcialmente arrastado para o
movimento por uma revolução proletária; em consonância com toda
a sua situação de vida, ele estará mais pronto a se deixar comprar
para maquinações reacionárias.

5
Na edição de 1888: "elementos de esclarecimento e de progresso".
As condições de vida da velha sociedade já estão aniquiladas
nas condições de vida do proletariado* O proletariado é despossuído;
sua relação com mulher e filhos não tem nada mais em comum com
a relação familiar burguesa; o moderno trabalho industrial, a
moderna subjugação operada pelo capital, na Inglaterra a mesma
que na França, na América a mesma que na Alemanha, despojou o
proletário de todo caráter nacional. As leis, a moral, a religião são
para ele outros tantos preconceitos burgueses, atrás dos quais se
escondem outros tantos interesses burgueses.
Todas as classes anteriores que conquistaram o poder para si,
procuraram assegurar a sua condição de vida já adquirida à medida
que submetiam toda a sociedade às condições de sua aquisição. Os
proletários só podem conquistar as forças produtivas sociais à
medida que abolem o seu próprio modo de apropriação e, assim,
todo o modo de apropriação até hoje existente. Os proletários nada
têm de seu para assegurar, eles têm de destruir todas as seguranças
privadas e todos as garantias privadas até hoje existentes.
Todos os movimentos até o presente foram movimentos de
minorias ou em proveito de minorias. O movimento proletário é o
movimento autônomo da maioria esmagadora em proveito da
maioria esmagadora. O proletariado, a camada mais baixa da socie-
dade atual, não pode erguer-se, aprumar-se, sem que vá para os ares
toda a superestrutura dos estamentos que formam a sociedade oficial.
Ainda que não pelo conteúdo, pela forma a luta do proletariado
contra a burguesia é primeiramente uma luta nacional. O prole-
tariado de todo e qualquer país tem primeiro, naturalmente, de dar
conta de sua própria burguesia.
Na medida em que traçamos as fases mais gerais do
desenvolvimento do proletariado, acompanhamos a guerra civil, que
se desenrola de forma mais ou menos oculta no interior da sociedade
em vigor, até o ponto em que eclode em uma revolução aberta e,
pela derrubada violenta da burguesia, o proletariado estabelece a
sua dominação:
Toda sociedade até hoje existente assentou-se, como vimos, no
antagonismo de classes opressoras e oprimidas. Mas para que se
possa oprimir uma classe é necessário assegurar-lhe condições em
cujo âmbito ela consiga ao menos manter sua existência servil. O
servo alçou-se a membro da comuna durante a servidão, assim como
o pequeno-burguês alçou-se à condição de burguês sob o jugo do
absolutismo feudal. O operário moderno, ao contrário, em vez de
elevar-se com o progresso da indústria, vai caindo cada vez mais
fundo, abaixo das condições de sua própria classe. O operário torna-
se um pauperizado (Pauper), e o pauperismo desenvolve-se ainda
mais depressa do que a população e a riqueza. Com isso, torna-se
evidente que a burguesia é incapaz de permanecer por mais tempo
como a classe dominante da sociedade e de impor à sociedade, como
lei reguladora, as condições de vida de sua classe. Ela é incapaz de
dominar porque é incapaz de assegurar aos seus escravos uma
existência mesmo no âmbito da escravidão, porque ela é obrigada a
deixá-los descer a uma situação em que ela tem de alimentá-los, em
vez de ser alimentada por eles. A sociedade não pode mais viver sob
a burguesia, isto é, a vida desta não é mais compatível com a
sociedade.
A condição essencial para a existência e para a dominação da
classe burguesa é a acumulação da riqueza em mãos privadas, a
formação e a multiplicação do capital; a condição do capital é o
trabalho assalariado. O trabalho assalariado assenta-se exclusi-
vamente sobre a concorrência dos operários entre si. O progresso
da indústria, de que a burguesia é o representante indolente e apático,
substitui o isolamento dos operários, que se dá através da concor-
rência, pela sua união revolucionária através da associação. Com o
desenvolvimento da grande indústria, subtrai-se portanto à
burguesia a própria base sobre a qual ela produz e apropria-se dos
produtos. Ela produz em primeiro lugar o seu próprio coveiro. A
sua derrocada e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.

II Proletários e Comunistas
De que forma os comunistas se relacionam com os proletários
em geral?
Os comunistas não constituem, em face dos outros partidos
operários, nenhum partido particular.
Eles não possuem interesses separados dos interesses do
conjunto do proletariado.
Eles não sustentam princípios particulares, de acordo com os
quais queiram moldar o movimento proletário.
Por um lado, os comunistas só diferenciam-se dos restantes
partidos proletários pelo fato de enfatizarem e fazerem prevalecer,
nas várias lutas nacionais dos proletários, os interesses comuns de
todo o proletariado, independentes da nacionalidade; e, por outro
lado, pelo fato de sempre representarem, nas diversas etapas de
desenvolvimento por que passa a luta entre proletariado e burguesia,
os interesses do movimento em seu conjunto.
Os comunistas são assim, na prática, a fração mais decidida
dos partidos operários de todos os países, a qual sempre impulsiona
para diante; na teoria, eles têm de vantagem sobre a massa restante
do proletariado a percepção consciente das condições, da marcha e
dos resultados gerais do movimento proletário.
O objetivo mais próximo dos comunistas é o mesmo de todos
os demais partidos proletários: formação do proletariado em classe,
derrubada da dominação burguesa, conquista do poder político pelo
proletariado.
As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam de forma
alguma em idéias, em princípios inventados ou descobertos por esse
ou aquele reformador do mundo.
Elas são apenas expressões gerais de relações efetivas de uma
luta de classes existente, expressões de um movimento histórico que
se desenrola sob os nossos olhos. A abolição das relações de
propriedade até hoje em vigor não é nada que assinale o comunismo
de maneira peculiar.
Todas as relações de propriedade estiveram submetidas a uma
constante mudança histórica, a uma constante transformação
histórica.
A Revolução Francesa, por exemplo, aboliu a propriedade feu-
dal em benefício da burguesa.
O que distingue o comunismo não é a abolição da propriedade
em geral, mas sim a abolição da propriedade burguesa.
Mas a moderna propriedade privada burguesa é a expressão
ultima e mais acabada do modo de produção e apropriação de
produtos que repousa em antagonismos de classes, na exploração
de umas pelas outras.
Nesse sentido, os comunistas podem resumir a sua teoria na
única expressão: supressão da propriedade privada.
Censuraram a nós, comunistas, querer abolir a propriedade
adquirida de forma pessoal, finito do próprio trabalho; a propriedade
que constitui a base de toda a liberdade, atividade e autonomia
pessoais.
Propriedade adquirida, fruto do próprio trabalho e do mérito!
Vocês estão falando da propriedade do pequeno-burguês, do pequeno
camponês, a qual precedeu a propriedade burguesa? Nós não
precisamos aboli-la, o desenvolvimento da indústria aboliu-a e vai
abolindo-a diariamente.
Ou vocês estão falando da moderna propriedade privada
burguesa?
Mas o trabalho assalariado, o trabalho do proletário, cria-lhe
propriedade? De forma alguma. Ele cria o capital, isto é, a proprie-
dade que explora o trabalho assalariado, que só pode multiplicar-se
sob a condição de produzir novo trabalho assalariado para explorá-
lo renovadamente. Em sua forma atual, a propriedade move-se no
interior do antagonismo entre capital e trabalho assalariado.
Contemplemos os dois lados desse antagonismo.
Ser capitalista significa assumir não apenas uma posição
meramente pessoal na produção, mas também uma posição social.
O capital é um produto coletivo e só pode ser posto em movimento
mediante a atividade comum de muitos membros, e até mesmo, em
última instância, mediante a atividade comum de todos os membros
da sociedade.
O capital, portanto, não é uma potência pessoal, ele é uma
potência social.
Assim, ao transformar-se o capital em propriedade coletiva,
pertencente a todos os membros da sociedade, então não é propriedade
pessoal que se transforma em coletiva. Transforma-se apenas o
caráter social da propriedade. Ele perde o seu caráter de classe.
Passemos ao trabalho assalariado:
O preço médio do trabalho assalariado é o mínimo do salário
de trabalho, isto é, a soma dos meios de subsistência que são neces-
sários para manter a vida do operário enquanto operário. Aquilo,
portanto, de que o operário assalariado se apropria mediante a sua
atividade, é suficiente tão-somente para reproduzir a sua vida pura
e simples. Nós não queremos de forma alguma abolir essa
apropriação pessoal dos produtos do trabalho para a reprodução da
vida imediata, uma apropriação que não deixa nenhum lucro líquido
que poderia conferir poder sobre trabalho alheio. Queremos apenas
suprimir o caráter miserável dessa apropriação, na qual o operário
vive apenas para multiplicar o capital, e vive tão-somente enquanto
o requer o interesse da classe dominante.
Na sociedade burguesa o trabalho vivo é apenas um meio de
multiplicar o trabalho acumulado. Na sociedade comunista o
trabalho acumulado é apenas um meio para ampliar, enriquecer,
fomentar o processo de vida do operário.
Na sociedade burguesa o passado impera, portanto, sobre o
presente; na comunista, o presente sobre o passado. Na sociedade
burguesa o capital é autônomo e pessoal, enquanto que o indivíduo
ativo é impessoal e privado de autonomia.
E à supressão dessa relação a burguesia chama supressão da
personalidade e da liberdade! E com razão. Trata-se todavia da
supressão da personalidade, da autonomia e da liberdade dos
burgueses.
Por liberdade entende-se, no âmbito das atuais relações de
produção burguesas, o livre comércio, a livre compra e venda.
Mas se cai a barganha, então cai também a barganha livre. De
uma maneira geral, todo o palavrório referente à livre barganha,
como todas as demais bravatas de nossa burguesia sobre a liberdade,
só fazem sentido em face da barganha tolhida, do burguês subjugado
da Idade Média, mas não em face da supressão comunista da
barganha, das relações burguesas de produção e da própria
burguesia.
Vocês se horrorizam com o fato de querermos suprimir a
propriedade privada. Mas na sociedade vigente, na sociedade de
vocês, a propriedade privada está abolida para nove décimos de seus
membros; ela existe exatamente por não existir para nove décimos.
Vocês, portanto, censuram-nos querer suprimir uma propriedade
que pressupõe, como condição necessária, a privação de propriedade
para a maioria esmagadora da sociedade.
Vocês nos censuram, em uma palavra, querer suprimir a
propriedade de vocês. Todavia, é isso mesmo que queremos.
A partir do momento em que o trabalho não possa mais ser
transformado em capital, dinheiro, renda fundiária, em suma, em
uma potência social monopolizável, isto é, a partir do momento em
que a propriedade pessoal não possa mais reverter em propriedade
burguesa, a partir desse momento, declaram vocês, a pessoa estaria
suprimida.
Vocês confessam, portanto, não conceber sob a condição de
pessoa nada além do burguês, do proprietário burguês. E essa pessoa,
todavia, precisa ser suprimida.
O comunismo não tira de ninguém o poder de apropriar-se de
produtos sociais, ele apenas tira o poder de subjugar trabalho alheio
mediante essa apropriação.
Objetou-se que com a supressão da propriedade privada cessaria
toda atividade e irromperia uma indolência geral.
De acordo com isso, a sociedade burguesa deveria ter perecido
há muito tempo na indolência; pois os que nela trabalham, não
lucram, e os que nela lucram, não trabalham. Todo esse escrúpulo
converge para a tautologia de que não mais existirá trabalho
assalariado tão logo não exista mais capital.
Todas as investidas, que são dirigidas ao modo comunista de
apropriação e de produção dos produtos materiais, foram igualmente
estendidas à apropriação e à produção dos produtos intelectuais.
Da mesma maneira como para o burguês o cessamento da
propriedade de classe é o cessamento da própria produção, assim o
cessamento da formação de classe é para ele idêntico ao cessamento
da formação cultural de uma forma geral.
A formação cultural, cuja perda ela lamenta, é para a imensa
maioria a formação direcionada para a máquina.
Mas não venham discutir conosco enquanto avaliarem a
abolição da propriedade burguesa com a medida das suas
representações burguesas de liberdade, formação, direito etc. As
próprias idéias de vocês são produtos das relações burguesas de
produção e propriedade, como o sistema jurídico de vocês é apenas
a vontade de sua classe elevada à condição de lei, uma vontade cujo
conteúdo está dado nas condições materiais de vida da classe de
vocês.
A representação interessada, que os leva a transformar as suas
relações de produção e propriedade - de relações históricas,
transitórias no desenrolar da produção, em leis eternas da natureza
e da razão -, vocês a partilham com todas as classes dominantes
desaparecidas. O que vocês compreendem em relação à propriedade
antiga, o que compreendem em relação à propriedade feudal, vocês
não podem mais compreender em relação à propriedade burguesa.
Supressão da família! Mesmo os mais radicais exaltam-se com
esse infame desígnio dos comunistas.
Sobre o que repousa a família atual, a família burguesa? Sobre
o capital, sobre o lucro privado. Somente para a burguesia ela existe
de forma plenamente desenvolvida; mas ela encontra o seu
complemento na carência de família imposta aos proletários e na
prostituição pública.
A família dos burgueses é naturalmente eliminada com a
eliminação desse seu complemento, e ambos desaparecem com o
desaparecimento do capital.
Vocês censuram-nos querer suprimir a exploração dos filhos
pelos pais? Nós confessamos esse crime.
Mas, dizem vocês, nós suprimimos as relações mais íntimas à
medida que colocamos a educação social no lugar da doméstica.
E a educação de vocês não está também determinada pela
sociedade? Pelas relações sociais em cujo âmbito vocês educam, pela
ingerência mais ou menos direta ou indireta da sociedade por meio
da escola etc.? Os comunistas não inventam o influxo da sociedade
sobre a educação; eles apenas modificam o seu caráter, eles subtraem
a educação à influência da classe dominante.
O palavrório burguês sobre família e educação, sobre a íntima
relação de pais e filhos torna-se tanto mais repugnante quanto mais
todos os laços familiares, em conseqüência da grande indústria, são
rompidos para os proletários e as suas crianças transformadas em
simples artigos de comercio e instrumentos de trabalho*
Mas vocês, comunistas, querem introduzir a comunidade das
mulheres, grita em coro, aos nossos ouvidos, a burguesia inteira.
O burguês enxerga em sua mulher um mero instrumento de
produção. Ele ouve dizer que os instrumentos de produção devem
ser explorados comunitariamente, e é natural que não consiga pensar
outra coisa senão que o destino do sistema de comunidade irá atingir
igualmente as mulheres.
Ele não imagina que se trata precisamente de suprimir a posição
das mulheres enquanto meros instrumentos de produção.
De resto, nada mais ridículo do que o espanto altamente
moralista dos nossos burgueses diante da comunidade oficial de
mulheres pretensamente proposta pelos comunistas. Os comunistas
não precisam introduzir a comunidade de mulheres, ela existiu quase
sempre.
Os nossos burgueses, não satisfeitos em ter à sua disposição as
mulheres e as filhas dos seus proletários, para não falar da prosti-
tuição oficial, encontram supremo divertimento em seduzir mu-
tuamente suas esposas.
O casamento burguês é na realidade a comunidade das esposas.
Poder-se-ia, no máximo, censurar aos comunistas que, em lugar de
uma comunidade de mulheres hipocritamente ocultada, eles queiram
introduzir uma oficial, franca. De resto, entende-se de imediato
que, com a supressão das atuais relações de produção, também a
comunidade de mulheres delas derivada, isto é, a prostituição oficial
e não-oficial desaparece.
Além disso, foi censurado aos comunistas que eles queriam
abolir a pátria, a nacionalidade.
Os operários não têm pátria. Não se pode tirar deles o que não
possuem. Na medida em que o proletariado deve primeiramente
conquistar o domínio político, erigir-se em classe nacional6,
constituir-se ele mesmo enquanto nação, o próprio proletariado é
também nacional, ainda que de forma alguma no sentido da
burguesia.
As segregações nacionais e antagonismos entre povos já vão
desaparecendo mais e mais com o desenvolvimento da burguesia,
com a liberdade de comércio, o mercado mundial, a uniformidade
da produção industrial e as correspondentes relações de vida.
O domínio do proletariado os fará desaparecer ainda mais.
Ação unificada, pelo menos dos países civilizados, é uma das
primeiras condições de sua libertação.
À proporção que a exploração de um indivíduo pelo outro é
suprimida, suprime-se a exploração de uma nação pela outra.
Com o antagonismo de classes no interior da nação, cai a
postura hostil das nações umas com as outras.
As acusações contra o comunismo levantadas de pontos de vista
religiosos, filosóficos e ideológicos em geral, não merecem discussão
mais minuciosa.
Será necessária uma percepção profunda para entender que,
com as relações de vida dos homens, com os seus relacionamentos
sociais, com a sua existência social, também se modificam as suas
representações, as suas concepções e os seus conceitos, em uma
palavra, também a sua consciência?
Que outra coisa prova a história das idéias senão que a produção
intelectual se reconfigura com a produção material? As idéias
dominantes de uma época foram sempre tão-somente as idéias da
classe dominante.
Fala-se de idéias que revolucionaram toda uma sociedade; com
isto, apenas profere-se o fato de que, no interior da velha sociedade,
formaram-se os elementos de uma nova sociedade, que a dissolução
das velhas idéias caminha passo a passo com a dissolução das velhas
relações de vida.

6
Na edição de 1888: "em classe dirigente da nação".
Quando o mundo antigo estava em processo de desmo-
ronamento, as religiões antigas foram vencidas pela religião cristã.
Quando as idéias cristãs sucumbiam no século XVIII às idéias
iluministas, a sociedade feudal travava a sua luta de morte com a
então revolucionária burguesia. Ás idéias de liberdade de consciência
e de religião expressavam apenas a dominação da livre concorrência
no âmbito do saber.
"Mas", dir-se-á, "idéias religiosas, morais, filosóficas, políticas,
jurídicas etc. modificam-se todavia no decorrer do desenvolvimento
histórico. A religião, a moral, a filosofia, a política, o direito sempre
mantiveram-se nessa mudança.
Além disso, há verdades eternas, como liberdade, justiça etc.,
comuns a todas as condições sociais. O comunismo, porém, abole
as verdades eternas, ele abole a religião, a moral, ao invés de
configurá-las de novo; ele contraria portanto todos os desen-
volvimentos históricos até aqui."
A que se reduz essa acusação? A história de toda a sociedade
até o presente moveu-se no interior de antagonismos de classes, que
nas diferentes épocas foram configurados de maneira diferente.
Mas não importa a forma que tenham assumido, a exploração
de uma parte da sociedade pela outra é um fato comum a todos os
séculos passados. Não admira, por isso, que a consciência social de
todos os séculos, a despeito de toda a multiplicidade e variedade,
mova-se em certas formas comuns, em formas de consciência que só
se dissolvem plenamente com o desaparecimento completo do
antagonismo de classes.
A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações
de propriedade tradicionais; não admira que no curso de seu
desenvolvimento se rompa de maneira a mais radical com as idéias
tradicionais.
Mas deixemos as investidas da burguesia contra o comunismo.
Já vimos acima que o primeiro passo na revolução operária é a
elevação do proletariado à condição de classe dominante, a conquista
da democracia.
O proletariado utilizará o seu domínio político para subtrair
pouco a pouco à burguesia todo o capital, para centralizar todos os
instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do
proletariado organizado como classe dominante, e para multiplicar
o mais rapidamente possível a massa das forças produtivas.
De início, isto naturalmente só pode acontecer por meio de
intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de
produção burguesas, portanto através de medidas que economi-
camente parecem insuficientes e insustentáveis, mas que no curso
do movimento transcendem o seu próprio âmbito e serão inevitáveis
como meios para o revolucionamento do modo de produção em seu
conjunto.
Naturalmente essas medidas serão diferentes de acordo com
os diferentes países.
Para os países mais desenvolvidos, contudo, as seguintes
medidas poderão ser postas em prática de uma forma um tanto geral:
1. Expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda
fundiária para despesas estatais.
2. Pesado imposto progressivo.
3. Abolição do direito de herança.
4. Confisco da propriedade de todos os emigrantes e
insurrecionados.
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado através de um
banco nacional com capital estatal e monopólio exclusivo.
6. Centralização do sistema de transportes nas mãos do Estado.
7. Multiplicação das fábricas nacionais, dos instrumentos de
produção, arroteamento e melhoria, segundo um plano
comunitário, de grandes extensões de terra.
8. Obrigatoriedade de trabalho para todos, constituição de
exércitos industriais, especialmente para a agricultura.
9. Unificação dos setores da agricultura e da indústria, atuação
no sentido da eliminação gradual da diferença entre cidade e
campo.
10. Educação pública e gratuita para todas as crianças. Eliminação
do trabalho infantil em fábricas na sua forma atual.
Unificação da educação com a produção material etc.

Desaparecidas as diferenças de classes no curso do desenvol-


vimento e concentrada toda a produção nas mãos dos indivíduos
associados, então o poder público perde o caráter político. O poder
político em sentido próprio é o poder organizado de uma classe
para a opressão de uma outra. Se, na luta contra a burguesia, o
proletariado unifica-se necessariamente em classe, converte-se em
classe dominante mediante uma revolução, e como classe dominante
suprime à força as velhas relações de produção, então ele estará
suprimindo, com essas relações de produção, as condições de
existência do antagonismo de classes, as classes em geral e, com
isso, a sua própria dominação enquanto classe.
No lugar da velha sociedade burguesa com as suas classes e
antagonismos de classes surge uma associação na qual o livre
desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desen-
volvimento de todos.

III Literatura socialista e comunista


1. O socialismo reacionário
a) O socialismo feudal
Em consonância com a sua posição histórica, as aristocracias
francesa e inglesa estavam fadadas a escrever panfletos contra a
moderna sociedade burguesa. Na revolução francesa de julho de
1830, no movimento reformista inglês, elas mais uma vez
sucumbiram ao odiado arrivista. Não se podia dizer mais que se
tratava de uma luta política séria. Restou-lhes apenas a luta literária.
Mas também no âmbito da literatura o velho palavrório da época
da restauração (4) tornou-se impossível. Para despertar simpatias,
a aristocracia precisou aparentemente perder de vista os seus inte-
resses e formular sua acusação à burguesia somente no interesse da
classe operária explorada. Ela preparou assim a satisfação de poder
entoar invectivas ao seu novo senhor e sussurrar-lhe aos ouvidos
profecias mais ou menos sinistras.
Dessa maneira surgiu o socialismo feudal, em parte canto de
lamento, em parte pasquim, em parte ressonância do passado, em
parte ameaça do futuro, por vezes acertando, com suas sentenças
amargas, espirituosamente dilacerantes, o coração da burguesia, mas
atuando sempre de maneira cômica em sua total incapacidade de
compreender a marcha da história moderna.
Fizeram com que o saco de esmolas proletário tremulasse em
suas mãos como bandeira, para ajuntar o povo atrás de si. Mas toda
vez que seguia os aristocratas, o povo avistava em seu traseiro os
velhos brasões feudais e dispersava-se com sonoras e irreverentes
gargalhadas.
Uma parte dos Legitimistas franceses e a Jovem Inglaterra
levaram a público esse espetáculo.
Quando os feudais provam que o seu modo de exploração estava
configurado de forma diferente da exploração burguesa, eles
esquecem apenas que exploraram sob circunstancias e condições
inteiramente diversas. Quando demonstram que sob o seu domínio
não existiu o proletariado, então esquecem apenas que essa mesma
burguesia moderna foi um rebento necessário de sua ordem social.
De resto, eles dissimulam tão pouco o caráter reacionário de
sua crítica que a sua principal acusação contra a burguesia consiste
justamente em afirmar que sob o regime burguês se desenvolve uma
classe que irá mandar pelos ares toda a velha ordem social.
O que censuram à burguesia, mais do que gerar um prole-
tariado em geral, é o fato de que ela gera um proletariado revolu-
cionário.
Por isso, na práxis política participam de todas as represálias
violentas contra a classe operária, e na vida comum acomodam-se, a
despeito de todo o seu palavrório enfatuado, em colher os pomos
dourados7 e em trocar fidelidade, amor, honra, pela barganha com
lã, beterraba e aguardente (5).
Da mesmo forma como o clérigo sempre andou de mãos dadas
com o feudal, assim o socialismo clerical anda com o socialismo
feudal.
7
Na edição de 1888: "pomos que caíram da árvore da indústria".
Nada mais fácil do que dar ao ascetismo cristão um verniz
socialista. O cristianismo também não clamou contra a propriedade
privada, o casamento, o Estado? E em seu lugar não pregou a caridade
e a mendicância, o celibato e a mortificação da carne, a vida monástica
e a Igreja? O socialismo cristão é apenas a água benta com que o
clérigo abençoa a irritação do aristcrata.

b) Socialismo pequeno-burguês
A aristocracia feudal não é a única classe derrubada pela bur-
guesia cujas condições de vida definharam e pereceram na moderna
sociedade burguesa. O estamento medieval dos burgueses extra-
muros8 e o estamento dos pequenos camponeses foram os precursores
da moderna burguesia. Nos países industrial e comercialmente
menos desenvolvidos, essa classe ainda continua a vegetar ao lado
da burguesia ascendente.
Nos países em que a moderna civilização se desenvolveu,
formou-se uma nova classe de pequenos burgueses, a qual oscila
entre o proletariado e a burguesia e está sempre se reformulando
enquanto parcela complementar da sociedade burguesa, classe cujos
membros vão sendo arrastados constantemente para o proletariado
e, com o desenvolvimento da grande indústria, vêem inclusive chegar
o momento em que desaparecerão por completo, enquanto parcela
autônoma, da sociedade moderna, e serão substituídos no comércio,
na manufatura, na agricultura, por supervisores de trabalho e por
criados (Domestiken).
Em países como a França, em que a classe camponesa perfaz
bem mais do que a metade da população, foi natural que escritores
que se alinhavam com o proletariado e contra a burguesia aplicassem
à sua crítica do regime burguês o padrão dos pequenos burgueses e
pequenos camponeses, tomando assim o partido dos operários a
partir do ponto de vista da pequena-burguesia. Constituiu-se dessa
maneira o socialismo pequeno-burguês. Sismondi é o cabeça dessa
literatura não apenas para a França, mas também para a Inglaterra.
Esse socialismo dissecou com extrema perspicácia as
contradições existentes nas modernas relações de produção. Ele
8
Mittelalterliches Pfahlbürgertum, no original (v. nota 1)
desvendou os embelezamentos hipócritas dos economistas.
Demonstrou de maneira irrefutável os efeitos destrutivos da
maquinaria e da divisão do trabalho, a concentração dos capitais e
da propriedade fundiária, a superprodução, as crises, a necessária
derrocada dos pequenos burgueses e camponeses, a miséria do
proletariado, a anarquia na produção, as desproporções gritantes
na distribuição da riqueza, a guerra industrial de extermínio entre
as nações, a dissolução dos velhos costumes, das velhas relações
familiares, das velhas nacionalidades.
Em seu teor positivo, contudo, esse socialismo quer, ou
restabelecer os velhos meios de produção e de circulação, e, com
estes, as velhas relações de propriedade e a velha sociedade, ou então
forçar os modernos meios de produção e de circulação a entrar
novamente no quadro das velhas relações de propriedade, as quais
foram arrebentadas, tiveram de ser arrebentadas por eles. Em am-
bos os casos, ele é reacionário e utópico ao mesmo tempo.
Sistema corporativo na manufatura e economia patriarcal no
campo, esta é a sua última palavra.
Em seu desenvolvimento posterior, essa tendência perdeu-se
em um covarde coro de lamentações9.

c) O socialismo alemão ou o "verdadeiro"


A literatura comunista e socialista da França, que nasceu sob a
pressão de uma burguesia dominante e é a expressão literária da
luta contra esse domínio, foi introduzida na Alemanha em uma
época em que a burguesia estava começando sua luta contra o
absolutismo feudal.
Filósofos alemães, semifilósofos e beletristas apoderaram-se
avidamente dessa literatura, e esqueceram apenas que, com a
imigração daqueles escritos da França, não haviam imigrado ao
mesmo tempo para a Alemanha as relações de vida francesas. Diante
das relações alemãs, a literatura francesa perdeu todo significado

9
Na edição de 1888: "Por fim, quando os obstinados fatos históricos espantaram
toda a embriaguez da auto-ilusão, essa forma de socialismo degenerou em um
lamentável coro de lamentações."
prático imediato e assumiu uma aparência meramente literária. Foi
forçoso aparecer como especulação ociosa sobre a realização da
essência humana. Para os filósofos alemães do século XVIII, as
reivindicações da primeira Revolução Francesa possuíam assim o
sentido único de ser reivindicações da "razão prática" em geral, e as
manifestações de vontade por parte da burguesia revolucionária
francesa significavam aos seus olhos as leis da vontade pura, da
vontade, como esta tem de ser, da vontade verdadeiramente humana.
O trabalho exclusivo dos literatos alemães consistiu em colocar
as novas idéias francesas em harmonia com a sua velha consciência
filosófica, ou antes apropriar-se das idéias francesas a partir de seu
posicionamento filosófico.
Essa apropriação aconteceu da mesma maneira pela qual
geralmente se apropria de uma língua estrangeira, pela tradução.
É sabido como os monges recobriam manuscritos em que
estavam registradas as obras clássicas da velha era paga com insípidas
histórias católicas de santos. Os literatos alemães procederam de
forma inversa com a literatura francesa profana. Escreviam o seu
disparate filosófico atrás do original francês. Escreviam, por
exemplo, atrás da crítica francesa das relações monetárias, "alienação
da essência humana", atrás da crítica francesa do Estado burguês
escreviam "superação do domínio do geral abstrato" etc.
A inserção sub-reptícia desse palavrório filosófico nos desdo-
bramentos franceses, batizavam-na "filosofia da ação", "socialismo
verdadeiro", "ciência alemã do socialismo", "fundamentação filo-
sófica do socialismo" etc.
Assim, a literatura socialista-comunista francesa foi formal-
mente emasculada. E uma vez que, em mãos alemãs, ela deixou de
expressar a luta de uma classe contra a outra, o alemão ficou
consciente de ter superado a "unilateralidade francesa", de ter
representado, em vez de necessidades verdadeiras, a necessidade da
verdade, e, em vez dos interesses do proletário, os interesses da
essência humana, do homem de uma maneira geral, do homem que
não pertence a nenhuma classe, que de modo algum pertence à
realidade, que pertence apenas ao céu nebuloso da fantasia filosófica.
Esse socialismo alemão, que recebeu seus canhestros exercícios
escolares com tanta seriedade e solenidade e os alardeou de forma
tão charlatanesca, foi perdendo pouco a pouco sua inocência pedante.
A luta da burguesia alemã, notadamente da prussiana, contra
os feudais e a realeza absoluta - em uma palavra, o movimento libe-
ral - tornou-se mais séria.
Ofereceu-se assim ao "verdadeiro" socialismo a desejada
oportunidade de contrapor as reivindicações socialistas ao
movimento político, de lançar os anátemas tradicionais contra o
liberalismo, contra o Estado representativo, contra a concorrência
burguesa, liberdade de imprensa burguesa, direito burguês,
liberdade e igualdade burguesas, e pregar diante da massa popular
que ela não tem nada a ganhar com esse movimento burguês, mas
antes tudo a perder. O socialismo alemão esqueceu a tempo que a
crítica francesa, da qual ele era o eco sem espírito, pressupunha a
moderna sociedade burguesa, com as correspondentes condições
materiais de vida e a constituição política adequada, pressupostos
esses que na Alemanha ainda se tratava de conquistar.
Ele servia aos governos absolutistas alemães, com o seu séquito
de clérigos, mestres-escolas, nobres rurais e burocratas, como
oportuno espantalho contra a burguesia que estava em ameaçadora
ascensão.
Ele constituía o complemento adocicado às amargas chibatadas
e balas de espingarda com que esses mesmos governos tratavam os
levantes operários alemães.
Se de tal maneira o socialismo "verdadeiro" tornou-se uma
arma na mão dos governos contra a burguesia alemã, ele também
representou, de maneira imediata, um interesse reacionário, o in-
teresse da arcaica pequena-burguesia10 alemã. Na Alemanha, a
pequena-burguesia, proveniente do século XVI e desde esse tempo
despontando aqui de forma sempre variada, constitui a efetiva base
social das condições vigentes.

10
Pfahlbürgerschaft, no original; o termo é empregado aqui em seu sentido figurado
(v. nota 1). Na edição de 1888 encontra-se substituído por "filisteus". (N. d. T.)
Sua manutenção é a manutenção das condições vigentes na
Alemanha. Do domínio industrial e político da burguesia, ela teme
a derrocada certa, por um lado em conseqüência da concentração
do capital, por outro lado pelo advento de um proletariado
revolucionário. O socialismo "verdadeiro" pareceu-lhe matar dois
coelhos de uma só cajadada. Ele dissemina-se como uma epidemia.
A roupagem, tecida de especulativas teias de aranha, bordada
com flores da retórica e da beletrística, impregnada de sufocante
orvalho sentimental, essa extravagante roupagem na qual os
socialistas alemães envolveram seu punhado de esquálidas "verdades
eternas", apenas intensifica a aceitação da sua mercadoria entre esse
público.
O socialismo alemão, por seu turno, foi reconhecendo cada
vez mais sua missão de ser o representante tonitruante dessa
pequena-burguesia arcaica.
Ele proclamava a nação alemã como sendo a nação normal e o
filisteu alemão como sendo o homem normal. A cada baixeza deste,
ele dava um sentido oculto, mais elevado, um sentido socialista no
qual essa baixeza significava o seu contrário. Ele chegou às últimas
conseqüências ao postar-se diretamente contra a tendência
"rudimentar e destrutiva" do comunismo e anunciar a sua
superioridade apartidária sobre todas as lutas de classes. Com muito
poucas exceções, tudo o que, de tais escritos pretensamente socialistas
e comunistas, circula na Alemanha pertence ao âmbito dessa litera-
tura suja e enervante (6).

2. O socialismo conservador ou burguês


Uma parcela da burguesia deseja corrigir as mazelas sociais
para assegurar a continuidade da sociedade burguesa.
Pertencem a ela: economistas, filantropos, humanitários,
reformadores da situação das classes trabalhadoras, organizadores
de beneficências, protetores de animais, fundadores de ligas anti-
alcoólicas, tacanhos reformistas das mais variadas espécies. E também
esse socialismo burguês foi elaborado em sistemas completos.
Mencionemos, como exemplo, a "Philosophic de la misère"
de Proudhon.
Os burgueses socialistas querem as condições de vida da
moderna sociedade sem as lutas e os perigos que necessariamente
decorrem delas. Eles querem a sociedade vigente, mas subtraindo
os elementos que a revolucionam e a dissolvem. Eles querem a
burguesia sem o proletariado. A burguesia, naturalmente, representa
para si mesma o mundo em que domina como sendo o melhor dos
mundos. O socialismo dos burgueses elabora essa representação
consoladora em um semi-sistema ou em um sistema completo.
Quando exorta o proletariado a concretizar os seus sistemas e entrar
na nova Jerusalém, então ele só exige no fundo que o proletariado
permaneça na sociedade atual, mas se desfaça das representações
hostis que faz desta.
Uma segunda forma desse socialismo, menos sistemática porém
mais prática, busca tirar a disposição da classe operária para qualquer
movimento revolucionário, demonstrando que não é essa ou aquela
transformação política que lhe poderá ser proveitosa, mas tão-
somente uma transformação das relações materiais de vida, das
relações econômicas. Mas por transformação das relações materiais
de vida, esse socialismo não entende de maneira alguma a abolição
das relações burguesas de produção, a qual só é possível pela via
revolucionária, mas sim melhorias administrativas, que se processam
no terreno dessas relações de produção, e portanto nada alteram na
relação entre capital e trabalho assalariado, mas, no melhor dos
casos, diminuem para a burguesia os custos do seu domínio e
simplificam a sua gestão do Estado.
Esse socialismo dos burgueses só alcança a sua expressão
correspondente quando se converte em mera figura retórica.
Livre comércio! - no interesse da classe trabalhadora; proteções
alfandegárias! - no interesse da classe trabalhadora; prisões em
sistema de celas! - no interesse da classe trabalhadora: eis a ultima
palavra do socialismo dos burgueses, a única levada a sério.
O socialismo da burguesia consiste justamente na afirmação
de que os burgueses são burgueses - no interesse da classe traba-
lhadora.
3. O socialismo e o comunismo crítico-utópicos
Não vamos falar aqui da literatura que em todas as grandes
revoluções modernas expressou as reivindicações do proletariado.
(Escritos de Babeuf etc.)
As primeiras tentativas do proletariado no sentido de fazer
valer seu próprio interesse de classe num tempo de agitação geral,
no período da derrubada da sociedade feudal, fracassaram necessa-
riamente em face da configuração pouco desenvolvida do próprio
proletariado e da carência das condições materiais para a sua
libertação, as quais são justamente o produto da época burguesa. A
literatura revolucionária, que acompanhou essas primeiras
movimentações do proletariado, é necessariamente reacionária em
seu conteúdo. Ela ensina um ascetismo geral e um igualitarismo
grosseiro.
Os sistemas propriamente socialistas e comunistas, os sistemas
de Saint-Simon, Fourier, Owen etc., surgem no primeiro período,
pouco desenvolvido, da luta entre proletariado e burguesia, que
expusemos acima (ver Burguesia e Proletariado 11).
E verdade que os inventores desses sistemas enxergam tanto o
antagonismo das classes como a eficácia dos elementos dissolventes
na própria sociedade dominante. Mas não divisam, no campo do
proletariado, nenhuma autonomia histórica, nenhum movimento
político que lhe seja peculiar.
Como o desenvolvimento do antagonismo das classes caminha
passo a passo com o desenvolvimento da indústria, eles tampouco
encontram as condições materiais para a libertação do proletariado,
e procuram assim por uma ciência social, por leis sociais, no intuito
de criar essas condições.
No lugar da atividade social é preciso entrar a sua própria
atividade inventiva, no lugar das condições históricas de libertação
entram condições fantásticas, no lugar da organização do proleta-
riado em classe, que vai se processando gradualmente, entra uma
organização da sociedade engendrada por eles mesmos. A história

11
Trata-se do segmento I "Burgueses e Proletários".
universal que está por vir dissolve-se para eles na propaganda e na
execução prática de seus planos sociais.
É verdade que estão conscientes de representarem em seus
planos o interesse da classe trabalhadora como sendo a classe mais
sofredora. O proletariado existe para eles somente sob esse ponto
de vista da classe mais sofredora.
Mas a forma pouco desenvolvida da luta de classes assim como
a sua própria situação de vida têm por conseqüência o fato de se
julgarem muito acima daquele antagonismo das classes. Querem
melhorar a situação de vida de todos os membros da sociedade,
mesmo a dos mais bem situados. Por isso apelam continuamente ao
conjunto da sociedade, sem distinção, de preferência, inclusive, à
classe dominante. Basta compreender o seu sistema para reconhecê-
lo como o melhor plano possível da melhor sociedade possível.
Rejeitam por isso toda ação política, notadamente toda ação
revolucionária, querem alcançar a sua meta por via pacífica e tentam
abrir caminho para o novo evangelho social através de pequenos
experimentos, que naturalmente malogram, através da força do
exemplo.
Numa época em que o proletariado ainda se encontra muito
pouco desenvolvido, em que portanto ele mesmo concebe de modo
ainda fantástico a sua própria situação, essa descrição fantástica da
sociedade futura brota12 de seu primeiro anseio intuitivo por uma
reconfiguração geral da sociedade.
Porém, os escritos socialistas e comunistas comportam também
elementos críticos. Atacam todos os fundamentos da sociedade
vigente. Forneceram por isso um material extremamente valioso
para o esclarecimento dos operários. Suas sentenças positivas sobre
a sociedade futura, por exemplo, supressão do antagonismo entre
cidade e campo, supressão da família, do lucro privado, do trabalho
assalariado, o anúncio da harmonia social, a conversão do Estado
em uma mera administração da produção - todas essas suas sentenças
exprimem meramente a eliminação do antagonismo das classes,

12
Nas edições de 1848 e 1888 lê-se, em vez de "brota, nasce" (entspringt), "cor-
responde" (entspricht).
antagonismo que está começando agora a se desenvolver e que
aqueles escritos conhecem tão somente em sua primeira indeter-
minação amorfa. Por isso essas mesmas sentenças têm um sentido
ainda puramente utópico.
O significado do socialismo e do comunismo crítico-utópicos
está na razão inversa de seu desenvolvimento histórico. Na mesma
medida em que a luta de classes se desenvolve e se configura, essa
elevação fantástica sobre tal luta, esse combate fantástico movido
contra esta, perde todo valor prático, toda justificativa teórica. Se,
portanto, os artífices desses sistemas também foram revolucionários
em muitos aspectos, os seus discípulos constituem a cada vez seitas
reacionárias. Aferram-se, em face do contínuo desenvolvimento
histórico do proletariado, às velhas concepções dos mestres. Procu-
ram por isso, de maneira conseqüente, embotar novamente a luta
de classes e conciliar as oposições. Continuam a sonhar com a
realização, em regime experimental, de suas utopias sociais,
instituição de falanstérios isolados, fundação de home-colônias,
implantação de uma pequena Icária (7) - edição em formato redu-
zido (Duodezausgabe) da nova Jerusalém - e para a construção de
todos esses castelos de Espanha precisam apelar à filantropia dos
corações e dos endinheirados bolsos burgueses. Paulatinamente vão
caindo na categoria dos socialistas reacionários e conservadores acima
retratados, e distinguem-se destes tão somente por um pedantismo
mais sistemático, pela crença supersticiosa e fanática nos efeitos
miraculosos de sua ciência social.
Por isso opõem-se com exasperação a todo movimento político
dos operários, o qual só pôde acercar-se do novo evangelho movido
por descrença cega.
Os adeptos de Owen na Inglaterra e de Fourier na França
reagem, lá, contra os cartistas, aqui, contra os reformistas.

IV Posição dos comunistas em relação


aos diversos partidos oposicionistas
Pelo exposto no segmento II, fica evidente a relação dos
comunistas com os partidos operários já constituídos, a sua relação,
portanto, com os cartistas na Inglaterra e os reformadores agrários
na América do Norte.
Eles lutam para alcançar os objetivos e os interesses imediatos
da classe operária, mas no movimento presente representam ao
mesmo tempo o futuro do movimento. Na França os comunistas
aliam-se ao partido social-democrata (8) contra a burguesia conser-
vadora e radical, sem que por isso abram mão do direito de se
relacionar criticamente com a fraseologia e as ilusões legadas pela
tradição revolucionária.
Na Suíça, apoiam os radicais, sem deixar de reconhecer que
esse partido comporta elementos contraditórios, em parte socialistas
democráticos no sentido francês, em parte burgueses radicais.
Entre os poloneses, os comunistas apoiam o partido que faz
de uma revolução agrária condição de libertação nacional, o mesmo
partido que gerou a insurreição cracoviana de 1846.
Na Alemanha, logo que a burguesia entra em cena revolu-
cionariamente, o partido comunista luta em comum com a burguesia
contra a monarquia absoluta, a propriedade rural feudal e a pequena-
burguesice (Kleinbürgerei).
Mas em momento algum deixa de elaborar nos operários uma
consciência a mais clara possível a respeito da oposição hostil entre
burguesia e proletariado, para que os operários alemães possam
converter de imediato as condições sociais e políticas, produzidas
necessariamente pelo domínio burguês, em outras tantas armas
voltadas contra a burguesia, para que, depois da derrubada das
classes reacionárias na Alemanha, comece imediatamente a luta con-
tra a própria burguesia.
E em primeiro lugar para a Alemanha que os comunistas
dirigem sua atenção, porque a Alemanha está às vésperas de uma
revolução burguesa e porque realiza esse revolucionamento sob
condições mais avançadas da civilização européia em geral e com um
proletariado muito mais desenvolvido do que a Inglaterra no século
XVII e a França no século XVIII, só podendo ser portanto, a revolução
burguesa alemã, o prelúdio imediato de uma revolução proletária.
Os comunistas, numa palavra, apoiam por toda parte todo
movimento revolucionário contra as condições sociais e políticas
vigentes.
Em todos esses movimentos eles enfatizam a questão da
propriedade, não importa a forma mais ou menos desenvolvida que
esta possa ter assumido, como sendo a questão fundamental do
movimento.
Os comunistas, por fim, trabalham em toda parte pela união e
pelo entendimento dos partidos democráticos de todos os países.
Os comunistas recusam-se a dissimular suas visões e suas
intenções. Declaram abertamente que os seus objetivos só podem
ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social vigente
até aqui. Que tremam as classes dominantes em face de uma
revolução comunista. Nela os proletários nada têm a perder senão
as suas cadeias. Eles têm um mundo a ganhar.

Proletários de todos os países, uni-vos!

Notas
1 Por burguesia entende-se a classe dos modernos capitalistas, que são
os proprietários dos meios de produção social e exploram o trabalho
assalariado. Por proletariado, a classe dos modernos operários
assalariados que, uma vez que não possuem meios de produção
próprios, estão na dependência de vender a sua força de trabalho para
poder viver. [Nota de F. Engels para a edição inglesa de 1888.]
2 Isto significa, dito de maneira exata, a história legada pela escrita. Em
1847, a pré-história da sociedade, a organização social que precedeu
toda a história escrita, ainda era praticamente desconhecida. Desde
então, Haxthausen descobriu a propriedade comum do solo na Rússia,
Maurer demonstrou que ela é a base social da qual derivaram
historicamente todas as tribos alemãs, e aos poucos verificou-se que
comunidades aldeãs com propriedade comum do solo foram a forma
primordial da sociedade, da índia até a Irlanda. Por fim, a organização
interna dessa sociedade comunista primitiva foi desvendada, em sua
forma típica, pela descoberta culminante de Morgan sobre a verdadeira
natureza da gens e sua relação com a tribo. Com a dissolução desses
sistemas comunitários primordiais, começa a cisão da sociedade em
classes especiais e, por fim, em classes mutuamente opostas. Tentei
acompanhar esse processo de dissolução em A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado; 2a edição, Stuttgart, 1886. [Nota de F.
Engels para a edição inglesa de 1888.]
3 "Comuna" chamavam-se as cidades que surgiam na França, até mesmo
antes de conseguirem arrebatar aos seus mestres e senhores feudais
auto-administração local e direitos políticos como "terceiro Estado".
De forma geral, apresentamos aqui a Inglaterra como país típico para
o desenvolvimento econômico da burguesia; para o seu desenvolvimento
político, a França. [Nota de F. Engels para a edição inglesa de 1888.]
4 Não é a Restauração Inglesa de 1660-1689 que se tem em mente, mas
sim a Restauração Francesa de 1814-1830. [Nota de F. Engels para a
edição inglesa de 1888.]
5 Isto se refere principalmente à Alemanha, onde a nobreza rural e a
classe dos Junker cultivam por conta própria, através de seus adminis-
tradores, uma grande parte de suas terras, e, ao lado disso, são ainda
grandes produtores de açúcar de beterraba e aguardente de batata. Os
aristocratas ingleses, mais ricos, ainda não desceram a tanto; mas
também sabem como compensar a queda dos rendimentos através da
cessão de seus nomes a fundadores de sociedades acionárias de reputação
mais ou menos duvidosa. [Nota de F. Engels para a edição inglesa de
1888.]
6 A tempestade revolucionária de 1848 varreu toda essa sórdida
tendência e estragou o prazer de seus defensores em continuar mexendo
com o socialismo. Principal representante e tipo clássico dessa tendência
é o senhor Karl Grün. [Nota de F. Engels para a edição alemã de 1890.]
7 Falanstério era a designação para as colônias socialistas planejadas
por Charles Fourier; Icária era o nome dado por Cabet a sua Utopia e,
mais tarde, a sua colônia comunista na América. [Nota de F. Engels
para a edição inglesa de 1888.]
Home-colônias (colônias no interior) chama Owen às suas sociedades
comunistas-modelo. Falanstério era o nome dos palácios sociais
planejados por Fourier. Icária chamava-se o pais da fantasia utópico
cujas instituições comunistas Cabet descreveu. [Nota de F. Engels para
a edição alemã de 1890.]
8 O partido que era então representado no parlamento por Ledru-Rollin,
na literatura por Louis Blanc e na imprensa diária pelo Reforme. O
nome "social-democrata" significava, entre esses seus inventores, uma
seção do partido democrático ou republicano com coloração mais ou
menos socialista. [Nota de F. Engels para a edição inglesa de 1888.]
O partido que então se designava na França socialista-democrático era
o partido representado politicamente por Ledru-Rollin e literariamente
por Louis Blanc; era, portanto, abissalmente diferente da atual social-
democracia alemã. [Nota de F. Engels para a edição alemã de 1890.]
Prefácio [à edição alemã de 1872]

A Liga dos Comunistas, uma associação operária internacional


que, sob as condições de então só podia ser naturalmente uma
associação secreta, incumbiu os abaixo-assinados, no congresso
realizado em Londres em novembro de 1847, da redação de um
detalhado programa teórico e prático do partido, destinado à
publicação. Surgiu assim o "Manifesto" que se segue, cujo manus-
crito partiu para a impressão em Londres poucas semanas antes da
revolução de fevereiro. Publicado primeiramente em alemão, foi
reproduzido nesta língua, na Alemanha, na Inglaterra e na América,
em pelo menos doze edições diferentes. Em inglês, apareceu primeiro
em 1850, em Londres, no "Red Republican", traduzido por Miss
Helen MacFarlane, e em 1871 apareceu em pelo menos três traduções
diferentes na América. Em francês, primeiro em Paris, pouco antes
da insurreição de junho de 1848, e recentemente no "Lê Socialiste"
de Nova Yorque. Uma nova tradução está sendo preparada. Em
polonês, apareceu em Londres pouco depois de sua primeira edição
alemã. Em russo, em Genebra, nos anos sessenta. Foi igualmente
traduzido para o dinamarquês pouco depois da sua publicação.
Por mais que as relações tenham se modificado nos últimos
vinte e cinco anos, os princípios gerais desenvolvidos neste "Mani-
festo" conservam ainda hoje, vistos em conjunto, sua plena justeza.
Detalhes poderiam ser melhorados aqui e ali. A aplicação prática
desses princípios, declara o próprio "Manifesto", irá depender em
toda parte e a todo tempo das circunstâncias historicamente dadas,
e por isso não se atribui em absoluto peso especial às medidas
revolucionárias propostas no final do segmento II. Sob muitos
aspectos, este passo se formularia hoje de forma diferente. Em face
do imenso desenvolvimento da grande indústria nos últimos vinte
e cinco anos e, com este, da crescente organização partidária da
classe operária, em face das experiências práticas, primeiro da
revolução de fevereiro e, bem mais ainda, da Comuna de Paris, em
que o proletariado deteve pela primeira vez, ao longo de dois meses,
o poder político, este programa está hoje parcialmente envelhecido.
A Comuna, particularmente, forneceu a prova de que "a classe
operária não pode simplesmente tomar posse da máquina de Estado
constituída e colocá-la em movimento para os seus próprios
objetivos". (Ver "A Guerra Civil na França. Mensagem do Conselho
Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores", edição alemã,
página 19, onde isto se encontra mais desenvolvido.) Além disso, é
natural que a crítica da literatura socialista seja lacunar para os dias
de hoje, porque só chega até 1847; igualmente natural que as
observações sobre a posição dos comunistas em relação aos diversos
partidos oposicionistas (segmento IV), se ainda hoje corretas em
seus traços fundamentais, já estejam hoje, no entanto, envelhecidas
em sua apresentação, uma vez que a situação política se reconfigurou
totalmente e o desenvolvimento histórico varreu do mapa a maioria
dos partidos ali enumerados.
Entretanto, o "Manifesto" é um documento histórico, que não
nos arrogamos mais o direito de modificar. Talvez apareça uma
edição posterior acompanhada de uma introdução que cubra o
período de 1847 até o momento atual; a presente reimpressão pegou-
nos demasiado desprevenidos para nos deixar tempo para isso.

Londres, 24 de junho de 1872


Karl Marx Friedrich Engels

[Prefácio à edição alemã de 1883]

Tenho de assinar sozinho, infelizmente, o prefácio à presente


edição. Marx, o homem a quem toda a classe trabalhadora da Europa
e da América deve mais do que a qualquer outro - Marx descansa
no cemitério de Highgate, e sobre o seu túmulo já cresce a primeira
relva. Desde a sua morte, já não há como falar em refundir ou
complementar o "Manifesto". Pelo que considero tanto mais neces-
sário registrar aqui expressamente, mais uma vez, o seguinte:
O pensamento fundamental que atravessa o "Manifesto": que
a produção econômica e a estruturação social de toda época histórica,
necessariamente decorrente daquela, constituem a base da história
política e intelectual dessa época; que, em consonância com isso,
toda a história (desde a dissolução da primitiva propriedade comum
da terra e do solo) tem sido uma história de lutas de classes, lutas
entre classes exploradas e exploradoras, classes dominadas e
dominantes, em diferentes estágios do desenvolvimento social; mas
que essa luta alcançou agora um estágio em que a classe explorada e
oprimida (o proletariado) não pode mais se libertar da classe que a
explora e oprime (a burguesia) sem ao mesmo tempo libertar toda
a sociedade, para sempre, da exploração, opressão e das lutas de
classes - este pensamento fundamental pertence única e exclusi-
vamente a Marx13.
Eu já o declarei freqüentes vezes; mas justamente agora é
necessário que isso preceda o próprio "Manifesto".
Londres, 28 de junho de 1883
F. Engels

Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. O original em alemão - Manifest der


Kommunistischen Partei - encontra-se à disposição do leitor no Instituto de
Estudos Avançados da USP para eventual consulta.

13
"Desse pensamento", digo eu no prefácio à tradução inglesa, "que no meu
modo de ver está fadado a fundamentar para a ciência da História o mesmo
progresso que a teoria de Darwin fundamentou para as Ciências Naturais -
desse pensamento nós dois já nos havíamos paulatinamente aproximado alguns
anos antes de 1845. Até que ponto eu avançara nessa direção por conta própria,
mostra-o a minha "Situação da classe trabalhadora na Inglaterra". Mas quando
reencontrei Marx em Bruxelas, na primavera de 1845, ele o tinha formulado
de maneira acabada e o expôs a mim em palavras quase tão claras como estas
com que eu o resumi acima. [Nota de Engels inserida posteriormente na edição
alemã de 1890.]
Chegada do Manifesto
LEANDRO KONDER

S IDÉIAS DE MARX E ENGELS demoraram muito para chegar a serem estuda-


A das no nosso país. Os próprios nomes dos dois pensadores revolucioná-
rios custaram a aparecer entre nós.
O fenômeno tem sua explicação: não decorreu pura e simplesmente do
acaso, nem resultou da desídia dos brasileiros. As concepções teóricas e políti-
cas elaboradas por Marx e Engels estavam ligadas a uma história diferente da
nossa e constituíam a expressão de uma situação bastante diversa daquela em
que se encontrava o recém-inventado Brasil no século XIX
A perspectiva dos autores do Manifesto Comunista pressupunha a Revo-
lução Francesa, os jacobinos, a Conjuração dos Iguais, os sonhos de Saint-Simon
e Fourier, bem como o desencadeamento da Revolução Industrial e o início da
organização do movimento operário. Na sociedade escravista, sob o Segundo
Império, os brasileiros não tinham como reconhecer em toda a sua extensão o
significado das idéias dos dois teóricos socialistas.
É atualmente impossível (e provavelmente nunca se conseguirá) apurar
com segurança a partir de que momento o nome de Marx passou a ser mencio-
nado no Brasil. No período que se seguiu imediatamente à Comuna de Paris,
em 1871, entretanto, Marx já aparece, não como o autor do Manifesto, mas
como dirigente da Associação Internacional dos Trabalhadores (mais tarde cha-
mada de a Primeira Internacional), que era acusada de ter incentivado e até
comandado ações subversivas na França.
Depois, nos anos que se seguiram imediatamente à sua morte, em 1883,
Marx volta a aparecer e seu nome é mencionado por alguns intelectuais (os
quais, com certeza, na imensa maioria, não o leram) como Tobias Barreto,
Clóvis Bevilacqua, Sílvio Romero, Rui Barbosa, Farias Brito e o bem-humorado
Machado de Assis, que fez uma crônica divertidíssima sobre um emissário da
Associação Internacional dos Trabalhadores que chegara em missão secreta ao
Brasil.
Quando Machado de Assis escreveu sua crônica, a Primeira Internacio-
nal (a de Marx) já se havia dissolvido (em 1872) e já tinha sido criada a Segunda
Internacional (em 1889). E já existiam alguns adeptos dos ideais socialistas
entre nós, sintonizados - embora precariamente - com a movimentação que se
fazia na Europa.
Abolida a escravidão negra e proclamada a República, a sociedade sofreu
pequenas mas sintomáticas mudanças e surgiram alguns militantes atuando de
acordo com a nova proposta vinculada ao nome de Marx. Entre eles: João
Ezequiel de Oliveira Luz, Mariano Garcia, Estevam Estrella, Silvério Fontes,
Antônio Piccarollo, Alcibiade Bertolotti, Alceste de Ambrys. É quase certo que
alguns desses socialistas do começo do século XX leram o Manifesto Comunis-
ta, muito provavelmente em versão francesa ou italiana.
Na publicação que comunicava a fundação do Partido Socialista (que
durou pouco) em 1902, em São Paulo, havia um apêndice com uma lista de
livros que eram recomendados para o estudo do socialismo scientífico. E no
meio dos textos indicados estava uma edição francesa do famoso panfleto.
Durante muitos anos, ainda, só quem podia ler textos em francês, em
italiano, em alemão ou em espanhol tinha condições para acesso direto ao
Manifesto. Até que, em 1923, o ex-anarquista Octavio Brandão, convertido ao
movimento comunista, traduziu o Manifesto para o nosso idioma. O texto foi
publicado pelo jornal Voz Cosmopolita, partir do número 38 (correspondente
a 1º de dezembro de 1923). O jornal era, como se lia na primeira página, o
"órgão dos empregados em hotéis, restaurantes, cafés, bars e annexos". Em
seguida apareceu em forma de livro, impresso em Porto Alegre (1924), com a
indicação: "traduzido da edição francesa de Laura Lafargue (filha de Marx),
revista por Engels". Outra tradução seria feita em 1931, por um tradutor anô-
nimo, e lançada em São Paulo pela editora Unitas.
Depois, as edições se multiplicaram, algumas semiclandestinas em épo-
cas de ditadura, outras acompanhadas por vigorosos esforços publicitários nos
períodos de vigência do Estado de direito. Segundo se sabe, as tiragens jamais
encalharam.

Leandro Konder é professor do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro.
O que está vivo e
o que está morto no
Manifesto Comunista?
A prova da história
JACOB GORENDER

GRAU DE INFLUÊNCIA certamente significativa da doutrina de Marx e Engels


O pôde ser aferido pelo encontro internacional realizado em Paris, em maio
deste ano, o qual reuniu muitas centenas de marxistas de algumas dezenas de
países e deu ensejo à publicação de doze coletâneas de artigos e ensaios cele-
brando o sesquicentenário do Manifesto do partido comunista. Com relação ao
Brasil, basta notar que sua delegação ao encontro de Paris foi numerosa e ex-
pressiva (a mais numerosa, depois da francesa) e que, só em 1998, foram
publicadas quatro novas traduções do Manifesto, incluindo a desta edição da
revista ESTUDOS AVANÇADOS. O que não pode deixar de ser avaliado nas circuns-
tâncias da dissolução da União Soviética e do desmoronamento dos regimes
comunistas do Leste Europeu.

Enquanto perdurar, o capitalismo suscitará tendências anticapitalistas.


O escrito de dois jovens intelectuais alemães, publicado em fevereiro de 1848,
em nome de uma obscura Liga dos Comunistas, deu a partida precisamente à
trajetória secular de uma destas tendências. A teoria que recebeu o nome de
marxismo (rejeitado pelo próprio Marx) inspirou partidos políticos poderosos
e veio a ser a doutrina oficial de um sistema de Estados durante dois terços do
século XX. Hoje, entretanto, tampouco se pode deixar de constatar que o mar-
xismo atravessa uma situação de crise, certamente a pior de sua trajetória. No
texto breve e juvenil do Manifesto, podemos encontrar aqueles pontos fortes do
marxismo que explicam o seu impulso vitorioso, mas também as teses que
vieram a ser contestadas pelo desenvolvimento histórico.

Marx e Engels acertaram em cheio quando identificaram no proletariado


a classe social que devia antagonizar o domínio da burguesia. O proletariado
não só era a classe explorada pela burguesia, criadora da riqueza que esta con-
vertia em capital, como era a classe que crescia com o próprio capital. A obser-
vação da Revolução Industrial na Inglaterra — então, o único país capitalista
plenamente constituído — permitia fazer a inferência acerca do potencial social
de crescimento do proletariado, em contraste com os camponeses, os artesãos e
os pequeno-burgueses. O grande giro estratégico do Manifesto consistiu em
propor ao movimento operário a substituição da utopia pela política com fun-
damentação na ciência. Ao invés de seitas conspirativas apolíticas, guiadas pela
miragem de imaginárias sociedades perfeitas, era preciso levar à luta por obje-
tivos políticos concretos a própria massa da classe operária. O objetivo final
deveria ser a conquista do poder do Estado e a implementação de um programa
radical de transformação comunista da sociedade. A sociedade capitalista, com
o seu ethos baseado na competição egocêntrica, seria desfeita para ceder lugar a
uma associação guiada pelo supremo princípio moral do desenvolvimento livre
de cada indivíduo como condição para o livre desenvolvimento de todos.
Durante mais de um século, o processo histórico confirmou a previsão
marxiana a respeito do potencial do proletariado. Este cresceu e incrementou
sua capacidade de auto-organização à medida que crescia o capitalismo. A acu-
mulação de capital também era uma acumulação de operários, o que produzia
incoercível incremento da luta de classes anticapitalista. A previsão marxiana se
confirmou igualmente na sucessão de crises e catástrofes que marcaram o cami-
nho percorrido pela burguesia e impuseram sacrifícios imensos à humanidade.
Não obstante, o processo histórico seguiu um rumo essencialmente di-
verso daquele antecipado por Marx e Engels. Justamente o proletariado mais
forte, nos países capitalistas economicamente mais avançados, rejeitou a revo-
lução socialista e deu preferência à conquista de benefícios reformistas no qua-
dro do regime burguês. As revoluções de inspiração socialista somente foram
vitoriosas nos países de predominância camponesa, onde o proletariado era
fraco. O fato de ser a classe organicamente explorada pelo capital não funda-
mentou necessariamente a propensão revolucionária do proletariado.
Demais disso, enquanto as relações de produção capitalistas se forma-
ram, de maneira espontânea, nas entranhas da sociedade feudal, de tal maneira
que as revoluções burguesas não precisaram construir o capitalismo, as revolu-
ções pretensamente socialistas não encontraram relações de produção socialis-
tas objetivamente constituídas e precisaram se jogar na sobre-humana tarefa de
construir o socialismo. Se o modo de produção capitalista surgiu pronto e aca-
bado diante dos revolucionários burgueses triunfantes, porque já existia antes
que houvessem tomado o poder, o modo de produção socialista só contava com
imprecisas premissas materiais, antes e depois da conquista do poder pelos
revolucionários comunistas. Já por precisar ser construído, o socialismo reve-
lou-se problemático.
A questão do sujeito da revolução socialista tornou-se ainda mais contro-
versa a partir da década dos 70 do século XX, com a acentuação da disjunção
entre crescimento do capitalismo e crescimento do proletariado industrial. O
fato de que este se encontra submetido a um processo de encolhimento e de
perda de força social coloca diante dos marxistas o desafio da definição do
sujeito da revolução socialista nas novas condições do terceiro milênio. Não só
o proletariado recebe uma configuração muito diferente daquela conhecida por
Marx e Engels, como a estrutura da sociedade capitalista atual se revela muito
mais complexa e diversificada do que registraram no Manifesto.
A este desafio se acrescenta o da atualização da metodologia marxista. Se
teve uma concepção dialética da ciência, superior ao positivismo imperante no
século XIX, Marx não foi imune, contudo, à idéia determinista das seqüências
inevitáveis, que fez do comunismo a culminância absoluta da aventura da espé-
cie humana sobre o planeta terra. No entanto, as ciências chamadas de exatas — a
física, a química, a biologia — impregnam-se cada vez mais da concepção de que
a evolução da matéria inclui o casual, o caótico e o imprevisível. Os sistemas só
podem existir com a presença de conexões internas deterministas, mas a suces-
são entre sistemas se processa com um grau variável, porém substancial, de
incerteza. Torna-se impraticável qualquer pretensão de ciência social que não
tenha em vista a mesma linha de pensamento.
A indeterminação do futuro não exclui a possibilidade e a necessidade de
fundamentação científica da ação política. Sob este aspecto, o marxismo conti-
nuará ferramenta intelectual de primeira ordem para todos os movimentos
anticapitalistas. Mas só poderá dar a certeza da luta, nunca dos seus resultados.
A sociedade pós-revolucionária não será mais tão-somente uma imposi-
ção de leis históricas impessoais, porém, conjuntamente, a encarnação de deci-
sões subjetivas. Dos agentes revolucionários se exige, ao mesmo tempo, o co-
nhecimento abrangente das condições objetivas e a responsabilidade moral,
plena e integral, pelas opções escolhidas.

Jacob Gorender é historiador, autor, entre outros livros, de O escravismo colonial e


Combate nas trevas (Ed. Ática). Foi professor visitante do IEA-USP.
O Manifesto ainda tem
importância histórica?
NODARI A. SIMONiA

STE ANO MARCOU O sesquicentenário da data em que Marx e Engels publi-


E caram em Londres seu Manifesto. Muitos poderiam perguntar: "Por que
se deveria atribuir tanta importância a esse documento? Já não está superado?
Especialmente hoje em dia, depois que a URSS caiu por terra e o sistema socia-
lista mundial desapareceu de vez?"
Em primeiro lugar, o tipo de socialismo que existia na URSS era um
quase-socialismo e não um socialismo genuíno. A própria idéia de construir um
socialismo num país agrário atrasado num tempo em que até os países mais
desenvolvidos do Ocidente não estavam amadurecidos para esse sistema políti-
co, foi antimarxista. Antes de sua enfermidade, Lenin de modo algum nunca
afirmou que havíamos construído o socialismo. Quando viu que suas esperan-
ças numa revolução na Europa desapareceram completamente, Lenin lançou a
idéia da Nova Economia Política (NEP), cujo ponto crucial era um tipo parti-
cular de capitalismo estatal. Stalin abandonou a NEP e começou a construir
um comunismo primitivo baseado no terror político econômico.
Em segundo lugar, como documento que se destinava a ações específicas
de um partido político no tempo proposto, o Manifesto ficou sem duvida supe-
rado. Seria simples loucura que alguém quisesse hoje obedecer a letra desse
documento. Todavia, como obra, na qual Marx e Engels profetizaram que o
capitalismo seria seguido pelo período do comunismo, ele ainda é o documen-
to do futuro. Marx comprovou depois, de forma científica, essa previsão com
uma análise profunda em seu Das Kapital, tendo demostrado de que modo a
conseqüente e crescente socialização da produção, por si só, está levando a
humanidade para o futuro período comunista.
É óbvio que Marx, exatamente como todos os outros gênios, estava cir-
cunscrito dentro das limitações de seu tempo, enquanto suas aspirações revolu-
cionárias o impeliam, e a Engels, para uma reavaliação da maturidade do capi-
talismo e da disponibilidade das sociedades humanas para a nova vida. A histó-
ria subseqüente demostrou que apenas agora o novo modo de vida da socieda-
de do futuro está se estabelecendo no seio dos países capitalistas desenvolvidos,
e esse processo se baseia na concepção de novas forças produtivas da tecnologia
e da informática da era pós-industrial.
Em geral, o teórico muitas vezes colidiu com o revolucionário, um con-
tradizendo o outro, nas personalidades de Marx e Engels. Marx, por exemplo,
insistiu de fato que a ideologia e especialmente a psicologia das massas eram os
pontos mais estáveis e que seriam os últimos a mudar. A impaciência revolucio-
nária, porém, levou-os repetidas vezes a interpretar explosões, movimentos e
ações revolucionárias, que em sua essência objetiva visavam à libertação bur-
guesa, como o começo de uma sublevação social. Contudo, Engels, que sobre-
viveu a Marx por um total de 12 anos, e chegou quase até o fim do século XIX,
teve tempo de desiludir-se com o potencial revolucionário do proletariado da
Inglaterra — o país capitalista mais desenvolvido daquele tempo. Hoje, com a
revolução da tecnologia e da informática se alastrando, as forças da produção
industrial estão adquirindo um sentido cada vez mais secundário. Com os pro-
cessos de origem e instituição de novas forças produtivas da era pós-industrial
a força social predominante da futura sociedade socialista irá crescer e ganhar
força.
Ocorreu também um grave erro de lógica. Desse modo, Marx e Engels
claramente apontam em seu Manifesto que durante cada uma das disposições
anteriores (escravocrata, feudal) duas classes principais opunham-se entre si
(senhores de escravos e escravos, senhores feudais e servos), e que a luta entre
essas duas classes sempre terminava com a reconstrução de toda a sociedade e a
destruição geral das classes conflitantes. Seria lógico supor que o mesmo deves-
se ocorrer com a sociedade burguesa e suas duas classes principais, uma vez que
o proletariado, exatamente como os escravos e os camponeses feudais antes
dele, não estava preparado para servir como a força dominante na reconstrução
de uma sociedade nova, mais elevada. Todavia, nesse aspecto a lógica abando-
nou Marx e Engels (assim como mais tarde abandonou Plekhanov e Lenin) —,
eles proclamaram que o proletariado seria responsável pela construção da socie-
dade do futuro, criando assim sérias dificuldades para o desenvolvimento do
movimento comunista.
Contudo, é difícil superestimar a importância da idéia de Marx de que o
comunismo deve suplantar o capitalismo. Pelo que tudo indica, o assustador
fantasma do comunismo mais uma vez começa a vagar pelo mundo, pelo menos
nas mentes de muitos pensadores liberais. Com o devido respeito, será curioso
mencionar a prova que se pode encontrar na resenha A economia mundial,
publicada por uma revista respeitável: The Economist (20 set. 1997). A revista
cita as opiniões de pessimistas-liberais expressando sua apreensão de que a
globalização possa solapar as bases de economias nacionais, causando assim
uma nova crise, e então "Marx rirá por último no fim das contas" (p.6). As
idéias de que democracia e liberalismo não são uma só nem a mesma coisa, de
que o capitalismo dificilmente pode continuar a conviver em harmonia com a
democracia, e de que no decorrer dos últimos 50 anos a democracia vem sola-
pando o capitalismo, limitando a liberdade da iniciativa privada, perpassam
toda a resenha da revista (p.6-8).

Realmente, ri melhor quem ri por último!

Nodari A. Simonia é professor da Academia Russa de Ciências, Moscou.

Tradução de Almiro Pisetta. O original em inglês — Can the Manifest der


Kommunistichen partei be still regarded as document of hystorical significance? — encon-
tra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.
Previsões e ilusões
FÁBIO KONDER COMPARATO

GRANDE ENIGMA do Manifesto Comunista é o fato de haver feito previsões


O rigorosamente exatas sobre a evolução da economia mundial, com base
numa falsa premissa. Dito de outra forma, verificamos hoje com surpresa, um
século e meio após, que, apesar do erro de diagnóstico e do conseqüente desa-
certo da terapêutica proposta, grande parte do prognóstico evolutivo da molés-
tia capitalista foi cumpridamente realizado.

A análise estrutural e funcional do capitalismo feita — por Marx e Engels —


com mão de mestre, resistiu à prova da evolução histórica e permanece, ainda
hoje, inatacável. Senão, vejamos.

Impessoalização das relações econômicas


"Em toda parte onde chegou ao poder, a burguesia destruiu o conjunto
das relações feudais, patriarcais ou idílicas", substituindo-as pelo "puro interes-
se", ou a insensibilidade do "pagamento à vista".

Essa impessoalização econômica correspondeu, estrutural e historicamen-


te, à impessoalidade da lei, fundamento constitucional do Estado moderno a
partir da Revolução Francesa. À divisão estamental do direito antigo — com
estatutos separados para o clero, a nobreza e o povo —, substituiu-se a homo-
geneidade do sistema jurídico nacional, em que todos os indivíduos (abstrata-
mente considerados) são iguais perante a lei.

A evolução da grande empresa capitalista obedeceu à mesma lei da


impessoalidade crescente. A forma jurídica que se impôs desde o século XIX
como o modelo ideal para a macroempresa foi a da sociedade justamente deno-
minada anônima, em que o capital social é dividido em frações-alíquotas de
valor igual, perfeitamente intercambiáveis: as ações.

A partir da segunda metade do século XX e em toda parte, a tecnoestrutura


gerencial tendeu a suplantar, ao cabo de poucas gerações, a dominação pessoal
do patrão pela gestão empresarial coletiva. Nos Estados Unidos, já nos anos 30,
Berle e Means mostraram o surgimento de um controle gerencial (management
control) das grandes companhias, inteiramente destacado da propriedade do
capital (1).
Patrimonialização das relações sociais
"A burguesia despojou de sua santa auréola todas as atividades até então
veneráveis e piedosamente respeitadas."

"A burguesia dissolveu a dignidade da pessoa no valor de troca, e substi-


tuiu às inúmeras franquias, garantidas como direito adquirido, uma liberdade
única e sem consciência: o livre câmbio."

Às vésperas da Revolução Industrial, que desencadeou o processo históri-


co da ascensão burguesa, Montesquieu ainda pôde classificar os regimes políti-
cos segundo os princípios fundamentais da honra, da virtude ou do temor (2).
A civilização capitalista, em contraste, substituiu em pouco mais de um século a
honra, a liberdade, a virtude, o patriotismo e a f é religiosa pelo valor mercantil
das coisas e dos homens. As relações sociais, de qualquer natureza, tornaram-se
apreciáveis em dinheiro. Até a capacidade política, na primeira fase da democra-
cia burguesa, fundou-se na renda monetária, pelo mecanismo do voto censitário.

Desmaterialização e concentração da propriedade capitalista


"A burguesia submeteu o campo à dominação da cidade".
"Para existir e dominar, a classe burguesa tem necessidade de algo essen-
cial: a acumulação da riqueza em mãos dos particulares, a formação e o cresci-
mento do capital".

A sociedade feudal fundava-se na propriedade da terra, que assegurava


poder político. Nas civilizações de base agrária, sempre vigorou o princípio rés
mobilis, res vilis.

Já nas cidades mercantis da Baixa Idade Média, ao contrário, a riqueza e


o poder político passaram a ser medidos em termos de acumulação de metais
preciosos, jóias, mercadorias ou dinheiro.

O capitalismo industrial do século XIX concentrou os meios de produ-


ção em fábricas, minas e laboratórios. Mas na economia pós-industrial do pre-
sente, a dominação capitalista funda-se na titularidade de contas bancárias,
papéis negociáveis em Bolsa ou no mercado de balcão e aplicações em fundos
de investimento.

Toda essa parafernália escriturai e contábil veio facilitar enormemente a


criação de macroempresas. Em 1997 as fusões e aquisições de controle empre-
sarial, em todo o mundo, atingiram a cifra de um trilhão e seiscentos milhões
de dólares, ou seja, o dobro do PIB brasileiro. O faturamento anual da General
Motors, da Exxon e da Toyota é hoje superior, respectivamente, ao PNB da
Dinamarca, da Noruega e de Portugal.

Desestabilização de todas as instituições


"Tudo o que é permanente e estável volatiliza-se (Alies Standische una
Stehende verdampft)".
Duas das quatro liberdades invocadas pelo presidente Roosevelt em seu
famoso discurso de 6 de janeiro de 1941, como bases para a reconstrução do
mundo futuro, eram a libertação da necessidade e a libertação do medo (freedom
from want e freedom from fear).
Meio século depois, porém, com o desaparecimento do espectro comu-
nista, a liquidação do Estado social tende a levar ao paroxismo a sensação de
insegurança de todos os povos diante dos velhos riscos do desemprego, da fome,
da doença ou da velhice.

A globalização
"A grande indústria engendrou o mercado mundial, que a descoberta da
América havia preparado."
"Ao explorar o mercado mundial, a burguesia deu uma forma cosmopo-
lita à produção e ao consumo de todos os países."
Com a culminação atual do processo de mundialização da economia,
iniciado pela descoberta da América, como o Manifesto bem assinalou, parece
óbvio, aplicando-se uma chave de interpretação marxista, que nos encontra-
mos hoje em plena crise: a contradição entre o caráter universal das forças pro-
dutivas e a organização ainda predominante nacional das relações econômicas.
O país hegemônico no plano mundial — os Estados Unidos — resistem (por quan-
to tempo?) à reconstrução da ordem internacional para a superação dessa crise,
na medida que ela implicaria, inevitavelmente, a limitação de sua soberania.
Ora, se todas essas previsões se realizaram com a maior precisão nos últi-
mos 150 anos, não deixa de ser perturbador verificar que elas foram justificadas
por Marx e Engels a partir de uma premissa inteiramente falsa: a suposição de
que "à medida que o capital se desenvolve, assiste-se ao desenvolvimento do
proletariado, da classe dos trabalhadores modernos, que somente sobrevivem
na medida em que encontram trabalho, e que só encontram trabalho na medi-
da em que seu trabalho faz crescer o capital". Ou seja, o falso pressuposto de
que "a condição (de existência) do capital é o trabalho assalariado" (Die
Bedingung des Kapitals ist die Lohnarbeit).
A evolução econômica da segunda metade do século XX demonstrou a
cabal incorreção dessa análise. O capitalismo contemporâneo tende a desvincular
por completo a produção do trabalho e o lucro da produção. Não só a produti-
vidade capitalista funda-se, hoje, na redução crescente do trabalho assalariado
(e não apenas na apropriação da mais-valia), como ainda a lucratividade em-
presarial depende cada vez menos da produção de bens ou serviços. A concen-
tração de capital no setor puramente especulativo — jogos de bolsa ou opera-
ções monetárias — é, hoje, incomparavelmente maior do que nos setores de
produção industrial, distribuição de bens e prestação de serviços; sem falar,
obviamente na agricultura. Diariamente, as transações mundiais em câmbio,
valores mobiliários ou nos mercados de futuros movimentam em média um
trilhão e meio de dólares, dos quais apenas 1% é aplicado em investimentos
produtivos.
Como previra Hannah Arendt há 40 anos (3), "o que se nos depara é a
possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a
única atividade que lhes resta." E concluiu com razão: "Certamente, nada po-
deria ser pior".

Notas
1 A sua obra The modem corporation and private property teve sua primeira edição
em 1932.
2 De l'esprit des Lois, livro terceiro.

3 A condição humana (Forense-Universitária, Salamandra Consultoria Editorial,


Editora da Universidade de São Paulo, 1981, p. 13). A edição original inglesa,
sob o título The human condition, foi publicada em Chicago no ano de 1958.

Fábio Konder Comparato, doutor em Direito pela Universidade de Paris, é professor


titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Marx,
profeta da globalização
RUBENS RlCUPERO

E M NEM COM MARX, NEM CONTRA MARX, Norberto Bobbio exclama: "Quantas
vezes Marx foi dado por morto". E comenta que isso ocorreu cada vez que
alguma de suas previsões não deu certo. Com pretensões a uma visão científica
do mundo capaz de descobrir na historia regularidades que permitissem prever
eventos futuros, o marxismo conheceu quatro grandes crises, que teriam coin-
cidido com transformações sociais desmentindo previsões feitas por Marx ou a
ele atribuídas.

Segundo Bobbio, esses quatro momentos foram: 1º — no início do sécu-


lo, ao não se materializar o colapso final do capitalismo; 2º — no fim da Primei-
ra Guerra, quando a primeira revolução marxista aconteceu no lugar errado,
em país de capitalismo tardio onde, de acordo com esse pensamento, ela não
deveria ocorrer; 3º — quando feita a revolução o Estado, em vez de preparar sua
própria extinção, se esforçou com Stalin de tal modo que se converteu no pro-
tótipo do Estado totalitário; 4º — finalmente, após a queda do muro de Berlim,
no momento em que não só o capitalismo não se autodestruiu pelas contradi-
ções internas, mas, ao contrário, assistiu, triunfante, à desintegração da União
Soviética e dos regimes comunistas da Europa Central e Oriental.

Após observar, com certo exagero, que nos momentos decisivos da histó-
ria contemporânea teria acontecido exatamente o oposto do que Marx havia
previsto, Bobbio julga natural que os fiéis se perguntem se ele não teria sido
um falso profeta ou se o que escreveu foi ciência de verdade.

Estas reflexões me parecem um bom ponto de partida para indagar, den-


tro do vasto oceano marxista, o que continua vivo na sua indiscutível obra-
prima, o Manifesto Comunista. Não vale a pena perder muito tempo nesse
esforço com o óbvio: que parte era natureza conjuntural e destinada a envelhe-
cer. É o caso de passagens inteiras dos capítulos 3 (Literatura Socialista e Co-
munista) e 4 (Posição dos Comunistas em Relação aos Vários Partidos de Opo-
sição Existentes). Nas digressões sobre a Alemanha, por exemplo, quase se apalpa
com os dedos a raiz puramente germânica de um documento de 23 páginas e
1200 palavras, escrito às pressas em alemão por um jovem de 29 anos, à véspera
das revoluções da Primavera dos Povos de 1848 e destinado a um grupúsculo de
exilados exclusivamente alemães. Nenhum deles, aliás, operário, a maioria al-
faiate, profissão, como diz A.J.P. Taylor, dada a longas meditações revolucioná-
rias e com instintiva ojeriza contra os clientes de alta classe ...

Longe de ter morrido, o que só agora começa a nascer no Manifesto, isto


é, passa a ser percebido como antevisão da realidade de hoje e de amanhã, é a
previsão espantosamente precisa e minuciosa da globalização. Hobsbawm assi-
nalou que Marx não descreve o capitalismo do seu tempo, mas o do nosso e o
do futuro, não a internacionalização incipiente de meados do século XIX e sim
a das transacionais e da interdependência do próximo milênio.

Todos os temas definidores de uma globalização ainda inacabada se en-


contram identificados no documento de modo nunca melhor expresso antes
ou depois. A unificação dos mercados em escala planetária, por exemplo: "A
indústria moderna estabeleceu o mercado-mundo (...) através do mercado-
mundo, a burguesia imprimiu caráter cosmopolita à produção e consumo em
cada país". A destruição das empresas nacionais e sua substituição pelas
transacionais, a internacionalização do processo produtivo: "... puxou-se de-
baixo dos pés da indústria o solo nacional sobre o qual se apoiava. Todas as
tradicionais indústrias nacionais foram ou estão sendo diariamente destruídas.
São deslocadas por novas indústrias, cuja a introdução se torna questão de vida
ou morte (...) que elaboram matérias-primas trazidas das zonas mais remotas
(...) cujos produtos são consumidos não só no país, mas em cada canto do
globo". A criação de necessidades induzidas: "Em lugar das velhas necessidades
satisfeitas pela produção do país, (...) novas necessidades exigindo produtos de
terras e climas distantes". O fim do isolamento e a interdependência: "Em
lugar do antigo isolamento e auto-suficiência local e nacional, a interação em
todas as direções, a interdependência universal das nações. Tanto na produção
material como na intelectual". Nesta última frase está presente até o que Anthony
Giddens considera em The consequences of modernity a essência irredutível da
globalização: tudo o que é global é relevante para o local, tudo o que é local
afeta em alguma medida o global.

Marx, contudo, não se limita a reproduzir com exata perfeição os contor-


nos externos do mundo criado pelo capitalismo global. Ele mergulha nas en-
tranhas do processo para desvendar-lhe o mecanismo e as forças interiores: "A
burguesia não pode existir sem constantemente revolucionar os instrumentos
de produção e, portanto, as relações de produção e, com elas o total das rela-
ções da sociedade". É isso o que vai provocar a instabilidade permanente: "A
constante revolução da produção, a ininterrupta perturbação de todas as con-
dições sociais, a incerteza e a agitação perpétuas distinguem a época burguesa
de todas as anteriores. Todas as relações fixas e congeladas (...) são varridas para
longe, todas as recém-formadas ficam antiquadas antes de poderem se ossificar.
Tudo que é sólido derrete no ar, tudo que é santo é profanado ...".

Onde encontrar evocação do mal-estar, angústia e insegurança criadas


pela globalização comparável a esse texto, que Edmund Wilson definiu como
"denso com a força comprimida de explosivos de alta potência?"

É por essas extraordinárias qualidades de intuição e poder expressivo que


o Manifesto foi muito além do documento político de circunstância e se trans-
formou num dos textos seminais e definitivos de todos os tempos. No artigo
que escreveu para The New York Times Book Review, o professor Steven Marcus,
de Columbia, vê no Manifesto o momento "de acesso da consciência social e
intelectual a um novo patamar de abrangência". Parte integral, como obra de
Darwin e Freud, da sensibilidade moderna, ele é inseparável da maneira como
nós e nossos contemporâneos percebemos a realidade criada pela Revolução
Industrial e nos situamos perante ela.

Isso ajuda também a compreender as insuficiências do documento, as


partes envelhecidas ou as previsões que não se realizaram. Ao se converterem
em elemento constitutivo central da consciência e sensibilidade com que cap-
tamos a realidade, as análises do Manifesto deixam de ser a luneta com que se
olha desde fora para essa realidade e passam a ser um dos instrumentos para a
sua transformação. É o que Hegel havia indicado há muito tempo e Giddens
voltou a pôr de moda, ao chamar a atenção para a função reflexiva das ciências
sociais, as quais não se limitam a dissecar o objeto mas acabam por modificá-
lo. Foi esse certamente o caso da previsão acerca da pauperização crescente do
proletariado, que deveria ter conduzido à crise final do sistema. A frase no
túmulo de Marx, segundo a qual os filósofos interpretaram o mundo mas ago-
ra era preciso transformá-lo, mereceria um complemento. Na verdade, ao in-
terpretarem o mundo, os filósofos já começaram a transformá-lo. O exemplo
mais contundente desse potencial das idéias foi o destino do próprio Manifes-
to, que pecou não tanto por erro de profetizar o futuro mas por subestimar seu
potencial de desencadear ações capazes de alterar o curso lógico da profecia.

Aliás, mesmo a censura relativa à inevitabilidade da pauperização, a prin-


cipal que se faz ao Manifesto, precisa ser qualificada. Deve-se reconhecer, com
efeito, que não só a luta social organizada a partir do documento contribui
decisivamente para atenuar as tendências concentracionárias inerentes ao capi-
talismo como essas tendências voltaram a recrudescer, hoje, dando nova atuali-
dade ao debate sobre a pauperização. Em recente ensaio publicado em Foreign
Policy, Nancy Birdsall, norte-americana e vice-presidente do BID, começa por
dizer: "Exatamente 150 anos após a publicação do Manifesto Comunista, a de-
sigualdade ocupa espaço amplo na agenda global. Nos EUA, a renda dos 20%
das famílias mais pobres declinou continuadamente desde o início dos 1970.
Enquanto isso, a renda dos 20% mais ricos aumentou em 15% e a do 1% no
topo em mais de 100% (...). No nível global, a relação entre a renda média do
país mais rico do mundo em comparação ao mais pobre, que era de 9 para l no
fim do século XIX, cresceu para, ao menos, 60 para l hoje em dia. (...) Talvez
pela primeira vez na história da nação (os EUA), as conquistas educacionais
podem estar reforçando em lugar de compensando a desigualdade de renda: a
educação superior tornou-se requisito de sucesso econômico, mas, como o acesso
a ela depende da renda familiar, os pobres se encontram em clara desvanta-
gem". Como se vê, na idade das fusões gigantescas de empresas, da destruição
maciça de empregos, da explosão da desigualdade no interior dos países e entre
eles, da crise do sistema do assalariato, o velho debate está longe de esgotado,
dando razão ao que dizia Joseph Schumpeter, insuspeito de simpatias marxis-
tas: "É preciso sempre voltar a Marx".
Talvez o que mais mereça viver no Manifesto é seu sopro utópico, não no
sentido da sociedade perfeita mas no da crença numa sociedade menos imper-
feita e injusta. Nesse sentido, nada melhor para concluir este comentário do
que a resposta de Emmanuel Levinas, em entrevista a La Stampa, em 1992 ou
93, à pergunta sobre se as democracias teriam vencido: "A mim parece que as
democracias perderam e muito. Não obstante todos os excessos e horrores, o
comunismo sempre representa uma espera. Espera de poder retificar os males
feitos aos débeis, espera de uma ordem social mais justa. Não digo que os
comunistas tivessem a solução pronta, nem que a estivessem preparando. Ao
contrário. Mas havia a idéia de que a história tivesse um sentido qualquer. Que
viver não fosse insensato. É uma idéia que os ocidentais têm desde o Setecentos
e Marx enraizou no pensamento do século XX. Não creio que tê-la perdido
para sempre seja uma grande conquista espiritual. Até ontem, sabíamos aonde
ia a história e que valor dar ao tempo. Vagamos agora perdidos, perguntando-
nos a cada instante: 'Que horas são?' Fatalisticamente, um pouco como costu-
mam indagar os russos. Que horas são? Ninguém o sabe mais."

Rubens Ricupero é secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio


e o Desenvolvimento (Unctad), professor de Relações Internacionais da Universidade
de Brasília e de História das Relações Diplomáticas do Instituto Rio Branco, DF.
A vitalidade
do pensamento de Marx
IGNACY SACHS

DESPEITO DE TODOS os que interpretam a derrocada do socialismo real


A como uma negação total do pensamento de Marx, os numerosos colóquios
e publicações que marcaram o centésimo qüinquagésimo aniversário do Mani-
festo Comunista são o testemunho de sua vitalidade.

O mesmo não ocorre com os diferentes grupos marxistas que disputam


entre si a interpretação correta da palavra do mestre, por meio de citações
tiradas do contexto. A vitalidade do pensamento de Marx se opõe à decrepitude
dos marxismos corrompidos pelo dogmatismo.

A que atribuir tal longevidade?


Para além de suas qualidades literárias, o Manifesto Comunista é marcante
pela justeza de sua visão prospectiva do capitalismo. Difícil é proceder melhor,
no tocante à análise de sua visada mundialista e à apreensão da dinâmica polí-
tica marcada pelo surgimento dos movimentos operários e partidos deles
advindos ou que deles se valem.

O erro consistiu em pensar que o capitalismo seria incapaz de fazer fren-


te às suas contradições, estaria irremediavelmente votado a desaparecer pela
mão da classe trabalhadora organizada e seria preciso interpretar o Manifesto
de uma maneira determinista, embora Marx tenha sempre insistido quanto à
parte que cabia aos seres humanos na produção da história.

Esta, mais do que nunca, permanece aberta e por fazer. A catástrofe com
a qual se encerrou a experiência soviética não autoriza a rejeição pura e simples
dos ideais associados ao socialismo; em contrapartida, nos força a repensar
inteiramente os caminhos futuros de sua prática, em face de uma situação pa-
radoxal: o mundo conheceu, no pós-guerra, um desenvolvimento sem prece-
dentes das forças produtivas e a aceleração do crescimento econômico, sobre-
tudo ao longo dos trinta anos gloriosos (1945-1975). Entretanto, a situação
social se degrada. O desemprego e o subemprego maciços, assim como os con-
seqüentes fenômenos de exclusão atingem, ao mesmo tempo, países ricos e
pobres. Assistimos à unificação dos problemas em escala mundial, à terceiro-
mundização de todo o planeta, ao crescimento econômico acompanhado da
involução social.
Essa situação nova demanda um esforço de invenção escorado numa aná-
lise fina da dinâmica socio-econômica e política. O pensamento de Marx não
fornece instrumentos prontos e julgamentos que se apliquem tais e quais à
nova realidade, mas constitui uma inspiração pujante no que concerne a per-
guntas por fazer e a um modelo de percurso histórico-dedutível, único válido
no campo das ciências sociais.
Na verdade, a influência do pensamento de Marx se exerce hoje em dia
por meio de sua incorporação, nem sempre explicitada, às correntes mais fe-
cundas das ciências sociais, da história à economia política, passando pela socio-
logia. Sua irradiação se faz sobretudo por osmose. E é melhor assim.

Ignacy Sachs é professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris e Cercle
Condorcet. Paris.

Tradução de Gilberto Pinheiro Passos. O original em francês -La vitalité de la pensée


marxienne - encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.
Diagnóstico e utopia
FÁBIO WANDERLEY REIS

REIO QUE A DISCUSSÃO sobre a sobrevivência das idéias expressas sintéti-


C camente no Manifesto Comunista pode se basear com proveito na distin-
ção de três aspectos: o diagnóstico dos processos que Marx e Engels observa-
vam, o projeto de ação política mais ou menos imediata e a utopia ou o ideal
orientador.
O aspecto de diagnóstico é aquele que, especialmente no referente à di-
nâmica geral do capitalismo, mais parece justificar comentários admirados na
atualidade pela nitidez e vigor com que nele se antecipam traços os quais os
fenômenos ligados à globalização dos nossos dias só fizeram intensificar. Não
obstante os erros quanto à previsão das conseqüências dessa dinâmica sobre a
estrutura de classes (a pauperização e a polarização de classes), dois dos traços
mencionados podem talvez ser destacados: o caráter revolucionário da econo-
mia capitalista, cuja lógica a leva à permanente inovação tecnológica e a sub-
verter a cada dia as relações de produção estabelecidas; e os desdobramentos
dessa lógica no plano das formas de organização político-territorial, por um
lado, ajudando a plasmar o Estado-nação moderno como espaço privilegiado
das transações econômicas que suplanta a fragmentação e o paroquialismo tra-
dicionais; por outro, criando um mercado internacional ou transnacional que
se afirma vigorosamente desde os primórdios do capitalismo moderno. Em
belo volume recente, O longo século XX, que coloca em perspectiva singular-
mente clara a globalização atual, Giovanni Arrighi retoma análises clássicas
que remontam a Marx para mostrar a crescente ampliação da escala em que
economia e política se articulam.
Esse aspecto de diagnóstico pretende servir de base objetiva para o proje-
to político, que é naturalmente o projeto de implantação revolucionária do
socialismo e da ditadura do proletariado. Posto à prova na experiência (e no
colapso) do socialismo real, tal projeto se encontra claramente envelhecido e
superado pelo movimento da história. Não somente se desvendou a ilusão de
se pretender recorrer à ditadura para construir um socialismo verdadeiro, que
resgatasse a fundamental inspiração humanista e democrática do movimento
socialista; de fato, o socialismo real terminou por ver comprometida a viabili-
dade e a eficiência econômicas mesmo da organização autoritária presumida-
mente provisória — em especial, ironicamente, nas condições de exacerbação do
mercado globalizado e duramente competitivo que o Manifesto aponta e ante-
cipa.

Por outro lado, o apego ao projeto político revolucionário associa-se com


equívocos a serem encontrados quanto à dimensão política do próprio aspecto
de diagnóstico que consideramos em primeiro lugar. O que temos aqui é uma
teoria política nitidamente distorcida, vinculando a idéia de poder político ex-
clusivamente ao poder de uma classe para oprimir outra, permitindo a preten-
são de que, na sociedade sem classes supostamente passível de ser descrita como
"vasta associação da nação como um todo", o poder público perderia o seu
caráter político. Daí a fantasia de substituir a política pela mera administração
das coisas, acoplada ao rechaço do aparato institucional do Estado liberal como
simples instrumento dos negócios da burguesia. O foco exclusivo na ação revo-
lucionária bloqueia a percepção da possibilidade de que o amadurecimento do
capitalismo produzisse, em vez da ruptura, as condições para o amadurecimen-
to da própria democracia e para o compromisso institucional em que se desta-
caria o componente social da cidadania, ao lado de seus componentes formais
correspondentes aos direitos civis e políticos, e no qual a própria dimensão
contraditória do capitalismo se veria institucionalizada. Em particular, quando
posta em confronto com a espetacular derrocada do socialismo real, essa saída
social-democrática revelar-se-ia a única verdadeiramente estável — e talvez a via
por meio da qual se poderia aspirar à aproximação gradual das condições entre-
vistas na utopia.

A este ponto, porém, a avaliação se contorce, pois a dinâmica econômi-


co-tecnológica recente sintetizada no rótulo de globalização compromete tam-
bém a solução social-democrática. Propiciando a intensificação da competição,
essa dinâmica coloca objetivamente em xeque os componentes daquela solução
que se consagraram no pós-guerra (o keynesianismo, o Estado de bem-estar e
as organizações sindicais conjugados em estruturas neocorporativas), e termina
por engendrar uma nova perspectiva filosófica na qual os direitos sociais
institucionalmente assegurados de outrora são abandonados ao jogo flexível do
mercado em que alguns ganham e outros perdem. Os efeitos perversos daí
resultantes, sob a forma de exclusão social e incremento da desigualdade, dei-
xam claro que se abre mão do próprio compromisso institucional e se coloca
em risco a democracia mesma. Combinados ao potencial de crises que se dá na
financeirização do capitalismo mundial, tais efeitos ameaçam corroborar, ao
cabo, as apostas socialmente convulsivas do Manifesto. E fala bem do
internacionalismo de Marx e Engels o fato de que as respostas apropriadas
certamente não virão dos meros Estados nacionais, incapacitados eles próprios
nos processos correntes.
Resta o aspecto do ideal ou da utopia. A visão positiva do caráter revolu-
cionário da burguesia, a qual marca algumas das passagens mais famosas do
Manifesto, associa-se com algo que tende a ser relegado ou omitido nas discus-
sões das idéias de seus autores: a visão positiva do próprio mercado como espa-
ço no qual se realiza o valor da autonomia individual, visão esta que surge com
nitidez, por exemplo, em Resultados do processo imediato de produção e se rea-
firma em outros termos em passagens igualmente célebres da Ideologia alemã,
carregadas de forte individualismo. Conjugadas ao óbvio solidarismo que se
afirma na visão do homem sociabilizado e capaz de se alçar acima dos egoísmos
vis que fazem "derreter no ar tudo que é sólido", essas perspectivas trazem à
utopia marxista algo que poderia ser visto como peculiar combinação de realis-
mo e sonho — ou, mais adequadamente, como conjugação de dois valores que
se articulam tensamente: o da autonomia, ou da busca individual desembara-
çada de fins ou interesses definidos autonomamente, e o valor da solidarieda-
de, ou da convergência livre de violências. Ora, a articulação tensa desses mes-
mos valores é característica da própria noção contemporânea de cidadania, em
que o ideal moderno e liberal de autonomia e capacidade de autoafirmação se
combina com o ideal clássico de civismo virtuoso e solidário, do qual os direi-
tos sociais e a concepção de um Estado capaz de garantir proteção social uni-
versal são expressão. Também por este aspecto, sem dúvida, as idéias de Marx
e Engels se encontram vivas. E, se as condições do mundo globalizado e inte-
grado trazem formidáveis ameaças novas às aspirações aí contidas, elas repre-
sentam também o desafio - passível de ser visto de maneira positiva, além de
objetivamente inescapável, se não nos quisermos entregar a determinismos ce-
gos — de tratar de realizar tais aspirações na escala inédita do planeta como tal.

Fábio Wanderley Reis é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


Um momento decisivo
na história
RAYMUNDO FAORO

S DOCUMENTOS QUE MUDARAM o mundo, abrindo novas épocas ou reve-


O lando nacionalidades, nos tempos modernos têm um singular acento co-
mum. O Contrato Social (1762), A Declaração de Independência (1776), Que é
o Terceiro Estado (1789) e O Manifesto Comunista vivem, ainda hoje, além do
significado de sua mensagem política pela energia literária que os moldou. A
combinação entre política e literatura não é nova, bastando lembrar um Burke
e um Joseph de Maistre, sem mencionar Disraeli e Chateaubriand. Esses ho-
mens, vinculados à tradição do exercício da política, educados pela filosofia e
pelas letras - a alta política das idéias e das causas — não ultrapassaram o seu
tempo e a sua época. Os outros, acima mencionados, ainda que esgotada sua
causa e mudadas as circunstâncias, entraram no patrimônio perene da política.
Ê claro que não foram as qualidades literárias que lhe deram o realce e a perma-
nência. Mas, pode-se dizer que, despidos do pathos que os inspirou e foi
insculpido na compulsiva força estilística, permaneceriam como duram os mo-
numentos mortos.

Há, no conjunto das obras citadas, duas espécies: obras dedicadas pri-
meiramente à ciência ou à filosofia política, mas que, eventualmente, alcançam
efeitos políticos, que não o propósito principal. É o caso do Contrato Social,
que no máximo faria parte, com excepcional relevo, da chamada cultura mili-
tante. (Si j'etais prince ou législateur, je ne perdrais pas mon temps à dire ce qu'il
faut faire; je le ferais, ou je me tairais.), mas não imediatamente atuante. Ao
contrário, a Declaração de Independência, a obra de Sieyès, bem como O Mani-
festo Comunista participam da ação política, ainda que, em muitos respeitos, o
último verse, proféticamente, de uma realidade não atual, mas in fieri) que
viria a se formar 50 anos depois. O Contrato Social produziria as linhas básicas
de Que é o Terceiro Estadoy realizando-se em grande parte, na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, na vanguarda, além disso, das idéias
dos homens que Tocqueville chamou de hommes de lettres, um conjunto de
escritores que, pela primeira vez na historia, teriam formado a mentalidade de
um século, o XVIII francês.
A veemência estilística, com o toque da mais pura arte, nos melhores
momentos da arte literária, legou, nas obras que fizeram história, está ainda
gravada na memoria dos contemporâneos. Quem nao lembrará o capítulo I do
livro I de O Contrato Social:

"L'homme est né libre, et partout il est dans les fers. Tel se croit le maître
des autres, qui ne laisse pas d'être plus esclave qui'eux.

A Declaração da Independência:

"We hold these truths to be self evident, that all men are created equal;
that among these are life, liberty and the pursuit of happiness."

O exemplar maior da arte literária ao serviço da política está, superando


seus precedentes, no Manifesto Comunista. Combina a grandeza da profecia
bíblica com a imaginação literária. Nele ressoam, subjacentes à palavra explíci-
ta, metáforas, imagens e temas da literatura universal (S.S. Prawer - Karl Marx
and World Literature, 1978; Steven Marcus - Marx's Masterpiece at 150, NYT,
26.4.98; Eric Hobsbawnm — The Communist Manifesto, 1998). Já se observou
que o Manifesto Comunista é um palimpsesto (imagem que usou no texto, ao
observar que os socialistas alemães importaram o socialismo, como um
palimpsesto ao revés), debaixo de cujas palavras lê-se a voz dos poetas alemães,
às vezes com um acento original. Exemplo disso, entre os muitos que se podem
escolher, o poema de Goethe — O Aprendiz de Feiticeiro — em que o aprendiz,
na evocação, se transmuta no próprio feiticeiro: a moderna burguesia é como o
feiticeiro que não pode mais controlar seus poderes, no mundo que ela criou
com sua mágica (a citação não é integral). Em pelo menos duas passagens é
visível, para o leitor experimentado, o eco de Heine, poeta de sua especial ad-
miração.

Um dos momentos mais inspirados da literatura política universal, com


o ritmo dual das palavras que se fazem ação, será o primeiro parágrafo do Ma-
nifesto:

"Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo. Todas as po-


tências da velha Europa se uniram numa santa aliança para exorcizar esse es-
pectro: o Papa e o Czar, Metternich e Guizot, radicais franceses e espiões poli-
ciais alemães."

A parte final fecha epicamente essa obra singular e única, como que eco-
ando os passos da revolução comunista, que nunca se realizou: "Os proletários
nada tem a perder, senão seus grilhões." Há imagens inesperadas, com um
enérgico poder de concretizar o pensamento abstrato, fundado na dialética,
exposta pela via da arte, como, por exemplo: a burguesia gerou seus coveiros.
Interminável seria a mostra desse quadro, de nenhuma maneira secundário,
como se demonstraria se maior o espaço disponível.

Raymundo Faoro é jurista, sociólogo, historiador e cientista político. Lançou, em 1958,


a primeira edição de Os donos do poder. Foi o primeiro professor-visitante do IEA-USP,
durante o segundo semestre de 1986.
Considerações
extemporâneas sobre
o Manifesto Comunista
WOLFGANG FRITZ HAUG

A SITUAÇÃO PÓS-COMUNISTA, nada parece mais irreal do que a divisa ao


N final do Manifesto Comunista: "Proletários de todas as nações, uni-vos!"
Por outro lado, no que concerne ao capitalismo, alguns dos principais prognós-
ticos foram cumpridos de maneira incontestável: sua expansão "por todo o glo-
bo terrestre" é a ordem do dia com o nome de globalização; o fato de "a produ-
ção e o consumo de todos os países estarem configurados de maneira cosmopo-
lita" salta aos olhos de todo viajante; o desenvolvimento das forças produtivas é
de tirar o fôlego; a atual população mundial está bastante familiarizada com "o
abalo ininterrupto de todas as situações sociais", com sua "insegurança e movi-
mentação eternas". A difícil crise econômica que atinge e talvez não pare de
afligir tão cedo o Japão — até ontem precursor do capitalismo high-tech — e os
tigres asiáticos — há pouco tempo ainda alunos exemplares do turbocapitalismo
— reiterou a credibilidade da tese do Manifesto a respeito da crise: sociedades
inteiras encontram-se "remetidas subitamente a um estado de momentânea
barbárie", devido a crises econômicas periódicas. E o fato de a burguesia asseme-
lhar-se ao "feiticeiro que já não consegue mais dominar os poderes subterrâneos
que invocou" paira como uma escrita no horizonte desse fin de siècle.

Em contrapartida, os horizontes temporais desses prognósticos mos-


tram-se curiosamente desfigurados e irrealistas. O que hoje é confirmado pela
visão, na Europa das diligências e da iluminação a querosene — sem dúvida
também das primeiras vias férreas — deve ter atuado nos manuscritos como
ficção científica, uma vez que a realidade local e global estava muito distante da
imagem esboçada atualmente. Numa retrospectiva, o que parece ainda mais
singular é o fato de os prognósticos não se apresentarem como tais, mas na
forma como o caso é descrito. É preciso refletir a respeito da fausse évidence,
que para os autores parece ter contido esse qüiproquó epistemológico. Em ge-
ral, o Manifesto erra em todos os pontos em que parece prometer garantias
histórico-filosóficas para o desfecho de tais lutas, reduzindo economicamente o
substrato histórico.
Depois de uma geração, quando o pequeno texto desencadeou seu imen-
so efeito, o Manifesto foi lido por seus adeptos, na maioria das vezes, à luz
dessas falsas evidências: a burguesia teve uma história que naquele momento,
porém, chegava ao fim; foi ela quem desenvolveu as forças produtivas, no en-
tanto, já estava atingindo a podridão. Paradoxalmente, no interior das socieda-
des capitalistas atuavam o movimento operário e, em seguida, sobretudo o
antagonismo exterior do sistema, sob forma de países socialistas e estatais, como
um estímulo para a formação de instituições e políticas de integração social, e
até mesmo para o desenvolvimento das forças produtivas. O marxismo, prati-
camente concretizado, agia como um "médico junto ao leito do capitalismo
doente".
O fato de o Manifesto estar correto, ao contrário da impressão superfi-
cial, foi uma surpresa para os "real-socialistas", cujas estruturas de administra-
ção imperiosa mostravam-se produtivas, à medida em que o assunto tratasse da
construção de uma sociedade industrial de tipo fordista-estatal em Estado de
exceção. O conceito de "economia planificada" ocultava que aquilo que estava
nomeando como tal não era simplesmente uma planificação social, mas sobre-
tudo uma separação do trabalho mental e braçal levada ao extremo, na forma
de uma ditadura estatal imposta à sociedade, como consta dos conceitos não
menos problemáticos de Marx: o fordismo estatal exigia um desligamento ra-
dical do trabalho dispositivo e executivo, sob condições de uma produção em
massa padronizada e simbolizada pela linha de montagem. Com o enfraqueci-
mento considerável dos agentes in loco na separação simultânea do salário e da
produção real, esse sistema provocou uma verdadeira "dissolução do fator sub-
jetivo" (Butenko) que, sob forma de irresponsabilidade organizada beirando o
trabalho aparente, assumiu formas venenosas. Em contrapartida, isso fez da
organização de responsabilidade, calcada na divisão do trabalho, um ramo par-
ticular da polícia secreta, com um regime rigoroso de fiscalização interna. O
modo de produção e o regime de segurança estatais atuavam finalmente como
barreiras intransponíveis na tentativa discutida durante décadas de passar para
a reprodução intensiva ou até para a automação e, no conjunto, para o modo de
produção vinculado à tecnologia de ponta, que contava com o trabalho de res-
ponsabilidade individual e, no limite, dispositivo.
No entanto, devido a esses antagonistas orientais, o Ocidente viu-se for-
çado a estabelecer uma unidade interna (de integração social) e externa (militar
e econômica); além disso, a Guerra Fria dos dois sistemas legitimou o uso de
somas astronômicas para a tecnologia militar. Desse modo era possível contor-
nar a barreira que a propriedade privada burguesa de meios de produção repre-
sentava para o desenvolvimento das forças produtivas. Hoje, o spin-off' da pes-
quisa de tecnologia militar, financiada pelo Estado, define nosso cotidiano,
desde a frigideira Teflon até o PC. No entanto, o fato de a antiga União Sovié-
tica ter se separado do círculo dos agentes históricos não contradiz o Manifesto.
Se o faz, segue os princípios populares e incansavelmente alimentados por po-
líticos e pelos meios de comunicação de massa de difamar o projeto de um
internacionalismo proletário especialmente aos olhos dos trabalhadores, prin-
cipal público-alvo. Quanto menos política for a formação de um indivíduo e
quanto mais ele se movimentar de maneira irrefletida e anistórica pela história
contemporânea, mais tenderá a considerar a estrutura de dominação estalinista
e seu fracasso definitivo como a contestação de Marx e a morte do projeto
socialista.
A irrealidade momentânea presente no internacionalismo dos trabalha-
dores assalariados modernos, esboçado no Manifesto, salta aos olhos. Por outro
lado, ela pode ofuscar como falsa evidência de nossa época pós-comunista. Basta
observar a visão de mundo de um ilustre poeta espanhol contemporâneo. Para
José Ángel Valente, a ameaça foi substituída pelas ideologias totalitárias com o
"fantasma da globalização" (el espectro de la mundialización). Ele nos vê regi-
dos por um volume de capital financeiro, do qual apenas um por cento atua
produtivamente. Os que especulam com isso e comandam a situação não fo-
ram escolhidos por nós e são até inexpressivos.
Por trás disso, "como segundo círculo desse inferno moderno ou pós-
moderno, agem os manipuladores dos grandes meios de comunicação de mas-
sa". Somente então aparecem os políticos; seu poder parece fictício, mera fa-
chada. (Tal é o relato de Jorge Edwards, escritor chileno, em El País, de 21.7.98,
p. 10: "La palabra sospechosa".) Essa percepção do mundo global e capitalista
ao final do século XX é representativa para inúmeros contemporâneos. O que
mais ela representa além da proletarização da enorme parte da população mun-
dial, seja ela feita de white ou blue-collars, e a despeito da diferença formal
entre trabalho independente e dependente? Ainda que o Manifesto induza ao
erro, onde prognostica a redução de todas as classes "em dois grandes campos
inimigos, em duas grandes classes diretamente confrontadas: burguesia e pro-
letariado", não se deve ignorar a idéia de que, na relação com as potências que
dominam o mundo, exploram a economia e governam sem mandato legítimo,
a maior parte da população mundial encontra-se praticamente proletarizada:
politicamente sem capacidade de ação e economicamente talvez com uma par-
ticipação secundária.
Naturalmente isso é apenas um quase proletariado. Suas múltiplas cisões
em interesses parciais impedem sua representação política uniforme. Todavia,
talvez esse pensamento seja útil para manter viva a provocação produtiva do
Manifesto. Pois nada é mais fatal para o espírito do que caminhar sem reservas
com o espírito do tempo. O tempo é breve com seu próprio espírito. Cronos
devora seus filhos. Na próxima virada da história, todos aguardam o inespera-
do. Apesar de a (pre)visão do Manifesto a respeito da globalização e do desen-
volvimento da técnica se confirmar, hoje o espírito do tempo parece ultrapassa-
do em sua principal suposição dialética: na verdade, parte-se do caráter contra-
ditório do desenvolvimento e, portanto, do fato de que nem as forças produti-
vas nem as respectivas relações e situações mundiais expressam uma condição
homogênea. Todo fenômeno é transitório e atravessado por forças em conflito,
cujas resultantes podem até constituí-lo.

Hoje, sob a dupla impressão do pós-comunismo e da crise ecológica,


seria possível estabelecer, sobretudo entre os esquerdistas, um amplo consenso
de que essa suposição dialética tenha se tornado antiquada: antigamente as
coisas eram contraditórias, porém tornaram-se inequívocas. É preciso ser con-
tra a globalização e a tecnologia de ponta. No entanto, justamente agora que
sobretudo seus adeptos o abandonam, o Manifesto poderia se revelar completa-
mente atual. Sendo assim, a luta não seria contra a globalização e as forças
produtivas, mas por elas.

Wolfgang Fritz Haug é professor da Universidade Livre de Berlim, Alemanha.

Tradução de Karina Jannini. O original em alemão — Unzeitgemässe Betrachtungen


zum Kommunistischen Manifest - encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para
eventual consulta.
Un fantasma
recorre el mundo
ANÍBAL QUIJANO

IENTRAS LO ESCRIBÍAN, los autores del Manifiesto Comunista implicaban


M sin duda el mundo entero en las tendencias centrales del movimiento
histórico de la sociedad capitalista. Pero las imágenes concretas de sociedad
que tenían en mente se referían, ante todo, si no exclusivamente, a Europa
Occidental. Así cobra sentido la poderosa imagen que abre el texto: "Un fan-
tasma recorre Europa — el fantasma del comunismo".
Después de 150 años, las tendencias mundiales que Marx y Engels entonces
registraban son ahora situaciones cristalizadas. Y sus imágenes concretas de
sociedad remiten hoy a la experiencia concreta del conjunto del mundo. En la
propia Europa la realidad social nunca fue quizás tan ceñidamente representada
en ellas. No debe sorprender, en consecuencia, que el fantasma del comunismo
vuelva a visitar la historia y ahora no sólo en Europa, sino en todo el mundo.
Empero, si tanto tiempo después el mismo fantasma inquieta ahora el
mundo, eso no puede significar sino dos cosas: una, que el movimiento de la
historia ha seguido el camino y el patrón vislumbrados en el Manifiesto para la
sociedad capitalista. En otros términos, que la perspectiva de conocimiento allí
implicada ha probado ser, básicamente, correcta. Y por eso, también las
previsiones históricas; otra, que las acciones y las medidas propuestas para blo-
quear ese camino y desintegrar ese patrón — de modo que la historia pudiera
encaminarse en la trayectoria del socialismo, hacia un patrón de sociedad co-
munista — no fueron igualmente correctas, ni eficaces. Esa es una de las lecturas
necesarias del más famoso texto político de la historia (1).

Las previsiones históricas mayores


"Globalización" y polarización social
Un trozo del Manifiesto (cuya frase inicial dice: "La burguesía, por medio
de su explotación del mercado mundial ha dado un carácter cosmopolita a la
producción y al consumo en cada país") debe ser hoy citado en todas partes, ya
que es casi una crónica actual de lo que hoy se denomina globalización (2).
Aunque para la mayoría de quienes lo discuten, globalization es un
concepto que mienta, sobre todo, una nueva relación entre espacio, tiempo y
economía (o historia, tout court, para muchos) por la mediación tecnológica,
para el Manifiesto se trata del desarrollo de las tendencias del capital hacia una
mayor integración del control del poder a escala mundial por medio de la
explotación del mercado mundial, de la consecuente polarización social de la
población del mundo entre una minoría en el control de recursos, de riquezas y
de poder y una creciente mayoría despojada de todo eso y empujada a la
pauperización.

Y tales son, reconocidamente, los más visibles de los actuales procesos


mundiales del capitalismo. Cumplen, quizás mejor que otros fenómenos, las
previsiones del Manifiesto y ponen de relieve el poder de la mirada histórica de
Marx y Engels (3).

La hegemonía final de la cultura de "mercado"


Así mismo, nunca fue tan patente para todos que el capital necesita
imponer — y ha impuesto en todo el mundo — el desnudo interés egoísta, cabal-
mente expresado en el cash payment, como el único nexo básico en la sociedad.
Tal como fue formulado en el duro lenguaje del Manifiesto, "la burguesía ha
desnudado de su halo a cada ocupación hasta ahora honrada y admirada con
reverencial temor.

Ha convertido al médico, al abogado, al sacerdote, al poeta, al hombre de


ciencia, en sus trabajadores asalariados". Lo que el Manifiesto condena es, por
supuesto, lo que hoy se canta en los himnos neoliberales a la gloria dudosa del
mercado.

La palmera deshojada en el desierto


"La burguesía no puede existir sin revolucionar constantemente los ins-
trumentos de producción, de ese modo las relaciones de producción y con ellas
el conjunto de las relaciones de la sociedad", sostiene el Manifiesto. La propuesta
teórica culmina con la célebre imagen: "Todo lo que es sólido se disuelve en el
aire, todo lo que es sagrado es profanado y el hombre es compelido a encararse
sin atenuantes con sus reales condiciones de vida, con sus relaciones con sus
semejantes".

¿Quién podría negar la final protuberancia de este rasgo capitalista en


las condiciones de la globalization y el recomienzo de la lucha por el re-
encantamiento del mundo?
El Estado de los capitalistas: otra reprivatización
"Cada paso en el desarrollo de la burguesía fue acompañado por un cor-
respondiente avance político de esa clase", sostienen los autores del Manifiesto.
La burguesía ha expropiado del control del poder politico a todas las demás
clases sociales antes dominantes y ella lo tiene ahora exclusivamente. Así, "El
ejecutivo del Estado moderno no es sino un comité de administración de los
asuntos comunes del conjunto de la burguesía'. Esta última afirmación, que
apunta al hueso del Estado Burgués moderno, ha sido una de los más continua-
mente cuestionadas y resistidas proposiciones de Marx-Engels. Sospecho, sin
embargo, que esa resistencia era más pertinente y característica del período
anterior, entre la Segunda Guerra Mundial y la crisis de mediados de los 70s, y
sobre todo antes de que la globalization, el neoliberalismo y el descarnado
dominio de la acumulación financiera se hicieran tan evidentes.
Durante ese período, el desarrollo de lo público del Estado en los moder-
nos Estados-nación consolidados y el avance, relativo pero importante, de las
luchas por la democratización-nacionalización de sociedades y estados en el
resto del mundo, abultaban la manera reduccionista de esa proposición del
Manifiesto. En efecto, en el Estado-nación desarrollado la representación polí-
tica de los intereses sociales no-burgueses era real, aunque reconocidamente
subordinada, y quizás aparecía más real de lo que era en la medida en que no
sólo las instituciones del liberalismo, sino sobre todo el Welfare State, eran
plenamente vigentes. Y el avance en los procesos más o menos consistentes
hacia la formación de Estados-nación en la periferia, permitían también la
constitución, si no la consolidación, de esas formas de representación política
de intereses sociales no-burgueses en el Estado. O, mejor dicho, tal avance
producía la ilusión de que en todo el mundo del capitalismo el Estado tenía
que ser una esfera de representación y de articulación de todos los interesses
sociales no obstante su desigualdad.
La globalization, esa contrarrevolucionaria reconfíguración del poder en
el capitalismo, conducida bajo la hegemonía del capital financiero, lo que
produce es, sin embargo, la tendencia a la creciente reducción de esos márgenes
de igual representación política de desiguales intereses sociales en el Estado. En
la mayor parte del mundo, en la periferia pues, no se trata solamente de una
reducción, en algunos lugares, América Latina por ejemplo, África y Asia, sin
duda, está en curso una auténtica reprivatización del control del Estado en
manos de los núcleos burgueses más globalizados. No se trata solamente de la
ciudadanía, en general, sino, para comenzar, de los rastros de Welfare State que
las luchas populares habían logrado conquistar. Y en el centro, aunque más
lentos, más graduales, resistidos por los trabajadores y las capas medias, los
respectivos procesos están sin duda alguna avanzando. De todos modos, más o
menos según las particulares correlaciones de fuerzas político-sociales, la bur-
guesía tiende al exclusivo controle del Estado. En fin, el hueso del Estado capi-
talista que los autores del Manifiesto trataban de hacer visible, tan temprano, es
casi lo único realmente visible en las condiciones de la globalización (4).
En eso consiste hoy, en lo fundamental, la contradicción concreta entre
interés social e identidad nacional que el Manifiesto coloca en la entraña misma
del patrón de desarrollo político de la historia del capitalismo.

La perspectiva de conocimiento
Aquí es pertinente apenas apuntar las cuestiones centrales de esa manera
de conocer y de producir conocimiento. Y sus dificultades.

La totalidad y la historicidad en el conocimiento


El poder, sobre todo en el capitalismo, requiere excluir de la perspectiva
cognitiva todo aquello que en la realidad lo cuestiona o lo desafía. Por eso,
cuando no se refugia en el azar o la providencia, o en la objetivación de alguna
entidad suprahistórica, sólo puede admitir mutilándolo el campo de relaciones
o totalidad en el que encuentra explicación y sentido todo fenómeno histórico.
Esa mutilación de la totalidad no es hecha solamente en el plano de la
coetaneidad de los fenómenos, sino igualmente en el largo tiempo histórico. Es
contra esa manera de conocer que Marx trabaja una alternativa, que con él da
sus primeros pasos en el siglo XIX y cuyos núcleos decisivos son la idea de
totalidad e historicidad de los fenómenos sociales. Es de allí que provienen las
ideas de clasificación de la población de la sociedad en el poder, de articulación
y conflicto de heterogéneos y antagónicos intereses sociales, la inherente
tendencia mundial del capital y, en consecuencia, el mundo como el especifico
campo de relaciones del capitalismo, como totalidad en la perspectiva
cognoscitiva y, en fin, del largo plazo histórico como elemento de esa totalidad.
¿Entre el evolucionismo eurocéntrico y la heterogeneidad histórica del
mundo? En el Manifiesto se establece, desde la partida, una distinción neta
entre la Europa del capital y el mundo del capitalismo: el fantasma del comu-
nismo recorre Europa, no el resto del mundo. Y esa distinción también recorre
el texto. Así, mientras de un lado se afirma que "las diferencias y antagonismos
nacionales entre los pueblos están desvaneciéndose cada día más, por el desarrollo
de la burguesía, la libertad de comercio y el mercado mundial, la uniformización
del modo de producción y de las correspondientes condiciones de existencia", y
que "la supremacía del proletariado hará que esas diferencias se desvanezcan
aún más rápido", por otro lado se estampa que "la unidad en la acción, por lo
menos en los países más civilizados, es una de las primeras condiciones para la
emancipación del proletariado" (negritas añadidas).
¿Qué veían en el resto del mundo los autores del Manifiesto como obstá-
culo para la unidad mundial del proletariado y la postulaban, ante todo, para
"los países mas civilizados" (léase Europa Occidental)? Esta es una pregunta
que sólo puede ser contestada con el conjunto de su obra posterior. Es
imprescindible anotar, de todos modos, que su visión de las relaciones entre
Europa y el resto del mundo no dejó de ser prisionera de una perspectiva
eurocéntrica. Las cuestiones de raza, de la colonialidad mundial del poder, de
la heterogeneidad histórica de lo que se articulaba en el capitalismo mundial,
entre otras, ingresaron de modo tardío, parcial y finalmente irresuelto en el
debate marxiano del conocimiento.

Las frustraneas propuestas políticas


Quizás hay alguna relación entre esos límites eurocéntricos de la perspec-
tiva cognoscitiva y el carácter de las propuestas políticas para la revolución
comunista en Europa. Después del colapso del socialismo realmente existente,
sin duda es más llamativo aún el hecho de que la estatización de la economía y
la total centralización del poder político en el Estado, fueran los instrumentos
estratégicos que el Manifiesto propone como el punto de partida de la revolución
comunista. Es decir, no solamente para destruir el dominio de la burguesía
sobre la economía y sobre el Estado, sino para toda la trayectoria de revolución
de la sociedad hasta su conversión en una sociedad comunista.
Sabemos bien que Marx tuvo tiempo y ocasión de hacer una correción
radical a esas propuestas después de la experiencia de la Comuna de París, en
1871. Sabemos también que Marx fue consciente al final de las cuestiones
planteadas en la perspectiva eurocéntrica del conocimiento histórico. Pero, así
mismo, que no llegó a resolverlas. Y no hay como olvidar que esas propuestas
fueron, precisamente, el eje central en torno del cual se organizó el socialismo
realmente existente y que probablemente contiene la explicación de su trágica
experiencia. Sin la hegemonía del eurocentrismo en la perspectiva de los marxis-
tas posteriores a Marx, no se podría encontrar explicaciones eficaces a esa historia.
Después de 150 años, hoy tenemos una conciencia más clara de las
opciones alternativas al eurocentrismo en la producción del conocimiento. Y
América Latina es uno de los más activos veneros de esas opciones. Pero tenemos,
del mismo modo, una más clara conciencia de las tendencias que en el propio
desarrollo actual del capitalismo llevan a la reconstitución de la comunidad y
de la reciprocidad en la lucha contra la explotación, la dominación, la
discriminación. Es por ellas, con certeza, que en el momento mayor de triunfo
del capitalismo en el mundo, el fantasma del comunismo vuelve a ser visible.

Notas

1 De la pictórica riqueza de cuestiones que toda lectura del Manifiesto hoy no


puede dejar de abrir y en cuyo debate todos somos tentados de participar, en el
limitadísimo espacio asignado a estas notas me restringiré apenas a plantear unas
pocas de ellas.
2 Tres años atrás acepté presentar en el Colegio Nacional de Sociólogos del Perú
los primeros resultados de una indagación de las relaciones entre globalización y
Estado-nación. Comencé leyendo ese párrafo y pregunté, después, si la fuente era
familiar a la audiencia. Sólo algunos entre los menos jóvenes podían identificarla.
3 Incluso economistas adversarios de Marx, no pueden sino reconocer estos hechos.
Así la curiosa nota de John Casidy: The return of Karl Marx, en New Yorker, Oct.
20-27, 1997.
4 He abierto esas cuestiones en Estado-nación, ciudadanía y democracia: Cuestiones
abiertas. En Helena Gonzáles & Haidulf Schmidt (comps.). Democracia para
una nueva sociedad (Caracas, Venezuela, Nueva Sociedad 1997).

Aníbal Quijano, sociólogo, é professor da Universidade de São Marcos, em Lima (Peru).


A atualidade do Manifesto
na periferia do capitalismo
PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.

TOM GRANDILOQÜENTE e triunfalista do Manifesto Comunista contrasta


O com a sombria situação em que se encontram as forças anticapitalistas
neste final de milênio. Escrevendo em um momento de grande efervescência
do movimento operário, seus jovens autores subestimaram a capacidade de
sobrevivência da burguesia e superestimaram o ímpeto revolucionário do pro-
letariado. O desperdício de conjunturas revolucionárias nas sociedades capita-
listas avançadas e o caráter inconcluso e problemático das revoluções socialistas
nas economias atrasadas permitiram que a burguesia organizasse uma contra-
revolução de longa duração em escala mundial.

A História foi implacável com os perdedores. Depois de amargar os horro-


res de duas guerras mundiais, de uma grande depressão mundial e do fascismo
político, as classes populares estão sendo castigadas pelo fascismo de mercado.
Os modernos métodos de cooptação e opressão tornaram adverso e hostil o ter-
reno da luta de classes, gerando desalento e confusão no movimento socialista.

Capitalismo e barbárie
Ainda que as suas previsões otimistas sobre o desenrolar da luta de classes
não tenham se concretizado, o Manifesto aponta as razões pelas quais a contra-
revolução permanente não é capaz de congelar a História por tempo indefini-
do. Com muita clarividência, Marx e Engels inferiram que as leis imanentes do
processo de valorização do capital, ao provocar a mercantilização ilimitada da
vida social e o progressivo desenvolvimento das forças produtivas, levariam à
degeneração da própria sociedade burguesa.

Muito antes da crise da civilização ocidental ter ficado patente, o memo-


rável panfleto anunciava: o caráter imperialista do capitalismo é antagônico à
sobrevivência da sociedade nacional; a natureza predatória da concorrência eco-
nômica é incompatível com a reprodução dos mecanismos responsáveis pela
coesão social; as relações monetárias deturpam a personalidade dos indivíduos
e solapam os laços familiares; a metamorfose dos ciclos industriais em crises
econômicas intermináveis transforma a barbárie em um estado permanente.
Passados 150 anos de sua publicação, o Manifesto impressiona pela preci-
são de seus vaticínios. Terminada sua missão de libertar o homem das relações
servis e de revolucionar seu controle sobre a natureza, o capitalismo voltou-se
contra si mesmo, solapando as bases da civilização burguesa. Após ter conquis-
tado o mundo e subjugado todas as resistências ao império dos negócios, o
capitalismo passou a confundir-se com a barbárie. A transformação revolucio-
nária da sociedade tornou-se, então, uma necessidade histórica. "A sociedade
burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca,
assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que
invocou".
A crescente contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e
a propriedade privada dos meios de produção — contradição que se expressa
pela recorrente negação de trabalho vivo — vulnerabiliza a burguesia. A incapa-
cidade do capitalismo de alimentar seus escravos gera um forte sentimento de
insatisfação e revolta contra a ordem burguesa. Pode-se abafá-lo mas não há
como suprimi-lo. Por esse motivo, mesmo quando as classes subalternas estão
prostradas, o fantasma da revolução social atormenta os donos do poder. As
derrotas do proletariado nunca são definitivas.

A perspectiva comunista
"Proletários de todos os países, uni-vos!". Eis a fórmula concisa e direta
invocada por Marx e Engels para impulsionar as forças políticas anticapitalistas.
A tarefa primordial dos comunistas consiste em promover a conexão dos movi-
mentos operários, imprimindo-lhes uma dinâmica revolucionária. Para tanto,
o trabalhador precisa adquirir consciência de classe, superando o caráter local e
corporativo de suas reivindicações e dando uma conotação antiburguesa e
internacionalista à luta política. A mensagem última do Manifesto é clara. O
fim da liberdade do capital de subjugar trabalho alheio é uma pré-condição
para liberar os indivíduos para sua plena realização humana.
Pode-se sintetizar a fórmula sugerida pelo Manifesto para fazer avançar a
revolução proletária em três consignas básicas: somente a negação da proprie-
dade privada é capaz de aglutinar as forças sociais comprometidas com o fim da
exploração capitalista; somente a teoria revolucionária é capaz de catalisar o
descontentamento anticapitalista de modo a transformá-lo em prática revolu-
cionária geradora de novos horizontes históricos; somente a perspectiva comu-
nista — a utopia de inverter a relação de dominação da tecnologia sobre o Ho-
mem e do passado sobre o presente - é capaz de transformar a negação do
capitalismo em um salto de qualidade no processo civilizatório.
Utopia comunista
e dilemas dos povos de origem colonial
Formulado para atender às exigências da luta operária nos países mais
desenvolvidos da Europa Ocidental, o Manifesto trata de problemas que pres-
supõem Estados nacionais já consolidados. Por isso, não surpreende que o pan-
fleto preparado a pedido da Liga dos Comunistas não enfrente os dilemas da
luta de classes nas sociedades que fazem parte da periferia do sistema capitalista
mundial. Encontramos nele, entretanto, metodologia para o preenchimento
dessa lacuna. Trata-se de buscar no processo histórico de cada formação social
as tendências concretas da luta de classes. "As proposições teóricas dos comu-
nistas não se baseiam, de modo algum, em idéias ou princípios inventados ou
descobertos por este ou aquele reformador do mundo. São apenas expressão
das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento
histórico que se desenvolve diante dos olhos".

Em economias capitalistas de origem colonial, como o Brasil, o sentido


da formação social é dado pela longa transição da colônia de ontem para a
nação de amanhã (1). O dínamo desta transição é o sentimento de profundo
mal-estar da população com relação à situação de pobreza, irracionalidade,
corrupção e instabilidade que caracteriza a vida nas economias periféricas. As
esperanças e as aspirações destes povos polarizam-se, em conseqüência, em tor-
no de um objetivo maior: controlar os fins e os meios do desenvolvimento. O
desafio é completar a formação da nação, livrando a sociedade de suas três
principais mazelas: o caráter dependente de seu sistema econômico — uma for-
ma de organização da vida material que deixa o país sujeito às vicissitudes dos
movimentos especulativos do capital internacional; a natureza particularmente
assimétrica das estruturas sociais — um padrão de estratificação social que cria
um abismo entre ricos e pobres; o pesado fardo do colonialismo cultural que
compromete a capacidade da sociedade de discernir suas verdadeiras necessida-
des — uma concepção de mundo estreita que transforma a cópia dos padrões de
consumo das economias centrais na prioridade absoluta que orienta a organi-
zação da economia e da sociedade.

A utopia possível na periferia do capitalismo


"Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não
a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas do passado", escreve Marx em O Dezoito
Brumário. A utopia do Manifesto supõe um grau de desenvolvimento econômico,
social e cultural que não está presente nas economias capitalistas dependentes.
Logo, antes de almejar a sociedade comunista, os trabalhadores da peri-
feria devem enfrentar um difícil processo de consolidação de seus Estados nacio-
nais e de superação do subdesenvolvimento. Tal ruptura não é a utopia comu-
nista apregoada por Marx e Engels, mas representa, para os povos de origem
colonial — as maiores vítimas da pilhagem e espoliação capitalista —, o único
meio de resgatar a esperança de uma vida digna. Enquanto o patrimônio
tecnológico da civilização ocidental permanecer monopolizado pelas grandes
potências capitalistas e pelas empresas transnacionais, o raio de liberdade das
economias atrasadas será muito reduzido. O máximo a que podem aspirar os
países que se rebelarem contra a ordem hegemônica é socializar pelo conjunto
da população os padrões de vida material e cultural que lhes são acessíveis,
tendo em vista o grau de desenvolvimento de suas forças produtivas e as possi-
bilidades de assimilação de progresso técnico geradas pela participação na eco-
nomia mundial (variável que depende em última instância da reação dos cen-
tros decisórios do imperialismo). Não é pouco quando se considera que a alter-
nativa — avançar, em maior ou menor velocidade, na modernização mimética
dos padrões de consumo — está conduzindo a uma acelerada desagregação social.
Na era da globalização dos negócios, em que a burguesia dependente re-
nunciou a qualquer veleidade nacionalista, associando-se definitivamente ao
imperialismo, é muito difícil imaginar que o esforço de superar o mito da mo-
dernização a qualquer custo possa ser feito nos marcos do capitalismo. Vencer
o subdesenvolvimento, construir as bases de uma sociedade socialista e derru-
bar as fronteiras que separam os povos, começando pelos vizinhos com dilemas
históricos análogos, são os passos possíveis, quando vistos de uma perspectiva
histórica de longo prazo, para diminuir a distância entre um ideal comunista
ainda muito distante e a dura realidade do capitalismo selvagem na periferia.
São tarefas heróicas que devem ser realizadas por aqueles que só perdem com a
continuidade do status quo: a classe operária e todos os segmentos sociais que
estão condenados a viver as agruras do capitalismo e a permanecer marginali-
zados de seus benefícios.

Nota
l Entre as interpretações que fundamentam esta interpretação sobre o sentido da
formação social em sociedades de passado colonial, cabe destacar os seguintes
clássicos do pensamento brasileiro: Formação do Brasil contemporâneo-, de Caio
Prado Jr.; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda; e Formação econômi-
ca do Brasil, de Celso Furtado.

Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor do Instituto de Economia da Universidade


Estadual de Campinas (IE-Unicamp).
O travo amargo da história
GABRIEL COHN

ONVENHAMOS. Um manifesto não pode durar 150 anos. Há algo de errado


C nisso. Mas não é nele e sim no curso do mundo que se encontram as razões
dessa teimosa persistência. Seus autores não se propunham mais, nem menos,
do que um texto de ocasião: na ocasião da mudança do mundo. Estranho desti-
no, o de Marx e Engels. O manifesto que redigiram quando jovens é lido um
século e meio depois como se fosse obra científica, a ser testada pela acuidade
das análises e pela validade das suas previsões. E a obra que apresentaram ao
mundo como sendo do mais alto rigor científico, a sua crítica da economia
política, ainda é lida por muitos como se fora um manifesto.
O Manifesto Comunista é o documento constitutivo de uma classe, para a
qual até inventa o nome. É o anuncio do nascimento de uma nova entidade
histórica (vale dizer, capaz de fazer história). Ao fazê-lo, presta homenagem, na
figura da burguesia, à classe que inadvertidamente preparou o cenário para esse
advento. Pois é de um advento que se trata. Visto por este ângulo o Manifesto é
a expressão mais plena da secularização do messianismo. Despojado da fé religio-
sa e das ilusões, dedica-se a introduzir uma dimensão nova na concepção de
história e de política: a da responsabilidade histórica coletiva. Cumpre à nova
classe pôr-se à altura do seu momento e converter-se em sujeito racional. Há
uma interpelação no Manifesto, mais do que um anúncio ou uma celebração.
Neste texto em que ética e política se entrelaçam sem recorrer a quaisquer apoios
externos, a nova classe é conclamada a provar sua condição de sujeito, pela
capacidade de conscientemente dar início ao novo. Está em causa uma respon-
sabilidade sem qualquer pacto prévio que lhe dê legitimidade ou apoio; seja o
pacto com Deus, seja o contrato social constitutivo da sociedade civil profana.
Todos os grandes temas de um pensamento que desembocara na razão ilustrada
encontram guarida no registro turbulento e alegre deste radical texto de juven-
tude, em que jovens intelectuais falam da jovem classe.
A referência do Manifesto é a uma classe que se quer universal e tem
condições para tanto. O ato de gênio de Marx e Engels consiste em perceber
que, na perspectiva da história, o advento de uma classe social não é o mero
acréscimo de uma categoria classificatória, nem se reduz a um passo entre ou-
tros de um processo de diferenciação daquilo que antes só era mais simples. A
nova classe, ao constituir-se (vale dizer, ao ganhar condições para organizar-se
politicamente por suas próprias forças) rompe a continuidade histórica e lhe
imprime nova forma. Desde que seja capaz de organizar-se pelas próprias for-
ças, claro. Do contrário, outros falarão por ela. E é exatamente isso que Marx e
Engels queriam evitar; daí o tom ansioso do seu texto. A união da classe é a
marca da sua organização particular. Mas, ao ocorrer, confere-lhe essa dimensão
universal que fecha o círculo da argumentação do Manifesto. Historicamente o
proletariado teria tudo (por não ter nada, salvo os grilhões) para alcançar o
inteiramente novo: o particular que, ao unir o seu poder ao seu querer e conver-
ter-se em universal, realiza, numa nova dimensão, aquilo que a classe anterior
preparou. E o legado da burguesia não é de pouca monta, nem o é a tarefa de
alçá-lo em nível mais elevado. Têm razão os que enfatizam o crédito positivo
que o Manifesto lhe reserva, embora em geral não percebam o papel que esse
reconhecimento desempenha no texto.

Não por acaso Marx e Engels sempre desconfiaram dos dispositivos de


representação política. É que toda a sua atenção está voltada para a capacidade
de uma classe de fazer o que lhe cabe por suas próprias forças. A sua tarefa
consiste em realizar na sua plenitude histórica a grande exigência que fascinava
e embaraçava o idealismo alemão: a autonomia.

Mas, um legado é um legado. E isto vale para as aquisições históricas da


burguesia tanto como, no seu registro próprio, para o Manifesto Comunista.
Quando não levado adiante por seus legítimos herdeiros ele se converte em
objeto de disputas estéreis e de degradação. E se os herdeiros não chegarem a
falar por sua própria voz outros falarão por eles. E a heteronomia se instalará no
coração mesmo do processo histórico: no ponto de onde deveria ter sido expul-
sa, segundo o Manifesto. Textos alegres de juventude que cobram sem culpa e
sem concessões aquilo que depois se revelou impossível só podem ser relidos
com um travo amargo. Enquanto isso o mundo segue seu curso e prepara novas
juventudes, talvez mais felizes.

Gabriel Cohn é professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP e editor


da revista Lua Nova, do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).
A modernidade
e as razões do Manifesto
MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

o LONGO DO ÚLTIMO SÉCULO e meio o Manifesto do Partido Comunista -


A redigido entre janeiro e fevereiro de 1848 por Marx e Engels e publicado
em Londres logo depois como parte da estratégia de divulgação do então nascente
movimento dos trabalhadores - tornou-se o texto político mais lido e difundido
da história contemporânea. Foi consumido voraz e apaixonadamente tanto pelos
que viram nele a ante-sala de uma nova era para a humanidade quanto por seus
inúmeros adversários. Tornou-se objeto de dedicada, exaustiva e meticulosa
pesquisa por parte de seus admiradores, muitos dos quais convencidos de que ali
estaria a chave para a explicação dos mistérios e sutilezas da história humana.
Houve também os que preferiram atribuir ao texto o status de guia autorizado
para a ação, enquanto outros entregaram-se à tarefa de submetê-lo a verdadeiros
ritos de culto e adoração, cercados de uma liturgia que seguramente horrorizaria
seus autores. Recebeu tratamento menos empenhado e regra geral acrítico da
parte de seus contestadores, muitos dos quais o repeliram com veemência
injustificável, incapazes de encontrar no texto algo mais do que as raízes do
totalitarismo moderno, da estatização e do ódio de classe.

O Manifesto sobreviveu a tudo isso. Quando hoje, em muitas partes do


mundo, sucedem-se manifestações e eventos destinados a registrar seu
sesquicentenário e, ao mesmo tempo, diversas vozes se alçam para decretar a
morte do socialismo e a vitória definitiva do capitalismo, o texto ainda consegue
reluzir, impondo-se com vigor exuberante e excepcional poder de fascinação.
Não há quem permaneça indiferente ao se pôr em contato com ele. Quem não se
inquiete com o cenário por ele descrito com tanta objetividade e paixão. Quem
não se pergunte se, no fundo, não estaria ali, naquelas poucas e contundentes
páginas, uma saída para os impasses que insistem em atormentar homens e
mulheres de todas as épocas. Impasses que se repõem a cada dia sob formas
novas, mais perversas e sutis, como que a simbolizar a grandeza e a dureza da
vida, as promessas e os obstáculos do progresso técnico, da produtividade, do
engenho humano e da expansão do intercâmbio entre os povos. Marx e Engels
cantaram em prosa, sintetizando-a, toda a série de grandes utopias típica da
história do pensamento político. Puseram em outro patamar a aposta racionalista,
iluminista e humanista no homem como ser eminentemente vocacionado para o
progresso, para a historia, para a convivência dignificante n&polis. Realizaram-se
desse modo como clássicos no melhor sentido da palavra: "intérpretes de seu
próprio tempo que permanecem atuais em todos os tempos", como afirmou
certa vez o filósofo italiano Valentino Gerratana.

Essa talvez seja a primeira razão da capacidade que teve o Manifesto de


resistir ao tempo. Mas o texto também seduz porque procura, inspirado numa
ousada proposta filosófica e empenhado num deliberado esforço teórico para
dessacralizar o mundo dos homens, afirmar uma identidade. Identidade, como
se sabe, de uma parte da sociedade - de um partido enquanto idéia e programa,
não tanto enquanto forma organizacional. Mas uma parte vocacionada para se
fazer todo, expressar a unificação do gênero humano e a superação das diversas
diferenciações sócio-econômicas que opunham os homens uns aos outros. Põe-se
como arauto do protagonismo de um novo sujeito, enraizado no mundo do
trabalho industrial e despojado de toda propriedade e de toda a possibilidade de
se emancipar, diretamente interessado, por isso mesmo, no estabelecimento das
bases de uma nova convivência, quer dizer, disposto a lutar por uma revolução
social profunda, que viabilizasse a constituição de uma sociedade democrática,
igualitária, justa. Um sujeito, em suma, que não tendo "nada a perder a não ser
suas cadeias", tinha "um mundo a ganhar".

A identidade de que falavam Marx e Engels nascia de um impetuoso


movimento de mudança: a revolução capitalista, liderada pela burguesia européia
e destinada a espalhar seus frutos pelo mundo. A descrição da natureza dessa
revolução, de seus efeitos sobre a vida dos homens e de suas contradições, talvez
seja imbatível em poder de convencimento. Nunca como naquelas páginas o
capitalismo foi apresentado com cores tão fortes. Nunca o socialismo foi mostrado
como algo tão viável: afinal, do ventre da revolução burguesa parecia saltar o
destino inovador da humanidade, uma transformação de qualidade absolutamente
nova, que tendia a comprometer os homens para sempre, a inseri-los na trilha do
progresso, do bem-estar, da solidariedade, da cosmopolitização, a arrancá-los do
"idiotismo da vida rural". O discurso não pecaria por falta de estilo: "O contínuo
revolucionamento da produção, o abalo constante de todas as condições sociais,
a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as
precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séquito de crenças e
opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas e as novas envelhecem
antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo
o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar
com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas". O
que libertava trazia consigo o seu oposto: o sólido, o que era sagrado, conhecido
e valorizado como referencia para a vida - relações familiares, crenças, afetos,
sensações, coisas que garantiam alguma inteireza ao indivíduo - convertia-se em
mercadoria. Tudo tenderia, assim, a se fragmentar e a se transformar em objeto
de cálculos frios, embalados pela progressão de uma racionalidade de novo tipo,
eminentemente instrumental. Esvaziavam-se, desse modo, os tradicionais recursos
de que dispunham os indivíduos para imprimir um sentido ao mundo: libertavam-
se, mas também perdiam boa parte da magia que dava graça à vida. Mais tarde,
Weber falaria em "desencantamento do mundo" (1).

Com base nessa dinâmica frenética e (auto) subversiva — nesse modo de


vida que não pode existir sem "revolucionar continuamente todo o conjunto das
relações sociais", sem atirar os homens na "incerteza e na agitação eternas" -, o
socialismo tornava-se um programa factível. Saía-se do sonho para a realidade.
Tudo estaria, a partir de então, em condições de ser realizado por quem se
mostrasse disposto a construir organizações, a mobilizar consciências, a repor e
estabelecer vínculos sociais, a acenar com novos projetos de vida, a mergulhar
em árduos e prolongados embates políticos. Afinal, a burguesia não se cansava
de "produzir seus próprios coveiros", de fornecer incessantes "elementos de
educação, isto é, armas contra si mesma" aos proletários, dando a eles condições
de se realizar como "classe que traz o futuro nas mãos". Com isso, o socialismo
podia ser concebido como algo mais do que uma mera "socialização da miséria",
ou seja, como um efetivo passo adiante: superar o capitalismo, apoiando-se
precisamente nas "poderosas e colossais" forças produtivas que a burguesia havia
despertado no seio do trabalho social, mais imponentes do que as forças criadas
por "todas as gerações passadas em conjunto".

O Manifesto tinha seus limites, é evidente. Era prisioneiro da mesma


juventude do movimento de que cantava as possibilidades futuras. Não concebia
o processo político por uma via que não fosse a da "guerra civil", a da luta violenta
entre a classe que enriquecia sempre mais e a classe que empobrecia sem cessar.
Passou batido pelo problema de saber como poderiam os proletários, reduzidos
à pauperização absoluta, protagonizar uma revolução. Muitas de suas propostas
soam hoje como ingênuas ou anacrônicas, como já haviam antevisto seus próprios
autores em 1872, quando sugeriram que não se atribuísse "nenhuma importância
particular às medidas revolucionárias" estabelecidas no texto. O Manifesto não
conseguia visualizar os efeitos da integração dos trabalhadores, extrair os
desdobramentos práticos da monumental "socialização política" que se seguiria
ao avanço da industrialização e da urbanização e que, no século XX, levaria os
países ocidentais à experiência do Welfare State, do sufrágio universal, das reformas
sociais, dos ganhos educacionais e científicos, do crescimento cultural das grandes
massas, em suma, da democratização. Não fazia isso, dentre outras coisas, porque
seus autores ainda engatinhavam em termos teóricos e apostavam que a revolução
socialista era iminente, imposta que estava pelos próprios problemas de realização
do capitalismo.

Além do mais, como evitar tais limites 150 anos atrás? O Manifesto era
filho do tempo. E o tempo não podia deixar de impor, às emergentes massas de
trabalhadores, uma perspectiva revolucionária, de confronto, de combate. A
democracia não era uma realidade já evidenciada, nem se encontrava funcionando
na grande maioria dos países do mundo. A "socialização da política" seria um
fenômeno posterior a 1848, derivado em boa medida das próprias lutas do
movimento operário, ao menos em parte referenciado pelas idéias de Marx e do
Manifesto (que ganhariam expressão progressivamente, ao ponto de jogar um
papel de peso na Associação Internacional dos Trabalhadores, nos anos 60, e no
processo de constituição de numerosos partidos social-democratas a partir de
então). Décadas depois, Marx e Engels iriam recompor os termos de seu programa
de ação: sem abrir mão das convicções revolucionárias e do entendimento de que
o capitalismo estava fadado a funcionar sempre na crise (mas não necessariamente
a desaparecer pelo mero jogo de suas contradições econômicas) — tal como o
feiticeiro "que já não pode controlar as potências infernais por ele postas em
movimento" -, veriam com outros olhos as possibilidades de uma transição de
longo prazo, mais processual que diruptiva.

Se devidamente contextualizado e posto em sintonia com a história real


em que nasceu e com a qual dialogou, o texto de 1848 compensa folgadamente
suas fraquezas. Até mesmo por isso, tornou-se muito mais do que o manifesto de
um programa político, convertendo-se num libelo emancipador de largo fôlego,
capaz de emocionar por seu estilo pungente e indignado. Balizando a reflexão da
esquerda nos mais diversos países, acabaria colado ao imaginário mesmo do
mundo contemporâneo.

Hoje, quando se comemoram os 150 anos do Manifesto, não cansamos de


nos surpreender com a complexidade e os desafios da época. Talvez se possa dizer
que estamos imersos em uma fase mais avançada do mesmo processo de mudanças
radicais que em 1848 mobilizou a energia política e intelectual de dois jovens
comunistas alemães. São reais e gigantescos os problemas com que nos defrontamos,
mas são igualmente reais e gigantescas as possibilidades de que se coloque em
curso uma etapa histórica efetivamente nova para a humanidade. Hoje, como
ontem, continuam vivas (mesmo que sedadas ou adormecidas) as expectativas e a
disposição de engajamento de homens e mulheres no mundo todo. Crise e mudança
acelerada: esse o binômio com que temos de nos haver nessa transição
verdadeiramente epocal que coincide com a chegada do século XXI.
A difícil arte de mudar
Precisamente por alterar o sentido do tempo e mexer tanto com os
fundamentos, as estruturas e as representações da ordem vigente, o binômio
crise/mudança acelerada traz consigo duas grandes tentações: a da resistência em
nome de velhas postulações e a da apologia dos novos dados da vida.

Não são reações que se excluam. Buscar apoio no passado - nas antigas
verdades, nos conceitos comidos pelo tempo, nos sujeitos em extinção, nas frases
surrupiadas de textos consagrados - tem muitos pontos de contato com o discurso
dedicado a amplificar as novidades do presente. Ambos são comportamentos
ingênuos, independentemente da virulência verbal com que possam apresentar
seus argumentos e da maior ou menor sofisticação técnica de que os revestem.
São igualmente impostos pela realidade, funcionando como atitudes típicas, das
quais não conseguimos nos livrar e que em boa medida estão entranhadas na
natureza mesma do homem.

Voltar-se para o passado é um dos mais conhecidos comportamentos


humanos. Trata-se de algo lógico em quem tem e faz história. No passado estão
as verdades aprendidas, as certezas conquistadas, os fatores que nos dão segurança
e identidade. Com o passado, conseguimos compensar as agruras do presente e
as dúvidas com relação ao futuro. Quanto mais, aliás, uma época (uma
comunidade, uma pessoa) vê cobrir-se de névoa sua visão do futuro, mais ela
tende a buscar proteção no passado. Sobretudo os poetas sabem disso: "quando
o futuro é incerto, o coração volta ao passado" (Gabriel Garcia Márquez). Mas
não há quem não tenha experimentado na pele o problema, quem não tenha
sido por ele desafiado, quem não tenha a ele dado alguma atenção. Agarrar-se ao
passado é uma reação comuníssima, que desrespeita todos os credos e todas as
disposições subjetivas, aí incluídas as mais resolutamente revolucionárias, como
costuma dizer o filósofo Leandro Konder. Trata-se de algo que sustenta o
conservadorismo e o medo de mudar tão visceralmente inerentes ao mundo dos
homens.

O que não significa que a desvalorização do passado, se chegar a ser possível


e não for mero truque ideológico, traga em si alguma virtude. Ela, em boa medida,
representa tão-somente a confissão de que o presente não vale muita coisa, não
tem muito sentido nem pode ser visto como plataforma para a construção do
futuro. A depreciação do passado — sua rejeição em bloco — só consegue mesmo
impulsionar a adesão abstrata ao novo, ou seja, forçar o abandono de qualquer
tentativa de pensar criticamente o que está nascendo, se constituindo ou se
redefinindo. Entende-se assim a racionalidade dos que vêm o presente sem crise
ou contradições, como a negação absoluta do passado, como um tempo integrado
apenas por coisas boas e positivas, realização plena de uma nova era. Trata-se de
uma racionalidade fria e cega, incapaz de compreender que o presente "nada
mais é do que a metade do espólio de um passado que se obstina em sobreviver"
e o passado, "por suas regras, diferenças e semelhanças, nada mais do que a chave
indispensável de todo e qualquer conhecimento do presente", como afirmou
certa vez Fernand Braudel.

Sem a compreensão do passado, sem uma explicação crítica do presente e


sem um projeto de futuro, é impossível dirigir a mudança. Não basta a mera
repulsa ao presente: sua rejeição em nome de épocas pretéritas melhores, de
convicções doutrinárias cristalizadas, de compromissos anteriormente assumidos,
de interesses prejudicados, de perspectivas políticas vazias de materialidade so-
cial. É preciso adicionar à crítica do presente uma proposta de futuro, entender
em que medida e por que motivos o hoje prepara o amanhã, delinear quais futuros
possíveis temos diante de nós e quais os caminhos que se nos oferecem para que
os alcancemos.

Hoje, quando o mundo se dobra à grave ausência de perspectivas e à aguda


crise de referências, devemos nos empenhar sinceramente para olhar além. Não
é aceitável que nos entreguemos ao diagnóstico de uma "crise que piora sempre
mais", que é mortífera em sua magnitude e abrangência, que nos sufoca e im-
pede o vislumbre de qualquer saída. Não basta denunciar os culpados pelas mazelas
do presente, sejam eles governantes, classes, interesses ou megatendências. Não
basta acumular dados que comprovem que hoje estamos piores do que ontem,
que denunciem retrocessos e vitimizações amorais ou que relativizem a euforia
dos adoradores de tudo o que é novo. É preciso ir além. É preciso descobrir no
presente os elementos que anunciam o futuro, que condensam o que de melhor
fizemos e que por isso mesmo podem alicerçar um projeto razoável de mundo.
Apesar de tudo e em meio a terríveis conflitos e contradições, a humanidade
continua viva, conquistando novas possibilidades a todo momento, rompendo
limites históricos que até então bloqueavam a autodeterminação, a liberdade, a
inteligência, a criatividade, o diálogo de todos com todos. Não será esse um bom
ponto de apoio para se ver além?

Nunca como hoje reuniram-se tantas condições para uma construção


inteligente do futuro. Esse é o grande produto da fase de radical mundialização
do mundo em que nos encontramos: da desterritorialização, do avanço tecnológico
e científico, das possibilidades de produção material, do salto gigantesco em
termos de comunicação e acesso a informações, do surgimento de novos espaços
de troca e convivência, do aumento das chances de fundação de uma democracia
de novo tipo. O mundo se desprovincianiza a olhos vistos, perde os vínculos
estreitos com o território, vê abrirem-se verdadeiras fendas nas velhas soberanias,
nas velhas estruturas, nas velhas instituições, ou seja, em tudo aquilo com o que
se construiu o progresso passado (mas com o que também se viabilizaram tantos
horrores). Fiel à sua natureza, o capital continua a subverter incessantemente
todas as bases produtivas, sócio-culturais e políticas da vida humana, a conduzir
as sociedades a repentinos "estados de barbárie momentânea", a revolucionar
constantemente todas as ordens, inclusive a sua própria, empurrando-nos todos
para a "incerteza e a agitação eternas".

Subversão da ordem, que hoje concretamente produz um comportamento


defensivo da esquerda (muitas vezes para preservar certos direitos e espaços
conquistados no interior da própria ordem burguesa) e exige, ao mesmo tempo,
empenho redobrado para que se restabeleçam as bases e a alma de uma subversão
de outra qualidade, direcionada para a recomposição da unidade do gênero
humano: uma nova unificação do homem no mundo, assentada na reciprocidade,
no reconhecimento do outro, no revigoramento da comunidade, na democracia e
na justiça social.

A força do Manifesto
No campo específico da esquerda, porém, há muito mais duvidas que
certezas, muito mais confusão e falta de transparência do que identidades e
propósitos claramente demarcados. Sequer se consegue deslindar, hoje, a presença
dos comunistas. As indagações se acumulam, sem trazer consigo uma corres-
pondente profusão de respostas. A perspectiva da luta de classes como motor da
história e, também, na sua forma-limite, como porta de entrada do socialismo,
deve ser mantida hoje, quando uma classe inteiramente estranha — a classe dos
excluídos e dos sem-emprego — parece crescer e se multiplicar sem cessar, cortando
as possibilidades de que se materialize a tendência percebida no Manifesto de um
choque cada vez mais agudo entre burgueses e proletários? Seriam os excluídos
os proletários do século que se aproxima? Quem é hoje o sujeito da revolução?
Ainda faz sentido imaginar o comunismo como etapa mais avançada de socialismo,
como organização inteiramente afastada da dinâmica mercantil e da propriedade
privada, numa fase da história tomada pelo ideal consumista, pela apropriação
individual, pela cultura da privacy?. Seria a social-democracia — não enquanto
rótulo de partidos políticos hoje existentes, mas como programa — a nomenclatura
realista da grande utopia de Marx e Engels, proposição mais factível com as
imposições de uma época firmemente assentada na mercantilização, no
intercâmbio ampliado e, ao mesmo tempo, na convivência de diferentes formas
de regulação (pelo mercado, pelo Estado, pela comunidade)? Podemos continuar
alimentando a aposta no desaparecimento do Estado, na sua redução a mera
administração das coisas", nesse mundo que exige sempre mais instâncias
superiores de totalização, articulação e equalização? O que fazer com a questão
democrática e com o seu lugar na transição para uma sociedade socialista numa
época em que não se consegue sequer viabilizar a forma representativa da
democracia e que talvez esteja a exigir, da esquerda, mais do que nunca, um
esforço concentrado para salvar, renovar e reinventar a democracia em si mesma,
sem adjetivos ou qualificações?

O Manifesto não responde a qualquer dessas questões. Séria absurdo exigir


que o fizesse. Mas há nele um incontestável estímulo para que continuemos com
os olhos pregados na realidade viva das coisas, nas possibilidades efetivas de uma
transformação em sentido progressista, isto é, destinada a estabelecer as bases de
uma nova convivência entre homens e mulheres, de uma unificação
categoricamente superior do gênero humano. Afinal, a força desse texto vigoroso
não está na apresentação de um programa pronto e acabado, fundado num
conjunto de "princípios inventados por esse ou aquele reformador do mundo".
Sua força repousa, ao contrário, no empenho de ser a "expressão geral de um
movimento histórico que se desenrola sob nossos olhos". O próprio Marx não se
cansou de repetir que, para ele, comunismo era essencialmente "o movimento
real que abole o estado de coisas existente". De resto, o que esperar de um texto
que se mostra legível 150 anos depois de escrito senão uma perspectiva de análise,
se se preferir um método?

A grande sugestão a se extrair do Manifesto é a de que as armas da crítica


não podem ser entregues jamais. Até mesmo porque ainda vivemos no mundo
do capital - com toda a sua desumanidade visceral, com todo o embrutecimento
subjetivo por ele alimentado, com todas as suas desigualdades e injustiças, mas
também com toda a sua capacidade de impulsionar a produção, universalizar o
intercâmbio, ativar gigantescas forças sociais, mostrar "o que pode realizar a
atividade humana" -, a crítica radical, a crítica que vai à raiz das coisas para
revelá-las em sua inteireza e superá-las, continua na ordem-do-dia. Não há como
imaginar uma situação na qual "o livre desenvolvimento de cada um seja a
condição do livre desenvolvimento de todos" sem o aprofundamento da crítica
ao império da economia (do mercado e da moeda) e do Estado (da força e da
potência) sobre a sociedade e sobre o indivíduo. Não há como caminhar nessa
direção sem uma reflexão rigorosa sobre as possibilidades e a natureza do
socialismo - uma reflexão que seja simultaneamente despojada de preconceitos e
dogmas principistas, aberta para uma visão renovada da liberdade, do indivíduo
e da democracia, inconformista, insatisfeita consigo mesma e, por isso,
determinada a se reinventar a todo momento.
Seriam necessárias outras razões para que continuássemos a ler o Mani-
festo?

Nota

l A respeito desses aspectos dilemáticos da modernidade, a partir dos quais tende a se


generalizar a sensação de um típico mal-estar, indício de que os homens passam a
traduzir certos traços da época como perda ou declínio, remeto ao belo e instigante
ensaio de Charles Taylor, The malaise of modernity, de 1991 (edição italiana: Il disagio
delia modernità. Roma-Baris, Laterza, 1994).

Marco Aurélio Nogueira é professor do Departamento de Política da Faculdade de Ciências


e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, e pesquisador
da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap). Tradutor, dentre outros,
do Manifesto Comunista (Editora Vozes, 1988) e autor de As possibilidades da política:
idéias para a reforma democrática do Estado (Paz e Terra, 1998).
Teses sobre Karl Marx
FERNANDO HADDAD
I
S SOCIALISTAS, até hoje, incidiram no erro de acreditar que o desenvolvi-
O mento das forças produtivas, sob o capitalismo, faria explodir as relações
de produção que o configuram, quando na verdade, ao contrário das antigas
formações sociais, o capitalismo se vale desse desenvolvimento para se legiti-
mar, sendo que a dialética entre as forças produtivas e as flexíveis relações capi-
talistas de produção se desdobra de uma maneira historicamente nova, a um só
tempo dinâmica e estaticamente.

II
Os socialistas se valem das crises do capitalismo, expressão do seu caráter
inerentemente contraditório e irracional, para afirmar seu ponto de vista. Não
obstante, a questão sobre qual será a crise final desse sistema é uma questão
político-prática e não econômico-teórica.

III

Os socialistas querem erradicar do mundo a pobreza de espírito. To-


mam-na como produto direto das atuais condições materiais de existência. O
movimento socialista funda-se no materialismo, mas entendido como crítica
social, tendente a sua consumação.

IV
O socialismo não deve ser tomado como um fim, como telos, mas como
um novo começo, como reconciliação entre homem e natureza que não reivin-
dica um passado longínquo, pois essa reconciliação se dá num outro plano,
num patamar jamais atingido.

V
O socialismo não deve ser tomado como uma ordem fundada em valores
por ele criados. O socialismo é o desentrave definitivo do processo de
individuação, obstruído pela sociedade de classes. O socialismo é a exuberância
dos indivíduos de uma vez por todas libertos de valores prescritos, unidos soli-
dariamente pelos laços de justiça, exclusivamente.
VI
O socialismo é igualmente o desentrave do processo de formação de urna
comunidade internacional que preserva as diferenças entre os povos, e que faz
délas o testemunho da riqueza do enfim realizado gênero humano.

VII

O socialismo é o reino da justiça onde se exerce a liberdade.

VIII

Os socialistas pretenderam transformar o mundo; cabe, porém, transfor-


mar os homens, isto é, motivá-los para aquela transformação. O socialismo
depende de um salto psicoterapêutico para além da dominação orquestrada
democraticamente na esfera pública.

IX

O socialismo não é um desdobramento lógico do capitalismo, embora


seja uma possibilidade objetiva. O lógico é tão-somente o histórico que se im-
pôs, por vezes ilógicamente. O socialismo é a saída talvez ilógica de um mundo
certamente irracional.

X
O socialismo é a superação prática da metafísica realmente existente.
Como a dialética é tão-somente o fruto do esforço mental de compreensão da
fantasmagoria reinante, o advento do socialismo implicará sua obsolescência.

XI
Até lá, os socialistas devem reinterpretar continuamente o mundo social
para uma práxis transformadora sempre renovada.

Fernando Haddadé professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Nem tudo que é sólido
desmancha no ar
PA ULO EDUARDO ARANTES

OMO A MAIS ABSOLUTA dominação sobre os homens continua a ser exercida


C por meio de processos econômicos de exploração — mesmo sobre a cres-
cente parcela da humanidade que está sendo rifada precisamente porque dei-
xou de ser economicamente rentável —, o Manifesto Comunista ainda cruzará o
milênio como uma mensagem na garrafa. Muito mais atual inclusive do que há
150 anos, quando a proletarização dos pobres e demais expropriados ainda não
parecia irreversível, a ponto de considerável número deles procurar escapar à
danação do assalariamento — só viver se encontrar trabalho, e só encontrar tra-
balho se este incrementar o valor do capital — reagrupando-se à margem da or-
dem burguesa nascente na forma de comunidades cooperativas, por meio das
quais sonhavam recuperar a antiga independência econômica perdida. Porém a
Modernidade anunciada pelo Manifesto viera também para abortar o não-lu-
gar dessa utopia. Com a atual mundialização do capital enfim, ninguém mais
está fora, sobretudo as grandes massas precarizadas e desconectadas na corrida
ao corte de custos: em tempos de pressões competitivas globalizadas, literal-
mente não têm mais para onde ir. Nunca estiveram tão irremediavelmente in-
cluídas.

Continuamos portanto na mesma, a mesma desgraça econômica de sem-


pre, desde que a terra, o trabalho dos homens e a moeda de troca entre eles
foram transformados em mercadoria, como qualquer outro artigo de comér-
cio. Mas também continuamos na mesma numa outra acepção igualmente som-
bria da expressão, por assim dizer mítica. Era o que Marx e Engels queriam
dizer, no momento mesmo em que chamavam a moderna exploração econômi-
ca pelo nome, ao declarar que a história de todas as sociedade tinha sido até
então a história da luta de classes. Pois bem: se toda a história é história da luta
de classes é porque a história sempre foi a mesma coisa, numa palavra, pré-
história. Como de resto se pode ler num dos rascunhos preparatórios do Mani-
festo: "assim como a forma mais recente da injustiça lança luz sobre todas as

* O título deste texto é o mesmo de uma novela inédita de Jorge Miguel Marinho.
demais, a crítica da economia é urna crítica da história no seu todo, de cuja
imobilidade a classe dos capitalistas, como outrora seus antepassados — senhor
de escravos, patrício romano, barão feudal —, deriva o seu privilégio (...) O
silêncio arcaico das pirâmides repercute o barulho infernal do sistema de fábri-
cas". Não por acaso — numa conhecida interpretação — para o poeta das Flores do
mal (livro rigorosamente contemporâneo do Manifesto Comunista), essa mes-
ma e famigerada Modernidade era a cifra de um mundo sempre-igual de ruínas
recorrentes, as destruições criativas, no vocabulário da apologética mais recen-
te, próprias de um sistema que não pode subsistir sem a morte precoce de seus
instrumentos de reprodução. Assim, no suposto auge renascentista que estaría-
mos atravessando — a chamada globalização, na opinião apoteótica de um varão
sabedor local —, no rumo sabe-se lá de que apogeu econômico futurista, não se
achará muito mais do que outro espasmo pré-histórico do sistema tautológico
a que se resume a absurda e interminável acumulação de capital comandada
pelo único e exclusivo fim de se acumular mais capital.

Tudo isso, não obstante, é fato que Marx e Engels não resistiram à tenta-
ção progressista da época, deixando-se impressionar pela nova prosa modernis-
ta do mundo, pela irresistível escalada dos preços baratos da mercadoria bur-
guesa tomando de assalto quantas muralhas da China lhe surgissem pela fren-
te. E como poderiam, naqueles tempos de legitimação revolucionária dos acu-
muladores de dinheiro e poder? Mas ocorre que deslizando pelo plano inclina-
do da modernolatria deram com a plataforma de uma outra humanidade, a
qual corresponderia enfim verdadeiramente ao seu conceito. É que entreviram
naquela novidade avassaladora do capitalismo com relação às civilizações ante-
riores a chance providencial de quebrar o feitiço pré-histórico da alienação.
Nunca será demais evocar o essencial dessa reviravolta. E para realçar a
nota dissonante do Manifesto neste final de século de harmonia extorquida,
por que não evocá-lo nos termos mesmos das teorias sistêmicas em voga? Com
efeito, não é muito difícil admitir que a evolução histórica da espécie humana
sempre se deu por uma adaptação passiva do quadro institucional da sociedade
à pressão das forças produtivas. A ser assim, a inovação da modernidade capita-
lista reside na circunstância, sem dúvida, inédita de que pela primeira vez essa
pressão material não só é auto-impulsionada pelo imperativo da acumulação
infindável mas solapa, também em permanência, as formas culturais de
legitimação social herdadas, provocando por sua vez novas rodadas de adapta-
ções passivas. Ora, ao contrário de uma solene declaração burguesa de reconhe-
cimento e sanção de tendências históricas consumadas, o contradiscurso do
Manifesto simplesmente demonstra que contra tais fatos há argumentos, além
do mais fornecidos por eles mesmos, a saber: esse mecanismo de reprodução
social em que a iniciativa cabe apenas à inovação econômica define justamente
a pré-história da humanidade e, portanto, o capitalismo ele mesmo é pré-histó-
rico, não espantando que nele ainda se apresente como um destino o cego
movimento da economia; e tal engrenagem não saltará dos trilhos enquanto
uma rotação ciclópica de eixo não passar o controle prático das transformações
estruturais da sociedade para as mãos de indivíduos autônomos e cooperativos,
encerrando assim a idade mítica de submissão absoluta do metabolismo social
às suas condições materiais de reprodução. (E pensar que hoje quem se ajusta,
e não por acaso mediante sucessivas e infinitesimais adaptações passivas, acre-
dita que nesse último enunciado jurássico da causalidade sistêmica se concen-
tra a quintessência do materialismo histórico, em nome do qual de alma leve
pede a benção aos vencedores.)
Está claro, porém, o encanto não se romperia por simples decreto
emancipatório; não basta apontar para a fantasmagoria para que ela se dissipe.
Além de ser materialmente tangível, a peça subversiva que faria girar a porta de
saída da pré-história precisaria pertencer, ela mesma, ao encadeamento arcaico
que mandaria pelos ares. Estava assim designado o lugar a ser ocupado pela
luta de classes: à mola perpetuadora da eterna recaída na barbárie seria delega-
da a tarefa de encaixar a alavanca numa muralha aparentemente sem brecha, se
é fato que haveria mesmo um grão de transcendência na assimetria brutal de
poder social entre as classes em luta. Nesse entorse da pré-história, Marx e
Engels apostaram todas as fichas da emancipação. Ou quase todas: é bom não
esquecer a ressalva acerca da ruína comum que também espreita o conflito de
morte nessa guerra social por onde corre ainda a pré-história da humanidade.
Como se essa reviravolta não bastasse, Marx e Engels repetiram uma segunda
vez, naquele mesmo Manifesto, a prova do caráter pré-histórico do capitalismo:
sacudida por crises periódicas em que o capital torna redundante sua própria
fonte de valorização queimando força produtiva, a sociedade burguesa "vê-se
subitamente reconduzida a um certo estado de barbárie" que se abate sobre os
indivíduos como outrora a fome e as guerras de extermínio, só que agora na
forma invisível de poderes subterrâneos autônomos e incontroláveis.
Nessa segunda prova dos nove - a experiência da impotência social máxi-
ma no confronto com as forças anônimas da exploração — ressaltava novamente
a novidade histórica do capitalismo: sob o invólucro ultramoderno do progres-
so, a derradeira sociedade primitiva, mergulhada na inconsciência coletiva do
desastre que se avizinha. Digamos então que o essencial do Manifesto reside na
figuração contemporânea do nexo entre essas duas formas pré-históricas da
opressão: a primeira, contrapondo campos sociais antagônicos e visivelmente
personificados; a segunda, a dominação, sem sujeito designado, exercida sobre
o conjunto da sociedade pela economia de mercado autonomizada, a ponto de
transformar os seus beneficiários diretos em meras funções de seu próprio apa-
relho de produção. Uma dimensão não vai sem a outra, assim como o proleta-
riado do Manifesto se exaure enfrentando ora a burguesia, ora o capital, do qual
a primeira é "portadora involuntária e incapaz de reação", na fórmula do Mani-
festo, mas nem por isso desprovida de vontade e do poder de disposição sobre
os homens que lhe confere um sistema que, por sua vez, a sujeita se não quiser
perecer, como aliás se pode ler noutro rascunho famoso redigido dez anos de-
pois, os Elementos fundamentais para uma crítica da economia política: "na
redução dos homens a simples agentes do mercado se esconde a dominação de
homens sobre homens. Porém a classe dominante não é apenas dominada pelo
sistema, domina através do sistema. A tendência objetiva do sistema é redobra-
da e sancionada pela vontade constante daqueles que o servem. Como é cego, o
sistema é a própria dominação, e por isso mesmo funciona sempre a favor dos
dominantes, mesmo quando os ameaça de ruína; os trabalhos de parto a que
eles se entregam nos momentos de crise atestam o pleno conhecimento desse
fato".

Estando assim entrelaçadas as duas dimensões desse diagnóstico do capi-


talismo como derradeira sociedade pré-histórica — ele mesmo cifra de uma rup-
tura de época tanto mais paradoxal por implicar um momento de auto-reflexão
da espécie humana sob o mais espesso invólucro de uma segunda natureza -,
compreende-se que nenhuma das duas pode sobreviver à morte da outra. Os 30
anos de calmaria que sucederam à última grande guerra — efeito anestésico da
Guerra Fria, do Welfare europeu e da industrialização consentida da periferia -,
varreram da memória o abismo entreaberto pelo apocalipse nazista, na verdade
cavado pela mítica espiral da normalidade burguesa, o envolvimento pré-histó-
rico da luta de classes na engrenagem da exploração econômica. Há menos de
duas décadas rompeu-se o dique novamente. Como um sinal de alarme entre
duas catástrofes, o Manifesto Comunista ainda contínua soando, ontem como
hoje, para despertar a humanidade do mesmo pesadelo ancestral da dominação.

Paulo Eduardo Arantes é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Acertos e dificuldades
do Manifesto Comunista
RUY FAUSTO

"A HISTÓRIA DE TODA sociedade até hoje é a história de luta de classes". "As
idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias das classes do-
minantes". "O poder de Estado moderno não é mais do que um comitê, que
administra os negócios comuns do conjunto da classe burguesa". "Os trabalha-
dores não têm pátria". "[Numa revolução comunista], os proletários não têm
nada a perder se não as suas cadeias". "Em lugar da velha sociedade burguesa,
com suas classes e suas oposições de classes, surge uma associação na qual o livre
desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de to-
dos" (1).
O Manifesto é conhecido, antes de mais nada, por algumas frases famo-
sas. Algumas delas, como aquela que fala do poder de Estado, são muito verda-
deiras; outras, como a que considera os trabalhadores como "sem-pátria" não
são literalmente verdadeiras e se legitimariam antes no interior de um projeto
político; outras ainda, como aquela com que se abre o texto, são "problemáticas".
A história não é - apenas - a história da luta de luta de classes, pelo menos
por três razoes. Uma, indicada por Engels na edição inglesa de 1888, é que
parece haver existido sociedades sem antagonismos pelo menos comparáveis
com os antagonismos modernos; outra é a de que as oposições existentes na
maioria das sociedades anteriores ao modo de produção capitalista não foram a
rigor oposições de "classes" (o conceito de classe, como já diz um texto da Ideo-
logia Alemã, só se aplica rigorosamente ao modo de produção capitalista); o
terceiro é o de que, como Marx e principalmente O Capital ensinam abundan-
temente, a história não é só luta, ela é também inércia. A história até hoje é
também história das "estruturas", em relação às quais os indivíduos não são
"agentes-sujeitos" mas suportes. (A tensão entre "sujeitos" e suportes, dupla
função das individualidades, é um dos achados dialéticos de Marx, infelizmente
reduzido ao imperialismo das práticas ou ao imperialismo das estruturas, am-
bos no registro do entendimento.) O próprio Manifesto, que por mais de uma
razão (por ser um manifesto, e por pertencer a um período determinado do
pensamento de Marx, do qual falarei mais adiante) privilegia as práticas, refere-
se de qualquer forma à função de suportes: "O progresso da industria, cujo
suporte (Träger) sem vontade (willenlos) e sem resistência (widerstandlos) é a
burguesia (...)" (W. 4: 474; M: 77-78). Há problemas assim relativamente às
lutas, às classes e às lutas de classes, mas a frase com que se abre o Manifesto não
é propriamente falsa: o marxismo não é uma teoria geral da história, é uma
crítica ao capitalismo que pressupõe apenas (em sentido dialético: o pressupos-
to é ao mesmo tempo posto e não posto) um esquema geral da história. As
dificuldades, veremos, são outras.
O Manifesto pode ser apreciado de um ponto de vista estritamente teóri-
co ou de uma perspectiva política (claro que há teoria política, mas aqui tomo
"política" num sentido mais estreito). Num outro plano, ele pode ser lido ou
como momento da história das lutas socialistas, ou como momento da história
do pensamento e da prática do seu autor principal (ou de seus autores).
Enquanto momento da história do pensamento de Marx, o Manifesto,
independentemente do gênero a que pertence, corresponde bem nitidamente a
um período de transição de que faz parte igualmente, entre outros textos, a
Ideologia Alemã. As obras desse período caracterizam-se por certos traços pecu-
liares que as distinguem, por um lado, do momento dos Manuscritos de 1844 s,
por outro, das obras de maturidade, sobretudo O Capital e os Grundisse. No
momento dos Manuscritos de 44, Marx escreve como filósofo (mesmo se filóso-
fo não-filósofo à maneira de Feuerbach - o texto é feuerbachiano mas como um
componente hegeliano); na época de transição que consideramos, o discurso de
Marx se pretende, pelo contrário, claramente antifilosófíco; e na época da ma-
turidade poder-se-ia falar em "supressão" em sentido hegeliano, supressão-con-
servação da filosofia.
Além de antifilosófico, nas suas intenções pelo menos, o discurso da tran-
sição tende a uma espécie de historicismo: a teoria e todas as formas de consci-
ência aparecem mais ou menos no nível da história (enquanto em 44 elas se
elevam como uma espécie de transcendental; na maturidade, tem-se uma posi-
ção intermediária).
Finalmente, o pensamento da transição tende a evitar todo tipo de
totalização. Em particular, faz-se um imenso esforço para apresentar a revolu-
ção como uma revolução do mesmo tipo genérico das outras, e que, se encerra a
história da exploração, é apenas porque o modo de produção burguês é o últi-
mo. (Nos Manuscritos de 44, a revolução é pensada como visando antes o con-
junto da "pré-história"; enquanto n' O Capitais nos Grundisse, o alvo é, sem
duvida, o capitalismo, mas pensado como universal concreto, que contém em si
mesmo, de certo modo, o conjunto do desenvolvimento anterior. No período
de transição, em vez da universalidade, tem-se antes a generalidade): "O que
caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abo-
lição da propriedade burguesa./ Mas a moderna propriedade burguesa é a últi-
ma e a mais perfeita expressão da fabricação e apropriação de produtos, que se
baseia em oposições de classes, na exploração de uns pelos outros [da maioria
pela minoria: Engels, 1888]./ Nesse sentido, os comunistas podem resumir sua
teoria nessa única expressão: supressão (Aufhebung) da propriedade privada"
(W. 4: 474; M: 80, grifado por RF) (2).

Como momento da história da crítica socialista, o Manifesto — como em


maior ou menor medida Marx em geral — traz a novidade de fazer da autodeter-
minação do proletariado o motor da transformação revolucionária, e fazer da
revolução um processo cujo sujeito é a maioria: "Todos os movimentos prece-
dentes foram movimentos de minorias ou no interesse de minorias. O movi-
mento proletário é o movimento autônomo (selbständige) da imensa maioria no
interesse da imensa maioria" (W. 4: 473; M: 77, grifado por RF). Do mesmo
modo, lê-se mais adiante, a propósito dos socialistas utópicos: "Eles não vêm
nenhuma auto-atividade (Selbsttätigkeit) histórica da parte do proletariado,
nenhum movimento político que lhe seja próprio"(W. 4: 490; M: 96, grifado
por RF). Essa perspectiva rompe com as formas tradicionais de pensar o proces-
so de ruptura da velha sociedade. Nessas formas tem-se ou a figura do educador,
ou a figura do ditador (3), de qualquer forma, um socialismo "de cima", que
como diz a terceira tese sobre Feuerbach, tende a separar a sociedade em duas
partes. A referência clássica do socialismo pré-marxista era freqüentemente o
Discurso sobre a origem da desigualdade de Rousseau, sem que se supusesse a
possibilidade do contrato (é duvidoso que o próprio Rousseau o supusesse) no
interior de uma sociedade corrompida. O recurso à figura do legislador
rousseauista é insuficiente. Necessita-se de um "mestre", ditador ou educador.
Mas quem educará o educador? A novidade de Marx é a de ter encontrado um
elemento inerente à sociedade corrompida, capaz de auto-educação, o qual se
auto-educando poderia reconstruir toda a ordem social.

O Manifesto foi escrito em nome da Liga dos Comunistas, organização de


artesãos alemães que sucede à Liga dos Justos cuja direção se trasladara de Paris
a Londres. Publicado em Londres, em alemão, algumas semanas antes da eclosão
da Revolução de 48 na França, ele pretende exprimir as posições "dos comunis-
tas".

Em termos organizatórios, se o Manifesto afirma que "os comunistas não


constituem (sind) nenhum partido particular diante dos outros partidos operá-
rios (Arbeiterparteien)" (W. 4: 474; M: 79, grifado por RF) ele diz ao mesmo
tempo que "os comunistas se distinguem dos outros partidos proletários por
(...)".(ib., grifado por RF) e que "o objetivo imediato dos comunistas é o mesmo
que o de todos os demais partidos proletários" (W. 4: 474; M: 80, grifado por
RF). Na realidade Marx parece propor a estratégia do partido dentro de um
partido, de que seriam exemplos a atividade da seção londrina da Liga no inte-
rior do carlismo, mediante uma outra organização intermediária, e a da Social
Reform Association dos comunistas alemães de New York no interior Adi National
Reform Association (a qual é caracterizada pelo Manifesto, junto com o cartismo,
como um partido operário ou dos trabalhadores (Arbeiterpartei) (ver W. 4: 492;
M: 98) (4).

Do ponto de vista tático, o Manifesto tem a particularidade de propor


para a Alemanha uma luta "junto com a burguesia" - ainda que com a ressalva:
"sempre que ela se conduzir como revolucionária" — luta cujos adversários são "a
monarquia absoluta, a propriedade fundiária feudal e a pequena burguesia" (W.
4: 492; M: 99, grifado por RF). Como assinala Hal Draper (5), essa posição é
diferente da que exprimira Engels pouco antes, e da que adotariam Marx e
Engels imediatamente depois. O Manifesto afirma "que o primeiro passo da
revolução operária é (...) a conquista da democracia (die Erkampfung der
Demokratie)" (W. 4:481; M: 86). Mas "a democracia" representava, para Engels,
a aliança "do proletariado, do pequeno campesinato e da pequena burguesia"
(Engels, "Os Comunistas e Karl Heinzen", W 4:312, grifado por RF, citado por
Hal Draper, op. cit., II: 186, cf. id.: 190). E, segundo Draper, já num panfleto
escrito pelos dois autores um mês depois da publicação do Manifesto, eles se
manifestam favoravelmente ao bloco das três classes "democráticas", tal como o
definira Engels (6).

Quanto à aliança com a burguesia ela vai igualmente desaparecendo como


proposta. Na célebre Mensagem da direção central [da Liga dos Comunistas] à
Liga, de março de 1850, o aliado eventual, de resto duramente criticado, é a
pequena-burguesia, não a burguesia. A perspectiva do Manifesto é assim, talvez,
excepcionalmente "progressista", no mau sentido do termo (a experiência de 48
teria tido o papel de reforçar a crítica), mas essa perspectiva estratégica tem
alguma ambigüidade (cito agora o texto completo): "Já vimos acima que o pri-
meiro passo na revolução operária ou dos trabalhadores (Arbeiterrevolution) é a
elevação do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia" (p.
481-486). É possível que o texto pense em três momentos: vitória da burguesia
com o apoio do proletariado, vitória da "democracia" (mas excluída a pequena
burguesia, o proletariado talvez só organizasse forças políticas e não propria-
mente sociais na "democracia"), dominação progressiva do proletariado. De qual-
quer maneira, como nos textos anteriores e posteriores, o processo é de "revolu-
ção permanente" (expressão com que Marx encerra a Mensagem de março de
1850). Para o caso do Manifesto, ela toma a seguinte forma: é preciso não deixar
de desenvolver em nenhum instante nos operários "uma consciência a mais
clara possível da oposição hostil entre burguesia e proletariado", para que utili-
zando as condições criadas pela dominação da burguesia "imediatamente após a
derrubada das classes reacionárias na Alemanha, comece imediatamente a luta
contra a burguesia" (W. 4: 493; M: 99).

Voltando aos problemas teóricos. Se o texto do Manifesto pertence a uma


fase que tem alguma coisa de "historicista" (7), a dialética não está inteiramente
ausente dele. Um exemplo é o emprego da noção de classe. Em vários momen-
tos (8) fala-se em "organização do proletariado em classe" (zur Klasse), o que
levou os críticos do entendimento a quebrarem a cabeça. O proletariado não-
organizado já não é uma classe? O resultado foi que, de parte de certos
althusserianos, denunciou-se a falta de rigor do Manifesto. Na realidade, a ex-
pressão implica que antes de ser organizada a classe é e não classe. O estatuto da
classe é nesse "momento", que pode ser recorrente, contraditório. A classe só é
classe quando posta como classe. O que, em termos filosóficos, significa um
escândalo para entendimento: contra o que afirma Kant, na crítica do argumen-
to ontológico, a posição não se acrescenta à determinação, ela lhe é constitutiva.
(Com algum pedantismo, mas também com alguma verdade, dir-se-ia que para
entender bem a lógica do Manifesto é preciso ter lido Santo Anselmo e a sua
formulação clássica do argumento ontológico...) De qualquer forma é verdade
que mesmo nesse texto "prático" (ou talvez por ser ele um texto prático, as duas
coisas às vezes convergem), há um investimento considerável — embora limitado
com relação a outros textos - das "maquinas de guerra" do idealismo alemão).

Quanto à frase "mas toda luta de classes é uma luta política" (W. 4: 471;
M: 75), frase que representou para o entendimento o escândalo máximo, ela
provavelmente deve ser entendida como se o "é" não exprimisse a predicação
usual, mas sim o que chamei de juízo de reflexão: "toda luta de classes é ... uma
luta política", ou seja, toda luta de classes se reflete em, ou se torna, luta política.

Outro momento dialético é o movimento barbárie/civilização. Limito-


me aqui ao mais belo texto. A crise, que nas obras posteriores é pensada como
irrupção da memória posta do sistema, é vista aqui no contexto da idéia de uma
civilização afetada de barbárie: "Nas crises irrompe uma epidemia social, que
em todas as épocas precedentes teria parecido um absurdo (Widersinn) — a epi-
demia da superprodução. A sociedade vê-se repentinamente reconduzida a um
estado de barbárie momentânea: é como se uma [situação de] miséria (Hungernot)
ou uma guerra geral de extermínio houvesse suprimido todos os meios de sub-
sistência; a indústria, o comércio, parecem aniquilados, e por quê? Porque a
sociedade possuiu demasiada civilização (zuvielZivilisation), demasiados meios
de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio" (W. 4: 468; M: 72,
grifado por RF).
Fazendo um balanço, se posso dizer assim, quais são os acertos e os desa-
certos do Manifesto? O problema é complicado porque implica, de uma forma
ou de outra, uma avaliação global do marxismo.
Já falei da grande densidade teórica do texto. A novidade de Marx é ter
investido em ciência, e aqui em política, a herança lógica muito rica e complexa
do idealismo alemão. Apesar de os limites assinalados, não conheço manifesto
político algum que incorpore desse modo um legado lógico-filosófico daquele
porte.
É costume criticar o Manifesto porque ele supõe uma simplificação das
oposições de classe (ver W. 4: 463; M: 67) que não teria ocorrido. A observação
me parece válida, mesmo se há uma discussão a respeito do alcance da temática
da decadência das classes médias (ver W. 4: 460-461; M: 73) (9). Mas as observa-
ções críticas que farei mais adiante não enveredarão por aí.
A análise da história do capitalismo é sólida, e está bem mais próxima d' O
Capital que a da Ideologia Alemã (10). Nela se reconhecem a história material e
a história formal do modo de produção capitalista, e o capital já é tratado como
potência (Macht) social (ver W. 4: 476; M: 81). O modo de produção capitalista
(a noção de "modo de produção" encontra-se, por exemplo, em W. 4: 466; M:
70) (11) e aparece numa passagem clássica efetuando uma espécie de desencan-
tamento do mundo. Mas o paralelo com Weber é em parte enganoso. O univer-
so do capitalismo é para Marx um universo encantado; só que o seu encanto é o
das abstrações desencadeadas. É como se houvesse um desencantamento "se-
mântico" do mundo, mas não um desencantamento "sintático" (o que Weber
parece ter perdido de vista) (12). Cito o texto, muito conhecido embora: "Onde
quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais,
patriarcais, idílicas. Dilacerou impiedosamente os laços feudais multicores que
ligavam o ser humano aos seus superiores naturais, e não deixou subsistir entre
homem e homem outro vínculo que não o interesse nu e cru (das nackte Interes-
se), o insensível "pagamento em dinheiro". Afogou nas águas gélidas do cálculo
egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco,
do sentimentalismo pequeno-burguês (spiessbürgerlich)" (W. 4: 464; M: 68).
O fato de o texto ter assinalado a tendência cosmopolita e globalizante do
sistema (ver W. 4: 466; M: 69-70), inclusive no plano da "produção espiritual",
assim como a tendência a universalizar a relação salarial (ver W. 4: 465; M: 69),
são pontos fortes e atuais. Já falei das crises. Politicamente, a ênfase no
automovimento do proletariado, e na revolução das maiorias, apesar das opiniões
correntes, fazem do Manifesto um texto que, em primeira instância, é dificil-
mente compatível com a leitura da política marxista que farão alguns no século
XX: Creio que a política do Manifesto — que não fala em "ditadura do proletaria-
do", só em "dominação" (Herrschaft) do proletariado, mas não é isso o essencial
- é em primeira instância incompatível com o vanguardismo bolchevique. Do
Manifesto é difícil tirar a idéia de partido único. Entretanto, como veremos a
partir de uma outra vertente, ele pode dar armas a um projeto antidemocrático
(nos limites desse texto, diria que são os direitos da "minoria" não-revolucioná-
ria — não necessariamente contra-revolucionaria — que ficam vulneráveis. Mas a
partir dessa brecha, tudo se torna possível, mesmo a autodeterminação do pro-
letariado acaba sendo ameaçada).
As dificuldades do Manifesto são em geral dificuldades do marxismo,
embora a fase particular do pensamento de Marx a que o texto pertence talvez
as tenha agravado. Retomo aqui, no contexto do Manifesto, uma linha de pen-
samento que desenvolvi no posfácio sobre a política de Marx do meu livro O
capital e a lógica de Hegel (dialética marxista, dialética hegeliana) (13).
A dificuldade do Manifesto — como a meu ver, em maior ou menor medi-
da, do marxismo em geral — está em ter pensado que deve haver uma passagem
"catastrófica" do capitalismo ao socialismo. Não me refiro especificamente ao
problema da revolução violenta em oposição à transição pacífica, embora a ques-
tão a discutir tenha efeitos sobre ele. Quero dizer que Marx não pensa que possa
haver alguma continuidade deformas na passagem do modo de produção capi-
talista ao que ele chama de comunismo. Isso significa que, no plano das formas
(políticas ou econômicas), ele não vê nenhum tipo de acumulação. O comunis-
mo deve destruir as formas capitalistas e construir novas formas (se há progres-
so político no capitalismo é essencialmente porque — ou no sentido de que — ele
permite a eclosão da revolução) (14). Essas características remetem a uma noção
muito estreita de forma. As formas aparecem fundamentalmente como expres-
sões ilusórias, sem densidade própria e, o que é importante, sem um mínimo de
verdade própria. A ideologia é vista menos como uma forma contraditória do
que como uma forma negativa em sentido corrente. Vai na mesma direção a
idéia de uma história com "terceiro excluído" (isto é, sem "terceiro"). Há, de um
lado, o modo de produção capitalista; de outro, o comunismo como movimen-
to futuro. Mesmo se o processo não é considerado como fatal (o texto diz que
ele é inevitável — ver "W. 4: 474; M: 78 — mas o problema não é bem esse), não se
pensa a possibilidade da emergência de outras formas de exploração e de domi-
nação. Ora, o século parece ter mostrado essa possibilidade. E o texto Manifes-
to, pensado uma passagem "catastrófica" (no sentido indicado) do, capitalismo
ao que chamamos de socialismo, recusando qualquer progresso político que não
seja o da criação de condições favoráveis à revolução, reduzindo as formas jurí-
dicas e ideológicas a pouco mais do que uma tênue camada ilusória, produz
uma espécie do que chamei de "ponto cego" no marxismo, que o torna suscep-
tível de uma utilização relativamente cômoda como ideologia das sociedades
burocráticas do século XX.

Vejamos alguns textos: "Os proletários nada têm de seu para salvaguar-
dar, têm de destruir toda segurança privada (Privatsicherheit) e todas as garanti-
as privadas (Privatversicherungen) existentes até aqui" (W. 4:472; M: 76, grifado
por RF). Texto extremamente perigoso, a meu ver, e que pode facilmente ser
instrumentalizado por poderes burocráticos. Abuso de leitura por parte desse
poderes? Sem dúvida, mas não inteiramente. Muito dificilmente Marx seria
favorável aos regimes burocráticos. Mas o problema é que ele não viu o risco da
emergência desses regimes (cf. sua discussão com Bakunin). Por isso também
não viu a importância das garantias jurídicas obtidas.

"As leis, a moral, a religião são para [o proletário] igualmente tantos pre-
conceitos burgueses, por trás dos quais se ocultam tantos interesses burgueses"
(W. 4: 472; M: 76). Interessam-me aqui as leis e a moral (embora evidentemente
seja defensor da liberdade religiosa). Marx e Engels não condenam estas ou
aquelas leis, nem esta ou aquela moral. O problema é discutido explicitamente
no texto, e tem a ver com a questão da generalidade tratada anteriormente (mas
mesmo com a universalidade introduzida pelas obras de maturidade, o proble-
ma subsiste). Trata-se de erradicar, a longo prazo sem dúvida, mas erradicar, de
qualquer modo, o direito e a moral. Com isso, imediatamente, direito e moral
se tornam suspeitos. São expressões da história da exploração. De novo a con-
vergência entre os interesses burocráticos e o discurso de Marx (mesmo se Marx
— e Engels — visavam de fato o capitalismo) é, a meu ver, evidente. Quem quer
que faça apelo às leis ou à ética diante desses poderes pode facilmente ser neu-
tralizado, com algum abuso é certo, mas também com uma semijustificação, a
partir desses textos.

Marx pensa numa situação final de transparência social, em que não ha-
verá mais Estado. Os textos são conhecidos: "Quando no curso do desenvolvi-
mento as diferenças de classe desaparecerem e toda a produção se concentrai
nas mãos dos indivíduos associados [observar que ele faz dos indivíduos os su-
jeitos, contra todo "holismo" (RF)], o poder público (die öffentliche Gewalt)
perderá o caráter político (politscher Charakter). O poder político em sentido
próprio é o poder organizado de uma classe para opressão de outra" (W. 4: 482:
M: 87). Muito bem, "poder público" mas não poder político, já que este é iden-
tificado com a opressão de classe... A dificuldade é que Marx e Engels supõem o
desaparecimento do direito e de todo sistema de formas. Além do caráter prova-
velmente utópico do projeto (falarei disso logo adiante), essa perspectiva lança
suspeita sobre a idéia de forma jurídica em geral. Nas condições do exercício
arbitrário do poder burocrático, essa suspeita tem conseqüências desastrosas.

"(...) no lugar das inúmeras liberdades [já] reconhecidas e duramente con-


quistadas (wohlerworbené), [a burguesia] colocou unicamente a liberdade de
comércio sem escrúpulos" (W. 4:465; M: 69, grifado por Marx). Entende-se que
objeto visa o Manifesto: o grande comércio liquida a liberdade do pequeno pro-
dutor. O problema é que a liberdade burguesa não se limita a isso. Ela tem uma
expressão em lei contendo certos "extratos" que interessa preservar. Mais adian-
te Marx e Engels dirão que acusam os comunistas de querer destruir a liberdade
e a personalidade. Mas tratar-se-ia só de eliminar a liberdade e a personalidade
burguesas. Muito bem. Só que o texto continua da seguinte maneira: "Por li-
berdade se entende, no interior das atuais relações burguesas de produção, o
livre comércio, a livre compra e venda. / Mas se o tráfico desaparece, desaparece
também o livre tráfico. A fraseologia (Redensarten) sobre o livre trafico, assim
como todas as demais bravatas sobre a liberdade, de nossa burguesia, só têm senti-
do diante do tráfico vinculado, e os oprimidos moradores dos burgos da Idade
Média; não tem [sentido] diante da supressão comunista do tráfico [da supressão],
das relações burguesas de produção e da própria burguesia. (W. 4: 476; M: 82,
grifado por RF). Vê-se que a partir do presente só há duas possibilidades: a
sociedade burguesa e o comunismo. Há ainda as formas pré-burguesas ultra-
passadas. Nesse contexto "as bravatas sobre a liberdade" só valem contra a situa-
ção passado. O que significa, que não se pode utilizar o tema da liberdade para
se defender de outras formas que não sejam as do passado: o que veio a signifi-
car, de formas de opressão pós capitalistas e anticapitalistas. De novo, Marx não
pretendeu defender essas formas, simplesmente não pensou na sua possibilida-
de. Daí um discurso verdadeiro enquanto crítica da burguesia, mas instru-
mentalizável.

E para terminar esse ponto: "Quando o mundo antigo estava declinando,


as antigas religiões foram vencidas pela religião cristã. Quando no século XVIII
as idéias cristãs cederam diante das idéias do Aufklärung, a sociedade feudal
travava a sua luta final com a burguesia então revolucionária. As idéias de liber-
dade de consciência e de liberdade religiosa só exprimiam a dominação da livre
concorrência no campo da consciência (1872 e ed. posteriores: 'no campo do
saber')" (W 4: 480; M: 88, grifado por RF). A idéia de liberdade de consciência
exprimia apenas — ainda exprime, apenas? — a livre concorrência no plano da
consciência ou do saber. Eis o tipo de frase que, hoje, um socialista não pode
pronunciar, sob pena de perverter inteiramente o seu projeto. Temos aí um
formidável instrumento nas mãos dos inimigos da "liberdade de consciência".
De novo, entende-se o que Marx queria dizer. Em 1848 a frase não tinha gran-
des inconvenientes imediatos, embora já nessa época, ou não muito mais tarde,
alguns já previssem o que iria acontecer.
Finalmente, as dificuldades do Manifesto aparecem na parte III, na qual
Marx e Engels fazem a crítica das outras formas de socialismo. Abrevio esse
ponto para não prolongar excessivamente este texto. Gostaria de dizer alguma
coisa sobre a crítica de Marx a três figuras, duas individuais e a terceira mais
propriamente coletiva. Refiro-me ás críticas que ele faz a Proudhon (incluído
no tópico "socialismo conservador ou burguês") e a Sismondi (no tópico "socia-
lismo reacionário, na subdivisão "socialismo pequeno-burguês") e a crítica à
filosofia alemã ("socialismo reacionário", subdivisão "socialismo alemão" ou
socialismo "verdadeiro").
A propósito do "socialismo conservador ou burguês", o texto começa di-
zendo que "uma parte da burguesia deseja remediar os males (Misständen) sociais
para garantir a existência da sociedade burguesa* (W. 4: 488; M: 94, grifado,
respectivamente, pelos autores e por RF). "Como exemplo podemos citar a
Philosophie de la Misère de Proudhon" (ib.). "Os burgueses socialistas querem
as condições de vida da sociedade moderna sem as lutas e os perigos que delas
necessariamente decorrem. Querem a burguesia sem o proletariado (...) Quando
[o socialismo burguês] convida o proletariado a realizar seus sistemas para en-
trar na nova Jerusalém, nada mais faz, fundamentalmente, do que dele exigir
que permaneça na sociedade atual, mas renuncie à representação odiosa que faz
dela" (W. 4: 488; M: 4: 94, grifado por RF). Todo o problema desta crítica é
saber o que se entende nesse contexto por "sociedade burguesa", "sociedade mo-
derna" ou "sociedade atual". Porque são possíveis duas interpretações. Ou "socie-
dade burguesa" é sociedade em que existe capital e, nesse caso, a crítica de Marx
teria muita força. Mas talvez se trate - e é este em geral o caso de Proudhon - de
querer conservar não uma sociedade em que subsiste o capital, mas uma socie-
dade em que subsistem mercadorias, ou certas esferas de troca. Ora, nesse caso,
é difícil condenar sem mais o seu projeto. Se ele aparece como utópico para
Marx e Engels, e porque eles só pensam na possibilidade de uma solução "catas-
trófica", no sentido indicado. Ora, se a idéia de conservar a mercadoria ou o
dinheiro sem o capital pode ser discutida, já que a realização desse projeto não
se faria sem dificuldade, o projeto de instauração de uma comunidade transpa-
rente, na qual desaparecem todas as relações mercantis e monetárias, aparece
como ainda mais discutível e problemático. No universo de Marx esta última
solução não seria utópica, porque a história traria esse resultado. Mas para além
do projeto político de Marx, a idéia da conservação de certas relações mercantis,
neutralizando o capital, parece menos utópica do que a instauração da harmo-
nia da transparência (ver a esse respeito, o posfácio do meu livro em francês, já
referido). A dificuldade vem: da suposição de Marx de que não pode haver con-
servação de formas históricas (pelo menos de formas econômicas e políticas
essenciais) na passagem do capitalismo ao socialismo; da ambigüidade do uso,
nesse contexto, da noção de "sociedade burguesa".
A propósito de Sismondi, o problema é mais ou menos o mesmo. Se
Marx e Engels consideram Proudhon um socialista burguês, eles reconhecem
em gente como Sismondi a qualidade de defensores dos trabalhadores, ainda
que Sismondi os defenda "do ponto de vista da pequena-burguesia" (W. 4: 484;
M: 90). O Manifesto reconhece de resto os méritos do "socialismo pequeno-
burguês". "Ele pôs a nu as hipócritas apologias dos economistas. Demonstrou
irrefutavelmente os efeitos destruidores da maquinaria e da divisão do trabalho
(...) [mostrou] a superprodução, as crises (...) a acintosa desproporção na distri-
buição das riquezas" etc. (W. 4: 484-485; M: 90-91). Seu erro é pretender "resta-
belecer os antigos meios de produção e de troca e com eles as antigas relações de
produção e de troca, ou então o de desejar aprisionar de novo, à força, os mo-
dernos meios de produção e de troca no quadro das antigas relações de produ-
ção, que se fizeram explodir por aqueles, e que não podiam deixar de se fazer
explodir. Em ambos os casos, tal socialismo é ao mesmo tempo reacionário e
utópico" (W. 4: 485; M: 91). O problema é parecido com o anterior. Sismondi
quer voltar ao passado? Mesmo que isto seja verdade, Marx o critica essencial-
mente por querer conservar relações mercantis, ao mesmo tempo em que com-
bate o capital. Por que essa solução seria necessariamente utópica, por que seria
"reacionária"? Marx é injusto com Sismondi (embora fale dele em outros luga-
res em termos consideravelmente elogiosos). O projeto político de Marx — por-
que é disso que se trata — não aparece hoje como menos utópico do que o de
Sismondi.
Em último lugar, a filosofia alemã, e a filosofia em geral. Já abordei a
relação de Marx com a filosofia, neste texto e em outros. Nas passagens que vou
considerar, ela reaparece na forma da crítica de uma modalidade de socialismo.
Os filósofos e semifilósofos críticos alemães importam as idéias francesas que
estão ligadas às condições francesas, sem poder importar essas condições. Na
Alemanha, a luta contra o absolutismo feudal apenas começa, e por isso "a lite-
ratura francesa perdeu todo significado prático imediato (...)" (W. 4: 485; M:
91). "Ela devia aparecer como especulação ociosa sobre a verdadeira sociedade
(na ed. de 1872: 'omite-se sobre a verdadeira sociedade'), sobre a realização da
essência humana". Segue-se uma comparação com a situação no século XVIII:
"Do mesmo modo, para os filósofos alemães do século XVIII, as reivindicações
da primeira revolução francesa não foram mais do que reivindicações da 'razão
prática' em geral, e as manifestações da vontade da burguesia revolucionária
francesa expressavam a seus olhos apenas as leis da vontade pura, da vontade
como deve ser da vontade verdadeiramente humana" (W. 4:485-486; M: 91-92).
Os literatos alemães se apropriaram "das idéias francesas a partir do seu
próprio ponto de vista filosófico" (p. 486-492). Como os monges da Idade Mé-
dia que recobriam os manuscritos clássicos com histórias de santos (...) eles escre-
viam seus absurdos (Unsinn) filosóficos por detrás do original francês. (...) Por
detrás da crítica francesa do Estado burguês escreveram "alienação da essência
humana', por detrás da crítica francesa do Estado burguês escreveram 'supres-
são do domínio do universal abstrato' e assim por diante. / Batizaram essa
interpolação da sua fraseologia filosófica (...) com o nome de 'filosofia da ação',
'verdadeiro socialismo', 'ciência alemã do socialismo', 'fundamentação filosófica
do socialismo' etc." (ib.).
Há aí dois aspectos: por um lado, Marx ataca os "semifilósofos" e "belos
espíritos" alemães, que abundavam na época. Porém, há mais do que isto: o
texto contém uma crítica geral da filosofia e uma teoria sobre o discurso filosó-
fico, que são aliás, em parte, autocríticas (cf. o Marx de 44). O discurso filosófico
aparece como simples transposição ilusória de discursos de alcance "prático". A
segunda crítica kantiana, por exemplo, aparece, na figuração clássica de simples
tradução especulativa "ociosa" do discurso francês (mais adiante, ler-se-á que
este é "castrado" pelos alemães). Ora, se é verdade que há uma correspondência
entre Kant e a realidade revolucionária francesa, esse tipo de redução resumiria
o interesse do texto de Kant a um registro puramente histórico. A correspon-
dência entre prática revolucionária francesa e ética kantiana existe, e esta última
não é o modelo absoluto de todas as éticas. Mas ela interessa, hoje, como discur-
so ético, discurso que sem dúvida tem também implicações políticas, mas impli-
cações que ultrapassam o universo de Marx e em parte se opõem à leitura que
ele fez de Kant (ver a Dialética negativa de Adorno, por exemplo).
Quanto à tentativa de ridicularizar a "fundamentação filosófica do socia-
lismo", ela poderia ser legitimada enquanto visa certos semiteóricos e ideólogos
da época. Mas o projeto de pensar filosóficamente o socialismo (talvez de
fundamentá-lo filosóficamente) não tem nada de intrinsecamente "ideológico",
após quase cem anos de violência e arbítrio em nome do socialismo. Hoje, ini-
bir esse projeto filosófico não é mais questionar tal ou qual ideólogo; é servir aos
interesses dos novos déspotas, diante dos quais a filosofia representa de novo
— quem diria? — uma atividade crítica.
O Manifesto é um grande texto, que pertence ao melhor da tradição Socia-
lista. Mas 150 anos depois, é preciso manejá-lo com cuidado. Ele pode ser ainda
um instrumento de análise e de combate. Porém, ele (ou parte dele) pode servir
também — e com certa "base" — como ideologia de novas formas de exploração
e de opressão. O pior que se poderia fazer hoje é transformá-lo naquilo que ele
nunca foi: num texto religioso. Infelizmente esta transfiguração ainda ocorre
em certos meios, com os resultados que conhecemos.

Notas

1 Marx-Engels, Werke, Berlin, Dietz Verlag, 1959, (abreviarei por W.), Band 4, respec-
tivamente, p. 462,480,464,479,493 e 482. Manifesto do Partido Comunista) orga-
nização e introdução de Marco Aurélio Nogueira, tradução de Marco Aurélio No-
gueira & Leandro Konder (abreviarei por M), Petrópolis, Vozes, 8a ed., 1998, res-
pectivamente, p. 66, 85,68, 84, 99 e 87. Não retomei literalmente a boa tradução de
Nogueira & Konder, mas a consultei ao longo de todo o texto.

2 Há um texto que exemplifica bem a perspectiva quase-historicista da transição; é


uma passagem bem conhecida da Ideologia Alemã: "O comunismo não é para nós
um estado (Zustand) que deva ser criado, nem um ideal pelo qual a realidade se deve
reger. Chamamos de comunismo o movimento efetivo (wirklich) que abole o estado
atual. As condições desse movimento resultam das pressuposições atualmente exis-
tentes" (W. 3; trad, francesa dirigida por G. Badia, Paris, Ed. Sociales, 1968, p. 64).
Na realidade, se o comunismo não é um ideal, ele também não é, na perspectiva de
Marx, o simples movimento real que abole o modo de produção capitalista. O ver-
dadeiro estatuto do "comunismo" tal como o darão as obras de maturidade fica
entre uma coisa e outra.

3 Essa passagem deve alguma coisa a uma discussão com Pablo Ortelado, graduando
em filosofia. Não posso assinalar a cada passo o que devo às discussões com os
alunos. Mas agradeço por tudo.

4 Esta é a solução proposta para a leitura do texto por Michael Lowy, em A teoria da
revolução no jovem Marx (ainda inédito em português). Ver a edição em espanhol,
Buenos Aires, Siglo Vientiuno, 2a ed., 1972, p. 220 e ss.

5 Ver Hal Draper, Karl Marx's theory of revolution, v. 11, The politics of social classes.
New York e Londres, Monthly Review Press, p. 196-200.

6 Ver H. Draper, op. cit., p. 198-200. O panfleto chama-se "Exigências do partido


comunista na Alemanha". Salvo engano, ele não se encontra nas Werke. Draper o
cita a partir de Dirk J. Struik, Birth of the Communist Manifest (...), New York,
International Pub., 1971.

7 Bern entendido, não vai aí da minha parte nenhum elogio ao "anti-historicismo". O


marxismo clássico, que de resto não deixarei de criticar, não é nem historicista nem
anti-historicista. Ver a esse respeito, o meu texto "Dialética marxista, historicismo,
anti-historicismo". In: Marx. Lógica, História, tese de livre-docência, USP, 1989,
publicado parcialmente em Marcelo Dascal (org.), Conhecimento, Linguagem, Ideo-
logia, São Paulo, Perspectiva, 1989.

8 Ver, por exemplo, W. 4: 471; M: 75. W. 4: 490; M: 96. W. 4: 474; M: 80.

9 Hal Draper, op. cit., p. 615 e ss., insiste sobre o fato de que Marx se refere às velhas
classes medias, às classes médias que existiram até aqui (bisherige) e que em outro
texto (W. 4: 484; M: 90) ele se refere: a uma nova classe média cujo destino é um
pouso mais complicado.

10 Observemos também que a análise da decadência das formas históricas é diversificada:


as formas sociais terminam "ou com uma transformação (Umgestaltung) de toda a
sociedade, ou com derrocada (Untergang) comum das classes em luta" (W. 4: 462;
M: 66).

11 Também em W. 4: 477; M: 82; e em W. 4:464; M: 68 (mas aqui em sentido material).

12 Ver a esse respeito meu livro Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção
capitalista como circulação simples. São Paulo, Paz e Terra/Brasiliense, 1997, apên-
dice, p. 150-153.

13 O texto só está publicado em francês: Le Capital et la Logique de Hegel (dialectique


marxienne, dialectique hégélienne). Paris, PHarmattan, 1997.

14 Há um texto, modificado por Engels, de onde se poderia tirar idéia de um progresso


acumulativo de formas: "Cada um desses graus de desenvolvimento da burguesia foi
acompanhado por um progresso político correspondente (W. 4: 464; M: 68). Engels
neutraliza essa possibilidade, acrescentando a "progresso político" as palavras "dessa
classe". Na parte final do Manifesto, as condições políticas que a burguesia deve
criar, uma vez obtido o poder, são consideradas como um progresso, mas enquanto
elas representarão armas nas mãos da revolução.

Ruy Fausto é professor-emérito da FFLCH-USP e ensina na Universidade de Paris 8.

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