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RaúlAntelo

Potências da imagem
SBD-FFLCH-USP

II~IW~I~

editora universitária

Chapecó, 2004
r-h Av. Senador Attílio Fontana, 591-E
Fone/Fax (49) 321-8000
UNOCHP,PECÓ Cx. Postal 747 CEP 89809-000-
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VICE-REITOR DE ENSINO: Odilon Luiz Poli

DEDALUS - Acervo - FFLCH

IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII~ IIIIIIII~ IIII/Ir/I/I"II/'III 1111


1111

20900000795

302.222 Antelo, Raúl


A635p Potências da imagem / Raúl Antelo. - -
Chapecó : Argos, 2004.
149 p.

I. Comunicação visual. 2. Imagem.


I. Título.

CDD 302.222
ISBN: 85-7535-058-7 Catalogação: YaraMenegatti - CRB 14/488

Conselho Editorial Coordenadora


Josiane Roza de Oliveira (Presidente) Monica Hass
Ricardo Rezer; Alexandre Maurício Matiello Assistente Editorial
Arlene Renk; Eliane Marta Fistarol Hilario Junior dos Santos
Flávio Roberto Mello Garcia; Assistente Administrativo
Hermógenes Saviani Filho Neli F~rrari
editora universitária
JoséLuizZambiasi; juçara NairWollf Projeto gráfico e capa
Leonardo Secchi; Hilario Junior dos Santos
Maria dos Anjos Lopes Viella Revisão
Maria Luiza de Souza Lajus Fabiana Cardoso Fidelis e
Jakeline Mendes

,
Impresso no Brasil, 2004
Tiragem: 1000
Sumário

PrelaclO
.c" . " .
- cntIca .
e Imagem . 7

o inconsciente ótico do modernismo 13


A imagem fotográfica......................................................................... 17
Fascismo e imagem 23

Políticas da amizade e anamorfose do moderno 29


Pettoruti: nova forma e não-verdade 31
Rebelo................................................................................................. 37
A mensagem espiritual ou as verdades do simulacro , 43
Montevidéu........................................................................................ 48
Leituras............................................................................................... 65
Dobras e redobres............................................................................... 71

Suplemento de imagens: de Whitman a Jorge Amado,


passan do por "MacunaIma,
,," e ate" mesmo
García Márquez : 75
Amado: tradição e extradição 87

Deleitação morosa: imagem, identidade e testemunho 125


Arte e vida 126
Identidade e memória 136
Paradoxos do testemunho 138

Referências 143
Prefácio
crítica e imagem

Em "Inquisições" (1925), seu primeiro livro de ensaios, Jorge


Luis Borges assinalava que as imagens são uma fantasmagoria -Ia
imagen es hechicería - e admitia não ser suficiente afirmar que los
espejos se asemejan a un agua, como cualquier Huidobro diria. Borges
entendia não só possível, mas mesmo necessário, ir além desses jogos
meramente verbais, porque

Hay que manifestar ese anteojo hecllO forzosa realidad de una mente:
hay que mostrar un individuo que se introduce en el cristal y que persiste
en su ilusorio país (donde hay figuraciones y colores, pero regidos de
inmovible silencio) y que siente el bochorno de no ser más que un
simulacro que obliteran Ias noches y que Ias vislumbres permiten
(BORGES, 1925).
Potências da imagem

Um indivíduo se introduziu num cristal, tornou-se máquina,


exigindo que Ias consteIaciones desbarataran su incorruptzble destino y
renovaran su ardimiento en signos no mirados de Ia contemplación anúgua
de navegantes y pastores. Esse sujeito que, para retomar o título da
inquisição borgiana, postava-se «depois das imagens", era um Ur-
histórico e podia chamar-se Walter Benjamin. Ele nos ensinou a
perceber que, na mente de alguém acostumado a assistir a imagens
cinematográficas, o processo de associações fica logo interrompido
pela mudança icônica constante. A idéia sugere que, mais do que
de espaço, a imagem precisa de tempo, por requerer um processo
de associações incessantes.
É bem verdade que a obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica pede «o leitor desatento", aquele mesmo procurado com
afinco por Macedonio Fernandez, porém não é menos verdadeiro
que esse novo leitor seja obrigado, também, a realizar certas operações
abstratas, certas desleituras, mesmo quando assista a uma imagem
banal, cotidiana. Junto com a perda do valor de aura por parte da
obra, o leitor exausto de imagens culturais perde, também, toda
ingenuidade. A idéia terá seu correlato nas formas visuais
contemporâneas. No pós-cinema, por exemplo, a questão da duração
dos planos já não é tão relevante como o era no cinema de autor.
Como observa Beatriz Sarlo, a questão já foi decidida de antemão,
os planos são curtos ou curtíssimos, uma vez que, na nova
linguagem, nos defrontamos com um discurso de alto-impacto,
baseado na velocidade de substituição das imagens, cujos melhores
exemplos ainda são os anúncios de propaganda e os videoclipes.
Giorgio Agamben, que define o homem como o animal que
vai ao cinema, tem analisado as imagens-movimento como o motor

-8-
Prefácio - crítica e imagem

de uma teoria recursiva da história, construída a partir das imagens


dialétÍcas de Benjamin. Graças a elas, compreendemos que a história
se faz por imagens, mas que essas imagens estão, de fato, carregadas
de história. Isto é, de nonsense, de equívocol Constatamos, assim,
que a imagem nunca é um dado natural. Ela é uma construção
discursiva que obedece a duas condições de possibilidade: a
repetição e o corte.
Enquanto ativação de um procedimento de montagem, toda
imagem é um retorno, mas elajá não assinala o retorno do idêntico.
Aquilo que retoma na imagem é a possibilidade do passado. Como
procedimento de suspensão ou corte, a imagem aproxima-se, então,
da poesia, e não da prosa, na medida em que até mesmo o poema
poderia ser reduzido ao simples efeito de enjambement. Retorno e
corte alimentam, portanto, uma certa indecibilidade ou indiferença,
uma impossibilidade de discernimento entre julgamento verdadeiro
e falso, que potencializa, entretanto, o artifício da falsidade como a
única via possível de acesso à estrutura ficcÍonal da verdade.
N esse sentido, diríamos que as imagens produzem um regime
de significação que apela aos processos da memória psíquica e,
elaborando-se como sintoma, elas sobrevivem e deslocam-se no
tempo e no espaço, exigindo que se alarguem, conseqüentemente,
os modelos da temporalidade histórica e que se acompanhe a sua
sobrevivência para além do espaço cultural originário. Esta hipótese,
que foi pioneiramente aventada, no campo da história da arte, por
Aby Warburg, ',jnos coloca perante uma concepção rememorativa
da história, em que as imagens, na sua dimensão de memória ou de
tempo histórico condensado, criam, no movimento de sobrevivência
e de diferimento que lhes é característico, determinadas circulações

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Potências da imagem

e intrincações de tempos, intervalos e falhas, que vão desenhando


um percurso, um regime de verdade, uma densidade constelacional
própria.
Borges, Warburg e, em sua esteira, Benjamin ou Agamben,
nos propõem, através do trabalho das imagens, um modelo cultural
da história que tem muito mais a ver com o inconsciente histórico e
com a sobrevivência de certas formas expressivas. Trata-se de um
modelo que toma distância com relação ao esquema narrativo
pautado por começo e recomeço, progresso e declínio, nascimento
e decadência, a partir do qual sempre se retirou um mecanismo
linear para explicar as influências e os modos de transmissão cultural.
O próprio Warburg, em sua "Introdução ao Atlas Mnemosyne",
postulou que a história de uma disciplina é um evolucionismo
descritivo insuficiente se, ao mesmo tempo que se capta o
contingente, não se ousa, também, descer à profundidade da
tessitura (Verflochtenheit), que liga o espírito humano à matéria
estratificada acronologicamente.
Georges Didi- Huberman, em sua leitura de Warburg, vai mais
longe ainda. Argumenta que não há história da arte que possa
prescindir, para seu próprio relato e para sua construção, de modelos
estéticos. Toda história cultural é um peculiar modo da ficção. Vemos,
então, que o conceito de sobrevivência, central na teoria de Warburg,
embora ensaiado previamente pela antropologia anglo-saxônica, mais
precisamente por Edward B. Tylor, nos fornece uma saída para o
impasse do presente. De fato, com a sua noção de survival, Tylor
também vinha tentando uma teoria da linguagem emocional e
imitativa de que, no Brasil, um de seus adeptos foi Mário de Andrade.
"Memória, assombração, superstição" costumam delatar, no autor

-10-
Prefácio - crítica e imagem

de «Macunaíma", uma atenta leitura de Tylor e Freud. Mas a


genealogia do conceito de sobrevivência nos leva também a
Burckhardt que, nos seus estudos sobre a arte da Renascença, já tinha
começado a construir o fundamento teórico da sobrevivência, ao
mostrar que essa arte é impura, tanto nos seus estilos artísticos como
na temporalidade complexa das suas idas e vindas, entre o presente
vivo e a antiguidade rememorada. E nos leva, ainda, a Nietzsche,
cuja polaridade dionisíaco/apolíneo ganha destaque, em Warburg,
ao ser transformada em olímpico/demônico. Nietzsche, em última
análise, fornece a Warburg os instrumentos para pensar uma estética
das forças e considerar opathos na sua potência formadora. Daí deriva,
portanto, o conceito "fórmula de pathos" (Patho.ifõrmel), que se imporá
na análise cultural contemporânea.
O valor do pathos é, entretanto, dúplice. É, sem dúvida,
manifestação de um eterno retorno, de uma inequívoca vontade de
chance e de potência mas, ao mesmo tempo, ele é uma vontade sem
semelhança, que nos fornece uma imagem da arte depurada de toda
força. A fórmula do pathos amarra assim, ambivalentemente, a
receptividade (ou potência passiva) e a representatividade (ou
potência ativa). Nesse sentido, diríamos que, nas leituras que
seguem, visamos ultrapassar o círculo da subjetividade,
potencializando, ao mesmo tempo, a receptividade, que mostra de
que modo as formas do passado podem ainda ser novamente
equacionadas como "problema".
O último livro de Jean-Luc Nancy faz eco à primeira
inquisição borgiana. Depois das imagens, é preciso ir Au fond des
images. Até o fundo das imagens - diria Rimbaud - para encontrar
I 'inconnu, o moderno, porque, como argumenta Nancy, a imagem,

-11-
Potências da imagem

em última análise, fornece presença ao texto, se entendemos texto


como um tecido de sentidos. Mas por tirar o sentido da ausência
ou da vacância de sentido, todo presens não passa, a rigor, de absens.
N a leitura do inconsciente ótico do modernismo, a partir de
fotografias estampadas em uma revista oficial do Estado Novo; na
análise das anamorfoses do moderno que, através de uma coleção
que se espetaculariza em exposição para, finalmente, se
patrimonializar, novamente, em coleção, desvendando, en passant,
muito intrincadas, embora precisas e, sem dúvida, duradouras
"políticas da amizade"; por último, na relação entre imagem e cultura
de massa, imagem e política, imagem e desaparecimento, que
atravessa o debate do modernismo tardio, julgamos captar algo da
energia do moderno que ainda resiste nos textos e nas imagens. O
inacabamento de uns remete-nos às outras, mas a impotência delas
carrega-se de renovadas forças de sentido. São essas as "Potências
da imagem" .
Os textos aqui reunidos foram previamente estampados em
revistas especializadas - "Letterature d / America", "Punto de vista",
"Revista de Crítica Cultural" - ou apresentados em colóquios
acadêmicos. Agradeço aos colegas que me impulsionaram a escrevê-
Ias. Sou grato a Cláudia Rio Doce e a Antonio Carlos Santos pelo
auxílio em reuni-Ias; a Mario Cámara e Fabíola Alves da Silva, pelo
suporte material; e a Valdir Prigol, pela confiança. Imagens:
maneiras e matérias da presença.

Raúl Antelo

dezembro, 2003.

-12 -
o
inconsciente
ótico do modernismo

Quando as publicações de vanguarda, 'Bifur' ou 'Variété', mostram


unicamente detalhes, sob títulos como 'Westminster', 'Lille', 'Antuérpia'
ou 'Boslau', representando, ora um fragmento de balaustrada, ora a
copa desfolhada de uma árvore cujos galhos se entrecruzam de múltiplas
maneiras sobre um poste de gás, ora um muro ou um candelabro com
uma bóia de salvação na qual figura o nome da cidade, elas se limitam
a levar ao extremo motivos descobertos por Atget. Ele buscava as coisas
perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a
ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes de cidade; elas
sugam a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio
que afunda.
Walter Benjamin

Toda imagem é uma representação, de caráter global e


abrangente, de uma ordem, de um território, de uma identidade,
enfim, que se constitui, opera e se insere em parâmetros
Potências da imagem

coletivamente aceitos. Essa peculiaridade redefine seu contorno não


somente no plano cultural, mas, acima de tudo, na esfera do social.
O imaginário, conjunto variado e proliferante dessas práticas
discursivas fornece, assim, uma resposta ativa aos conflitos
constitutivos de uma cultura. Trata-se de um sistema de valores
que orienta o sujeito em relação ao grupo com o qual ele se identifica
ou ainda pauta esse grupo face à sociedade como um todo, isto é,
enquadra-o em relação a suas hierarquias e dominações e, em última
análise, coloca a sociedade global frente a seus outros. Essa operação
descansa, mais do que em vago simbolismo transitório, na
articulação, precisa e orientada, de verdade e normatividade,
capitalizando as energias decorrentes da construção de toda
representação em direção a um alvo comum, a prática social.
Essa peculiaridade das imagens leva-me, em conseqüência, a
analisar um imaginário específico, os valores de hierarquia e
normatividade, tal como ele se depreende a partir de certas imagens
emblemáticas do Estado Novo. Digamos, para antecipar a hipótese,
que em algumas imagens desse período capta-se, com pungência,
o inconsciente ótico do próprio modernismo. Meu campo de
pesquisa é, fundamentalmente, constituído por revistas e, a esse
respeito, caberia relembrar, para início de conversa, que a própria
história dos periódicos culturais brasileiros é inseparável da lei e da
imagem, o que se desdobra em uma série de paradoxos.
Essas imagens reificam uma sociedade paralisada ou
funcionam, pelo contrário, como uma prensa de energias livres?
Essas leis profanam a sacralidade imperial ou somente nos anunciam
a existência de forças originárias adormecidas? Seja como for, elas
problematizam a representação, tanto na lei quanto na imagem, que
já não se confunde com a simples ação, mas alimenta-se da paixão.

-14 -
o inconsciente ótico do modernismo

Marco fundacional dos estudos historiográficos em meados


do século XIX, a "Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro", por exemplo, assinala o conceito patrimonial da
modernização aristocrática dos Bragança, sua paixão pelos acervos.
Com ela o Império começa coleçõesculturais. Observa Max Fleiuss,
secretário perpétuo do Instituto e diretor de ''A Semana", revista
porta-voz da formação intelectual que fundaria, em 1897, a
Academia Brasileira de Letras, que

[... ] são inapreciáveis as doações de patrimônio intelectual que o


Imperador fez ao Instituto. Bibliotecas, arquivos de manuscritos e
mapotecas completas. Basta dizer que o núcleo principal de sua
vastíssima coleção de livros, cartas, mapas geográficos e autógrafos
raros - o que o Instituto, desde há muitos anos zelosamente acumula-
pertenceu à biblioteca do Imperador. É a coleção magnífica de Martius,
composta de 600 obras, em vários idiomas, referentes todas elas ao
Novo Continente. São valiosos volumes em edição princeps, e
maravilhas raríssimas, como por exemplo o mapa da 'Razão de Estado
do Brasil', todos eles doados ao Instituto, em vida ou depois de seu
falecimento, como a melhor de suas riquezas, pelo insigne monarca
(FLEUISS, 1938, p. 22, tradução minha).

A esse acervo deveríamos agregar a fotografia, de que Dom


Pedro, além do mais, foi interessado cultor. Por outro lado, convém
destacar que é esse um momento de esplendor da imagem e ela, em
boa parte, ajuda a construção do imaginário nacional. Periódicos
como "O Ostensor Brasileiro", em que colaboraram Alberdi e
Mármol, ou "Jornal das Senhoras", de J oana Manso, sem esquecer
"Guanabara", "Revista Popular" ou "Revista Ilustrada", acolheram
os trabalhos de Ângelo Agostini, Alfred Martinet, Augusto Off ou

-15 -
Potências da imagem

Henrique Fleuiss, pai de Max. Como exemplarmente resume


Alexandre Eulalio, a trajetória da imagem é inseparável da
modernidade Imperial.

Em 1842 eram pela primeira vez mostradas fotos na Exposição Geral; elas
continuarão presentes, recebendo distinções nesses certames, tanto na sua
forma propriamente mecânica, quanto realçadas sob a espécie das foto-
pinturas - processo que, em 1866, Victor Meirelles compreensivelmente
desaprovava por lhe parecer fonte de retrocesso 'da verdadeira arte'. As
diversas variantes da foto-pintura, praticada pelo menos desde 185 O e tantos,
por um Joaquim lnsley Pacheco (ele mesmo artista do pincel) e por um
Augusto Stahl (associado, no Recife, ao pintor Steffen, no Rio de Janeiro a
Wahnschaffe), aderem ainda artistas visuais de certo prestígio, como Louis-
Auguste Moreau, Miguel Caiiizares e Ernst Papf; este último chegou
mesmo a abrir durante algum tempo atelier especializado. O trabalho de
encarnar o 'fantasma' fixado na placa 'que podia ser recoberto a óleo, a
guache e mesmo a pastel' segundo sempre Victor Meirelles, 'se algum
merecimento pode ter é certamente devido ao pintor e não ao fotógrafo'. A
firma Carneiro & Gaspar contava com o grafismo elegante de Courtois; já
Alberto Henschel 'avivava' pessoalmente as suas reproduções; José Ferreira
Guimarães especializara-se, por seu lado, em 'retratos vitrificados, fixados
a fogo como as pinturas de Sevres e Limoges'. Uma referência apenas à
fusão foto-litografia: um gênero que encontra alguns dos mais altos
momentos da nossa iconografia oitocentista nas vistas brasileiras fixadas
pelas objetiva de Victor Frond e litografiadas pelos melhores mestres do
gênero da Paris de N apoleão lIl. Precedem -nas de um decênio o panorama
da capital do que os lápis litográficos de Benoit e Cicéri deram relevo todo
especial (EULALlO, 1992, p. 156).

Herdeira, portanto, dessa tradição, a República não só não


interrompe a atitude colecionadora de imagens, mas reorienta-a. A
"Revista Americana", órgão oficioso do Itamaraty, organiza, com

·16·
o inconsciente ótico do modernismo

efeito, um tipo peculiar de coleção: as nacionalidades americanas,


unidas, em nome de uma política de hegemonia regional, pelo pan-
americanismo do barão do Rio Branco.
Não é nem um pouco surpreendente, então, que, mais tarde,
na era Vargas, vários periódicos culturais ainda se pautem por
programas nacionalistas e modernistas, em perspectiva de fusão,
ou de amálgama, do supra-regional, mas por isso mesmo é lógico
que quase todos eles permaneçam atentos à pulsão escópica.
"Atlântico" e "Travei in Brazil", publicações do Departamento de
Imprensa e Propaganda, ilustram aspectos pouco estudados do
modernismo brasileiro. Ambas catalisam coleções geopolíticas
específicas. A primeira revista, alinhando-se com os interesses
estratégicos no Atlântico de Salazar Uá que era publicação bi-
nacional, sustentada também pela Secretaria Nacional de
Propaganda de Portugal). A segunda, entretanto, identificando-se
grosso modo com a dominante norte-americana para a região. Mas,
além destas manifestações coincidentes, as duas publicações ilustram
modos divergentes de entender o moderno, tramas específicas de
espaço e tempo em que o próximo, por mais colado que estiver,
aparece irremediavelmente distante de nós e isto graças às imagens.

A imagem fotográfica

Ora, em uma colaboração para o "Jornal de Letras", Carlos


Drummond de Andrade teoriza sintomaticamente sobre essa
virtualidade da fotografia, recordando que,

-17 -
Potências da imagem

[ ... J segundo Paul Valéry, deviam os filósofos meditar no número


prodigioso de estrelas, radiações e energias cósmicas que só se tornaram
conhecidas através da fotografia; energias, radiações e estrelas que, por
assim dizer, ficamos devendo à placa sensível do fotógrafo. Mas essa
placa não nos desvenda somente os mundos longínquos e as vibrações
imponderáveis da matéria. Os nossos próprios mundos individuais, o
mundo interior que se defende por trás das aparências catalogadas do
mundo de todos os dias - o fotógrafo consegue, muitas vezes, captá-lo
em sua pureza singular, quando nem o psicólogo nem o pedagogo nem
o ficcionista dele retiram mais que um esboço confuso.!

Vale a pena, portanto, observar mais em detalhe esta poética da


imagem, nas duas publicações do modernismo tardio que acabamos de
citar.

Dirigida por um ex-vanguardista, Antonio Ferro2, a revista


'~tlântico", furtivamente visual, opta pela exibição de um patrimônio
plástico tradicional, admitindo, no máximo, a ilustração convencional,
tipográfica ou em desenhos, de artistas como Santa Rosa, Tarsila ou
Noêmia. "TraveI in Brazil", no entanto, escrita em inglês, com textos
específicos de modernistas como Mário de Andrade, Manuel Bandeira,
Cecília Meireles ou Sérgio Buarque de Hollanda, assinala, por sua vez,
um aspecto mais instigante da modernidade periférica: seu inconsciente
ótico.

Caberia reivindicar este conceito não apenas como um ingrediente


marginal ou deslocado do moderno, mas, até certo ponto, como
característico de um ponto de vista menor, digamos assim, "latino-

1. M.P. (pseud. Carlos Drummond de Andrade). Retratos do artista quando menino. "Jornal de
Letras", Rio de Janeiro, novo 1949. É o único texto de Drummond com essa acrografia.
2. Prefaciado por Gómez de ia Serna e Eugenio d'Ors, Antonio Ferro foi biógrafo de Oliveira Salazar.

·18·
o inconsciente ótico do modernismo

americano". Efetivamente, é Marcel Duchamp quem começa a se


interessar pela imagem como elemento analítico da prática cultural,
através de suas estereoscopias, praticadas pela primeira vez em Buenos
Aires, no final da primeira guerra. Mas é, de fato, Walter Benjamin,
em 1931, quem estipula teoricamente que, através da fotografia,
descobrimos a existência de um inconsciente ótico, assim como nos
deparamos com o inconsciente por meio da psicanálise. Primeiro em
Walter Benjamin, logo em Drummond de Andrade, reaparece, pois, o
conceito de Valéryde que, sempre iminente, a fotografia frustra o encontro
e se revela como pura distância.
Poderíamos dizer, em poucas palavras, que no predomínio
concedido à imagem em detrimento do texto, "TraveI in Brazil" revela
o enigma do modernismo. Suas imagens, obtidas por J ean Manzon,
Eric Hesse, Jorge de Castro, Vieira, Kahan e outros, são elucidativas
tanto das fantasias visuais, hiperestéticas, do Estado Novo como da
sutil fusão anestésica promovida pelo canto orfeônico de Villa-Lobos,
calorosamente defendido por Mário de Andrade em suas páginas. Estão
aí o jangadeiro de Orson Welles e o tropeiro de Glauber Rocha, para,
em suma, constatarmos, na rasura que supõe uma revista, em primeiro
lugar, editada pela censura, e não menos importante, em inglês, a relação
especular do modernismo com seu Outro.
Admitindo a hipótese de que a imagem é espectro e, como tal,
não apenas fantasma, mas série ou leque, uma reportagem,
aparentemente secundária, assinada com pseudônimo, chama
subitamente nossa atenção. "Through the Rio streets", tal a matéria,
organiza-se a partir das poderosas imagens de J ean Manzon, ilustrando
um texto evocativo das profissões ambulantes que a cidade vê
desaparecer. Toda imagem vem acompanhada de uma epígrafe. Ver e

-19 -
Potências da imagem

ler. Como assinala Bourdieu, uma foto não é nada sem essa epígrafe
que nos diz o que deve ser lido - legendum - ou seja, algo que, com
frequência, é só uma lenda que nos faz ver qualquer coisa. Mas neste
nomear, fazer ver, criar ou levar a existir, as epígrafes particularizam,
precisamente, uma característica da fotografia, sua distância média entre
o infinito e o sujeito, seu traço irredutível, o ça-a-été que lhe atribuía
RolandBarthes(BARTHES, 1997,p.1l63;ZAPATA, 1997,p.1O-14).
Todas as imagens da matéria em questão sublinham ou dobram
o que a imagem impõe, um irrevogável passado colonial e migratório.
"An italian fruit vendor", "The itinerant Portuguese grinder", "The
Portuguese fresh-eggman", "The Portuguese ambulant seller of
brooms and feather-dusters", todas apontam um mundo de interesses.
Interessere, que está entre dois mundos, que afirma e nega, que atrai,
enfim. São o complemento de outras imagens, as de vendedores de
frutas pintadas por Tarsila do Amaral ou ainda aquelas outras, filmadas
por Humberto Mauro na mesma época, as de profissões rurais
condenadas, cuja distância dramatizam os cantos de trabalho. Nestas
que nos ocupam, no entanto, uma identidade européia, manual e
artesanal, é arquivada com o mesmo gesto com que outra nova, nacional
e industrial, a substitui. Mas esta mudança não é menos problemática,
já que o novo, tão novo, diga-se de passagem, como o Estado que o
promove, o Estado Novo, é um regime autoritário, de repressão interna,
alinhado aos Estados Unidos, sua proteção externa, para uma drástica
industrialização do país.
As fotos, portanto, suspensas em meio à metamorfose, mais do
que o "eis aqui" mítico do novo, exibem a problemática imagem do
"isto foi", ou seja, a distância de uma modernidade esquiva que se impõe
como proto-história de nossa reconstrução contemporânea. Essas

-20 -
o inconsciente ótico do modernismo

imagens de Manzon elegem como objeto artístico o mundo do trabalho,


mas expurgando dele todo vestígio de violência ou exploração. O novo
desse Estado de compromisso, quando não de exceção, insinua a lenta
substituição do braço pela máquina e impõe a arbitragem do Estado
nos conflitos suscitados pelos interesses discordantes entre cidadania e
modernização. Essas fotos dramatizam a existência de duas faces do
cultural que, por sua vez, engendram formas históricas de organização
social. Não apontam um movimento teleológico progressivo, "novo",
de superação do passado pelo presente, mas a reabertura indefinida e
infinita de um conflito entre o princípio de utilidade e o princípio de
perda. O Brasil está, então, definindo, o que fazer com seus
investimentos, já que o excedente econômico, que não poderá mais ser
desperdiçado periodicamente em festas e transgressões coletivas, deve
daí por diante ser reapropriado e utilizado pelos setores dominantes na
criação ou consolidação de empresas militares e religiosas: a guerra, a
arte nova, a festa disciplinada, o turismo, enfim, de "TraveI in Brazil".
N esta linha de análise, inscrevem-se textos como "Holly week in
Ouro Preto", de Cecília Meirelles (n. 4, 1942), "Carnaval in Rio", da
mesma Cecília, publicado em um número (n. 2, 1941) cuja capa traz
Carmen Miranda em fotomontagem tropicalista, provavelmente de
Sansão Castello Branco, e mesmo "Ouro Preto and the old Vila Rica",
de Manuel Bandeira (n. 4,1941).
Tradicionalmente identificadas com a ordem profana, razão e
moral passam a ser, em certa medida, divinizadas por estas imagens,
enquanto o divino, decaído, é agora racionalizado como uma arte a
serviço da guerra contemporânea, guerra entre as nações, em função
da divisão política. Há aqui uma evidente opção entre dois modelos
divergentes do moderno, o de Marx e o de Nietzsche. Marx, como

-21 -
Potências da imagem

sabemos, propõe a secularização radical do social para a abolição da


propriedade privada e o conseqüente desaparecimento de fronteiras
políticas internacionais. Nietzsche, por sua vez, acredita que o homem
deve liberar-se da tutela racional e do temor ao limite temporal para
afirmar a vida como aposta criativa, lúdica e elusiva, mas, ao mesmo
tempo, gozosa é dolorosa, o que, em última análise, configura a
emergência de uma subjetividade soberana.
Niet'lsche, em geral, foi lido como defensor de uma soberania
meramente objetiva e esta será a divergência que a tradição de Bataille,
Blanchot e Foucault recriminará ao saber consolidado: confundir
soberania e poder, buscar a autopreservação ao preço de controlar o
futuro e dominar os demais. É essa, precisamente, a perspectiva que
Almir de Andrade, um dos diretores do Departamento de Imprensa e
Propaganda, deixa claro quando afirma que

[...] não reconhece Nietzsche qualquer idéia moral que pretenda definir o
bem em si ou o mal em si: bem e mal são conceitos relativos, que se
modelam sobre os objetivos da vontade-de-poder do homem superior. Os
fins justificam todos os meios, desde que se tenha em vista desenvolver na
personalidade humana a vontade-de-poder, que traz em si os bens supremos
e essenciais da vida, que gera tudo o que é grande, nobre e duradouro sobre
a terra. A filosofia de Nietzsche conduz, assim, a uma 'transmutação de
todos os valores', com o fito de alcançar o sobrehumano, isto é, a
personalidade que transcende, que se satura dessa potente e grandiosa
vontade-de-viver ou vontade-de-poder, símbolo da dominação do homem
sobre si mesmo e sobre o mundo exterio~ (ANDRADE, 1949).

3. Prefácio de Agrippino Grieco. Com aparente objetividade, Almir de Andrade observa neste
prefácio posterior à guerra que "a doutrina de Nietzsche foi a grande inspiradora do Führerprinzip
do pensamento nacional-socialista alemão e de toda a filosofia política do Nazismo e do Fascismo."

-22 -
o inconsciente ótico do modernismo

Fascismo e imagem

Esta alternativa super-heróica de Nietzsche reabre, assim, em


pleno estadonovismo, a discussão sobre os limites entre natureza e
cultura, que o darwinismo social, com sua impugnação do mito
teleológico e do dogmatismo bíblico, havia capitalizado para si como
religião da ciência. Tornam a ser óuvidas, em conseqüência, as
fantasias viris do empirismo, que impregnam inclusive seus próprios
críticos. Walter Benjamin, talvez o mais ilustre deles, ao concluir
seu célebre ensaio sobre "A obra de arte na época de sua
reprodutividade técnica", estabelece uma correlação entre a
crescente proletarização do homem moderno e o alinhamento,
também crescente, da sociedade que ele explica dizendo que o
fascismo trata de organizar as massas sem tocar nas condições da
propriedade que essas mesmas massas queriam destruir. Assim, o
fascismo buscaria, de fato, com seu vitalismo, conservar as condições
culturais prévias de existência. A conseqüência prática, em seu juízo,
como sabemos, é o ecletismo beligerante da vida política. E
acrescenta: "à violação das massas, que o fascismo impõe pela força
no culto ao caudilho, corresponde a violação de todo um mecanismo
posto a serviço da falsificação de valores culturais" (BENJAMIN,
1973, p. 56, tradução minha).
Ora, J esús Aguirre, o duque de Alba, em sua versão do ensaio
ao espanhol, traduz corretamente o conceito de Vergewaltigung der
Massen, violação ou, para enfatizar o sentido também presente em
alemão, estupro. Deve-se observar, entretanto, que o conceito
desdobra-se em outro, Vergewaltigung einer Apparatur, duplicando,
assim, mesmo os sujeitos femininos, die Masse ou Apparatur (e

-23 -
Potências da imagem

sintomaticamente no Apparat masculino) com o que o estupro das


massas e das câmaras não apenas feminiza suas vítimas, mas também
antropomorfiza-as, no sentido carregadamente genérico da expressão,
vinculando-as ao mesmo fascismo que, linhas adiante, manifesta-se
sintomaticamente, em prosopopéia:ftat ars - pereat mundus4•

O fascismo condena, assim, a physis para exaltar o físico como


Kultwerten, ou seja, fisioculturismo. Essa é sua arte. As fotos de Jorge
de CastroS, discípulo de Portinari, que ilustram o trabalho da Escola
de Educação Física6 juntam, precisamente, estetização e mercan-
tilização. Partem do esforço comunitário e bélico ("A. well developed
tug-of-war team" é a epígrafe de uma delas; "Like a bronze statue",
a de outra) e prometem um para além do humano, embora consigam
apenas trazer mais para cá as promessas da indústria, até alcançar um
fetiche de poder. A superposição de seis braços, em um desses
exercícios, mostra-nos "a physical jerks stunt that looks like an ancient

4. Com o que Benjamin, em prespectiva nietzscheana, transvalorizaria os valores do rnscismo; ou


seja, criticaria a violência, mas participaria, em última instância, da retórica da virilidade.
(5PACKMAN, 1996).
5. Jorge de Castro compôs também as letras de muitas marchas de Carnaval com Wilson Batista,
destacando-se "Mané Garrincha" ou "Rei Pelê" e, em 1956, "Todo vedete", sobre o baile de
travestis no teatro João Caetano, que teve problemas com a censura. Cf ''As fotografias de Jorge de
Castro", Dom Casmurro, 21 out. 1939.
6. Em "The National School of Physical Education of Brazil" ("Travei in Brazil", vol. 2, n. 4,
1942), J. Moreira de Souza estipula que "in the general plane adopted by the state to concretize,
on solid bases, the aspiration of the create an institution, through which it would by possible to
improve their physical health and morale, as a foundation for the working out of national organic
reconstitution, from which should emerge the complete political programme of government which
was pledged to give to it's people a happy life, and to the N ation, an ample and solid sovereignty.
When President Vargas, on the instal1ation of the N ew State, proclaimed the inauguration of an era
of economic emancipation, as an indispensable base of political independence and moral autonomy,
he diligently sought for methods to bring about this ideal, and amongst other creations of this lucid
and pratical mind, the National 5chool ofPhysical Education and Sports was evolved".

-24 -
o inconsciente ótico do modernismo

hindu God", isto é, O ídolo funciona como um simulacro de deus,


assim como o homem é um simulacro do ídolo. Mário de Andrade
achara, nessas fotos, o "dom de apanhar a poesia do real". Talvez
fosse o caso de interpretar o real como o Reallacaniano, o que não
cessa de não poder ser representado.
Mas este mesmo gesto, no qual podemos adivinhar uma violação
das massas na estetização da força, admite seu complemento, a
antropomorfização do fantasma, ou seja, a visualização de um desejo
homoerótico - as malhas cavadas dos atletas, as nádegas para o ar, as
dobras da roupa ou as poses, mais tarde banalizadas por qualquer
cartão postal de São Francisco - o que nos persuade de que a única
semântica da imagem fotográfica é sua pragmática, seu modo, sua
prática. Este é seu valor mais concreto e contundente. O ícone estético
absorve, assim, tanto as funções fundacionais do logos como a physis
dos filósofos, para exibir, portanto, a conjunção (carnal) de iconofilia
e inconsciente.

Tais contradições têm seu correlato no plano ético e juntam-se


às idéias de uma moral invertida nos quinta-coluna, defendida por
Sartre no terceiro volume de "Situations". O colaborador, nesta
perspectiva,

[...] em vez de julgar os fatos à luz do direto, fundou o direito sobre os


fatos. Sua metafísica implícita identifica o ser com o dever ser. Tudo que
é, é bom; o que é bom é o que é. Sobre tais princípios construiu
apressadamente uma ética da virilidade. Tomando a máxima de Descartes
- 'o homem há de vencer a si mesmo antes que ao mundo' - pensou que
a submissão aos fatos é uma escola de valor e de dureza viril. Para ele, o
que não parte de uma apreciação objetiva da situação não é mais que uma
fantasia de mulher e um monte de palavras vazias. Explicou a resistência

-25 -
Potências da imagem

como uma adesão anacrônica a costumes e a uma ideologia extinta e não


como afirmação de um valor. No entanto, sempre ocultou a si mesmo a
contradição profunda encerrada no fato de que ele também escolheu os
acontecimentos que constituem seu ponto de partida (SARTRE, 1965,
p. 38, tradução minha).

E esse ponto de partida implica sonhar para além da


sensibilidade, um "tempo de camisolinha", como diria Mário de
Andrade, onde fosse possível localizar uma vida autêntica, hoje ausente.
Esta parte separada, destacada e até mesmo maldita da vida possível,
que, na realidade, confunde-se com todo o futuro, emerge, assim, do
coração mesmo de uma imagem, não apenas como sua abstração,
mas como supersensação, algo já realizado de antemão. Sua duração
carrega-se então com a opacidade da morte e seu outro surge com a
força de uma iluminação. Toda existência fica, portanto, separada de
sua essência. Toda a sensibilidade resulta amarga. Toda consciência
de si, revelando ao homem sua impotência, impõe, por seu lado, seu
próprio desprezo. Todo homem é, de algum modo, aleijado e não há
política higienista capaz de redimi-lo ou reabilitá-lo.
Como na teoria do leitor desatento de Macedonio Fernández,
o inconsciente ótico remete a um infinito dessublimizado, proveniente
de uma experiência cotidiana vista e vivida, embora não
deliberadamente contemplada que nos conduz, como diz Italo
Moriconi, ao não tematizado pelo olhar, mesmo quando integra
satisfatoriamente as percepções mais convencionais do indivíduo.
Como mescla de choque e apatia, de intensidades corporais e
sonambulismo de massas em vigília pelo novo, o inconsciente ótico
articula técnica e vivência, nos levando a uma percepção sinestésica e
a uma política da imagem que procedem do visual ao tátil:

-26 -
o inconsciente ótico do modernismo

Ao contrário de uma pedagogia conservadora, o tempo distraído, tempo


entre um momento e outro de intensificada focalização pelo olhar (atenção
intensa, base da reflexão) não é encarado por Benjamin como homogêneo
e vazio. Nele ocorre a recepção comandada pela dominante tátil. Nele
ocorre também o descentramento do sujeto individual, pois a recepção
coletiva pressupõe um revezamento na posse da palavra. Para Benjamin,
a recepção tátil é especialmente significativa nas conjunturas de
transformação histórica. É no domínio da recepção tátil que se formam
os hábitos. E é na decomposição analítica do habitualizado pelo cotidiano
que se formam novos modos de vivenciar e perceber determinados pelo
desenvolvimento técnico. Se a pedagogia iluminista atua de cima para
baixo, disciplinando desejos (ou seja, habitualizando) a partir de idéias e
de estruturas formais, Benjamin aponta para toda uma nova realidade,
ainda mais vigente hoje que em seu tempo, em que os ideais a construir
devem partir do reconhecimento da instabilidade emocional coletiva
(MORICONI, 1996, p. 144-5).

Primeiro impulso de uma existência saudável, a pulsão, faltando


em seu verdadeiro objeto, prolifera em virtualidade, mas agora em
uma variante sufocada, abortada, e naquilo que poderia ser o ritmo
de participação na vida, transforma-se, pelo contrário, em signo do
proibido. É curioso pensar, a partir destas imagens, na biopolítica do
Estado Novo, mais ainda levando em conta que a videopolítica
contemporânea, de um lado, orgulha-se de sepultar a era Vargas
enquanto, de outro, revoga uma lei do aborto, em casos de estupro,
aprovada por esta mesma ditadura, violenta por definição. No Brasil,
por paradoxal que possa parecer, as ditaduras têm sido modernizadoras
tanto como a modernização, ditatorial. Tamanha indefinição de limites
prova que as relações entre identidade e sexualidade, arte e técnica,
exigem, para sua correta avaliação, uma poética específica, nada alheia,
por sinal, às estratégias requeridas pela leitura de uma revista literária.

·27 -
Potências da imagem

Analisar um periódico cultural mimetiza sua produção mesma:


obriga-nos a selecionar e a omitir, produzindo um texto, uma leitura,
que é colagem espacial ou montagem temporal de fragmentos,
enxertados em relações provisórias ou aleatórias que, no entanto,
reafirmam o motor mesmo do moderno: a experiência do descontínuo
(BENNETT, 1989, p. 480).
Alfonso Reyes percebeu esse fato quando, ao traçar uma teoria
da antologia, observou que "las antologías marcan hitos de las grandes
controversias críticas, sea que las provoquen o que aparezcan como
su consecuencia. En rigor - acrescenta - las revistas literarias de
escuela y grupo se reducen a igual argumento y cobran carácter de
antologías cruciales" (REYES, 1942, p. 136). É, enfim, por esse caráter
antológico e descontínuo, entendido como índice efetivo de formações
proto-históricas, que o sentido se rearma, sem resto, para bem ou
para mal, como um enigma que nos indaga e nos exige, em todos os
sentidos que a frase possa ter, que a política deve ser revista na medida
em que a revista, tal como a experiência comunitária, se nos apresenta,
para retomar a categoria de Jean-Luc Nancy, desoeuvrée, inoperante
e improdutiva, o reverso da oeuvre benjaminiana, o anverso do texte
barthesiano. Não há nela nem obra a ser produzida, nem mesmo
comunicação extraviada no tempo. Há tão-somente um espaço e, em
conseqüência disto, o espaçamento de uma experiência do exterior
que, a contrapelo de toda nostalgia, ilumina-se com a consciência de
sua própria separação.

-28 -
Políticas da amizade e
anamorfose do moderno

N ous hésiterions toutefois au bord d'une fiction. Le monde serait


suspendu à une sorte d'hypothese élémentaire et sans bord, une
conditionnalité générale gagnerait toutes les certitudes. I..:espace et le
temps virtuels du "peut-être" seraient en train d'aspirer Ia force de nos
désirs, Ia chair de nos événements, le plus vivant de notre vie. Non, ils
ne seraient pas même en train de le faire, car Ia présence même d'un tel
processus serait rassurante et encore trop effectivej non, ils seraient
tout pres d'y parvenir et cette imminence suffirait à leur victoire. Elle
suffirait non à s'y opposer, à cette force et à cette vie, ni à les contredire,
ni même à leur nuire, mais pire encore, à les rendre possibles, les
rendant ainsi seulement virtuels, d'une virtualité qui ne les quitterait
plus jamais, même apres leur effectuation, les rendant donc impossibles
par là même, comme seulement possibles, jusque dans leur présumée
réalité. La modalité du possible, l'insatiable peut-être détruirait tout,
impIacabIement, par une sorte d'auto-immunité dont ne serait exempte
aucune région de l'être, de Ia phúsis ou de l'histoire. AIors naus
imaginerions un temps, ce temps-ci, nous n'en aurions pas d'autre en
Potências da imagem

tout cas, mais nous hésiterions à dire "ce temps-ci", doutant de sa


présence, ici maintenant, et de sa singularité indivisible. N ous voudrions
nous réapproprier, ici maintenat, jusqu'à cette hésitation, jusqu'au
suspens virtualisant de cette époque, pour le crever, pour l'ouvrir d'un
coup sur un temps qui serait le nôtre, et seulement le nôtre: le
contemporain, si quelque chose de tel se présentait jamais.
Jacques Derrida

Como sabemos, a inscrição de uma marca em uma cena proto-


histórica, digamos, o moderno ou o outro, reprime, de algum modo,
um significado diferente do mesmo signo, por exemplo, o nosso, o
próprio que, ainda que invisível no momento, permanece assim em
estado de suspensão estratégica, em outro lugar, sorte de antecâmara
ou bambolina da cena textual e, mais do que isso, transforma-se na
consciência pós-histórica do mesmo acontecimento. Há ali uma
anfibologia cultural que se reúne com o caráter estriado que
apresenta a problemática do moderno e do periférico, conceitos que,
sendo constituídos de diferenças e, mais ainda, de diferenças de
diferenças, definem-se como o absolutamente heterogêneo, o devir,
a deriva, constantemente compondo-se com as forças que tratam
de anulá-Ios.

Poderíamos recorrer, para ilustrar esse complexo processo de


compossibilidades do moderno, ao peculiar curso de uma coleção,
a mostra de vinte pintores brasileiros que, em 1945, cruza a cena
cultural de três países, os quais, depois da guerra comum (a do
Paraguai), encontraram na arte moderna a solução integradora de
suas energias fundacionais. Mas, ao mesmo tempo, essa emergência
do moderno, em plena época da guerra (entre politização da arte
ou estetização da violência, quer dizer, entre vanguarda e kitsch)

-30 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

prefigura outra guerra, a contemporânea, de dissolução dos Estados


ou, em outras palavras, de consolidação de mercados
videofinanceiros. Há uma imagem do público mas sobretudo uma
política das imagens que magnetiza a cena urbana e popular na
Argentina, Brasil e Uruguai nesse momento inapreensível. A
disseminação dessas marcas e seu refúgio no museu explicam boa
parte dos avatares de nossa modernidade. Vamos, portanto, à
reconstrução dos fatos.

PettorutÍ: nova forma e não-verdade

Em 1924, ao voltar impensadamente ao país natal, rompendo


assim sua carreira artística européia, Emílio Pettoruti (1892-1972)
transforma-se no paladino da nova plástica argentina, amparado
por seus corifeus martinfierristas: Xul Solar, Alberto Prebisch,
Ricardo Güiraldes, Ernesto Palacio. Não tardaria a chegar, junto
com a exibição de suas pinturas, a divulgação de suas idéias, nem
sempre tão identificadas, como se pode acreditar, com o programa
futurista, já que, afinal de contas, Pettoruti é um pintor vinculado à
Famíglía Artística milanesa, saudado por Carrà, Marinetti ou
Bragagliaj nas páginas de "r..:lmpero" ou "Giovinezza", como "um
dos nossos". Se parece atrevido sugerir um vínculo orgânico com
os princípios hierárquicos da ordem italiana, nem sequer ocorreria
aos seus admiradores agregá-Io inequivocamente ao futurism07. Em

7. Apesar dos elogios de Marinetti, na conferência da Sorbonne, no sentido de ser o primeiro pintor
do futurismo, ou no artigo para "El Diario", em sua visita a Buenos Aires em 1926, seu principal

-31 -
Potências da imagem

compensação, ê impossível recusar sua vocação para o debate


vanguardista nesse seu "renascimento" no Prata. Em 1926, ao expor
na principal galeria de Buenos Aires, "Amigos del Arte" (1924-
1943) - mais um avatar das "políticas da amizade", dessa vez, sob o
comando de Bebê Sansisena de Elizalde, promotora de exposições
de Siqueiros ou Figari, bem como de cursos ou conferências de
Fondane, Garcia Lorca, Ortega y Gasset, Bragaglia, Marinetti ou
Le Corbusier - nesse momento, então, Pettoruti explicita sua
posição frente a uma política do olhar (a cópia da realidade, a cópia
da Europa), tópico recorrente, desde o criacionismo de Huidobro,
no debate cultural dos anos trinta:

Desde o Renascimento até o impressionismo passa-se um grande


período de tempo na arte em que nada de fundamental varia, desde que
tudo gira sobre um mesmo apoio angular: a reprodução da Natureza,
mais ou menos idealizada, mas sempre a Natureza, quer dizer, o já
existente. Não se cria nada. [ ...] O impressionismo deu o primeiro
golpe de picareta a esse realismo impuro ensaiando, por meios técnicos,
uma transmutação dos valores, que são dissociados, alterados e
ordenados novamente de maneira distinta, a fim de produzir 'uma
impressão' da realidade, e não a simples visão da realidade mesma.
[ ...] Isto era algo, porém ainda muito pouco, porque a Natureza, os
objetos variavam mas continuavam sendo a razão de ser do quadro. E

defensor, Xul Solar; argumenta que "não pretende Pettoruti impor-nos uma moda dada, convencendo-
nos de qualquer coisa com a pujança de seu talento. Sua arte está dentro de todo o século espiritual
presente. Desta época em que a arte é mais individual e arbitrária do que nunca, não podemos dizer
que seja anárquica. Existe, apesar de tanta confusão, uma tendência bem definida para a simplicidade
dos meios expressivos, a arquitetura clara e sólida, até a pura plástica que conserva e acentua a
significação abstrata de linhas, massas, cor, tudo dentro de uma liberdade de compreensão e composição.
Estas amplas perspectivas novas, este sério esforço de Pettoruti - dissidente por fim - nos ocasionam
um alívio e uma liberação. A valentia desse pintor exemplificará" (PETTORUTI, 1924).

·32·
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

trata-se de que a pintura não siga as leis externas, alheias à sua essência,
não prossiga tiranizada pelo 'motivo', mas que, pelo contrário, torne-se
independente e desvincule-se completamente do mundo exterior, para
não seguir senão suas próprias leis, impostas por necessidades de ordem
exclusivamente plástica: a cor e a linha.8

o exemplo da música, ao qual recorre Pettoruti, já tinha sido


explorado anos antes por Mário de Andrade, em "Reação contra
Wagner" e mesmo em "A Escrava que não é Isaura" (1925),
provavelmente lida por Pettoruti. Não nos esqueçamos que, além
da correspondência e dos recortes, o pintor lhe oferece uma aquarela
com tema de palhaços, de 1917, portadora de inequívoca dedicatória,
"A Mario de Andrade, carino". Diz então Pettoruti:

A música emancipando-se dos motivos pitorescos ou descritivos, e até


da interpretação e do reflexo de paixões e estados de ânimo, foi-se
elevando até chegar na sinfonia, a com justiça chamada 'música pura',
porque desvinculou-se dos fins representativos que a escravizavam e
encaminha-se apenas para produzir beleza 'em si', e só utiliza e obedece
suas próprias leis: as do som e da harmonia. [...] Como ela e como a
arquitetura, que também se rege unicamente por suas leis íntimas e não
se propõe representação alguma, deve chegar a pintura a esse estado de
'pureza' em que se emancipe do objeto para produzir somente obras
carentes de significação anedótica, puramente plástica. [...] A isso
vamos. Entretanto, observe você que a nova pintura é a única que
realmente cria, isto é, produz beleza por meio de elementos que o
artista busca e apreende em seu próprio espírito.9

8. Declarações colhidas por Conrado Eggers-Lacour em "Pettoruti, primer pintor 'izquierdista'


argentino". "El País", Córdoba, 7 ago. 1926, (grifo meu).
9. Mário de Andrade disse em relação à música que "sendo a mais vaga e a menos intelectual de
todas as artes fatalmente teria uma evolução mais lenta. Os homens pouco livres ainda em relação

-33 -
Potências da imagem

Copiar a natureza equivale, sem dúvida, a copiar a Europa, o


tema que mais tarde desenvolverá MartÍnez Estrada em
"Radiografía de Ia pampa". Mas não só nos artigos que escreve nos
anos 30 para a revista "Compás", como também em suas idéias de
recém-chegado, Pettoruti não esconde que o importante é tornar-
se independente da subserviência e, para isto, a técnica pode ser
uma aliada:

De modo que, em síntese, temos desde o Renascimento até o


impressionismo, cópia ou, quando muito, interpretação: dali até as
novas tendências, transposição, translação; e daqui até quem sabe
quando, criação [...]. A nova pintura responde à sensibilidade da época
atual, em seu ara de velocidade, de síntese e de criação. É também
tecnicamente seu produto, desde que a grande multiplicação das cores,
operada pela ciência, deu uma riqueza enorme à palheta do pintor
contemporâneo e, com isso, uma grande liberdade a seu espírito.

Poder-se-ia pensar a preponderância estruturante da cor como


manifestação específica dessa mesma imaterialidade da arte moderna.
É a linha evolutiva que Thierry de Duve verifica em Duchamp ou
que podemos traçar em Benjamin, desde seus aforismos adolescentes,
que descrêem de uma teoria harmônica da cor (salvo na passagem da
linha ao volume, o que implica também o olhar histórico), até suas

à natureza tinham compreendido as artes praticamente como IMITAÇÃO. A música não imitava
de modo fàcilmente compreensivel a natureza. D'aí apezar do prazer todo sensual que distilava, da
preferencia em que era tida, de seu lugar preponderante e indispensavel nas funções de magia e
religião, o estar sempre esclarecida, tornada inteligivel pela palavra. [...] Libertada da palavra, em
parte pelo aparecimento da notação medida, em parte pelo desenvolvimento dos instrumentos
solistas, conseguiu enfun tornar-se MÚSICA PURA, ARTE, nada mais." (ANDRADE, 1925).

-34 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

considerações sobre a teoria da cor de Goethe, que o conduzem a


dissociar conhecimento e verdade, postulando que não existe
conhecimento verdadeiro, assim como nunca há verdade já conhecida.
A arte e a crítica surgiriam, assim, como fragmentos do saber para
uma hipótese de verdade, e isto, inequivocamente, mantém contato
com uma teoria da história e uma teoria da identidade, em que sempre
a totalidade aparece elusiva. A recepção expressionista de Pettoruti,
como o ilustra Sem Roem em 1923, soube destacar justamente esse
esforço pelo mais audaz da arte pura, ainda que se tratando de simples
prismas em afã construtivo: conceder plasticidade ao dinamismo das
linhas, não concluir, não totalizar. Essa idéia de um objeto in progress
aplicava-se não só ao objeto artístico imanente mas, em consequência,
à relação entre arte e sociedade. Assim, em outro artigo da época,
sobre "N eoclassicismo e nacionalismo", Pettoruti destaca uma linha
argumentativa de reinvenção da tradição, conciliando vanguarda e
nacionalismo, em posição também compartilhada com Mário de
Andrade:

Somente das novas tendências é de onde nós - como todos os demais


países novos, sem tradição plástica - devemos forçosamente dar a
partida. [ ...] As novas tendências são as únicas que se ajustam na
tradição, se por tradição entende-se o espírito e não a forma: o resto é
uma cópia fria, uma receita de tudo o realizado em outras épocas, por
outras civilizações: 'Em outra vida'. [...J As novas artes são as únicas
que nos deram 'algo vivo', delas sairá, sem dúvida alguma, a arte que
preencherá todas as nossas necessidades. [... J As manifestações
artísticas foram sempre 'um momento dado', 'uma idéia', e houve tantas
idéias quantas foram para os povos as maneiras de compreender o
amor, a religião, a moral. [...J As novas tendências, além da tradição
ocidental, assimilaram as orientais, as bárbaras, as negras, etc., isto é o

-35 -
Potências da imagem

que as fará mais universais. [...] Efeito de supercultura, tradições estas


últimas que muitas épocas ignoraram e que, por isso, a arte se reduzia
quase que exclusivamente a certas cidades. [...] Quem disse cubismo,
futurismo, expressionismo, o que poderia resumir-se em arte moderna,
disse arte nossa, quer dizer, intimidade, espiritualidade, cor, aspiração
até o infInito expresso com todos os meios que possuem as artes.

]\lIas nada disso faz-se sem museu: "Todos os grandes


inovadores estudaram nos museus. Negar o passado é negar-nos a
nós mesmos". Portanto, assim como Portinari pedia uma ação mais
contundente de intervenção do Estado na esfera pública 10 , Pettoruti
vai desenvolver, à frente do Museu Provincial de Bellas Artes - o
qual ele dirige entre 1930 e 1947 -, uma ação de abertura a essas
novas tradições, com o objetivo de dilatar o conceito de univer-
salismo. Uma delas é a exposição "Vinte artistas brasileiros",
inaugurada em agosto de 1945 na Pasaje Dardo Rocha de La Plata.
Além de muita obra em papel, ela traz um número expressivo de
telas ("Cidadezinha" de Tarsila, "Meninos de Brodowski" e
"Mulher chorando", de Portinari) as quais, junto a outras de Burle
Marx, Clóvis Graciano, José Pancetti, Helena Pereira da Silva ou
Santa Rosa, seriam mais tarde incorporadas a seu patrimônio pelo
Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires.

10. Nas páginas de uma revista fàscista brasileira, Portinari invoca as palavras de Stalin para
ilustrar que um artista como Dostoievski foi mais valioso para a revolução do qu~ o próprio Lenin,
com o que pretende demonstrar a necessidade da arte nos novos imaginários, populares e modernos.
A política de aquisição de obras para os museus apóia-se assim em dois exemplos, digamos,
surpreendentes, Mussolini e a Argentina. Ambos compram arte moderna para suas coleções
públicas. Um movimento de renovação nas Belas Artes. "Hierarquia", n. 5, Rio de Janeiro, mar/
abro 1932, p. 188-9. É nessa linha que Pettoruti escreve sobre os "Fines y organización de los
salones de arte", em "Sur" (set. 1935),

-36 -
Políticas da amizade e anamonose do moderno

Rebelo

Não eram poucos os contatos de Pettoruti com o Brasil. Tinha


exposto no Rio de Janeiro, em abril de 1929, poucos meses antes
que Tarsila do Amaral, a quem conheceu junto a seu marido, Oswald
de Andrade, e a outro casal, não menos irreverente, Eugênia e Alvaro
Moreyra. De Goeldi, João Ribeiro e Ronald de Carvalho, pintores,
críticos, escritores!!, conservou boas impressões. Confia, pois, a
organização da exposição de 1945 a um escritor que fez suas
primeiras armas na "Revista de Antropofagia", Marques Rebelol2 •

Entendia Pettoruti que, com esta mostra, era

11. Algumas destas opiniões estão recolhidas em suas memórias, "U n pintor ante el espejo" (Buenos
Aires, Hachette, 1968); outras, em compensação, encontram-se disseminadas na imprensa periódica
brasileira. É o caso da anotação pioneira de um dos colaboradores de "Martín Fierro", seu ilustrador,
o artista plástico Francisco Palomar (Fapa), que, instalado no Rio, divulga a obra de Pettoruti na
mesma revista que, pouco depois, se interessará pela obra de Le Corbusier (cf. PETTORUTI,
1928). Mas, provavelmente a partir da exposição de 45, retoma o interesse brasileiro por Pettoruti
como o demonstram os artigos de Oswaldo Alves (1945).
12. Contrariando sua tendência por nítidos contornos realistas, o debut de Rebelo entre os
antropófàgos se dá com um poema chamado "Matinal" ("Revista de Antropofagia", ano 1, n. 2,
São Paulo, jun. 1928):

Eu abri a janela
e respirei fundamente a frialdade

da manhã

Sob risadas de sinos,


a cidade bnncava de esconder
dentro da névoa.

Junto à indefinição penumbrista da neblina, envolvendo o clima já abstraído de "a cidade" e não
do Rio de Janeiro ou outra qualquer, a energia de praticar uma inauguração e instalar uma
moldura na nova sensibilidade impõe o talho da iluminação, isolada visualmente no meio do

-37 -
Potências da imagem

[...] propósito da Direção contribuir para fazer efetivo o conhecimento


das inquietudes artísticas do Norte, Centro e Sul de nosso Continente
e a esta louvável iniciativa vai o nosso apoio, por entender que ela
encarna uma necessidade de índole cultural muito sentida, como é a de
procurarmos uma confrontação real, de espírito a espírito, com os
artistas plásticos da América. [...] Correspondeu ao Brasil inaugurar
este promissório ciclo de exposições de conjunto que há de dar-nos um
panorama total da arte americana contemporânea. Com efeito, a que
hoje apresenta nosso Museu permitirá apreciar globalmente o
movimento plástico de nossos irmãos brasileiros. Está integrada por
vinte artistas, quase em sua totalidade jovens nascidos no que vai do
século e admiravelmente inspirados. Eles representam o mais vivo,
novo, audaz e esperançoso da arte do Brasil. [...] De forma isolada
eram-nos conhecidos alguns pintores por terem mostrado suas telas
em exposições individuais ou em uma ou outra exposição coletiva,
porém nunca se nos deu a oportunidade de apreciar uma exposição em
conjunto orgânico e harmônico como a que hoje se oferece ao público.

Com isso, Pettoruti perseguia integração supra-regional, bem


como efetiva formação de acervo, e até poderíamos supor, com
Kermode, que essa reavaliação do implícito (tradições nacionais
dissociadas) busca, em última análise, não só abolir o passado, mas
oferecer visões sinópticas e integradoras, capazes de elaborar pré-
histórias do futurol3. Mas é claro que nem os dezessete quadros

poema como o hiato fundador "da manhã". Boa parte do debate sobre o materialismo dramático da
modernidade estende-se entre esses dois polos, o decadente (o nevoeiro) e o incipiente (a manhã).
Basta recordar o fragmento inicial de Ecce Romo nietzscheano com sua tensão entre forças ativas
e reativas.
13. Em "Modernism, PostmodernÍsm, and Explanation", Frank Kermode argumenta que "it is
surely in this sense - the revaluation of the illexplicit, the rejectioll by one means or allother, of the
cause-haullted past - that we understand the foulldation of the modern, though we have to add that
here, as elsewhere, programs to abolish the past are usually accompanied by llewly created views

-38 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

incorporados ao Museu, nem muito menos a exposição mesma,


deixam de suscitar leituras dissidentes. A mais ácida talvez seja a
que aparece em "Latitud", revista liberal-comunista de Buenos Aires,
em uma nota de Antonio Berni (1905-1981), assinada somente com
suas iniciais, A. B., na qual o pintor rosarino lamenta ausências e
insinua o fantasma de toda vanguarda, sua institucionalização oficial:

Separando-nos, momentaneamente, dos valores indiscutíveis das obras


expostas, ainda que faltando nomes, entre eles o do grande Segall, não
compreendemos como se faz participar aos artistas brasileiros em uma
ação oposta e contrária à atitude que atualmente tomou o mais destacado
da intelectualidade democrática argentina, atitude que coincide em
um todo com as resoluções do Primeiro Congresso de Escritores
Brasileiros de São Paulo. Os artistas brasileiros aparecem aqui
rompendo a necessária unidade que deve ter o movimento democrático
intelectual latino-americano. Não duvidamos que Portinari, Tarsila,
Cavalcanti e todos os demais artistas brasileiros ignoram a que fins
divisionistas fazem servir seus nomes com a exposição de La Plata. Faz
pouco mais de um mês um grupo de intelectuais argentinos negou-se a
dar conferências no Museu Provincial de Belas Artes de La Plata em
solidariedade com o movimento em favor da normalidade democrática
do país. Com esta exposição faz-se suspeitar, aos desavisados, que os
artistas democráticos brasileiros não têm interesse na solidariedade
com os artistas democráticos argentinos, coisa que não podem imaginar
nem remotamente aqueles que conheçam algo dos altos valorés pessoais
e artísticos dos pintores cujas obras estão expostas oficialmente pelas
autoridades da província de Buenos Aires.H

of it - less continuous ones perhaps, more scattered, more open to synoptic viewing, yet offered as
valid pasts ali the same" (BARKAN; BUSH, 1985, p. 370).
14. A. B. (pseud. Antonio Berni). "Veinte artistas brasileííos". Latitud, Buenos Aires, set. 1945.
Encontrando-se em 1'vlendoza,Rebelo responde a Berni atravéé de uma carta aberta publicada por
"La Palabla" (24 set. 19+5), "Esclarecin~ento sobre um comentário de 'Vinte artistas brasileiros"';

·39·
Potências da imagem

Para além das restrições individuais, estas questões estão


afetadas pelos critérios de periodização do moderno. Com efeito,
no catálogo da exibição portenha de «Vinte artistas brasileiros"

"A exposição 'Vinte artistas brasileiros' não é particular; veio sob os auspícios do Ministério da
Educação e do Serviço de Cooperação Intelectual do Ministério de Relações Exteriores do Brasil,
obedecendo, portanto, a disposições constantes de tratados culturais entre a Argentina e o Brasil.
Responde ao convite formulado em julho de 194+pela Direção Geral de Bellas Artes da Província
de Buenos Aires, o primeiro convite que se fuzia aos artistas modernos brasileiros para expor na
Argentina, no Museu de Bellas Artes de La Plata, cujo diretor, senhor Emilio Pettoruti, incluiu
entre os atos oficiais do ano de 1945, o início de uma série de exposições de artistas do continente,
com o democrático propósito de 'aproximar por todos os meios os espíritos dos homens representativos
dos povos, e nada melhor do que um intercâmbio de obras de arte para servir-nos em nosso
objetivo'. Não é esta exposição um panorama completo da arte moderna brasileira, mas é um
conjunto, como seu título o indica, de vinte valores destacados. Diversos obstáculos - por desgraça
sempre se apresentam em iniciativas desta natureza - impediram ao organizador trazer outros
valores destacados; por exemplo: Cícero Dias, que se encontrava em algum lugar da França em
guerra; Carlos Scliar, soldado das forças expedicionárias, que lutavam na Itália; e quanto ao senhor
Segall, de futo o visitei em São Paulo, quatro meses antes do último prazo para a saída da exposição
e, oportunamente, poderá ser conhecida a cópia fotostática da carta do pintor, na qual, com sua
habitual atenção, me informa e lamenta que razões técnicas impossibilitem sua participação. No
entanto, esses e outros valiosos artistas não foram esquecidos no livro que, sobre a pintura moderna
do Brasil, será lançado em breve pela 'Editorial Poseidón' desta Capital, com um estudo do
conceituado crítico e professor, Dr. Jorge Romero Brest. Os valores apresentados são vivos e
combativos. Todos se sentem orgulhosos em terem suas obras expostas a seus colegas argentinos,
uruguaios e chilenos, conhecendo a necessidade dessa aproximação urgente, artística, antes de
tudo, pois ninguém ignora que os artistas latino-americanos se desconhecem quase por completo.
E é para este preliminar conhecimento que se pode organizar um efetivo e lógico entendimento,
baseado no justo valor artístico, político e moral de. cada um. Referente às convicções íntimas do
subscrito - sem as quais não lhe haveriam entregue as obras os artistas mais absolutamente
vanguardistas de seu país em todos os sentidos - são por demais conhecidas através da mensagem
conferida pela Associação Brasileira de Escritores para a Sociedade Argentina de Escritores e lido
em reunião especial de amistosa confraternização, mensagem que foi comentada na imprensa
portenha. Finalmente, em relação aos citados Princípios proclamados pelo Congresso de Escritores
Brasileiros, em São Paulo, princípios que a revista 'Latitud' reproduz em forma destacada cinco
meses depois de sua publicação nos jornais brasileiros, cabe dizer que o subscrito foi eleito
delegado do Distrito Federal a esse Congresso. N ele foi, além disso, eleito secretário da importante
Comissão de Direitos do Autor e assinou os Princípios Políticos do Congresso em um dos momentos
mais dificeis da vida pública brasileira, quando exercia, como ainda exerce, um cargo de comissão
no Ministério da Educação, o qual depende diretamente da Presidência da República."

-40 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

(Museu Nacional de Belas Artes, Palais de Glace, 25 de agosto de


1945), Marques Rebelo escande o modernismo brasileiro em dois
momentos, 1922 e 1930, quer dizer, em duas ações, o mostrar e o
resgatar, a Semana de Arte Moderna em São Paulo e o retorno de
Portinari ao Brasil:

o ambiente artístico brasileiro era difícil, e ser artista no Brasil era


uma forma de heroísmo, pois faltavam todos os elementos
indispensáveis à formação do conhecimento e do bom gosto. [...] Não
tínhamos senão deploráveis imitações de escolas de belas-artes e de
museus; não tínhamos galerias de exposições nem coleções particulares
que estimulassem pelo contato e divulgação das obras, o interesse pelas
artes. E como tampouco possuíamos publicações especializadas, nos
faltava orientação crítica. [...] Em tal ambiente, o esforço teve que ser
sempre individual, o que deu lugar a um auto-didatismo coletivo, fonte
da ignorância de problemas fundamentais das artes e de seu conteúdo
estético. [...] A arte moderna, que surgiu no Brasil em 1922, pelo
esforço de escritores, trouxe um novo ambiente para as artes, traçando-
lhes também um caminho seguro. [...] Reuniu o movimento uma
minoria interessada e sensível em torno de problemas plásticos comuns
e ligada ao sentido geral da arte. Estes escritores, músicos, arquitetos,
e artistas se aproximaram. Aportou assim o modernismo, pela primeira
vez na história da arte do Brasil, numa grande inquietude, a percepção
da necessidade de pesquisas e uma ligação mais íntima entre o artista e
o povo, o que equivale a dizer que foram os modernistas que
descobriram, artisticamente, sua terra. [...] A volta de Portinari da
Europa, em 1930, é o acontecimento que determina um impulso jamais
experimentado pela arte brasileira. Exercendo de imediato uma enorme
influência nos jovens, combatido violentamente pelo academicismo e
pela ignorância indígena, vence as dificuldades em exposições
sucessivas, afronta a mediocridade e o conservadorismo, respondendo
com o trabalho a todas as manifestações gratuitas da opinião. [ ...]
Portinari exemplifica a dignidade do trabalho artístico. Funda na

-4] -
Potências da imagem

Universidade do Distrito Federal uma oficina à maneua do


'Quatrocentos', e, seis meses mais tarde, apresenta ao Brasil um
numeroso grupo de jovens pintores formados dentro dos mais sólidos
princípios.

Em resposta implícita às restrições de Berni, Rebelo opta pela


versão paranóica, tipicamente vanguardista.

Apesar de tal êxito, não calaram as vozes contrárias. O momento


mundial era o do nazismo. Também no Brasil repercutiu o grito de
'Arte degenerada'. Todos os artistas modernos foram condenados. A
escola de Portinari foi fechada. Os Estados Unidos o receberam em
uma consagração continental. Como consequência do estado de coisas,
as novas vocações foram sufocadas. E os artistas já feitos, se refugiaram
no mundo das formas abstratas. [...J Felizmente um novo vento soprou
sobre a face do mundo. E voltaram os artistas brasileiros ao encontro
das fontes de uma verdade plástica, que é ao que aspiram todos os
artistas do mundo. [...J A exposição que agora apresentamos ao Povo
Argentino (sic), é uma seleção representativa das tendências da arte no
Brasil. Seu conjunto revela as preocupações dominantes do campo
plástico, fruto de um esforço cujo mérito é tratar de alcançar as grandes
formas da arte universal. O que pode ter de incompleta esta mostra é
resultante da dificuldade de comunicação em que vive o artista
brasileiro; nela, no entanto, deve sentir-se a mensagem espiritual que
quer ligar aos artistas argentinos e brasileiros15 (REBELO, 1945).

Como argumenta Derrida em nossa epígrafe de "Políticas da


amizade", o espaço e o tempo virtuais do possível aspiram à presença

15. Algumas das peças foram cedidas por colecionadores brasileiros, entre eles o escritor Francisco
Inácio Peixoto, do grupo de Cataguases, o crítico Queiroz Lima, editor da revista "Espírito Novo"
do Rio, a atriz Tania Carrero e o próprio Candido Portinari.

-42 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

e força do desejo, "a mensagem espiritual", porém a mesma presença


desse processo basta, não para impugná-Io) senão para torná-Io
possível, fazendo-o virtual, de uma virtualidade tão absoluta que se
converte, por isso mesmo, em impossível, ainda em sua presumível
realidade. É assim que podemos reunir Rebelo e Berni em uma
peculiar e cifrada política da amizade que os transcende a ambos.

A mensagem espiritual ou as verdades do simulacro

A estrela sobe e o romancista desce.


Oswald de Andrade

Em 1939 Rebelo publica um romance, "A estrela sobe", a


história de uma moça, Leniza Máier, cantora de rádio, predestinada
desde a infância a uma vida de infortúnios e sacrifícios para manter
a casa. Recusa a proposta de casamento de Asterio e, atraída pela
vida que lhe mostram as revistas de espetáculos, "Jornal das
Modinhas", "Álbum do Seresteiro", "Lira do Povo", consegue,
finalmente, ser "artista de rádio", na Metrópolis, claro que passando
antes pela gar§onniere de Mário Alves, um décimo andar no
Flamengo "montado com um luxo notoriamente rastaqüera", e
sendo a protegée de Dulce, uma cantora com experiência. Abatida
pela falta de contrato, a farsa dos empresários das pequenas emissoras
suburbanas e o abandono de sua mãe, Leniza precipita-se em solidão
e anonimato de extraviada. Desaparece. A não ser para o narrador,
que não a abandona: perde-a. No desenlace dessa ficção de lágrimas,
pergunta-se: "Que será dela, no inevitável balanço da vida, se não

-43 -
Potências da imagem

descer do céu uma luz que ilumine o outro lado das suas vidas?"
Quem responde à pergunta do narrado r não é nenhum leitor
brasileiro mas o pintor Antonio Berni, que multiplica as vidas
possíveis de Leniza Máier, em seu quadro de 1945, "Orquestra
típica". À direita da cena, meio marginal, quase caindo do cenário,
em traje amarelo, que se recorta sobressaindo em meio à estudada
correção da orquestra de tango, a cantora, a estrela que sobe. Mas
esta possível anamorfose, que reúne na ficção as criaturas que se
opõem na vida pública, abisma-se, insaciável, na fronteira
aparentemente intransponível da história. Ela mesma cede, perante
os poderes da ficção, e materializa uma nova estrela ascendente,
que faz da mensagem espiritual a razão de sua vida:

Minha vocação artística me fez conhecer outras paisagens: deixei de


ver as injustiças vulgares de todos os dias e comecei a vislumbrar
primeiro e a conhecer depois as grandes injustiças; e não só as vi na
ficção que representava como também na realidade de minha nova
vida. [... J Queria não ver, não me dar conta, não olhar a desgraça, o
infortúnio, a miséria; porém quanto mais eu queria esquecer-me, mais
era rodeada de injustiça (PERON, 1951, p. 22).

Mas se Rebelo impõe o filtro dos sentimentos onde Berni


julga colocar o corte das sensações, o Estado não hesitará em
magnificar a épica da mensagem até reduzi-Ia a nada.

[ ... J o mandatário, com graves problemas por resolver, precisava de


uma pessoa de toda sua confiança que soubesse e apreciasse devidamente
o que são a dor e a necessidade; que chegasse com abnegação até as
sórdidas moradias do subúrbio para escutar queixas] resolver
necessidades, diminuir angústias, colocar esperanças nos corações

-44 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

hirtos, trabalhar por uma vida melhor para a classe humilde. Quem
poderia reunir qualidades de compaixão, generosidade, dedicação
infatigável, amor pelo desvalido e serenidade espiritual para preencher
este vazio? Só havia uma pessoa, uma só (DIEZ GOMES, 1945).

Leniza Máier, a cantora de amarelo, e Eva Perón: vários fios,


a mesma trama. Do lado de Berni, um processo social e nele a
emergência de novas formas simbólicas que são, alternativamente,
forças ativas e reativas; uma personagem, sob todas as luzes, dúplice,
marginal e central, relativamente autônoma mas representativa de
valores que excedem sua individualidade; uma avaliação,por último,
ilustrada, racional, desse processo histórico. Do lado de Leniza ou
Eva, situações específicas em que o social impõe-se a partir do
doméstico e se exerce através de uma fatalidade inexorável, deixando
o indivíduo inerte e isolado frente ao antagonismo do mal. Não há
drama, mas tragicidade; não há agonia, mas sofrimento, desilusão
ou frustração; não há pedagogia mas espetáculo.
É tempo de dar a esta cantora de amarelo mais um de seus
nomes: Martínez Estrada. O presidente da Sociedade Argentina
de Escritores, aproveitando a estadia de Rebelo em Buenos Aires,
recebe-o na SADE para homenageá-Io e, através dele, exaltar, o
debate intelectual provocado pelo congresso paulista desse ano.
Conforme anota "La Prensa" (10 de maio de 1945), "esse gesto dos
escritores brasileiros constituía o início de uma política de
solidariedade americana na qual os escritores, por cima de seus
interesses particulares, procuravam defender os princípios de
liberdade e de compreensão mútuas, sem os quais não é possível
nenhuma cultura". Rebelo, segundo o cronista de "La N ación",

45-
Potências da imagem

não deixou, no entanto, de assinalar os obstáculos enfrentados "antes


de organizar-se em defesa de seus interesses gremiais e de liberdade
de expressão, e como o congresso nacional celebrado há alguns
meses em São Paulo assinalou um acontecimento auspicioso, não
só nos anais da literatura do Brasil, como também no
desenvolvimento civil de sua pátria."
Como interpretar o convite de Martínez Estrada a um escritor
como Marques Rebelo que, por sua adesão à democratização
simbólica sem radicalismo ideológico, poderíamos qualificar de
"peronista" r Mais além de seus temas da decadência e predições,
que se reúnem em comuns interesses nietzscheanos, reinterpretados '
por Ortega y Gasset, Waldo Frank, Keyserling, Simmel, Freud e
Spengler16, vai-se desenhando por esses anos uma condição
excêntrica, autenticamente vanguardista, que sai do campo do
artístico para regressar ao abertamente cultural e político. David
Viiías, testemunha deste processo, avalia-o corretamente. Martínez
Estrada é o Lugones dos anos 50. Mas não o é tanto pelo
barroquismo ou pela palavra excêntrica, nem mesmo pela decoração
wagneriana, a partir da qual dirige, como um dos "raros", como
diria Dario, a pantomima cósmica de um espaço espectral. Martínez
Estrada, à margem, como a cantora de amarelo, passa a ser a vedete
de um espetáculo condenado pelo arco ideológico amplíssimo:

16. A filosofia de Nietzsche não tem maior cotização no mercado dos valores da filosofia acadêmica
e doutoral pela mesma razão que o pathos musical da vida, inspirado por Dionísio, perdeu sentido
e poder em nossas almas e em nossas construções ciclópicas de um saber de alvenaria (MARTÍNEZ
ESTRADA, 1950, p. 192-4).

-46 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

Hernández Arregui em seu "Imperialismo e cultura" e Arturo Jauretche


em "Os profetas do ódio" o atacaram; um com pretensões teóricas,
Jauretche em um estilo mais insolente e agressivo. Dessa maneira se
corrobora que Martínez Estrada estava no centro da dramática cultural
desse momento e tudo se definia por seu pró ou seu contra. Porém, mais
que insultos ou exaltações, essas séries desenhavam um espectro de
autodefinições: se o liberalismo cauteloso e de centro de César Fernández
Moreno ou o impregnado de incrustações historicistas de José Luis
Romero o reconheciam, o esquerdismo militante de Pedro Orgambide
o recuperava de uma maneira tal que o condicionou a obstinar-se em seu
resgate em vários trabalhos posteriores. Enquanto as lealdades e o
discipulado quase imperturbável corria por conta de Murena - seu
máximo propagador -, de Rudolfo Kush, de Francisco Solero e de Julio
Mafud. [...] São os anos, disse, que vão de 1955 a 1960; o que no itinerário
de Martínez Estrada implica o deslizamento desde as perspectivas
simbólicas de Victoria Ocampo até as de Barletta; mas sobretudo, o
deslocamento desde o eixo representado por Perón em direção ao de
Fidel Castro. Poderia-se dizer, por conseguinte, que Martínez Estrada
passou-se da Argentina para a América Latina, mas também 'de Florida
para Boedo' em função dos dois apoios de uma nomenclatura tradicional.
Sobretudo se recordo aqui não mais a polêmica isolada com Borges
(onde o autor de Aleph, por seu lado, acusava Martínez Estrada de fazer
'o elogio indireto a Perón'), mas a denúncia de Martínez Estrada, logo
que houve a tentativa de invasão norte-americana à Baia de Cochinos, na
qual declarava-se explicitamente contra o grupo representado por Borges,
Mallea, Bioy Casares e Mujica Láinez que tinham aplaudido a política
seguida por Kennedy.

Por isso, recorrendo, mais uma vez ao raciocínio de Vifías,


caberia perguntar-se

[...] se Martínez Estrada, que de sua maneira buscou sempre a verdade


e várias vezes teve que optar pela incerteza, realmente não esteve fàra de

-47-
Potências da imagem

lugar. Ou, melhor ainda: se o intelectual que desde a ponta extrema do


inconformismo desloca-se cada vez mais para a esquerda (entendida
esta nomenclatura como o lugar da crítica permanente que não admite
que a cultura seja um resultado da repressão porém da utopia), não
está, no concreto e quotidi~no, sempre fora de lugar?l? (VINAS, 1991,
p. 412-423).

Montevidéu

Mas voltemos à exposição. Depois de La Plata, depois de


Buenos Aires e depois de fazer peregrinação em dezessete museus
pelas províncias, sempre acompanhada pelo inseparável Marques
Rebelo, "Vinte artistas brasileiros" chega a Montevidéu. É
amparada pelo prestígio de seu mentor, Pettoruti, a quem Torres
Garcia, pouco antes, dedicara palavras definitivas que vale a pena
resgatar por assinalarem uma linha de força já insinuada antes: a
construção de um espaço simbólico e a importância da cor como
mecanismo utilizado para alcançá-Io. E, acima de tudo, apontam a
mesma alegoria já examinada: "a estrela sobe".

17. Desse esforço interpretativo supranacional derivam as "Diferencias y semejanzas entre 10s
países de América Latina" (Caracas: Ayacucho, 1990) e, ainda, a '~nálisis funcional de Ia
cultura" (México: Diógenes, 1971).

-48 -
Emílio Pettoruti - Livro em hranco
(1946-1947)

Antonio Berni - Orquestra típica


(Museu Nacional de Belas Artes - Buenos Aires)
Cândido Portinari - Mulher
chorando (Museu Nacional de
Belas Artes - Buenos Aires)

Iberê Camargo - Negra sentada


(Museu de Belas Artes - La Plata)
Santa Rosa - Ponta seca
(Museu Nacional de Belas
Artes - La Plata)

Alcides Rocha Miranda -


Auto-retrato (1940)
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Percy L au - .. (M useu de B e 1as Artes - La Plata)
en eira

José Alv
(Museu Na'clOnalesdePedrosa - E h-oçoL a Plata)
e as Artes
BIs
Carlos Leão - Mulheres (Museu de Belas Artes - La Plata)

Clóvis Graciano - Desenho (1944)


Burle Marx - Mulheres
(Museu Nacional de Belas Artes - Buenos Aires)

Ruben Cossa - Flores (1942)


(Museu de Arte de Santa Catarina - Florianópolis)
Di Cavalcanti - Pão Nosso

Di Cavalcanti - Carnaval
Alberto da Veiga Guignard - Uma família na praça
(Museu de Belas Artes - Montevidéu)

Alberto da Veiga Guignard - Paquetá


(Museu de Belas Artes - La Plata)
loséPancetti - Menina
(Museu de Belas Artes - Montevidéu)

José Pancetti - O atelier do artista


Potências da imagem

Nosso hóspede neste momento, queremos ocupar-nos, ainda que


brevemente, do eminente pintor argentino. [...] Já faz muitos anos - talvez
quinze, pelo menos -, não sei se em revistas de arte americanas ou européias,
vi pela primeira vez reproduções de obras de Pettoruti. Fiquei
agradavelmente surpreso de ver que, por fim e em nosso Continente,
aparecia uma nova estrela ou flor no céu ou no campo da arte, anúncio de
uma aurora para a nova arte. Sim; por fim já era um que tinha vencido. [...]
Desde aquele momento fui seguindo, e à medida que o acaso me trazia
novas notícias, a obra do pintor. Completei, com isso, minha primeira
impressão. E então pude definir melhor sua personalidade. Não se tratava
de um ensaio, mas de obra madura de quem, tomando um caminho, o·
persegue com tenacidade até alcançar a perfeição de um mestre. Era, a sua,
posição definitiva. [...] Por reportagens pude ilustrar-me de que tinha feito
seu aprendizado na Europa, sobretudo na Itália, onde viveu, segundo creio,
desde 1914, até a data em que decidiu reintegrar-se a sua pátria, ou seja, em
1924. [...] Ora, se se tem em conta estas datas, logo poderá ver-se que,
estando no auge, nesse momento, futurismo e cubismo, a um jovem artista
tinham que interessar-lhe sobremaneira essas novas tendências artísticas,
principalmente porque representavam a volta a uma verdade concreta: não
a real visual, mas a formal, a do espírito. E aqui devemos destacar seu
acerto, já que, em vez de seguir o pós-impressionismo, se MOU a uma
escola construtiva. Eu, particularmente, tenho que felicitar-lhe por isso.
[...] Porém há mais: não teve nem a timidez de outros em aventurar-se pela
nova rota, que sinalizava para a verdadeira plástica, nem temor tampouco
das batalhas a travar em seu país, quando voltasse. E pode-se dizer, que ele
sozinho, no momento, deu este exemplo, sem querer esquecer que somente
outro competiu com ele, e não sei se um pouco mais tarde e, aqui no
Uruguai, que foi Rafael Barradas. De qualquer maneira, a posição de
Pettoruti notadamente cubista, ainda que de um cubismo a seu próprio
modo, pessoal por isso, destaca-se nítida e isoladamente por muito espaço
de tempo. [...] A confluência de várias tendências daquele momento
possivelmente lhe deram apoio para descobrir sua personalidade: futurismo
e cubismo, dissemos, mas também o purismo de Ozenfant e Jeanneret. É
arriscado dizer isto, tratando-se da arte de Pettoruti? Neste caso, há de se
pensar em uma feliz coincidência. [...] Pettoruti é frio, frio como o purismo,
mas perfeito como ele. É uma aspiração, sem dúvida, muito pessoal. E por

-58 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

que não seria ele escultor, como Lipchitz e Laurens? Ao contemplar os


bem talhados personagens de seus quadros, pensamos nisso. Menos quente
ainda que J uan Gris, geométrico sempre, a gama de cinzas de suas pinturas
cedem sempre o privilégio à forma. Jamais surpreenderemos nele um
ímpeto que não seja contido pela regra a que se impôs, nem uma pincelada
que altere a superncie unida de seus planos bem modelados. É sempre
impecável. O entalhe no mármore ou na pedra, o que nos daria? [...] Mas
voltemos ao tema: ele é o primeiro que aqui, na América do Sul, introduz
a nova plástica. Que lutas teve que encarar, que influência teve o persistente
trabalho de sua obra, e também sua exortação constante para que se
considerasse a nova estética? No momento temos que constatar que, e
aparte da luta, conseguiu impor-se. Dão testemunho disso seus muitos
quadros nos museus e coleções particulares. E, por outro lado, senão em
um sentido construtivo, é inquestionável que sua influência é manifesta em
tantos quantos despertou-se o espírito moderno. Isto quer dizer que ele
fixou uma meta que os outros ainda não puderam alcançar. Porque não
basta um simples decorativismo plástico, como às vezes se produz em
sentido moderno: tem que haver uma estrutura mais apertada, relações
bem evidentes e condizentes entre os planos. Pois isto é o moderno. E esta
é a lição aprendida por Pettoruti na Europa, e que tantos outros daqui, que
lá estiveram, não souberam aproveitar. E isto terá que valer tanto quanto
sua obra mesma. [...] Ao visitar apressadamente a exposição de suas obras
aqui em Montevidéu, tínhamos contraída dívida para com ele, de ocupar-
nos dela. Mas assim não o quis, no momento, nossa muita ocupação, e
agora pretendemos saldá-Ia com estas ligeiras considerações que fazemos.
[...] Quer dizer, fixar sua convicção na nova plástica, sua força em sustentar a
luta, sua persistência, e a prioridade que sempre haverá de corresponder-lhe.
E o que tudo isso supõe, pensando que tal coisa começou dez ou quinze anos
atrás, tempo em que as novas tendências da arte, e em nosso meio do Prata,
eram absolutamente desconhecidasl8 (TORRES GARCÍA, 1940, p. 12).

18. Alguns anos mais tarde, o crítico argentino Julio E. Payró discursaria na Universidade de
Montevidéu sobre o pintor p1atino (cf HEI Pais", Montevidéu, 10 out. 1948). Agradeço a PabIo
Rocca a gentil transcrição do esboço biográfico de Torres García.

·59 -
Potências da imagem

A exposição montevideana de Pettoruti-Rebelo foi exibida


na passarela subterrânea da rua 18 de Julio com Agraciada, a partir
do dia 5 de outubro de 1945. Na inauguração discursou Remolo
Botto, representando a Comissão Municipal de Cultura, presidida
na ocasião por Orestes Baroffio e José Maria Femández Saldanha.
Destacou, de modo costumeiro, que

Estes óleos, gravuras e desenhos de artistas modernos contém em suas


cores e perfis uma temática infinita, porque ali está a beleza, a filosofia
de um tempo, a vontade de criar, o pensamento que evade da forma e os
sonhos suaves ou revolucionários dos homens que servem às exigências
inquietas e externas da arte. Que cumprem também uma missão
solidária, social, porque concedem o benefício indeclinável da graça,
da estética que acaricia o sentimento, da angústia que aproxima aos
fortes e os débeis para buscar um remanso no caminho abrupto. [...] E
assim, entre lampejos de rebeldia e motivações otimistas, passando
pela gama nutrida de muitos sentimentos incoercíveis, a arte faz sua
obra, não para uns poucos, mas para o povo. Porque a cultura se integra
com arte e com ciência, com fé e vontade. Essa é a razão destes esforços
que definem e permitem uma mostra artística de tão alta sugestão.19

Porém, além deste testemunho cauteloso e oficial, temos o do


próprio Rebelo, que ao retomar ao Rio de Janeiro, confessa o
entusiasmo suscitado pela exposição em Montevidéu:

No Uruguai [...] encontrei o mesmo ambiente de simpatia para com a


arte do Brasil. Organizei uma exposição em Montevidéu,
simultaneamente com a publicação de novo Catálogo. Inaugurada sob

,
19. "Se inaugurá Ia exposicián 'Veinte artistas brasileiíos' en el subte". El Día, Montevidéu, 6
out.194S.

-60 -
Políticas da amizade e anamonose do moderno

o patrocínio da Intendência municipal e do Instituto de Cultura


Uruguaio-Brasileiro, a exposição despertou um interesse não inferior
ao verificado na Argentina. Entretanto, o público em geral- é preciso
confessá-Io - conhece mal nossa arte. [... ] Mas o resultado da
exposição no Uruguai não se limitou à curiosidade do público,
curiosidade que, afinal, poderia ser passageira. Para realizar alguma
coisa mais durável consegui que 16 trabalhos de nossos pintores fossem
adquiridos pelos uruguaios. É o primeiro passo para a expansão da
nossa pintura na República Oriental. [...] Em Montevidéu, como se
vê [...] tudo correu à maravilha. E as circunstâncias me favoreceram
ainda em outro terreno. À última hora me veio a idéia de exibir no
salão da exposição os livros brasileiros existentes na Biblioteca do
Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileira. Ali havia também fotografias
da arquitetura brasileira, da arquitetura moderna e do nosso passado
colonial. Pois bem: organizei um mostruário de todo esse material, ao
lado da exposição de pintura. Assim o conjunto tornou-se mais
atraente.20

É assim, pois, que no mesmo local de exposições da Comissão


Municipal de Cultura, Marques Rebelo fez uma conferência sobre
o movimento artístico brasileiro em 11 de outubro. Mais tarde, no
dia 15, nos salões do Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro, faz
outra sobre Manuel Antonio de Almeida, escritor romântico a quem
sempre se filiou por sua representação da vida urbana na corte e
que ele mesmo biografara, a pedido do Instituto Nacional do Livro,
diga-se, de Augusto Meyer, em 1943, tudo o que, por sinal, inscreve-

20. "Realizou-se na Argentina pela primeira vez uma exposição de pintura moderna brasileira".
"O J orna!". Rio de Janeiro, 16jan.1946. A entrevista foi concedida a Brito Broca, crítico refinado,
autor de 'Y\.vida literária no Brasil - 1900".

·61 -
Potências da imagem

se em uma linha "machadiana", não modernista ou não radical,


amparada pelas comemorações centenárias do autor de "Dom
Casmurro" em 1939.
É inquestionável que todos estes gestos, implicados no
processo mais vasto de institucionalização da vanguarda, estão
altamente politizados. O jornal liberal "O Estado de São Paulo",
empenhado na desmontagem das estruturas centralizadas do
estadonovismo, não perde a oportunidade de assinalar o paradoxo
de que, enquanto a plástica nacional é recebida calorosamente no
Prata, "a maioria dos nossos órgãos oficiais de artes se obstine em
ignorar a pintura moderna brasileira" e, ironicamente, o cronista
Ciro Mendes adianta uma auspiciosa notícia:

[...] a da próxima publicação pela importante editora Poseidón de um


álbum da pintura brasileira, contendo seis reproduções coloridas e
mais de sessenta em branco e preto. As nossas grandes casas editoras,
tímidas e timoratas, persistem em não enxergar esse ftlão precioso que
é a edição de obras de arte. O exemplo e o estímulo terão de vir de fora.
E vamos comprar e ver pintura brasileira editada na Argentina
(MENDES, 1945).

Essa edição devia-se ao interesse especial do crítico de arte


argentino Jorge Romero Brest, mas deixemos essa questão para mais
adiante. Digamos, por enquanto, que um dos professores do
Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro, o dramaturgo carioca
Modesto de Abreu (1901-) destaca em "El Debate" a relevância
da iniciativa de Rebelo. Escreve:

-62 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

o sopro renovador que vem se fazendo sentir, neste segundo quarto de


século, principalmente na poesia e nas artes plásticas, determinou no
Brasil uma apreciável e decisiva contribuição. [00.] Quando se fala do
modernismo no Brasil, tem-se que distinguir entre os valores reais,
que se contam por alguns nomes dignos dos melhores em meios
europeus, e uma imensa legião de nulidades que se apropriaram das
facilidade aparentes das novas técnicas, para compor os mais flagrantes
atentados à estética, sob o revestimento da modernidade. [00.] Assim
como se opõe, na pintura, ante os grandes nomes da face acadêmica,
entre outros Pedro Américo e Vítor Meireles, Lucilo de Albuquerque
e Baptista da Costa, um número infInito de copistas sem personalidade,
não se pode deixar de convir que em torno de fIguras de primeiro
plano, como um Portinari eum Di Cavalcanti, à parte um punhado de
valores de categoria, pulula um formigueiro confuso de pobres
imitadores, que se fIzeram modernistas porque não tinham aquela
vocação para a arte que só se alcança pelo estudo e pelo esforço. [00.]

Escolher neste meio um conjunto de individualidades realmente


representativas e dignas do nome de artistas, é uma tarefa de imensa
difIculdade, no Brasil, como em qualquer outro país, em que o problema
apresente-se de modo igual. [...] Precisamente essa difIculdade soube
superá-Ia o escritor Marques Rebelo com grande inteligência e sentido
estético, ao selecionar vinte, entre os atuais pintores do Brasil, que
melhor fIgurem, fazendo justiça ao título de representantes de nossa
cultura artística dentro do movimento modernista. [00.] Marques
Rebelo é um dos guias deste movimento, na prosa, de nossa literatura,
como no verso o é Manuel Bandeira, como o foi, na prosa e no verso,
Mário de Andrade, recentemente desaparecido. O 'conteur' de Oscarina
esse, sobretudo, um grande animador, um espírito dinâmico, crítico da
arte e irmão de boêmia de tudo quanto é artista ou intelectual moderno
no Brasil. DifIcilmente, pois, se encontraria outro que pudesse, em
poucos dias, orientar e organizar uma exposição como a que agora se
realiza, sob os auspícios da Municipalidade de Montevidéu e com a
cooperação do Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro. [...] Ao falar
de pintura moderna brasileira, o primeiro nome que nos acode é o de

-63 -
Potências da imagem

Candido Portinari, cujas telas, hoje, na América do Norte, estão valendo


fortunas e a cujo respeito se editou em Chicago uma obra notável em
inglês, de documentação e exegese crítica. Seu quadro mais famoso,
'Café', tem algo de tridimensional que impressiona pelo poder de
objetivação e por uma especial ilusão de alto-relevo que, conforme às
perspectivas do observador, sugere projeções de sombras das figuras
sobre o fundo. Nenhum quadro brasileiro foi mais criticado, nem
mereceu maior número de anedotas e 'blagues', dentro e fora do país.
[...] O que prova o alto mérito de sua realização. Fenômeno igual ao
que se deu com a 'Pedra no caminho', de Carlos Drummond de
Andrade. [...] De Portinari, a presente exposição oferece quatro obras,
dois óleos e duas pontas-secas, que são mostras da potencialidade
criadora do grande artista, o qual é hoje, entre nós, o autêntico chefe de
escola, se é que podemos chamar assim a um movimento de normas
não rígidas, quer dizer, o inverso do academicismo. [...] Mais velho
que Portinari, mas seu irmão na expressividade da matéria artística, há
também em Di Cavalcanti aquele sentido da terceira dimensão que se
nota no autor de 'O barco' e 'Crianças brincando'. Suas figuras 'potelées',
estão pletóricas de carne e de sangue, como as de Giorgione, e em seu
desenho há algo de cenográfico que se poderá perceber bem nos painéis
murais que executou para teatros do Rio de Janeiro e para o edifício,
recentemente inaugurado, do Ministério da Educação. [...] Com estes
dois grandes pintores, forma o trio dos valores de primeira linha do
modernismo, o autor de 'Pescadores', 'O homem da cuíca' e 'Espumas
flutuantes'; uma aquarela, um óleo e uma ponta-seca de muita
originalidade e de grande poder de objetivação. Santa Rosa é uma das
personalidades mais ricas de realizações em nosso ambiente cultural e
artístico. Notável cenógrafo, ilustrador admirável e delicado, crítico
de arte e pintor multiforme, foi um pioneiro de nossa renovação teatral.
Basta mencionar sua iniciativa no grupo de amadores 'Os comediantes',
que ele fundou, reuniu, dirigiu e até ensaiou com notável aptidão e do
qual saiu meia dúzia de valores que logo se incorporaram ao nosso
teatro profissional como elementos de distinção. [...] Além de Portinari,
Di Cavalcanti e Santa Rosa, reuniu ainda Marques Rebelo em sua

·64 .
Políticas da amizade e anamonose do moderno

qualificada mostra, nomes de categoria, como Hilda Campofiorito,


Tarsila do Amaral e Djanira Gomes Pereira. Três pintoras consagradas,
sendo a segunda dentre elas uma das figuras centrais do movimento
modernista, iniciado em São Paulo. [...] Quirino Campofiorito, o
primeiro modernista que obteve um cargo de professor em nossa Escola
de Belas Artes, cujo museu teve até pouco tempo fechadas suas portas
para a gente moderna; José Cardoso Junior, hoje com 84 anos de idade
e que só depois dos 71 dedicou-se à pintura, quando já era funcionário
aposentado, depois de meio século de atividades como professor de
escola. E, como estes, Alberto Guignard e Roberto Burle Marx, Alcides
Miranda e Orlando Teruz, Aldari Toledo e Percy Deane, Carlos Leão
e Milton Dacosta, Clóvis Graciano e José Pancetti, José Pedrosa e
Iberé Camargo, quase todos pintores jovens, entre os vinte e os trinta e
cinco anos de idade. [...] Dentre esses pintores, não poucos foram
discípulos de Portinari, como, por exemplo, Aldari Toledo, cuja
estupenda tela a óleo 'O criado Joaquim' acusa muito aquele relevo de
execução do mestre; Clóvis Graciano, uma das mais fortes
personalidades da nova pintura, com uns toques de super-realismo,
que se pode apreciar na magistral 'Cabeça', óleo N° 14; Burle Marx,
autor de 'Natureza Morta', N° 47, e Milton Dacosta, cujo 'Auto-retrato'
é, sem dúvida, um alto-relevo portinarino, com uns leves toques de
cubismo. [...] A exposição de Marques Rebelo, que tão amplo êxito
alcançou em Buenos Aires, em vários meses de permanência, está sendo
acolhida na capital uruguaia, com os aplausos que merece a seleção
apresentada, e que correspondem aos foros da cultura de uma das cidades
mais ilustres da América (ABREU, 1945).

Leituras

No capítulo das recepções críticas seria injusto citar apenas a


de Modesto de Abreu. Em Buenos Aires, a exposição foi elogiada

·65 -
Potências da imagem

por vanos escritores e críticos locais21 ; recebida por Leopoldo


Marechal, à época, secretário de Cultura e elogiada por Pablo N eruda
que, depois do comício de Prestes no Pacaembu e da recepção de
Manuel Bandeira na Academia Brasileira de Letras, se encontrava
em Buenos Aires para uma série de recitais e conferências. Sua mulher,
a argentina Delia del Carril, cunhada de Ricardo Güiraldes, era muito
amiga de Pettoruti. Em 1930, ela cedeu-lhe o espaço onde funcionou
seu atelier da rua Charcas, e ali mesmo Délia estudou pintura com o
mestre. Mas não só por vínculos oficiais ou amistosos, por ((políticas
da amizade", uniram-se artistas e escritores. Uma das manifestações
profissionais da crítica coube a Emilio Lascano Tegui (1887-1967),
escritor e jornalista que assinava, à maneira simbolista, como o
Visconde Lascano Tegui. Sua leitura dos vinte artistas defende a idéia
de um nacionalismo larval, não necessariamente explícito ou exótico,
nas obras expostas por Marques Rebelo, onde

[...] não vemos as cromolitografias do Pão de Açúcar, Corcovado e a


Cascatinha, a que nos tinhamos acostumado. Há uma paisagem brasileira
muito mais nobre e inédita de Djanira Gomes Pereyra, nas paisagens tão
formais de João (sic) Pancetti, nas 'cidadezinhas' de Tarsila do Amaral,
que sem distanciar-se do sujeito local, introduzem-lhe na obra de arte,
escapando à diminuição do documento fotográfico colorido e ao

21. Pretendia, de futo, o autor de Oscarina suscitar uma movimentação cultural brasileira e, para
isso, projetou uma série de antologias prefuciadas por escritores argentinos. Em carta a Drummond
de Andrade, que este parcialmente revela em sua crônica "Rebelo's news" ("Leitura", Rio de
Janeiro, outubro 1945), confessa a lista. "Na editora Nova, uma antologia de contos; na Schapire,
uma de poemas. Os contistas serão apresentados por Luís Baudizzone e os poetas por Petit de
Murat, todos em tradução de Raul N avarro, conhecido fan das letras brasileiras. Não me critiquem
a seleção, adverte-nos Rebelo, o importante é que os livros saiam, onde até agora, no gênero, nada
saiu". A contrapartida oficial serão as "Conferências no Prata" (1946) de José Lins do Rego,
evento simultâneo de apoio à exposição de Rebelo.

-66 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

penetrante ponto de vista das artes oficiais congregadas com os viajantes


apurados, os agentes de polícia e os vendedores de cartões postais frente
aos acidentes naturais: morros, cascatas, lagos e ilhotas célebres. A crise
de espaço, a crise de papel de imprensa, não nos permite deter-nos ante a
obra de Candido Portinari, Milton Dacosta, Percy de Melo Deane,
Quirino Campofiorito, Roberto Burle Marx, Clóvis Graciano, Carlos
Leão, Aldari Henriques Toledo, dignos de elogio e a quem entre outros
vejo confiada a esperança de uma luminosa pintura brasileira.

E acrescenta, retomando .adialética modernista entre vanguarda


ekitsch, que a mostra

[...] é fresca, desprendida, generosa. Seus artistas não se apresentam como


produtos vernáculos - tijolos de goiabada, farinha de mandioca ou molho
baiano -. São sensibilidades agradáveis e cérebros firmes que no quadro da
civilização brasileira pedem para esta o direito à universalidade. Que nada
é grande por ser nacional ou ser local, porém quando, transbordando as
fronteiras, o nacional conquista a cidadania do mundo. Só nesta relação de
justiça e nesta perspectiva pode :fàlar-seda arte, já que a esta desagradam as
fronteiras e ama desconhecê-las. A arte digna deste nome nunca é estrangeira
sob nenhum céu. Nada burla melhor as alf'andegas que as obras de arte.
Elas são tabu para os alfandegários; não sabem avaliá-ias. Mas nada é mais
altamente privilegiado e saboreado nas alfândegas que a inconstante
mercadoria chamada de arte nos mercados.

Motivado talvez pelo comentário de Lascano Tegui, o Museu


Nacional de Belas Artes adquire doze obras, entre elas,
"Cidadezinha" de Tarsila do Amaral, e dois óleos de Portinari -
"Mulher chorando" e "Mulheres chorando" -, além de trabalhos
de Clóvis Graciano, Pancetti, Burle Marx e Santa Rosa. Através da
mediação de Pettoruti, que fora seu colega no grupo Altamira, junto

-67 -
Potências da imagem

a Soldi, Larco e Lucio Fontana, o crítico de arte Jorge Romero


Brest (1905-1989) decide prefaciar o catálogo da exposição,
publicado pela ((Poseidón", seguindo os parâmetros usados em
relação à pintura norte-americana que o mesmo Romero Brest
analisa, nas páginas de ((ArgentinaLibre", em 1941.
N esta ocasião, o crítico lê a coleção de Marques Rebelo como
passo decisivo em direção à abstração, a partir da premissa de
existênciade dois métodos antitéticos, o tom e a linha. O tom enfatiza
a coesão plástica, a expensas do esquema linear. A linha, entretanto,
destaca o movimento e o ritmo, em detrimento do tom. Na plástica
brasileira, segundo Romero Brest, seja por sobrevivência residual
academicista ou pela influência segalliana (com a qual o crítico
acolhe os argumentos de Bemi) o importante é que a linha derrota
o tom, mas o paradoxal nisto consiste em que este fenômeno se
repete também entre os pintores primitivistas, como Tarsila, cuja
((Cidadezinha" é uma obra purista em função de

[...] um traço sustentado que limita sem variações significativas tanto os


tetos das casas como as elevadas palmeiras, sem que uma sombra o
interrompa nem o apóie, como se o lápis não se houvesse podido deter
em uma marcha lenta e segura que prosseguia a coerência de sua melodia;
uma composição tão clássica como a que se pudesse exigir ao mais clássico
dos pintores tradicionais; uma expressão poética tão simples e tão sábia
como a dessas depuradas imagens, feitas de palavras soltas e ritmo interior,
que cultivou Valéry, mestre do purismo. Nos óleos parece molestar-lhe a
possível sensualidade da matéria e a riqueza sentimental das variações
tonais; prefere por isso estender a cor em fragmentos planos, contrastando-
o de maneira mais imaginativa que naturalista, para que ele anime esse
jogo puro de linhas retas, esse escondido dinamismo que lhe dá a vida, e
acentue o sonho que procura criar.

-68 -
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

Mas é em "Paquetá" de Guignard (Pettoruti a compra para o


museu de La Plata) que Romero Brest reconhece a singularidade
de síntese do modernismo brasileiro.

[...] o mundo simplíssimo que só criou com linhas me fez sentir com
absoluta imediatez sua profunda mensagem expressiva. Ainda que
dissimule uma estrutura racional, e ainda que pareça primitivo ou infantil,
o desenho tem grande riqueza de imaginação expressiva; Guignard brinca
nele com traços de diferentes intensidades, recorre a supemcies cheias,
valoriza os brancos - sobretudo esse dilatado céu que ocupa a maior
parte da folha -, renuncia quase por completo às sombras, e vai escrevendo
com uma caligrafia singular, como se houvesse querido registrar as
menores emoções que as coisas lhe produziam, uma frase terna, de
deliciosa doçura. Nos óleos agrega-se a este elemento emotivo da linha
a força espontânea e brilhante da cor, contrastado com maior pujança
que nas paisagens de Tarsila e com uma pastosidade que permite dar
qualidade de objeto-volume às figuras distribuídas segundo um sentido
rítmico que é produto de uma maravilhosa alucinação ante as coisas.
Mas a cor não se modela em seus quadros nem é expressão íntima de sua
rica percepção visual: ainda nos óleos é o traço estremecido e
aproximativo, o que guia, equilibrando a emoção circunstancial ante as
coisas e o mais rigoroso sentido da construção arquitetônica.

São estas idéias que, apresentadas em forma de carta a uma


discípula - uma política da amizade - Romero Brest discutirá, pouco
depois, em 1953, em "O que é a arte abstrata?" Argumenta nesta
ocasião que o artista moderno trabalha como as crianças e por isso a
natureza, animada ou inanimada, lhe oferece meios para expressar
sua subjetividade. Mas a atitude não é, no entanto, idêntica à do artista
moderno. Em que medida são abstratos esses criadores diferenciados?
Já que primitivos e vanguardistas - nos diz Romero Brest - buscam

-69 -
Potências da imagem

imagens a partir do inconsciente, sua objetivação não obedece a uma


síntese pré-formada no autor, daí que seja legítimo falar, nesses casos,
de autêntica abstração. Nos primitivos, a fantasia intelectualizada
domina a emoção, mas nos artistas modernos ocorre justamente o
contrário, já que perseguem formas descarnadas, ainda quando
estremecidas, nas quais materializam seu sentimento da forma. É este
o caso de Tarsila ou Guignard. Mário Pedrosa, o grande crítico
brasileiro do período, depois de acompanhar o curso que Romero
Brest desenvolve no Rio de Janeiro sobre estas questões, chega a
propor que a desmaterialização do objeto que esta abstração supõe
poderá assumir características pós-modernas (usa o termo já nos anos
60), seja na vertente popista ambiental, cinética ou ambiental
participante. Passamos, em resumo, da construção objetiva de
Pettoruti (ou de seu colega em Altamira, Lucio Fontana) ao
primitivismo abstrato de Tarsila ou Guignard e, graças a eles, a uma
nova equação arte/vida no ambientalismo participativo de Hélio
Oiticica ou Lygia Clark (PEDROSA, 1996).
Mário Pedrosa não chega a essas conclusões fortuitamente.
Converge nesse resultado um feixe de políticas amistosas: a exposição
francesa do Rio de Janeiro em 1945; a presença de Vieira da Silva e
Arpad Szenes no Rio de Janeiro; a chegada de Cícero Días, vinculado
ao abstracionismo francês; a exposição Max Bill em 50; o começo
das Bienais ou a exortação do mesmo Romero Brest, em seu curso do
MAM. Invertendo a espiral, convergem neste processo a tradição
de Pettoruti, Torres García ou Fontana e até mesmo o movimento
concreto-abstracionista Madi, com sua revista "Arturo" (1943), no
qual novamente encontramos Murilo Mendes e Vieira da Silva, o
que reabre, indefinidamente, a espiral da política amistosa.

-70·
Políticas da amizade e anamorfose do moderno

Se estes são os efeitos residuais da exposição de Rebelo nos


imaginários críticos, seu destino material se encontra nos paradoxos
da vanguarda analisada por Andreas Huyssen. Depois da
disseminação entre os museus de La Plata, Buenos Aires e
Montevidéu, as poucas obras restantes constituem o acervo
fundador do Museu de Arte Moderna de Santa Catarina (1948).

Dobras e redobres

La pudeur ferait aIors partie d'une histoire, une histoire de Ia


fraternisation, une histoire comme fraternisation qui commence par
une non-verité et devra finir par rendre vraie Ia non-verité.
J acques Derrida

Esta história que aqui encerro provisoriamente, é, de certo


modo, inseparável de uma história da abstração, uma história da
própria humanidade em processo de fraternização. Derrida parte
de Kant, da noção de crime contra a humanidade, como essa traição
que consiste em fazer valer e levar a sério, o desvalorizado, a
aparência, o dinheiro de papel ou Schezdemünze para logo insistir
em algo já assinalado por Baudelaire: a ética moderna implica
glorificar o culto das imagens. O crime da guerra seria desprezar a
moeda por mais ilusória que esta seja, quer dizer, tomar a moeda
falsa como moeda falsa quando, na verdade, caberia empenhar-se
em trocá-la por ouro, virtude, fraternidade. Qual é a farsa mais
pérfida, então? Aquela que, cinicamente, mas em nome da verdade,
se ri da diferença entre moeda falsa e verdadeira ou aquela que, à

-71 -
Potências da imagem

maneira kantiana, se obriga a trocar a moeda falsa por ouro? De


Marcel Duchamp vendendo títulos da loteria de Montecarlo até
César Aira perseguindo exemplares cada vez mais em conta de um
catálogo de Duchamp, todo um programa estético aí se insinua.
Mas por falar em programa, no documento distribuído pela
Direção Geral de Belas Artes da província de Buenos Aires para o
ano de 1945 - o ano da exposição de Rebelo -, seu responsável, Emílio
Pettoruti, afirma que o objetivo do mestre é redistribuir valores.

Não é concebível - escreve -, entender a escultura, por exemplo, e


desconhecer em absoluto a arquitetura, a pintura, a música ou as letras.
Esta unilateralidade leva fatalmente, tanto ao artista quanto ao amigo
das belas-artes, a isolar-se. Por esse caminho jamais chegará a
compreender nem a realizar cabalmente, o primeiro, o que pratique; o
segundo, a amar a arte em potência. Se bem que as especialidades, em
matéria de arte, há de se deixá-Ias para os professores e para uma minoria
excepcional, não devemos desconhecer nossa obrigação moral de
contribuir à formação de um povo espiritualmente forte. Só para isto
têm sua razão de ser, nos países americanos, os museus de arte, que
devem ser rotativos, dinâmicos, verdadeiros centros de cultura. O
contrário - adquirir, expor e conservar as obras de arte - é letra morta.

o objetivo de "Vinte artistas brasileiros" tran'scendia o


adquirir, expor, conservar e confiava contribuir para formar centros
de cultura rotativos e dinâmicos.

Meio século mais tarde, as observações de Pettoruti guardam


um sabor irônico. Os museus de arte nem sequer têm condições de
cumprir essa letra morta. Já não adquirem e quase não conservam,
apenas expõem o que o capital privado financia.

·72·
Políticas da amizade e anamorrose do moderno

Há alguns anos, a Rede Brasil Sul, empresa de comunicação


do grupo Sirotsky,organizou em Florianópolis um evento reunindo
os presidentes do Mercosul. Tratava-se de criar um símbolo de
controle de qualidade para os produtos da região e lançar a bandeira
da nova organização supranacional. O diretor da empresa ia
explicando o sentido de inscrever um círculo em um retângulo e
um triângulo nesse círculo. Ou explicitando, ainda, as conotações
das cores eleitas- verde como os bosques, azul como nossa América,
vista de longe. A cada explicação, um feixe de luz projetava a figura
sobre um pano de fundo, no palco do Centro Integrado de Cultura.
Completada a arquitetura simbólica, abriu-se a tela e o que era plano
adquiriu volume, enquanto o empresário-locutor exortava a seus
companheiros, empresários e dirigentes, a "escalar essa idéia" do
Mercosul. Entra, então, o ballet de Deborah Colker, do Rio de
Janeiro, com roupas de couro negro, que lhes davam um ar sado-
maso, muito Greenwich Village,cabeloscurtíssimos e loiros, ou então
corpos negros, musculosos, figuras mais aptas, talvez, para um clip
de Madonna (que já foi Evita) do que para uma jornada cívica
"com as forças vivas da comunidade", e começam a escalar suportes,
pregos, disseminados sobre o fundo da bandeira comum.
Tudo isso acontecia no primeiro andar do Centro de Cultura.
Embaixo, a poucos metros, no recinto do Museu de Arte de Santa
Catarina, os restos da coleção de Marques Rebelo não ouviam,
decerto, as batidas percussivas que impeliam a escalada e lhe
prestavam pré-histórias de futuro à dança dos valores. Sob a proteção
da rede Globo, os três presidentes, Cardoso, Menem e Wasmosy
(Sanguinetti, ausente), articulavam a linguagem da resignação
perante a videopolítica. Não se trata mais, pensavam, de extirpar a

-73 -
Potências da imagem

dependência externa, porém apenas de administrá-Ia, ainda que a


região afunile em um processo de periferização endógena, que ataca,
em primeiro lugar, a memória. Os Rebelo e Pettoruti devem ter-se
estremecido ante a falsa moeda do Príncipe22, e talvez tenham
compreendido, na própria carne, o alcance de uma política da
amizade e da amnésia.

22. Inspiro-me, aqui, no brilhante libelo de Gilberto Vasconcelos, "O principe da moeda;' (Rio de
Janeiro: Espaço e Tempo, 1997), que interpreta o governo FHC como mostra do capitalismo
videofinanceiro que sepulta, decididamente, o grande fantasma, Getúlio Vargas.

·74 -
Suplemento de imagens:
de Whitman a Jorge Amado,
passan do por "Macunalma,
/"
e até mesmo GarcÍa Márquez

As imagens são de Héctor Julio Paride Bernabó, também


conhecido como Carybé. Ele nasceu em 1911, em Lanús, província
de Buenos Aires, e nesse mesmo ano viajou no colo de sua mãe
para a Itália. Aos oito anos, instalou-se no Rio de Janeiro, onde
cursou o primário na Terceira Escola Mista do 210 distrito
(Bomsucesso). Continuou na Escola Rodriguez Alves (ao lado do
Palácio do Catete), fez o ginásio no Ateneu São Luiz e ainda entrou
na Escola Nacional de Belas-Artes, que abandonou para ir a Buenos
Aires23•

23. Carybé - "Carta a Telê Porto Ancona López", datada de Salvador, 22 março de 1977 (inédita).
Potências da imagem

Chega, portanto, à Argentina - onde nascera - só em 1929.


Nove anos depois, visita, pela primeira vez a Bahia, como
correspondente do jornal "Pregón", querendo fazer uma reportagem
sobre Lampião. No ano seguinte, expõe no Museu Municipal de
Belas-Artes, com Clemente Moreau, e faz alguns roteiros para
documentários do Instituto Cinematográfico da Argentina.
Ainda em 1941, ilustra o primeiro calendário "Esso".

Carybé - Brasil

·76·
Suplemento de imagens

Com o pagamento, viaja pelo Brasil e por outros países latino-


americanos. Retoma a Buenos Aires em maio de 1942, quando
produziu a cartografia do Brasil para a revista «Saber vivir".

Carybé - Brasil

N o ano seguinte realiza a primeira individual na N ordiska


Kompaniet e participa da 29" exposição coletiva de aquarelistas e
gravuristas, na galeria Witcomb, na qual obtém o primeiro lugar.
Então, «com uma saturação horrível de saudades entrei nos brasis
do Mário e, junto a um amigo do peito, Raul Brié (este sim,
argentino) botamos o Mário em espanhol" .24 Brié editava, em Salta,
o ''Angulo'', boletim de literatura, música e pintura, pautado por
uma reivindicação transregionallatino-americana.
A tradução de «Macunaíma" para a Losada não foi publicada,
mas restam as ilustrações da rapsódia e outras que realiza para «Luna
Muerta", livro de poemas de Manuel Castilla, poeta regionalista
de Salta, mais tarde famoso por suas canções interpretadas por
Mercedes Sosa.

24. Idem.

-77 -
Carybé - Luna Muerta I Carybé - Luna Muerta 111

Carybé - Luna Muerta 11 Carybé - Luna Muerta IV


-78 -
Suplemento de imagens

Em 1944, ilustra a poesia de Walt Whitman e os ensaios de


Mário de Andrade, ambos para a editora Schapire.

Carybé - Música do Brasil

Carybé - Walt Whitman V

-79 -
Carybé - Tfíált WhÍtman I Carybé - Tfíált WhÍtman 111

Carybé - Tfíált WhÍtman 11 Carybé - Tfíált Whitman IV


-80 -
Suplemento de imagens

Ainda em 1944, faz o terceiro calendário "Esso" e,


conseqüentemente, a terceira viagem à Bahia. Também realiza uma
exibição individual de "Desenhos para crianças", no Consejo
Nacional de Educación, com 76 desenhos a nanquim e 9 ilustrações
coloridas.

Em 1945, ilustra o "Robinson Crusoé", na tradução de Julio


Cortázar, para a editora Viau. Com o fim da guerra, contribui com
um desenho para a "Homenaje de Artistas Argentinos a la Victoria",
onde se reúnem trabalhos de Butler, Castagnino, Larco e
Spilimbergo, entre outros.

Carybé - Homenagem à Vitória

-81 -
Potências da imagem

Um ano depois, expõe na coletiva "Desenhos de artistas


argentinos", na galeria Kraft. Em 1947 ilustra, para uma editora
londinense, "Chaco Chapters", de Winifred ReviU.Em 1948, expõe
na União Pan-americana de Washington e faz cenários e guarda-
rou pas da ópera "Angélique", com música de J acques Ibert, no
teatro Astral de Buenos Aires. Em 1950, ganha uma bolsa para
trabalhar durante um ano na Bahia e expõe também no Masp. No
ano seguinte, realizou uma pintura mural na galeria Belgrano, de
Buenos Aires, e participa da primeira Bienal de São Paulo. Além
disso, ilustra "Bahia, imagens da terra e do povo", de Eurico Tavares,
para a editora José Olympio.
Em 1952, faz uma exposição individual no Masp, o mural
"Cangaço" no TBC de São Paulo e desenhos para o filme "O
Cangaceiro" de Lima Barreto. Em 1955, obtém o primeiro prêmio
de desenho na terceira Bienal de São Paulo. Em 1956, participa da
Bienal de Veneza.Em 1957, ano em que se torna cidadão brasileiro,
realiza o mural "Descobrimento", no Banco Itaú de Salvador;
relevos em madeira na galeria Boston, em Buenos Aires, e suas
ilustrações para "Macunaíma", em volume da Sociedade dos Cem
Bibliófilos do Brasil, são editadas.
Ainda em 1957,viaja a Nova York,a convite do Departamento
de Estado, realizando exposições coletivas no MoMA, no Museu
de Arte de Seattle e na União Pan-americana de Washington.
Ganhou concurso para a realização de dois murais no aeroporto
Kennedy, que foram inaugurados em 1960.
Um ano depois ilustra "Jubiabá", de Jorge Amado. Colabora,
de 1961 a 1969, no "Jornal da Bahia", com o pseudônimo Sorgo de
Alepo. Em 1962, realiza uma exposição individual no Museu de

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Caryhé - DescohrÍmento

Caryhé - MacunaÍma 1 Caryhé - MacunaÍma 11


Potências da imagem

Arte Moderna da Bahia e publica o livro "As sete portas da Bahia".


Participa, no ano seguinte, da Bienal de São Paulo. Em 1965, faz
uma exposição individual na galeria Bonina, no Rio de Janeiro, e
ilustrações para "A.muito leal e heróica cidade de São Sebastião do
Rio de Janeiro", editada por Raimundo de Castro Maia.
Em 1967, completa murais para o Banco do Estado de Minas
Gerais em São Paulo e para o Bradesco, em Salvador. No ano
seguinte, ilustra a carta de Pero Vaz de Caminha, em versão de
Rubem Braga, para a editora Sabiá do Rio de Janeiro. Nessa época,
começa a produzir as imagens brasileiras para as ficções de Gabriel
García Márquez, com "Ninguém escreve ao coronel" (1969), "O
enterro do diabo e os funerais deMamãe Grande" (1970), "Cem
anos de solidão" (1971) e ''A incrível e triste história de Candida
Erêndira e sua avó desalmada" (1973). Além de García Márquez,
ilustra também ''A casa verde", de Vargas Llosa. Na Bienal de 1973,
colabora na homenagem a Tarsila do Amaral, Flávio de Carvalho e
Maria Martins.

Carybé - Ninguém
escreve ao coronel

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-85 -
Potências da imagem

Em 1976, ilustra "O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá",


de Jorge Amado, e, no ano seguinte, o "Discurso de primavera e
algumas sombras", de Carlos Drummond de Andrade, ambas para
a Record. Em 1978, é a vez de ''A morte e a morte de Quincas
Berro d/ agua", de Jorge Amado, para as edições Alumbramento.
Dois anos mais tarde, realiza cenário e figurinos da adaptação desse
mesmo texto, com música de Francisco Mignone e coreografia de
Carlos Moraes, no Teatro Castro Alves de Salvador, iniciativa que
se tornou também, em 1981, um livro em homenagem aos 5 O anos
de vida literária de Jorge Amado, desta vez com texto de Guilherme
Figueiredo. Ainda nesse ano publica, com Rubem Braga, "Uma
viagem capixaba".
Em 1983 faz o cenário e costumes de "Gabriela Cravo e
Canela", com música de Edu Lobo, para o Teatro Municipal do
Rio de Janeiro. A exposição "Iconografia dos deuses africanos no
candomblé da Bahia" é exibida em Nova York, nesse mesmo ano, e
no Museo Nacional de Ias Culturas, no México, em 1984. Um ano
depois, ilustra "Lendas africanas dos O rixás", com texto de Pierre
Verger, e faz cenografia e vestuário de "La Boheme", no Teatro
Castro Alves, de Salvador.
Em 1988, é inaugurado, junto com a retrospectiva de Buenos
Aires, seu relevo "Os africanos, os ibéricos e os libertadores", no
Memorial da América Latina de São Paulo. Ilustra, ainda, "O
Sumiço da Santa", de Jorge Amado, para a editora Record.
Morre, em Salvador, em outubro de 1997.

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Amado: tradição e extradição

Nós nascemos da guerra e da revolução russa. Somos uma geração de


romancistas.
Jorge Amado

Como constatamos, a repetição de certas formas, mesmo


recorrente, introduz um deslocamento e uma ruptura, uma vez que
toda repetição restitui possibilidade e potência a um valor exausto.
É assim que se arma uma tradição: a partir de uma relação de força,
de extradição, das formas dominantes. O valor que há de retomar,
cic1icamente, neste percurso é o da mediação inconteste e o combate
à forma como desvio anti-revolucionário. É essa a tradição do pós-
modernismo brasileiro em que Jorge Amado se inscreve.
Minha hipótese central, pelo contrário, pauta-se na crença
de que novas alternativas de leitura se colocam quando aquilo que
Potências da imagem

veio sendo trabalhado pela repetição não chega, propriamente, a


desaparecer, mas desloca seus efeitos em função da suspensão. A
questão, portanto, a ser examinada é o espectro da massa ou, se
preferirem, a passagem de uma forma modernista a uma norma
pós-modernista.
Relembremos que logo em seus precoces "Apontamentos
sobre o moderno romance brasileiro" (1934), Jorge Amado fez uma
avaliação bastante severa do modernismo: "destruiu realmente muita
coisa ruim. Pouco porém construiu". Considerava, entretanto, que,
àquela altura, "era do comunismo e do arranha-céu", ano do famoso
congresso de escritores soviéticos que sagrou a estética do realismo
socialista, a forma romance ainda tinha um elemento para destruir:
o herói2s.

Em "Literatura, novela y política como resultados sociales"


(1936), retoma a tese de que o modernismo só produziu poetas e
ensaístas, ao passo que os pós-modernistas praticariam o romance
por ser C:un arma para Ia lucha, es el retrato de Ias luchas", abrindo
uma exceção para o surrealismo que "huyó de Ia deshumanización
del arte y se hizo arma política"26.
Pouco depois Jorge Amado parece mudar de 0plll1aO,
afastando-se dos princípios seriais do surrealismo para fazer

25. "Ficou a 'Cobra Norato' de Raul Bopp, 'Macunaíma' de 1\1ário de Andrade, dois romances de
Oswald de Andrade, livros de versos de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Felipe de Oliveira,
contos de Antônio de Alcântara Machado, uns estudos de Ronald de Carvalho e outros de Renato
Almeida. De repente parou tudo, não havia mais nada que destruir". (AMADO, 1934. p.48-51).
26. No mesmo texto, separa Oswald de Andrade do próprio modernismo, argumentando que
"después de terminado eI movimiento modernista fue cuando Oswald de Andrade se reveló con
°
toda su fuerza de novelista. Ése es eI novelista dei modernismo" (AMADO, 1936, p. 22). artigo
original teria saído no "Diário de notícias" do Rio de Janeiro.

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Amado: tradição e extradição

prevalecer os cânones do arquivo, de filiação romântica, e se valer


precisamente do herói para construir uma tradição nacional e
moderna, sem ser modernista.
A questão, a seu ver, consistia em aglutinar uma nova aliança
de classesque, por força,.setraduziria em nova forma estética.Afinal,
uma modificação na estrutura das normas estéticas deveria,
necessariamente, se desdobrar em acomodação, já que não em
ruptura da vida social. Assim, em pleno Estado Novo, argumenta,
por exemplo, que "Memórias de um sargento de milícias" é um
romance do mestiço brasileiro, com as suas qualidades e defeitos já
salientes. O amor pela malandragem, a paixão pela música
sentimental, pelas procissõesalgo carnavalescas,pelas aventuras com
morenas e farras com "violão", tudo isso, enfim, nos permitindo
chegar à conclusão, antecipada aliás, em 1931, por Prudente de
Moraes Neto, de que "o herói de Manuel de Almeida é avô dos
malandros de Marques Rebelo"27(AMADO, 1938).
A luta, que em 1934 se traduzia em termos de herói individual
versus herói problemático, torna-se agora uma disputa em torno da
legitimidade de umatradição nacional,autonomista, da literatura.
Afinal de contas, o comunismo oficial também optara pela
extradição, desterrando quem defendia o internacionalismo. Naquele
momento, a questão passava, na União Soviética, pela revolução
nacional e, nos países ocidentais, pelas Frentes Populares.

27. Pouco depois, o mesmo jornal "Dom Casmurro" começaria a republicação em fàscículos do
romance de Manuel A. de Almeida. Mesmo assim, a observação antecede tanto o clássico ensaio
de Mário de Andrade '-obre Manuel A. de Almeida quanto a biografia que dele traça o próprio
Marques Rebelo.

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Potências da imagem

É CUrIOSO que Jorge Amado tenha admitido esse tipo de


operação estética, de tradição nacional, harmoniosa de mestiçagem
e de malandragem, pouco depois de ter lido as "Tradições peruanas",
de Ricardo Palma, e de nelas ter achado material que, devidamente
filtrado por um imaginário de massas, cinematográfico, ele próprio
ensaia e aproveita em seu relato de viagem pela América Latina,
vindo a constituir-se em um autêntico e poderoso proto-texto de
sua galeria moderna de massas (AMADO, 2001). Voltaremos mais
adiante à questão da imagem e das massas, mas permitam-me, a
título de exemplo, citar uma passagem muito esclarecedora:

Hoje o cinema é quem dá as mulheres fatais para o mundo. No século


do coletivo as mulheres fatais são para todos. Marlene ou Greta Garbo
não são fatais para um galã apenas. São fatais para o mundo todo, para
milhares de homens, gente de cor branca, preta e amarela e mestiços
também. Passaram-se os tempos em que a mulher era fatal com
exclusividade para um. No Brasil há uma célebre: a Marquesa de
Santos, que foi o tipo da mulher fatal. Pedro I teve exclusividade dela.
No Peru a Marquesa teve uma precursora numa mestiça como ela.
Essa mestiça é dona da história mais bonita da América Espanhola. Se
chamava Micaela Villegas, mas ainda hoje todos falam dela como de
La Perricholi, nome que lhe fiCOU.28

28. E acrescenta: "Foi em 1700. Lima já tinha o ar de hoje, tirando as novas avenidas. Já existiam
os balcões, os belos palácios, as igrejas maravilhosas. Só não existia o palácio de La Perricholi pois
a mestiça ainda não havia nascido. N o ano de 39 do século XVIII, nasceu ela do casal José Villegas,
mestiço, e dona Teresa Hurtado de Mendoza Villegas. Micaela cresceu linda e mestiça nas ruas
de Lima, de mistura com frades inquisidores e mestiços de índios espanhóis. Cresceu e foi atriz.
Mas, por este tempo chegou ao Peru um novo vice-rei enviado por Espanha. Don Manuel de
Amat y Junient se chamava ele. E com esse nome francês o nobre espanhol, sexagenário, veio se
bater nas terras cheiás de ouro do Peru. Porém melhor que o ouro ele encontrou La Perricholi e por
ela se apaixonou e pela sua paixão fez as maiores loucuras. Construiu inclusive o palácio que hoje

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Amado: tradição e extradição

Nessa Xica da Silva de trás-as-Andes, Jorge vê, com efeito, a


possibilidade de um novo relato de massas cuja estética tradicional
convive, porém, com dispositivos anestéticos,já que a sensibilidade
coletiva é ditada, e já foi afetada, pelos meios técnicos de reprodução
em série. Não há, de fato, na Perricholi evocada por Jorge Amado,
a irredutibilidade sem caráter do herói de Mário de Andrade, mas
o elogio à adaptação sincrética e dócil de um populismo
modernizador.

Detenho-me um momento apenas na figura, então recorrente,


do menor mestiço - da mulher mestiça - como intermediária no
processo de aculturação latino-americana porque acho bom não
esquecer que, em 1938, Viriato Correia obteve grande sucesso
adaptando ao teatro o romance de Paulo Setúbal, ''A marquesa de
Santos" (1925), que conheceu várias traduções para russo, holandês
e inglês, esta última feita por Margareth Richardson, a tradutora de
"MacunaÍma". Em 1941, esse mesmo texto de Setúbal será, ainda,
objeto de outra adaptação, dessa vez no cinema argentino, com o
filme "Embrujo", de Enrique Susini. Aliás, é também fora do Brasil
que Gilberto Freyre, empenhado desde meados dos anos 30 na tese
da exaustão do modernismo, antecipa sua idéia de que Jorge Amado,
então menor em relação ao modernismo, filia-se a uma tradição
cultural e socialmente amalgamadora, de extração barroca, idéia que
leremos, a seguir, em "Interpretação do Brasil" (1947).

leva o nome da sua amante. Foi o mais lindo romance de uma mulher fàtal na América do Sul
espanhola" Cf Amado (2001) - "Ronda das Américas. 6. Peru". Dom Casmurro, Rio de Janeiro,
9 jun. 1938. Em 16 de dezembro de 1939, o mesmo jornal transcreve um ensaio do historiador
peruano Jorge Basadre a respeito da "Vida intelectual do Peru no tempo dos Vice-Reis".

-91 -
Potências da imagem

Gilberto Freyre interpreta a permanência dessa atitude satírica,


inscrita na tradição do Aleijadinho, esse Greco mulato e mestre nas
deformações grotescas, como um sintoma de impaciência por atingir
a expressão de um Brasil extra-europeu ou ultra-europeu, e não
apenas um simples eco colonial de uma filosofia de extração
européia. Essas deformações, a seu modo, detectam-se também em
Villa Lobos, encontram-se bem claras em Jorge Amado, para quem
a verdade puramente visual é ultrapassada pela dramatização poética
e, às vezes, política das situações 29.

Sem a menção a Jorge Amado, a tese da continuidade satírica


na literatura brasileira já tinha sido desenvolvida por Oswald de
Andrade, em conferência na Biblioteca Municipal de São Paulo,
em agosto de 194530 (ANDRADE, 1991, p. 69-85), frisando uma
reabilitação de Gregório de Matos a partir da qual, como sabemos,
os irmãos Campos reorganizariam, mais tarde, seu paradigma
literário pós-modernista. Em consequência, uma linha sutil pontua
o processo do amálgama do menor à posição pós-utópica.

29. "Aleijadinho fue un producto natural, si no lógico, de su región. En toda su obra parece existir
una intención simbólica, que, aun cuando probablemente fue conocida de alguno de sus
contemporáneos, no há sido observada por Ia mayoría de sus críticos o sus intérpretes. Creo yo que
Ia visión física del escultor estaba deformada por su deseo de transmitir por media de una forma de
arte entonces popular-Ia escultura religiosa-un mensaje político. Si mi interpretación de su
obra es correcta, Aleijadinho fue un precursor: como un Greco mulato por sus atrevidas contorsiones
de Ia forma humana, se anticipó en dos siglas a Ia obra de Rivera y orozco, de Portinari y Cícero
Dias, artistas modernos latinoamericanos en cuyo arte hay a menudo una intención política simbólica
aI mismo tiempo que una tendencia a Ia exageración, a Ia deformación, a Ia caricatura". O trecho
aparece, expandido, em "Interpretação do Brasil". '~spectos da Formação Social Brasileira como
Processo de Amalgamento de Raças e Culturas". Introd. O. Montenegro. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1947, p. 279-314. A rigor, o livro teve uma primeira edição mexicana pelo Fundo de
Cultura Econômica em 194-5.
30. Essa talvez seja a fonte da tese amalgamadora cultural (Aleijadinho/ Gregório) desenvolvida
por Gilberto Freyre logo em seguida.

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Amado: tradição e extradição

Quanto a Jorge Amado, que é o que nos ocupa hoje, a questão


fica ainda mais clara, em 1942, já durante o exílio no Prata, em um
artigo sobre política linguística. Nele Amado rechaça abertamente
o modernismo e em especial "Macunaíma", por ser "verboso, pouco
literário e anti-popular"31. Antecipa assim, na verdade, os
argumentos com que, ao evocar seu contato com Brecht, em 1954,
define o escritor alemão como popular e anti-dogmático. Em outras
palavras, Brecht seria o avesso do modernismo paulista, em função
da "négation de tout schématisme dans 1~oeuvre d ~art,
antidogmatisme par excellence" (qui) "ne confondit jamais simplicité
et simplisme, populaire et populacier'l32.
Que aconteceu entre 1934 e 1954? Como se passa de um
resgate limitado, porém efetivo, das vanguardas a uma condenação
sem recurso? Quais foram os caminhos ensaiados durante esses vinte
anos para combater a autonomia e propor uma nova aliança entre o
intelectual e o popular?
A partir das teses oficiais soviéticas, arrefece, como é sabido, o
combate ao modernismo. Os assim chamados pós-modernistas -
Jorge Amado, Gilberto Freyre - são os mais severos críticos de Mário
de Andrade, referente central do movimento modernista. Em 1939,
estoura, de fato, o dissenso quando, a partir de matéria publicada no

31. "Esa lengua es el gran defecto de algunos libras muy importantes, entre ellos el Macunaíma de
Mário de Andrade, realizado sobre el material más popular posible, como son Ias leyendas
amazónicas, pero escrito en un idioma que el pueblo no entiende. Verboso, poco literario y
antipopnlar. Una creación artificial que ayudó mucho a que Ias modernistas fuesen siempre
enteramente desconocidos del público brasileno". (AMADO, 1942, p. 59-64).
32. Em "L 'antidogmatique", sua colaboração para o número monográfico de "Europe" (a. 35, n.
133-134 jan. e fev. 1957), dedicado a Berlold Brecht, Amado parece temperar os arroubos
personalistas da era Stalin. Não tive, infelizmente, acesso à revista "Para Todos", em cujo número
8 (primeira qninzena de setembro de 1956), Amado publicou "O antidogmático".

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Potências da imagem

"Dom Casmurro", Mário vem a público definir a crítica como "nem


exclusivamente estética, nem ostensivamente pragmática, mas
exatamente aquela verdade transitória, aquela pesquisa das identidades
'mais' perfeitas que ultrapassando as obras, busque revelar a cultura
de uma fase e lhe desenhe a imagem" (ANDRADE, 1972, p. 101-7).
Como se vê, está aí incluído o conceito de escritura - e de texto, até
mesmo enquanto instância que marca um para-além da obra -
dissociado de uma significação estável e, nas entrelinhas, problematiza-
se também o papel do letrado numa cultura que, cada vez mais,
pertence à imagem e não mais à palavra.
Ora, a posição de Mário merece impiedoso ataque. Em 2 de
setembro, em uma matéria não assinada, porém de responsabilidade
do secretário do redação de "Dom Casmurro", Jorge Amado acusa
Mário de ser um reles "guarda civil da linguagem". Em "A solidão
é triste", argumenta, com efeito, que

[...] no momento atual do mundo a questão forma na obra de arte não


é evidentemente a questão primordial. Que seja importante é coisa que
absolutamente nem discutimos. É claro que é importante e em
determinados momentos do mundo, momentos calmos e felizes, pode
até ser estudado como o mais importante. Mas nesse momento terrível
ela passa para um plano absolutamente secundário. O importante éa
mensagem do artista, o conteúdo de sua obra, muito mais que sua
forma. Basta citar o repetido exemplo do modernismo: momento
falhado porque se trouxe uma fabulosa renovação na forma ele era
absolutamente conservador no conteúdo.

E radicalizando a pecha que lançara no início da diatribe a


Mário de Andrade, chamando-o de "sub-Wilde mulato", Jorge
Amado usa uma curiosa argumentação que cruza gênero e estética:

-94 -
Amado: tradição e extradição

Se fôssemos classificar os movimentos literários e os livros em função


do sexo teríamos que o modernismo foi um movimento feminino, se
preocupando apenas com a roupa, enquanto, por exemplo, o movimento
de ensaios e romances pós-modernistas foi um movimento macho
preocupado com o conteúdo. Cai o crítico de certa maneira na 'arte
pela arte' que é, realmente, o que se encontra por trás do esteticismo de
Mário de Andrade.33

Esta polêmica se cruza com a da exposição de Portinari e, em


consequência, com a acusação ao portinarismo de estética oficial
estadonovista34. Oswald de Andrade engrossa o caldo quando, em
"As pinturas do coronel", admite:

33. ''A solidão é triste". "Dom Casmurro", n. 116, Rio de Janeiro, 2 set. 1939, p. 2. Quando da
morte de Freud, no final desse mesmo ano, Amado publica um artigo que, nas entrelinhas, refere-
se à polêmica entre fundadores e seguidores do modernismo. A notícia da tradução brasileira de
"Ciência da natureza humana", de Adler, serve-lhe para opor este a Freud e alimentar, assim, a
polêmica que "vinha se refletir no Brasil, atingindo uma violência inquisitorial pois o admirador do
psicanalista desejava que o livro do psicólogo ficasse desconhecido, não fosse divulgado nem lido"
(AMADO, 1939). As farpas se cruzam, ainda, nos artigos que Mário escreve sobre "Traduções"
para o "Diário de notícias" do Rio de Janeiro (13 ago 1939,7 jul1940), porque é sabido que
Mário considerava a tradução de "Dona Barbara", feita por Jorge Amado, um primor de descuidos
formais. Amado defende-se em "Um romancista sul-americano" ("Dom Casmurro", n° 131, Rio
de Janeiro, 30 dez 1939), argumentando que procurara "deixar intacta a força do estilo de
Gallegos e principalmente deixar intacta a força de vida que precorre todo este grande romance".
34. Sobre o tópico, consultar Almeida (1976) e Antelo (1984). É bom relembrar que o anti-
portinarismo vem se confundir com o anti-zeolimpismo. Quando Jorge Amado ainda era publicado
pela José Olimpio, admitia colaborar "na mais honesta casa editora do Brasil: a José Olimpio
Editora, essa que, sem dúvida, revolucionou os métodos editoriais no Brasil, criando para o escritor
uma outra situação de prestígio que não gozava antes do aparecimento desta editora no mercado
dos livros" ("Dom Casmurro", 14 abro 1938). Porém, após a polêmica do portinarismo, Joel
Silveira identifica o inimigo no zeolimpismo: "O zeolimpismo é uma doença meio desesperada: é
a doença que se apodera daquele que olha em redor e vê que o panorama vai se modificando aos
poucos, que há outra gente aparecendo com mensagem nova e mais honesta - e o jeito é tremer e
nzer força contra" (SILVElRA, 1940). Relembremos que em 1937 Amado está de mudança para
a Martins de São Paulo, ao passo que a José Olimpio lança a segunda edição de "Macunaíma".

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Potências da imagem

Nunca neguei ao sr. Mário de Andrade o valor criativo de sua língua-


bunda nem o de ter despejado os seus pesados recalques - quando
ainda os tinha - nos desvarios de uma poesia revolucionária e de uma
prosa tão inaugural como o foi em seu tempo a de Jo~é de Alencar. O
que sempre neguei e nego é que o autor ilustre de "Macunaíma" entenda
alguma coisa de artes e literatura. Como crítico é um cavalop5
(ANDRADE, 1939).

Portanto quando, em abril do ano seguinte, Aurélio Buarque


de Holanda promove na "Revista do Brasil", um inquérito sobre as
tendências atuais da literatura, o campo está maduro para uma
proclamação de ruptura definitiva com o modernismo. Jorge Amado
assim o entende e responde que

O modernismo foi principalmente um movimento de crítica, mesmo


quando exercendo uma função puramente criadora como a poesia.
Esse absurdo existiu e daí a pouca importância que eu dou em geral à
poesia modernista (exceção de uns poucos poetas). A poesia modernista
cheia de piadas, de frases com duplo sentido, mesmo de trocadilhos, se
dirigindo quase sempre a um grupinho e não a um público amplo,
poesia para iniciados não só na sua forma como nos seus motivos, era,
antes de tudo, expressão de um movimento crítico, caindo muitas vezes
na sátira ou no simples deboche. Poesia, poesia de verdade, muito
pouca nos deu o modernismo. Creio que esse movimento, nas futuras
antologias de poetas, concorrerá com um número menor de nomes que
qualquer outro movimento, mesmo o tão combatido parnasianismo.
[...] E na prosar Dois ou três grandes nomes de criadores: Oswald de

35. No mesmo artigo Oswald acusa Mário de ter ganho uma sinecura, o Departamento de
Cultura, que vitaminizava suas energias e as de "alguns burocratas ilustres, notadamente, o sr.
Sérgio Milliet".

-96 -
Amado: tradição e extradição

Andrade, Mário, Antonio de Alcántara Machado [ ... ], um ou outro


mais. A necessidade de se lançar à crítica desviou das suas funções de
criadores a maioria dos artistas modernistas. É o caso de um Mário de
Andrade, penso que o de um Prudente de Moraes Neto. Eles viam na
sua frente muito que combater, toda uma máquina literária ruim
montada e estabelecida, e não tiveram tempo (ou forças?) para construir
outra máquina melhor depois que destruíram aquela. Empregaram
um esforço enorme para destruir uma literatura estabelecida. Acontece
porém que o que estava estabelecido não era sequer uma literatura, era
simples farsa. [...] O modernismo sempre me dá essa impressão: um
grupo de fortíssimos gigantes, empunhando picaretas, afiados facões,
pás, o diabo, para destruir uma casa de papelão. Destruíram-na a
cusparadas, cruzaram os braços, ficaram preocupadíssimos porque não
tinham mais nada que fazer. [... ] Penso que não existirá mistério
nenhum nisso se estudarmos a causa fundamental das contradições do
modernismo: este era um movimento brutalmente inconformista na
forma e que era inteiramente conformista no conteúdo. Digo "quase"
devido à "antropofagia", pequena ala dentro do enorme movimento,
ala que fazia uma poesia e uma prosa, que não se preocupava apenas
com quebrar rimas e abandonar vírgulas, que renovava também idéias.
Dessa contradição, inconformismo na forma, conservadorismo no
conteúdo, vieram todas as limitações e contradições do modernismo;
daí veio mesmo a castração do poder criador dos seus artistas.

Adotando as idéias do prefácio ao "Serafim Ponte Grande",


obra que ele reputa a mais importante do movimento, Jorge Amado
pergunta-se pelas origens da vanguarda paulista.

De que resultou o modernismo? Da alta do café, a criação e o


enriquecimento de uma aristocracia paulista cafeeira, politicamente
dona do país, aristocracia envernizada nos passeios à Europa,
conhecendo de ouvido e de vista os movimentos literários que lá se
processavam, classe que necessitou de uma literatura que lhe satisfizesse

-97 -
Potências da imagem

os gostos entre fazendeiros e parisienses e, por consequência, incapazes


de aceitar, como o resto do país, os Coelhos Netos e os Albertos de
Oliveira, produtos de outra economia. Daí nasceu o modernismo. É
preciso não esquecer que talvez nenhum outro movimento tenha
encontrado de parte da alta-sociedade tanto apoio. Não só os grandes
salões paulistas receberam os modernistas, como também os grandes
jornais conservadores abriram, logo, as suas páginas para os irreverentes
moços modernistas. É preciso não esquecer também que, em verdade, o
modernismo se localizou exclusivamente em São Paulo, onde nasceu e
floresceu. O grupo Graça Aranha, no Rio, é um simples prolongamento
dos grupos paulistas. Os demais, de Minas, Ceará, etc., não chegaram
verdadeiramente a ter nenhuma importância literária, nenhuma
ressonância real nos meios em que existiam. Viviam dos restos paulistas.
Se juntarmos a isso que o crítico, o teórico do movimento, foi realmente
o sr. Tristão de Athayde, já então representando o que havia de mais
conservador no pensamento nacional, temos que o modernismo não
podia deixar de esconder atrás da sua barulhenta insatisfação em relação
às fórmulas literárias do tempo um absoluto conformismo na sua visão
da vida. O modernismo foi, em última análise, a criação de fórmulas
literárias que serviam no momento à alta burguesia paulista enriquecida
com o café. Os seus grandes nomes não passavam (e nisso não vai
nenhuma intenção de ofensa), de certa maneira, de palhaços para uma
claque refinada a esnobe. Os novos-ricos queriam era diversão. Os
Coelhos Netos eram, a seu ver, com suas fórmulas antiquadas de fazer
literatura, supinamente chatos, não divertiam ninguém. Criou-se então
uma literatura divertidíssima, que fazia uma formidável revolução na
forma literária, que quebrava todos os cânones, deixava sem fala a pequena
burguesia estarrecida afã da outra literatura que, em relação a ela, cumpria
perfeitamente suas obrigações de encher com um fraseado bonito as
horas de ócio das respeitáveis matronas e dos gordos e pacatos
comerciantes dados à leitura. Os modernistas tinham uma função e uma
obrigação. É claro que servindo uma classe a sua revolução tinha limites
pré-estabelecidos. Daí a visão dos problemas humanos através dos
modernistas, ser quase sempre a mesma daqueles literatos que eles tanto

·98·
Amado: tradição e extradição

combateram. Os que saíram dessa estreiteza não saíram com o movimento


modernista. Saíram (é o caso de um Oswald de Andrade, de um Alvaro
Moreyra) indo além dele, do seu espírito. [...] Ora, a obra de criação é
essencialmente inconformista no seu conteúdo, já que é vida em
movimento, homens e ambientes nascendo a vivendo, se transformando.
O modernismo não podia tentar absolutamente esta obra, seria trair suas
funções, as suas obrigações. A classe que lhe deu vida estava fadada a ter
um ciclo pequeno de dominação, já que se baseava numa economia
fictícia como a do café. O grande romance do modernismo é,
evidentemente, 'Serafim Ponte Grande', espelho da vida dessa classe,
desenvolvimento de todo o seu ciclo. A grandeza desse romance
modernista vem disso: é todo ele feito em função de uma classe, no
momento em que seu autor a abandonava, sentindo o fim do seu domínio.
O estilo só podia ser aquele, o tratamento do romance, tudo. E as
limitações do livro são as próprias limitações do modernismo, da classe
que o criou. O que é, em última análise, "Macunaíma", a grande
realização do modernismo! As lendas, as grandes belezas do Brasil,
contadas numa falsa língua (mais falsa para nós que mesmo o português
de Lisboa) e com certo gozo para risadas gostosas dos leitores
modernistas, fazendeiros de São Paulo dublês de boêmios de Paris.
Acontece porém que a beleza do assunto venceu as limitações impostas
pela "escola" e o livro foi além, está até hoje vivo e vivo continuará. [...]
O modernismo foi assim desde o início, pela sua própria razão de ser, um
movimento castrado no seu poder de criação. Não deixa um poeta com a
inteireza de um Castro Alves, um Álvares de Azevedo. Deixará um
Alberto de Oliveira! Na ficção não deixa um Aluísio de Azevedo, um
Lima Barreto. Deixará mesmo um Coelho Neto! [...] Foi um momento,
talvez não tenha chegado a ser um movimento36 (AMADO, 1940, p.
108-10).

36. Resposta a "O inquérito da Revista do Brasil" acerca das tendências atuais da literatura
brasileira.

-99 -
Revista LeÍtura

Rui Santos ~ Prestes no Morro IX


Rui Santos - Prestes no morro I

Rui Santos - Prestes no morro 11


Rui Santos - Prestes no morro 111

Rui Santos - Prestes no morro IV


Rui Santos - Prestes no morro V

Rui Santos - Prestes no morro VI


Rui Santos - Prestes no morro VII

Rui Santos - Prestes no morro VIII


Tarsila do Amaral - Comicio em

Tarsila do Amaral - falta (CrÍméÍa)

Tarsila do Amaral - Boulevard TverskoÍ


El Lissitzky - Derruhemos os hrancos com
um cunha vermelha (1920)

Mikhail Matiouchine - MovÍmento no Espaço


(1917-18) (Museu de São Petersburgo)
tA TOtiB. DE

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~'?ümmffslation de Tarifa.

(Docwnents Tf'ntis par ~tf.Blie EI'''Ti,w."r,:1

Vladimir Tatlin - JVlonumento a 111 Internacional

El Lissitzky - TrÍhuna do Orador


Tarsila do Amaral -
Onde o proletariado dirige

Tarsila do Amaral - Operários (1933)


A doutora Júlia Schertschenko no Laboratório do
Instituto do Cérebro, em Moscou
Potências da imagem

Mas seria redutor interpretar que todo o conflito alimenta-


se, exclusivamente, de meras causas endógenas. Ao contrário, não
se pode, como apontamos acima, esquecer o impacto avassalador
das teses do realismo socialista, com sua seqüela de condenação ao
experimentalismo fragmentário e seu postulado de retorno às formas
fechadas do realismo. Porém, é importante também destacar o papel
que desempenha, nessa conceituação dos escritores pró-soviéticos,
o conceito de massa.

Lembremos que, já no Primeiro Congresso Internacional de


Escritores pela Liberdade da Cultura (Paris, 1935), Brecht defendia
a tese de que o homem não existe para a cultura mas é ela que existe
para os homens e que "uma grande lição que sobre nosso planeta
ainda muito jovem, penetra cada vez mais em grandes massas de
homens e afirma que a raiz de todos os males são nossas relações de
propriedade" (BRECH'T, 1967, p. 43-9). As massas são o novo
sujeito social capaz de alterar as relações de produção e,
conseqüentemente, o papel da técnica na sociedade moderna.
Mais tarde, o mesmo Brecht, no Segundo Congresso de
Escritores Anti-fascistas em Valência, 1937, vai dizer que a cultura, que
até o momento usara as armas do intelecto, não pode, para se defender
das armas materiais de seus agressores, ser vista tão-somente como uma
emanação etérea do espírito mas, acima de tudo, como algo material a
ser defendido com as armas materiais. A questão passa por reprimir o
dado novo, o da anestesia de massa, tão bem explorado, aliás, por
Benjamin, na "Pequena história da fotografia" (1931) e no ensaio sobre
a obra de arte (1936), com o intuito de ainda enfàtizar uma saída racional,
de cunha crítico-ideológico. As massas deixam então de ser sujeito
(dividido) da ação para serem objeto (unificado) da ação.

-110 -
Amado: tradição e extradição

Muitos encontros intelectuais se sucedem. No após-guerra,


por exemplo, acontece em Wroclaw, na Polônia, o Congresso
Mundial de Intelectuais em defesa da Paz. Dessa vez, o delegado
brasileiro é Jorge Amado. Brecht não está presente, porém
comparecem muitos outros escritores que o acompanharam em
congressos anteriores. Em seu discurso, o escritor baiano tenta
vincular o espírito dos Congressos de Escritores Brasileiros (São
Paulo, 1945; Belo Horizonte, 1947) com uma atitude pacifista pró-
soviética à qual contrapõe a intolerância do governo Dutra, mero
apêndice do ator social dominante no seu discurso: o imperialismo.
Denuncia, na ocasião, a pressão norte-americana por reserva de
mercados e o exemplo é altamente eloqüente:

Todos os setores da cultura sofrem a mesma idêntica e violenta pressão


do imperialismo: ciência, arte, literatura; imprensa, rádio, cinema. Somos
o maior mercado externo do cinema norte-americano. Duzentos milhões
de cruzeiros, ou sejam cerca de doze milhões de dólares, saem anualmente
do Brasil para os Estados Unidos em troca de celulóide. Apesar de não
possuirmos o que se possa chamar sequer uma pequena indústria
cinematográfica, o cansaço do público em relação às baboseiras vindas
de Hollywood é tal que, no ano passado, o tempo ocupado nos cinemas
pelos flimes brasileiros, tirou aos produtores ianques cerca de dez por
cento do seu lucro habitual (AMADO, 1948, p. 6-11).

Aquela idéia de Mário de Andrade, de que a verdade


transitória ultrapassa as obras porque permite ver a cultura de um
momento e lhe revela sua autêntica imagem, não descansa, na
argumentação de Amado, em nenhuma autonomia literária. Muito
pelo contrário, está indissoluvelmente atrelada à primazia da
recepção e, em conseqüência, do mercado. Portanto, é interessante

·lll .
Potências da imagem

confrontarmos essa situação de impotência simbólica, que Amado


denuncia na Polônia, com a pretensa potencialidade da imagem tal
como a constatamos numa reportagem, quase simultânea, do próprio
Jorge Amado. Refiro-me a "O povo dos morros e o senador do
povo", estampada pela revista "Leitura" do Rio de Janeiro, em maio-
junho de 1946. A imagem e a linguagem, em seus retornos,
proliferam inusitados sentidos que, a despeito do que Amado "diz",
confirmarão o julgamento crítico de Mário, o que ele "viu".
Poderíamos dizer que o texto (ou, a rigor, os dois textos: um
texto narrativo de Jorge Amado e um texto iconográfico de Rui
Santos) traça o circuito da imagem na construção de um herói.
Afirma, a seu modo, que a situação prévia à enunciação é
absolutamente babélica. A linguagem não comunica, ou antes, tão-
somente prolifera o dissenso entre os homens:

Em outros tempos, nas conversas dos morros, por vezes uma palavra
surgia, quase desconhecida, e ainda assim já com várias e diferentes
significações: comunismo. Podia significar esperança, no dizer de certos
fugitivos da polícia que cruzaram as ladeiras do morro em busca de
rumo; podia significar assassinos e ladrões se quem a pronunciava era
um dos homens ricos da cidade, desses que exploram os morros, seus
casebres e habitantes. Mas chegou o dia em que essa palavra foi legal,
deixou de ser pronunciada a medo, e as faixas do Partido Comunista se
levantaram em toda a cidade. E subiram pelos morros, e os habitantes
das ladeiras e das casas miseráveis viram que ela significava em verdade
esperança e luta.

O sujeito que enuncia a palavra plena é o morro. Mais do que


um espaço, o morro, por prosopopéia, torna-se, no discurso de Jorge
Amado, um agente da experiência de massa:

-112 -
Amado: tradição e extradição

o morro se preparou para receber Luiz Carlos Prestes, o senador eleito


pelos cortiços, pelas favelas, pelas fábricas, pelas casas-pequenas dos
subúrbios, por todos os que desejam e necessitam um Brasil melhor e mais
justo. Ensaiaram os melhores sambas, roncaram as cuícas, mas o senador,
esse estranho senador, queria ver também, e principalmente, o cotidiano
daquelas vidas, as suas dificuldades e seus problemas. O povo do morro
logo compreendeu que Prestes não subia aquelas ladeiras em busca de
novas sensações para um coração frio e envelhecido. Ia, sim, conhecer os
problemas, ter um contato mais íntimo com essas experiências pobres, ia
levar sua palavra de fé no futuro e suas consignas de luta e de unidade.

Se morro e massa tornam-se intercambiáveis sinônimos de


unidade imaginária, Prestes, em compensação, é definido como um
político deslocado, quando não Unheimlich,já que ele era "o senador,
esse estranho senador" que não participa da experiência corporal,
anestésica, da massa, muito embora ele também não seja um simples
turista, "em busca de novas sensações para um coração frio e
envelhecido" .

Todo o relato de Amado está, portanto, construído no intuito


de redefinir a relação entre o alto e o baixo. Mas não se trata apenas
de uma inversão social em que o morro ocupa o estamento mais
baixo e onde o senador é obrigado a subir até a pobreza. Neste
ponto, a imagem fotográfica de Rui Santos suplementa o discurso
narrativo, já que deixa mais clara uma segunda inscrição, em
filigrana, do texto de Amado, notação essa diretamente vinculada
ao imaginário cinematográfico da sensibilidade revolucionária.
Ao subir as escadas do morro, Prestes desanda o caminho das
escadas de Odessa, tal como fixadas no "Couraçado Potemkin"37 .

3 7. Poder-se-ia pensar que esse suplemento é de caráter paródico se atentamos para o fàto de Rui
Santos ter sido fotógrafo de filmes como "Moleque Tião" (1943), com Grande Otelo, "O craque"

-113 -
Potências da imagem

Mas se no filme de Eisenstein eram as massas que fugiam da


repressão, aqui se trata do herói, o senador, que busca a própria
expressão. É ele, agora, o mudo e esvaziado. Cria-se a margem,
portanto, para uma nova representação de massas, não só verbal
mas também simbólica, no marco de uma frente popular, a aliança
que o PCB e a UDN ensaiavam na ocasião. O que se instala,
conseqüentemente, como fruto desse movimento, calcado na
imagem cinematográfica, é o novo significante do comunismo:

Depois que ele [Prestes] desceu as ladeiras, após aquela intimidade


que logo se estabeleceu entre ele e a gente do morro, um novo habitante,
ficou entre os moradores e foi a confiança. [00.] Muitos políticos em
vésperas de eleição subiram as ladeiras do morro, pedindo votos, fizeram
promessas. O morro seria depois da sua eleição melhor que Copacabana,
um paraíso na terra. O senador do povo não faz promessas. Quem
pode resolver os seus problemas é o próprio povo, unido e organizado.
Os sambas ganham conteúdo e as células e os comitês e os militantes e

(1954) de José Carlos Burle, "O saci" (1953) de Rodolfo Nanni, "A sogra" (1954), de Armando
Couto ou "Uma vida para dois" (1953), de Armando Miranda. Rui Santos (1916-1989) foi
auxiliar de Mário Peixoto em "Limite" e documentarista do Departamento de Imprensa e Propaganda,
durante o Estado Novo ("Debret e o Rio de hoje", "Terra Seca", "Dança", "As missões"). Fez
curtas baseados em músicas de Dorival Caymmi, "A jangada e Itapuã". Como militante, Rui
Santos participou, ativamente, dos Congressos de Cinema de 1952 a 1955 junto com o Núcleo de
Alex Vianny, e da Comissão Provisória de Defesa do Cinema Brasileiro. Filmou "O comício de
Prestes no estádio de São Januário" e "Marcha para a democracia", um curta que abordava a
viagem de Prestes por São Paulo, Minas e o Rio Grande do Sul. Junto a Oscar Niemeyer fundou
a Liberdade Filmes, que realizou "O comício de Prestes no Pacaembu" e "Vinte quatro anos de
lutas", uma história do PCB com roteiro de Astrojildo Pereira. Fotografou '\'\. mulher de longe",
filme de Lúcio Cardoso. Fez ainda documentários curtos, nos anos 50, como '\'\. casa de Mário de
Andrade" e dois longas nos 60, "Onde a terra começa", um melodrama baseado em Gorki, e '\'\.
doce mulher amada". Seu último filme foi uma adaptação do romance de Lúcio Cardoso "O
desconhecido" (RAMOS, 2000, p. 495-6).

-114 -
Amado: tradição e extradição

os simpatizantes multiplicam-se nos casebres e nas ladeiras. O morro


adquiriu consciência.

Amado frisa o duplo movimento dessa aliança. De um lado, a


massa, o morro, que ele constrói no relato usando a estratégia típica
da narrativa modernista, a enumeração polissindética e levemente
caótica: "os sambas [ ... ] e as células e os comitês e os militantes e
os simpatizantes"38. Porém, aquilo que, na rapsódia de Mário de
Andrade, por exemplo, seria o coletivo que recolhe uma enumeração
de frutas, flores ou bichos, isto é, produtos da natureza, no caso de
Amado, são agora valores da cultura, entendida como produto das
massas, em outras palavras, ação orientada, racionalidade,
deliberação: consciência.
É bom observar, entretanto, que o percurso da visita
ideológica traça um segundo percurso: o da imagem como moeda.
É ela, como diria Mallarmé, que remunera os defeitos das línguas.
N o início da crônica, Jorge Amado aludia a um pagamento espúreo,
o dos visitantes que subiam o morro em busca do pitoresco:

Os homens ávidos de sensação, chegados de outras plagas nos cruzeiros


caros de turismo, após os cassinos, as noitadas elegantes, as manhãs de
sol em Copacabana, os passeios nos recantos de verdura e beleza, gostam
de subir, por desfastio, as ladeiras dos morros para juntar mais uma
sensação de pitoresco às recordações do Rio de Janeiro. Não reparam
na miséria e na dor, na dureza das vidas que desfilam nas ladeiras do

38. Observe-se a diferença com a enumeração anterior, "eleito pelos cortiços, pelas favelas, pelas
fábricas, pelas casas-pequenas dos subúrbios, por todos os que desejam e necessitam um Brasil
melhor e mais justo", meramente acumulativa, com caráter suasório mais convencional.

-115 -
Potências da imagem

morro: para eles só existe o estranho daquelas moradias, os ritmos da


música ainda bárbara, lembrando a África ancestral, as caras pedindo
fotografias39 (AMADO, 1946, p. 27-34).

Assim como mais tarde, em Wraclaw, Amado denunciará o


cansaço das massas brasileiras perante as imagens rotineiras de
Hollywood, na visita ao morro, a massa internacional, isto é, o turista,

39. Transcrevo, a seguir, a crônica em sua íntegra: "Ao lado das praias maravilhosas, encanto de
turistas ricos, ao lado dos arranha-céus mais altos e luxuosos, de apartamentos de mil e uma noites,
ao lado das avenidas de asfalto com as lojas suntuosas, levantam-se os morros da cidade do Rio de
Janeiro, o pitoresco dramático da miséria, a alegre música dos sambas brotando da fome e da
doença. Os homens ávidos de sensação, chegados de outras plagas nos cruzeiros caros de"turismo,
após os casinos, as noitadas elegantes, as manhãs de sol em Copacabana, os passeios nos recantos
de verdura e beleza, gostam de subir; por desfastio, as ladeiras dos morros para juntar mais uma
sensação de pitoresco às recordações do Rio de Janeiro. Não reparam na miséria e na dor, na
dureza das vidas que desfilam nas ladeiras do morro: para eles só existe o estranho daquelas
moradias, os ritmos da música ainda bárbara, lembrando a África ancestral, as caras pedindo
fotografias. São os exploradores do pitoresco do morro. Os turistas de coração cansado, os literatos
de fácillitentura, buscadores de sensações que flutuam na superfície das coisas, dos sentimentos,
das existências. O morro não é antes de tudo o exótico e o curioso. O morro é o drama, é primeiro
a tristeza e a resistência. Tristeza nascida da subalimentação, das moradias infames, do abandono
e das doenças. Resistência contra tudo isso, de um povo que não se deixa matar, que transforma sua
desgraça em música e que marcha para a frente apesar de tudo. Em outros tempos, nas conversas
dos morros, por vezes uma palavra surgia, quase desconhecida, e ainda assim já com várias e
diferentes significações: comunismo. Podia significar esperança, no dizer de certos fugitivos da
polícia que cruzaram as ladeiras do morro em busca de rumo; podia significar assassinos e ladrões
se quem a pronunciava era um dos homens ricos da cidade, desses que exploram os morros, seus
casebres e habitantes. Mas chegou o dia em que essa palavra foi legal, deixou de ser pronunciada
a medo, e as faixas do Partido Comunista se levantaram em toda a cidade. E subiram pelos morros,
e os habitantes das ladeiras e das casas miseráveis viram que ela significava em verdade esperança
e luta. O morro se preparou para receber Luiz Carlos Prestes, o senador eleito pelos cortiços, pelas
favelas, pelas fábricas, pelas casas-pequenas dos subúrbios, por todos os que desejam e necessitam
um Brasil melhor e mais justo. Ensaiaram os melhores sambas, roncaram as cuícas, mas o senador,
esse estranho senador, queria ver também, e principalmente, o cotidiano daquelas vidas, as suas
dificuldades e seus problemas. O povo do morro logo compreendeu que Prestes não subia aquelas
ladeiras em busca de novas sensações para um coração frio e envelhecido. Ia, sim, conhecer os
problemas, ter um contato mais íntimo com essas experiências pobres, ia levar sua palavra de fé no

-116 -
Amado: tradição e extradição

ávido de sensação, também surge tentando acalmar seu desfastio


com outras sensações que, por sua vez, ele paga com imagens - as
fotografias que recompensam esses não menos ávidos rostos
ancestrais africanos. A imagem, em suma, é a prótese de massa que
sustenta a produção simbólica de uns e de outros e os define,
enquanto homens, como portadores de uma cultura acefálica.
Diferentemente do animal, que não se interessa pelas imagens qua
imagens, o homem alimenta seu próprio ritual. Nesse sentido,
Agamben (1998, p. 66) chega a definir o homem como o animal
que vaI ao cmema.
Cumpre ainda salientar que, no discurso de Jorge Amado, o
morro vale por um coletivo diferenciado do conceito inorgânico de
multidão. A multidão, ocupando espaços públicos, é o conceito que,
tradicionalmente, ameaçava desestabilizar as instituições estatais. O
morro, enquanto massa, já não é um mero aglomerado
circunstancial. Quando organizado, constitui-se em poderoso ator
social, não mais convocado conforme as linhas hierárquicas da
sociedade estamental.

Com efeito, uma das características básicas da sociedade de


massas é, justamente, sua comunicação direta, seu apelo horizontal.
E para tanto são indispensáveis as novas tecnologias de

futuro e suas consignas de luta e de unidade. Depois que ele desceu as ladeiras, após aquela
intimidade que logo se estabeleceu entre ele e a gente do morro, um novo habitante, ficou entre os
moradores e foi e a confiança. Muitos políticos em vésperas de eleição subiram as ladeiras do
morro, pedindo votos, fizeram promessas. O morro seria depois da sua eleição melhor que
Copacabana, um paraíso na terra. O senador do povo não fàz promessas. Quem pode resolver os
seus problemas é o próprio povo, unido e organizado. Os sambas ganham conteúdo e as células e
os comitês e os militantes e os simpatizantes multiplicam-se nos casebres e nas ladeiras. O morro
adquiriu consciência."

-117 -
Potências da imagem

comunicação. Dorival Caymmi compreendeu-o muito bem quando


tirou dos romances de Amado músicas como "É doce morrer no
mar", "Acalanto de Rosa Palmeirão" ou "A Estrada do Mar"
(CAYMMI, 1940, p. 60); ou quando Teófilo de Barros transmitiu
pela Rádio Tupi a macumba de "Jubiabá" (AMADO, 1939). São
os primeiros, e certeiros, passos para a canonização de Jorge Amado
como escritor pop internacional.
Mas, para além da música, embora elas pressuponham, claro
está, o corpo, as próprias concentrações e comícios alteram a
sensibilidade cultural de massa. As passeatas públicas transmitem,
de fato, uma energia redobrada a partir, não mais de discursos
articulados, porém de palavras de ordem, de cartazes, de certa
visibilidade tátil da linguagem. Nesse sentido, o desenho gráfico
confere às massas uma nova identidade. Susan Buck-Morss
argumenta que a mÍmesis desloca, assim, o argumento escrito, da
mesma forma em que o povo passa a fazer parte do coletivo, isto é,
mimetizando sua própria aparência física (BUCK-MORSS, 2000).
É elucidativo, a esse respeito, reler a descrição que Osório
César nos dá de um desfile de 10 de maio na União Soviética. Nela
se destacam as vozes dos líderes, mediadas sempre pelo microfone,
cujo eco vibrava nas muralhas do Kremlin, interrompido apenas
pelo ruído do motor dos aviões que, no céu, traçavam grafismos,
ora a estrela soviética de cinco pontas, ora os nomes dos líderes
revolucionários aí presentes, reproduzidos no vácuo celeste:

Às 8 horas da manhã saí a pé do meu apartamento, perto da Tiverskoi


Boulevard, atravessei toda a rua Gorki e, em pouco tempo, me encontrei
na Praça Vermelha. Já grande fila de soldados seguravam os cabos de
isolamento para o livre caminho do desfile. Subi às arquibancadas e

-118·
Amado: tradição e extradição

procurei me localizar nas imediações do microfone. Desse modo


poderia ver de perto os grandes vultos do Governo Soviético. Às 9
horas em ponto, de acordo com o programa, Stalin, os comissários do
povo, e os membros do Comitê Central do Partido tomavam lugar na
tribuna, no meio de uma ovação que durou cerca de 5 minutos. Nunca
na minha vida tinha presenciado tamanha manifestação. Em seguida,
começaram os discursos. Vários oradores falaram à multidão em
orações curtas: Kalenin, velho camponês e atual presidente da URSS.
Velhinho simpático, sorridente e de voz fIrme; Vorochilov, garboso e
elegantíssimo marechal do Exército Vermelho; Maxim Gorki, homem
agigantado, magro, com bigodes cheios e pendentes, ídolo do povo
russo, e, por fIm, Stalin. Confesso que a minha emoção foi grande
quando vi o Secretário Geral do Partido se levantar, chegar perto do
microfone e, com voz grossa, pausada, fIrme, num improviso, se dirigir
àquela multidão que não cessava de aplaudi-Io com um grito uníssono,
cujo eco, de muitos milhares de pessoas, vibrava fortemente pelas
muralhas do Kremlin. Como eu senti diferente a impressão desse
homem da dos retratos que dele fIzeram os Emils Ludwigs! Escutei
com atenção, palavra por palavra, o que ele disse a só guardei o timbre
metálico e a sonoridade de sua voz, porque desconhecia o idioma russo.
Finda a cerimônia, começou o desfIle. Um esquadrão de cavaleiros
cossacos rompe a marcha. Pelotões intermináveis, com fIlas formadas
por um operário, um soldado, um camponês, um marinheiro, um
aviador e um estudante de escola superior, todos de braços dados,
constituindo uma só cadeia, vestidos com uniformes de trabalho e
armados de fuzis a tiracolo, começavam a passar cantando, a três vozes,
as canções populares russas. Pelotões de jovens operárias, em extensas
fIlas cerradas, todas de calção de ginástica e empunhando compridas
hastes com bandeirinhas multicores, passavam em marcha acelerada
ao som das bandas militares. Eram aos milhares. Estudantes de todas
as Universidades de Moscou, grupos de todos os clubes culturais de
fábricas e de fazendas coletivas desftlaram sem parar. Em certos
momentos, éramos despertados pelo ruído do motor dos aviões que no
céu, em evoluções complicadíssimas, traçavam ora a estrela soviética

-119 -
Potências da imagem

de cinco pontas, ora as palavras: Stalin, Lenin, Marx, Engels, para


depois sumirem no horizonte. E ainda éramos assustados com os
mergulhos de pequenos aviões rapidíssimos que passavam
inesperadamente por nossas cabeças. Para terminar o desfile, isto já
para as 4 horas da tarde, assistimos, pelo corpo de balé russo, em toda
a extensão da Praça Vermelha, uma peça original sobre o tema: defesa
de uma cidade atacada pelo inimigo. Movimentos interessantes das
bailarinas, ritmados, onde se poderia observar a estratégia do comando
e a habilidade dos defensores (CESAR, 1944, p. 45).

Tarsila do Amaral, companheira de Osório César na viagem à


União Soviética, tenta igualmente apreender esse dinamismo político
e o traduz em vários desenhos para a obra que ambos publicam na
volta, "Onde o proletariado dirige" (1932). Tomemos, por exemplo,
a capa. Com dinamismo e construtivismo formais impecáveis, uma
vez que a construção devia ser a imagem-ícone da sociedade socialista,
Tarsila, à maneira de EI Lissitsky, usa apenas três cores, preto, vermelho
e branco, para desenhar um perfil de fábricas e torres, o mundo
operário em marcha, que divide o campo visual em dois. No céu
vermelho, sobre o qual se recorta a fumaça das chaminés, o nome do
autor. Sobre a massa escura, ou seja, a partir dela, o título da obra.
Mantém-se, nesse caso, a diagonal ascendente, tal como em
"Movimento no espaço" (1917-8) de Mikhail Matiouchine ou em
propostas arquitetõnicas, tais como o "Monumento a III
Internacional" de v: Tatlin (1919-20) ou os projetos de A.L. e v:
Vesnine para o Palácio do Trabalho em Moscou (1922-3).
Vejamos agora as fotos de Rui Santos. Uma delas, a que ilustra
a capa da reportagem de Amado, mostra um dos moradores do morro
abrindo uma torneira. A água encanada - esse meio de comunicação,

-120 -
Amado: tradição e extradição

através da saúde, entre a favela e a cidade que, finalmente, subiu o


morro - jorra diante dos nossos olhos graças a intervenção de um
dos moradores. Seu braço ocupa a mesma posição e orientação que o
título na capa de Tarsila. A composição repete-se, ainda uma vez, na
reportagem interior, porém com ressalvas. Na fotografia queabre a
série, a composição triangular coloca, em primeiro plano, adquirindo
estatura colossal, o senador do povo, Luiz Carlos Prestes. A seu modo,
trata -se de uma adaptação compositiva da "Tribuna de orador" (1920),
de EI Lissitsky.
É também sob um foco em plano inferior que surge, como já
apontamos, a escadaria e que vemos, ainda, dois moradores do
morro. Os rostos deles, olhos fechados, em êxtase, traçam uma linha
que, a partir das análises sobre transgressão, que Bataille empreende
em "Documents" e expande, mais tarde, em "A parte maldita",
chega ao rosto de gozo de Arthur Ornar, sublinhando esse plus de
energia que atravessa o rosto público. Em outras palavras, as fotos
destacam, como mais tarde assinalarão Deleuze e Agamben, que o
rosto é um espaço político de enunciação.
A mensagem completa-se na foto final. Nela, legendada "O
morro adquiriu consciência", vemos quatro pessoas. A distribuição
torna a ser oblíqua. No ponto extremo da direita, uma figura de
mulher. No centro, dois homens, negros. O primeiro deles, com
terno, ocupa o centro da foto e olha em direção ao ponto de fuga. O
ponto mais baixo, onde esse processo da consciência teve origem, é
o que ora cabe ao senador Prestes.
É neste momentO que a mensagem de Amado-Santos se cinde
em duas vertentes complementares. Assim como no texto escrito
tradicional asssistimos a uma certa descorporalização dos agentes, a

-121 -
Potências da imagem

materialidade do texto de massas funciona agora como uma tela e


nela projetam-se os atributos físicos - gênero, etnia, idade - desses
sujeitos em trânsito à condição de ícones de massa. Mais ainda:
diríamos que uma certa teoria do sujeito deriva desse fenômeno.
Uma teoria materialista, fenomênica, não discursiva e que supõe
que olhar é ver. Um belo exemplo consta do relato de Osório César,
em visita ao laboratório. Trata-se de uma experiência nos antípodas
do heideggerismo de Lacan, por exemplo, que é seu rigoroso
contemporâneo.
Por outro lado, essa corporalização vicária das imagens, mero
pre-anúncio do que virá a ser a sociedade do espetáculo, decorre de
algo que é fato sabido, isto é, que houve políticos populares antes
mesmo do advento da máquina; mas nunca, com anterioridade à
fotografia, o líder político pôde receber tratamento de estrela da
mídia. Nesse sentido, é absolutamente anterior à tecnologiade
massas o retrato de Prestes, que nos oferece um dos mais conspícuos
escritores marxistas, Nicolás Guillén, cujo texto trabalha no sentido
da descorporalização idealizada do que é retratado:

Como é Prestes? Eu o conheci em São Paulo, em fins de 1947 [ ...] A festa


celebrava-se numa casa de família e a ela esteve presente o bem-amado
líder popular. Vi e falei então a um homem de breve estatura, magro, pálido,
de cabelos negros e fronte alta. Trajava-se modestamente, sem o menor
detalhe de luxo ou rebuscamento. Não me esqueço, por exemplo, dos
sapatos de Prestes, uns borzeguins pretos, iguais aos que em Cuba pode
usar um operário de salário mínimo. Do mesmo teor o paletó escuro e a
camisa branca: tudo nele respirava severa continência, sobriedade; mais
ainda, ausência de meios econômicos. No entanto era senador. [...] O que
mais impressionava em Prestes é o olhar. Um olhar profundo, melancólico;
um olhar de homem que tem sofrido muito. Dir-se-ia que essa melancolia

-122 -
Amado: tradição e extradição

que se desprende do olhar de Prestes comunica uma luz suave ao seu rosto,
desde as olheiras sombrias e caudalosas até aos lábios apertados num rictus
de dor ... Naquela noite Prestes pronunciou um breve discurso para um
auditório que se comprimia a dois metros de distância, e me pareceu tão
severo na expressão do pensamento como em seu alinho pessoal
(GUILLÉN, 1951, p. 6).

Jorge Amado (1957, p. 24-5) nos retrata Brecht de um modo


semelhante: "Les cheveux coupés court, Ia tunique ajustée, il y avait
dans Ia silhouette austere de Brecht quelque chose d/ un soldat". A
conclusão óbvia é que nem sempre o realismo soube tirar todo o
proveito possível da imagem e coube ao capitalismo essa
disseminação erótica de imagens. Isso talvez explique a diferente
sorte, enquanto ícones revolucionários, que coube a Fidel Castro e
Che Guevara. Mas aprofundar esse imaginário nos levaria longe.
Voltemos ao que interessa. Como espero ter salientado, no
texto de Amado retoma a imagem de Rui Santos, nesta a de Tarsila,
e nela a de El Lissitsky, Matiouchine, Tatlin, Vesnine... A repetição
não dilui; ao contrário, ela restitui possibilidade e potência a uma
imagem. Essa idéia, na verdade, opõe-se frontalmente aos
pressupostos hegelianos da estética de Amado. Como bom realista,
elejulgava que toda expressão é dominada por um meio através do
qual se atinge um determinado objetivo. A consciência, no relato
de Prestes, por exemplo. Esse meio - a palavra de Amado, a imagem
de Rui Santos - desaparece, enquanto tal, para que o objetivo seja
alcançado ou, invertendo o raciocínio, atinge-se uma expressão,
adquire-se uma consciência quando, e somente quando, a mediação
desaparece enquanto mediação, isto é, quando ela se coloca acima
ou além da expressão ou da consciência.

-123 -
Potências da imagem

Muito pelo contrário, teríamos que dizer que uma nova


alternativa poética e política se abre quando o meio, que veio sendo
trabalhado pela repetição, não chega, propriamente, a desaparecer.
A tarefa da crítica cultural não ilusionista reside justamente aí: em
repetir e, através da repetição, dar a ver a mediação sempre presente,
porém sempre oculta em sua presença .

•124 -
Deleitação morosa:
imagem, identidade e testemunho

Y a nuestros pies un rÍo de jacinto


Corria sin rumor hacia Ia muerte.

Leopoldo Lugones

La deleetatio morosa s/ offre exactement comme un exercice spirituel


inversé: car materiellement parlant, elle consiste précisément à cultiver
Ie souvenir des sens frustrés de Ieur objet, à convertir ce souvenir en un
faculté évocatrice des choses absentes, à tel point que 1/ abscence même
des objets devient Ia condition sine qua non de cette faculté de
représentation de Ia sensibilité frustré.
J?ierre Klossovvski
Potências da imagem

Arte e vida

Vladimir Yankelevitch observa que sobre nossa modernidade


ainda pesa, de fato, e mesmo que disso não se fale, o imenso
holocausto como um remorso invisível, crime este que, além de
imprescritível é, também, incontrovertível. O "Shoah" não se presta,
com efeito, à disputa banal entre um "pró" e um "contra" e muito
menos à mescla de um e outro argumento, tal como pode ocorrer
em uma mesa de debate universitário. Só a idéia de confrontar o
pró e o contra do holocausto conota, simultaneamente, algo de
irrisório e execrável: a banalidade do mal (YANKELEVITCH,
1987). No entanto, e seguramente como inequívoco indício da apatia
generalizada dos tempos que declinam, recentemente, a partir de
um fato estético, um filme, "La vita e bella", o incontrovertÍvel
tornou-se controverso e, desse modo, o mandato de sacralidade que
pesava sobre a experiência do holocausto prescreveu, podendo assim
o funesto converter-se em objeto inestético e opinável.
É curioso e ao mesmo tempo instrutivo repassar o debate
provocado no Brasil pelo filme de Benigni. Possivelmente ele
mereceu toda a atenção da imprensa por ser um filme "inimigo",
aquele que arrebatou o prêmio de melhor filme estrangeiro a
"Central do Brasil" e, mais do que isso, por reconhecer-se nessa
obra uma alegoria de nossa mesma condição. Não deve
surpreender-nos, portanto, ver no relato de Benigni, desdobrados
como num espelho, os mesmos valores que habitualmente
encontramos nas críticas à cena neo-liberal que, justamente no Brasil,
assumiu aspectos tão agônicos nos últimos tempos. Podemos, então,
rearmar o debate, alinhando, lado a lado, aquelas leituras que

·126·
Deleitação morosa

enfatizam O estético para melhor eludir os efeitos éticos ali


implicados. Em uma delas, "Regras de vida e morte", o filósofo e
presidente do CEB~José Arthur Gianotti, opta por naturalizar
a exceção histórica, destacando que, no campo de concentração
"Guido inventa então um jogo, mediante o qual traduz a
regulamentação para o trabalho escravo e para a morte numa
c9mpetição, em que os vencedores reafirmam sua vontade de viver
e ganham de presente um verdadeiro tanque de guerra transformado
em brinquedo" (GIANOTTI, 1999).
Buscando então reduzir o holocausto à escala controvertível,
Gianotti precisa valer-se do recurso lúdico (o tanque é um brinquedo,
uma brincadeira inconseqüente), mediante o qual pode concentrar-
se no compromisso ético das vanguardas históricas e assim camuflar
as conotações éticas de uma história retrógrada, a de sua mesma
recepção. Destaca, pois, com insólito idealismo, "a maneira pela qual
o acaso ferde a rotina para dar lugar ao amor, ressaltando o ridículo
daqueles que se tornaram os autônomos da ordem". Reprovável
como opinião, o juízo é igualmente inaceitável como diagnóstico.
Cabe perguntar-se, em poucas palavras, como se pode falar de amor
no mal e na abjeção mais absolutas? É impossível, de fato, resgatar
qualquer tipo de racionalidade, e muito menos sobreviver, se se acata,
ainda que de maneira dissimulada, as regras de um campo.
Desconhecendo não só a lição de Primo Levi mas os inequívocos
indícios da decomposição social, Gianotti aferra-se ao signo paternal
da homogeneidade universal. E mais, vê inclusive uma estratégia
tipicamente modernista, a do castigat ridendo mores, justamente onde
não há nem sátira nem moralização e onde "o exagero como forma
de fazer rir e denunciar a perversidade daqueles que fazem funcionar

-127 -
Potências da imagem

o sistema" serve somente para uma denúncia anacrônica, quando


não secundária, a de que a pintura metafísica (a chegada do trem ao
campo de concentração seria, na sua opinião, uma citação dos espaços
vazios ao modo de Chirico) «na medida em que procura o sublime,
não deixa ao homem qualquer escapatória". Adotando o partido da
estética da homogeneização universal, a do belo kantiano, Gianotti
vale-se assim das velhas artimanhas do eu: sacrifica o sujeito
empírico para salvar o ego transcendental.
Ao invés disso, seria conveniente recordar a profunda inversão
proposta por Lacan ao argumentar que não existe imperativo
categórico de privação sem gozo, ou seja, que é necessário ler «Kant
com Sade" (LACAN, 1975, p. 337-362) para não aniquilar no sujeito
a força de querer salvar o saber (ou, ainda, o não saber) herdado da
tradição. Mas, mesmo assim, seria importante resgatar, nessa
elaboração de Lacan, o traço de Bataille e sua proposta de um valor-
de-uso da obra de Sade como fermento heterológico pós-
revolucionário, capaz de cindir, de um lado, a organização política e
social unificadora, «amorosa", da sociedade industrial e, de outro, «uma
organização anti-religiosa e associal cujo objetivo seria a participação
orgiástica em toda forma de destruição" de consenso. É bom, portanto,
sublinhar que a heterologia de Bataille descrimina-se, assim, não só
do assimilacionismo dominante como do pluralismo integrador.40

40. "lI faut done largement tenir eompte dans une telle prévision de l'intervention probable dans
Ia culture commune des éléments de couleur. Dans Ia mesure ou de tels éléments participeront à
I' érnancipation révolutionnaire, Ia réalisation du socialisme leur apportera Ia possibilité d'echanges
de tous ordres avec les éléments de race blanche, mais dans des conditions radicalemént différentes
de celles qui sont faites aetuellement aux negres civilisés d'Amérlque. Or les colleetivités de
couleur, une fois liberées de toute superstition comme de toute oppression, représentent par
rapport à l'hétérologie, non seulement Ia possibilité mais Ia nécessité d'une organisation adéquate

-128 -
Deleitação morosa

Contra esse pluralismo integrador, Bataille nos propõe uma


hibridação transculturadora, semelhante àquela que Alfred Métraux
encontrará no vodu haitiano ou Pierre Verger no candomblé da
Bahia, o que em nada deve surpreender-nos porque a primeira
expressão destas idéias se lê, precisamente, em um texto que, a pedido
de Alejo Carpentier, Bataille redige em 1931 e no qual prognostica
como muito "possível (e ainda bastante verossímil) que os costumes
de nossa vida política se transformarão ao ponto de não diferir muito
dos da América Latina" (BATAILLE, 1931, p. 199). Se aceitamos
o argumento heterológico, somos forçados a concluir que "La vita
e bella" é tão só uma alegoria da história latino-americana mais
recente na qual, em todo caso, e voltando assim à argumentação de
Gianotti, se há nela espaço para o amor, não será por certo o da
charitas cristã nem sequer o do amour fou bretoniano, mas o do erotisme
sadiano de Desnos ou Bataille.

Passemos a uma outra leitura do fIlme. Arnaldo Jabor, diretor


cinematográfico, autor de "Tudo bem" (1978), "Eu te amo" (1978)
e "Eu sei que vou te amar" (1986), se concentra também na estética
de "La vita e bella" porém, à diferença de Gianotti, arranca das

Toutes les formations qui ont 1'extase et Ia frénesie pour but (mise à mort spectaculaire d'animaux,
supplices partiels, danses orgiaques, ete.) n' auriaent aucune raison de disparaitre le jour ou une
conception hétérologique de Ia vie humaine serait substituée à Ia conception primitive; elles
peuvent seulement se transformer en se généralisant sous 1'impulsion violente d'une doctrine
morale d'origine blanche, enseignée à des hommes de couIeur par tous ceux des Blancs qui ont
pris conscience de 1'abominable inhibition qui paralyse Ies collectivités de leur race. C'est seulement
à partir de ia collusion d'une théorie scientifique européenne et de ia pratique negre que peuvent
se développer les lnstitutions qui serviront définitivement d'issue, sans autre limite que celle des
forces humaines, aux impulsions qui exigent aujourd'hui Ia Révolution par le feu et par Ie sang des
formations sociales du monde entier." (BATAILLE, 1971, p. 54-6).

-129 -
Potências da imagem

normas do artifício sensível o enigma da apatia ética que através


dele se nos propõe. Sua leitura parte da constatação de que o filme
é, antes de mais nada, mercadoria:

Com os mercados nacionais já conquistados, eis o sinal da influência


cultural invencível- os "nacionais" terão de fazer filmes que caibam nos
códigos e repertórios que o americano adotou para o seu próximo mi-
lênio: realismo na trama, identificação projetiva com os personagens,
princípio, meio e fim, final feliz (de preferência) ou, se tristonho, com
uma mensagem de redenção ("redemption") qualquer, que provoque
esperança nas platéias. Sem isso, não há negócio. [00.] Nada mais remoto
do que o neo-realismo, Godard, cinema de autor; nada mais morto que a
esperança do modernismo, Brecht e seus filhos; nada mais velho que o
sonho de um cinema influenciando o "bem" do mundo. Hollywood,
mesmo com seu dourado passado e seus gênios solitários, matou o diretor
para sempre, transformando-o em guarda de trânsito de atores. Hoje,
quem escreve e dirige é o computador, com "softwares" de roteiros,
enquanto os produtores, ovantes, celebram o fim dos chatos "artistinhas".
[00.] A tradição de "arte" do cinema europeu virou uma lenda e só serve
para alimentar um novíssimo tipo de baixo comercialismo, este que o
Benigni adota: o filme que finge que é "de arte", "europeu", de "autor",
com causas "sociais" ou libertárias. ''A vida é bela" é isso.

A psicanalista e escritora Maria Rita Kehl nos oferece uma


leitura extremamente pertinente, possivelmente a mais aguda das
recentemente publicadas. Procede como Jabor ao comparar a
comicidà.de do filme com o humor satírico do alto modernismo.
Admite que o herói cômico, ao não deixar-se enganar sobre o estatuto
da castração, circula pelas fendas da ordem fálica, armando sentidos
a partir das brechas da lei dominante. Mas isso não basta para ver
em Benigni uma espécie de Chaplin pós-moderno, pois

·130 -
Deleitação morosa

[ ...] enquanto os heróis chaplinianos fracassam, revelando que é


impossível a um homem de boa-fé ganhar o jogo da vida sob as regras
do capitalismo selvagem da América da primeira metade do século, os
personagens de Benigni se dão bem, porque fazem suas próprias regras,
ignorando - esperta ou ingenuamente todas as conveniências. O truque,
que funciona tão bem nos outros filmes do comediante, revela um sério
limite ético ao ser transposto para o contexto do mal absoluto que A
vida é bela tenta relativizar (KEHL, 1999).

Essa diferença cmcial reabre a questão do jogo (a arte, a


religião) implicada no fIlme. Não se trata do acaso liberador da
modernidade heróica, mas de um conceito ominoso de acaso
generalizado. Maria Rita Kehl argumenta:

A idéia do 'jogo' é macabra; o desafio dos mil pontos que um, e somente
um, há de conseguir completar para ganhar - o quê? um "paner"/a
sobrevivência - me fez pensar, a certa altura do fume, se a intenção do
comediante não terá sido a de nos despertar para a brutalidade da vida
nas condições atuais. Entretanto, envolvidos no ambiente ficcional de
A vida é bela, nada nos resta senão torcer - pelo quê! Para que essa
criança seja salva, quando todas as outras foram exterminadas! Somos
poupados de sofrer pelas outras crianças; quase não as vemos - são
figuras distantes. Ninguém mais nos interessa, aliás. Sabiamente, os
outros prisioneiros são fotografados como parte do cenário, massa,
sempre em planos gerais, de modo que só a família do protagonista
tenha rosto, história, subjetividade. Os outros, os não-eus, não são
ninguém. Seu sofrimento não conta para o espectador. Mas essa criança
- uma criança amada por um pai com o qual o público se identifica -,
uma criança que poderia ser o filho de vocês!, se essa se salvar, estará
tudo bem. Torcemos para que Josué vença seu jogo imaginário,
apostando na sobrevivência do último valor inquestionável no quadro
do individualismo contemporâneo: a unidade familiar, a pequena célula

-131 -
Potências da imagem

narcísica mãe-filho, na qual projetamos uma solução para nosso


próprio desamparo, sem nos dar conta de que o rompimento dos
vínculos coletivos - e não do vínculo familiar - é que agrava a forma
contemporânea desse desamparo. Nem mesmo uma criança protegida
pelo amor paterno deixaria de sentir, à sua volta, a angústia de seus
semelhantes.

Outro psicanalista, Contardo Calligaris, insiste na idéia de


que a fabulação de Guido não protege a infância de J osué porém a
do próprio pai em seu assombroso egoísmo, idéia que, se tivesse
sido desenvolvida, contrariamente às intenções de Benigni, decerto
teria produzido efeitosmais interessantes, como uma amarga reflexão
sobre a violência desse suposto amor paterno que não hesita em
transformar o filho em instrumento do narcisismo ilimitado do pai41
(CALL1GAR1S, 1999). Calligaris destaca, mesmo assim, que o
filme, ainda a contragosto, se inscreveria na tradição do mais pesado
estereótipo italiano42• Teria, no entanto, que se observar que,
inclusive nessa tradição, o princípio moralizador satírico, ainda que
rebaixado, de qualquer forma atuava em tempos relativamente
recentes. Basta recordar um episódio de "I Monstri" (1963), de
Dino Risi. Cinema no cinema, vemos alguns espectadores seguindo

41. Em um debate sobre "EI arte y su ética" ("Clarín", Buenos Aires, 28 feb. 1999), Juan Carlos
Volnovich defende leitura semelhante.
42. Em "Itália esconde história pouco conhecida da tragédia" (O Estado de São Paulo, 27 fev.
1999) o professor Andrea Lombardi desconstrói a estereotipia bipolar alemão cruel - italiano
cordial, mas lembra, ainda assim, de um episódio recuperado recentemente por Enrico Deaglio
("La Banalità del Bene. Storia di Giorgio Perlasca"), em tudo semelhante ao de Schindler, a
história do filo-fi-anquista Perlasca, que em 1944 fingiu ser cônsul espanhol em Budapeste para
poder salvar reféns judeus.

-132 -
Deleitação morosa

os passos de um esquadrão de extermínio que penetra em uma casa,


arrebata uma família da ordem doméstica e, colocando-a contra a
porta de entrada, fuzila a todos sem dizer uma palavra. No silêncio
da projeção, a câmara se detém então sobre um dos espectadores,
U go Tognazzi, que, depois de um silêncio adicional, e quando todos
esperávamos uma previsível condenação humanista, ainda que banal,
do extermínio, ele cochicha com sua mulher que poderiam
aproveitar um detalhe arquitetânico do cenário do crime na casa
que estão construindo para passar os finais de semana. Ainda que o
riso banalize o horror, mesmo assim há um resquício satírico no
epíteto de personagens como esses. São monstros. Ninguém, no
entanto, lança hoje em dia essa acusação impunemente contra
Benigni. Muito pelo contrário, ele é premiado.
A monstruosidade (invisível) de Benigni reside no fato de ele
ter construído uma fábula em função de uma dupla impossibilidade
egoísta: negar o horror e não poder dizer nada a esse respeito. É
essa mesma dupla limitação, além disso, a lição que a personagem
Guido impõe a seu filho e que todos saúdam como hino ao amor:
ver sem olhar. É esse déficit de fábula do filme o que o transforma,
na opinião de J acques Ranciere, não mais em uma obra indigna
senão em um filme medíocre. Incapaz de fabular a dessubjetivação,
o ator Benigni é idêntico ao diretor Benigni (o que não acontece
com Chaplin em "O grande ditador") e suas imagens do campo
são ruins não porque o holocausto possa ou não deva ser posto em
imagens, mas porque são gratuitas e intercambiáveis com as que as
antecedem (RANCIERE, 1999, 2001). Nessa sua pobreza
discursiva, o filme de Benigni se mimetiza com os relatos baixos de
uma época que carece de relatos e nos mostra, inclusive, a debilidade

-133 -
Potências da imagem

estrutural do pensiero debole. Com efeito, "La vita e bella" nos


persuade de que o mundo é um cassino especulativo e, como o amo
capitalista, nos impõe trabalhar por ele. Normalizamos essa
representação. Negamos toda percepção angustiosa. Desejamos que
J osué se salve. Minimizamos o custo social de dita salvação e,
finalmente, racionalizamos, de maneira cínica, o desastre implantado,
resignando-nos a que a vida, homogênea e hegemônica, seja
consensualmente bela. O círculo se fecha sobre si mesmo. Nesse
sentido, "La vita e bella" opera, justamente, nas antípodas de "Salà",
o filme de Pasolini. Expropria-nos o pensamento da morte, propõe-
nos a fala charlatã, a baba adesiva, a mesma, como disse Girando,
que contempla o desastre através do bolso e, por isso mesmo, ao
dissuadir-nos da perda e desinteressar-nos por toda experiência
interior, confisca-nos a pergunta pela identidade, quer dizer, a
pergunta pela linguagem e pela vida. Caberia então, a esse respeito,
resgatar aqui a reflexão de Blanchot, pertinente como nunca:

Campos de concentração, campos de aniquilamento, figuras em que o


invisível se fez visível para sempre. Todos os traços de uma civilização
revelados ou postos a descoberto ('o trabalho liberta', 'reabilitação
pelo trabalho'). Nas sociedades onde se exalta precisamente como o
movimento materialista pelo qual o trabalhador toma o poder, o
trabalho se converte no sumo castigo já não como exploração e mais-
valia, porém sendo o limite em que se desfez todo valor e o 'produtor',
longe de reproduzir ao menos sua força de trabalho, nem sequer é
ainda o reprodutor de sua vida. O trabalho deixa de ser sua maneira de
viver para ser seu modo de morrer. Trabalho, morte: equivalentes. E o
trabalho está por todos os lados, em todos os momentos. Quando a
opressão é absoluta, não há mais ociosidade, 'tempo livre'. O sonho
está sob vigilância. Então o sentido do trabalho é a destruição do

-134 -
Deleitação morosa

trabalho em e pelo trabalho. Mas sim, como aconteceu em alguns


kommandos, trabalhar consiste em levar umas pedras a determinado
espaço e empilhá-Ias, para logo trazê-Ias de volta ao ponto de partida
(Langbein em Auschwitz, o mesmo episódio no gulag, Soljenitsin)!
Então, o trabalho já não pode destruir-se com alguma sabotagem, já
está destinado a anular-se por si mesmo. No entanto, guarda um sentido:
não só destruir ao trabalhador mas, de imediato, ocupá-Io, fIXá-Io,
controlá-Io e possivelmente, por sua vez, dar-lhe consciência de que
produzir e não produzir é o mesmo, como o trabalho. Porém, também,
dessa maneira, esse nada, o trabalhador, vai tomar cónsciência de que a
sociedade que se expressa através do campo de trabalho é isso contra o
qual se deve lutar, ainda que morrendo, ainda que sobrevivendo (vivendo
apesar de tudo, acima de tudo, para além de tudo), sobrevivência que é
(ainda assim) morte imediata, aceitação imediata da morte em sua
negação (não me mato porque isso lhes agradaria demasiadamente,
me mato pois com isso, me transformo em vida apesar disso)
(BLANCHOT, 1990, p. 73).

"La vita e bella" é a morte da arte ou sua afirmação como


desfala e mercadoria. O outro lado da moeda se encontraria em
uma linguagem enigmática que só pudesse ser cópia, reescritura
ou reinstalação da passividade, um discurso do qual já houvesse
desaparecido toda possibilidade positiva de produção mas que, no
entanto, passasse, quase desapercebido, da passividade quotidiana,
reprodutiva, do homogêneo ao mais além do passivo, aquilo que
não faz da morte uma saída, porém um elemento a mais de vitalidade
do sensível. Poderia exemplificá-lo não com uma imagem-
movimento, como a de Benigni, mas com uma imagem-tempo, a
de uma instalação chamada "Identidade".

-135 -
Potências da imagem

Identidade e memória

Estamos em uma sala grande, branca. À altura dos olhos, uma


faixa, estreita, de imagens. Fotos de homens e mulheres. Poucas
vezes, homens com mulheres. Em epígrafe, quase monotonamente,
as circunstâncias da desaparição: "Criança que devia ter nascido
em tal dia de 1977. A mãe, grávida de tantos meses, foi seqüestrada
neste ou naquele momento ..." Mais que surpreendente, a instalação
"Identidade" (ALONSO et alli, 1999) era comovente porque, por
trás dessas imagens fotográficas de arquivo, de grano grande e,
muitas vezes, de previsível extração policial, a faixa, estreita e lisa,
tornava-se um espelho onde nós, os espectadores, nos somávamos
ao abismo abjeto do ontem e do hoje, o de uma ausência nunca
mais presente e de uma presença sempre tão esquiva. "Identidade"
questionava, assim, quase sem buscá-lo, ao sujeito que passivamente
se defronta com um objeto de arte e lhe pedia, em troca, que lhe
emprestasse o corpo e se incluísse na sucessão infinita de ausentes,
que nunca cessa. Nessa metáfora visual da desubjetivação, nesse
"mal de arquivo", como diria Derrida, não eram só os rostos que se
multiplicavam à medida que nos aproximávamos; eram os espaços,
também, a mesma virtualidade combinatória que não parava de
desdobrar-se indefinidamente.

Estavam ali, talvez involuntariamente, Borges e seus


inomináveis espelhos mas também Duchamp e suas estereoscopias
portenhas, seus ensaios do "Grande Vidro"; estava ali Godard e sua
teologia da imagem, a reencarnação mas, sobretudo, a ressuscitação
(no que isto tem a ver com citar, cortar e montar) de uma ficção

-136 -
Deleitação morosa

disseminada. Borges, Duchamp e Godard, todos dispostos a rearmar


o grande teatro da memória, a negação da moria e a afirmação, ao
contrário, de uma identidade peculiar cuja materialidade irrisória
deriva de distanciamento e fusão com o lugar vazio do sujeito.
Todas as armadilhas tinham sido colocadas ali para que a
instalação sucumbisse à arte ideológica. Era, ostensivamente, obra
de encomenda (das Avós da Plaza de Mayo, em primeira instância,
e mesmo do Centro Cultural, em última análise). Era, de qualquer
maneira, programática, de intervenção. No entanto, os artistas foram
o suficientemente sensíveis para abolirem a função autor Gá que
não havia ali estilemas, traços, marcas pessoais) e potencializar assim
o leitor em sua soberania.

No programa da mostra, um dos artistas, Luis Felipe Noé,


aludia às questões do conhecimento e da verdade que estavam ali
implicadas: "as criaturas roubadas já não são criaturas porém
continuam roubadas. O delito não passou, continua acontecendo".
A partir dessa matriz bergsoniano-deleuziana do acontecimento,
Noé extraia seu imperativo específico: "quando ocorrem atrocidades
ao nosso redor o artista é uma testemunha a mais do horror" . Simples
em sua formulação, a idéia coloca, no entanto, uma interrogação
que articula desastre e testemunho. Afinal, o que é uma testemunha?
Em seu livro "Quel che resta di Auschwitz", Giorgio Agamben
(1998) levanta algumas hipóteses a esse respeito.
Podemos ver na testemunha (em latim, testis) alguém que
atravessa posições e faz intermediação em um diferendo, colocando-
se como tertis, quer dizer, terceiro na disputa. Não há maior interesse,
pode-se supor, em tal testemunho de mediação. Vale a pena então

-137 -
Potências da imagem

considerar que, maIS que mediador, a testemunha é


fundamentalmente uma superstes, alguém que, ao incorporar uma
vivência, pode articulá-Ia em forma de narração. Mas esta saída
tampouco é neutra. Conhecemos os argumentos desenvolvidos por
Walter Benjamin contra a vivência como saber administrado e em
favor da experiência de ruptura vanguardista. E mais: a partir disso,
Georges Bataille cunhou seu conceito de experiência interior como
algo da ordem do impossível, desse saber que se arranca à morte.
Experiência = ex perire. A experiência não é assim o saber do perito
mas o do perigo. Haveria, pois, uma terceira maneira de conceber
o testemunho, e ela coincide com a não menos problemática noção
de autor. O auctor, nos diz Agamben, é a testemunha cujo relato, o
testemunho, pressupõe algo anterior à sua mesma enunciação e,
portanto, configura um ato, ao mesmo tempo, de potência e de
impotência, na medida em que o sujeito do testemunho é sempre
sujeito de uma desubjetivação. O testemunho adquire forma, então,
no não-lugar da articulação da linguagem e, mais ainda, como ato
de linguagem, que legitimamente o é, o testemunho é regulado pelos
paradoxos da mesma linguagem.

Paradoxos do testemunho

Um primeiro paradoxo consiste na idéia de que, muito mais


que a restauração de um sentido danificado, anterior ao desastre, o
testemunho assinala sempre uma transgressão do sentido herdado,
na medida em que a sobrevivência não se refere somente a um outro
a quem se sobrevive mas a um sujeito (um si mesmo) e à vida que

-138 -
Deleitação morosa

este era capaz de imaginar com anterioridade ao evento. Sobrevivê-


10 implica, então, um ir mais além (e através) da mesma vida que
era possível viver antes da catástrofe. O testemunho cinde, em
conseqüência, todo consenso cultural de que a vida seja bela e assinala
a vacância de seu próprio lugar.
O segundo paradoxo, que é constitutivo dos valores éticos e
estéticos do testemunho, ressalta que neste relato convivem,
ambivalentemente, uma impossibilidade e uma necessidade. É
sabido que a tradição da autonomia estética descansa em uma
possibilidade (a liberdade de poder ser), associada a uma
contingência (o risco de poder não ser); porém sabemos além disso
(e as heterotopias de Borges assim como os heterônimos de Pessoa
nos ajudam a entendê-lo) que, para que um sujeito seja destituído,
é imprescindível contar com uma impossibilidade (a expulsão do
possível), articulada a um imperativo (que negue aquilo que pode
não ser). Desse paradoxo se conclui que o sujeito - essa "identidade"
que a arte insiste em instalar - não é mais que um campo de forças
antagônicas, desde sempre atravessado pela potência e a impotência.
Essa força recebeu vários nomes na teoria cultural. Bataille a chamou
o impossível e, no prefácio a "O azul do céu", chegou a defini-Ia
como o meio de alcançar essa visão longínqua esperada por um
leitor cansado dos limites imediatos, impostos pelas convenções,
assinalando, assim, o vazio desse mesmo céu, alheio por completo
ao amparo sideral (anterior ao des-astre) e oposto quanto ao mais a
toda a sacralidade natural. Lacan, na retaguarda acefálica, chamou
a esta força o real, "ce qui ne cesse pas de ne pas s'écrire", em outras
palavras, aquilo que nunca poderá escrever-se ou aquilo que, como
Bartleby, preferiríamos não fazer.

·139 -
Potências da imagem

Diríamos, então, que se o homem sobrevive ao mesmo homem


nesse desastre que postula um mais-além da vida, cabe pensar que
humano e não-humano, potente e impotente, tornam-se, portanto,
intercambiáveis, de onde impõe-se chamar humano (e belo) somente
àquele sujeito cuja hominidade está, a rigor, destruída. Mas, por
outro lado, como a identidade entre humano e não-humano nunca
chega a ser perfeita, já que há sempre uma brecha que instala, neles
e entre eles, a diferença, jamais se chega a destruir integralmente o
humano, porque sempre sobra algo e é a este resto, justamente, ao
que chamamos testemunho. Só por seu intermédio se nos impõe a
beleza da vida. Radicalizando pois as ambivalências destacadas pelos
teóricos pós-colonialistas, Agamben vai mais além inclusive de uma
location of culture (Bhabha) e argumenta que a ordem sem localização
dos regimes de arbítrio foi substituída, hoje em dia, por uma
localização sem ordem aparente43• Pela falta de rótulo melhor,
denomina a esse espaço campo e o concebe como uma localização
deslocante, substitutiva da velha tríade estado-nação-território e
reencontrável, não só nos não-lugares de Marc Augé, como nas
periferias de toda grande cidade, esses autênticos terrenos baldios
do fim do século.

43. Não é somente Menem que se mescla com ojet-set ou Fernando Renrique Cardoso quem tira
proveito da candidatura de "Central do Brasil" como estratégia unionista e unanipüsta em torno de
uma política, a de sua moeda, que perdeu toda "centralidade" nacional. Na mesma cerimônia da
indústria cinematográfica, introduz-se a guerra através de dois políticos soldados (Colin Powell e
John Glenn) que ressaltam, precisamente, a ausência de fronteiras, não mais entre o local e o
universal, porém entre o evento e sua imagem. Mais que no repúdio sessentista a Elia Kazan, há
aí o sintoma inequívoco de uma localização deslocante, a mesma que, dias depois, estoura na
guerra formal.

-140 -
Deleitação morosa

o campo se torna, então, o nomos político da modernidade e o


hábitat mesmo do homo sacer. Recordemos que, na Roma antiga, o
homo sacer era quem não podia ser tocado sem manchar-se ou sem
manchar. Se alguém cometia um crime, fosse contra a religião ou
contra o Estado, a sociedade passava a repudiar por completo o
criminoso, vendo nele um homo sacer. Daí em diante, se matá-Io
sempre comportava um risco (nefas est), o que o matava, ao contrário,
era inocente no que respeitava ao direito humano, não podendo ser
condenado por homicídio. Em "Romo sacer", primeiro volume de
sua trilogia, Agambenjá aprofundava observações de Foucault sobre
a infâmia e de Deleuze sobre as sociedades de controle,
argumentando que quando a vida é decidida pela política e é
transformada em biopolítica, todas as categorias de nossa reflexão
(a beleza, o amor) atravessam um processo de esgotamento e
deslocamento graças ao qual se tornam enigmáticas (ou apenas
irrelevantes) ante um olhar menos atento. É assim que, retomando
a categoria de Bataille, Agamben (2001) chama "soberana" à esfera
em que se pode matar sem cometer assassinato e sem celebrar
sacrifício, assim como, de maneira complementária, podemos
conceber o sagrado como o assassinável e insacrificável sem castigo,
quer dizer, a vida desnudada. Em "Mezzi senza fine. Note sulla
politica" (1996) prosseguiu a investigação que agora conclui em
"O que resta de Auschwitz", postulando ao campo como o espaço
de uma experiência insufIcientemente pensada, a do vazio
intestemunhável dos que eram conhecidos como "muçulmanos".
Se tivesse percorrido a mostra "Identidade", Giorgio Agamben teria
podido referendar sua concepção de que o testemunho assinala um
mais-além de tudo quanto se escreveu sobre os extermínios e insinua

-141 -
Potências da imagem

os umbrais imprecisos de uma nova dimensão ética, a da arte não


mais «ideológica" (essa escorregadela realista da modernidade), mas
rigorosamente política. A partir dessa premissa, concluímos, não
cabe entender o político como um fim em si mesmo, nem como
uma técnica subordinada a determinado fim, mas como uma
mediania pura e sem fim, o fazer que um meio, enquanto tal, torna
visível, o que nos faz retroagir aos paradoxos da própria visibilidade.
Levando-os em consideração, seria possível, enfim, um juízo mais
certeiro sobre o caráter crítico das obras que vínhamos considerando.
Assim como é inegável a estatura crítico-testemunhal de
«Identidade", dificilmente se poderia atribuir a ccLa vita e bella"
esse mesmo caráter, já que crítico é tão-somente aquele enunciado
que deixa ver até que ponto é invisível a visibilidade do visível. O
filme de Benigni, ao contrário, nos exorta, astuta ou cinicamente,
pouco importa, a suportar a morte inoportuna e a aceitar o regresso
do desastre, aquilo que, como disse Blanchot, arruina tudo deixando
tudo como antes.

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SBOCI/ FFLCH
RUSP 21,77 265006
PREÇO:/TOMBO
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DISTR. CURITIBA 1 N.F.N° 177656
AQUISiÇÃO: DATA: 28/11/05
SEÇÃO DE: L

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