Você está na página 1de 122

/

S978 Swindoll, Charles R.


As trevas e o amanhecer: fortalecidos pela tragédia c
triunfo da cruz / Charles R. Swindoll. - Belo Horizonte:
Atos, 2003.
367 p.; 21 cm

ISBN: 85-86522-93-7.

1. Graça (Teologia cristã). 2. Vida cristã. 3. Sofrimento-


Aspectos religiosos. L Título.

CDD 230.2

Traduzido do original em inglês


The Darkl/ess al/d lhe Da1J!/1

Copyright © 2001 by Charles R. Swindoll


Publicado Originalmente pela
Thomas Nelson Company.

Tradução:
Tania Mara Alves Pereira Mendes
Wlademir Pereira Mendes

fuwisão:
Heloisa Lima

Capa:
Holy Design

Primeira edição:
Janeiro de 2003

Todos os direitos em língua portuguesa reservados à Editora Atos Ltda.


"enhuma parte deste livro pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida
por qualquer meio - eletrônico, mecânico, fotocópias, etc - sem a devida permissão
dos editores, podendo ser usada apenas para citações breves.

Caixa Postal 402


30161-970 Belo Horizonte MG
Telefone: (31) 3422-9494 '
'"-.•."'-.edi;orna tos.com. b r

i__
Dedicatória

Desde a fUndação da
StonebriarComrmmityChurch
de Frisco, Texas, no outono de 1998,
temos sentido a mão do Senhor
sobrenosso ministério.

Temosdesflutado de um amorprofimdo,
de uma devoção aut~ntica e cheia de signiEcado,
de uma alegria rara e de uma harmonia
com a qual ospastores lTeqüentemente sonham, mas
I' raramente t~m oprazer de testemunhar.

A principal razão para isto tudo ser tão evidente em nossa igreja
é a excelente liderança que compõe nosso Conselho deAnciãos.
Sinto-me extremamente privilegiado por servir
ao lado destes homens admiráveis,
pororarrnos juntos,
crescermosjuntos na Palavra,
e
juntos liderannos nossa igrejapara maior gl6ria de Deus.

Pela dedicação altruísta epelo


compromisso com o trabalho no ministério,
é com extrema gratidão que dedico este livro a estes seis
servos fiéis:

STAN BAXTER
DAVID CHAVANNE
DICK CREWS
fIM GUNN
jOHNNYKOONS
BILL SOUSA
Sumário

Intwdução 9

As Trevas 13

i' 1. O Salvador Sofredor 15


2. O Cálice do Sacrifício 29
3. Meia-Noite no Jardim 43

4. Três Horas da Madrugada 57


5. Os Seis Julgamentos de Jesus 71
6. O Homem que Escapou da Cruz 97
7. O Caminho da Cruz 111
8. O Mais Escuro dos Dias 127
9. "Pai, Perdoa-Ihes" 135
10. "Hoje Você Estará Comigo" 149
11. "Aí Está o seu Filho! Aí Está a sua Mãe" 163

12. "Por que m~ Abandonaste?" 177


13. "Tenho Sede" 189
14. "Está Consumado!" 203

15. "Pai, em tuas Mãos Entrego o meu Espírito" 215


16. Lições de Obediência... Duramente Ensinadas .. 227

.O Amanhecer 245

17. Qual é o seu Veredicto? 247

18. Um Milagre na Manhã de Domingo 265


19. Curando a Praga da Morte 283
20. Quebrando a Mandíbula da Morte 301
21. Um Triunfo que não Merecemos 319
22. Esperança para os Imperdoáveis 337

Conclusão: Você acredita na Páscoa? 349

Apêndice
A Cronologia dos Eventos 355
Os Julgamentos de Jesus 355

I. Notas Finais 359


As Trevas

É curioso como algumas pessoas ficam terrivelmente indignadas sem-


pre que um gato mata um pardal, mas conseguem ouvir a história do
assassinato de Jesus domingo após domingo sem experimentar qual-
quer choque ou reação.
- DOROTHY SAYERS1

Foi desprezado erejeitado pelos homens, wn homem dedores e experimentado no


sofiimento.
Isaías 53.3a

Assim que comeu opão,Judas saiu. E eranoite.


João 13.30
1 o Salvador Sofredor

O ensaísta e historiador
o otimismo cômodo escocês
e um Thomas Carlyle costumava
tanto superficial de Ralphdizer que
Waldo
Emerson o irritava. Carlyle acreditava que essa atitude era causada pela
vida particularmente tranqüila de Emerson, pois nenhuma sombra
escura jamais caíra sobre o caminho daquele homem. Para Carlyle, seu
contemporâneo da América se parecia com um homem que, estando dis-
tante até da névoa do mar, faz observações loquazes sobre a beleza da
natureza para aqueles que estão lutando pela vida em meio às ondas
imensas que se batem contra eles, ameaçando varrê-Ios para longe.
Quem sabe? Talvez Carlyle tenha feito uma avaliação correta de
Emerson; não podemos dizer com certeza. Mas, se minha experiência
pessoal da realidade é de alguma maneira confiável, sinto-me compe-
lido a acreditar de outra maneira. Por ser simplesmente um homem e,
portanto, fazer parte da raça caída da humanidade, Emerson, apesar
de brilhante e talentoso deve ter tido sua porção de tristezas e sentido
a dor dos ventos contrários em sua face.
A sombra do sofrimento paira sobre todos os caminhos. Mesmo
aquele que deixou o céu quando veio viver entre nós foi inseparavelmente
ligado àquela sombra. Como um dos seus próprios seguidores mais
tarde escreveu: "Ele veio para aqueles que lhe pertenciam ... e os que
eram dele mesmo n,ão o receberam e não lhe deram boas-vindas" (João
1.11, TheAmplmedBible).
AS TREVAS EO AMANHECER

Ninguém sabe qual era a aparência de Cristo, mas isto não foi motivo
para que inúmeros pintores - entre eles alguns dos maiores artistas de
todos os tempos - aplicassem pincel e tinta às telas para conceberem
suas próprias versões cria~ivas de sua aparência. Duas pinturas ines-
quecíveis que admiro têm o mesmo título: ''A Sombra da Cruz". Em-
bora tenham sido originalmente pintadas por diferentes artistas, des-
tacando cenas diferentes, ambas contêm o mesmo tema.
A primeira retrata uma cena dentro da carpintaria de José, em que
Jesus está trabalhando ao seu lado. Nela, Jesus, retratado como 'um
adolescente, interrompe seu trabalho para olhar pela janela da carpin-
taria. Ele está em pé, com os braços abertos e estendidos, e sua ima-
gem projeta uma sombra sinistra sobre a parede atrás dele. Uma som-
bra em forma de cruz.
A segunda pintura retrata Jesus como um rapazinho, correndo com
os braços estendidos para sua mãe, com o sol batendo em suas costas.
Projetada sobre o caminho diante dele, aparece a sombra escura de
uma cruz.
As duas pinturas deixam no observador a impressão indelével de
que a cruz estava ligada a Cristo desde o início ... desde os seus primei-
ros dias. Não podemos saber como era sua aparência, mas para todos
que examinam os registros inspirados, é evidente que Ele estava inti-
mamente familiarizado com o sofrimento.
Certamente a cruz foi uma realidade constante durante toda sua
vida. Embora as Escrituras não nos contem como; sua jovem mente
compreendia que a cruz o aguardava. Suas próprias palavras testificam
isso, mesmo antes de começar seu ministério, Ele sentia um chamado
compelindo-o a ocupar-se das coisas do Pai (Lucas 2.49). Além disso,
enquanto treinava seus discípulos, Ele não hesitou em contar-Ihes so-
bre o sofrimento que o esperava (Marcos 8.31-33; Lucas 9.44, 45).
Embora tais comentários confundissem e até irritassem seus discípu-
los, Jesus deixou claro que cada dia o levava para mais perto da sua
hora de agonia.
O Antigo Testamento também nos dá um impressionante retrato
da sombra da cruz. Mesmo escrevendo cerca de sete séculos antes de

18
o SALVADOR SOFREDOR

Jesus nascer, Isaías profetizou vividamente o sofrimento do Salvador e sua


morte. Ao examinar este retrato, vemos Cristo sob três perspectivas:
como os homens o viram; como Deus o viu e como Ele viu a si mesmo.

Tudo depende de
como você olha para o texto

Quem creu emnossamensagem?


E a quem foi revelado o braço do SENHOR?
Ele cresceu diante dele romo um broto te1JlV
e como uma raiz safda de uma terra seca.

Ele não riJJhaqualquer beleza ou majestade que nos atraísse, nada havia em sua
aparência para que o desejássemos. Foi desprezado e rejeitado pelos homens, lun
homem de dores e experimentado no soEimento (Isaías 53.1-3).

Como Cristo parecia ser para os homens, mulheres e crianças que o


encontraram? Para ser completamente honesto sobre isso, provavel-
mente não se parecia muito com as imagens que vemos em museus de
artes, em vitrais, esculturas e murais.
Pelo que as Escrituras sugerem, sua aparência física não devia cau-
sar grande impressão. Ele provavelmente não era alto, moreno e boni-
to. Como disse o profeta, o Messias prometido "nada tinha em sua
aparência para que o desejássemos". Ele não tinha esplendor ou ele-
gância - nem era uma figura grandiosa ou majestosa.
Em vez disso, "Ele cresceu ... como um broto tenro". Não uma cana
alta e grandiosa, apenas um pequeno e tenro broto. Completamente
humano, um homem com emoções verdadeiras, com sensíveis termi-
nações nervosas na pele e canais lacrimais que foram ativados por tris-
teza e pesar. Ele não era de forma alguma um gigante intocável; Ele se
comovia por compaixão e sentia-se aguilhoado por palavras afiadas.
Embora totalmente divino, Ele viveu entre nós em verdadeira huma-
nidade ... como um ,broto tenro.
Isaías também diz que Ele aparect;u "como uma raiz saída de uma terra

19
AS TREVAS EO AMANHECER

seca.". Esta "terra secà' pode referir-se à terra de Israel, comparada ao pó


debaixo da bota romana quando Cristo veio à terra. O mundo odiava os
judeus naquele tempo tanto quanto hoje. Roma governou sobre o que
eles chamavam de Palestina com mão de ferro. Em meio a isso, Jesus deve
ter parecido como um br~to frágil, fraco, vulnerável surgindo de uma
terra seca.
Ele não tinha "qualquer beleza ou majestade que nos atraísse", Ou,
como diz a Bíblia Viva, não havia "nada que nos fizesse desejá-Ia", Ho-
mens olharam para Ele e não o quiseram. João, que viu Cristo face a
face, disse a mesma coisa: "Véio para o que era seu, mas os seus não o
receberam" (João 1.11). Eles não o quiseram. Não havia razão aparente
"para que o desejássemos",
Mas talvez você diga: "E sobre a mensagem que nós ocasionalmen-
te ouvimos hoje que Jesus Cristo varreu o Oriente Médio, assombrou
o mundo do primeiro século com sua presença e foi seguido pelas
multidões?" Isto não é verdade, ao menos não por muito tempo. A
maioria do povo, no final das contas, o odiava! Eles não o queriam por
perto. Ele não era a celebridade mais popular do dia. Ele nunca teria
sido capa da TimeN.T. como "Homem do Ano", pelo menos não na
edição do primeiro século. Israel não o queria como seu Salvador. Sim,
eles queriam um salvador - um homem montado num cavalo branco
para livrá-Ios de seus opressores. Mas eles não queriam o Salvador,
porque Jesus não era o que eles esperavam, não era o que eles deseja-
vam; por isso eles o desprezaram.
"Ele foi desprezado e rejeitado." A palavra hebraica traduzida como
"desprezado" é um termo que significa "considerar como desprezível
ou sem valor", Em outras palavras, o que Isaías nos conta é que quando
as pessoas viram Jesus, disseram: "Ele não tem valor". Este termo hebreu
também significa "desaprovar e tratar alguém com desdém". Eles o
desdenharam. Eles o desaprovaram. Ele não era o que eles esperavam e
então claramente eles o desprezaram.
A sombra se torna mais escura. Ele não foi somente desprezado;

N.T. TIME - famosa revista semanal americana.

20
o SALVADOR SOFREDOR

Ele também foi "rejeitado pelos homens", o que literalmente significa


"desprovido de homens", ou seja, Ele não tinha um bando de seguido-
res para impressionar o público. Nenhum fã. Nenhum bajulador.
Nenhum admirador para atrair outros a segui-Io. Ele era "desprovido
de homens".
Aos olhos dos homens, Ele era" um homem de dores e experimentado
no sofi:imento". Ele era uma pessoa" de quem os homens escondem o rosto".
Sendo desprezado, Jesus era visto como alguém por quem o povo "não
tinha estima". Ele não era considerado alguém de valor, assim eles lhe
davam as costas ou o ignoravam.
Os psicólogos, às vezes, usam a palavra "redução" para descrever
este tipo de tratamento. Reduzir alguém é anular sua signifid.ncia -
ignorá-Io ... tratá-l o como nada. A crítica não é o maior insulto, nem a
fofoca ou uma explosão de raiva. O maior insulto é ignorar uma pessoa
- agir como se aquela pessoa não contasse, não importasse, ou nem
mesmo existisse. É isso o que Isaías descreve aqui. O povo personificou
a redução suprema: eles nem se importavam se Ele estava por perto.
Jesus aprendeu cedo em seu ministério o que significava ser ferido
pelo comportamento dos outros. Esse tipo de tratamento foi dura-
mente demonstrado, e certamente deixou marcas em seu espírito gen-
til. Tais cicatrizes interiores não são visíveis, mas são ferimentos reais e
terrivelmente dolorosos.
Amy Carmichael descreve a importilncia de reconhecermos os feri-
mentos de Cristo em seu poema: Sem Cicatrizes?

Não tens cicatrizes?

Nenhuma cicatriz escondida no pé, no lado ou na mão?


Eu ouço sobre ti como poderoso na terra,
Eu os ouço saudarem tua brilhante estrela ascendente,
Não tens cicatrizes?

Todavia fui ferido pelos arqueiros, exausto.


Encostaram-me numa árvore para morrer; e rasgado
por feras devoradoras, eles me circundaram, eu desmaiei;
Não tens ferimento?

21
AS TREVAS EO AMANHECER
Nenhum ferimento, nenhuma cicatriz?

Mas, como o Mestre o servo deve ser,


E, perfurados são os pés dos que me seguem;
Mas os teus são saudáveis: podem ter seguido longe
Quem não tem nenhum ferimento, nenhuma cicatriz?3

É aqui que muitos crentes se desviam. Ficam perturbados quando os


seguidores de Cristo são classificados como radicais ou esquisitos pela
mídia e por outros críticos - quando são impopulares em Hollywood,
em círculos sofisticados de Nova York, ou dentro dos círculos de poder
de Washington D.e. Esquecem-se de que ser um seguidor de Cristo
nunca foi algo muito popular - e nunca foi fácil. Embora tenha sido
escrita há muito tempo, a pergunta de Amy Carmichael continua re-
levante: "Não tens ferimentos, não tens cicatrizes?"
Já vimos qual a imagem que homens e mulheres tinham de Jesus, e
como seu próprio povo, os judeus, o viam. Mas, qual era a perspectiva
de Deus sobre seu próprio Filho? Isaías descreve da seguinte maneira:

Certamente ele tomou sobre si asnossas enfermidades

e sobre si levou asnossas doenças;


amtudo n6s o consideramos castigadopor Deus,
por Deus atingido e afligido.
Mas ele foi transpassado porcausa dasnossas transgressões,
foi esmagado por causa de nossas iniqüidades;
o castigo que nos trouxe paz estava sobre ele,
epelas suas feridas fomos curados.
TOdosn6s, tal qual ovelhas, nos desviamos,
cada um de n6s se voltou para o seu pr6prio caminho;
e o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de todos n6s (Isaías 53.4-6).

Nessa mesma narrativa, um pouco depois, aparece esta corajosa e


categórica declaração: "Contudo, foi da vontade do Senhor esmagá-Ia e
fazê-Ia sofrer' (53.10a).

22
o SALVADOR SOFREDOR

Deus via Jesus como nosso substituto. Deus também via o sofrimento
de seu Filho como parte de sua soberana vontade. O sofrimento do Salva-
dor o agradou. Mesmo assim o Pai não estava indiferente em relação a seu
Filho quando Ele foi para o Calvário. O povo dos dias de Jesus pode tê-l o
considerado insignificante, mas o Pai certamente não! Ele descreve os
sofrimentos de seu Filho em termos vívidos: "enfermidades", "doenças",
"castigado", "atingido", "afligido", "transpassado", "esmagado", "castigo",
"feridas". Deus colocou sobre seu Filho toda nossa iniqüidade e nos for-
nece um quadro claro do que isso significou para Ele, o Deus Pai.
Isaías 53 é o retrato de um indivíduo esmagado, castigado e pisado.
Nunca é demais enfatizar isto. Precisamos olhar novamente para essa cena
a fim de obter uma imagem realista do Salvador através das Escrituras. A
despeito de todo o seu poder e de sua inquestionável majestade, não
devemos imaginá-Ia como uma espécie de super-herói. Ele foi, na verda-
de, o Salvador Sofredor. Esmagado, quebrado e sangrando, Ele cumpriu
sua missão, ordenada por Deus, quando foi levado à cruz por nós.
Recentemente, temos visto um renovado interesse pelo tema da Se-
gunda Guerra Mundial, desde o best-seller de Tom Brokaw, The Greatest
Generation (A Maior de Todas as Gerações), ao premiado filme com Tom
Hanks Saving Priva te Ryan (O Resgate do Soldado Ryan). Mas, aqueles
dentre nós que têm idade suficiente para se recordar daquela guerra não
precisam ser lembrados. Embora eu ainda estivesse na escola primária
durante aqueles anos turbulentos, jamais esquecerei das fotografias
publicadas depois que a guerra terminou e foram abertos os portões da-
quelas câmaras de horror situadas em lugares como Dachau e Auschwitz.
Ou as fotos de tortura de Corregidor. Vítimas de campos de concentra-
ção ... prisioneiros de guerra ... todos reduzidos a frágeis e esquálidos es-
queletos humanos. Sobreviventes esmagados e prostrados pela dor. Ho-
mens e mulheres corajosos saindo cambaleantes para uma nova existência
de liberdade, vendo nascer uma nova esperança.
Estas trágicas imagens nos dão uma amostra de como seria a aparência
do Salvador quandq teve que enfrentar a agonia da cruz.
O povo desprezou-o pela sua aparência e pouca importância. O Pai

23
AS TREVAS EO AMANHECER

enxergava-o como o Substituto Sofredor. Mas, como Cristo via a si mes-


mo?
Talvez o retrato mais vívido de todos seja aquele que pode ser visto
através das palavras de Isaías:

Ele foi oprimido e aBigido;


e, contudo, não abriu a sua boca;
como wn cordeiro fõi levado para.o matadouro,
e como uma ovelha que diante de seus tosquiadores fica
calada, ele não abriu a sua boca.
Com julgamento opressivo elefoi levado.
E quem podeMardos seus descendentes?
Pois ele foi eliminado da terra dos viventes;
por causa da transgressão
do meu povo elefoigolpeado.
Foi-lhedado wn nímulo com os fmpios,
ecom osrÍcosemsuamorte,
embora não tivesse cometido nenhuma violência
nem houvesse nenl1llma mentira em sua boca (Isaías 53.7- 9).

Ao desenhar o quadro cuidadosamente, e guiar a pena de Isaías na


escolha das palavras, Cristo descreve a si mesmo como "oprimido" e
"afligido". Oprimido significa "ser duramente apertado, empurrado",
podendo até mesmo significar "ser atormentado" ou "cobrado". Afligi-
do significa "ser dobrado para baixo; fazer abaixar, ser forçado a subme-
ter-se". Mesmo assim, apesar de tudo isso, "como uma ovelha que dian-
te de seus tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca".
Anos atrás, em meu trabalho como pastor de uma igreja, conheci
um homem que havia vivido no oeste, no alto das campinas. Ele en-
tendia bastante sobre criação de ovelhas, e nunca esqueci do que ele
me disse certa vez:
''Ao tosquiar as ovelhas, o tosquiador precisa tirar toda a lã, bem rente
à pele, porém sem coptá-Ia. Mas, para fazer isso, ele tem que enfrentar
uma briga. Ele tem de pôr a ovelha de costas sobre o quadril e então

24
o SALVADOR SOFREDOR

começar a tosquiar a barriga e depois os lados. É uma situação semelhante


a uma longa disputa de luta livre. São necessárias várias pessoas para fazer
o serviço".
"Mas, quer saber de uma coisa?", ele acrescentou (e essa é a parte mais
impressionante para mim). "Quando você leva uma ovelha para o
matadouro, ela fica tão quieta e passiva que você nem pode imaginar."
Penso nessas palavras quando leio Isaías 53.7, 8: "Ele foi oprimido e
afligido; e, contudo, não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado
para o matadouro e, como uma ovelha que diante de seus tosquiadores fica
calada, ele não abriu a sua boca".
Pedro, que viu o Salvador julgado e crucificado, registra o silêncio
de Jesus em termos similares:

Para isso voc& fOram chamados, pois também CristosoD:eu no lugar de vocÊ5,
deixando-lhes exemplo, para que sigam os seus passos. EIENÃO COMETEU
PECADOALGUM, E NENHUM ENGANO FOI ENCONTRADOEM
SUA BOCA. Quando insultado, não revÍdava; quando sofria, não fàzia ame-
aças,mas ent.rfg.Jva-seàquele que julga com justiça. Ele mesmo levou em seu copo
os nossos pecados sobre o madeiro, a fim de que morrêssemos para ospecados e
Vivêssemos para ajustiça; por suas feridas voc& fOram curados (1 Pedro 2.21-24).

Aqui, mais uma vez, encontramos uma referência às feridas do Sal-


vador Sofredor. No original, a palavra é "ferimento" (literalmente, "con-
tusão" - no singular) e não "ferimentos" (plural). Um escritor, ao co-
mentar a aparência de Jesus após a horrível tortura e as brutais sessões
de espancamentos a que foi submetido, descreve-a como uma "contu-
são maciça".
Isaías refere-se a isso nos seguintes termos: " ... sua aparência estava
tão desfigurada, que ele se tornou irreconhecível como homem; não
parecia um ser humano". Alguns comentaristas e tradutores têm des-
crito do seguinte modo: "Sua aparência estava desfigurada a ponto de
não mais parecer um homem", significando que quando você olhava para
Ele, você nem o via,como um homem porque sua face e corpo estavam
machucados, inchados e sangrando demais.
AS TREVAS EO AMANHECER

Como um clímax desse importante texto de Isaías 53, chegamos àquilo


que tem sido chamado de "paradoxo sagrado".

Contudo, foi da vontade do Senhor esmagá-lo e fazê-lo sofTer, e, embora o


Senhor tenha leito da vida déle uma olerta pela culpa, ele verá sua prole eprolon-
gará seus dias, e a vontade do Senhor prosperará em sua mão (Isaías 53.10).

Jesus não foi assassinado. Ele entregou sua vida voluntariamente.


Além disso, como já notamos, o Pai encontrou satisfação na morte de
seu Filho. O esmagamento do Filho foi planejado pelo Pai. Aquele
corpo completamente ferido, aquelas bofetadas torturantes foram to-
das projetadas por um Pai amoroso. Um paradoxo sagrado mesmo! A
pergunta crucial é: "Por quê?" Por que agradaria ao Pai permitir que
seu Filho fosse ferido?
O escritor John Piper respondeu a esta questão esplendidamente:

Por que Deus esmagou seu Filho e o trouxe para o sommento? Ele fez isso
para solucionar a discrepância entre seu amor por sua glória e seu amor pelos
pecadores ...
Não foi por causa de seu próprio pecado que o Pai feriu o Filho. Foi
porque Ele queria nos mostrar misericórdia. Ele queria perdoar, curar, salvar
e alegrar-se conosco com altos louvores. Mas Ele é justo. Isso significa que seu
coração estava cheio de amor pelo infinito valor de sua glória. Mas nós éramos
pecadores. E isso significa que nossos corações estavam cheios de desprezo
por Deus. Assim, para salvar os pecadores e ao mesmo tempo engrandecer o
valor de sua glória, Deus depositou nossos pecados sobre Jesus e o abando-
nou à vergonha e ao martírio da cruz.4

o que o Pai preparou para você é o mesmo que preparou para seu
Filho. Baseado nas palavras de A.W. Tozer, dificilmente Deus pode
usar alguém grandemente sem que o tenha ferido profundamente. Se
vamos ser moldados à imagem de Cristo, então deveríamos estar pre-
parados para a realidade dessa imagem. Devemos estar preparados para
sofrer e, de fato, mor~er (para si) antes de podermos viver a vida que

26
o SALVADOR SOFREDOR

nosso Salvador planejou para nós.


Dimitri Vai! foi um dos maiores pintores de retratos da América.
Muitas pessoas famosas tiveram seus retratos pintados por esse talentos o
artista, que era conhecido por uma característica: realismo. De fato,
seu trabalho é tão realista que você poderia pensar que está olhando
para a ampliação de uma fotografia. Tive oportunidade de visitar várias
vezes a galeria de Vail em Dallas. Um dia, quando caminhava pela
galeria, notei um quadro que nunca tinha visto antes, pendurado num
canto escuro, sem nenhuma lâmpada apontando em sua direção. A
maioria das pinturas de Vai! era magnificamente exposta, com moldu-
ras graciosas e iluminação excelente. Esta, porém, estava apoiada num
cavalete e exposta de maneira quase rude. Não tinha moldura, não
tinha foco de luz, não tinha nome.
De quem é esse quadro?, pensei. Todos os outros retratos eram facil-
mente identificáveis, mesmo sem os nomes famosos gravados abaixo
deles. Mas este, pintado em tons sombrios de cinza e marrom, azul-
escuro e listras negras, não tinha nenhuma identificação. Eu estava
intrigado.
"Quem é este?", perguntei finalmente à mulher que estava trabalhando
na galeria.
"Oh, esse é um auto-retrato", disse ela. "Esse é o próprio sr. Vail."
Enquanto eu permanecia em pé, estudando aquela face sombria e
triste, ela acrescentou: "E sabe o que mais? É exatamente assim que ele se
parece".
O mesmo acontece com nosso Senhor. Ele pode permitir que os
retratos de muitos indivíduos tenham destaque - que pareçam atraen-
tes, alegres e impressionantes para o público. Mas quaQdo s~ trata de
seu próprio retrato, Ele o pinta sob a sombra da cruz, com os tons
marrons, cinzas e pretos da realidade. Sem molduras. Sem destaque.
Sem foco de luz. É a verdade em exposição. É o Homem de Dores, que
foi experimentado no sofrimento - aquele que foi transpassado por
nossas transgressões e esmagado por nossas iniqüidades. E justamente
porque o Senhor permitiu que nossos pecados caíssem sobre Ele, oferece-
mos a Ele nosso mais alto louvor ao cantar, "Digno é o cordeiro que foi

27
AS TREVAS EO AMANHECER
morto ..."
E você? E o seu retrato? Você ainda está tentando polir a sua ima-
gem? Ainda está tentando impressionar? Ainda está tentando escapar
da dor e negar as lutas de ser moldado novamente à imagem de Cristo?
A sombra do sofrimento incide sobre todo caminho, inclusive o
seu. Mas a beleza dessas ·sombras escuras e das cores esmaecidas está
no resultado, pois durante o processo nos tornamos mais como Cristo.

28
2 o Cálice do Sacrifício

Quando observo a impressionante cruz

Em que o Príncipe da Glória morreu,

Toda minha riqueza considero prejuízo

E olho com desdém todo orgulho meu. 1

-IsMcWATTS
2 o Cálice do Sacrifício

Tenho
vida. participado
Elas de um
variam de algumas refeições
extremo a outro,maravilhosas emsensaci-
do sublime ao minha
onal, do mais simples ao mais formal, moderno e elegante. Fui convi-
dado para banquetes em mansões de governadores e já sentei à mesa
do capitão em cruzeiros marítimos. Também já comi em rudes caba-
nas de caçadores e ao redor de fogueiras em acampamentos com mi-
nha família, curtindo um delicioso peixe recém-pescado, e já tentei
livrar-me de refeições do hospital que mais pareciam uma mistura de
gesso molhado e papelão encharcado.
Como já passei por todas essas situações durante mais de seis déca-
das de vida, garanto a você que, se puder escolher, prefiro muito mais
uma reunião pequena e íntima do que um grande e impessoal banque-
te. De fato, quanto mais estudo o Novo Testamento e examino como o
povo daquela época fazia suas refeições, mais considero que me sentiria
muito à vontade no meio deles, especialmente entre Jesus e seus discí-
pulos. Quase sem exceção, suas refeições eram simple~ e em grupos
pequenos. Nada de refeições com cinco ou seis pratos. Nada de ban-
quetes elegantes ou decorações extravagantes. E nada de protocolos
formais e sofisticados. Em nenhum outro lugar isso ficou tão evidente
como quando eles comeram a refeição da Páscoa juntos.
Séculos se passaram desde a noite em que nosso Senhor sentou-se
na sala do andar superior e compartilhou aquela última refeição sim-
AS TREVAS EO AMANHECER

pIes com seus discípulos. Simples, mas extremamente significativa. Ao


longo dos séculos, aquela refeição adquiriu um significado enorme.
Infelizmente, ela também incorporou os adereços da religião - os "ex-
tras" dos rituais complicados e das diferenças denominacionais. Ao
fazer isso, perdeu, a meu ver, algo da profunda simplicidade que rode-
ava a mesa quando Jesus e seus homens se encontraram naquela noite
final.
Primeiramente, vamos considerar por que eles estavam juntos.

Estava se aproximando a festa dos pães sem rennento, chanlada Páscoa, e os dlefes
dos sacerdotes e os mestres daleí estavam procurando wn meio de matar Jesus, mas
tinham medo do povo ... Finalmente chegou o dia dos pães sem rennento, no qual
devia ser sacrificado o cordeiro pascal. Jesus enviou Pedro eJoão, dizendo: "Vão
preparar a refeição da Páscoa" (Lucas 22.1, 2, 7, 8).

Todos os anos, na quarta quinta-feira de novembro, muitos ameri-


canos preparam uma farta refeição. Convidamos os mais íntimos e
mais queridos - familiares e amigos - e celebramos a refeição do Dia
de Ação de Graças. Este é o meu feriado anual favorito. É um momen-
to em que nos reunimos por duas razões simples: compartilhar uma
refeição e relembrar.
A Páscoa poderia ser considerada a celebração do Dia de Ação de
Graças dos judeus. Não com peru, peregrinos, Plymouth RockN .T. e
tudo mais, mas um tempo de relembrar algo muito mais significativo.
Quando os hebreus estavam no Egito, Deus chamou Moisés para
liderá-Ios em sua fuga da escravidão para a Terra Prometida. Na noite
daquele grande êxodo, Deus disse a seu servo, "Moisés, dê as seguintes
instruções aos hebreus. Diga que cada casa escolha um cordeiro perfei-
to - sem manchas, cicatrizes ou imperfeições. Eles devem tomar esse
cordeiro sem mancha, matá-Io do modo como especifiquei e derramar
o sangue numa panela. Peguem esse sangue e espalhem nos batentes
das portas de suas casas. Pois à noite, Moisés, o Anjo do Senhor visitará
o Egito. Nas casas em que ele vir o sangue na porta, ele passará sobre
esse lar e o deixará iritocado. Mas se não encontrar o sangue, a morte

32
o CÁLICE DO SACRIFíCIO

entrará naquela casa e o filho mais velho morrerá. Não haverá exceções,
Moisés. O Destruidor passará pelo Egito e não tocará somente quan-
do vir o sangue" (Veja Êxodo 12.12, 13, 29).
Esse evento deu inici? à mais importante de todas as celebrações
dos judeus: a Páscoa. Deus deixou claro que eles deveriam relembrar
essa noite notável dali por diante; e ao fazerem isso, deveriam explicar
seu significado a seus filhos. Essa refeição se tornou, daquele dia em
diante, a mais importante celebração dos judeus.

Onde eles estavam


Em sua última noite com os discípulos, Jesus celebrou a Páscoa, tal
como os judeus devotos têm comemorado durante séculos. Apropria-
damente, Ele usou aquele último banquete para recordar-Ihes que o
momento de sua morte estava se aproximando.

Jesus enviou Pedra eJoão, dizendo: "Vão preparar a refeição da Páscoa".


"Onde queres que apreparemos?': perguntaram eles.
Ele respondeu: (~o entrarem na cidadevocb-enconl:rarão um homem =egando
mTIpote de água. Sigam-noatéa casaem que ele entrare digam ao dono da casa:
O Mestre pergtmta: Onde éo salão dehóspedesno qualpoderei comera Páscoa com
meus disdpulos? Ele lhes mostrará uma ampla salano andar superior, toda mobi-
liada. Façam ali os preparativC6".
Eles saíram e encontraram tudo como Jesus lhes tinha dito, Então, prepararam a
Páscoa (Lucas 22.8-13).

Observe que Jesus não envia Pedro e João a um endereço específico.


Ele não deu a eles nenhum número de casa, nenhum nome de rua,
nem mesmo uma região na cidade de Jerusalém. Ele simplesmente
disse a eles para procurarem um homem carregando água.
Um homem carregando água? Naqueles dias, era comum que as
mulheres fossem at~ os poços para trazer água. Portanto, um homem
carregando água chamaria a atenção das pessoas mesmo nas ruas abarro-

33
AS TREVAS EO AMANHECER

tadas de Jerusalém, repleta com todo o movimento que cercava uma


grande celebração como a Festa da Páscoa. Não seria de admirar se, de
fato, ele fosse o único homem carregando água em toda a cidade de
Jerusalém.
Depois dos discípulos' acharem um homem carregando água, eles
deveriam segui-Io. Ele os levaria até uma casa, onde eles deveriam en-
trar e dizer para o proprietário: "O Mestre diz para você: Onde está o
salão de hóspedes no qual poderei comer a Páscoa com meus discípu-
los?" Então, o proprietário os levaria a uma ampla e mobiliada sala no
andar superior. Em outras palavras, ele os levaria para a sala no segun-
do andar da casa.
As instruções eram claras. Jesus tinha feito os arranjos e eles apenas
precisavam seguir sua orientação.

o que fizeram

Eles saíram e encontraram cudo como Jesus lhes tinha dito, então prepararam a
Páscoa (Lucas 22.13).

Com o passar do tempo, os judeus, a cada ano, celebravam a Festa


da Páscoa relembrando e agradecendo, e os ingredientes exigidos para
essa refeição foram passados de uma geração a outra nos ensinos tradi-
cionais das seiscentas e treze leis da Torá. Isto incluía o sacrifício e
preparo do "cordeiro pascal" (Êxodo 12.6); a obrigação de comer o
cordeiro pascal, ou seja, participar da Páscoa Judaica (Êxodo 12.8); a
preparação adequada do cordeiro (deveria ser assado, de acordo com
Êxodo 12.9); a proibição contra deixar qualquer resto do cordeiro
(Êxodo 12.10); a exigência para comer o matzah (pão sem fermento)
durante a Páscoa (Êxodo 12.18); e a obrigação de contar para as crian-
ças a história da libertação do Egito (Êxodo 13.8). Estas são apenas
algumas das instruções específicas da Torá a respeito da Páscoa. Nada
muito complicado, mas estas instruções devem ser seguidas ao pé da
letra.

34
o CÁLICE 00 SACRIFiclO

A Festa da Páscoa se concentrava em três elementos: cordeiro assa-


do, ervas amargas e pães ázimos. O cordeiro assado era o principal,
servindo para lembrá-Ios do sacrifício do cordeiro sem mancha e do
sangue espalhado nos umbrais das portas nos lares dos hebreus devo-
tos. A ervas amargas eram uma mistura de alface, chicória, raizes, menta
e dente-de-leão. À medida que essas ervas iam sendo mastigadas, seu
sabor amargo oferecia uma vívida lembrança dos anos de tormento
que os pais hebreus haviam passado como escravos. Os pães ázimos
eram para relembrá-Ios da pressa com a qual os hebreus tiveram de se
preparar para partir com Moisés, seu libertador.
Os discípulos fizeram precisamente como Jesus havia lhes ordena-
do. Eles encontraram o lugar adequado e prepararam os ingredientes
necessários para a Páscoa.

A última refeição

Quando chegou a hora, Jesus e os seus apóstolos reclinaram-se à mesa (Lucas


22.14).

Com o risco de ser desaprovado pelos amantes das grandes obras de


arte, preciso dizer algo que alguns certamente não vão gostar de ler:
Leonardo da Vinci prestou um grande desserviço ao cristianismo com
sua pintura ''A Última Ceia". Não estou duvidando de seu valor artís-
tico; artisticamente sua pintura é uma obra-prima. Mas histórica e
biblicamente, essa obra-prima está longe da realidade.
No quadro de da Vinci, Jesus e seus discípulos estão sentados no
mesmo lado da mesa, em cadeiras, como se estivessem "olhando para a
câmera". Mas Jesus e os doze não estariam sentados em. cadeiras com
encostos altos, nem à uma mesa com um metro e trinta centímetros
de altura. No primeiro século, as pessoas tomavam as refeições senta-
das no chão sobre pequenos colchões de palha ou tapetes. De fato, eles
costumavam se redihar em torno de uma mesa próxima do chão, apoi-
ados sobre um dos cotovelos.

35
o CALlCE DO SACRIFíCIO

Muitas pessoas hoje vêem os Doze como eternos santos da fé -


nossos antepassados espirituais - mas nesta altura dos acontecimen-
tos, eles eram muito humanos, algumas vezes carnais, e completamen-
te ignorantes. Eles não tinham idéia do que aconteceria em poucas
horas: Jesus os deixaria e iria para a cruz, e a fé deles seria testada como
nunca antes pelo fogo da perseguição.
Deixaremos esse assunto por enquanto, para o retomarmos em ou-
tro capítulo. No momento, não quero que nos distanciemos da cena
para onde fomos conduzidos, em que Jesus está ao redor da mesa com
seus discípulos.

Enquanto comiam, Jesus tomou o pão, deu graças, partiu-o, e o deu aos seus
discípulos, dizendo: "1àmem eromamj isto éomeu rorpo".
Em seguida tomou o cálice,deu graças eo ofereceu aos discípulos, dizendo: ''Bebam
dele todos vocês. Isto é o meu sangue da aliança, que é derramado em fàvor de
muitos, para perdão de pecados. Eu lhes digo que, de agora em diante, lJãO beberei
deste fruto da videira até aquele dia em que beberei o vinho novo com vocês no
Reino de meu Pai" (Mateus 26.26-29).

Eles comeram juntos, celebrando a Páscoa. Tradicionalmente, como


judeus devotos, eles devem ter citado as antigas Escrituras, relembrando
os dias em que seus antepassados foram escravizados no Egito e liber-
tados por Deus através de seu servo Moisés. De repente eles percebe-
ram que Jesus não estava mais participando da conversa. Ele parecia
triste - talvez mais triste do que estivera em toda
AS TREVAS EO AMANHECER

partido o pão e dado graças, Ele disse: "Tomem e comam; isto é o meu
corpo".
O quê? Do que Ele estava falando? Eles provavelmente se entreolha-
ram, surpresos. O Mestre .nunca havia dito isto antes. De repente, Ele
estava quebrando a tradição, deixando-os completamente confusos.
Há séculos que muitos teólogos também têm ficado confusos com
esta declaração. Alguns ensinam que o pão servido na Eucaristia, a
Mesa do Senhor, realmente se transforma no corpo de Cristo quando
entra na boca do crente. Outros acreditam que quando o sacerdote
fica em pé diante do povo e parte o pão, este se transforma no corpo de
Cristo. Outros afirmam que isso é representativo - um símbolo espiri-
tual do corpo de Cristo. Creio que a melhor resposta é aquela mais
simples e direta: o pão é uma figura do corpo de Cristo, representando
o seu corpo que foi dado por nós na cruz.
Costumo carregar em minha carteira uma pequena foto da minha
família. Ocasionalmente, algumas pessoas viram-se para mim e di-
zem: "Gostaríamos muito de conhecer sua família". Eu então enfio
minha mão no bolso e tiro minha família para exibir a eles. Não lite-
ralmente, é claro; é apenas uma foto da minha família. Mas digo:
"Esta é a minha famílià'.
É isto o que Jesus queria dizer quando disse a eles naquela noite:
"Este é o meu corpo".
Procure imaginar como deve ter sido aquele momento para aqueles
doze discípulos repentinamente desorientados. Hoje, temos séculos
de estudos e publicações à nossa disposição: temos os quatro Evange-
lhos e outros livros da Bíblia. Além disso, fomos acostumados a enxer-
gar a vida inteira de Cristo dentro desta perspectiva. Mas há ocasiões
em que precisamos descansar na simplicidade da fé e, numa silenciosa
meditação viajarmos de volta àquela sala onde Jesus partiu o frágil pão
ázimo, dizendo a seus discípulos para comê-Io, relembrando-os que
aquilo era um símbolo - uma figura tangível - de seu corpo que seria
dado em benefício deles.
Imagine o silênoio repentino. Imagine as perguntas que ferviam
nas mentes dos discípulos: Ele realmente vai morrer? O que acontece-

38
o CÁLICE 00 SACRIFíCIO

rá conosco? E o reino que Ele prometeu? Teriam sido em vão todos


estes anos com Ele? Devem ter sentido um nó na garganta. Os Evan-
gelhos não dão nenhuma indicação de que algo foi dito em resposta.
Para variar, aqueles doze ~omens permaneceram em absoluto silêncio,
atônitos. Palavras não podiam descrever seus sentimentos.
Enquanto ainda saboreavam o pão, Jesus ergueu um cálice de vi-
nho. dosTd(anos,)Tj2.496
caneca de argila
0Td(as)Tj1.104
a eLaborados
0 Td(pes3oas)Tj3.408 0 Td(têm
AS TREVAS EO AMANHECER
Por obediência ao Pai, Jesus tomou o cálice da morte, desejando
pagar o preço pelos pecados do mundo. E por amor aos seus seguido-
res, Ele deu graças pela provisão obtida pelo cálice - o dom da vida
eterna.

Recebendo wn cálice, ele deu graças e disse: "Tomem isto epartilhem uns com os
outros. Pois eu lhes digo que não beberei outra vez do f1:uto da videira até que
venha o Reino de Deus" (Lucas 22.17, 18).

o tempo deles juntos chegara ao fim. Jesus estava dizendo, "Vocês


nunca celebrarão outra Páscoa comigo. Mas virá um dia quando nós
celebraremos juntos no Reino de meu Pai, na presença do Pai". Não
será um dia glorioso? Juntos com o Pai e o Filho no reino.
Portanto, todas as vezes que participamos da Mesa do Senhor, de-
vemos dar graças por nosso Salvador ter dado graças por nós e por Ele
ter sido compelido pelo amor a levar aquela cruz. Quando seguramos
o cálice próximo aos nossos lábios, em memória ao que Ele fez por nós,
podemos provar e ver que o Senhor é bom. Pense no significado desse
ato. Não devemos simplesmente sentir, ler, ouvir ou ver, mas levar
para dentro de nossos próprios corpos a experiência do sacrifício do
nosso Salvador.

Exemplo de obediência

Como de costume, Jesus foi para o monte das Oliveiras, e os seus discipulos o
seguiram (Lucas 22.39).

Depois de compartilharem aquela última Páscoa· na sala superior,


aquela última ceia, Jesus e seus discípulos saíram da cidade e atravessa-
ram o vale do Cedrom para chegar a um jardim no Monte das Olivei-
ras. Pelo que lemos po relato de Lucas, sabemos que nosso Salvador
freqüentemente encontrava um refúgio tranqüilo no monte das Oli-

40
o CÁLICE 00 SACRIFíCIO

veuas ... muito provavelmente no próprio Getsêmani. É notável que


Ele não escolheu fugir ou se esconder, mesmo sabendo que corria pe-
rigo, como seríamos tentados a agir. Em vez disso, Ele conduziu seus
discípulos de volta àquele lugar familiar, sem temer o fato de que sua
prisão estava cada vez mais próxima. Jesus levou seus discípulos através
da escuridão da noite, para fazê-Ios encarar o mundo brutal e hostil
que o esperava para condená-Io à morte.
Jesus não poderia pagar o preço pelo nosso pecado se ficasse escon-
dido na segurança da sala superior, e nós também não podemos per-
manecer na segurança do santuário. Devemos sair pelo mundo, diari-
amente, pois assim a presença de Jesus Cristo em nossas vidas produ-
zirá em nós amor, tolerância e habilidade para sermos únicos, mesmo
em um mundo hostil, desesperado e cheio de ódio.
Acrescentar mais a uma cena tão penetrante e íntima poderia dimi-
nuir seu impacto. Talvez uma simples oração de devoção seja a melhor
maneira de concluirmos esse capítulo.

Querido Pai,
Por favor, perdoa-nos pelas muitas vezes em que temos participado da Mesa do
Senhor e fracassado em compreender o significado e o simbolismo do pão e do
cálice. Que poderosa mensagem nos espera toda vez que paramos para relembrar
aquilo que o Senhor fez! Na simplicidade da ceia,lembramos seu amoretemo, sua
infinita compaixão, sua resoluta obediência e sua graça sem /imites ...que o leva-
ram a sofrer em agonia para poder pagar o resgate.
Obrigado, Pai,por Cristo, nossoSalvador. ..Pelo queE/e fez na cruzepelomodelo
de obediência que nos deixou. Aprofimda nossa devoção enquanto focalizamos
nossos corações nele como nunca antes em nossas vidas.
Oramos pe/oseu poderoso nome.
Amém.

41
3 Meia-Noite no Jardim

Rei da minha vida, eu te corôo agora.

Tua seja a glória;

Para que eu não esqueça tua fronte coroada de espinhos,


Guia-me ao Calvário.

Para que eu não esqueça o Getsêmani;

Para que eu não esqueça a tua agonia,

Para que eu não esqueça teu amor por mim,


Guia-me ao Calvário.1

- Jennie Evelyn Hussey, 1921


3 Meia-Noite no Jardim

Minha tia Ernestine


De todos era uma oartista
os seus trabalhos, que eucompleta, embora
mais gostava autodidata.
- e que mais me
deixava intrigado quando criança- era uma pintura do Senhor Jesus no
Jardim do Getsêmani. Era um quadro grande, pintado a óleo, que ficava
pendurado sobre a lareira na casa dos meus avós maternos. De fato, aque-
le quadro era a primeira coisa a ser notada pela pessoa que entrasse na casa
pela porta da frente.
Na pintura, Jesus aparece ajoelhado ao lado de algumas rochas enor-
mes, com as mãos cruzadas e os braços apoiados sobre uma rocha, e com
os olhos voltados para o céu, em uma atitude de oração. À sua volta,
descortina-se um céu nublado e agitado, enluarado, mas sombrio.
Certo dia subi em uma cadeira de modo a ficar no nível da pintura
e apertei meu nariz contra a parte do quadro que me fascinava: as pe-
quenas gotas de sangue que saíam da testa de Jesus. Aquelas gotas me
deixavam incomodado. Eu não conhecia a história do Getsêmani, en-
tão imaginava todo tipo de coisas. Talvez aquele homem estivesse per-
dido na floresta e estava orando a Deus, pedindo ajuda para encontrar
a saída. Mas por que sua cabeça estava sangrando? Será que Ele tinha
batido a cabeça nos troncos das árvores enquanto cambaleava pela flo-
resta? Ou quem sabe algum inimigo tivesse batido em seu rosto ...
Uma tarde, perguntei ao meu avô Lundy, "O que significa essa
pintura?"
AS TREVAS EO AMANHECER

Ele estendeu os braços, pegou-me no colo e levantou-se, segurando-


me em seus braços, e juntos, olhamos para a pintura da tia Ernestine.
"Esta é uma pintura do nosso Salvador quando estava orava no
jardim, antes de ir para a ,cruz", ele disse.
"Por que Ele está sangrando?", perguntei.
"Bem, deixe-me mostrar-lhe", disse meu avô. Ele então pegou sua
Bíblia já gasta pelo uso e leu para mim a parte em que é dito que o
suor de Jesus" era como se fossem grandes gotas de sangue caindo sobre o
solo", durante sua oração agonizante no Jardim do Getsêmani (Lucas
22.44 - Versão King James).
Nunca consegui compreender completamente esse tipo de agonia
em oração, mas acredito que isso realmente aconteceu. Médicos têm
afirmado que o corpo, quando submetido a um grande estresse, pode
ficar em tal estado de choque que o sangue pode realmente fluir atra-
vés da pele. Uma leitura cuidadosa do texto revela que o dr. Lucas não
afirmou que o Salvador estivesse realmente sangrando. Ele diz que seu
suor" tornou-se como grandes gotas de sangue". Mas, de qualquer manei-
ra, ninguém pode subestimar a profunda agonia que nosso Senhor
experimentou no Getsêmani.

A humanidade de Cristo
Ao levantarmos o véu daquela noite, vemos apenas uma pequena parte
do quadro maior da paixão de Jesus ("paixão" é o termo comumente
usado quando nos referimos ao sofrimento de Cristo entre a última
ceia e sua morte na cruz). O que tem se sobressaído até o momento?
Como vimos no capítulo anterior, Jesus havia celebrado a refeição da
Páscoa com seus discípulos, sua última ceia juntos. A seguir, Judas, o
traidor, saiu para realizar seu plano perverso. Jesus e seus onze discípu-
los fiéis caminharam pelas ruas de Jerusalém, saindo por um dos portões
da cidade, passaram pelos degraus do lado sul do templo de Herodes,
e desceram pelo Vale do Cedrom, seguindo em direção ao Monte das
Oliveiras, para chegai" ao escuro e silencioso bosque de oliveiras cha-
mado Getsêmani.

46
MEIA-NoITE NO JARDIM

Gets~mal1ié uma palavra hebraica que significa "fábrica de óleo". Apa-


rentemente, havia próximo a esse local uma fábrica onde se pren-
savam azeitonas para obtenção do azeite. Foi ali - sozinho e em agonia
- que o Salvador enfrentou a mais opressiva das experiências.

Depois de terem cantado um hino, saíram para o Monte das Oliveiras.


Então foram para um lugar chamado Getsêmani, eJesus disse aos seus discípulos:
"Sentem-se aqui enquanto vou orar" (Marcos 14.26,32).

A julgar pelo antigo bosque de oliveiras que pode ser visto hoje no
Monte das Oliveiras, o Getsêmani devia ser um lugar silencioso, en-
cantador e agradavelmente perfumado. Estudiosos do Novo Testamento
acreditam que Jesus e seus discípulos devem ter chegado ali por volta
de meia-noite e uma da madrugada. Jesus pediu aos seus discípulos
para se sentarem e esperarem um pouco enquanto Ele orava. Aparen-
temente, eles deveriam proteger o local para que ninguém interrom-
pesse seu momento de solidão. No entanto, Jesus levou três discípulos
para ficarem com Ele no jardim.

"Levou consigo Pedro, TIago eJoão, e começou a ficar aflito e angustiado. E lhes
disse: 'Y! minha alma está profundamente triste, nwna tristeza mortal. Fiquem
aqui e vigiem" (Marcos 14.33,34).

Nenhum artista seria capaz de retratar a angústia que penetrou na


alma de Jesus. As palavras também não conseguem descrever sua an-
gústia. Aqui, a expressão na língua grega traduzi da como muito angus-
tiado, literalmente significa "ser tomado pelo terror".
Não posso explicar totalmente o motivo e a forma dessa experiência
de Jesus. Posso apenas descrever o que Marcos nos conta. (Marcos foi o
primeiro dos quatro evangelhos a ser escrito, pr~vavelmente depois de
seu escritor ter passado um bom tempo com Pedro). Muitos estudio-
sos confirmam que Marcos obteve suas informações sobre aquela noite
diretamente de Pedra ... e Pedro, certamente, foi uma testemunha ocular.
Assim, através dos olhos e dos lábios de Pedra, registradas pela pena de

47
AS TREVAS EO AMANHECER

Marcos vêm as palavras "muito angustiado". Uma angustiante sensa-


ção de terror veio sobre o Senhor Jesus quando Ele encarou o que o
esperava.
O versículo também nos diz que Ele ficou aflito, "muito angustia-
do e aflito". A palavra aflito inclui a idéia de ficar "pouco à vontade,
intranqüilo, desconfortável". Naquele momento, pouco antes de ajoe-
lhar-se diante do Pai em oração, esses sentimentos começaram a cercá-
10. Ele não escondeu seus sentimentos de seus três amigos íntimos -
Pedro, Tiago e João. Ao contrário, Ele confessou que estava "profunda-
mente triste, numa tristeza mortal".
Cerca de sete séculos antes, como vimos no primeiro capítulo, Isaías
havia profetizado que o Salvador seria" um homem de dores e experimen-
tado no sofrimento" (Isaías 53.3). Não há melhor descrição disso nas
Escrituras do que o momento em que Ele diz: "Estou profundamente
triste".
O que significa, humanamente falando, estar profundamente tris-
te? Pense em algum momento de sua própria vida que poderia ser
descrito dessa forma. Talvez quando você perdeu seu melhor amigo.
Ou talvez depois de uma longa luta contra algum vício que o ator-
mentava - a humilhação de ser descoberto e o sofrimento que provo-
cou. Ou ainda a morte prematura de sua mãe ou de seu pai.
Lembro-me da tarde em que meu pai ligou para mim e disse: "Fi-
lho, acho que sua mãe morreu". Imediatamente, atravessei a cidade
em direção à casa de meus pais e lá, sobre o sofá, estava o corpo de
minha mãe. No início daquela tarde, ela havia decidido tirar uma
soneca ... e nunca mais acordou. Ali estava ela, sem vida, relativamente
jovem - sessenta e três anos. E, naquele momento, senti-me envolvido
pelo mais profundo sentimento de tris.teza.
Um escritor descreveu o que foi este momento no Getsêmani para
o Filho de Deus: ''A tristeza o envolveu, cercando-o por todos os lados,
absorvendo sua mente consciente. Foi tão triste, foi como se a morte
tivesse colocado os dedos ao redor de seus ombros". Em nenhum ou-
tro lugar na narrativa. do Evangelho, podemos entrar tão profunda-
mente na humanidade de Cristo como no Getsêmani.

48
MEIA-NoITE MJ JARDIM

Perturbado, aflito e triste, mais do que as palavras podiam expressar,


Jesus disse a seus discípulos: "Fiquem aqui e vigiem".
Por quê? Por que Ele iria querer que seus discípulos estivessem per-
to dele quando estivesse enfrentando tal angústia? Em geral, a tendên-
cia humana é fugir dos outros quando dominados pela dor - deseja-
mos esconder tais sentimentos. Mas Jesus não escondeu sua angústia
de seus amigos mais íntimos, ao contrário, Ele os colocou face a face
com cada uma das suas emolfões humanas. Ao fazer isso, Ele os liber-
tou da tola tentalfão de negar os sentimentos de agonia que teriam que
enfrentar nos anos seguintes. Mesmo em meio a suas lutas mais tortu-
rantes, Jesus sempre se mostrou autêntico, e um verdadeiro exemplo
de sinceridade.

o caminho da submissão
Oito discípulos permaneceram próximos à entrada do jardim enquan-
to os outros três foram mais além, até o centro da escuridão, no interi-
or do silencioso Jardim do Getsêmani com o Mestre. Então Ele disse:
"Fiquem aqui e esperem comigo". E a seguir, "Ele foi um pouco além deles"
e "prostrou-se em terra e começou a orar que se fosse possível, fosse afastada
dele aquela hora".
Na língua original que Marcos escreveu, os verbos prostrar-se e orar
estão no pretérito imperfeito, que descreve uma alfão constante, contí-
nua. Deste modo, essa frase, na verdade, poderia ser lida assim: "Ele
prostrou-se em terra e orou, e então se prostrou em terra e orou, e
então se prostrou em terra e orou". Neste sentido, minha tia Ernestine
e outros artistas ignoraram i~so quando pintaram Jesus ajoelhado si-
lenciosamente à luz do luar, orando com as mãos cruzadas cuidadosa-
mente, de modo sereno. Não foi assim que aconteceu. Se entendi cor-
retamente, Jesus prostrou-se em terra e orou; então Ele se levantou,
andou um pouco mais adiante, prostrou-se novamente ao solo e orou.
Ele fez isso repetidamente, enquanto na angústia de sua alma, conti-
nuava a bradar: "Aba!"

49
AS TREVAS EO AMANHECER

Indo wn pouco mais adiante, prostrou-se eOlava paro que, sepossível fosse afasta-
da dele aquela hOla. E dizia; 'Jiba, Pai, tudo te épossível. Afàsta de mim este cálice;
contudo, não seja o que eu quero, mas sim o que tu quens" (Marcos 14.35, 36).

Aba é uma palavra do aramaico, a língua que Jesus falava. Aba era
uma palavra que expressava intimidade, um termo familiar de relacio-
namento íntimo entre filho e pai. A melhor equivalência em nossa
língua é a p.l.lavra "papai". Ao empregar este termo, Marcos manteve o
senso de intimidade, urgência e agonia que o Espírito Santo queria
preservar.
"O h, Papai!" diz Jesus. "Se for possível de alguma maneira, Pai, oh,
meu Pai, deixa esta agonia que estou enfrentando ser afastada. Permita
que as coisas aconteçam de outra forma. Todas as coisas são possíveis
para o Senhor".
Quando alguém perguntar como o Filho de Deus poderia ser ver-
dadeiramente humano, deixe-o olhar para esta cena no Getsêmani,
onde o óleo de sua angústia foi espremido como o óleo das azeitonas.
Ali, na escuridão do jardim, toda a sua humanidade veio à tona. Sou
grato por esta sombria cena ter sido preservada. De outra forma, temo
que olharíamos para o Senhor Jesus como se Ele fosse algum tipo de
robô divino, que seguia mecanicamente o curso da redenção sem ma-
nifestar os mais profundos sentimentos, considerando-o apenas como
mais um compromisso na agenda divina. Mas não foi nada disso que
aconteceu. Jesus não era apenas completamente divino, Ele era tam-
bém, e de todas as maneiras, verdadeiramente humano, sujeito a sen-
timentos idênticos aos nossos, sejam eles de alegria ou tristeza, medo
ou confiança, êxtase de alegria ou completa agonia.
Neste momento, o Filho de Deus, totalmente inocente e sem peca-
do, encarou e aceitou o sofrimento e a morte que o aguardavam. E,
então, Ele se dirigiu ao Pai em termos familiares: "Se for possível, afas-
ta essa hora". Se existir um outro jeito de redimir a humanidade, de
pagar o preço final pelos pecados das pessoas, então que, isto seja evita-
do. A seguir, Ele orou usando as palavras que se tornariam parte de
nossa vida de oração: "Não seja o que eu quero, mas sim o que tu
queres" .

50
MEIA-NoITE 00 JARDIM

.. Você pode contar o número de vezes que já orou assim? Eu não


'posso. Não sei quantas vezes me apresentei diante do Senhor dizendo:
"Senhor, esse é o meu desejo e tanto quanto posso sondar meu cora-
ção, acredito honestamente que essa também é a tua vontade. Mas,
pode não ser e, seja como for, quero fazer a tua vontade, não a minha.
O que estou colocando diante de ti representa aquilo .que desejo, e o
Senhor tem me falado para deleitar-me em ti, e o desejo do meu cora-
ção será completamente satisfeito. Assim, não seja feita a minha vonta-
de, mas a tua". É interessante observar que estes sentimentos são todos
baseados na oração que Jesus fez no jardim. Foi lá que tudo começou:
"Não seja o que eu quero, mas sim o que tu queres".
Perceba o movimento:

Então, voltou aos seus discípulos e os encontrou dormindo. "Simão': disse ele a
Pedro, "vo&está dormindo? Não pôde vigiamem por uma hora? Vigiem eonnJ
para que não caiam em tentação. O espírito está pronto, mas a carne éfTaca."
Mais uma vez ele se afàstou e orou, repetindo asmesmas palavras. Quando voltou,
de novo os encontrou dormindo, porque seus olhos estavam pesados. Eles não
sabiam o que dizel:
WJltaIJdopela terceira vez, elelhes disse: "WJcê5 ainda dormem e descansam? Bas-
ta! Chegou a hora! Eis que o Filho do homem está sendo entregue nas mãos dos
pecadores. Levantem-se e vamos! Aí vem aquele que me trai!" (Marcos 14.37--42)

Jesus não se prostrou apenas uma vez para uma breve oração no
jardim, para depois enfrentar a crucificação. Ele orou, e então voltou
para os discípulos. A seguir, retomou para orar, e então, mais uma vez
voltou para seus discípulos. Três vezes Ele voltou para orar. Este é o
caminho da submissão: "Não seja o que eu quero, mas sim o que tu
queres" .
Isto deveria ter sido uma incrível experiência para os discípulos.
Mesmo assim eles não o ouviram. Em vez disso, "Ele os encontrou
dormindo" .
O versÍculo diz que Ele "os" encontrou dormindo, mas Ele conver-
sou com Pedro. Vocêsabe por que Ele se dirigiu a Pedro? Porque momen-

51
AS TREVAS EO AMANHECER

tos antes, logo depois da refeição da Páscoa, Pedro, cheio de boas inten-
çõe~, havia dito ao Mestre, "ainda que todos te abandonem, eu não te
abandonarei!" (Marcos 14.29) Por isso Ele se dirigiu a Pedra, o mesmo
que havia dito, "Eu nunca o abandonarei", e perguntou, "Simão, você
está dormindo?"
Observe que Jesus chamou-o de Simão, seu nome de família, em
vez de Pedro (que significa "rocha"), o nome que o Senhor lhe tinha
anteriormente concedido. É quase como se o Senhor estivesse dando
uma indireta, "Estamos de volta onde começamos, Simão. Você ainda
tem um longo caminho a percorrer!" Não posso deixar de imaginar
como Pedro deve ter se sentido naquele momento, o quanto ficou cons-
trangido ao ouvir: "Você está dormindo? Você não pôde vigiar nem
por uma hora?" Então, graciosamente, Jesus o encorajou dizendo:
"Vigiai e orai".
Jesus havia dito anteriormente: "Vigiem". Agora, Ele diz a Pedra,
Tiago e João: "Vigiem e orem". Por quê? "Para que não caiam em tenta-
ção." Que tentação seria essa? Certamente Ele não estava se referindo
apenas à tentação de cair no sono novamente. A meu ver, Jesus estava
se referindo à tentação em que eles cairiam nas próximas horas: a ten-
tação de desertar. Aquele era o momento dos discípulos orarem por
fortalecimento para suas almas; o momento para vigiar e orar, enquan-
to não havia inimigos ao redor, porque quando o inimigo chegasse,
eles seriam tentados a abandonar o Salvador. Jesus disse a eles para
vigiar e orar para que isso não acontecesse ... para que não fossem ten-
tados a abandoná-Io.
Jeremias nos dá uma visão interessante de como devemos fortalecer
nossas almas quando tudo vai bem de forma que quando a situação
ficar ruim saibamos lidar com ela.

"Se vocêcolTeu com homens e eleso cansaram,


como poderá competircom azvalos?
Sevocê tropeça em temnoseguro,
o que fará. nos matagais junto aoJordão?" Qeremias 12.5)

52
MEIA-NoITE NO JARDIM

Qualquer um que corresse com outros homens poderia participar


da infantaria. Mas se a pessoa não conseguisse sequer acompanhar um
homem a pé, o que faria quando a cavalaria chegasse, quando tivesse
que enfrentar uma batalha com soldados a cavalo? Se um guerreiro não
permanecesse firme nos tempos de paz, como faria nos matagais do
Jordão, no deserto, quando tivesse que enfrentar a realidade do com-
bate corpo-a-corpo?
Há um excelente princípio de vida oculto nessas palavras: acumule
forças em tempos de paz; use os momentos de serenidade para fortale-
cer sua alma, para que você não desista quando a vida se tornar dura e
difí dI.
Talvez você esteja atravessando um período de grande prosperidade
em seus negócios ou em sua vida pessoal. Talvez você esteja velejando
despreocupadamente, e o amanhã pareça bastante promissor. Se for
assim, deixe-me desafiá-Io: neste exato momento, você está no lugar
prefeito para se preparar. Tempos de paz e prosperidade são os mo-
mentos ideais para que você se equipe para as inevitáveis provas de
escassez e sofrimento.
É o que Jesus estava dizendo em Marcos 14.38: "Vigem e orem,
para que não caiam em tentação; o espfrito está pronto, mas a carne é
fraca". Isto estava evidente demais, quando Jesus retomou uma tercei-
ra vez e os encontrou dormindo.

VOltando pela terceira vez, elelhes disse: "VOcêsainda dormem e descansam? Bas-
ta! Chegou a hora! Eis que o Filho do Homem está sendo entregue nas mãos dos
pecadores. Levantem-se e vamos! Aí vem aquele queme trai!" (Marcos 14.41,42)

Uma vez mais os discípulos estavam dormindo profundamente,


talvez até roncando, mesmo assim, Ele os acordou gentilmente, sem
repreendê-Ios. Esta é uma cena digna de ser pintada por um artista,
uma cena de um realismo sem retoques. Os discípulos já haviam vir-
tualmente desertado, mas apesar disso, Jesus inclinou-se sobre eles
como uma mãe sobre seu bebê, e disse: "Basta".

53
AS TREVAS EO AMANHECER

Ele tinha orado ao Pai. Ele havia pedido uma solução alternativa,
se fosse possível. Não foi. Agora Ele vê que o único caminho a seguir
é o caminho da cruz, e Ele está resignado a cumpri-Io. Com um espí-
rito manso e submisso, Ele disse: "Chegou a hora ... aí vem aquele que
."
me traI .
Há uma sensação de tranqüila determinação no registro dos quatro
evangelhos ao descrever esta cena. Jesus saiu do jardim para enfrentar
seu traidor, Judas, e a multidão hostil. Então, sob a luz bruxuleante
das tochas, Ele é levado, como prisioneiro.
Este era o plano de Deus, e Ele estava pronto para aceitá-Io.

Momento de decisão
Talvez você esteja passando pela prova da decisão - um tempo de bus-
ca e luta profunda em sua alma. Deus deixou muito claro que é isto
que Ele quer de você, e que esta é vontade dele para sua vida. Mas isto
significa abrir mão de certos direitos que você goza, de coisas que são
importantes e significativas para você. Permitir que Deus agisse do
jeito dele poderia ser algo desconfortável.
Talvez você seja solteiro e tenha percebido que o plano de Deus,
pelo menos até onde você pode enxergar, é que você deveria permane-
cer solteiro. Lembro-me de uma moça que foi abandonada pelo noivo
de uma hora para outra. Ela veio a mim com lágrimas escorrendo pela
face. "Passei três meses muito difíceis", disse ela, "mas acredito que é
da vontade de Deus, ao menos por um período de tempo, que eu não
me apaixone novamente". Ela não disse isto com amargura ou mórbi-
da resignação, mas demonstrando uma tranqüila submissão ao plano
de Deus.
Talvez você esteja enfrentando uma situação que, um ano atrás,
você jamais sonharia que pudesse acontecer com você... mas agora acon-
teceu. Deus o está "pressionando" enquanto você se encontra em seu
próprio Getsêmani, dizendo: "Quero realizar minha vontade em sua
vida. Quero que você abra mão de seus direitos. Quero que você esteja

54
MEIA-NoITE NO JARDIM

disposto a aceitar minha vontade ... qualquer que seja a situação. Que-
ro que você pare de lutar comigo. Quero me entender com você".
Este é o "seu cálice".
Deus pode estar apontando para alguma coisa do seu passado. Uma
relação ilícita, ou um tratamento injusto para com outra pessoa. Tal-
vez uma atitude buscando prejudicar alguém ou se vingar. Seja o que
for, você está no jardim, encarando uma árdua decisão, lutando com
"o cálice" que Deus lhe apontou.
Na verdade, essa é a hora de você caminhar por onde nosso Salva-
dor caminhou e ajoelhar-se com Ele no Getsêmani. Use esse tempo
para examinar sua vida, dizendo: "Senhor, seja feita a tua vontade, não
a minha".
Descobri, por experiência própria, que o Senhor nos faz passar por
pelo menos quatro estágios durante o processo de nos levar a uma
completa rendição.
Primeiro. Todos nós precisamos atravessar a escuridão de nosso próprio
Getsêmani. Assim com Jesus "chegou ao lugar", nós também devemos
chegar (Lucas 22.40).
Segundo. Durante o tempo que permanecermos ali, devemos enfrentar
nossa própria angústia. Ninguém pode passar por este processo em
nosso lugar. Como nosso Senhor, oramos, suamos e esperamos sozi-
nhos ... Totalmente sozinhos.
Terceiro. Nos momentos de angústia, devemos abrir mão de nossa pró-
pria vontade. Durante esta prova de decisão, antes de tudo há uma
batalha entre duas vontades: a nossa e a de Deus. Podemos implorar e
barganhar, mas, no final das contas, se queremos sair vitoriosos, deve-
mos entregar a Ele o controle. É nesse ponto - precisamente nesse
momento - que a angústia se esvai, dando lugar à vitória. A luta ter-
mina e surge uma calma determinação.
Quarto. Tendo aceita do a vontade de Deus sobre nossa vida, estamos
prontos para encarar nosso próprio Calvário. Em outras palavras, tomar
nossa própria cruz'e seguir a Cristo só é possível quando atravessamos
nosso próprio Getsêmani.

55
AS TREVAS EO AMANHECER

Exatamente como Jesus ensinou: "Se alguém quiser acompanhar-


me [viver como eu vivi], negue-se a si mesmo [Getsêmani], tome diari-
amente a sua cruz e siga-me [Calvário]" (Lucas 9.23).
Eis a questão crucial: '("ocêrealmente deseja seguir a Cristo tão de
perto?

56
4 Três Horas da Madrugada

Quem era o culpado?

Quem trouxe isto sobre ti?

Ah, minha traição, Jesus a tem desfeito.

Era eu, Senhor Jesus,

Eu neguei a ti:

Eu crucifique a ti. I

- JOHANNHEERMANN
4 Três Horas da Madrugada

P edro é o discípulo
identifica com boa
... e por uma o qual a maioria
razão. Ele é tãodetransparente,
nós prontamente se
tão hu-
mano, tão vulnerável, tão honesto e às vezes tão real que podemos
facilmente nos identificar como um discípulo em suas ações e reações.
Já que toquei neste assunto, você é capaz de pensar em algo mais em-
baraçoso do que ter registrado a mais pura verdade sobre sua vida para
o mundo inteiro ler... por todas as gerações futuras? E ainda mais: esse
registro permitiria que pregadores examinassem suas falhas e pecados,
suas explosões de ira, negações e traições embaraçosas durante séculos
e séculos.
Para examinar isso mais de perto, devemos retornar ao intervalo
entre a última refeição de Jesus com seus discípulos na sala superior e
sua luta interior no Jardim do Getsêmani. Quando Jesus e seus discí-
pulos foram de Jerusalém para o Monte das Oliveiras, Ele fez alguns
comentários impressionantes e assustadores.

Palavras duras entre dois amigos

Depois de terem cantado wn hino, sairam para o Monte das Oliveiras.


Disse-lhesJesus: "Voc& todos me abandonarão. Pois está escrito: 'Ferirei o pastor, e
as ovelhas serão dispersaS.
AS TREVAS EO AMANHECER

Mas, depois de ressuscitar, irei adiante de vocês para a Galiléia".


Pedro declarou: "Ainda que todos te abandonem, eu não te abandonal:ei!"
~pondeuJesus: "Asseguro-lhe que ainda hoje, esta noite, antes que duas vezes
cmteo gal o, tres
....vezes vocemenegara
A ", .
Mas Pedro insistia ainda mais: "Mesmo que sejapreciso que eu mOITa contigo,
nunca te negarei." E todos os outros disseram o mesmo (Marcos14.26-31).

"Depois de ressuscitar',
disse Jesus. Mas é evidente que Pedro não
prestou atenção nesta profecia da ressurreição. Tudo que Pedro ouviu
foi: "Vocês todos me abandonarão". A palavra desertar - ou na tradução
da NVI: "vocês todos me abandonarão" - foi tomada da palavra grega
que significa "tropeçar".
"Todos vocês vão se voltar contra mim, deixar-me e abandonar-
me ... todos vocês tropeçarão."
Quase podemos ouvir Pedro, indicando com um gesto amplo de suas
rudes mãos de pescador os outros discípulos, num tom de voz familiar
e de exagerada autoconfiança, dizer: "Todos os outros deste grupo po-
dem abandoná-Io, mas eu certamente nunca irei abandoná-Io!"
''Ah, Pedro, mas você vai", disse Jesus com um suspiro. A seguir,
Ele acrescentou um comentário que deve ter doído: "Asseguro-lhe que
ainda hoje, esta noite, antes que duas vezes cante o galo, três vezes você me
negará".
Jesus faz três declarações penetrantes: Pedro o negará; Pedro o ne-
gará naquela mesma noite; e Pedro o negará três vezes.
Tenho dito freqüentem ente que Pedro sofria da doença da "boca
grande" (isto soa familiar?). Ele tinha a tendência de exagerar e de se
vangloriar por causa da opinião que tinha a respeito de si mesmo. Mas
vamos dar a ele o benefício da dúvida. Talvez ele realmente estava se-
guro do que disse. Ele realmente pensava assim. Ele confiava em sua
própria lealdade e devoção para com o Mestre, e por essa razão não se
importava em tomar à frente e declarar sua lealdade. Pedro era sufici-
entemente devotado a Jesus para morrer com Ele, e afirmou isso.
Depois de terem c?memorado juntos a Páscoa e, de algumas coisas
que Jesus tinha dito a eles, as emoções dos discípulos estavam à flor da

60
T REs HoRAS DA MADRUGADA

pele. Obviamente, as de Pedro estavam ainda mais exaltadas. "Senhor,


o mundo terá de acabar antes que eu o negue. Todos eles podem negá-
10, mas eu não!"
E Jesus disse: "Não, esta mesma noite voc~ vai me negar. Não uma,
mas tr~s vezes, antes que o galo cante duas vezes".
William Barelay oferece uma surpreendente visão sobre o canto do
galo mencionado por Jesus.

É bem possível que o canto do galo não se referisse à voz de uma ave; e
que desde o início não tivesse esse significado. Afinal de contas, a casa do
sumo sacerdote ficava exatamente no centro de Jerusalém, e provavelmente
não existiam aves domésticas no centro da cidade. De fato, havia um regula-
mento na lei judaica que considerava ilegal manter galos e galinhas na Cidade
Santa, porque sujavam os elementos sagrados. Mas o horário das 3 horas da
manhã era chamado de canto do galo pela seguinte razão: nessa hora ocorria a
troca da guarda romana no Castelo de Antonia; e o sinal para indicar essa
troca era um toque de trombeta. A palavra em latim para designar este toque
da trombeta é gallicinium, que significa canto do galo. É bem possível que
assim que Pedro negou pela terceira vez, a trombeta das muralhas do castelo
soou sobre a cidade adormecida ... e então Pedro se lembrou. Por isso ele se foi

e chorou amargamente.2

Os romanos dividiam o dia em segmentos de tr~s horas chamados


de "horas", sendo que os tr~s segmentos noturnos eram chamados de
"vigílias". Estas vigílias determinavam os períodos de tr~s horas do
turno da guarda, assim como nos turnos do serviço militar atualmen-
te. As vigílias da noite também podiam ser usadas para indicar a que
horas alguma coisa havia acontecido. A primeira vigília da noite come-
çava às 18 horas e ia até às 21 horas; a segunda vigília ia das 21 horas
até à meia-noite; a terceira vigília ia da meia noite até às 3 horas da
manhã; e a quarta vigília, das 3 horas da manhã até às 6 horas da
manhã.
Os judeus costUlpavam se referir a essas vigílias da noite de forma
abreviada. Encontramos um exemplo disto em Marcos 13.35-37:

61
AS TREVAS EO AMANHECER

Portanto, vigiem, porque vocês não sabem quando o dono da casa vol-
tará: se à tarde, à meia-noite, ao cantar do galo ou ao amanhecer. Se ele
vier de repente, que não os encontre dormindo! O que lhes digo, digo a
todos: Vigiem!

"À tarde" referia-se ao fim da primeira vigília, ou nove horas da


noite. "Meia-Noite" era o final da segunda vigília. Percebeu? "Canto
do galo" era a expressão usada para o fim da terceiravigília, ou seja, 3
horas da manhã. E "amanhecer" marcava o fim da quarta vigília.
Quando Jesus disse: "antes que o galo cante duas vezes", Ele estava
se referindo ao fim da terceira vigília. Se a sugestão de Barclay estiver
correta, foi dado um sinal nas primeiras horas da manhã, marcando o
fim da terceira vigília, e este sinal era chamado de "canto do galo".
Exceto pelo fato de que, como vimos, neste caso não era um galo, mas
um som de trombeta. Na troca da guarda para a próxima vigília, ou-
via-se um som estridente de trombeta. Nas ocasiões festivas, devido ao
grande número de pessoas na cidade, freqüentemente se ouviam dois
toques, um em cada direção.
Como era época das comemorações da Páscoa, a trombeta teria
tocado duas vezes. Assim, isso é o que Jesus quis dizer quando falou
para Pedro: "Esta noite, antes de você ouvir aqueles dois toques de
trombeta, você terá me negado três vezes". Isto também nos assegura
que a negação de Pedro aconteceu antes das 3 horas da manhã.

Mas Pedro insistia ainda mais: "Mesmo que sejapreciso que eu mOlTa conti-
go, nunca te negarei". E todos os outros disseram o mesmo (Marcos 14.31).

Os outros logo acompanharam as palavras deste leal, mas vulnerá-


, I "E u tam b'"
veI d'lSClpUo: em , "É'ISSOaI,, Ped ro, eu tam b'em " , "N-ao vou
negá-Io, Mestre". Eles eram tão leais, ali, na segurança daquele jardim
calmo e protegido! No conforto daquele círculo mais íntimo de discí-
pulos. Eles nem imaginavam o que os aguardava além do jardim, às
três horas daquela as~ustadora e escura manhã da alma.
Naquele momento, entretanto, eles tinham apenas que vigiar e es-
T RÊS HORAS OA MADRUGADA

perar enquanto o mestre enfrentava seu próprio momento de agonia, seu


Gets~mani. Tudo o que Ele havia pedido a eles foi: "Sentem-se aqui,
enquanto eu oro " e "F"lquem acor. da dos. " Entretanto ...

Então, voltou aos seus disápulos e os encontrou dormindo. "Simão'~ disse ele
a Pedro, "você está dormindo? Não p6de vigiar nem por luna hora?" (Marcos
14.37)

Ele voltou e encontrou Pedro, Tiago e João dormindo. Mas vale a


pena notar que Ele se dirigiu a apenas um "deles". Ele escolheu Pedro.
Por qu~? Porque Pedro foi o primeiro que, naquela mesma noite, tinha
declarado tão ousadamente, "mesmo que todos falhem, eu não falha-
rei!" E agora ele estava ali, roncando, fraco demais para vigiar ou ficar
acordado. Mas não sejamos duros demais com Pedra. Quantos de nós
já não cometemos o mesmo erro? Nós nos mostramos fortes e seria-
mente comprometidos, e logo depois fraquejamos.
Além disso, Pedra não foi o {micoa desertar.Logo depois, quando Judas
chegou para trair Jesus, entregando-o nas mãos de seus ininúgos, veja o que
aconteceu: "então todos o abandonaram e fugiram" (Marcos 14.50).
Todos os que anteriormente haviam dito: "Jamais vou deixá-Io,
Mestre. Jamais vou trai-Io. Jamais vou negá-Io. Jamais vou desapontá-Io.
Mesmo que todos os outros te abandonem eu não te abandonarei", sumi-
ram! Um a um eles foram fugindo - fugindo para a escuridão daquela
noite de medo, para o anonimato. "TOdos os abandonaram e fugiram." Eles
se dispersaram como ratos assustados.

A negação de Pedro

Levaram Jesus ao sumo sacerdote; e então se relmiram todos os chefes dos


sacerdotes, oslíderes re/igiososeosmestres da lei. Pedro o seguiu delonge atéo pátio
do sumo sacerdote. ~entando-se ali com os guardas, esquentava-se jL/l1toao fogo
(Marcos 14.53,54).

63
AS TREVAS EO AMANHECER

Pedro tinha fugido com os outros quando Jesus foi preso no


Getsêmani. Ainda que não tenha ido longe, ele seguiu Jesus e seus
captores "à distância". Oculto pelas sombras das frias horas da ma-
drugada, Pedro assistiu a tudo sem ser descoberto, seguindo a multi-
dão até o pátio do sumo sacerdote. Ali, os soldados estavam reunidos
em volta de um pequeno fogo; cuidadosamente, envolto numa capa,
Pedro aproximou-se das brasas para se aquecer.
Pedro estava com medo, mas também estava curioso; sua lealdade
estava em conflito com seu medo. E assim, ele seguiu Jesus à distân-
cia... à uma distância segura.

OschefEsdossacerdotese nxio o Sinédrioestav.un procurandodepoimentosron-


traJesus, para que pudessem rondená-lo à morte, mas não enrontravam nenhum.
Então alguns começaram a cuspir nele; vendaram-lhe os olhos e, dando-lhe
murros, diziam: "Profetize!" E os guardas o levaram, dando-lhe tapas (Marcos
14.55,65).

Jesus foi torturado, humilhado, cuspido, amaldiçoado e falsamen-


te acusado, mas permaneceu ali em silêncio, sangrando. Então come-
çaram a zombar dele. Eles o vendaram e o esbofetearam, desafiando-o
a "profetizar": "Diga-nos quem bateu em você!" Escondido nas som-
bras, observando tudo, estava o amedrontado Pedro, perseguido pela
lembrança de suas próprias palavras. "Eu nunca o negarei, Mestre.
Mesmo que todos os outros o abandonem, eu nunca o
desapontarei."Essas palavras martelavam sua mente. Ele não podia
apagar a condenação de suas próprias palavras.

Estando Pedro embaixo, no pátio, uma das criadas do sumo sacerdote passou
por ali. "\kndo Pedro a aquecer-se, olhou bem para ele e disse: "Vare também estava
romJesus, o Nazarend' (Marcos 14.66, 67).

Talvez alguém tenha atiçado o fogo, e um feixe de luz iluminou a


face de Pedro. Naquele instante, uma serva da casa do sumo sacerdote
o reconheceu. Possiv~lmente ela já tinha visto Pedro antes, andando ao
TRÊS HORAS DA MADRUGADA

lado de Jesus e dos discípulos pelas ruas de Jerusalém, onde eles ti-
nham se tornado uma visão familiar.
"Você é um dos seguidores do Nazareno", disse a criada. Se isso foi
dito em tom de acusa<;:ãoou se foi apenas uma constata<;:ão,não sabe-
mos. Entretanto, independente do tom, Pedro esqueceu-se das pala-
vras anteriormente ditas a Jesus.

Contudo, ele o negou, dizendo: "Não o conheço, nem sei do que você está
falando". EsaÍu para o alpendre (Marcos 14.68).

Esta era uma ousada e rápida nega<;:ão- nada sutil. A seguir, Pedro
retirou-se para uma distância mais segura, e logo se afastou para mais
longe, a fim de acalmar toda suspeita ... e então, precisou se afastar
ainda mais, porque a criada não desistira.

Quando a criada o vÍu lá, disse novamente aos que estavam por perto: "Esse
aiéum deles". Denovoelenegou(Marcos 14.69,70).

Desta vez, a criada se dirigiu à multidão que estava por perto, di-
zendo: "Escutem, este é um deles". E, mais uma vez Pedro negou
abertamente qualquer associa<;:ãocom Jesus de Nazaré.

Pouco tempo depois, os que estavam sen tados ali perto disseram a Pedro:
"Certamente você é um deles. 1ícJcê é um galileu!" (Marcos 14.70)

Como eles sabiam que Pedro era da Galiléia? Bem, como diz um
dos Evangelhos, "o seu modo de falar o denuncia" (Mateus 26.73). A
maioria dos galileus tinha dificuldade para pronunciar algumas pala-
vras do dialeto falado em Jerusalém naquela época. Os naturais da
Judéia estavam habituados a isto. Além disso, os galileus eram algu-
mas vezes considerados ignorantes e incultos, pois enquanto os roma-
nos, especialmente os oficiais, costumavam falar diversas línguas, os
galileus eram, na melhor das hipóteses, bilíngües. Assim, quando Pedro
gritou, "Eu não! Não o conhe<;:o!Não sei do que vocês estão falando",
os que estavam por ali facilmente o identificaram como galileu.

65
AS TREVAS EO AMANHECER

Somos geralmente traídos pelo nosso modo de falar. Há alguns


anos, minha esposa e eu desfrutávamos de uma agradável noite em
um dos mais finos restaurantes da cidade de Dallas. Para combinar
com a decoração, os garçons usavam trajes típicos. Envolvidos por
aquela atmosfera, nos sentíamos em pleno Marrocos. Até que a garço-
nete incumbida de servir nossa mesa se aproximou e perguntou: "Vocês
já pediram as bebidas?"
Naquele momento percebemos que ainda estávamos no Texas.
Se você encontrar alguém da Nova Inglaterra em qualquer lugar do
mundo, você o reconhecerá. E aqueles que são do Estado de Nova
Jersey freqüentemente se entregam. N6s nos identificamos pelo nosso
sotaque. Então, não é difícil entender por que os espectadores identi-
ficaram Pedro como um galileu.
Nesse ponto, o discurso de Pedro atingiu sua forma mais baixa:
imprecação.

Ele começou a se amaldiçoare ajurar: "Não conheço °homem de quem vocb-


estão falando!"
Elogo °galo cantou pela segunda vez. Então Pedroselembrou da palavra que
Jesus ]he tinha dito: "A
T, rlIltesque
- d uas vezes cante 05",0,
~l vocemenegara 'A"
A rresveze\' .
E se pôs a chorar (Marcos 14.71,72).

Isto poderia significar que ele, de maneira blasfema, chamou para


si as maldições de Deus: "Quero que um raio caia sobre minha cabeça
se eu estiver mentindo". Ou talvez ele tenha usado a linguagem obsce-
na das ruas, para dizer: "Não me associe aos discípulos do Nazareno".
Seja como for, essa maldição ou blasfêmia deu resultado, pois seus
acusadores silenciaram.
Mas Pedro mal havia terminado de falar suas maldições quando
aconteceram duas coisas que mexeram profundamente com ele. Pri-
meiro, a trombeta anunciou o fim da terceira vigília, e em seguida
tocou novamente. O penetrante canto do galo ... duas vezes! Isso pro-
vocou um arrepio n~ espinha de Pedro.
Para a segunda coisa, temos de voltar ao Evangelho de Lucas:

66
TRÊS HORAS DA MADRUGADA

Pedro respondeu: "Homem, não sei do que você está falando!" Falava
ele ainda, quando o galo cantou. O Senhor voltou-se e olhou diretamente
para Pedro. Então Pedro se lembrou da palavra que o Senhor lhe tinha
dito: '.:4ntes que o galo cante hoje, você me negará três veze;" (Lucas 22.60,
61).

Não sabemos em que lugar Jesus estava, mas onde quer que fosse,
Ele tinha uma visão clara de Pedro fora do pátio. Pois em seguida ao
ruidoso toque do gallicinium, cortando o ar da noite, "o Senhor voltou-
se e olhou diretamente para Pedra". E então Pedro se lembrou do que
Jesus havia dito: "Asseguro-lhe que hoje, esta noite, antes que duas veziS
cante o galo, três vezes você me negarâ'. Que humilhação!
Como teria sido aquele olhar? Seria um olhar de surpresa? Não.
Jesus havia dito a Pedro que ele iria traÍ-Io. Seria um olhar de ira e
rejeição? Nunca. Penso que deve ter sido um olhar de tristeza e enor-
me desapontamento, como que dizendo: "O que você fez, Pedro? Você
se colocou ao lado de meus inimigos e traidores. Pedro, você fez exa-
tamente como eu disse que faria. Oh, meu velho amigo, olhe o que
você fez".
Não foi um olhar de ira, indiferença ou mesmo de surpresa, mas
um olhar cheio de emoções, de dolorosa tristeza e amor ferido - um
amor que não tinha acabado, apesar das repetidas negações de Pedro,
um amor que não o deixaria ir. Pedro viu nos olhos de Jesus uma
amorosa e imerecida graça, e isto comoveu seu coração.

E [Pedro] se p8s a chorar (Marcos 14.72).

Ninguém tem o direito de julgar o que Pedro fez. Ninguém. Por


quê? Porque, em nossa natureza pecaminosa, todos nós temos negado
a Cristo.
Talvez, em nosso trabalho, estejamos assumindo uma postura de
meros espectadores;. ou estejamos comprometidos com certa posição
social, negando o mesmo Senhor que afirmamos amar e adorar no

67
AS TREVAS EO AMANHECER

culto do último domingo. Ou então temos ficado em silêncio em um


momento oportuno para compartilhar nossa fé em Jesus Cristo, com
medo de sermos rotulados como" fanáticos religiosos". O silêncio tam-
bém pode ser uma forma 1e negação.

A confissão de Pedro
Como já havia mencionado, vários estudiosos confirmam as evidên-
cias de que Marcos obteve suas informações através de Pedro - espe-
cialmente os detalhes relacionados a este acontecimento tão pessoal.
É por isso que Marcos conhece tão bem a negação de Pedro. Pedro
talvez tenha dito: "Marcos, deixe-me contar para você o que realmente
aconteceu", e, em seguida, confessou-lhe abertamente tudo que ha-
via acontecido. Pedro não encobriu suas próprias falhas - sua nega-
ção do Mestre.
Pedro não hesitou. Ele abriu sua vida como um livro e disse: "Isto é
verdade, Marcos ... estas coisas realmente aconteceram, mas onde o peca-
do abundou, superabundou a graça!" Ele poderia até ter acrescentado:
"Eu venho a você debaixo
•• do sangue de Cristo, derramado na cruz em
meu favor, e que me concedeu completo perdão, constante e infinito. Eu
pequei, mas confessei diante de Deus minha negação covarde e agora,
confesso diante de você, porque você precisa saber de tudo que aconte-
ceu". Certamente Pedro não havia esquecido do aviso de Jesus de que
Satanás queria peneirá-Io como trigo... mas a graça veio em seu aUXl1io.
E assim, chegamos às questões que se aplicam a cada um de nós:
De que modo tenho negado Jesus em minha vida?
- Como tenho traído meu Senhor?
Estou me aquecendo em algum fogo comprometedor?
Estou observando de longe, escondido nas sombras do silêncio?
A prova do nosso testemunho não diz respeito ao modo como agi-
mos diante dos amigos da cruz, mas sim de nossa conduta e atitudes
diante dos inimigos da cruz.

68
T RÉS HORAS DA MADRUGADA

Sobte a Cl"UZde Jesus


Meus olhos às vezes podem ver
O ptÓpl"Ío vulto daquele
Que lá, por mim veio a sofrer;
E do meu coração ferido, com lágrimas
Duas maravilhas eu confesso,
A maravilha do amor remidor

E minha própria inutilidade. 3

Estivesse Pedro ainda vivo, ele poderia cantar esse grande hino com
vetdadeira convicção e significado! Mas, como ele não está, podemos
nos voltar para a carta que ele escreveu e ter um vislumbre de sua
perspectiva, ao inspirar esperança e encorajamento para aqueles tem-
pos difíceis de duras provações. Ele entendeu. Ele havia estado lá...
Ele havia passado por isso.
Agora que você ouviu a confissão dele, leia estas palavras com mui-
to sentimento:

Nisso vares exultam, ainda que agora, por um pouro de tempo, devam ser
entristecidos por todo tipo deprovação.
kim arontece p~ que fique comprovado que ale quevocês t~m, muito mais
valiosa do que o ouro que perece, mesmo que refinado pelo fogo, égenuína e
resultará em louvor, glória el101JJ:a,
quando Jesus Cristo for revelado.
Mesmo não o tendo visto, vocês o amam; e apesardenão o verem agora, crêem
nele e exultam rom alegria indizível e gloriosa (1 Pedro 1.6-8).

69
5 Os Seis
____ Ju_lgamentos de Jesus

Homem de Dores! Que nome

Para ~ Filho de Deus, que veio

Resgatar miseráveis pecadores:

Aleluia! Que salvadorP

- PHIUP P. Buss
5 Os Seis
___ ~Ju~lgamentosde Jesus

A maioria
tecedeu dos cristãos nunca
a crucificação estudou
de Jesus. seriamente
Temos o período
a tendência que an-
de passar do
Getsêmani ao Gólgota, omitindo os eventos ocorridos nesse intervalo
de tempo. Fazendo este salto, perdemos muito da história e da teolo-
gia da época, sem falar nas características próprias do período em que
Jesus viveu entre nós; como resultado, perdemos também detalhes
importantes que levaram ao veredicto final sobre Jesus.
Grosso modo, os j!I1gamentos que resultaram na crucificação de
Jesus de Nazaré oferecem um clássico exemplo de uma injusta e ilegal
pressa em julgar. Esses julgamentos corruptos e fraudulentos repre-
sentam o período mais obscuro da história da jurisprudência. O acu-
sado - Jesus - era a única pessoa perfeita e completament~ inocente
que já existiu, mas mesmo assim foi declarado culpado; culpado de
crimes que nunca cometeu. Tragicamente, seus alegados crimes resul-
taram na sua condenação à mais dolorosa forma de pena capital jamais
inventada. Segundo a lei romana do primeiro século, um crime capital
deveria ser punido com a morte pela crucificação.
Mas há um lado luminoso em toda esta escuridão. Olhando para a
morte de Jesus sob uma perspectiva teológica, vemos que ela represen-
ta o cumprimento de sua missão terrena. O propósito principal para
Ele deixar o céu e assumir nossa humanidade era pagar o preço pelo
pecado e redimir-nos da sua penalidade - a morte. Em outras pala-
AS TREVAS EO AMANHECER

vras, Jesus veio para morrer. Morrendo em nosso lugar, como nosso
substituto sacrificial, o Cordeiro de Deus foi capaz de tirar o pecado
do mundo Ooão 1.29). Humanamente, o que parecia naquele mo-
mento uma tragédia cruel, deve ser visto espiritualmente, como um
triunfo.
Desta forma, não seria exagero dizer que os julgamentos a que Jesus
foi submetido, seu sofrimento, morte e subseqüente ressurreição são,
na verdade, o alicerce do cristianismo, formando o fundamento da fé.
Pelo fato de ser isto uma verdade é que me surpreendo ao perceber
quão poucos seguidores de Jesus têm estudado de maneira cuidadosa,
ponderada e profunda os eventos que cercaram a morte de nosso Salva-
dor, particularmente os julgamentos a que foi submetido. Sim, julga-
mentos ... Pois não foi só um, mas seis julgamentos.

Uma questão de tempo


Antes de observarmos cuidadosamente estes eventos, precisamos rever
a cronologia, tanto em termos de tempo como pelo desenrolar dos
acontecimentos na forma como estão registrados nos Evangelhos.
No mundo romano·(ou mundo gentio), o tempo era contado da
meia-noite de um dia até a meia-noite do dia seguinte (como fazemos
atualmente). Um segundo depois da meia-noite começava um novo
dia, que findava com a batida da meia-noite. O período entre essas
horas (de meia-noite à meia-noite) correspondia a um dia. Segundo o
calendário judaico, entretanto, o novo dia começava um segundo após
as seis horas da tarde, e terminava com a batida das seis horas da pró-
xima tarde. O período entre seis da tarde e seis da próxima tarde
correspondia a um dia.
No capítulo anterior, aprendemos que as horas da p.oite eram me-
didas por "vigílias". Entre seis da tarde e seis da manhã, o tempo era
dividido em quatro vigílias de três horas cada. A primeira vigília ia das
seis às nove, a segunda vigília, das nove à meia-noite, a terceira, da
meia-noite às três da' manhã e a quarta, das três da manhã às seis da
manhã.

74
OS SEIS JULGAMENTOS DE JESUS

Das seis da manhã até às seis da tarde, o dia era dividido em "ho-
ras". Por exemplo, no registro de Mateus sobre a crucificação, ele se
refere a dois tempos diferentes do dia: "E houve trevas sobre toda a terra,
da hora sexta [do meio-dia] até a hora nona [às três horas da tarde]"
(Mateus 27.45 - Edição Revista e Atualizada).
Portanto, se você marcar o tempo de acordo com o dia judaico
(começando às 6 horas da manhã), então a hora sexta seria ao meio-
dia. Mateus relata que ao meio-dia, a escuridão desceu sobre a terra,
lançando sua sombra sinistra sobre todos até à hora nona, ou três da
tarde, o que significa três horas de completa escuridão no meio do dia.

Principais eventos
Agora que entendemos esses dois sistemas de medida de tempo (ju-
daico e gentio), vamos dar uma rápida olhada nos eventos que envol-
veram a morte de Cristo.
Jesus e seus discípulos deixaram o salão superior à noite, depois
de tomarem sua última ceia juntos, e foram para o Jardim do
Getsêmani, onde Jesus.. orou e os discípulos dormiram. Não pode-
mos dizer exatamente que horas eram, mas, provavelmente, passava
da meia-noite quando Jesus começou a orar, passando a terceira vigí-
lia da noite (da meia-noite às três). Quanto Jesus orou, não sabemos;
mas foi tempo suficiente para Ele retomar três vezes e encontrar seus
discípulos dormindo.
Judas e a multidão devem ter chegado àquele local depois da uma
hora da madrugada. Então, teve início a série de julgamentos, sendo
que o primeiro deles aconteceu na residência de Anás, o ex-sumo sa-
cerdote, por volta das 2 horas da manhã. Um segundo julgamento
extra-oficial foi presidido na casa de seu genro, Caifás, às 3 horas da
manhã. Depois veio o terceiro julgamento, uma audiência formal pe-
rante o Sinédrio, composto pelos setenta homens que formavam a Su-
prema Corte dos ju'deus. A narrativa do evangelho declara que este
julgamento aconteceu "ao amanhecer" (Lucas 22.66). Então, pode-

75
AS TREVAS EO AMANHECER

mos supor que este terceiro julgamento tenha ocorrido cerca de 6 ho-
ras da manhã. Foi durante seu quarto julgamento, provavelmente en-
tre 6h30 e 7 horas da manhã, "quando já estava amanhecendo", que
Jesus foi interrogado por Pilatos, o principal oficial romano. Pouco
depois, foi também interrogado numa audiência perante Herodes
Antipas, o tetrarca ou governador da GaJiléia. Este foi seu quinto jul-
gamento. Herodes, então, enviou Jesus novamente a Pilatos para que
fosse julgado pela segunda e última vez por ele; esse foi seu julgamen-
to número seis. Por volta de 8 horas da manhã nosso Salvador já havia
sido submetido a seis julgamentos. Foram apressados esses julgamen-
tos? Você decide.
Por volta das 9 horas, "a hora terceirà', Jesus passou pela Via Dolo-
rosa (ou Caminho de Dores), indo do lugar onde foi torturado até o
Gólgota, no lugar publicamente conhecido como Caveira. Lá, Ele foi
lJregado na cruz. Ao meio-dia, a escuridão cobriu a terra, permanecen-
do assim enquanto Ele estava pendurado na cruz, morrendo pelos pe-
cados da humanidade. Finalmente, às 3 horas da tarde, ou "à hora
nona", o Salvador do mundo expirou, "consumando" nossa salvação.
Para uma visão geral dos julgamentos, consulte o gráfico no Apêndice.

Manobras completamente ilegais


Iremos agora analisar mais detalhadamente essas manobras ilegais.
Os três primeiros julgamentos de Jesus foram de caráter religioso.
Ele foi acusado de blasfêmia, que era uma ofensa admissível apenas em
uma corte judaica. Assim, quando Jesus foi levado perante Anás, Caifás
e o Sinédrio (julgamentos um, dois e três), foi acusado de blasfêmia.
Mas a acusação de blasfêmia não significava nada em uma corte
romana. Os romanos tinham um panteão de deuses, e para um povo
politeísta, blasfêmia não tinha o menor significado. Portanto, quan-
do Jesus foi colocado diante de Pilatos e de Herodes para os três jul-
gamentos civis, a acusação teve de ser mudada (o que por si só já se-

76
OS SEIS JULGAMENTOS DE JESUS

ria um ato ilegal). Agora Jesus era acusado de traição e rotulado como
subversivo por seus acusadores. Se eles conseguissem provar que Je-
sus era culpado de incitar um golpe contra César, então Ele seria con-
denado e morto.
Como já mencionei no início deste capítulo, nunca houve um jul-
gamento mais forjado que o de Jesus Cristo. Foram tr~s julgamentos
religiosos e tr~s julgamentos civis... e todos foram ilegais. Deixe-me
explicar melhor.
Um julgamento jamais devia acontecer à noite como ocorreu com
os dois primeiros. O acusado tinha o direito de ter um advogado ao
seu lado, apesar disso, a Jesus nunca foi permitido ter um advogado de
defesa. O acusado não poderia ser declarado culpado se as testemu-
nhas não gozassem de boa reputação, mesmo assim, os acusadores de
Cristo eram reconhecidamente testemunhas falsas.
Num verdadeiro arremedo de justiça, Jesus foi declarado culpado,
mas nunca ficou provada a sua culpa. Como voc~deve se lembrar, Pilatos,
o mesmo homem que finalmente disse: "Levem-no e façam com Ele o
que voc~s quiserem", havia dito anteriormente: "Não acho nenhuma
culpa nele". De todos ",aspessoas diante de quem Jesus esteve, o único
que concedeu a Ele um mínimo de justiça foi Pilatos, que afirmou até
o fim: "Não encontro motivo para acusar esse homem".
Os judeus seguiam a Lei Mosaica, interpretada por eles no Talmude,
uma espécie de código legal daquela época, enquanto os romanos se
guiavam pelo código de direito romano. Estes documentos estabeleci-
am os limites legais, não permitindo nenhuma área "dúbià'. Por exem-
plo, de acordo com a lei, uma corte judaica não poderia ouvir teste-
munho relacionado a um crime capital durante a noite. O procedi-
mento estabelecido pelo código ordenava: "Os membros da corte não
podem ouvir o testemunho contra um acusado de modo cuidadoso e
perspicaz durante as horas da noite".
Os homens que julgaram Jesus sabiam disso? Claro que sim. Estes
homens formavam' o Sinédrio, eram mestres da Lei. Mesmo assim,
eles, deliberadamente, desobedeceram à Lei.

77
AS TREVAS EO AMANHECER

Outro detalhe legal diz respeito ao fator tempo. Depois de ouvi-


rem o testemunho em um crime capital, os membros da corte judaica
não podiam dar o veredicto imediatamente. Era exigido que eles se
recolhessem às suas casas durante dois dias e duas noites antes de apre-
sentarem seu parecer. Na linguagem do código, eles deveriam "comer
comida leve, beber vinho leve e dormir bem, e retorn~r mais uma vez
e ouvir o testemunho contra o acusado". Só depois, então, eles pode-
riam votar.
Há ainda mais um pequeno detalhe - e outro ato ilegal. O código
exigia que os membros do Sinédrio votassem um de cada vez, come-
çando pelos membros mais novos, para que eles não fossem influen-
ciados pelos mais velhos. Quando Jesus compareceu diante do Sinédrio
para ser julgado, tudo aconteceu rapidamente, o que nos faz acreditar
que todos votaram ao mesmo tempo, e de modo emocional.
No gráfico "Os Julgamentos de Jesus Cristo", no Apêndice I, regis-
trei a autoridade que presidia cada julgamento, as referências das Es-
crituras, as acusações, a legalidade, o tipo e o resultado de cada um dos
seis julgamentos. Essas informações poderão ajudá-Io a fazer, posteri-
ormente, um estudo maiS profundo desses eventos.
Para compreender por que Jesus teve que enfrentar duas fases, uma
religiosa e outra civil, de três julgamentos cada, é preciso olhar um
pouco mais a fundo tanto a lei judaica como a romana. Aos judeus era
permitido levar um acusado do povo judeu diante de seus Hderes reli-
giosos, juízes ou tribunais próprios, mas eles não podiam tirar a vida
de uma pessoa, pois estavam debaixo da lei romana. Condenar alguém
à morte exigia a permissão de Roma, o que explica por que os orgulho-
sos membros do Sinédrio apelaram a Pilatos, ou seja, a Roma. Eles
esperavam que Pilatos achasse Jesus culpado e pronunciasse a sentença
de morte. É por essa razão que Jesus não foi apedrejado até a morte. Se
Ele tivesse sido condenado à morte pela lei judaica, teria sido apedre-
jado. Mas, sob a lei romana do primeiro século, a penalidade exigida
era a morte por crucificação.

78
OS SEIS JULGAMENTOS DE JESUS

Primeiro julgamento: Jesus perante Anás


É hora de conhecermos os atores principais deste drama repleto de
injustiça. Assim, voltemos nossos olhos para os julgamentos de Jesus,
de acordo com a descrição feita nos quatro evangelhos. Visto que dife-
rentes escritores oferecem observações e percepções únicas dos aconte-
cimentos, é bastante útil - de fato, essencial - que levemos todos eles
em consideração enquanto reconstruímos esses eventos.

AssÍm, o destacamento de soldados com o seu comandante e os guardas dos


judeus prenderam Jesus. Amamuam-l1O eo levaram primeiramente aAnáS, que
era sogro de CaiEÍs, o sumo sacerdote naquele ano. CaiJiÍsera quem tinha dito aos
judeus que serÍabom que um homem morresse pelo povo O oão 18.12-14).

o primeiro dos seis julgamentos de Jesus aconteceu na residência


de Anás, o ex-sumo sacerdote (talvez ele fosse considerado uma espécie
de sumo sacerdote emérito). Anás era também o sogro de Caifás, o
atual sumo sacerdote.
Anás tinha servido como sumo sacerdote de 6 d.C a 15 d.e. Por
que a multidão levaria Jesus a um homem que estava fora do cargo há
mais de quinze anos? _
Aparentemente, os judeus - ao menos os que faziam parte desta
"multidão de justiceiros" - viam Anás como autoridade suprema. Se
estivermos corretos em considerar Anás como sumo sacerdote emérito,
então, seria razoável que os judeus o respeitassem como uma autorida-
de mais velha; logo, o protocolo exigia que ele fosse consultado pri-
meiro. Sem dúvida havia uma jogada política nisto tudo. Lembre-se
que o genro de Anás, Caifás, era agora o sumo sacerdote.
Mas não acho que eles tiveram de tirar Anás da cama; não acho que
ele tenha sido surpreendido pela visita deles. Certamente nada é dito
sobre o fato dele ter ou não sido despertado. Mas creio que ele estava
esperando por eles... que tudo tinha sido combinado antecipadamen-
te, arranjado como parte do complô para condenar Jesus.
Este tribunal "de fachadà', presidido ilegalmente nas primeiras horas
da manhã e em u~a residência privada, não foi algo repentino. Tudo
foi cuidadosamente preparado.

79
AS TREVAS EO AMANHECER

Enquanto isso, osmnosacerdoteinteIrOgou Jesus acelGldos seus disdpulos edos


seus ensinamentos.

Respondeu-JJle Jesus: "Eu f.Jei abertamente ao mll11do, sempre ensinei nas


sinagogas eno templo, onde todos osjudeus sereÚ11em.Nada disse em segredo. Por
que me interrogas? Pergzmta aos que me ollVÍram. Certamenteeles sabem o que eu
disse:

Quando Jesus disse isso, ll111dos guardas que estavaperto bateu-lhe no rosto.
"Isto éjeito de responderao Sll1110sacerdote?"pergzmtou ele.
Respondeu Jesus: "Se eu disse algo de mal, denuncie o mal. Mas se falei a
verdade, por que me bateu?"Ooão 18.19-23)

Esta bofetada foi apenas o começo de uma noite de violência e


brutalidade gratuita. Junto com outras irregularidades, a violência é
agora permitida na sala de audiência. Jesus clamou por verdade e jus-
tiça e recebeu maus tratos e mentiras. "Se não estou dizendo a verda-
de", Ele disse, "denuncie o mal. Mas, se estou dizendo a verdade, por
que me bateu?" O primeiro julgamento termina com uma excelente e
relevante questão, embora sem resposta.
Esta é a primeira de muitas questões que nunca serão respondidas.
A ironia é que não era Jesus que estava sendo julgado, mas todos aque-
les ao seu redor.

Segundo julgamento: Jesus perante Caifás


Anás ignorou a pergunta de Jesus e "enviou-o, de mãos amarradas, a
Caifás, o sumo sacerdote". O julgamento número dois está próximo de
começar.

Os que prenderam Jesus o levaram a Caif.is, o Sll1110sacerdote, em Clljacasase


haviam relUlÍdo os mestres da lei e os lideres religiosos.
Os chefes dossacerdotes e todo o Sinédrio estavam proammdo ll111depoimento
falso contra Jesus, para que pudessem condená-Ia à morte. Mas nada encontra-
ram, embora se apresentassem muitas f.Jsas testemw1has.

80
OS SEIS JULGAME~TOS DE JESUS

Finalmente se apresentanun duas que declararam: "Este homem disse: 'Sou


capaz de destruir o santuário de Deus e reconstruÍ-lo em três dias'."
Então o sumo sacerdote levantou-se e disse aJesus: "1-0cênão vai responder à
acusação que esteslhefàzem?" Mas Jesus permaneceu em silêncio.
O sumo sacerdote lhe disse: "Exijo que você jure pelo Deus vivo: se você éo
Cristo, o Filho de Deus, diga-nos".
"IU mesmo o disseste", respondeu Jesus. "Mas eu digo a todos vós: Chegará o
dia em que vereis o Filho do homem assentado à direita do Poderoso e vindo sobre
as nuvens do céu".

Foi quando o sumo sacerdote rasgou aspróprias vestesedisse: ''Blaskmou! Por


que precisamos de mais testemunhas? \0cês- acabaram de ouvira blas$mia. O que
a ch amo?"

"Éréu de morte!': responderam eles.


Então alguns lhe ClISpÍnllnno rosto elhe deram murros. Outros lhe davam
tapas e diziam: "Profetize-nos, Cristo. Quem foi que lhe bateu?" (Mateus 26.57,
59-68)

Não é interessante que todos parecem estar bem acordados e aler-


tas tão tarde da noite? Eram 3 horas da madrugada, apesar disso todos
eles estavam totalmente acordados, reunidos e aguardando. Tudo não
passava de um cenário pré-arranjado - um complô.
Caifás era um fantoche de Roma. Embora fosse uma espécie de juiz
do Sinédrio, e sua palavra fosse tomada como lei entre os judeus, ele e
seu bando estavam à procura de pessoas que oferecessem um testemu-
nho falso contra Jesus. Estes membros dignitários do Sinédrio, supos-
tamente justos e de boa reputação, designados para exercer a justiça
dentro das cortes religiosas, não passavam de juizes corruptos em bus-
ca de pessoas mentirosas.
O problema era que eles estavam desprovidos de testemunhas con-
tra Jesus. Irritados pela situação e pelas respostas curtas e longos silên-
cios de Jesus, Caifás encurtou o julgamento, julgando-o "merecedor
de morte", e permitindo que o acusado fosse fisicamente humilhado e
maltratado.

81
AS TREVAS EO AMANHECER

Terceiro julgamento: Jesus perante o Sinédrio


Caifás, então, enviou Jesus para o Sinédrio - também chamado de
"Conselho dos Anciãos" - composto por setenta homens que representa-
vam a autoridade máxima sobre os judeus. Esse seria o terceiro julga-
mento.

Ao amanhecer, reuniu-se o Sinédrio, lanto os chefes dos sacerdotes quanto os


mestres da lei, eJesusfoi levado perante eles. "Se vocêéo Cristo, diga-nos': disseram
fies.

Jesusrespondeu: "Seeu vosdisser,não crereisemmim e, seeu vospergrmtar, não


me respondereis. Mas de agora em diante o Filho do homem estará assentado à
direita do Deus todo-podercm".
Perguntaram-lhe todos: "Então, vocêéo Filho de Deus?"
"V6s estaÍs dizendo que eu sou", respondeu ele.
Eles disseram: "Por que precisamos de mais testemunhas? Acabamos de ouvir
dos proprios lábios delé' (Lucas 22.66-71).

Alguns críticos das Escrituras costumam afirmar que Jesus nunca


declarou ser o Filho de Deus. Então gostaria de saber o que Jesus quis
dizer em Lucas 22.70. q'alvez Ele não tenha dito diretamente as pala-
vras: "Eu sou o filho de Deus", mas quando Caifás lhe perguntou:
"\0cêéo filho de Deus?", Ele respondeu prontamente: "Sim, eu sou" .N.T.,
declarando sua identidade.
Esta declaração era tudo o que o Sinédrio precisava. Sem ao me-
nos tentar examinar qualquer evidência ou investigar sua ficha
imaculada, eles acusaram Jesus de blasfêmia e se prepararam para levá-
10 a Pilatos, o governador romano. Mas, lembre-se do que mencionei
anteriormente: blasfêmia era uma acusação religiosa; não significava
nada em um tribunal romano, por isso os líderes judeus mudaram a
acusação contra Jesus. A acusação de blasfêmia não seria mencionada
novamente, porque não teria nenhum peso sobre a opinião de Pilatos,

N.l: Na versão da Bíblia e~ inglês usada pelo autor (New American Standard Bible), a
resposta de Jesus à pergunta de Caifás é "Yes, I am" (Sim, eu sou).

82
OS SEIS JULGAMENTOS DE JESUS

Agora Ele seria acusado de insurreição e traição. Jesus, eles disseram,


estava incitando o povo a rebelar-se contra o governo romano. Uma
acusação interessante tendo em vista que o próprio Jesus ensinava as
pessoas dizendo: "D~em,a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus" (Mateus 22.21). Eles, porém, convenientemente esqueceram-se
dessas palavras quando foram diante da corte civil no quarto julga-
mento de Jesus.

Quarto julgamento: Jesus perante Pilatos

De manhã bem cedo, oscheksdos sacerdotesrom oslíderes religiosos,osmestres


da leÍ e todo o Sínédrío chegaram a wna decÍsão. Amarrando Jesus, levaram-no e
o entregaram a Pílatos (Marcos 15.1).

No quarto julgamento encontramos um personagem fascinante: Pôncio


Pilatos.
Pilatos era o governador (ou procurador) romano sobre a Judéia. Ele
não era o imperador, e sim um de seus representantes regionais. O impe-
rador romano desse período era Tibério, o César do Império Romano,
que governava de seu quartel-general em Roma.
Pilatos passava a maior parte do tempo em um bonito e confortável
palácio em Cesaréia, na costa do Mediterrâneo, mas durante a Páscoa ele
ficava em Jerusalém porque as multidões eram imensas. Sua presença, seu
séquito e os soldados que o acompanhavam ajudavam a manter a lei e a
ordem nas ruas de Jerusalém.
Mas precisamos ficar atentos se desejamos entender verdadeiramente
quem era Pilatos, porque há uma total discrepância entre o modo como
ele é descrito nos livros de história e a maneira como os evangelhos o
descrevem. No relato das Escrituras, Pilatos aparenta ser inseguro, preo-
cupado, hesitante e ansioso em agradar ao povo, particularmente aos
judeus. O Pilatos encontrado nas páginas dos livros de história não se
parece nada com este.
AS TREVAS EO AMANHECER

Pilatos era um gentio anti-semita, romano até a alma; um verdadeiro


lobo sedento por sangue judeu. Portanto, ele não se importava nem um
pouco em agradar aos judeus. Se por alguma razão Roma resolvesse
tratar os judeus com brandura, ele certamente não aceitaria esse tipo
de tratamento. Pilatos não se reportava ao Senado Romano, mas ao
próprio Tibério. Pelo sistema político daqueles dias, o governador
respondia diretamente ao imperador e a mais ninguém. Desta forma,
para que Pilatos fosse destituído do cargo, seria necessária uma or-
dem direta do imperador.
Além disso, Pilatos não era nenhum principiante. Para um homem
ser governador, ele tinha de percorrer uma longa trajetória. Precisava
ser reconhecido como um bravo soldado romano e provar ser um líder.
Tinha também de ser um legislador e um administrador rigoroso. Por
fim, devia ser uma pessoa firme, decidida.
Pilatos também não era tolo ou ingênuo. Pelos registros históricos,
o governador romano mais jovem tinha vinte e sete anos de idade
quando assumiu o cargo. Se Pilatos tivesse essa mesma idade quando
se tornou governador, então a esta altura ele teria a idade de Jesus, ou
seja, pouco mais de trin:a anos. Entretanto, é muito mais provável que
ele tivesse entre quarenta e cinqüenta anos de idade. Seria, então, um
oficial romano já veterano, rigoroso e cruel.
Essa imagem combina muito mais com o Pilatos descrito em
uma carta de Agripa para Calígula, registrada nos escritos de Filo.
Calígula foi o imperador que sucedeu a Tibério, a quem Agripa
fez essa arrasadora declaração: "Pilatos é inflexível e imprudente-
mente duro. Ele é um homem notoriamente reconhecido por sua
brutalidade cruel, sua atitude preconceituosa e seu temperamento
violen to e assassino".
Por isso, Pila tos estava "em observação" ou seja, sob investigação de
Roma. O imperador havia ordenado vigilância sobre aquele homem,
devido às suas suspeitas depois de ler o relatório de Agripa sobre o
governador da Judéia: Esta investigação ocorreu quando Jesus estava
sendo julgado, e explica por que o poderoso, cruel e perverso Pilatos

84
OS SEIS JULGAMENTOS DE JESUS

aparece tão vacilante. Isto explica também por que ele não expulsou os
judeus do palácio quando eles vieram pedir a morte de Jesus. Franca-
mente, o homem estava assustado. Este romano rude e cheio de ódio
pelos judeus não dava a mínima importância para a opinião pública,
exceto quando essa opinião pudesse prejudicá-Io.
Os acontecimentos posteriores parecem confirmar tudo isso. Pilatos
acabou sendo banido por Calígula para a Gália, uma distante região a
noroeste da Itália, além dos Alpes. Lá, ele sofreu uma espécie de colap-
so emocional e mental, e por fim cometeu suicídio.
Este era o homem que decidiria o destino do Filho de Deus.

"Você é o rei dos judeus?", perguntou Pila tos.


"Tu o diZés", respondeu Jesus.
Os chefes dos sacerdotes o acusavam de muitas coisas. Então Pila tos lhe

perguntou novamente: "Você não vai responder? Veja de quantas coisas o


estão acusando".

Mas Jesus não respondeu nada, e Pila tos ficou impressionado (Mar-
cos 15.2-5).

"Rei"; essa foi a palãvra que deixou Pilatos preocupado. A acusação


de blasfêmia nada significava para ele. Mas para um leal cidadão ro-
mano, César era o único rei - "Não temos nenhum rei, senão César" -
portanto, qualquer um que alegasse ser rei seria motivo de preocupa-
ção para Pilatos, e mais ainda para Roma. Por essa razão, os líderes
judeus acusaram Jesus de se declarar o "Rei dos Judeus".

"Vares querem que eu lhes solteo reidos judeus?': perguntou Pilatos, sabendo
que rorapor inveja que os chefes dos sacerdotesUJehaviam entregado Jesus Mas os
chefes dos sacerdotes incitaram a multidão a pedir que Pilatos, ao contrário,
soltasse Barrabás.

"Então, que fàrei com aquele a quem vares chamam rei dos judeus?", pergun-
tou-lhes Pilatas.

"Crucifica-o!", gritaram eles.

85
AS TREVAS EO AMANHECER

"Por quê? Que crime ele cometeu?" perguntou Pilatos (Marcos 15.9-14).

Então, toda a assembléia levantou-se e o levou a Pila tos. E começaram


a acusá-Io, dizendo: "Encontramos este homem subvertendo a nossa nação.
Ele prol'be o pagamen to de imposto a César esse declara ele próprio o Cristo,
um rei".

Pilatos perguntouaJesus: "V~éoreidos judeus?"


"TU o dize;", respondeu Jesus.
Então Pila tos disse aos chefes dos sacerdotes e à multidão: "Não encontro

motivo para acusar este homem" (Lucas 23.1-4).

Obviamente Pilatos não levou a sério esta acusação. Por ser uma
pessoa astuta, ele logo percebeu que aquela era uma acusação inventa-
da pelo sumo sacerdote. No máximo, Pilatos via Jesus de Nazaré como
um sujeito estranho que se apresentava como sendo o Messias.
Embora não conheça a origem de seus comentários, recordo-me
claramente que um de meus professores no seminário afirmou que
muitas pessoas reivindicaram ser o Messias. De acordo com suas pes-
quisas, vários homens que viveram nos dias de Jesus falsamente se de-
clararam o Messias de Israel. Se isso for verdade, Pilatos estaria ainda
mais cético. Mas falsos profetas e falsos Messias não eram assuntos
para serem discutidos pelo governo ou pelas cortes de Roma.
"A responsabilidade é de vocês", disse Pila tos aos judeus com um
aceno de mão. "Quanto a mim, não encontro base para acusá-Ia".
Mas os líderes judeus não desistiram:

Mas eles insistiam: "Ele está subvertendo o povo em toda aJ udéia com seus
ensinamentos. Começou na Galiléia e chegou até aqui" (Lucas 23.5).

Vejamos agora como João registrou este quarto julgamento. Procu-


re ler estas palavras devagar e cuidadosamente.

Em seguida, os judeus levaram Jesus da casa de Caifás para o Pretório. Já


estava amanhecendo e, para evitar contaminação cerimonial, os judeus

86
OS SEIS JULGAMENTOS DE JESUS

não entraram no Pret6rio; pois queriam participar da Páscoa.


Então Pila tos saiu para falar com eles eperguntou: "Que acusação vcx:ê5
t~m contra este homem?"

Responderam eles:':5eelenão fossecr:iminoso, não o teríamos entregado a ti".


Pilatos disse: "Levem-no ejulguem-no conforme a lei de vcx:ê5".
"Mas n6s não temos o direito de executar I1Í11gUém':protestaram osjudeus.
Isso aconteceu para que se cumprissem aspalavras que Jesus tinha dito, indicando
a espécie de morte que ele esmV<lpara sofTer.
Pilatos então voltou para o Pret6rio, chamou Jesusell]e perguntou: "Vo&éo
rei dos judeus?" Ooão 18.28-33)

Observe o legalismo dos líderes judeus para se manterem cerimonial-


mente puros: "Os judeus não entraram no Pretó.rioj pois, queriam parti-
cipar da Páscoa". Embora fossem culpados de falso testemunho, cruel-
dade, corrupção e procedimentos ilegais, esses líderes hipócritas foram
cuidadosos e escrupulosos em observar os limites do Pretório!
Este é o mesmo julgamento registrado em Lucas 23, mas João nos
oferece mais detalhes, particularmente ao relatar o diálogo entre Jesus
e Pilatos.
"Venha cá", disse Pilatos, "vamos nos afastar da multidão. Vamos
conversar, apenas você e eú." Então, os dois entraram em uma sala
particular, onde Pilatos perguntou a Jesus: "Você é o Rei dos Judeus?"
"Você está dizendo isto por iniciativa próprià', Jesus respondeu,
"ou foram outros que contaram a você sobre mim?"
"Você acha que sou judeu?" disse Pilatos indignadamente. "Seu
próprio povo o trouxe a mim. O que você fez para ofendê-Ios?"
Jesus respondeu: "Meu reino não é deste mundo. Se eu estivesse
verdadeiramente liderando uma insurreição, você não acha que meus
seguidores estariam lutando nas ruas?"
Então Pilatos fez uma das mais notáveis perguntas de todo este
interrogatório:

"Então você é rei!': disse Pilatos.


Jesus respondeu: "Tu dizes que sou rei. De fato, por esta razão nasci e

87
AS TREVAS EO AMANHECER

para isto vim ao mundo: para testemunhar da verdade. Todos os que são da
verdade me ouvem".

"Que éa verdade?"perguntou Pila tos Ooão 18.37,38).

Pilatos era um homem que ocupava uma importante posição de autori-


dade como governador da Judéia, e ainda assim perguntou a este estranho
que tinha acabado de conhecer: "O que é a verdade?" Este tipo de pergunta
nos faz pensar que parâmetros Pilatos utilizava pata tomar suas decisões ou
formar seus julgamentos. Além disso, dá para imaginar o quanto ele estava
confuso? Ele estava completamente desorientado.
Mesmo sendo menos críticos em relação à sua pergunta, é difícil
entender por que ele perguntou isso. Estava sendo irônico ou menos-
prezando? Impaciente ou cínico? Desesperado ou sincero? Difícil di-
zer. Só nos resta imaginar. Mas, apesar de não podermos saber essa
resposta, sabemos que Pilatos considerou Jesus inocente de qualquer
crime. Talvez ele o tenha considerado um filósofo inofensivo ou um
religioso sonhador, mas certamente não o qualificou como um subver-
sivo perigoso. Ao menos, Pilatos teve a coragem de enfrentar o crescen-
te número de acusadores de Jesus e dizer a eles: "Não aclw nele motivo
algum de acusação" Ooão 18.38).
Pilatos voltou-se para os líderes judeus e para a multidão e disse:
"Não vejo nada de errado neste homem. Eu o examinei. Nós conversa-
mos. Ele é um homem inocente".
Mas Pilatos encontrava-se numa situação difícil. Qualquer movi-
mento seu que estimulasse a ira dos judeus o colocaria sob vigilância
ainda mais estreita de Roma. Diversos tumultos já surgiam nas ruas
de Jerusalém e ele não queria ter que enfrentar uma insurreição. Por-
tanto, ele passou a agir como o político comum, que quer evitar encrenca
a qualquer preço. Se ele soltasse a Jesus, os líderes judeus poderiam
incitar uma revolta entre o povo.
Mas a consciência teimosa de Pilatos dizia: "Este homem não é
culpado". Ainda havia bastante anti-semitismo nele para não querer
dar a esses pomposos j\ldeus do Templo o que eles queriam. Então, ele
procurou outra saída e, inadvertidamente, encontrou uma. Ele deve ter

88
OS SEIS JULGAMENTOS DE JESUS

sorrido por dentro, aliviado. Observe o que aconteceu:

Mas eles insistiam: "Ele está subvertendo o povo em toda a Judéia com
os seus ensinamentos. Começou na Galiléia e chegou até aqui".
Ouvindo isso, Pila tos perguntou se Jesus era galileu. Quando ficou sa-
bendo que ele era da jurisdição de Herodes, enviou-o a Herodes, que tam-
bém estava em Jerusalém naqueles dias (Lucas 23.5-7).

Quando Pilatos ouviu "Galiléia"! deve ter pensado: "Aha! Eis a


minha tábua de salvação". Visto que Jesus era Galileu, isto o colocaria
sob a jurisdição de Herodes, e Herodes estava na cidade!
Numa jogada política, Pilatos transferiu o problema para outras
mãos e deixou que outra pessoa se encarregasse do trabalho duro.

Quinto julgamento: Jesus perante Herodes


Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia de 4 a.c. a 39 d.C., era membro
da famosa família dos Herodes. Eles eram um ramo violento da famí-
lia, terrivelmente cruéis, capazes de assassinar seus próprios cônjuges e
irmãos. Freqüentemente, refiro-me a eles como "os poderosos chefões
do mundo antigo" - enganadores e perigosos, poderosos e dominadores.
Herodes e Jesus já eram conhecidos. Este era o mesmo Herodes
que decapitou João, o Batista; o mesmo Herodes que Jesus chamou de
"aquela raposa" (Lucas 13.32).

Quando Herodes viuJeslIS, ficou muito alegre, porque havia muito tempo
queria vê-Io. Pelo que ouvira fàJar dele, esperava vê-Io realizar algum milagre.
Interrogou-o com muitas perguntas, mas JeslISnão lhe deu resposta. Os chefes dos
sacerdotes e os mestres da lei estavam ali, acusando-o com veemência. Então
Herodes e os seus soldados ridicularizaram-no e zombaram dele. Vestindo-o com

um manto esplêndido, mandaram-no de volta a Pilatos(Lucas 23.8-11).

89 -.
AS TREVAS EO AMANHECER

A manobra política não funcionou como Pilatos esperava. Herodes


Antipas, ansiando por um espetáculo, começou a disparar perguntas. Com
sua inocência estabelecida pelo interrogatório anterior, Jesus adotou uma
tática de defesa diferente. Ele permaneceu absolutamente em silêncio.
Embora Herodes esperasse por um espetáculo, ele percebeu que Jesus não
era um animador de auditório e não estava disposto a satisfazer sua curi-
osidade. Que desapontamento para Herodes! (E mais ainda para Pilatos)
Poucos autores descrevem tão bem os acontecimentos, de uma forma
simples e concisa, como Alexander Whyte:

Herodes Antipas parecia mais um mestre-de-cerimônias de circo que um


monarca sério; em v~ de acolher o caso que havia sido encaminhado para sua
jurisdição, tudo o que Herodes queria era conseguir algum divertimento com
o acusado. "Ele é Rei dos Judeus, é? Ele é um candidato ao meu trono, é?
Então, coloquem um lindo manto sobre ele e enviem-no de volta a Pilatos! O
governador apreciará minha brincadeira e isso vai, de alguma forma, ajudar a
restabelecer nossa amizade!"2

Herodes, por alguma razão, não estava com um tipo de humor


assassino, mas sim brincalhão. Ele esperava ver algum tipo de perfor-
mance - um pequeno milagre, talvez uma mágica. Mas, nada disso
aconteceu. Jesus não quis cooperar. Embora interrogado por longo
tempo, o Nazareno permaneceu absolutamente em silêncio diante de
Herodes.
Assim, após montar sua própria encenaçãozinha, vestindo Jesus com
um manto real e zombando dele, Herodes ignorou tudo aquilo e o
enviou de volta a Pilatos.

Sexto julgamento: Jesus


novamente perante Pilatos
Pilatos tomava calmamente seu café da manhã quando de repente ...
Oh, não. Ele achava que, sutilmente, havia se livrado do problema ... se

90
OS SEIS JULGAMENTOS DE JESUS

safado dessa... No entanto, estava errado. E agora, o que ele iria fazer?
Bem, suas idéias ainda não haviam se esgotado, então, ele tentou uma
outra estratégia.

Porocasião da festa era rostumedo governador soltar um prisioneiro escolhido


pela multidão. Eles tinham, naquela ocasião, um prisioneiro muito conhecido,
chamado Barrabás. Pila tos perguntou à multidão que ali se havia reunido:
"Qual destes vores querem que lhes solte: Barrabás ou Jesus, chamado Cristo?"
Porque sabia que o haviam entregado por inveja.
&tando Pilatos sentado no tribunal, sua mulher lhe enviou esta mensagem:
"Náo se envolva com este inocente, porquehoje, em sonho, som muito porcausa
delt!:

Masoschefesdossacerdoteseoslideresreligiososro~venceramamultidãoaque
pedisse Barrabás e mandasse executarJesus.
Então perguntou ogovemador: "Qpal dosdoisv~querem que eu lhes solte?"
Responderam eles: "Barrabás!"
Pergrmtou Pilatos: "Que farei então com Jesus, chamado Cristo?"
Todosresponderam: "Cruci1ica-o!"
"Porqu§? Que crime elecometeu?': pergrmtou Pilatos.
Mas eles gritavam ainda mais: "Crucifica-o!"
Quando Pilatos percebeu que náo estava obtendo nenhum resultado, mas, ao
contrário, estava se iniciando um tumulto, mandou trazer água, lavou as mãos
diante damultidão e disse: "&tou inocente do sangue destehomem; aresponsabi-
lidade é de Voo3-".••
Todoo povo respondeu: "Que osangue dele caiasobrenósesobrenossosGlhos!"
Então Pilatos soltou-lhes Barrabás, mandou açoitar Jesus e o entregou para
sercruciEcado (Mateus 27.15-26).

Não se esqueça que até este momento nada havia sido provado
contra Jesus. Ele não foi considerado culpado de nada. Cada julga-
mento foi recheado de atitudes evidentemente ilegais. Nenhuma tes-
temunha confiável falou contra Ele. Não havia sequer um fragmento
de evidência comprometedora. Apesar disso, estranham ente, Ele ain-
da estava sendo julgado. _"u.

91
AS TREVAS EO AMANHECER

Neste ponto, Mateus nos informa sobre a tradição da época.

Embora nenhum registro tenha sido encontrado, deve ter realmen-


te existido o costume de libertar um prisioneiro em cada Páscoa como
um meio de acalmar a pop'ulação judaica. Pilatos aproveitou a oportu-
nidade para apelar para as massas, sugerindo que libertaria Jesus se eles
assim desejassem. Ele presumiu que Jesus gozasse de grande popularida-
de entre as multidões em geral, que nem sempre eram favoráveis à hie-
rarquia romana ... Pilatos calculou mal a opinião da multidão neste as-
sunto.3

Mais uma vez Pilatos pensou ter. encontrado a solução para seu
dilema - uma outra saída. Ele permitiria a eles escolher entre o galileu
inocente e o mais notório criminoso daquela época, Barrabás. Barrabás
era não apenas um rebelde como também um assassino, condenado à
morte por crucificação.
Estou convencido de que a cruz do meio, naquele dia, estava desti-
nada a Barrabás, sobre quem discutiremos mais adiante, no próximo
capítulo. Pilatos "sabia que o haviam entregado por inveja" (v.18). Certa-
mente eles não levariam esta farsa adiante, e acabariam preferindo libertar
Jesus a um homem que havia cometido crimes tão hediondos, um ho-
mem tão perigoso. Raciocínio brilhante, mas novamente Pilatos estava
errado. "Os chefes dos sacerdotes e os lideres religiosos convenceram a multi-
dão a que pedisse Barrabás e mandasse executar Jesus" (v.20).
Então Mateus introduz outro personagem neste drama: a esposa
de Pilatos.

Estando Pilatos sentado no tribunal, sua mulher lhe enviou esta mensagem:
"Não se envolva com este inocente, porque hoje, em sonho, som muito por GUISa

dele" (Mateus 27.19).

Este é um dos mais intrigantes versículos do Novo Testamento.


Você não gostaria de. s~ber qual teria sido este sonho? Deve ter sido
algo sério, pois a mulher de Pilatos prontamente lhe enviou um bilhete.

92
\
OS SEIS JULGAMENTOS DE JESUS

Talvez Pilatos tenha contado a ela sobre seu encontro anterior com
Jesus, deixando-a impressionada, ou então alguma coisa no sonho
alertou-a do que estava acontecendo. Agora, além de todas as outras
preocupações, Pilatos tem este aviso sinistro para perturbá-Io ainda
maIS.
"Mas os chefes dos sacerdotes e os líderes religiosos convenceram a multidão
a que pedisse Barrabás e mandasse executar Jesus" (v.20). Observe quem fez
isto! Os religiosos. Os líderes religiosos! Por quê? Porque Barrabás não
representava uma ameaça para estes falsos religiosos. Ele não discutia com
os legalistas, não ficava pregando nas ruas. Ele apenas incitava as multi-
dões e, ocasionalmente, matava pessoas.
"Crucifica-o!", gritava a multidão.
"Por quê? Que mal Ele fez?", perguntou Pilatos. "Que crime co-
meteu?"
Você sabe por que eles não responderam? Porque não tinham res-
posta. Jesus não tinha feito nenhum mal. Não havia cometido ne-
nhum crime. Mas eles continuavam a gritar freneticamente: "Crucifi-
ca-o! Crucifica-o".
Pilatos estava se sentindo pressionado ao máximo. Ele sabia que
tinha um tumulto nas mãos e que "não estava obtendo nenhum resulta-
do". Assim, ele lavou as mãos, livrando-se do problema. Ele cedeu à
pressão; "pulou forà' da situação. Em vez de permanecer firme e fazer
o que era certo, ele cedeu.

Quando Pnatospercebeu que não esl:Jva obtendo nenhwn resull:Jdo, mas, ao


contrário, estava se iniciando wn twnulto, mandou trazerágua, lavou as mãos
diante da multidão e disse: "Estou inocente do sangue deste bomem; a responsabi-
lidade é de vores".

Todoo povo respondeu: "Que o sangue dele GlÍasobrenás-esobrenossos 61has!"


Então Pnatos soltou-ll1es Barrabás, mandou açoitar Jesus e o entregou para
ser crucificado (Mateus 27.24-26).

No final deste sexto e último julgamento, Pilatos cede à racionali-


zação, participando deste momento solene, e proferindo, simbolicamen-

93
AS TREVAS EO AMANHECER

te, as seguintes palavras: "Estou limpo de toda responsabilidade deste


arremedo de justiça".
Muitos afirmam que Pilatos, conhecido por sua crueldade como go-
vernador, sentiu dor na consciência com o julgamento de Jesus - tanto
que ele se isentou de responsabilidade diante dos judeus, a quem odiava
mais do que a qualquer outra coisa, e por que sabia que eles certamente
empurrariam Jesus para a morte. Não se vê aqui nenhuma arrogilncia ou
ousadia, o que seria esperado de Pilatos perante este cenário, diante desta
audiência. Em vez disso, ele demonstrou fraqueza de consciência e uma
total ausência de caráter.
Ao agir desta maneira, Pilatos enviou Jesus para a cruz.

Um chamado divino
Podemos afirmar com segurança que nunca houve uma série de julga-
mentos mais injusta, ilegal ou vergonhosa na história da jurisprudên-
cia que os seis julgamentos que levaram o Senhor Jesus Cristo à morte
por crucificação. No entanto, há um paradoxo nisso tudo: naqueles
atos de injustiça, a justiça de Deus foi satisfeita. Assim como os ho-
mens derramaram sua ira sobre Cristo durante seus julgamentos e em
sua morte, a ira de Deus contra o pecado foi completamente lançada
sobre Cristo na cruz. Toda a ira divina foi derramada sobre Cristo no
momento em que ele• levou nossos pecados em seu corpo naquela cruz
cruel. Como resultado, a única coisa que separa a humanidade perdi-
da de Deus é sua aviltante incredulidade.
O sofrimento e a morte de Cristo são agora parte da história; da
história de Cristo. Mas a nossa história continua, pois Ele sofreu e
morreu por você e por mim. Sua morte pagou o preço exigido pelo
pecado. Assim, poderemos ser aceitos na família de Deus se nós sim-
plesmente aceitarmos sua oferta de crer no Senhor Jesus Cristo para
sermos salvos.

94
OS SEIS JULGAMENTOS DE JESUS

Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unig~nito, para
que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus
enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que
este fosse salvo por meio dele. Quem nele cr~não é condenado, mas quem
não cr~já está condenado, por não crer no nome do Filho Unig~nito de
Deus (João 3.16-18).

Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor
quando ainda éramos pecadores (Romanos 5.8).

Poisa um só Deus e um só mediadorentreDeuseoshomens:ohomem Cristo

Jesus; o qual se entregou asi mesmo como resgatepor todos. Esse foi o testemwmo
dado em seu próprio tempo (1 Timóteo 2.5, 6).

Que notícias maravilhosas!


Toda a amplitude da história depende desta pequena janela de tem-
po no primeiro século, e através dessa janela vemos uma cruz. Toda a
história se volta para aquele momento - para a tragédia e o triunfo
daquela cruz. Primeiro a crucificação, depois a ressurreição do Filho de
Deus. Estes dois eventos históricos asseguram nosso destino eterno.
Ele sofreu voluntariamente, sem relutar nenhuma vez, sem nunca
se defender. Diante da multidão, dos líderes covardes e de todos aque-
les que zombavam dele, Ele permaneceu firme ... Para morrer por você...
e por mim. E ago{a Ele vive para você e para mim. Que gloriosas
notícias!

95
6 o Homem que
___ E_s_c_apouda Cruz

Não havia ninguém tão bom

Para pagar o preço do pecado.

Ele somente poderia destrancar o portão

Do paraíso, e nos deixar entrar. I

- Existe um Verde Vale Além,


CECIL F. ALEXANDER, 1848,
•• quarta estrofe
6 o Homem que
___ =-Es=-..;;c:;......=;..;;apou
da Cruz

Embora nunca
sempenha um apareça comopapel
importante personagem principal,
nos bastidores. Barrabás
Ele jamais de-
pode-
ria imaginar que um dia seu nome seria citado pelas Escrituras! Mas,
no sexto julgamento, que discutimos no capítulo anterior, lá está ele,
no texto sagrado das Sagradas Escrituras: Barrabás ...
Tendo sido julgado e condenado à morte, sua cela, muito provavel-
mente localizava-se na fortaleza de Antonia, na cidade de Jerusalém.
De lá, é bem provável que Barrabás pudesse ouvir a multidão gritando
pelo sangue de Jesus. Ele não conseguia decifrar cada palavra ou som,
mas podia ouvir a multidão gritando freneticamente para pressionar
Pilatos.
"Barrabás! Barrabás. Dá-nos Barrabás!", eles bradavam.
Barrabás ouviu seu nome, mas o que ele ouviu a seguir deixou-o
arrepiado até os ossos: "Crucifica-o!" Ele sabia que em breve estaria a
caminho da cruz.
Em sua mente, não havia nada pior que a morte por crucificação.
Aquele seria o fim da linha, e um fim torturante. Não queria nem
pensar nos pregos atravessando sua carne. Se tivesse sorte, morreria
logo. Todos que eram pendurados em uma cruz ansiavam por uma
morte rápida.
Mas para Barrabás, sua vida não terminou numa cruz. O carcereiro
que abriu sua cela não o conduziu ao local da execução. Em vez disso,
ele o libertou!
AS TREVAS EO AMANHECER

Você não fica curioso para saber o que aconteceu a Barrabás depois
que foi libertado? Depois de ter descoberto que um homem inocente
havia morrido em seu lugar? Você não gostaria de saber o que ele fez
no resto de sua vida?
Será que ele continuou em seus maus caminhos, conseguindo de
alguma forma escapar da punição? Será que ele foi preso mais tarde
por outro crime ou, talvez, tenha sido morto em algum tumulto? Ou
será que ele acabou se tornando um seguidor daquele que tinha morrido
em seu lugar? Será que ele estava, como diz a tradição popular, entre a
multidão aos pés da cruz, assistindo a morte de Jesus?
Se algum homem neste planeta soube literalmente o que significa
Jesus ter tomado a sua cruz e morrido em seu lugar, esse homem foi
Barrabás. E, por mais estranho que pareça, se existe uma pessoa com a
qual cada um de nós pode se identificar, essa pessoa é Barrabás.
Se pedissem a nós para descrever Barrabás, poderíamos fazê-Io em
uma frase: ele foi o homem liberto no lugar de Jesus. Mas, há muito
mais nessa história do que simplesmente isso.
Para examinar essa história, precisamos entender um pouco sobre a
cultura e a tradição nos dias de Jesus. Segundo os relatos de Mateus e
Marcos, durante a Páscoa, o governador normalmente soltava um pri-
sioneiro escolhido pelo povo. Embora ninguém saiba ao certo como se
iniciou esse costume, sabemos que ele estava claramente em vigor na
época dos julgamentos de Jesus.

Por ocasião dafes~ eru costume do governador soltar wn prisioneiro escolhido


pelamulcidão (Mateus27.15).

Por ocasião da festa, eru costume soltarwn prisioneiroqueo povo pedisse. Um


homem chamado Barrabás estavana prisão com os rebeldes que haviam cometido
assassinato durnnte wna rebelião. A multidão chegou e pediu a Pilatos que lhe
fizesse o que costumava fàzer(Marcos 15.6-8).

Aparentemente, o povo judeu costumava procurfr o governador e


pedir: "Estamos na época da Páscoa, por isso, solicitamos a você que

100
o HOMEM QUE ESCAPOU DA CRUZ

solte Aristóbulo". Então, sem levar em consideração o que ele tinha


feito, ou do que era acusado, Aristóbulo seria solto da prisão, e coloca-
do em total liberdade.
Na maioria das vezes, s~m dúvida esse costume era um estorvo para
Pilatos, o anti-semita, o cruel governador da Judéia. Mas, desta vez ele
recebeu com prazer o pedido para cumprir esse costume, suspirando
aliviado. Já analisamos o comportamento de Pilatos no capítulo ante-
rior, assim, basta dizer que ele estava enfrentando um difícil dilema.
Em primeiro lugar, ele estava amedrontado. Pilatos sabia que os
líderes judeus tinham inventado a acusação contra Jesus porque ti-
nham inveja de sua influência sobre o povo. Mas sabia também que se
não cooperasse com eles, provocaria uma rebelião. Pilatos temia que
isso acontecesse, outro relatório ruim sobre seu governo chegaria a
Roma, e ele perderia seu cargo de governador.
a segundo dilema que o perturbava era o fato dele nunca ter acre-
ditado que Jesus fosse realmente culpado. De todos os juízes perante
os quais Jesus compareceu naquelas horas finais de julgamento, Pilatos
foi o único que deu a Ele uma oportunidade de declarar-se inocente.
Pilatos procurou se inteirar dos fatos, e quando percebeu o que estava
acontecen do, nao ~ h eSItou
. em d'Izer: "EI'e e Inocente.
. I" Quan do os JU-
.
deus não aceitaram seu julgamento, Pilatos, que por alguma razão
estava temeroso de condenar aquele homem inocente, lavou suas mãos
sobre o assunto e permitiu que Jesus fosse crucificado.
O erudito inglês James Stalker escreveu um excelente livro sobre os
julgamentos e a morte de Jesus, onde faz uma análise sucinta desses
fatos. Referindo-se à escolha de Pilatos por Barrabás, ele escreveu: "O
que ele pensava ser uma saída para o dilema que enfrentava era, na
verdade, uma cilada, na qual ele caiu de cabeça". 2
Mas a questão permanece: por que, de todos os prisioneiros que
estavam confinados nas celas romanas, Pilatos escolheu Barrabás? Por
que ele não escolheu um dos ladrões marcados para serem crucificados
naquele dia - aqueles que, mais tarde, seriam crucificados ao lado de
Jesus? Por que Pilatos ofereceu libertar um homem com uma ficha
criminal tão suja como a de Barrabás?

101
AS TREVAS EO AMANHECER

Seu nome

Eles tinham, naquela ocasião, um prisioneiro muito conhecido, chamado


Barrabás (Mateus 27.16):

A expressão traduzi da como "muito conhecido" vem de episemown,


que significa "marcar". Tomando emprestado o significado do termo
grego, Barrabás era um homem marcado. Como diríamos hoje em dia,
ele era o "inimigo público número um". Ele não era simplesmente um
encrenqueiro, nem mais um rebelde que agitava o povo, causando per-
turbação em toda a Judéia. Ele não era um ladrãozinho barato, que
ficava batendo carteiras nas ruas lotadas de Jerusalém. Barrabás era um
assassino, um matador insensível.
Seu próprio nome tem esse significado. Note que ele é chamado de
"Bar-abbas", um nome aramaico. Aramaico era a língua falada naque-
les dias, a língua falada por Jesus e por seus discípulos. Mas este não
era um nome aramaico comum.
Como você pode observar, ele pode ser facilmente dividido em duas
partes: "Bar" e "abbas". Quando Jesus dirigiu-se a Pedra em certa oca-
sião, Ele o chamou de "Simão Barjonas". Simão era o nome que fora
dado a ele, e Barjonas, seu nome de família. Nosso nome de família é
representado pelo nosso sobrenome. Meus filhos receberam cada um
deles um nome diferente, mas o sobrenome de todos eles é Swindoll,
o mesmo que o me~. Swindoll é o nome que eles receberam da família.
Nos dias bíblicos, os filhos também recebiam o nome de seus pais.
"Bar" significa "filho", então, Simão Barjonas significa - "Simão, filho
de Jonas".
Não somos informados de qual seria o primeiro nome de Barrabás.
Conhecemos apenas seu nome de família: Bar-abbas, que significa "fi-
lho de abbas". E aqui está a parte intrigante disto: "Abbas, ou "abba"
significa "pai", então, Bar-abbas significaria "filho do pai". Mas isto
não faz sentido. É obvio que ele é filho de seu pai. Mas existe mais. O
comentarista Willia'm Barelay observa que o nome "pode ser composto
de Bar-Raban, que significaria "filho do Rabi".5 Assim, talvez isto signi-
o HOMEM QUE ESCAPOU DA CRUZ

ficasse que Bar-abbas era filho de um rabino famoso, ou ao menos de


alguém bastante popular. Nesse caso, suas atividades criminais teriam
sido ainda mais notórias.
Isto é mais que uma !llera lenda ou suposição. O historiador judeu
Josefo concorda com Mateus, declarando que Barrabás era um crimi-
noso notório antes de ser capturado. Possivelmente ele não era famoso
apenas por seus crimes atrozes, mas também pelo fato de sua família
ser bem conhecida na região.

Pilatos perguntou à multidão que ali se havia reW1Ído: "Qual destes vores
querem que lhes solte: Barrabás alI Jesus, chamado Cristo?" Porque sabia que o
haviam entregado por inveja.
Masoscheksdossacerdotes eoslíderesreligiososron~nreIam amultidãoa que
pedisse Barrabás e mandasse executarJesus.
Então perguntolI o governador: "Qual dos dois vocês querem que eu lhes
solte?':

RespondeIam eles: "Barrabás!"


Pe.cguntou Pilatos: "Que farei então rom Jesus, chamado Cristo?"
TodosrespondeIam: "Crucifica-o!" (Mateus 27.17,18,20-22)

Nestes versículos, Pilatos se refere a Jesus como "Jesus, chamado


Cristo". É quase como se ele estivesse tentando distingui-Io de algum
outro Jesus. De fato, acredito que ele estava fazendo isso mesmo. De
acordo com alguns'dos mais antigos manuscritos de Mateus, especial-
mente em dois deles, o escritor do evangelho observa que o primeiro
nome de Barrabás era Yeshua Oesus), o que explica por que Pilatos
disse: "Qual dos dois vocês querem que eu lhes solte? Yeshua Barrabás
ou Yeshua Cristo?"
A questão que se propõe agora é: por que este nome não aparece na
Bíblia atual?"
O dr. William Riley Wilson, um perspicaz estudioso do Novo Tes-
tamento, observa o seguinte a respeito da omissão do primeiro nome
de Barrabás:
'.

103 \.
AS TREVAS EO AMANHECER

Parecepoucoprovávelquealgumescribacristãopudesse,acidentalmen-
te, ter incluídoo nome deJesusnesteponto exato,mas é fácilperceberpor
queoscopistascristãosteriamintencionalmentesuprimidoo nomeJesusna
designaçãodo assassinoBarrabás.3

Ao copiar estes antigos manuscritos, os escribas teriam sido cuida-


dosos em anotar o nome completo de Jesus como: "Jesus, chamado
Messias". Mas, quando chegaram ao nome do assassino Barrabás, na-
turalmente não quiseram ligar "Yeshua" ao seu nome. Este é o ponto
de vista de Wilson.
O nome Jesus ... era bastante comum na Judéia do primeiro século,
assim com José ou João hoje. É bem possível que Barrabás tivesse este
nome. Mas, desde o momento em que o nome Jesus tornou-se especi-
almente sagrado para a Igreja primitiva, teria sido natural para os pri-
meiros cristãos tentarem dissociá-Io do assassino Barrabás. Isto seria
possível omitindo-se gradualmente o primeiro nome de Barrabás dos
registros orais e escritos do julgamento. Se esta sugestão estiver corre-
ta, os poucos manuscritos que registram o nome "Jesus Barrabás" são
as únicas evidências que restaram do nome completo desse bandido.4
Esta interpretação faz com que a escolha de Pilatos por Barrabás
seja lógica. Provavelmente ele pensou o seguinte: ''Aqui está um ho-
mem com o primeiro nome idêntico ao de Jesus de Nazaré. Certa-
mente eles não vão querer soltar o assassino. Certamente eles vão pre-
ferir ficar com esse J~sus que alega ser o Messias". Infelizmente, o pIa-
no de Pilatos não deu certo. Como diz Stalker: "Sua esperança de
encontrar uma saída transformou-se em uma armadilha".

Seu cnme

Por ocasião da festa, em costume soltar wn prisioneiro que o povo pedisse. Um


homem chamado Barrabás estavana prisão com os rebeldes quehaviam cometido
assassinato durnnte wna rebelião (Marcos15.6,7).
o HOMEM QUE ESCAPOU DA CRUZ

Marcos projeta mais luz sobre esta situação. (Geralmente nos auxi-
lia bastante comparar os relatos dos evangelhos entre si. Diferentes
narradores nos ajudam a obter um quadro completo. Nós nos benefi-
ciamos da harmonia dos Evangelhos).
O registro do Evangelho de Marcos declara: "Barrabás foi preso com
os rebeldes", o que confirma que os dois homens que foram crucificados
com Jesus faziam parte do grupo de Barrabás.
Barrabás foi preso e condenado por insurreição e assassinato. Insur-
reição é o mesmo que rebelião contra as autoridades governantes.
Barrabás não era um ladrão de galinhas ou um batedor de carteiras,
escreve William Barclay em sua série de estudos, "Daily Study Bible
Series" (Estudos Bíblicos Diários). "Ele era um bandoleiro ou um re-
volucionário político." Provavelmente, sua rude audácia atraía a mul-
tidão. Lembre-se que rebeliões eram freqüentes na Palestina; aquela
era uma terra de ânimos exaltados. Havia um grupo de judeus, em
particular, chamados de Sicários (que significa "portadores de adagà'),
composto por zelotes fanáticos e violentos, que se dispunham a matar
e assassinar por qualquer motivo e qualquer meio possível. Eles carre-
gavam adagas debaixo de suas capas e as usavam sempre que tinham
oportunidade. É bastante provável que Barrabás fosse uma pessoa des-
se tipo.5
Barrabás, o criminoso que Pilatos ofereceu aos judeus em seu plano
de indulto, era um rebelde perigoso, um homem violento e assassino.
Se fôssemos descrevê-Io em termos atuais, diríamos que ele era um
"
"terroristà' .

o local
Todos os quatro escritores dos Evangelhos - Mateus, Marcos, Lucas e
João - declaram ou deixam implícito, que Barrabás estava preso ou
confinado pelas autoridades de Roma.

Eles tinham, naquela ocasião, um prisioneiro muito conhecido, chamado


Barrabás (Mateus 27.16).

105
AS TREVAS EO AMANHECER

Um homem chamado Barrabás estava na prisão com os rebeldes que haviam


cometido assassinato durante uma rebelião (Marcos 15.7).

A uma só voz eles gritaram: 'íkaba com ele! Solta-nos Barrabás!" (Lucas
23.18)

Contudo, segundo o costume de v0cê5,devo libertarum prisioneiro porocasião


da Páscoa. Querem que eu solte 'o rei dos judeus'? (João 18.39,40)

É bastante provável que Barrabás estivesse preso na fortaleza Antonia,


o "grande depósito" de prisioneiros na antiga Jerusalém. Durante a
Páscoa, a cidade de Jerusalém se tornava um lugar abarrotado e baru-
lhento. As ruas estreitas ficavam repletas de judeus vindos de diferen-
tes lugares, pois Jerusalém era o local adequado para as comemorações
da Páscoa. Em meio a todo esse movimento, os criminosos também se
manifestavam, incluindo vários zelotes que se rebelavam contra Roma.
Esse foi o motivo para Pilatos ter deixado seu luxuoso quartel-general
na cidade de Cesaréia, na costa do Mediterrâneo para ir a Jerusalém
manter a lei e a ordem. Junto com Pilatos veio um batalhão de solda-
dos, que ficavam acampados em barracas no forte de Antonia - o mes-
mo local onde Barrabás estaria sendo mantido cativo.
Mas, em que local estaria Pilatos? Ele poderia estar hospedado no
Palácio Hasmoneano, porém, este palácio era a residência oficial de
Herodes Antipas quando estava em Jerusalém (de acordo com vários
historiadores), e Her~des "estava em Jerusalém naquela ocasião" (Lucas
23.7). Isto sugere que Pilatos estivesse hospedado na fortaleza Antonia,
uma vez que esta era uma fortaleza romana e o quartel-general dos
soldados romanos na região.

o pavimento

Dai em diante Pi1~tosprocurou libertar Jesus, mas osjudeus gritavam: "Se


deixares essehomem livre,não és amigo de César. Quem se dizrei opõe-se a ~".

106
o HOMEM QUE ESCAPOU DA CRUZ

Ao ouvÍr isso, Pila tos trouxe Jesus para [ora e sentou-se na cadeira de
juiz, num lugar conhecido como PavÍmento de Pedra (que em aramaico é
Gábata) Ooão 19.12, 13).

Este é o sexto e último julgamento de Jesus, e durante este julga-


mento Pilatos levou Jesus para fora, para um lugar chamado "Pavi-
mento", que em aramaico é Gábata, significando "mosaico" ou "pe-
dra". Era uma área elevada, calçada com pedras ou mosaicos, situada
fora do palácio ou fortaleza, onde Pilatos costumava ficar para presidir
julgamentos, decidir questões e dispensar outras ordens. Foi a este
local que Pilatos levou Jesus para interrogá-Io e finalmente entregá-l o
à multidão que o aguardava ansiosa. Lembre-se, os líderes judeus não
iriam à residência de Pilatos, porque não queriam se contaminar na
época da Páscoa.
Qual a localização deste lugar em relação ao local onde Barrabás
estava preso? Qual seria a distância entre eles?
A distância entre a fortaleza e o palácio era de aproximadamente
seiscentos metros. Desta distância, Barrabás certamente podia ouvir o
barulho da multidão irada. E é exatamente neste ponto que a história
fica muito interessante.
Imagine a cena: Barrabás preso em uma cela fria na fortaleza de
Antonia, aguardando a execução. Como já mencionei anteriormente,
creio que a terceira cruz era destinada a Barrabás. Provavelmente ele
esperava ser executado
.. naquele mesmo dia .
Barrabás estava com medo; andava de um lado a outro de sua cela,
nervoso. De repente, ele ouviu, à distância, o som de uma multidão
irada. Será que seus companheiros zelotes estavam se amotinando?
Estariam eles derrotando os guardas romanos e vindo para resgatá-Io?
Ele esperava desesperadamente que isso realmente estivesse aconte-
cendo.
De repente, ele ouve seu nome. "Barrabás ... Barrabás!"

Então perguntoÍl o governador: "Qual dosdoisvores querem que eu lhessolte?"


Responderam eles: ''Barrabás!'' (Mateus 27.21)
AS TREVAS EO AMANHECER

A uma s6 voz eles gritaram: '~caba com ele! Solta-nos Barrabás!" (Lucas
23.18)

Eles, em resposta,gritaram: ''Não, elenão! Queremos Barrabás!" Ora, Barrabás


era um bandido Ooão 18.40).

A meio quilômetro de distância Barrabás podia ouvir a multidão


gritando seu nome. E o que ele ouviu depois? Confira o registro de
Mateus.
Então perguntou o governador: "Qual dos dois vocês querem que
eu lhes solte?"
Responderam eles: "Barrabás!"
Perguntou Pilatos: "Que farei então com Jesus, chamado Cristo?"
Todos responderam: "Crucifica-o!" (Mateus 27.21,22)
O coração de Barrabás começou a bater forte. Aquela não era uma
multidão de zelotes judeus vindo libertá-Io. Era uma multidão pedin-
do um linchamento. Pior que isso, exigindo uma crucificação. Ele não
conseguia ouvir a solitária voz de Pilatos fazendo as perguntas. Tudo o
que ele podia ouvir era a multidão clamando freneticamente: "Barrabás!"
E em seguida: "Crucifica-o!"
De repente, ele ouviu os passos dos soldados, a batida proposital
das botas no pavimento de pedra. Soldados marchando pelo corredor,
indo em direção à sua cela. Eles estavam cada vez mais perto ... Então
um deles escancarou a porta e rosnou: "Saia daqui, Barrabás". Ele fi-
cou gelado ... Mas, em seguida ouviu: "Você está livre".
Você pode imaginar o choque?
Barrabás estava esperando os soldados virem buscá-Io para ser cru-
cificado e, de repente, era um homem livre!

Um substituto pessoal
Barrabás, mais do qúe qualquer outra pessoa nesse sombrio drama do
Calvário, sabia que alguém iria substitui-Io naquela cruz do meio. A.T.

108'
o HOMEM QUE ESCAPOU DA CRUZ

Robertson escreveu: "Lá, entre os dois ladrões e na mesma cruz em


que Barrabás, o líder do bando, deveria ter sido crucificado, seu subs-
tituto morreu". 6
Barrabás esperava morrer naquele mesmo dia. Ele havia sido con-
denado e preso, e aguardava a morte por crucificação. E então, de
repente, ele ouviu: "Você está livre".
Muitas lendas têm surgido em torno da figura de Barrabás. São
apenas lendas, todavia ... um pouco de santa imaginação não faz mal a
ninguém. Tenho também algumas idéias sobre o assunto.
Gosto de pensar que Barrabás permaneceu em Jerusalém naquele
dia. Afinal de contas, ele tinha sido libertado. Em vez de fugir para os
montes ou procurar por seus amigos em algum beco escuro, ele se
juntou à multidão que se dirigia para fora do portão da cidade, ansioso
para ver o homem que estava morrendo em seu lugar.
Barrabás escapou da cruz porque um outro homem literalmente
tomou seu lugar. Sua vida ilustra de maneira intensa a doutrina da
expiação. Não devemos nos esquecer que Jesus foi nosso substituto
também. Ele levou nossos pecados e sofreu a morte que nós merecía-
mos, da mesma forma que morreu a morte que Barrabás merecia. Ele
foi pendurado em uma cruz no lugar de Barrabás, assim como foi
pendurado na cruz em nosso lugar. Como Barrabás, nós estávamos
mortos em nossas transgressões e pecados até que o corpo crucificado
de Jesus derramasse o sangue da substituição. Como Barrabás, estáva-
mos condenados à morte até Jesus ter tomado nosso lugar.
Como Barrabás, fomos libertados, e essa liberdade é eterna.
Posso compreender um pouco o que Barrabás deve ter sentido,
porque entendo o que significa ser liberto da culpa e da condenação.
Mas minha pergunta é: você entende?
Você está sentado na fria pedra da masmorra do pecado? Você pode
ouvir Deus dizendo a você: "Você está perdido. Você merece morrer.
Sua vida o condenà'.

1àdos n6s, tal qual ovelhas, nos desviamos, cada wn n6s se voltou para o seu
pr6prio caminho; é o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de todos n6s (Isaias
53.6).

109
AS TREVAS EO AMANHECER

Você consegue escutar uma voz lhe dizendo: "Deus amou você
tanto que deu seu único Filho, e se você acreditar nele, você nunca
morrerá, mas terá a vida eterna".
Jesus fez muito mais do que pagar a pena no lugar de Barrabás.
Através de sua morte sacrificial, Ele pagou de uma vez por todas, pelos
pecados de toda a humanidade. Por Ele ter levado a cruz que nós
merecíamos, podemos gozar de uma paz eterna e ter um lar no céu
que não merecíamos .

..

110
7 o Caminho da Cruz

Sozinho, 6 Senhor, Tu seguiste adiante,

Em sacrificio para morrer;

Este teu aflito penar por n6s

Quem poderá desprezar? 1

- PETER ABELARD, 1079-1142


7 o Cam'inho da Cruz

S ir Winston
ou interessesChurchill
na vida. não era umque
Aqueles homem apático, sem
o conheceram bemobjetivos
e todos
aqueles que admiram suas obras sabem que ele era compelido por uma
profunda convicção da providência divina. Ele adquiriu durante sua
vida um revelador senso de destino pessoal, até mesmo heróico. Certa-
mente não sou o primeiro a sugerir que liderar sua nação contra as
forças do nazismo, abraçando a causa da liberdade a despeito da esma-
gadora oposição, tornou-se sua grandiosa obsessão.
Quando o rei George VI o convidou, em 10 de Maio de 1940, a
liderar sua amada Inglaterra contra o inimigo que ameaçava a Europa,
Churchill aceitou confiantemente o desafio. Mais tarde ele relatou:
"Senti como se estivesse marchando para o meu destino e que toda
minha vida anterior não passara de uma preparação para esta hora e
para esta experiência'?
Jesus de Nazaré também teve uma grandiosa obse~são: a cruz. Por
mais doloroso e angustiante que fosse, Ele se achava inteiramente to-
mado por um persuasivo senso da providência divina e cada dia de sua
vida levava-o inexoravelmente para mais perto do cumprimento de sua
missão.
Jesus não foi uma pobre vítima do destino; Ele não foi um mártir
patético. Vários livros têm sido escritos exatamente com essa intenção,
ou seja, provar que Jesus desenvolveu um plano que terminou fracas-
AS TREVAS EO AMANHECER

sando, e que quando esse plano falhou, quando o jogo virou contra
Ele, pendurado numa cruz, ferido, mas, felizmente, lúcido, Ele insti-
tuiu uma nova religião. Assim, quero deixar bem claro o seguinte: a
morte de Jesus foi uma parte necessária - de fato, a parte mais impor-
tante - do plano predeterminado por Deus. Sua morte na cruz não foi
algo que Deus não havia planejado, mas, ao contrário, foi o cumpri-
mento do plano predeterminado do Pai para seu Filho.
Pedro confirmou isto em seu sermão no dia de Pentecostes:

Israelitas, ouçam estaspalavras:Jesus de Nazaré foi aprovado por Deus dian-


te de vocBspor meio de milagres, maravilhas e sinais que Deus fez entre vocBspor
intermédio dele, como vocês mesmos sabem. Este homem lhes foi entregue por
prop6sito determinado e pré-conhecimento de Deus; e vocês, com a ajuda de
homens perversos, o mataram, pregando-o na cruz (Atos 2.22, 23).

Sem tirar a responsabilidade da culpa desses homens - "vocês o


pregaram na cruz" - o apóstolo Pedro declara o plano de Deus, prepa-
rado pelo conselho da Trindade na eternidade passada. A morte de
Jesus na cruz não foi somente planejada, mas predita - profetizada.

Mas foi assim que Deus cumpriu o que tinha predito por todos os profetas,
dizendo que o seu Cristo haveria de sofi:er(Atos 3.18).

Marque essas palavras:


~ "o que tinha predito por todos
. os profetas".
Examine cuidadosamente as Escrituras e você encontrará inúmeras
profecias no Velho Testamento, que são referências inequívocas à mor-
te do Salvador. Algumas datam de até nove séculos antes do nascimen-
to de Cristo, num tempo em que a crucificação não era nem conheci-
da. Por exemplo, Davi dá esta descrição específica da morte do Salvador:

Cães me rodearam!
Um bando dehomensmausmecercou!

PerlUraramminhàsmãosemeus pés.
POSSQcontarwdososmeusossos, mas elesme encaram com desp=.

11
o CAMINHO DA CRUZ

Dividiram as minhas roupas entre si, e lançaram sortes pelas minhas vestes
(Salmo 22.16-18).

o salmista diz que as, mãos e os pés dele seriam perfurados. Seus
ossos seriam contados. Suas roupas seriam divididas e lançariam sortes
sobre suas vestes. Ele seria objeto de desdém e zombaria. De maneira
impressionante, a Bíblia deu todos esses detalhes cerca de novecentos
e cinqüenta anos antes do fato.
Setecentos anos antes da vinda de Cristo, Isaías escreveu que Ele
seria objeto de aflição, sofrimento e dor. Corno vimos nos capítulos
anteriores, o profeta o comparou a urna ovelha conduzi da ao mata-
douro. Ele seria crucificado com ladrões (Isaías 53).
Planejada por Deus para que você e eu pudéssemos ter nossos peca-
dos perdoados, a morte de Jesus abriu o caminho para o céu - um
caminho preparado e pavimentado com seu sangue.
A partir de agora, iremos andar, através de nossa imaginação, por
onde Jesus andou em sua jornada final para a cruz. O caminho não é
agradável, mas é real. Precisamos visitar novamente a cena do calvário,
se desejamos obter urna compreensão realista do que Ele sofreu em
nosso favor.

Entregue para ser crucificado

Ao ouvir isso, Pilatos trouxe Jesus para fora e sentou-se na cadeira de juiz,
nwn lugar conhecido como Pavimento de Pedra (que em aramaico é Gábata).
Era o Dia da Preparação na semana da Páscoa, por volta do meio-dia.
''Eis o rei de \IOCiS': disse Pilatos aosjudeus.
Mas eles gritaram: "Mata" Mata! Crucifica-o!"
'Vevo crucificar o rei de vares?': perguntou Pilatos.
"Não temos rei,senão C'ésw-': responderam oscheres dos sacerdotes.
Finalmente Pilatos o entregou a elespara ser crucificado aoão 19.13-16).

115
AS TREVAS EO AMANHECER

Como vimos no capítulo seis, Pilatos lavou as mãos e, isentando-


se de responsabilidade, entregou Jesus à multidão. Embora em seu
coração ele soubesse que Jesus era inocente, Pilatos comprometeu suas
convicções para aplacar ~ ira do povo. Ele temia mais o povo do que
temia a Deus.
asexto e último julgamento aconteceu por volta das 7h30 da
manhã. A jornada final de Jesus para a cruz provavelmente começou
entre 7h30 e 8 horas. O relato de Marcos nos diz que as mãos e os pés
de Jesus foram pregados na cruz às 9 horas da manhã; então, sua
caminhada para a cruz começou cerca de uma hora ou uma hora e
meia antes.

Tortura física: Espancamento

Então Pila.tos soltou-lhes Barrabás, mandou açoitar Jesus e o entregou para


sercrucilicado (Mateus 27.26).

Naqueles dias existiam dois tipos de espancamento ou açoitamento:


judeu e romano. O método judeu é descrito em Deuteronômio 25.1-
3, e determina que uma pessoa não deveria ser espancada mais do que
quarenta vezes. Visto que o judeu tinha medo de quebrar esta lei de
Deus, geralmente a vítima recebia trinta e nove açoites, que eram
contados meticulosamente para não ultrapassar este número. Mas no
espancamento roma'Uo, não havia um número específico de vezes que
uma vítima poderia ser espancada. Não é difícil entender por que,
então, os romanos geralmente chamavam seu torturante ato de espan-
camento de "meio caminho da morte".
Antes de começar o espancamento, a vítima era despida de todas
as suas roupas e colocada numa posição encurvada sobre um tronco
ou poste largo e baixo. Na base do poste havia quatro anéis de metal,
onde os pulsos e os tornozelos da vítima eram acorrentados. Jesus foi
despido de suas vestes, encurvado sobre este poste, e teve seus pulsos
e tornozelos acorrentados nesta posição.

116
o CAMINHO DA CRUZ

O espancamento era conduzido -'por um "lictor", isto é, um


profissional especializado na terrível arte da tortura. O instrumento
usado no açoitamento era chamado de "flagelo", e consistia de um
pedaço de madeira de .trinta e cinco a cinqüenta centímetros de
comprimento, de formato arredondado, no qual estavam amarradas
compridas tiras de couro. Para provocar maior dor, eram colados a
essas tiras de couro ou correias pedaços de vidro, de correntes de
metal, ou ossos.

o soldado que executava as flagelaçães... afastou-se para wna posição


cerca de dois metros atrás de Jesus e separou suas pernas. O flagelo foi
levado bem para trás e atirado para frente, produzindo wn lúgubre som
de tambor quando as tiras de couro batiam contra a parte posterior da
caixa torácica. Os pedaços de osso e de corrente enroscaram-se ao redor
do lado direito do corpo e provocaram pequenas hemorragias subcutâne-
as no peito ...
O flagelo voltou a atingi-lo, mirando wn pouco mais abaixo e nova-
mente, wn pouco mais alto, batendo contra sua pele e carne... O flagelo
agora se movia em wn ritmo vagaroso e pesado.3

Este terrível instrumento foi projetado para reduzir o corpo a pe-


daços sangrentos de carne ferida.
Não era incomum uma pessoa morrer no tronco. Como alguns
comentaristas observam: "Os açoitamentos romanos eram tão brutais
que algumas vezes a vítima morria antes da crucificação". Invariavel-
mente, a vítima desmaiava de dor, apenas para ser reanimada a se-
guir, sendo molhada com baldes de água salgada. Estes torturadores
impingiam dor de forma gradual para manter a vítima consciente,
esperando que ela sofresse tanto quanto possível. A pessoa que esta-
va no comando desta tortura deveria ficar atenta, pois era sua res-
ponsabilidade parar a "disciplinà' no caso da vítima não poder mais
ser reanimada.
AS TREVAS EO AMANHECER

Humilhação pública: Zombaria e crueldade

Então os soldados do governador levaram Jesus ao Pretório e reuniram


toda a tropa ao seu redor. TIraram-lhe as vestes e puseram nele um manto
vermelho; fizeram uma coroa de espinhos e a colocaram em sua cabeça.
Puseram uma vara em sua mão direita e, ajoelhando-se diante dele, zom-
bavam: "Salve, rei dos judeus!" Cuspiram nele e, tirando-lhe a vara, bati-
am-lhe com ela na cabeça (Mateus 27.27-30).

A esta altura, Jesus havia se tornado uma figura cômica para os


soldados romanos. Ele permaneceu em silêncio diante deles quando
começaram a humilhá-Io, a desprezá-Io e a zombar dele de todas as
maneiras possíveis.
A primeira coisa que os soldados fizeram foi tirar todas as roupas de
Jesus. Ele ficou nu diante deles, seu corpo todo transformado numa
massa de carne machucada e inchada. Então, de modo sarcástico, eles
enfiaram uma coroa em sua cabeça - uma coroa feita de espinhos.
Colocaram sobre Ele um manto vermelho e puseram uma cana em sua
mão para representar um cetro real. Zombaram dele cruelmente, ajo-
elhando-se diante dele e saudando-o em voz alta dizendo: "Salve, rei
dosJudeus!"
A palavra grega usada para se referir ao manto vermelho, no versículo
28, é chIamus. Essa palavra não designa o manto inteiro; ao contrário,
refere-se a uma capa "curta que vinha apenas até os cotovelos, usada
sobre os ombros e presa ao pescoço com algum tipo de laço ou botão.
Em outras palavras, o Filho de Deus permaneceu ali nu, do peito para
baixo, diante daqueles homens ímpios, obscenos, cheios de malícia.
De fato, estou certo que é por isso que não temos um registro do que
eles disseram para Jesus. Tendo passado algum tempo em um quartel,
tenho alguma idéia do tipo de linguagem usada por aqueles que não
têm o coração em Deus. Quando Jesus foi humilhado na presença
daqueles homens cruéis, Ele certamente ouviu comentários grosseiros e
obscenos dirigidos a Ele... "ainda assim Ele não abriu sua boca".

118
o CAMINHO DA CRUZ

A referência a uma "coroa de espinhos" é curiosa (v.29). Espinhos


eram comuns naquela região. Os mais compridos eram cortados, coloca-
dos para secar em um balde ou pote e então usados como material com-
bustível para produzir fogo. Era comum encontrar nas áreas externas dos
edifícios públicos, grandes vasos repletos de espinhos secos e ramos de
videira. Provavelmente os soldados saíram, apanharam alguns galhos es-
pinhentos dos vasos, teceram uma coroa, e com escárnio e gestos vulga-
res, cravaram-na em sua cabeça.
Vários anos atrás, alguns de meus amigos estiveram em Jerusalém e
encontraram uma autêntica réplica do que seria a coroa de Jesus. Al-
guns espinhos chegavam a ter nove centímetros de comprimento. Es-
ses espinhos afiados teriam cortado cruelmente o couro cabeludo e a
testa de Jesus.
"Salve, rei dos Judeus!", os.romanos gritaram. Como eles odiavam os
judeus! Através desta cruel zombaria, eles descarregaram toda sua raiva
sobre o inocente Filho de Deus. Mas seu odioso insulto não ficou
apenas nas palavras: eles cuspiram em Jesus e bateram com o cetro em
sua cabeça.
O que me parece extraordinário, em minha natureza humana, é
que nosso Salvador nunca revidou, de nenhuma forma, as ofensas que
sofreu. Pedro, que provavelmente foi a testemunha ocular mais próxi-
ma de tudo que aconteceu, mais do que qualquer outro discípulo, ao
relembrar os fatos ocorridos, escreveu o seguinte:
..

Para isso vocês fOram chamados, pois também Cristo so/ieu no lugar de v~
deixando-lhes exemplo, para que sigam os seuspassos.
''Ele não cometeu pecado algum, e nenhum engano foi encontrado em sua
boca. "

Quando insultado, não revidava; quando sofria, não fazia ameaças, mas
enrregava-se àquele que julga com justiça (1 Pedro 2.21, 23).

É fácil esquecer que Jesus foi torturado, brutalizado e maltratado por


um longo período antes de ser levado ao lugar da execução. Devido ao

119
AS TREVAS EO AMANHECER

extenso trauma físico que havia sofrido, Ele provavelmente deve ter en-
trado em choque, começando a tremer e a ter calafrios após todas aquelas
bofetadas. Sua face ficou tão marcada e inchada que seus traços individu-
ais dificilmente seriam reconhecidos. Antes de iniciar sua caminhada ao
Gólgota, Ele foi levado novamente a Pilatos e à multidão sedenta de
sangue. "Eis o homem!" Pilatos gritou para a multidão enquanto segurava
a cabeça de Jesus pelo cabelo. "Crucifica-o!", eles gritaram em resposta.

Depois de terem zombado dele, tiraram-lhe o manto e vestiram-lhe suas


pr6prias roupas. Então o ievaram para crucificá-io (Mateus 27.31).

Observe que antes dos soldados levarem Jesus para o lugar da exe-
cução, eles o vestiram novamente - eles "vestiram-lhe suas pr6prias rou-
pas". Naqueles dias, um judeu costumava usar cinco peças de roupa:
sandálias, um turbante, uma túnica inteira, uma capa e um cinturão
ou aquilo que chamaríamos de um cinto largo.
Depois que o criminoso era executado, suas roupas seriam dividi-
das entre os soldados; mas trataremos disso mais tarde.

A caminho do Gólgota
A crucificação era um acontecimento comum para aqueles que viviam
sob o domínio de Roma. Talvez seja por isso que os escritores dos
evangelhos nos dão poucos detalhes sobre a caminhada final de Jesus
para o lugar da execução.
Tanto no evangelho de Mateus como em Marcos está registrado
simplesmente que os soldados "o levaram para crucificá-Io" (Mateus 27.31;
Marcos 15.20). Lucas nos diz que "eles o levaram" (Lucas 23.26). E João
escreveu: "Levando a sua pr6pria cruz, ele saiu para o lugar chamado Cavei-
ra (que em aramaico é chamado G6Igota)" (João 19.17).
Entretanto Mateus, Marcos e Lucas nos dão um detalhe interessante.
o CAMINHO DA CRUZ

Ao saírem, encont::rn.ramlunhomem de Cirene, dJamado Simão, eo /àrçaram


a carregar a cruz (Mateus 27.32).

Cerro homem de Cirene, chamado Simão, pai deAlexandre ede Ru/à, passa-
vaporali, chegando do campo. Eles o forçaram a carregara cruz (Marcos 15.21).

Enquanto o levavam, agarraram Simão de Cirene, que estava chegando do


campo, e lhe colocaram a cruz às costas, iàzendo-o carregá-Iaatrás deJesus (Lucas
23.26).

Permita-me lembrá-Io mais uma vez que a crucificação era um acon-


tecimento público. O criminoso era acompanhado pela multidão, como
num cortejo, da prisão até o lugar onde seria executado. Os romanos
queriam o maior número de pessoas possível para testemunhar sua
"justiça". Assim, seguindo um padrão estabelecido, Jesus teria sido
escoltado pelas ruas de Jerusalém até o local da execução, fora dos
portões da cidade - um lugar de passagem bastante movimentado. Com
um centurião no comando e dois soldados, um de cada lado, não havia
possibilidade de fuga, mesmo que ainda restasse alguma resist~ncia física
ou algum amigo tentasse resgatá-Io no último minuto. Mas toda essa
pompa e sórdido cerimonial de efeito servia, também, como proteção
para os romanos, que evitavam assim correr riscos, especialmente por
causa dos judeus zelotes e rebeldes, que eram capazes de qualquer coisa.
Em muitas pinturas, os artistas t~m retratado Jesus carregando uma
cruz enorme em suas c9stas, encurvado sob seu peso. Certamente não
há como medir o peso do fardo que Jesus carregou na cruz - o peso de
nossos pecados - ou o grau de seu sofrimento. Entretanto, em termos
estritamente físicos, Ele não teria carregado a cruz inteira. Nenhum
homem conseguiria carregar os dois pesados troncos que formavam a
cruz. O poste de madeira bruta com dois metros e meio de compri-
mento e quinze por quinze centímetros de largura, mais a trave hori-
zontal, era pesado demais. Normalmente, a viga vertical da cruz era deixa-
AS TREVAS EO AMANHECER

da no local da execução ou seria levada até lá por soldados romanos,


pouco antes da execução.
A vítima, entretanto, carregava a trave horizontal de sua pr6pria cruz,
o que já era um fardo pesado demais. A viga era colocada no sentido
transversal sobre seus ombros e presa nele. Então, em volta do pescoço
era pendurada uma tábua de 30 por 30 centímetros, onde se declarava o
crime do qual era acusado. Essa tábua seria mais tarde pregada acima dele
na cruz, assim todos que passassem saberiam o crime pelo qual ele tinha
sido executado.
Espancado, machucado e sangrando, nosso Salvador cambaleou pelo
mais longo caminho de sua vida. Pelas ruas estreitas de Jerusalém,
abarrotada de peregrinos que estavam ali para a Páscoa, aproveitando
para as últimas compras antes que cessasse todo o comércio com o
início do Shabbat (o Sábado), os soldados levaram Jesus para ser cruci-
ficado. A caminhada final de Jesus para a cruz é freqüentemente cha-
mada de Via Dolorosa, "o caminho de dores". Apesar de ser uma bela
expressão (que originou uma linda composição musical), não havia
nada de belo na caminhada trôpega, triste, hesitante e dolorosa até o
local de sua execução.
Jesus havia sido tão cruelmente torturado e espancado que trope-
çou sob o peso da viga, incapaz de prosseguir - a viga era pesada de-
mais para Ele carregar. Misericordiosamente, os soldados ordenaram
que alguém ajudasse a carregar a viga. Esse "alguém" estava destinado
a representar um papel ainda maior no futuro, como aponta um estu-
dioso do Novo Testamento:

Este deve ter sido um dia terrível para Simão de Cirene. A Palestina era
um pais ocupado e qualquer homem poderia ser recrutado para o serviço
romano, para qualquer tarefa. O sinal de recrutamento era uma batida no
ombro com a ponta de uma lancraromana. Simão era de Cirene, naÁfrica.
Sem dúvida, ele tinha vindo daquela terra distante para a Páscoa. Sem
dúvida, ele deve ter economizado, com muito esforço, durante muitos anos
para poder ir. Sem dúvida, ele estava realizando o sonho de toda a sua vida:
comer uma Páscoa em Jerusalém. E então, de repente, aconteceu aquilo ....

122
o CAMINHO DA CRUZ

Naquele momento, Simão deve ter se ressentido amargamente. Ele


deve ter odiado os romanos e odiado aquele criminoso que estava sendo
forçado a ajudar. Mas, temos direito de especular o que teria acontecido
com Simão. Talvez ele tivesse a intenção de, ao chegar ao Gólgota, jogar
a cruz no chão e sair de cena tão rápido quanto possível. Mas, talvez as
coisas não tenham acontecido desse jeito. Talvez ele tenha hesitado por-
que algo em Jesus o fascinava.
Simão é descrito como o pai de Alexandre e Rufo. Provavelmente, os
escritores dos evangelhos sabiam que ele poderia ser reconhecido por esta
descrição. É bastante provável que o evangelho de Marcos tenha sido escrito
visando, em primeiro lugar, a igreja de Roma. Observe o que diz a carta de
Paulo aos Romanos em 16.13: "Saúdem RufO, eleito no Senhor, e sua mãe, que
tem sido mãe também para mim". Rufo era um cristão tão autêntico que foi
chamado por Paulo de eleito no Senhor. A mãe de Rufas era tão querida de
Paulo que ele podia considerá-Ia como sua própria mãe. Certamente algo
deve ter acontecido a Simão no GÓlgota.
Agora vamos para Atos 13.1. Neste versículo há uma relação dos ho-
mens de Antioquia que enviaram Paulo e Barnabé naquela primeira via-
gem missionária aos gentios. O nome de um deles é Simeão, que era cha-
mado de Níger. Simeão é o mesmo que Simão. Níger era a designação co-
mum para um homem de pele escura vindo da África, e Cirene localiza-se
na África. É bem possível que estejamos nos encontrando novamente com
Simão. Talvez a experiência de Simão a caminho do Gólgota fez com que
seu coração se ligasse para sempre a Jesus. Talvez, com isso ele tenha se tor-
nado um cristão. Talvez algum tempo depois, ele tenha se tomado um dos
líderes em Antioquia e um intermediário na primeira viagem missionária
aos gentios. Talvez o futo de Simão ter sido compelido a carregar a cruz de
Jesus é que tomou possível a primeira missão aos gentios. Isto significaria
que somos cristãos porque um dia um peregrino da Páscoa, de Cirene, com
certo ressentimento, foi obrigado por um desconhecido oficial romano a
carregar a cruz de Jesus.4

Deixaremos essa cena de sofrimento do primeiro século por um tem-


po, para retomarmos a ela no próximo capítulo. Por mais brutal que

123
AS TREVAS EO AMANHECER

tenha sido a experiência de nosso Senhor, ela o conduziu ao cumprimento


de sua missão - sua "grandiosa obsessão" dada por seu Deus. Por causa de
tudo aquilo que Ele nos ensinou sobre levarmos nossa cruz é que precisa-
mos parar por um momento e deixar a verdade de suas palavras produzi-
rem impacto em nossas próprias vidas.

Tomando a sua cruz


Você deve se lembrar das instruções dadas por Jesus meses antes de
seus julgamentos e crucificação. Ao caminhar com Ele esta dolorosa
jornada até aqui, descobrimos que aquelas palavras adquirem um sig-
nificado muito mais profundo.

Então Jesus disse aos seus discipulos: "Se alguém quiser acompanhar-me, ne-
gue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mateus 16.24).

Nos dias de Jesus "tomar a sua cruz" significava, na linguagem


popular, negar a própria vontade. Ao explicar esse decisivo e Íntimo
nível de compromisso pessoal aos seus discípulos, Jesus usou uma
expressão comum, mas com sentido espiritual. "Se você quer me
seguir, você tem de desistir de sua própria vontade." Eles entende-
ram a expressão "tomar a cruz" porque estavam acostumados a ver
prisioneiros condenados carregando a viga horizontal de suas cruzes,
e quando viam alguém nessa situação, eles sabiam que aquela pessoa
conhecia profunda tristeza e sofrimento e tinha apenas uma coisa
diante de si: a morte. Entjío, quando Jesus disse "você deve tomar
a sua cruz e seguir-me", eles entendiam claramente o que Ele que-
ria dizer.
Você entende o que Jesus estava dizendo? Você pode dizer sincera-
mente que deseja "segui-Io" com tal intensidade e devoção? Ele certa-
mente concederá a você graça suficiente para permanecer firme, mas a
decisão de morrer para a sua vontade - tomar a sua cruz - é sua, apenas
sua. Eu o desafio a tomar esta decisão agora.

124
o CAMINHO DA CRUZ

6meu Senhore Salvador,


Tu me ordenaste a também tomar e carregar
uma cruz antes de me dares uma coroa.

Tu me ordenaste que ela fosse minha porção,


mas meu amor-próprio ~ odeia,
a razão carnal não se reconcilia com ela;
sem a graça da paci§ncia eu não posso suportá-Ia,
andarcom ela, beneficiar-me com ela.

011, abençoada cruz, que tanta misericórdia traz!

Tu és odiosa apenas para minha vontade rebelde,

pesada porque eu evito carregá-Ia.


Ensina-me, bondoso Senhor e Salvador,

que com minha cruz tI.lenviaste a graça prometida,


para que eu possa suportá-Ia pacientemente,
que minha cruz é teu jll{;Oque é suave
e teu f.m1o, queéleve.5

125
8 o .Mais Escuro dos Dias

oh, sagrada Cabeça, agora ferida,

Curvada sob o peso do pesar e da vergonha,

Agora com escárnio rodeada

De espinhos, tua única coroa.

Oh, sagrada Cabeça, que glória,

Que abençoada até agora era tua!

Assim, embora desprezada e ensangüentada,

Eu me alegro em chamar-te minha. I

- BERNARD OF ClAIRVAUX,
1091-1153 D.e.
8 o Mais Escuro dos Dias

FuiTexas
criado e moro
onde, atualmente
até recentemente, com minha família
os condenados no Estado
à morte do
eram exe-
cutados na cadeira elétrica. Alguns Estados usam câmara de gás, ou
injeção letal (usada agora no Texas)j e em alguns lugares a execução ainda
é feita pelo pelotão de fuzilamento ou enforcamento. Nenhum desses
métodos de execução é agradável ou atraente, nem pretendem ser. Execu-
ção é a punição máxima para o crime máximo: impedir alguém de conti-
nuar a viver através do ato deliberado de tirar a vida de outra pessoa.
Não existe um jeito de tornar uma execução agradável; ainda que não
exista dúvida de que algumas são muito piores do que outras. A crucifica-
ção está no topo da pequena lista das mortes mais dolorosas e torturantes
que já foram inventadas.
A crucificação difere de dois modos das principais formas de execu-
ção de hoje.
Em primeiro lugar, as execuções, hoje, são realizadas geralmente
em um local privado, ou seja, a morte em si não é vista pelo público
em geral. Na hora da execução, é permitida a presença de poucas pes-
soas para testemunhar o fato; manifestantes podem ajuntar-se do lado
de fora da prisão e a manifestação pode ser transmitida pela televisão,
no caso da execução ser um fato not6rio, mas não é permitida a trans-
missão de imagens da execução. Porém, a crucificação era uma espécie
de espetáculo público, organizado de modo a se tornar inesquecível para
AS TREVAS EO AMANHECER

aqueles que a testemunhassem. Os romanos desejavam com isso deixar


bem claro na memória do povo que a penalidade por quebrar suas leis era
brutal e extrema.
Na verdade, a crucifica~ão já era praticada muitos séculos antes dos
romanos. Segundo o jornalista Jim Bishop, os inventores deste macabro
método de execução, planejaram a crucificação corno um meio de in-
fligir o máximo de dor à vítima antes de sua morte.

Vários modos de execução já haviam sido tentados - golpe de lança,


6leo fervente, empalação, apedrejamento, estrangulamento, afogamento, fo-
gueira - e todos se revelaram muito rápidos. Eles queriam meios de punir os
criminosos lenta e inexoravelmente e assim o homem inventou a cruz. Era

uma forma de execução praticamente ideal, por ser tão vagarosa quanto
dolorosa ... Além disso, o condenado, ao mesmo tempo, era colocado
bem à vista de todo o povo.
Um segundo elemento a considerar era a nudez. Esta situação causava
vergonha ao malfeitor e, ao mesmo tempo, tornava-o indefeso diante de
milhares de insetos no ar ...

Os romanos adotaram a cruz como um recurso para deter a criminalidade,


e eles acreditavam que realmente funcionava. Com o passar do tempo, a
crucificação se tornou uma cerimônia ritual, com um conjunto de regras a
serem seguidas.2

Em segundo lugar, as execuções de hoje são rápidas e de certa for-


ma misericordiosas: uma súbita pressão na espinha, um Iam pejo de
eletricidade através do corpo, o sono gradual causado por gás tóxico, a
tranqüila e rápida morte Po! injeção letal. A crucificação foi projetada
para ser uma morte extremamente dolorosa, humilhante e lenta. Merrill
E Unge r, um estudioso da Bíblia, afirmou que "há casos registrados de
pessoas que sobreviveram por nove dias"3 na cruz.
Hoje, a cruz é um objeto de veneração. Usada como jóia requin-
tada ou em esculturas artísticas, a cruz se transformou em algo belo.
o MAIS ESCURO DOS DiAS

O contorno da cruz está presente em mosaicos, emoldurado em metal e


entalhado com graciosos pedaços de vidro colorido. As pessoas do pri-
meiro século ficariam chocadas em ver o tratamento que damos hoje ao
que era, para eles, um instrumento de brutalidade e da mais cruel forma
de morte. É como se hoje nós usássemos uma forca na lapela ou pendu-
rássemos na parede da sala um quadro de uma cadeira elétrica. No pri-
meiro século a cruz significava morte ... mas não qualquer morte. Signi-
ficava a mais hedionda e angustiante morte imaginável.

Morte por crucificação


William Barclay chama a crucificação de "o terrível procedimento".
KIausner, um historiador judeu, escreveu: ''A crucificação é a mais ter-
rível e cruel morte que o homem já inventou". Cícero, que estava bem
familiarizado com ela, disse: "É a mais cruel e vergonhosa das punições".
William Wilson, em sua investigação judicial, literária e histórica do que
eIe chama d" - de J"esus , escreveu: ''A cruz nao
e a execuçao ~ era apenas a
mais dolorosa das mortes, mas também era considerada como a mais
humilhante. O condenado era despido e permanecia exposto assim em
sua agonia e, freqüentemente, os romanos negavam um funeral à víti-
ma, deixando que seu corpo ficasse na cruz até se decompor". 4
Séculos antes de Cristo sofrer o horror da crucificação, os persas
condenavam homens para morrer na cruz. Eles cultuavam Ormuzd, o
deus da terra, e por acreditarem que a terra não deveria ser contamina-
da pelo sangue de um criminoso, eles arquitetaram um plano enge-
nhoso. Para que a vítima não contaminasse a terra, ela deveria ser erguida
e morrer naquela posição;,oo corpo poderia então ser removido sem
tocar a terra, mantendo assim sua pureza. Este método de execução foi
passado aos egípcios e finalmente aos romanos, que o adotaram e, mais
tarde, o aprimoraram.
Sou grato a Jim Bishop por esta vívida e longa descrição da crucifi-
cação nos dias de Jesus:

131
AS TREVAS EO AMANHECER

o carrasco colocou a viga horiwntal atrás de Jesus e deitou-o no


chão rapidamente, estendendo seus braços e puxando-os para trás. Assim
que Jesus caiu, a viga foi ajustada sob sua nuca e os soldados rapida-
mente ajoelharam-se, um de cada lado, sobre seus braços...
Uma vez começada, a coisa acontecia de maneira rápida e eficiente.
O carrasco vestia um avental com bolsos. Ele colocou dois pregos de doze
centímetros e meio entre seus dentes e com o martelo na mão, ajoelhou-
se junto ao braço direito. O soldado que estava ajoelhado desse lado
mantinha o antebraço esticado sobre a viga. Com a mão direita, o carras-
co examinou o punho de Jesus para achar o pequeno espaço [onde não
existisse nenhuma artéria vital ou veia]. Quando o encontrou, pegou um
dos pregos de ferro que estava entre seus dentes e firmou-o contra o
local, bem atrás de onde termina a assim chamada linha da vida. Então,
ele levantou o martelo e bateu no prego com força...
O carrasco pulou por cima do corpo para chegar ao outro punho ...
Assim que teve certeza de que o condenado não poderia, ao debater-
se, soltar-se e cair para ttente, ele levantou seus braços para cima rapida-
mente. Este era o sinal para erguer a viga.
Dois soldados agarraram com força, um de cada lado da viga, e a le-
vantaram. Ao levantá-Ia, eles puxaram Jesus pelos punhos ... Quando os
soldados a colocaram de pé, quatro deles começaram a levantar a viga
ainda mais alto, até que os pés de Jesus não mais tocassem o solo. O
corpo de Jesus deve ter se retorcido com a dor...
Quando a viga estava firmemente colocada, o carrasco colocou a pla-
ca onde estava registrado o nome e o crime do prisioneiro. Então, ele se
ajoelhou diante da cruz. Dois soldados se apressaram para ajudar, e cada
um segurou uma das pernas.pela panturrilha. O ritual consistia em pre-
gar o pé direito sobre o esquerdo e esta, provavelmente, era a parte mais
diRci! do trabalho. Se os pés fossem esticados muito para baixo e prega-
dos junto ao pé da cruz, o prisioneiro morria rapidamente. Ao longo
dos anos, os romanos aprenderam a empurrar o pé mais para cima, as-
sim o condenado poderia apoiar-se sobre os pregos, ou esticar-se para
cima.5
o MAIS EscuRo DOS DIAS

Alguns historiadores descrevem uma peça de madeira parecida com


uma sela posicionada um pouco mais acima, permitindo à vítima des-
cansar a base de sua pelve e encontrar alívio.
Os braços de Jesus e~tavam agora em uma posição em V; e Ele
tomou consciência de duas circunstâncias insuportáveis: a primeira
era que a dor em seus punhos era intolerável, e seus braços e ombros
estavam tomados por cãibras; a segunda era que seus músculos peito-
rais estavam momentaneamente paralisados. Isto o induziu a um pâ-
nico involuntário, pois percebeu que apesar de poder puxar o ar para
dentro de seus pulmões, era incapaz de exalá-Io.

Para conseguir manter a respiração, a vítima na cmz tinha de manter-se


em constante movimento e assim ele literalmente puxava a si mesmo para
cima e para baixo, constantemente, de forma a tornar a respiração possível.
Eventualmente, ele não conseguiria mais se levantar o suficiente para conti-
nuar respirando.
A dor aumentava a cada segundo. Seus braços, suas pernas, seu corpo
inteiro gritava de dor; os nervos foram esticados com força, como as cordas de
um violino. Aos poucos ele foi sendo asfixiado, como se dois polegares esti-
vessem apertando sua garganta.
Alguns sugerem que as vítimas de crucificação morriam por asfixia. Outros
dizem que eles morriam de fome. Outros ainda afirmam que eles morriam por
absoluta exaustão, visto que o corpo finalmente entrava em colapso devido às
dores insuportáveis e por causa da suspensão dos órgãos e músculos.
Como Harvie Branscomb resumiu: "Poucos meios de execução piores
que esse poderiam ser inventados. Dor, sede, a tortura dos insetos, ficar
exposto a espectadores brutais, o horror daquela posição rígida, tudo conti-
nuando indefinidamente e colaborando para torná-Ia uma suprema humi-
lhação e torturà'.6

Certamente, estes terríveis, mas necessários detalhes deram a você


uma melhor compreensão da razão pela qual Jesus orou para que, 'se
possível, "fosse afastada dele aquela hora". Cada vez que retorno ao
Gólgota e recordo o horror de seu sofrimento final, sinto-me profun-

133
AS TREVAS EO AMANHECER

damente agradecido pela disposição do meu Salvador de sofrer em meu


lugar. Também percebo o quanto sou incapaz de expressar minha profun-
da gratidão. Poucos têm expressado isso melhor que o monge do século
doze, Bernardo de Clairvaux.

o que Tu, meu Senhor, sofreste


Foi tudo pelos pecadores;
Minha, minha era a transgressão,
Mas tua a dor mortal.

Veja, aqui eu caio, meu Salvador!


Eu mereço este lugar;
Olhe para mim com teu favor,
Conceda-me a tua graça.

Que língua deveria eu emprestar


Para agradecer-te, amado amigo,
Por esta tua tristeza mortal,
Tua piedade sem fim?
Oh, faça-me teu para sempre;
Eu deveria estar desmaiado,
Senhor, não me deixe nunca, nunca
Viver mais que meu amor por ti?

Ó Pai, quanto te somos gratos pelo Senhor Jesus Cristo. Embora a


cena que visitamos tenha acontecido há vinte séculos, é como se tivés-
semos testemunhado sua morte. Como foi horrível! Que angústia Ele
padeceu! A dor que Ele sofreu em nosso benefício é maior que pode-
mos imaginar. E foi o meu pecado - os nossos pecados - que causou
tudo isso. "Minha, minha era a transgressão, mas tua a dor mortal."
N este momento de silêncio, com lágrimas de gratidão, fazemos
uma pausa para dizer o quanto. nós o amamos e como somos gratos
pelo preço que nosso Salvador pagou em nosso benefício. A ti, Se'nhór,
seja todo o louvor po'r tua graça abundante, perdoando nossos pecados
de uma vez por todas. Por Cristo, Amém.

Você também pode gostar