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Uma sene de diálogos morda2e5 e audaciosos e a
correspondência a eles assotiatfa fazem desíe forro um marco
importante para a discussão dos csiuntos
da Psseologia no século X X I
Com bom humor e sagacidade, estes dois "filósofos da vida
corri empcrãnea*’ oham não so para o legado da Psicoterapia
como para todos os aspectos q.e a circundam: da sexualidade
a pc-Stica dos meios de comunicação ao meio amòet^e
e a irida na cidade.
James ftllman psfcobgo gngúaao retomado e controvertido
une-se a Michaeí Ventura, jomaftsta e escritor, para
estraçalhar muitas das opircces correffíes sobre nossas vfàas,
a psique e a sociedade.
Se vxè jã passou por uma terapa ou pretende fazê-lo.
se e teraperjta ou pretende sê-lo, se está interessado rios
principais problemas que afligem a sociedade moderna,
não deixe de ler este livro,
Vocè não sera mais a mesma pessoa, depois ce conhecer
as refieaóes desses dois fcriíhantes e indomáveis intelectuais
que correm riscos, quebram regras e aíraiessam snats
vermelhos p-ara chegar a1è o mais profundo
de nossos seres e de nossas crencas.
P R É F R C IO

A gênese deste livro pode ser descrita através de uma série de


porquês: porque o trabalho do psicólogo James Hillman (espe­
cialmente seu livro O sonho e o mundo subterrâneo) influenciou,
instigou e rondou meus pensamentos muito antes de nossos ca­
minhos se cruzarem em várias conferências e palestras; porque,
um dia, eu falava a respeito de Hillman com Kit Rachils, editor
do Los Angeles Weekly, Kit ficou tão interessado que me sugeriu
fazer uma entrevista de capa com Jim; porque essa entrevista (que,
ampliada, é agora a primeira parte deste livro) foi impetuosa e
exaustivamente discutida enquanto íamos de um ponto ao outro
da cidade; e porque, no ímpeto dessa reação, nós decidimos fazer
um livro.
Queríamos um livro informal, arrebatador e até engraçado
sobre a terapia, um livro que arriscasse, rompesse regras, cruzas­
se sinais vermelhos. Para tanto, decidimos nos ater às conversas,
bate-papos descontraídos (portanto, irreverentes) e à prosa colo­
quial das cartas. Por quê? Porque a psicoterapia quer e exige ser
questionada, até atacada, em sua forma favorita: sóbria, conti­
da, bem-comportada — em outras palavras, como qualquer ins­
tituição estabelecida, a indústria da psicoterapia quer ser aborda­
da de modo que implique a aceitação de seus códigos básicos de
conduta e, em decorrência, seus objetivos básicos. Mas se fizer­
mos isso, em vez de questionarmos esses códigos e objetivos, es­
taremos aceitando-os mais do que se imagina e reforçando-os ao
jogar com suas regras.
Não é assim que se cria uma ruptura — ruptura na qual, co­
mo sugere James Hillman, o consultório venha a tornar-se uma
célula revolucionária, um meio de modificar não só a pessoa em
si mas o próprio mundo. Então, escolhemos outro caminho e fi­
zemos o livro que você tem nas mãos.

Michael Ventura
Los Angeles, 1991

9
Primeiro Porte
PRIMQRO
DIÁLOGO:

Ü M fl c á u i f l

ReVOLUOONfiRífl
D
ois homens caminham pelas paliçadas do Pacífico, numa tarde
em Santa Mônica. Vão na direção do que os californianos cha­
mam de norte porque, no mapa, segue a linha da costa “para
cim a”; na realidade, a costa se curva abruptamente nesse local
e eles estão indo para o oeste. É bom mencionar esse detalhe apenas
porque é do tipo que interessa a esses dois homens e, se lhes atrair
a atenção, irão falar a respeito, fazer digressões e até lhe dar grande
importância — em parte p or diversão e, em parte, porque é assim
que eles são.
Os dois iniciaram o passeio no cais de Santa Mônica, local
de aparência festiva, onde pessoas influentes cruzam-se com os
sem-teto, os sul-americanos do leste de Los Angeles e dos novos
guetos da América Central, no centro-sul; os asiáticos de
Chinatown, Koreatown e os enclaves japoneses; os brancos pálidos
de Culver City e do norte de Hollywood; os brancos bronzeados
e esbeltos da zona oeste de Los Angeles; velhos de todas as
procedências e todos os sotaques e turistas de toda parte do mundo.
Os pobres tentam pescar para comer, apesar do aviso escrito em
inglês e espanhol alertando para o perigo de ingerir o que possam
ter pescado. A praia está sempre interditada devido aos dejetos
despejados pelos esgotos. Mas o oceano não mostra seu lixo; parece
adorável, lindo como sempre. A orla é de 10 a 30 graus mais fresca
que poucos quilômetros para o interior. Por isso, todos vão para lá.
Eles subiram até o rochedo Pacific Palisades, passaram pelos
outeiros de onde se avistam a rodovia costeira e o mar, e no ponto
mais afastado do parque, onde as colinas são mais altas e não há
tanta gente, sentam-se num banco.
Os homens são James Hillman e Michael Ventura. Hillman
tem sessenta e poucos anos, é alto e magro. Embora seja de Atlantic
City e judeu por nascimento, porta-se como um velho habitante
da Nova Inglaterra, com aquele senso ianque de autoridade
tolerante mas sensata — de certa form a suavizada por seu
penetrante interesse por tudo e por todos que estejam por perto.
Ventura tem quarenta e poucos anos, é mais baixo, mais moreno
e mais relaxado que Hillman. Está usando um tipo de chapéu que
se vê em film es dos anos 40 e botas de cowboy já um tanto gastas;
ele dá a impressão de estar buscando o equilíbrio entre tantas in­

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congruências. Hillman épsicólogo, autor e conferencista; Ventu­
ra escreve para jornais e é roteirista de cinema.
Ventura tem um pequeno gravador, que durante seus encon­
tros com Hillman está sempre ligado, estejam eles andando ou
no carro. A conversa tem um tema: a psicoterapia. E tem algo
parecido como uma form a: um força o outro não a ser razoável,
mas a ir mais além em seus pensamentos. Essas conversas têm uma
pretensão: elas e, posteriormente, as cartas trocadas entre ambos
irão se tornar um livro, um livro informal, mas (esperam) vee­
mentemente polêmico, que mexa um pouco com a psicoterapia.
Isso porque ambos têm a convicção de que a psicoterapia neces­
sita, e muito, ser empurrada para além de suas idéias já estabe­
lecidas; precisa ganhar novo estímulo, antes que seja totalmente
cooptada como mais um artifício para encaixar as pessoas numa
moralidade forçada e falsa.
Eles estão ali sentados, Ventura põe o gravador no meio dos
dois e começa a falar do que, na época, era seu tema preferido.

☆ ☆
JRM6S HillMflN: Já se vão cem anos de análise, as pessoas
estão cada vez mais sensíveis e o mundo, cada vez pior. Talvez
seja a hora de encarar isso de frente. Ainda localizamos a psique
dentro da pele. Você entra para localizá-la, examina os seus sen­
timentos, os seus sonhos, que só a você pertencem. Ou suas inter-
relações, o intrapsíquico, entre sua psique e a minha. Estende-se
um pouco aos sistemas familiares e ao ambiente de trabalho —
mas a psique, a alma, ainda permanece só dentro das pessoas e
entre elas. Constantemente trabalhamos nossas relações, nossos
sentimentos e nossas reflexões, mas observe quanta coisa fica de
fora.
Hillman fa z um gesto amplo que inclui o petroleiro no hori­
zonte, as pixações de uma gangue numa placa do parque e uma
mendiga gorda, com tornozelos inchados e pele rachada, dormindo
na grama a poucos metros de onde estão.
O que sobra é um mundo deteriorado.
Por que a terapia não percebe isso? Porque a psicoterapia tra­
balha somente “ dentro” da alma. Quando ela remove a alma do
mundo e não reconhece que está também inserida nele, não pode
mais lazer seu trabalho. As casas estão doentes, as instituições estão
doentes, o sistema bancário está doente, as escolas, as ruas... a
doença está aqui fora.
A alma, sabe, é sempre redescoberta pela patologia. No sé­
culo XIX não se falava em psique até aparecer Freud e descobrir
a psicopatologia. Agora já se diz que nossos móveis são feitos de
algo que nos está envenenando, que os fornos de microondas li­
beram raios perigosos. O mundo tornou-se tóxico.
Os dois olham o sol refletido no mar eparecem pensar a mes­
ma coisa.
MICHR6L V€NTURR: O mar está doente. Não podemos comer
os peixes.
HIllMRN: O mundo está cheio de sintomas. Não estaríamos
começando a reconhecer aquilo que se costumava chamar de
animismo?
O mundo está vivo — meu Deus! E isso provoca alguns efeitos
em nós. “ Tenho que me livrar dessas latas de aerosol.” “ Tenho
que me livrar desses móveis feitos de aldeído fórm ico.” “ Te­
nho que ficar atento a isto, aquilo e aquilo outro.” Há muita pa­
tologia no mundo e por isso estamos começando a tratá-lo com
mais respeito.
V6NTURR:É como se, por termos negado o espírito das coi­
sas, o espírito, ofendido, voltasse para se vingar. Como se, por
negarmos a alma das coisas, por dizermos como Descartes, “ Vo-
ccs não têm alma” , elas se voltassem contra nós e dissessem: “ Olhe
aqui minha alma, imbecil!”
HILLMRN: “ Veja só o que vou fazer, Homem! Você vai agüen­
tar esta lâmpada horrorosa em seu escritório e sofrer todas as ve­
zes que olhar para ela. Vou produzir esta luz fluorescente que,
aos poucos, deixará você maluco. E então você vai procurar um
psicoterapeuta para trabalhar os seus relacionamentos, mas não
saberá que fui eu que o peguei. Com aquele tubo fluorescente em
cima da sua cabeça o dia todo, batendo direto no seu crânio, co­
mo um agente da KGB apontando um holofote em sua direção,
em cima de você — grosseiro, cruel, sem som bras.”
V6NTURR: Apesar de sentirmos tudo o que fazemos e dize­
mos, e todo mundo sente, caímos em duas armadilhas: de um la­
do está o “ progresso” , um valor que temos entranhado — se você
acha que está fora disso, dê um passeio de carro pelo México e
verifique que nem os americanos pobres quereriam viver como a
maioria daquela gente (para os mexicanos, os americanos pobres
têm vida de rico, por isso eles continuam chegando); de outro lado,

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sabemos que as coisas à nossa volta estão cada vez mais prejudi­
ciais, mas não temos idéia do que fazer. Nosso senso político atro­
fiou, virou esse disparate que se vê nas eleições presidenciais.
HIllMflN: O senso político decaiu sensivelmente. Não há mais
sensibilidade para os problemas reais. Por que as pessoas inteli­
gentes — ao menos da classe média branca — são tão passivas
hoje em dia? Por quê? Porque os mais sensíveis e inteligentes es­
tão em terapia! Aqui nos Estados Unidos se faz terapia há trinta,
quarenta anos, e nesse tempo houve uma tremenda decadência po­
lítica no país.
V€NTURfl: Por que acha que isso acontece?
HILLMRN: Toda vez que temos que lidar com a agressividade
em nossas rodovias, o tormento que são nossos escritórios, nossa
iluminação, os trastes que são nossos móveis, o crime nas ruas,
seja o que for, sempre que tentamos lidar com tudo isso procuran­
do a terapia com a raiva e o medo que sentimos, estamos privando
o mundo político de alguma coisa. E a terapia, na sua loucura,
ao enfatizar a alma interior e ignorá-la do lado de fora, sustenta
a decadência do mundo real. Contudo, a terapia segue acreditan­
do cegamente que está curando o mundo e tornando as pessoas
melhores. Há muitos anos diz-se que “ se todas as pessoas fizes­
sem terapia teríamos casas melhores, pessoas melhores, mais cons­
ciência” . Não é bem assim.
V€NTURfl: Não tenho certeza se isso aconteceu por acaso mas,
decididamente, é um padrão. Nosso conhecimento interior tornou-
se mais sutil, ao passo que a habilidade para lidar com o mundo
que nos rodeia deteriorou', talvez essa não seja uma palavra sufi­
cientemente forte — desintegrou é melhor.
HIllMflN: Hoje em dia, a moda em psicoterapia é a “ crian­
ça interior” . É a nova terapia — você retorna à infância. Mas
se você está olhando para trás, não está vendo em volta. Essa
viagem para trás envolve o que Jung chama de “ arquétipo da
criança” . Ora, por natureza, o arquétipo da criança é apolítico
e impotente — não tem conexão com o mundo político. Então
o adulto diz: “ O que posso fazer pelo mundo, se ele é maior
do que eu?” Esse é o arquétipo da criança falando. “ Tudo o
que posso fazer é mergulhar dentro de mim, trabalhar meu cres­
cimento, meu desenvolvimento, encontrar bons parceiros e gru­
pos de apoio.” Isso é um desastre para o nosso mundo político,
a nossa democracia. A democracia depende de cidadãos intensa­
mente ativos, não de crianças.

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Ao enfatizar o arquétipo da criança, ao transform ar nossas
horas terapêuticas em rituais de evocação e reconstrução da in­
fância, estamos bloqueando nossa vida política. Vinte ou trinta
anos de terapia afastaram de nossa sociedade as pessoas mais sen­
síveis e inteligentes, bem como algumas das mais influentes, para
cultuar a criança. Isso está acontecendo de maneira insidiosa em
todas as terapias, por todo o país. Portanto, é natural que nossa
política seja um descalabro e ninguém vote; estamos perdendo o
poder através da terapia.
V6NTURR: A premissa com a qual as pessoas estão trabalhando
é que o crescimento interior se traduz em poder no mundo, e muitas
não percebem que vão para a terapia pressupondo isso.
HILLMRN: Se o crescimento pessoal levasse ao mundo, nossa
situação política hoje seria diferente, não seria? Considerando-se
a quantidade de pessoas especialmente inteligentes que fizeram te­
rapia? O que se aprende em terapia é, principalmente, como lidar
com os sentimentos, como recordar de verdade, como deixar que
a fantasia aconteça, como encontrar palavras para coisas invisí­
veis, encará-las e ir fundo nelas...
V6NTURR: Boas coisas para se aprender...
HILLMRN: Sim, mas você não aprende a ter habilidade políti­
ca e nem fica sabendo como o mundo funciona. O crescimento
pessoal não conduz automaticamente a resultados políticos. Olhe
a Europa oriental e a União Soviética. A psicoanálise foi banida
de lá durante muito tempo e as mudanças políticas irromperam
surpreendendo a todos. Essas mudanças não resultaram de tera­
pias e sim de revoluções.
V6NTURR: Então você faz uma espécie de oposição entre
poder, o poder político ou a inteligência política, e a inteligência
terapêutica. Muitos dos que são terapeuticamente sensíveis são
politicamente silenciosos e insignificantes; e se você observar as
pessoas que excercem grande poder em qualquer esfera da vida,
verá que em geral são aquelas cujo crescimento interior foi inten­
samente sustado.
HILLMRN: Você acha que as pessoas fazem terapia para crescer?
V6NTURR: Por acaso a palavra crescimento não ocupa gran­
de parte do projeto terapêutico? Todo mundo a usa, tanto tera­
peutas quanto pacientes.
HILLMRN: Mas a própria palavra crescimento é apropriada para
as crianças. Depois de certa idade não se cresce mais. Os dentes
não crescem, os músculos não crescem. Se você começa a crescer
depois dessa idade, está com câncer.

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V6NTURR: Ah, Jim, por que não posso crescer dentro de mim
durante toda a vida?
HIllMflN: Crescer o quê? Milho? Tomates? Novos arquéti­
pos? O que estou fazendo crescer, o que você faz crescer? A
resposta-padrão da terapia é: fazer crescer a si mesmo.
V€NTURfl: E o filósofo Kierkegaard voltaria para dizer: “ A
natureza mais profunda não muda, transforma-se cada vez mais
nela própria.”
HIllMflN: Jung diz que individuação é ser cada vez mais si
mesmo.
VÉNTURfl:E ser cada vez mais si mesmo implica coisas desa­
gradáveis. Jung também afirma que nada é mais terrível que co­
nhecer a si mesmo.
HIllMflN: E ser cada vez mais o que se é — a real experiência
disso é um encolhimento, quase sempre no sentido de um resse-
camento, de perda de gorduras, de perda das ilusões.
V6NTURA: Isso não parece nada agradável. Por que alguém
desejaria isso?
HIllMflN: Porque mudar é uma coisa linda. É claro que não
é o que diz o consumismo, mas mudar é bom. É um grande estí­
mulo.
V6NTURA: Mudar o quê?
HIllMflN: Mudar as falsas peles, perder a matéria incrustada
que se acumulou. Soltar a casca seca. Essa é uma das grandes mu­
danças. Coisas que não funcionam mais, que não sustentam mais,
que não o mantêm vivo. Um conjunto de idéias que se tem há muito
tempo. Pessoas das quais, na verdade, você não gosta, pensamentos
viciados, hábitos sexuais. Estes últimos são pontos muito impor­
tantes: se aos 40 anos a pessoa faz sexo como fazia aos 18, estará
perdendo algo; e se aos 60 fizer amor como fazia aos 40, também
estará perdendo. Tudo muda. A imaginação muda.
Dizendo de outro modo, crescimento é sempre perda.
Sempre que você cresce, perde alguma coisa. Perde aquilo a
que se agarrava para se preservar. Perde hábitos confortáveis, perde
o senso de familiaridade. Isso é importante: começar a se mover
para o desconhecido.
Sabe, no mundo orgânico, tudo o que cresce move-se cons­
tantemente para movimentos e coisas desconhecidas. Veja os pás­
saros: eles crescem, caem dos ninhos, não conseguem voar direi­
to. O crescimento é todo desajeitado. Veja um garoto de 14 anos
tropeçando nos próprios pés.

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V€NTURR: A fantasia do crescimento encontrada na terapia
e também nas idéias da Nova Era não inclui essa falta de jeito,
que pode ser terrível e durar anos. Quando vemos pessoas que es­
tão passando por essa fase, não dizemos que estão crescendo e
sim que estão fora disso. E nessas fases é óbvio que ninguém se
considera a pessoa mais poderosa do mundo.
HILLMRN: A fantasia do crescimento é uma fantasia de expan­
são romântica e harmoniosa, de desenvolvimento e criação per­
pétuos, da pessoa cada vez maior e integrando, juntando tudo isso.
V€NTURR: E se não realiza essa fantasia, vê-se como um fra­
cassado.
HILLMRN: Exatamente.
V6NTURR: Então, essa idéia de crescimento pode nos colocar
num estado de fracasso constante!
HILLMRN: “ Eu já deveria ter superado isso; não estou intei­
ro; não consigo juntar as partes; se eu estivesse realmente cres­
cendo, há muito teria me livrado dessa minha confusão.”
V0JTURR: Isso nos predispõe ao fracasso. É muito engenhoso!
HILLMRN: É uma idealização que nos predispõe ao fracasso.
V6NTURR: Isso porque a gente vive se comparando à fantasia
de onde deveríamos estar, numa escala ideal de crescimento.
HILLMRN: E faz ainda pior. Não só nos predispõe ao fracas­
so, como à anomalia: “ sou peculiar” . Faz isso sem respeitar a
uniformidade, a consistência da pessoa. A uniformidade é uma
parte muito importante da vida — ser consistente e constante em
certas áreas que não mudam, não se desenvolvem.
A pessoa faz terapia há seis anos e volta para casa num feria­
do de Ação de Graças, abre a porta, vê toda a família reunida
e imediatamente está de volta onde sempre esteve. Sente o que sem­
pre sentiu! Ou então, está divorciada há alguns anos, nunca se
encontrou com o ex-companheiro, embora às vezes se falem por
telefone, mas quando entram na mesma sala em segundos surge
a mesma chama, a chama que os arrebatou tempos atrás.
Algumas coisas não mudam nunca. São como rochas. Exis­
tem rochas na psique. Existem cristais, minério de ferro, existe
um nível metálico em que certas coisas não mudam.
V6NTURR: E se esses elementos mudassem, se pudessem mu­
dar, seriamos tão fluidos que jamais seriamos nós mesmos e nem
poderíamos ser. Seriamos perigosamente fluidos. Onde estaria isso
que é você, se a psique não dependesse de algumas coisas que não
mudam? E a dependência da imutabilidade está muito abaixo do
nível de controle e consentimento do ego.

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HIllMRN: O aspecto imutável. Se retrocedêssemos à filosofia
pré-aristotélica, conheceríamos o que era chamado de Ser. “ O Ser
real não m uda.” Era uma fantasia. Outro diriam: “ O Ser real es­
tá sempre m udando.” Não quero saber qual dos dois está certo,
e sim argumentar que ambas as afirmações são categorias funda­
mentais da vida, do ser. Você pode ver sua vida com olhos da uni­
formidade e dizer: “ Meu Deus, na verdade nada m udou.” Ou ver
a vida com outros olhos e constatar: “ Que diferença! Há dois,
há nove anos, eu era assim e assado, mas agora tudo isso passou,
mudou completamente!”
Esse é um dos grandes enigmas dos quais Lao Tsé falava: o
mutável e o imutável. O trabalho da terapia não é tentar fazer
com que o imutável mude, mas procurar separar um do outro.
Se você trabalha o que é chamado de neurose de caráter, se aceita
alguém que é muito emotivo de certa maneira se tenta fazer com
que a pessoa seja o que não é, o que estará fazendo? Porque exis­
tem partes da psique que são imutáveis.
VÉNTURfl: E isso deve ser respeitado.
HILLMRN: Precisa ser respeitado, porque a psique sabe me­
lhor que a gente por que resiste à mudança. Cada complexo, ca­
da figura psíquica em nossos sonhos sabe mais de si mesmo que
nós, sabe o que faz e por que está ali. Por isso a gente pode muito
bem respeitá-lo.
V6NTURA:E se o terapeuta não respeita isso, não está respei­
tando a pessoa.
HILLMRN: O que nada tem a ver com querer mudar. É como
na anedota: “ Quantos psiquiatras são necessários para mudar uma
lâmpada?” “ Só um, mas a lâmpada precisa realmente querer ser
m udada.” Mesmo que a lâmpada queira ser mudada, ainda as­
sim não se pode mudar o que é imutável.
V€NTURR: A fantasia do crescimento, a fantasia da pessoa
sempre em expansão, sempre em desenvolvimento — que é uma
fantasia muito forte atualmente, em especial entre pessoas instruí­
das e que consomem livros de auto-ajuda —, jamais considera o
imutável, não cria uma dialética entre o mutável e o imutável.
Assim (voltando à relação entre terapia e política), essa fantasia
alimentada por muitos tipos de terapia só pode, a despeito dela
mesma e a longo prazo, fazer com que as pessoas sintam-se fra­
cassadas. O que, por sua vez, só faz aumentar a sensação geral
de impotência.
É um bom círculo vicioso.

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HILLMRN: Há outra coisa que a terapia faz e que considero
/iciosa. Ela internaliza as emoções.
Hillman olha para a rodovia cheia de carros, que andam em
alta velocidade, com o pára-choque colado ao carro da frente.
Fico indignado quando vou ao consultório de meu analista
pela rodovia. Os malditos caminhões quase me fazem sair da pis­
ta. Fico apavorado; estou no meu carrinho, chego tremendo ao
consultório do meu terapeuta, e ele me diz: “ Vamos falar sobre
isso.”
E então começamos a conversar. Descobrimos que meu pai
era um maldito brutamontes e que os caminhões me fazem lem­
brar dele. Ou descobrimos que sempre me senti frágil e vulnerá­
vel, todo mundo era maior que eu, com pênis maior, e que o car­
ro em que eu estava é um exemplo típico de minha sensibilidade,
da minha fragilidade e vulnerabilidade. Ou discutimos meu ins­
tinto de poder: na verdade, quero ser motorista de caminhão. Con­
vertemos meu medo em ansiedade, um estado interior. Transfor­
mamos o presente em passado, numa discussão sobre meu pai e
minha infância. E convertemos minha indignação — provocada
pela poluição, pelo caos ou por qualquer coisa que me deixe in­
dignado — em raiva e hostilidade. Novamente, uma condição in­
terior, ao passo que tudo começou com uma indignação, uma emo­
ção. As emoções são principalmente sociais. A palavra vem do
latim ex movere, mover para fora. As emoções conectam com o
mundo. A terapia introverte as emoções, chama-as de medo, an­
siedade. Você as pega de volta, trabalha-as interiormente. Não
trabalha psicologicamente o que a indignação lhe diz sobre o trân­
sito, os caminhões, os morangos de março da Flórida em Vermont,
a queima de petróleo, a política energética, o lixo nuclear, aquela
mendiga na frente com feridas nos pés — nada disso.
V6NTURR: Você está dizendo que não precisamos da intros-
pecção? Logo um sujeito introspectivo como você!?
HILLMRN: Vamos grifar isto para que não passe em branco:
Não estou negando a necessidade de interiorização — mas acho
que precisamos saber o que estamos fazendo quando interioriza­
mos. Entramos dentro de nós com a mesma visão cartesiana de
que o mundo lá fora é matéria morta e o mundo interior está vivo.
V6NTURR: Um terapeuta disse que minha tristeza diante de
um mendigo da minha idade é, na verdade, um sentimento de pe­
na por mim mesmo.
HILLMRN: E lidar com ele significa ir para casa e elaborá-lo
através da reflexão. É o que significa hoje lidar com os sentimen­
tos. E ao fazê-lo, você terá abandonado o mendigo na rua.

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V6NTURR: Em parte, é também uma forma de amputar o que
se chama de Eros, a parte do meu coração que busca tocar o ou­
tro. Teoricamente, é algo que a terapia tenta liberar, mas se al­
guém na rua desperta em mim um sentimento, espera-se que eu
lide com com ele como se nada tivesse a ver com a outra pessoa.
HILLMRN: Será que o que mais acreditamos — que a terapia
é a única coisa boa neste mundo de hipocrisias — não é verdade?
Será que a psicologia e o trabalho consigo mesmo não fariam parte
da doença e não da cura? Acho que a terapia cometeu um erro
filosófico ao afirmar que a cognição precede a conotação, que o
conhecimento antecede o fazer ou a ação. Não acredito que seja
assim. Para mim, a reflexão é sempre posterior ao fato.
Os dois pensam um pouco sobre isso.
HILLMRN: O que a terapia promove são os relacionamentos,
embora o trabalho seja igualmente importante. Você acha que vai
morrer se não tiver um bom relacionamento. Sente que, se não
tiver uma relação longa e profunda, vai ficar aleijado, que é um
louco, um neurótico, ou qualquer coisa. Tem crises intensas de
ansiedade e solidão. Mas essa sensação não se deve unicamente
aos maus relacionamentos; surge também porque não se pertence
a nenhuma comunidade política que faça sentido, que seja signi­
ficativa. A terapia promove a questão dos relacionamentos, mas
o que a torna tão intensa é não termos: a) um trabalho que nos
satisfaça; e b), talvez até mais importante, não termos uma co­
munidade política que nos satisfaça.
Não se pode mascarar a falta de paixão e objetivo nas ativi­
dades diárias intensificando as relações pessoais. Acho que falamos
tanto em crescimento interior e desenvolvimento porque estamos
presos a interesses triviais e particulares em tudo o que fazemos.
V6NTURR: Em um mundo onde a maior parte das pessoas faz
trabalhos que não só são insatisfatórios, como também, com suas
pressões, são profundamente desestabilizadores, um mundo on­
de nada é mais raro que algo que faça lembrar uma comunidade,
jogamos todas as nossas necessidades num relacionamento, ou es­
peramos que a família as satisfaça. E então nos espantamos por­
que nossos relacionamentos e nossa família se quebram sob tanto
peso.
HILLMRN: É extraordinário observar a psicoterapia, que sur­
giu com aqueles excêntricos de Viena e Zurique e dos asilos de
loucos da Europa, falando hoje a mesma língua da direita republi­

22
cana sobre as virtudes da família. O governo e a terapia estão em
concordância simbiótica e feliz em relação à propaganda que em
tantos anos de Ronald Reagan se fez da família. Mas sabemos que,
sociologicamente, a família não existe mais. As estatísticas são as­
sustadoras. E os padrões atuais da vida em família, como as pes­
soas sentem-se e agem nas famílias que ainda resistem, mudaram
radicalmente. Não se vive mais em família do mesmo modo; não
se quer viver em família. Há famílias desfeitas, meias famílias,
famílias múltiplas, famílias com todos os tipos de loucura. A idéia
de família só existe para os pacientes burgueses que servem à psi­
coterapia. Atualmente, a família é, de fato e em grande parte, uma
fantasia dos terapeutas.
Por que precisamos dessa família estilo Norman Rockwell,
esse ideal de faz-de-conta que hoje é tão exuberante na política
quanto na terapia? Não vejo o que isso possa fazer pelo corpo
político, mas sei o que está fazendo pela terapia. Para esta, m an­
tém intacto o ideal de que todo mundo pode mostrar quanto é
disfuncional. Mantém o comércio funcionando; essa seria a opi­
nião de Ivan Illich.* Nós precisamos de pacientes.
V6NTURR: Mesmo o ideal de Norman Rockwell da família feliz
e auto-suficiente é uma distorção do que as famílias foram por
milhares, provavelmente dezenas de milhares de anos. Em todo
esse tempo nenhuma família foi auto-suficiente. Era uma unidade
de trabalho que fazia parte de uma unidade de trabalho mais am­
pla, a comunidade — tribo ou aldeia. Estas sim eram auto-sufi­
cientes, não as famílias. Não só porque todos trabalhavam ju n ­
tos, mas porque também divertiam-se e rezavam juntos, de modo
que o peso dos relacionamentos, e a importância deles, não se res­
tringiam à família e muito menos a uma relação romântica, mas
distribuíam-se por toda a comunidade. Até a Revolução Indus­
trial, a família sempre existiu nesse contexto.
HILLMRN: E a família também existe no contexto dos ances­
trais. Nossos ossos não estão aqui nesta terra. Hoje, as famílias
não carregam mais seus ancestrais consigo. Em primeiro lugar,
nós, americanos, deixamos nosso país de origem e viemos para
cá, abandonando nossos ancestrais. E em segundo, passamos a
ser pessoas que só têm o primeiro nome. Acabei de participar de

* Illich é um pensador radical maravilhoso! Agrada-me muito sua idéia de que a


terapia é uma indústria que precisa de novas fontes de minério para explorar. Os neuróti­
cos comuns não preenchem suas práticas, por isso a terapia necessila encontrar novas “ mi­
nas” — os casos geriátricos, grandes empresas, crianças pequenas, famílias inteiras.

23
um congresso de psicoterapeutas em que havia mais de setecentas
pessoas, todas usando um crachá com o primeiro nome. Este vi­
nha escrito em cima, em letra maiúscula, e o sobrenome embai­
xo, em letra minúscula.
V€NTURfí: É no sobrenome que estão os ancestrais, o país,
o resíduo do passado.
HIllMflN: Tudo está no sobrenome. Primeiro, o nome segue
a moda, cede à pressão social. Numa geração, vê-se uma porção
de Tracy e Kimberly, Max e Sam, noutra, Edite e Dora, Michael
e David. Mantemos nossos ancestrais em nós, em nossa psique,
quando usamos o sobrenome. Conservamos irmãos e irmãs, que
têm o mesmo sobrenome. Quando sou chamado de Jim, sou me­
ramente Jim, sem características próprias.
Ter só o primeiro nome significa ser servo, escravo, uma pes­
soa oprimida. Ao longo da história os escravos foram chamados
pelo primeiro nome. Hoje, toda a nação só tem o primeiro nome.
Naquele congresso, os únicos que tinham sobrenome eram os con-
ferencistas — 25 pessoas que as outras setecentas pagaram para
ouvir. Nosso sobrenome estava escrito em letras grandes e o pri­
meiro nome em letras pequenas. Indaguei a respeito e disseram-
me: “ Para que não sejam chamados de James, Jim, Bob ou Bill,
mas que se dirijam ao senhor como Mr. Hillman.”
A terapia não é diferente; ela também se curva à convenção.
Os primeiros casos de análise, de Freud e Jung, só têm o primeiro
nome das pessoas — Anna, Babette. Supõe-se que seja para de­
monstrar intimidade e igualdade...
V6NTURA: — e anonimato.
HIllMflN: Na verdade, o que isso faz é despir a pessoa de sua
dignidade, das raízes de sua individualidade, porque esconde os
ancestrais, que também estão no consultório. Pior, essa maneira
de falar concentra toda a atenção em mim, Jim, meu pequeno eu,
ignorando toda a complexidade de minha bagagem social, de mi­
nhas raízes raciais. Deveríamos ter três ou quatro sobrenomes,
todos hifenados, como na Suíça ou na Espanha, inclusive o so­
brenome da família de minha mãe, o de minha mulher, de minha
ex-mulher, e assim por diante. Ninguém é simplesmente Jim.
V6NTURA: Nesse sentido, sou muito mais americano; gosto
de ter perdido parte desses nomes. Mas acho que deveríamos usar
ao menos o sobrenome de pai e mãe, sem hífen.
Sabe, por falar em escravos, patrões e proprietários são sem­
pre chamados de senhor, mas têm liberdade para se dirigir aos em­

24
pregados pelo primeiro nome. E entre trabalhadores de mesmo
status, ou supostamente igual, não é incomum chamar-se um ho­
mem pelo sobrenome, enquanto as mulheres quase sempre são
chamadas pelo nome, a menos que estejam fazendo um serviço
pesado. Dessa forma, quando usamos o nome, também estamos
lidando com o poder. Estamos reforçando certos tipos de autori­
dade e de desigualdade.
Voltando ao que você disse: pregar a família ideal é um mo­
do de nos considerarmos disfuncionais, porque esse ideal faz com
que tudo o que esteja fora dele seja, por definição, não ideal, ou
seja, disfuncional. Sem esse ideal somos apenas o que somos.
HILLMRN: O ideal de crescimento nos faz sentir estáticos; a
família ideal nos faz achar que estamos loucos.
V€NTURR: Temos essas idealizações que nos fazem sentir me­
nos doidos, mesmo que não observemos nenhuma delas em nos­
sa vida. Acho que sou louco porque não consigo manter uma mes­
ma relação a vida inteira, mas olho em volta e não há ninguém
que consiga fazer isso.
HILLMRN: Eu conheço pessoas que estão casadas há cinqüen­
ta anos ou mais.
V6NTURR: Eu também, só que um deles é alcoólatra e o ou­
tro vive passeando por aí, viajando muito; não fazem amor há
anos (literalmente) e um deles é homossexual enrustido. Não é um
exemplo abstrato, são pessoas que conheço. As bodas de ouro se­
riam muito diferentes se soubéssemos o que as pessoas estão es­
condendo. Mesmo assim, continuamos nos medindo por esses
ideais.
HILLMRN: E a psicologia também idealiza a família de outro
modo, talvez ainda mais destrutivo: ela assume que a personali­
dade e o comportamento são determinados pelas relações fami­
liares na infância.
V€NTURR: Bem, as pessoas crescem de qualquer jeito, de al­
gum modo, e como isso acontece determina a vida delas, não é?
Segue-se um longo e desconfortável silêncio. O petroleiro de­
sapareceu no horizonte, mas o tráfego ainda é intenso na estra­
da. Um pequeno avião sobrevoa o pier de Santa Monica, levando
a reboque uma faixa amarela com votos de feliz aniversário para
alguém chamado Eliza. Mais abaixo, na costa, os 747 levantam
vôo, um após o outro, do aeroporto de Los Angeles, e fazem uma
curva inclinada sobre o mar. A mendiga acordou (seus olhos es­
tão abertos), mas não se mexe.

25
Hillman volta a falar.
HILLMRN: O principal conteúdo da psicologia americana é a
psicologia do desenvolvimento: tudo o que acontece a você no co­
meço da vida é a causa do que vai acontecer mais tarde. Essa é
a teoria básica: nossa história é nossa causalidade. Nem sequer
separamos história como ficção da história como causa. Portan­
to, é preciso voltar à infância para obter-se uma explicação de por
que se é como é. Se, na nossa cultura, as pessoas perdem a cabe­
ça, ficam perturbadas, ou sentem-se encurraladas, no mundo psi-
coterapêutico elas retornam às mães, aos pais e à infância.
Nenhuma outra cultura faz isso. Se você perde a cabeça em
outra cultura, fica muito perturbado, sente-se impotente, ou ano-
réxico, vai logo pensar no que comeu, se está sofrendo algum fei­
tiço, se desrespeitou um tabu; pensa no que fez de errado, quan­
do foi que esqueceu de reverenciar os deuses, se não participou
da dança, ou se desobedeceu a um costume tribal. Qualquer coi­
sa. Poderia ser um milhão delas — plantas, água, maldições, de­
mônios, deuses, perder o contacto com o “ grande espírito” . Mas
nunca, jam ais, seria o que aconteceu entre você, sua mãe e seu
pai há quarenta anos. Somente nossa cultura usa esse modelo, es­
se mito.
V6NTURR: (surpreso e confuso): Bem, por que isso não pode
ser verdade? Porque as pessoas diriam... está bem, eu digo: “ Por
isso sou como sou.”
HILLMRN: Porque esse é o mito em que você acredita.
V6NTURR: E que outro mito poderia haver? Não é um mito,
é o que aconteceu!
HILLMRN: “ Não é um mito, é o que aconteceu.” No momen­
to em que dizemos “ é o que aconteceu” estamos declarando que
“ esse é o mito que não vejo mais como mito. É o mito que não
consigo penetrar” . “ Não é um mito, é o que aconteceu” sugere
que os mitos são coisas nas quais não acreditamos. O mito que
acreditamos, em meio ao qual nos encontramos, denominamos
“ fato” , “ realidade” , “ ciência” .
Mas digamos que alguém encare isso de modo diferente. Di­
gamos que o que importa é que você tem uma semente, é uma
determinada pessoa, e que essa pessoa começa a aparecer muito
cedo para aí ficar por toda a vida. Winston Churchill, por exem­
plo, nos seus tempos de escola, tinha muita dificuldade com a lin­
guagem e não falava bem. Foi colocado no que se chama de “ classe
especial” . Tinha problemas de escrita, de fala e de ortografia. É

26
claro que tinha! Esse garotinho seria o ganhador do Prêmio No-
bel de Literatura e salvaria o mundo ocidental com seus discur­
sos. Certamente tinha problemas de fala, certamente não conse­
guia expressar-se com facilidade aos 11 ou 14 anos de idade —
era pesado demais para ele.
Veja também Manolete, o toureiro, que aos 9 anos era um
menino magrinho e medroso que seguia a mãe pela casa. E foi
o maior toureiro de todos os tempos. A psicologia diria: “ Sim,
ele foi um toureiro tão bom porque era um menino franzino que
teve que compensar sendo um herói.” Essa seria uma psicologia
adleriana — toma-se a deficiência, a inferioridade, e converte-se
em superioridade.
V6NTURA: Essa noção infiltrou-se por toda parte — tanto o
movimento de emancipação das mulheres quanto o dos homens
dependem dela mais do que admitem.
HILLMAN: Mas levemos isso para outra direção e digamos que
a vida da pessoa seja lida de frente para trás. Nesse caso, Mano­
lete seria um grande toureiro, e ele já sabia disso. Lá dentro de
sua psique ele sabia, aos 9 anos de idade, que seu destino seria
enfrentar touros enormes com grandes chifres. Certamente fazia
muito bem de ficar grudado à mãe! Por não poder suportar tanta
capacidade — seu destino já estava traçado e não podia ser mu­
dado. Era grande demais. Não que Manolete fosse incapaz, mas
tinha um destino por demais grandioso.
Agora, digamos que é assim que observamos nossos pacien­
tes. Digamos que meu filho comporte-se estranhamente, gagueje
ou seja medroso, e em vez de encarar isso como problemas de de­
senvolvimento, eu vejo como algo gue é grande dentro dele, um
destino que ele não pode mudar. É um destino maior que ele e
sua psique sabe disso. É uma maneira diferente de ler a própria
vida. Em vez de compreender a vida atual como resultado de fa­
tos desagradáveis na infância, lê-se a infância como a vida em mi­
niatura, um camafeu da vida, reconhecendo que não se saberá o
que é a vida até chegar aos 80 anos, quando a pessoa já estará
muito velha para colocá-la em foco, ou mesmo para preocupar-
se com isso!
V6NTURA: Que loucura! Como uma criança pode saber o que
vai acontecer?
HILLMAN: Nossas crianças não podem saber o que vai acon­
tecer, porque não se imagina que elas sejam crianças platônicas,
que vieram ao mundo já sabendo tudo. “ A alma sabe quem somos

27
desde o começo” , diz uma das teorias da infância. Estamos pre­
sos em nossa própria teoria especial da infância. De acordo com
essa teoria, um bebê vem ao mundo com alguns mecanismos ina­
tos, mas não com um destino.
V6NTURR: O que você está dizendo me faz lembrar uma coi­
sa. Existe um livro de fotografias, intitulado A s they were, de pes­
soas famosas quando eram crianças, e é surpreendente que aos
4, 6 ou 9 nove anos, Abbie Hoffman, J. Edgar Hoover, Franz
Kafka, Joan Baez e Adolf Hitler se parecessem exatamente com...
bem, com o destino que tiveram.
HILLMRN: E por que não? Quer dizer, uma árvore é a mesma
árvore sempre. Uma zebra é zebra desde a hora que nasce.
V6NTURR: É, é... gosto disso, gosto muito. Mas, Hillman, co­
mo uma criança sabe o que vai acontecer?
HILLMRN: Não acho que a criança saiba o que vai acontecer;
isso é excessivamente literal. Acho que a criança sente...
Não, há crianças que sabem o que vai acontecer. Lembra-se
daquela grande violoncelista que morreu recentemente? Era bas­
tante jovem. Jaqueline du Pré. Não sei do que morreu; era uma
das maiores violoncelistas do mundo. Quando tinha 5 anos de idade
ouviu um ceio no rádio e disse: “ Quero fazer um barulho como
esse” , ou “ parecido com esse” . Ela sabia. Já estava lá. Às vezes
é o que ocorre com os gênios musicais. Em geral eles já sabem.
V€NTURR: Realmente, agora que estou pensando nisso, não
é tão raro entre artistas. Eu não sou um gênio, mas desde os 9
anos de idade sabia que seria um escritor e nunca fiz o menor es­
forço para ser outra coisa.
HILLMRN: É melhor não usar esses exemplos porque são mui­
to óbvios. A maior parte das pessoas não é assim; aos 20 anos
ainda estão tateando. Mas acredito realmente que existam vagas
idéias, como pequenos nódulos no tronco de uma árvore. À me­
dida que a árvore vai crescendo — a árvore jovem, digamos um
pequeno carvalho —, forma pequenos nódulos que vão se tornar
galhos, alguns grossos troncos. Acho que as crianças têm essas
pequenas protuberâncias, têm tendências, têm suas pequenas pres­
sões e pequenas obsessões.
V€NTURfl: E essas obsessões em geral não são respeitadas, mui­
tos pais assustam-se com elas. “ Ele deveria sair mais, não procu­
ra os amigos.” “ Ela não deveria ser tão séria.” “ Como ele vai
conseguir ganhar dinheiro, se só o que faz é desenhar?” “ Esse
menino não é normal” — o que em geral significa “ essa criança
nao é fácil” .

2H
Conheço uma moça que foi mal em todas as séries escolares,
não alcançou as médias para se formar e só pôde fazê-lo por for­
ça de sua personalidade e por ser ótima líder e organizadora. No
último ano ela foi diretora do conselho estudantil, organizando
praticamente tudo o que acontecia na escola. Seu primeiro em­
prego, depois do ginásio, foi como garçonete num restaurante.
Um ano depois, já era gerente do restaurante, e no ano seguinte
tornou-se sócia. Aos 30 anos, produziu dois filmes e tornou-se
executiva de um dos maiores estúdios de cinema. A educação ofe- v
recida no ginásio foi-lhe totalmente inútil; ela aprendeu exerci­
tando seu talento para os negócios e a política, como líder e orga­
nizadora. Então, não são só os artistas.
Pensando bem, vejo que acontece muito.
HILLMRN: Mas nossa cultura não vê assim, não apenas por­
que não temos teorias que nos façam enxergar, mas porque esses
fenômenos (como você diz, não tão incomuns) solapam as teo­
rias que existem, que construíram uma indústria muito lucrativa
e que fazem parte de nossa fé inabalável na história.
V€NTURR: Acho que já temos uma imagem de como seremos.
Sentimos em nós outras pessoas que são mais velhas e conversam
conosco — de algum modo, falam conosco. Há dentro de mim
um homem muito mais velho que conversa comigo diariamente,
silenciosamente, quase sempre com muita gentileza e tolerância.
Às vezes com severidade, quando de fato estou me prejudicando,
mas sempre com muito humor. Gosto imensamente dele; parece
ser minha melhor parte. Nunca tinha pensado em mim mesmo sob
esse enfoque.
Hillman interrompe.
V6NTURR: Não, deixe-me continuar enquanto estou pensan­
do nisso. Quero falar de um outro aspecto ao qual acho que você
não ia se referir. Conheço vários homens que, como eu, têm 40,
quarenta e poucos anos, e já começam a sentir a meia-idade na
pele. “ Meu corpo está me traindo” , dizem eles. Então pintam o
cabelo e mentem sobre a idade. Conheço mulheres da mesma fai­
xa etária, que não são madames de Beverly Hills nem estrelas de
cinema e sim mulheres que nunca pensei que fariam isso fazendo
implante de seios, plásticas — temo que elas estejam insultando
profundamente a anciã que existe nelas. Esses insultos enfraque­
cem nossos anciãos interiores.
Quando elas chegam aos 65 anos, quando chega a vez de a
sexuagenária existir, ela já foi tão insultada e está tão enfraqueci­
da que não vai conseguir fazer sua parte.

29
HILLMRN: Você está dizendo que nâo são apenas os nódulos,
mas que há todo um elenco de personagens que é dado. Também
acho isso. Vi um retrato de uma mulher — ela devia ter uns 44
anos. Era um desenho a bico de pena, muito bonito. Ela não gos­
tava porque a fazia parecer muito velha. Eu disse: “ Esse dese­
nho.^, é a anciã que espera por você no fim do corredor.” Eles
estão todos lá. Essas figuras amigas estão sempre por perto e pre­
cisam ser fortalecidas diariamente, por toda a vida.
Michelangelo chamava-as de “ imagens do coração” .
Sabe, como se pode ter 35 anos de idade quando ainda se tem
25? Deve haver uma aparência de 35 anos que assumimos.
V6NTURR: Então, o que estamos dizendo é: “ Você não sabe
o que vai acontecer, mas sente as pessoas em você. É o seu desti­
no, se a cultura ou a família não tiverem demolido esse jeito de
sentir quando você ainda era pequeno.”
HILLMRN: A aparência das pessoas, as figuras, está tudo lá.
Devemos fortalecer essas figuras à medida que vamos vivendo.
Hillman fa z uma pausa.
Há muito medo de que não haja ninguém lá. Acredito ser es­
se um dos maiores medos que há por trás de pintar o cabelo ou
remover as rugas em torno dos olhos. “ Quando chegar aos 50 anos,
estarei vazio, não haverá mais ninguém.” Que sensação é essa de
vazio? É de não haver ninguém lá.
V6NTURR: E se insultamos tanto o ancião que existe em nós,
se o atacamos sempre que, digamos, xingamos um velho no
trânsito...
HILLMRN: — ou que está na nossa frente no caixa do super­
mercado e não paga logo a conta...
V€NTURR: Sempre que fazemos isso, assustamos e humilha­
mos o velho que há em nós, e ele se retrai tanto que acaba desa­
parecendo.
HILLMRN: Há outra maneira de se fazer isso. Sempre que se
repete a ladainha “ não tenho tempo para sofrer” , sempre que
se ignora uma doença. As doenças são, em parte, uma forma
de nossos velhos se desenvolverem. São maneiras de aumentar
o conhecimento que se tem do próprio corpo. As doenças con­
tam coisas importantíssimas sobre o que se come, o que se passa
nos intestinos, o que acontece com os testículos, o que há na pe­
le. As doenças nos ensinam especialmente a envelhecer. Desva­
lorizá-las e suprimi-las só nos afasta dessas figuras.
Insultamos nossas pessoas interiores pelo que fazemos com
nossa própria fraqueza.

30
V6NTURA: E à medida que vamos envelhecendo, invertemos
tudo e passamos a não gostar dos jovens.
HILLMAN: Ah, sim.
V€NTURA: E quando atacamos os jovens com a mesma impa­
ciência com que atacávamos as pessoas mais velhas, enfraquece­
mos os jovens selves que ainda estão em nós, tal como fazíamos
com os selves mais velhos quando éramos jovens.
HILLMAN: Sem dúvida. Atacamos os jovens que há em nós.
Como você disse, os jovens que nos impulsionam também criam
as fantasias. E então não nos permitimos mais sentir ou imaginar
a sexualidade, não nos imaginamos mais correndo riscos — os jo ­
vens correm riscos espantosos! Simplesmente o fazem! Não nos
arriscamos mais, no sentido de nos soltar, de deixar acontecer.
Há velhos incríveis que conheço e que já foram mestres em
deixar acontecer, pessoas extremamente corajosas — alguns ain­
da o são; não têm medo de atravessar uma rua, de caminhar à
noite.
V6NTURA: Nós rejeitamos e atacamos principalmente os ado­
lescentes; não suportamos ficar perto deles porque nossa própria
adolescência foi muito sofrida.
HILLMAN: A paixão, o romance, as fantasias suicidas da
adolescência...
V6NTURA: E todos aqueles sonhos que não realizamos. Não
há nada pior para se dizer a alguém que “ você está se compor­
tando como um adolescente” .
HILLMAN: Que tal “ está parecendo velho” ?
V6NTURA: Quando se chega aos 40 e à crise da meia-idade,
passa-se novamente por um outro tipo de adolescência e muitas
das cascas são quebradas — mas isso não tem importância, é me­
nosprezado. “ O que é que há com você, está na crise da meia-
idade?”
HILLMAN: Passa-se por outra crise aos 60 anos.
V6NTURA: E se a gente reage e diz: “ É isso mesmo; estou em
crise e é melhor você cair fora” , vão dizer que estou louco. “ Céus,
o Ventura perdeu o juízo!” Mas o que a gente está dizendo mes­
mo é: “ Estou trocando a pele.”
HILLMAN: “ Estou trocando a pele e começando uma coisa,
e quando começo alguma coisa fico meio doido.”
V6NTURA: “ O que é imutável em mim está parado em silên­
cio no centro de tudo o que muda, e muita coisa está sendo aban­
donada.”

31
Eles ficam um tempo em silêncio. A s pessoas que passam pe­
lo banco onde eles estão sentados, os motoristas que avançam len­
tamente na estrada, os banhistas que se deitam ao sol, a tripula­
ção de outro petroleiro que agora apareceu e os marinheiros de
fim de semana que saem com seus pequenos barcos estão fora do
pequeno círculo de silêncio que os rodeia. Por enquanto, nenhum
do dois homens percebe nada.
V6NTURR: Está bem; então a psicologia do desenvolvimento,
a idéia de que tudo o que sou agora foi causado na minha infân­
cia, acaba pondo de lado muita coisa e pode ser bastante ilusória.
É. Mas e todo o tempo e dinheiro que gastei com terapia por ter
sido molestado sexualmente e tudo mais? Foi importante na época.
HILLMAN {rindo): É, deve ter sido. E daí? Se fôssemos mali­
ciosos, diríamos, como Ivan Illich, que foi um modo de manter
o negócio da psicoterapia, que por sua-vez depende em grande
parte de matérias-primas como a agressão, o trauma, o molesta-
mento na infância. E se você for um crente — o que, inconscien­
temente, todos somos — do mito do desenvolvimento e não das
sementes e dos nódulos, da estrutura e da essência, o que aconte­
ceu lá atrás deve ter sido terrivelmente importante. Ora, e quanto
ao fato de as crianças terem sido abandonadas, molestadas e so­
frido agressões durante séculos, sem que ninguém tenha se im­
portado?
V€NTURR: O que tem isso a ver? Eram culturas menos adian­
tadas que a nossa.
HILLMRN: Ora, você não acredita nisso.
V6NTURA: Tudo bem, não acredito. Mas muita gente acredi­
ta e vai além, afirmando que um dos grandes responsáveis pela
destruição social, econômica e ecológica de nosso planeta foram
as centenas de anos de agressão à criança. (A propósito, a histó­
ria também não leva isso em conta. As relações sexuais forçadas
existem entre nós desde os primórdios, a julgar pelos mitos anti­
gos e os contos de fadas, e a destruição do planeta só vem aconte­
cendo ativamente a partir da era industrial, há duzentos anos.)
HILLMRN: O fato de tanta gente sentir-se perturbada com a crian­
ça é exatamente o ponto que levantei antes: o arquétipo da criança
domina o pensamento terapêutico de nossa cultura. Sustentar que
a agressão é a coisa mais séria em nossa cultura, que nosso país
está afundando por causa dela, ou que é ela a raiz da exploração
e vitimização da terra, como dizem alguns, tudo isso é o ponto
de vista da criança.

32
V6NTURR: E é prender-se a ele.
HILLMRN: Não estou dizendo que as crianças não sejam mo­
lestadas ou agredidas. Elas são molestadas e são agredidas; mui­
tas vezes de modo absolutamente devastador. Mas a lerapia pio­
ra ainda mais o fato pelo modo como pensa sobre ele. Não é só ) v
o trauma que causa danos, a lembrança traumática também.
V€NTURA: A terapia, na verdade, agrava a agressão e lucra
com ela, pela forma como a considera. É isso que significa “ lem­
brança traumática” ?
HILLMRN: Bem, digamos que meu pai me ameaçou com uma
cinta ou uma escova, ou me violou e me deu surras medonhas.
Às vezes fazia isso porque estava bêbado, outras só porque era
um maldito brutamontes, outras por não ter ninguém em quem
bater. E eu fico me lembrando dessas agressões. Em minha me­
mória, continuo vítima. A memória ainda faz de mim uma víti­
ma. Além disso, ainda me mantém na posição de criança, porque
ficou presa no ponto de vista da criança e eu não a mudei. Não
é que a agressão a crianças não aconteça — não estou negando
isso e nem que seja preciso acreditar que tenha ocorrido concre-
tamente. Mas preciso ser capaz de pensar sobre a brutalidade —
de reenquadrá-la, como se diz — numa experiência iniciática. Es­
sas feridas que me foram causadas fizeram alguma coisa para que
eu entendesse o castigo. Fizeram-me compreender a vingança, a
submissão, a profundidade do ódio entre pais e filhos, um tema
que é universal — e eu fiz parte disso. Estava no meio disso. En­
tão, mexo na memória e, de algum modo, deixo de ser apenas uma
criança vítima de um mau pai. Entrei nos contos de fadas e nos
mitos, na literatura e nos filmes. Com meu sofrimento, entrei num
mundo a um só tempo traumático e imaginário.
V6NTURR: Você entra naquilo que os povos tribais chamariam
de “ tempo do sonho” .
HILLMRN: Sim. Faz parte do tempo do sonho.
Vé NTURR: Então, isso que lhe aconteceu não foi apenas no
cotidiano, mas também no tempo do sonho, pois tudo o que acon­
tece em um lugar acontece também no outro. “ Tudo o que está
em cima também está embaixo” , diz o velho ensinamento. O fa­
to de ter-lhe acontecido no tempo do sonho significa que a) é um
ato mitológico; e b) não aconteceu há vinte anos, está acontecen­
do agora, sempre aconteceu e sempre acontecerá. O que não é tão
deprimente como parece. Isso quer dizer que o significado pode
mudar sempre. É onde a vida real e a vida mítica se encontram.
É isso que são as feridas.

33
E então temos c), a agressão está no contexto do tempo do
sonho de incontáveis atos mitológicos, alguns brutais e outros mui­
to belos, em vez de somente no mito principal do seu ato.
Então, num certo sentido...
HILLMRN: Fica mais intenso quando é menos pessoal.
V6NTURR: Porque no tempo do sonho, no modo mítico de
pensar, a agressão liga-se a muitos outros fatos cuja importância
é maior que eu.
HILLMRN: A terapia tende a confundir a importância do fato
com a importância do eu.
V6NTURR: Há uma voz dentro de mim que diz: “ Mas de fato
aconteceu, não é só mitológico!” Ao mesmo tempo, pergunte a
um jornalista ou um policial: se você conversar com pessoas so­
bre um fato do qual todas elas participaram ou testemunharam,
serão vários fatos diferentes. Isso acontece na minha própria fa­
mília; se você pedir a mim e a minha irmã que descrevamos nossa
mãe, serão duas mães totalmente diferentes e nenhum de nós es­
tará mentindo. A memória é uma forma de ficção e não podemos
fazer nada quanto a isso. Assim, somos em grande parte criação
das ficções que contamos sobre nós mesmos. E sem saber que o
que contamos é ficção.
HILLMRN: Não percebemos que estamos contando histórias fic­
tícias.
Acho que Freud chegou perto disso quando disse: “ É o que
você se lembra, não o que realmente aconteceu.” É a memória
que na verdade cria o trauma, Hoje em dia, muita gente ataca
Freud, dizendo que ele encobria e não admitia a ocorrência de
agressão em crianças. Quer tenha ocorrido ou não, a idéia de
Freud, tão notável, é que importa o que a memória faz com eles.
Nós não sabemos que estamos contando ficções. Esse é o maior
problema da formação dos psicoterapeutas: eles não aprendem
com a literatura, o teatro, as biografias. O aspirante a terapeuta
faz estudos de casos e diagnósticos, coisas que nem sempre esti­
mulam a imaginação. Por isso não percebe que está negociando
ficções. Isso não quer dizer que as coisas também não sejam reais...
V6NTURR: mas o que se tem no consultório, e não poderia
ser diferente, é alguém contando uma ficção. A forma é uma fic­
ção. Você está certo, é estranho que alguém cujo trabalho consis­
ta em grande parte em ouvir histórias fictícias não tenha familia­
ridade com a literatura, o jornalismo e até os autos processuais,
não tenha aprendido como as pessoas contam histórias.

34
HILLMRN: Em relação à agressão, a verdadeira agressão na
primeira infância, o que mais prejudica, além do choque, horror
e o mais, é o fato de a agressão fazer com que a pessoa tome a
imaginação ao pé da letra. Ou leva a imaginação ao pé da letra
ou dissocia-a em personalidades múltiplas, para que ela se esti­
lhace. E isso é um dano. Mas há jovens entre 13 e 17 anos que são,
digamos, seduzidos pelo padrasto (ou por quem que seja); tem-se
aí uma agressão de qualidade diferente, diferente da agressão a
uma criança de 3 ou 2 anos de idade. Os níveis são bem diversos,
mas foram agrupados num só, de modo que há todo tipo de gen­
te que se diz vítima de molestamento e identificando-se como
uma criança magoada. A sedução nas famílias, como você disse,
é uma coisa muito antiga. Não é o mesmo que violar brutalmente
uma criança. Temos que manter algumas gradações distintivas...
V6NTURA: porque, se não o fizermos, não poderemos refletir
bem sobre o assunto.
Quando as lembranças de abuso sexual começaram a surgir
— o que ocorreu exatamente no dia em que fiz 14 anos —, depois
de um mês batendo o carro e entrando em buracos negros, fui
procurar um terapeuta. Era um homem idoso, junguiano. Eu fa­
lava sem parar da agressão e de minha mãe, e ele, meio sorrindo,
disse-me: “ Sabe, o que aconteceu estabeleceu sua conexão com
os mistérios da alma, não é? E é sobre isso que você escreve, não
é? Ou preferiria escrever sobre outra coisa?”
Fiquei petrificado com o que ouvi. Não diminuiu a raiva nem
o medo que sentia de minha mãe, mas arrancou-me aos trancos
da posição de ver a experiência como criança. Tive que encará-la
do ponto de vista de minha vida adulta. Não que tenha me livra­
do da imensa raiva que sentia por minha mãe ou por outras pes­
soas da minha infância e adolescência que atentaram contra mim,
mas...
HILLMRN: Quando você diz, “ Não me livrei” , pressupõe-se
que essa raiva por sua mãe devesse ir para outro lugar. Eu não
aceito isso.
V6NTURA: Bem, esse pressuposto é amplamente admitido em
nossa cultura e implica que a cólera, a raiva e o sofrimento de­
vam ser processados. É uma palavra que odeio, diga-se de passa­
gem: psique processada, como alimento processado.
HILLMRN: É... como saborosas e finas fatias de queijo. Em­
baladas e etiquetadas.
V6NTURR: Mas o que se deve fazer com esse material senão
processá-lo? Como é que se vai “ individuar” , ou mesmo crescer,
se não se processar tudo isso?

35
HILLMRN: Bem, o que fez Jonathan Swift? Escreveu as sáti­
ras mais notáveis. O que faziam as pessoas nas peças de vingança
elisabetanas ou jacobianas? Esse material é tremendamente po­
deroso. O que fez Joyce com o que sentia pela Irlanda? E Faulk-
ner com o que sentia pelo sul? Esse tipo de processamento é real­
mente difícil. É desse material que se faz a arte. “ Não quero que
me tirem os demônios porque estarão me tirando também os an­
jos” , disse Rilke sobre a terapia. O caráter se faz de feridas e ci­
catrizes. A palavra caráter significa, na sua raiz, “ marcado ou
gravado com linhas profundas” , como as marcas das iniciações.
V6NTURR: Hei, nem todo mundo é artista! Nem todo mundo
é um Joyce ou Jonathan Swift. A maior parte de nós apenas tra­
balha uma ou outra coisa desarrumada. O que nós devemos fazer?
HILLMRN: Não leve os artistas tão ao pé da letra. É que eles
têm um modo de fazer a imaginação trabalhar com essas coisas
poderosas. Eles são meros exemplos de pessoas que usam a ima­
ginação para trabalhar. Por isso é bom ler suas biografias, para
saber o que eles fizeram com seus traumas; mostram o que a ima­
ginação pode fazer — não o que eles fizeram — com a raiva, o
ressentimento, a amargura; com sentimentos de inutilidade, infe­
rioridade e desvalia. Os artistas buscaram na imaginação formas
de processar tudo isso, se preferir.
Outra coisa: com sua pergunta você assume mais uma vez que
não se pode carregar minério bruto por aí. Suponhamos que tu­
do isso seja minério.
V6NTURR: São pedras na psique — “ Tenho pedras na cabeça.”
HILLMRN: Minério, pedras que moldam o caráter, moldam essa
idiossincrasia única que é você. Assim como se tem cicatrizes físi­
cas, tem-se marcas na alma. São as pedras. São o que você é. É
típico de nossa cultura achar que elas possam ser lapidadas. Não
será essa a fantasia da transformação? Todo mundo querendo ser
bom? A serviço dessa fantasia, abusamos de nossa matéria-prima.
Quer dizer, você olha outra cultura e vê pessoas sofrendo com
as circunstâncias da vida. Por “ outra cultura” refiro-me à cultu­
ra da rua — os negros, os latinos e os mendigos que vivem por
aí, a mulher deitada na grama ali na frente.
V6NTURR: É, se você for artista, saberá que todo esse mate­
rial é seu minério — eles sabem, e por isso tantos passam longe
da terapia. Não querem que seu minério seja mal processado.
HILLMRN: O que impede que o minério seja valorizado como
tal é a obsessão com o processamento, a obsessão com a idéia de

36
torná-lo uniforme. Não é nada perigoso, a menos que se acredite
que o minério não deva existir. É a isso que me refiro quando di­
go que a atitude terapêutica fere o verdadeiro potencial das pes­
soas. Como diria Ivan Illich, a terapia quer melhorar o sofrimen­
to do minério. E nossa cultura aceita a idéia que ele precisa
m e l h o r a r . ____________________________
V6NTURA: Então, se é isso que a terapia não pode, não deve
fazer, o que é que ela podei
HILLMAN: Fazer-com-que-as-coisas-sejam-sentidas.
Chamava-se isso de supressão da repressão e integração à cons­
ciência. Prefiro dizer, fazer com que as coisas sejam sentidas.
Vejo isso como uma espécie de abertura de canais, galerias
e túneis; uma obra gigantesca de abertura de passagens secundá­
rias, intercaladas com todo tipo de tubulação, para que as coisas
fluam umas em direção às outras. Memórias, fatos e imagens, tu­
do é reavivado. E o que sentimos pelo minério fica mais sutil. En­
sinar a apreciá-lo: isso é o que a terapia pode fazer.
V6NTURA: Então você não está dizendo que não se faça tera­
pia.
HILLMAN: O que estou dizendo é: “Se você fizer terapia, cui­
dado com a conivência entre o terapeuta e sua parte que não quer
sentir o minério, aquela que o processa.” Há muitas formas de
reprimir o que se sente pelo minério e uma delas é processá-lo.
As várias escolas de terapia têm diferentes sistemas de processa­
mento, mas todos são fixadores. A meu ver, fixar o que está erra­
do é reprimir o minério.
V6NTURA: “ Processar” , freqüentemente, é “ repressão” dis­
farçada! Isso é mesmo engraçado.
HILLMAN: “ Isso dói m uito!” E a primeira reação para ver-se
livre da dor é perguntar: “ O que faço com ela? O que devo to­
mar?”
V6NTURA: “ Que denominação clínica posso dar?”
HILLMAN: “ Qual é o tratam ento?” Essas são maneiras de li­
dar com “ isso dói” . Mas até que se entre na dor, até que se tenha
explorado a ferida, nada se sabe sobre ela. Não se sabe porque
existe. Por que a psique colocou-a ali?
V6NTURA: “ Explorar a ferida” soa tão suspeito quanto pro­
cessar. “ Trabalhar para vencer os obstáculos...”
HILLMAN: é o termo pelo qual o processamento é usualmente
conhecido. Não é a isso que me refiro quando digo “ explorar a
ferida” . A pergunta é: “ Como é que a terapia realmente funcio-

37
na?” Não tenho certeza de que a terapia em si — isto é, os in-
sights, as compreensões, as recordações, sua participação nelas,
fazer com que aflorem, observar os padrões, abreacting...
V6NTURA: O que quer dizer abreacting?
HILLMAN: Quer dizer “ tirar para fora” — não estou certo se
algum desses modos de exploração interior, que se supõe serem
formas de processamento psicológico, realmente fazem isso. Acho
que o que faz são os seis meses ou seis anos de pesar e lamenta­
ção. O longo ritual da terapia.
V€NTURfí:;Ah...
HIllMflN: As horas mudas.
V6NTURA: Regredir sempre, voltar cada vez mais, falar tan ­
tas vezes sobre a mesma porcaria, sem se im portar com o que se
diz ou se pensa, mas voltando sempre para ela.
HILLMAN: Até que não seja mais a mesma. O corpo absorve
o golpe. Mas não sei se isso acontece porque você a processou,
porque teve um insight, ou porque a compreendeu. Acho que po­
deria também acontecer a uma mulher que chora aos pés do altar
de São José.
V6NTURA: Porque você fica sentado com a porcaria.
HILLMAN: Sentado nela.
V6NTURA: Dentro dela. E estar nela, da forma que for, é
explorá-la.
HILLMAN: Você fica um pouco nela, depois fica com ela, e
depois a visita.
V€NTURA: E então ela anda ao seu lado e não mais em cima
de você.
HILLMAN: E pode até seguir seu curso.
V6NTURA: E por que isso não seria um processamento?
Hillman fica em silêncio.
V6NTURA: Vou lhe dizer por que não é um processamento.
Porque você não está pegando, purificando, transform ando uma
coisa em outra.
HILLMAN: Não está transform ando.
V6NTURA: Processar implica fazer do minério um arado; fa­
zer dele uma ferramenta para uma vida mais eficiente. E implica
que, de algum modo talvez mágico, se fizer isso o minério deixa­
rá de existir.
HILLMAN: “ Posso usá-lo ou livrar-me dele; é uma grande bes­
teira tê-lo por perto quando não serve para nada, mas continua
lá.” É isso que faz de nós, os brancos americanos, psicologicamente

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amadores e inocentes. Não temos tudo o que precisamos em nos­
sa psique porque estamos constantemente tentando nos livrar do
minério! Não somos psicologicamente sofisticados.
Prefiro não afirmar se é ou não é processado. É melhor di­
zer: “ O que acontece se chamarmos isso de processamento?” Você
descreveu o que acontece: ou a pessoa tenta se livrar dele ou torná-
lo útil. É uma exploração. A noção de transformação que preva­
lece na terapia é: transform e o inútil em algo útil.
V6NTURR: A ideologia de consumidor. Você consome sua psi­
que como consumidor e como carnívoro.
HILLMRN: E também como industrial: tira lucro dela.
V6NTURR: E a psique não gosta nada. O que ela diz então?
“ Está bem, vou fazer de você um chato!”
HILLMRN {rindo): Achei que você fosse dizer outra coisa. Achei
que diria: “ Muito bem, aqui vai mais uma queixa!”
V6NTURR: Se ela ainda gostar de você, vai lhe dar outra chance
apresentando-lhe algo novo para lidar. Mas se já estiver cheia,
dirá: “ Vou fazer de você um chato.”
HILLMRN: E você vira um queijo processado.
V6NTURR: Que está no ponto, bem temperado, e como você
não quer “ sair do ponto” , vai evitar os extremos. Talvez até te­
nha um bom casamento com alguém tão chato quanto você.
HILLMRN: Felizmente, em geral isso não funciona; os deuses
não o permitem.
VÉNTURA: Concordo. Esses deuses do casamento são loucos.
HILLMRN: Ges querem muito mais.
V6NTURR: E a psique diz aos terapeutas, especialmente: “ Vou
fazer de você um chato.” Conheço muitos que se queixam disso.
HILLMRN: Ah, sim. A atmosfera repressiva da terapia...
V6NTURR: repressiva para o terapeuta...
HILLMRN: pois prega que a psicologia tem que ser respeitá­
vel. Isso produz forte repressão no psicólogo de hoje. Não temos
permissão de andar pelas ruas. Temos que ter cuidado, ser corre­
tos; nem extremistas nem radicais, não nos misturar aos pacien­
tes no mundo exterior. E isso faz vergar nosso pensamento para
uma psicologia da classe média branca. Um amigo me disse: “ O
problema de envelhecer como terapeuta é não poder permitir que
minha excentricidade se expanda.” Porque o que se espera do te­
rapeuta é que ele seja assíduo, pontual, uma pessoa enquadrada
e razoável. O terapeuta incorpora inconscientemente o objetivo
da terapia.

39
V6NTURR: O terapeuta incorpora inconscientemente o obje­
tivo inconsciente da terapia.
HILLMRN: Bem, não é o meu objetivo. O objetivo de minha
terapia é a excentricidade, derivada da noção junguiana de indi-
viduação. Jung diz: “ Você se torna o que é.” E ninguém é en­
quadrado. Todos temos, como dizem os suíços, um canto a menos.
V6NTURR: Não é processar e nem crescer, porque dá no mes­
mo, porque são atitudes consumistas perante a vida. Então o que
poderia ser?
HILLMRN: Acho que é vida. É isso mesmo. Significado: viver
a vida. Rousseau disse: “ Aquele que dentre vocês for o mais bem-
educado é o que levará consigo as alegrias e as tristezas da vida.”
A educação estava relacionada às alegrias e tristezas. Você prefe­
re chamar de educação? Mas isso também não seria muito chato?
V6NTURR: Há também todas as palavras que os adeptos da
Nova Era tornaram tão desagradáveis, como “ jornada” .
HILLMRN: Vou lhe dizer o que sinto. Sinto que é uma missão,
uma devoção.
V6NTURR: A quê?
HILLMRN: Aos deuses. Sinto que essas coisas ocorrem e que
são o que a psique quer ou envia a mim. O que os deuses enviam
a mim. H á uma passagem encantadora de Marco Aurélio: “ Em
tudo o que faço tenho sempre em mente a comunidade. O que
acontece a mim, o que recai* sobre mim, vem dos deuses.” E “ re­
cai” é uma palavra muito importante, porque é dela que deriva
a palavra “ ocorrência” : cadere, cair. Em alemão, a palavra para
“ ocorrência” é fali. Então, o que recai sobre a gente é o que nos
acontece, é também a origem da palavra grega pathos — o que
despeja sobre, o que fere, o que acontece, o que cai sobre, como
a gente cai, como os dados caem.
V6NTURR: Sabe, nós estamos dando voltas em torno da pre­
missa básica da vida americana que contaminou a terapia: “ As
coisas deveriam estar certas. Se não estão, é porque estão muito,
muito erradas.”
HILLMRN: Então o que acontece com o pathos, a patologia
da nossa vida, “ aquilo que não pode ser aceito, não pode ser mu­
dado e que não desaparece?”
V6NTURR: Você passa o resto da vida com ele.
HILLMRN: O que vem a ser uma devoção. Uma missão. O que
mais se pode fazer?

* No original, befall. (N. do E.)

40
Longa pausa.
O que mais se pode fazer?
Essa é a limitação humana. É o que os gregos diriam: ser mor­
tal é ser trágico.
VéNTURR: Então não temos uma palavra para substituir pro­
cesso, e talvez não queiramos tê-la!
Am bos riem.
HILLMRN: Certo. É melhor assim. Nós não temos uma pala­
vra que substitua processo...
HILLMRN E V6NTURR: e não queremos ter.
HILLMRN: Nem estamos em processo de querer.
VéNTURA: Porque faz parte do conceito de processo encon­
trar uma palavra para substituí-lo e mandar tudo para o inferno.
Também não temos palavra que substitua crescimento', e talvez
não queiramos tê-la.
Estamos falando sobre viver.
HILLMRN: Aceitar também.
V€NTURA: Aceitar esse peso.
HILLMRN: Espere. Aceitar o peso não é aceitar o peso do H o­
mem. Esse tem sido o grande erro. “ Fiz minha parte.” Não es­
tou falando de servir ao Homem. É aí que a rebelião e a subver­
são são importantes. Estou falando de servir aos deuses.
V6NTURA: Qual é a diferença?
HILLMAN: Você pode livrar-se do Homem. Pode mandá-lo ca­
lar a boca.
V6NTURA: Mas com os deuses não dá.
HILLMAN: Você pode até alcançar o Nirvana, mas os deuses
saberão onde está.
Não sei se os deuses nos amam, como dizem aos cristãos, e
nem se estão muito interessados em nossas decisões e preocupa­
ções, mas certamente não desistem fácil de nós. Na Itália, os edi­
tores intitularam um de meus livros A fuga inútil dos deuses. Co­
mo você vê, eles vêm até nós através de nossas patologias, por
isso a patologia é tão importante. É a janela por onde entram os
demônios e os anjos.
V6NTURA: Eles não nos amam, mas não nos deixam livres.
Isso lembra um pouco a família.
HILLMAN: “ Evocados ou não, os deuses se fazem presentes.”
Jung colocou esse dístico em latim sobre a porta de entrada de
sua casa. Esculpido em pedra. Então, podemos também servir a
eles de bom grado.]É como entendo a vontade humana: é sim­
plesmente fazer o que deve ser feito, voluntariamente.I

41
V6NTURA: Eles não nos amam, mas continuam presentes.
Butch Hancock tem uma música que diz: “ Ela era um exemplo
de bondade, ela nunca me deu uma folga.” Eles nos amam e fa­
zem a mesma coisa.
Ele fica um pouco em silêncio.
“ Servir ao Homem” significa reconciliar-se com o sistema,
a autoridade, o que é muito diferente de servir aos deuses. Nin­
guém pode rebelar-se contra os deuses — ou pode, mas esse é só
outro passo da dança. É melhor rebelar-se contra a autoridade.
Pelo menos é assim que entendo. E para você, como é?
HIllMAN: Veja. Nosso pressuposto, nossa fantasia na psica­
nálise, tem sido processar, crescer e nivelar as coisas para que não
tenhamos mais emoções diante de fatos fortes e perturbadores.
V€NTURA: É bem provável que isso esteja além das possibili­
dades humanas.
HILLMAN: Mas se a análise tivesse outras fantasias próprias,
o consultório se transformaria numa célula onde se prepara a re­
volução?
V6NTURA: O quê?
HILLMAN: Poderia...
V6NTURA: poderia o consultório ser uma célula onde é pre­
parada a revolução? Jesus! Isso é possível?
HILLMAN: Por revolução refiro-me à grande virada. Não a um
desenvolvimento nem a um desdobramento, mas a virar pelo avesso
o sistema que faz você procurar antes a análise — um sistema
governado por minorias e por conspiradores, segredos oficiais, se­
gurança nacional, poderes corporativistas, et cetera. A terapia
poderia imaginar-se investigando as causas sociais imediatas, mes­
mo mantendo o vocabulário de abuso e vitimização — sofremos
menos abusos e fomos menos vitimizados em nossa vida pessoal
passada do que pelo sistema atual.
É como desejar que seu pai o ame. Desejar o amor do pai é
imensamente importante. Mas o pai não satisfaz esse desejo seu.
Você não abre mão do desejo de ser amado, mas quer parar de
pedir isso ao seu pai; ele é o objeto errado. Aí não quer se livrar
da sensação de que estão abusando de você — acho que isso é im­
portante, a sensação de que estão abusando de nós e de que somos
impotentes. Talvez não devêssemos imaginar que somos agredidos
por nosso passado mais do que pelas atuais situações como “ meu
emprego” , “ minhas finanças” , “ meu governo” — tudo isso com
que convivemos. Então o consultório torna-se uma célula revolu­

42
cionária, porque nós também estaríamos indagando “ o que está
mais me agredindo neste momento?” Seria uma grande aventura
se a terapia fizesse isso.
V6NTURR: Vamos voltar um pouco. Você disse que a análise
poderia ter novas fantasias próprias? Que fantasias são essas? Para
a maior parte das pessoas elas estão associadas ao “ irreal” .
HILLMRN: Ah, não, não. A fantasia é a atividade natural da
mente. Jung disse: “ A atividade primária da vida psíquica é a cria­
ção de fantasia.” A fantasia é um modo de perceber as coisas,
de pensar sobre elas, de reagir a elas.
V6NTURR: Então, toda percepção, nesse sentido, é fantasia.
HILLMRN: Existe alguma realidade que não seja enquadrada
ou moldada? Não. A realidade sempre nos chega através de um
par de óculos, de um ponto de vista, de uma linguagem — uma
fantasia.
V6NTURR: Mas para que a terapia tome essa nova direção,
tenha essa nova percepção ou fantasia de si mesma, acho que pre­
cisa redefinir alguns de seus conceitos básicos.
Hillman sorri, olha ao longe. A luz mudou, o sol logo estará
se pondo, a brisa do mar de repente ficou fria. A mendiga enrola-se
em sacos de lixo e murmura alguma coisa. O tráfego na estrada
volta ao normal. A s luzes do petroleiro estão acesas e logo ele de­
saparecerá no horizonte. E as luzes do pier de Santa Monica tam­
bém acenderam, tristes como a alegria forçada.
HILLMRN: Talvez a idéia de self tenha de ser redefinida.
V6NTURR: Isso seria revolucionário. Se pegasse, acabaria mu­
dando toda a cultura.
HILLMRN: A idéia do self deve ser redefinida. A definição da
terapia vem das tradições protestante e oriental: o self é a interiori-
zação de um deus invisível e distante. O divino interior. Mesmo
que esteja disfarçado em um mecanismo de equilíbrio autopropul-
sor, autônomo e homeostático; mesmo que esteja disfarçado em
uma profunda intenção de integrar toda a personalidade, ainda
assim é uma noção transcendental, com implicações, senão com
raízes, teológicas. Eu preferiria definir o self como interiorização
da comunidade. E se fizermos esse pequeno movimento, sentire­
mos tudo de modo muito diferente. Se o self fosse definido como
a interiorização da comunidade, as fronteiras entre eu e o outro
seriam muito menos claras. Eu estaria comigo mesmo quando es­
tivesse com outros. E não estaria sozinho quando estivesse cami­
nhando, meditando, ou em meu quarto, imaginando ou trabalhan­
do os meus sonhos. Na verdade, eu estaria longe de mim mesmo.

43
E os “ outros” não incluiriam somente outras pessoas, por­
que a comunidade, do modo como a vejo, é algo mais ecológico,
pelo menos mais animista. É um campo psíquico. E se não estou
num campo psíquico com outros — com pessoas, prédios, ani­
mais, árvores — eu não existo.
Então, não se trata de “ penso, logo existo” . (<Cogito ergo sum,
como disse Descartes.) Mas, como ouvi outra noite, “ convivo,
logo existo” . Convivo ergo sum.
V€NTURR: Sem dúvida, essa é uma redefinição de self.
HILLMRN: Sabe, grande parte de nossa vida é pianíaca. Posso
ver 34 canais de TV, posso usar o fax para me comunicar com
pessoas em toda parte, posso estar em muitos lugares ao mesmo
tempo, posso sobrevoar o país de ponta a ponta; alguém me aguar­
da ao telefone, e eu posso atender duas chamadas ao mesmo tem­
po. Vivo em toda parte e em lugar nenhum. Mas não conheço meu
vizinho. Quem mora no apartamento ao lado? Quem mora no
14-B?
Não sei quem é, mas estou falando ao telefone, uso o telefo­
ne do carro, do banheiro, do avião; tenho uma amante em Chi­
cago, moro com minha mulher em Washington, a ex-mulher mo­
ra em Phoenix, minha mãe, no Havaí, e meus quatro filhos estão
espalhados pelo país. Os fax chegam dia e noite, tenho acesso a
todas as bolsas de valores do mundo, os fundos de commodities,
estou em toda parte, amigo — mas não sei quem mora no 14-B.
Percebe que a hipercomunicação e a hiperinformação parti­
cipam do que mantém a alma a distância?
V6NTURR: Ãh, sim. É isso mesmo. Más... talvez por ser um
escritor, ou porque tive essa formação — quando estou só é quando
me sinto mais eu mesmo.
HILLMRN: Não é por ser um escritor e nem por ter se forma­
do assim. Esse treinamento começou há uns dois mil anos.
VÉNTURR: Como?
HILLMRN: É um treinamento que enfatiza o recolhimento, a
interiorização — no sentido agostiniano de confissão, ou no sen­
tido jeronimiano de retirar-se para o deserto. É o resultado de uma
longa disciplina para afastar-se do mundo natural da comunida­
de. É uma noção monacal. Uma noção santificada.
E há outra razão para você ter a convicção de que é mais vo­
cê mesmo quando está sozinho: é mais familiar. Você vive uma
rotina de hábitos, repetitiva. “ Isso sou eu, porque está no mes­
mo padrão” ; é reconhecível. Quando estamos com outra pessoa, fi­

44
camos afastados de nós, porque o outro flui para nós e nós fluímos
para ele; há surpresas, perdemos um pouco o controle e passamos
a achar que esse não é nosso self verdadeiro. Perder o controle
é a comunidade agindo através de nós. É o nosso locus agindo
através de nós.
V6NTURR: Mas se isso acontecer por muito tempo, acabare­
mos na Praça Nuremburg com o braço erguido. Ou mais perto
de casa, balançando bandeiras e fitas amarelas por razões que nem
sequer nos preocupamos em entender. Isso é a comunidade agin­
do através de você. Se a comunidade age através da gente por muito
tempo, paramos de existir. E quando não existimos desse modo,
estamos abertos a qualquer força, idéia ou demagogia que nos quei­
ra possuir.
HILLMRN: Por que você usa essa imagem de multidão e de con­
formismo fascista quando abrimos mão do conceito de self?
V6NTURR: Porque já sofremos muito neste século, e continua­
mos sofrendo, pelo fato de as pessoas terem aberto mão da sua
individualidade.
HILLMRN: Isso é verdade. Mesmo assim, acho interessante que
tenhamos nos utilizado dessa imagem. Não usamos a imagem de
uma sociedade tribal, onde eu ainda continuo sendo o João-
Perneta.
V6NTURR: É verdade. É um detalhe interessante, muito sig­
nificativo, que nas sociedades tribais, nas quais achamos existir
pouquíssima individualidade, as pessoas tenham os nomes mais
individuais. Nomes que derivam de seus sonhos e de suas ações
e que raramente se repetem ou são transferidos, por serem tão in­
dividuais. É como se, por se compatilhar tanta coisa e transferir
tantas outras, a individualidade passasse a ser tratada com mais
respeito pela comunidade.
HILLMRN: Na vida e na religião tribais freqüentemente há lu­
gar para pessoas diferentes — homossexuais, visionários, eremi­
tas, pessoas com dons ou poderes especiais. Isso também não era
desconhecido nas aldeias. E nem na vida urbana dos antigos gre­
gos. Não que fossem sociedades perfeitas...
Vé NTURA: pois a perfeição não é uma possibilidade hu­
mana...
HILLMRN: mas temos exemplos de se/ves-como-comunidade
que não são totalitários e que respeitam a individualidade.
Eu não aceito essas oposições simplistas — ou o controle do
self individual, ou a massa totalitária e insensata. Esse tipo de fan-

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lasia nos faz temer a comunidade. Ela nos tranca dentro de nos­
sos selves isolados, completamente sozinhos, ansiando por cone­
xões. De fato, a idéia de render-se à multidão facista resulta do
self isolado. É o velho ego apolíneo, altivo e límpido, assustado
com a turbulência dionisíaca.
Temos que pensar na comunidade como uma categoria com­
pletamente diferente. Não são indivíduos que se juntam e se rela­
cionam e nem é a massa. Para mim, comunidade significa sim­
plesmente o pequeno sistema no qual estamos situados num dado
momento e que pode ser o escritório, a casa com seus móveis, a
comida e o gato, ou conversar no vestíbulo com o vizinho do 14-B.
Em cada caso o self é um pouco diferente, e o self verdadeiro é
o seu self tal como ele é em cada situação: um self entre outros,
não um self isolado.
V6NTURR: E quando perguntamos, “ E as pessoas do 14-B?” ,
será que é porque as respeitamos como parte da comunidade, ou
como indivíduos? Nem um nem outro, se escolhermos ficar to ­
talmente desconectados delas. E se elas aceitarem ficar separadas
de nós, também não estarão respeitando nenhum de nossos pa­
péis. Afinal, estamos falando de vizinhos. Sim, ignorar o fato de
que se é ou se tem um vizinho é um profundo desrespeito, pelo
outro e por nós mesmos, e é exatamente o que acontece hoje em
dia em nossas cidades e subúrbios. Eu admito que ignoro meus
vizinhos e aposto que você faz a mesma coisa.
HILLMRN: Acho que é absolutamente necessário, hoje em dia,
para a nossa vida espiritual, ter uma comunidade para se viver.
Sem dúvida, tenho amigos queridos de há mais de trinta anos que
vivem hoje em Burma, ou no Brasil. E eles estão à minha disposi­
ção quando eu precisar, em caso de emergência. Mas isso basta?
Para a manutenção do mundo? Definitivamente, não. Penso que,
para manter o mundo, esse tipo de comunidade, a local, exige pres­
tação regular de serviços. E é muito desagradável, difícil de agüen­
tar, dar-se conta da quantidade de serviços que se espera que pres­
temos — não o amigo distante, mas os vizinhos do 14-B.
V6NTURR: O que a terapia poderia fazer com isso? Quer di­
zer, com os rebeldes e dissidentes?
HILLMRN: Parte do tratamento dessas dificuldades é olhar a
agenda de alguém, suas anotações, suas listas. Porque a agenda
é uma das nossas maiores defesas.
V6NTURR: Discutir minha agenda?

46
HILLMRN: Exatamente. Vou dizer uma coisa: tenho encontrado
resistência muito maior do que você imagina quando tento mexer
na agenda de alguém, ou modificá-la.
V6NTURA: Iria encontrar um caminhão de resistência se ten­
tasse mexer na minha.
HILLMRN: Você nunca faz perguntas à sua alma quando or­
ganiza sua agenda?
V6NTURA {gemendo)'. Minha alma acaba de me soprar: “ Ele
nunca faz isso!”
HILLMRN: A tarefa passa a ser, então, descobrir como a alma
acomoda-se ao seu dia. Em relação aos sonhos, às pessoas, ao tem­
po de que você dispõe. Porque a defesa maníaca contra a depres­
são é manter-se extremamente ocupado — e ficar muito irritado
quando se é interrompido. Esse é um dos sintomas da condição
maníaca.
V6NTURR: Eu e muitas pessoas que conheço, em geral, somos
muito ocupados para sermos qualquer outra coisa. Sim, é manía­
co e de certo modo sabemos disso. Você diz que é uma defesa con­
tra a depressão. Voltando ao que dizíamos e supondo que a fonte
da depressão esteja no presente e não em vinte, trinta anos atrás,
a questão é: que depressão crônica é essa — depressão como indi­
víduos, como cidade, como cultura — que tentamos evitar sendo
maníacos crônicos?
HILLMRN: A depressão que estamos tentando evitar pode muito
bem ser uma reação prolongada e crônica ao que estamos fazen­
do com o mundo, o lamento e o pranto pelo que temos feito à
natureza, às cidades, a povos inteiros — a destruição de grande
parte deste mundo. Estamos deprimidos em parte por ser essa a
reação da alma ao nosso lamento e pranto inconscientes. A dor
de ver destruídos os arredores de onde me criei, de ter perdido
a terra produtiva que conheci quando criança...
V6NTURA: e a sensação dos mais jovens de que certas coisas
pertencem ao passado, pois eles não as conheceram e jamais co­
nhecerão...
HILLMAN: tudo o que se perdeu e desapareceu. Porque é com
isso que se parece a depressão.
Pinta-se a história nacional de rosa e branco e a pessoal de
cinza. Estamos sempre prontos para admitir que estamos-presos
a nossa história pessoal, mas nunca se ouve dizer o mesmo em
relação à história nacional.

47
V€NTURA: Ou em relação à história de nossa civilização. O
que, de modo inverso, vem a ser um indicador de quanto acredi­
tamos realmente no self como interiorização da comunidade; por­
que negamos demais a importância das histórias nacional e cultu­
ral e seu obscurantismo. Não as negaríamos tanto se não fossem
tão importantes. A força da rejeição dá a medida do tamanho do
medo e da perda.
HILLMAN: Acho que também perdemos a vergonha. Dizemos
que nossos pais nos envergonharam quando éramos pequenos, mas
perdemos a vergonha diante do mundo e dos oprimidos, vergo­
nha de estarmos errados, de estarmos em dívida com o mundo.
E transformamos essa vergonha em culpa pessoal.
Talvez a forma de iniciar a revolução seja tomar partido da
própria depressão.
V6NTURA: Isso é deprimente. Existem tantas coisas contra as
quais se revoltar! Tantos pensamentos feios, no fundo movido pelo
dinheiro, a desculpa para tanta estupidez e crueldade. Mas come­
çamos dizendo que as coisas, os objetos, não são passivos, e que
através deles o mundo está revidando. E daí?
HILLMAN: Veja bem: toda grande mudança exige uma destrui­
ção. Chernobyl — parece que não nos afetou aqui, nos Estados
Unidos, mas na Europa ninguém podia comer verduras, beber lei­
te; a carne de rena na Escandinávia foi contaminada. Isso altera
imensamente os valores. De repente certas coisas dão vida e ou­
tras são mortais. Até certo ponto, o dinheiro não conta mais; Cher­
nobyl não tem preço. Então, a mudança do pensamento básico fi­
nanceiro começa através de sintomas. Começa por intermédio do
veneno. Valdez, Bhopal e Chernobyl intoxicaram seus arredores,
tomando-os maus e venenosos — isso vai além do dinheiro. A amea­
ça da morte nos faz ir além dos valores determinados pela econo­
mia. Depois das catástrofes o dinheiro perde o valor. A natureza,
e a qualidade da alma passam a ser os yalores supremos. Pergun­
tamos: isso é bom? Isso é útil, é belo? E não “ quanto custa?”
V6NTURA: Isso certamente seria revolucionário. Alterar a na­
tureza dessa pergunta fundamental — quanto custa? — mudaria
tudo. E o consultório poderia tornar-se uma célula revolucioná­
ria, se a terapia localizasse nossos problemas mais no presente e
dirigisse nossa atenção para o mundo, em vez de apenas para den­
tro, porque, no final, a pergunta acabaria sendo “ quanto custa?”
“ Qual é realmente o preço que pago por minha vida?”
Ventura ri.
HILLMRN: O que foi?
V6NTURR: Imediatamente, este meu ganancioso e pequeno self
privado, este que só se importa com seus relacionamentos e gos­
taria de mandar as pessoas do 14-B cuidarem da própria vida, é
ele que salta à frente e pergunta: nessa nova terapia revolucioná­
ria, onde fica o a-m-o-r?
HILLMRN: Sabe, às vezes tenho uma sensação — é lenta e lem­
bra muito estar com a pessoa amada, tomar um café da manhã , ■
agradável, comei uma coisa gostosa... Tudo isso tem a ver com
a beleza, a substância do amor. Acredito que “ trabalhar” os re­
lacionamentos pessoais estraga tudo. Esse “ trabalho” não é esté­
tico nem sensual, que, para mim, são o próprio amor. Estético,
sensual e bastante prazeroso. O amor não é resultado de algo que
se trabalhe. Então, a forma como a terapia aborda o amor, acla­
rando os relacionamentos, pode esclarecer os distúrbios de comu­
nicação, as inibições, a insensibilidade habitual; pode até melho­
rar o sexo, mas não acho que libere o amor; não acredito que o
amor seja algo que possa ser trabalhado.
V6NTURR: Nas últimas décadas, nossa cultura tem andado bas­
tante ocupada tentando esquecer essa diferença — entre um ‘‘rela­
cionamento” e o “ am or” . Usar a palavra estética num “ relacio­
namento” ia fazer com que muita gente trocasse olhares de espanto.
HILLMRN: O'amor e isto — estético e sensual. E quando esses
aspectos não entram em ação, a outra pessoa vira um pouco um
camelo que carrega todo o peso pelo deserto desse relacionamen­
to — além da própria bagagem, também a do outro. Não admira
que os camelos salivem tanto.

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