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Francisco Jose Candido dos Reis2, Cacilda da Silva Souza1, Valdes Roberto Bollela1
RESUMO
Nesta revisão são discutidos os aspectos conceituais e princípios básicos para a construção de currícu-
los para os cursos de gradaução das profissões da saúde. Serão abordados alguns modelos, fundamen-
tos e passos essenciais para a construção de currículos, em paralelo ao contexto das Diretrizes Curricu-
lares Nacionais. No planejamento e na organização dos currículos, é destacada a relevância do
comprometimento do professor, aluno e equipe; do emprego de estratégias apropriadas no processo de
ensino-aprendizagem e dos instrumentos de avaliação que possam contribuir para a revisão e melhorias
do currículo proposto.
capacitação profissional são consideradas compo- dades e desigualdades do país. A formação exclusiva
nentes do currículo. ou preponderante nos hospitais de alta complexidade
5. A sustentabilidade do currículo depende de um pro- e a carência de profissionais com formação baseada
cesso regular de avaliação do próprio programa e em competências resultam em discrepâncias entre o
da adequação do egresso às necessidades da socie- perfil do profissional que a sociedade deseja e o egres-
dade. so dos aparelhos formadores da área da saúde. Diante
desta questão, na virada do século XXI, os cursos de
1. Intr oducão
Introducão graduação da área da saúde no Brasil buscaram revi-
sar as suas diretrizes curriculares.
Esta revisão tem como objetivo apresentar os São crescentes as expectativas de mudança do
princípios básicos para o desenho de currículos e as modelo de currículos nos cursos de graduação, que
bases para o desenvolvimento de um currículo na área formatados em “grades” conferem excessiva rigidez
da saúde. Existem vários fatores que devem ser con- advindas, em grande parte, de fixação detalhada nos
siderados para o desenho e implementação de um conteúdos das disciplinas3. Em boa medida, as reco-
currículo, a saber: mendações explícitas nas Diretrizes Curriculares Na-
• Teorias de aprendizagem cionais (DCN) de 2001 têm sido uma excelente
• Teorias de prática profissional referencia para desenho e revisão dos currículos no
• Valores sociais Brasil.
• Expansão constante da base de conhecimento O planejamento e o desenvolvimento de currí-
• Profissionalismo culos são matérias prioritárias na agenda dos cursos
• Desenvolvimento dos serviços e do sistema de de graduação, pós-graduação e de educação médica
saúde continuada. O modelo de educação em que o profes-
• Aspectos políticos sor restringe seus ensinamentos apenas aos temas do
• Transparência e responsabilidade. seu próprio interesse, ou o treinamento prático, aos
pacientes internados em hospitais terciários, tem sido
A escolha do “desenho ou modelo do currícu- questionado. Outra situação que tem se tornado cada
lo” não é uma entidade objetiva e exclusivamente ra- vez menos frequente é a do professor que desenha/
cional, mas sim uma construção social, política, aca- revê o currículo de seu curso/disciplina baseado ape-
dêmica e profissional1. O paradigma da integralidade nas na sua própria e prévia experiência de aprendiza-
propõe um equilíbrio entre a excelência técnica e a do acadêmico, ou seja, a reprodução de práticas de
relevância social, e busca valorizar as metodologias ensino, sem a reflexão sobre as mudanças na sua área
pedagógicas desenvolvidas na área da educação para de atuação, no perfil dos estudantes e na prática pro-
aperfeiçoar o processo ensino-aprendizagem. A for- fissional. Assim, não existe dúvida sobre o papel cru-
mação profissional, a produção de conhecimento e a cial do planejamento cuidadoso do currículo para que
prestação de serviços pelas instituições formadoras o processo de ensino/aprendizagem tenha sucesso.
são então inseridas em contexto de relevância social,
ou seja, a responsabilidade do ensino perante a so- 2. Conceito de cur rículo
currículo
ciedade.
A aprovação em 2001 das Diretrizes Curricu- Currículo é mais que uma lista de atividades
lares Nacionais (DCN) dos cursos de graduação em ou um conjunto de conteúdos. O currículo deve cui-
medicina, pode ser considerada consequência de uma dar de todos os aspectos relevantes para um progra-
mobilização transformadora dos educadores da área ma de ensino. Ele deve informar claramente quais são
da saúde no país e reflexo das tendências internacio- os resultados esperados com a proposta educacional,
nais que propõem inovações na formação dos profis- bem como sobre a intenção dos professores e quais
sionais de saúde2. Nesta conjuntura, a maioria dos as escolhas e os caminhos a serem tomados para se
cursos de graduação da área da saúde no Brasil pas- alcançar estes resultados esperados (Figura 1). Vale
sou a enfrentar seus dilemas, entre os quais o de con- ressaltar alguns conceitos agregados ao currículo, e
ciliar a necessidade de incorporação de um volume que geralmente são debatidos. O currículo “declara-
crescente de novos conhecimentos e tecnologias e do”, é o currículo formal e que está impresso nos do-
atender às demandas sociais geradas pelas peculiari- cumentos da instituição. O currículo “ensinado” é o
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resultado da “leitura” que os professores fazem e aqui- pas” para o desenho de currículos efetivos no cum-
lo que executam, a partir do que está determinado no primento das suas finalidades. Discutimos a seguir
currículo declarado, ou seja, é aquilo que é executa- dois modelos de construção curricular. O modelo pro-
do pelos professores, o que acontece efetivamente na posto por Harden (1986) e outro modelo baseado em
prática. O currículo “oculto” é definido como tudo competências, que foi proposto pelo Accreditation
aquilo que os estudantes aprendem, mas que não faz Council for Graduate Medical Education-ACGME
parte das atividades previstas no currículo declarado, (2000)4,5.
e apesar de não ser formalmente ensinado pelos pro- Na Tabela 1 são apresentados os 10 passos na
fessores do curso e/ou não estarem previstos na carga estruturação do currículo segundo Harden, e em se-
horária do curso, resulta em aprendizado para os es- guida são comentados, de forma resumida, os princi-
tudantes. Finalmente, existe o conceito de currículo pais pontos da proposta do ACGME e sua relação com
“aprendido”, que estaria relacionado a tudo aquilo que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Área da
foi possível aos estudantes aprenderem, independen- Saúde, de 2001.
temente se nas atividades formais ou informais de Idealmente, deve-se estabelecer a priori os re-
aprendizado. sultados de aprendizagem (learning outcomes) de uma
experiência educacional, o que será a base norteadora
3. Construção do currículo do currículo. Neste modelo, os resultados de aprendi-
zagem esperados devem ser previamente definidos e
Com intuito de facilitar a compreensão das ba- informados, e determinam a tomada de decisões so-
ses da estruturação e da implementação curricular, bre o currículo. Esta visão contrasta com modelos
foram propostos vários modelos que estabelecem “eta- anteriores de desenho de currículos, centrados na ex-
Figura 1: Componentes de um currículo, a começar pelos resultados esperados (estrela) e todos os recursos mobilizados e envolvidos
para que sejam alcançados.
* Outcomes ou resultados esperados são as competências e capacidades esperados do aprendiz, ao final da experiência educacional.
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Tabela 1. Dez passos para a estruturação do currí- prática profissionalizante. A crítica comum a essa
culo abordagem é que os estudantes podem não perceber
1. Identificar as necessidades do aprendiz o que é relevante para a sua prática profissional futu-
ra, e a aquisição dos conhecimentos estaria dissociada
2. Estabelecer os resultados da aprendizagem da compreensão de como e onde seriam úteis na solu-
3. Concordar com o conteúdo ção de problemas reais. A desconexão temporal e a
4. Organizar o conteúdo
falta da contextualização propiciariam um aprendi-
zado pouco efetivo. Nas propostas atuais, o conteúdo
5. Decidir a estratégia educacional curricular deve estar integrado e permanentemente
6. Decidir e ensinar métodos presente na cabeça do estudante, o que permitiria ao
7. Preparação da avaliação
estudante vivenciar a prática profissional desde o ini-
cio de sua formação.
8. Comunicação sobre o currículo Existem propostas de integração curricular, do
9. Promoção de ambientes educacionais adequados tipo do currículo integrado vertical, em que os estu-
10. Gestão do currículo
dantes são introduzidos à prática junto com as ciênci-
as básicas numa fase precoce do programa. Os estu-
dantes continuam a ver as ciências básicas aplicadas
periência de ensinar e nos métodos de ensino. Nesta à prática nos anos subsequentes.
nova proposta, o foco principal deve ser direcionado Todas as estratégias educacionais devem ser
para os resultados da aprendizagem. explicitadas no currículo, e para defini-las os profes-
Na área da saúde é fundamental buscar o de- sores deverão considerar alguns princípios
senvolvimento de habilidades e atitudes entre os es- norteadores de práticas educacionais mais modernas,
tudantes, no mesmo grau de importância que o da bem definidas nas DCNs e que na literatura são refe-
aquisição de conhecimento teórico. Neste sentido, o ridas por meio do acrônimo SPICES, apresentado na
conteúdo do currículo deve necessariamente concor- Tabela 2. Tais aspectos devem ser sempre pondera-
dar com a prática profissional e ser pautado pelas dos por quem elabora o currículo de qualquer experi-
necessidades da sociedade para a qual o futuro pro- ência educacional, seja uma simples aula, uma disci-
fissional se destina. A organização do conteúdo de- plina, um estágio ou um curso inteiro.
pende do modelo de currículo adotado pelo curso. Um O modelo SPICES sugere uma continuidade
currículo mais tradicional determina a sequencia de entre os dois polos na organização das atividades cur-
aprendizado que se inicia pelas ciências básicas, in- riculares, e que cada gestor do currículo deva traba-
cluindo anatomia, fisiologia e bioquímica, seguindo lhar com as possibilidades de transitar entre cada um
para as ciências aplicadas, como patologia, microbio- dos polos. Uma breve descrição das seis dimensões
logia e epidemiologia (ciclo básico). Somente após propostas no modelo SPICES pode ser vista na
essa fase, e que se dá o aprendizado relacionado à Tabela 3.
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P Baseado em problemas Tem sido uma abordagem sedutora na educação médica, pois oferece uma atra-
tiva combinação de pragmatismo e idealismo. Pragmatismo no sentido de que
a aprendizagem é vista como uma importante fonte de motivação e satisfação:
o idealismo que está em consonância com as teorias atuais da educação.
E Conduzido eletivamente Os programas eletivos estão bem estabelecidos nas escolas a sua importância
tem aumentado na atividade educacional. Pode ser visto como um componente
selecionado pelo estudante no currículo. Promove oportunidades para que o
estudante escolha áreas de seu interesse e desenvolva habilidades em auto ava-
liação, avaliação crítica e manejo do tempo.
* S: student centered; P: problem based; I: integrated; C: community-based education; E: electives; S: systematic approach of learning.
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Tabela 4: Passo a passo do desenho curricular se- zagem da disciplina de GO, que o estudante deverá
gundo modelo do ACGME, 2006 ser capaz de realizar a anamnese, exame físico da
Passo a Passo do Desenho Curricular - ACGME gestante, anotar os achados no cartão de pré-natal e
prover as orientações necessárias para uma gestante
Passo 1. Necessidades: Avaliação do que será necessário
em consulta de pré-natal normal. A partir deste pon-
aprender nesta experiência educacional e que são
to, estamos obrigados, enquanto responsáveis pela
relevantes para a prática profissional.
experiência educacional, a criar oportunidades em
Passo 2. Identificar as competências que podem ser desen- número suficiente para todos os estudantes alcança-
volvidas e/ou adquiridas na experiência educaci- rem esses objetivos e, ao final, sejam capazes de con-
onal.
duzir de forma adequada uma consulta de pré-natal
Passo 3. Descrever na essência o que significa ser compe- em paciente com gestação normal. Se esse exemplo
tente ou ter alcançado os resultados esperados parece óbvio, um programa de disciplina que inclua
(outcomes) ao final da experiência educacional entre seus objetivos, por exemplo, que o estudante
através de objetivos educacionais. seja capaz de proceder com proficiência uma punção
Passo 4. Garantir oportunidades de aprendizagem. venosa central ao final do estágio de urgência e emer-
Passo 5. Determinar os métodos de avaliação do estu- gência, na sua organização deve estar garantida a opor-
dante. tunidade a todos os estudantes de realizarem tal pro-
cedimento. Se esta condição não for atendida, a ex-
Passo 6. Determinar como a experiência educacional será
clusão deste objetivo do programa do estágio deve
avaliada e melhorada.
ser considerada.
Determinar os métodos de avaliação do estu-
dante que serão empregados para conferir o desen-
Por exemplo, quais das competências gerais das volvimento da competência ou a capacidade para de-
DCN poderiam ser desenvolvidas por estudantes que sempenhar uma atividade esperada. Informar ao es-
concluírem a disciplina de Ginecologia e Obstetrícia tudante como ele/ela será avaliado.
(GO) do quarto ano, onde estão previstas atividades Informar aos professores e estudantes como
teóricas e práticas na unidade básica de saúde e na será feito o acompanhamento e avaliação do estágio/
maternidade do município. É fundamental que os ob- disciplina e como o feedback dos envolvidos poderá
jetivos específicos e as competências reflitam traje- contribuir para a revisão e melhoria daquela experi-
tórias que levem na direção dos resultados esperados ência educacional no futuro.
para aquela atividade proposta. Seguramente, a partir de um plano preliminar
É absolutamente necessário que exista um ali- serão necessários vários movimentos, revisões e ade-
nhamento entre os objetivos de aprendizagem espe- quações para a construção de um currículo contem-
rados e as oportunidades de aprendizagem que a ex- plando as propostas pretendidas. Ressalta-se, que na
periência educacional lhes proporcionará, além de sua construção e execução, o currículo deva continu-
estabelecer as metodologias de ensino que serão uti- ar envolvendo toda a equipe e dinamicamente passa-
lizadas (aulas teóricas, seminários, clube de revista, rá por transformações em resposta às mudanças da
práticas de laboratórios, simulações, prática clínica, sociedade, do conhecimento e das tecnologias, que
estudo individual, etc..). Suponha que no exemplo possivelmente refletirão na formação dos profissio-
anterior, foi estabelecido, como objetivos de aprendi- nais das áreas da saúde.
ABSTRACT:
In this review we present the concepts and the basic principles for curriculum design in health professions
education (HPE), and present some curriculum design models as well as the essential steps for those
who are facing this challenge. All the discussion brings the perspective of National Curriculum Guidelines
for HPE in Brazil. It is highlighted the importance of the stakeholders’ engagement in this process and the
correct use of appropriate strategies of teaching-learning, students’ assessment tools that can contribute
to the implementation/review and improvement of curriculum in HPE courses.
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http://revista.fmrp.usp.br/ Curricular para Cursos das Profissões da Saúde.
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