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Esta pesquisa visou entender como se constituí a percepção do Novo Mundo na obra

Historia Natural y Moral de las Indias (1590) de José de Acosta (1540-1600).


O desenvolvimento da ciência de forma constante e linear é um conceito já ultrapassado
em várias áreas de estudo, visto que a ciência assim, como outros campos, é um lugar de
fortes oposições políticas. Contudo, a compreensão do conhecimento geográfico ainda
demonstra uma certa inocência em sua abordagem por certos autores, ao entenderem
que a descrição representa a realidade.
Antes de analisar a obra e o contexto que a permeia, deve-se problematizar o conceito
de “espaço”, a principal questão que a IC visou tratar. A noção espacial geralmente é
compreendida pelo senso comum como algo igual a todos, expressa por um sistema
numérico. Essa explicação demonstra-se incapaz de perceber os diversos sentidos que se
atribuem aos espaços. O modelo numérico também é falsamente compreendido como
uma representação exata da natureza, esquecendo-se que a organização dessa noção
matemática, em muitos casos definida em latitudes e longitudes, também passa por uma
percepção ideológica. Portanto, a definição de espaço não é compreendida de uma
maneira somente e não está isenta de ideologia. Isso ocorre porque o sentido atribuído a
cada espaço e a forma como vemos as distâncias alteram-se segundo a posição política e
cultural do observador. Assim, relatos geográficos também constituem uma determinada
ideologia. Ricardo Padrón, em sua obra The Spacious Word, principal referência teórica-
metodológica da pesquisa, critica essa visão simplificada e homogênea da geografia.
Considerando-se que a noção de espaço não é uma mera representação da natureza, mas
uma opção do geógrafo, ou cosmógrafo no contexto histórico analisado, é necessário
entender as divisões do campo de saber geográfico do século XVI para analisar como
Acosta constrói sua obra. Segundo Klaus Vogel, a cosmografia era a área de
conhecimento responsável pelo entendimento espacial. Ela estava contemplada três
dimensões: A “cosmografia” indica o estudo do cosmos, ou seja, a constituição do
mundo. A segunda dimensão seria a “geografia”, responsável pela compreensão de
continentes e regiões. A terceira e última, a “corografia” dimensão responsável por áreas
localizadas, como cidades e portos. Contudo, o estudo espacial nesse momento ainda se
dividia em três abordagens: a filosofia natural, compreendendo o funcionamento do
mundo; a cartografia, representando este mundo; por fim, a descrição literária. Esta
última, a representação de regiões por meio da palavra escrita, é a abordagem adotada
pela fonte estudada.
Com a conquista militar e colonização europeia das regiões chamadas de “Novo
Mundo” iniciada no século XV, estudos cosmográficos tornaram-se instrumentos e
mecanismos das coroas europeias para compreender essas novas regiões. Portanto, a
cosmografia, neste momento histórico, desenvolveu-se como um instrumento para
motivações imperiais, principalmente de Portugal e Espanha. Criação de instituições
como a Casa de la Contratación em Sevilha em 1503 representam a interação política
com essa forma de saber. Entretanto, nesse momento também existiam cosmógrafos
independentes ou ligados a outras instituições além das coroas, mas o uso político da
geografia foi bastante expressivo nesse momento. O autor Mauricio Olarte demonstra
como o uso do conhecimento, que mais tarde formará a ideia de ciência, atuava então no
campo político.
Foi neste contexto de novos modelos de compreensão e uso da geografia que o jesuíta
José de Acosta produziu a sua obra Historia Natural y Moral de las Indias. Acosta foi
um missionário jesuíta, nasceu em 1539 e morreu em 1600. A obra do jesuíta foi escrita
após sua viagem feita ao vice-reino do Peru em 1572, num total de 14 anos, depois foi
ao México em 1586 e voltou a Espanha em 1587. Sua Historia natural y moral de las
Indias, publicada em 1590 em Sevilha pela Casa de Juan de Leon, trata de diversos
assuntos desde a configuração espacial do globo até as populações nativas americanas,
dividida em sete livros colocados em dois volumes. O primeiro volume trata da História
Natural em quatro livros, abordando a fauna e flora do Novo Mundo. O segundo analisa
a História Moral, tratando dos povos que residiam no continente. Esta pesquisa dedica-
se aos aspectos geográficos descritos, portanto a análise da fonte privilegiou os quatro
primeiros livros.
A escolha desse livro foi feita pela importância da obra para o ensino jesuíta, e tratando-
se de uma figura religiosa, ela traz para o estudo a percepção de como era tratada a
relação entre religião e conhecimento empírico nesse contexto histórico.
O estudo que Ricardo Padrón fez de diversos cronistas espanhóis sobre o continente
americano serve de exemplo metodológico para entender como a descrição geográfica
atua para formular uma narrativa do lugar descrito. Pautando-se nessa questão, fez-se
uma divisão da argumentação do jesuíta em três campos: a relação com os autores
clássicos sobre cosmografia, a experiência de Acosta nas regiões colonizadas e a
tradição bíblica. A divisão foi um recurso metodológico, uma vez que a obra de Acosta
não é dividida desta maneira. O intuito da pesquisa foi entender como esses três campos
se entrelaçam para constituir uma narrativa sobre o espaço deste novo continente.
O conhecimento clássico mostra-se na obra principalmente pelas referências a
Aristóteles. O jesuíta posiciona-se crítico aos escritos desse pensador, detalhando como
teorias cosmográficas antigas, como a da impossibilidade de vida na zona tórrida, não
foram comprovadas pela experiência das navegações ultramarinas. Contudo, Acosta
aponta que a sabedoria dos clássicos não deve ser negligenciada. Em várias partes da
obra, o autor define o modelo de cosmos como o aristotélico, ou seja, dividido em
esferas concêntricas dos quatro elementos – água no centro, depois dela a esfera de
terra, em cima dessas duas estaria a de ar, por último a esfera de fogo cobrindo tudo. A
seguinte citação demonstra como o jesuíta compreendia os escritos de Aristóteles:
Original: En esto se le debe perdonar a Aristóteles, pues en su tiempo no se había
descubierto más de la Etiopía primera, que llaman exterior y cae junto a la Arabia y
África [...] Pero como está dicho, justo es perdonar al filósofo, por haver creído a los
historiadores y cosmógrafos de su tiempo. (pp. 36-37)
Traduzido: Nesta questão deve-se perdoar Aristóteles, pois em seu tempo não havia sido
descoberto mais do que a Etiópia primeira, que chamam de exterior e segue junto com a
Arábia e a África [...] Mas como está dito, é justo perdoar o filosofo, por haver
acreditado nos historiadores e cosmógrafos de seu tempo. (pp. 36-37)
Os “erros”, definidos por Acosta, não foram cometidos pelo filósofo grego, mas outros
cronistas. Portanto, o modelo de Aristóteles não está sendo desvalorizado, mas
atualizado segundo a experiência das navegações e o Novo Mundo.
Tratando-se da experiência especificamente, esta atua como uma nova abordagem para
compreender o mundo. Segundo Walter Mignolo, os sentidos, como visão e audição,
ganham importância para entender regiões como a América. A erudição, embora ainda
bastante importante, foi questionada por não se adequar a essas novas regiões
encontradas. Assim, a experiência passa a ser fonte de credibilidade para o
conhecimento, a viagem até o local e a visão pelos próprios olhos tem um novo valor.
Uma expressão retomada por José Maravall e utilizada pelos humanistas do século XVI
é que estes seriam “anões nos ombros de gigantes”. É desta forma que Acosta associa o
saber clássico de Aristóteles e a experiência no entendimento do espaço do Novo
Mundo. Portanto, a experiência atua na possibilidade de aumentar o conhecimento, mas
sem negar o que já foi exposto pelos antigos. O presente é superior somente por que os
antigos contribuíram.
O último aspecto da argumentação é o elemento religioso. A tradição bíblica não é
criticada ou negada pela experiência ou pelo conhecimento clássico em nenhuma parte
do texto. José de Acosta, sendo uma figura eclesiástica, tem intenção de escrever para
compreender a obra divina. Portanto, a componente religiosa serviu como base para
todo o entendimento do Novo Mundo. Acosta ao tratar da origem dos ameríndios aponta
que eles devem descender de Noé, portanto este novo continente estaria ligado ao outro
de alguma forma para possibilitar a passagem até essas regiões. A experiência, deste
modo, não nega a tradição bíblica, mas atua para entendê-la. O autor trata no seguinte
trecho a relação entre essas duas componentes:
Original: Y si de estas cosas, que cada día traemos al ojo, no podemos hallar la razón y
sin duda se nos hicieran duras de creer si no las viéramos tan palpablemente, ¿quién no
verá la necedad y disparate que es querernos hacer jueces, y sujetar a nuestra razón las
cosas divinas y soberanas? Mejor es, como dice Gregorio Teólogo, que a la fe se sujete
la rázon, pues aun en su casa no sabe bien entenderse. (p.57)
Traduzido: E se estas coisas que a cada dia olhamos, não podemos encontrar a razão e
sem dúvida nos forem difíceis de acreditar se não olharmos tão palpavelmente, quem
não vê a necessidade e loucura que é querermos ser juízes, e sujeitar a nossa razão às
coisas divinas e soberanas? Melhor é, como disse Gregório Teólogo, que a fé se sujeite à
razão (...). (p.57)
Logo, a razão deveria estar submetida à fé. A experiência serve para compreender a obra
divina, as duas não se confrontam na narrativa do texto.
Concluindo, José de Acosta constrói um espaço comum nesse novo continente,
definindo-o de Novo Mundo. Esta nova região está dentro de uma cosmografia
aristotélica e cristã, contudo a experiência é necessária para entende-la. Essas definições
situam-se dentro do entendimento das Sagradas Escrituras, o espaço está em
conformidade com a interpretação delas.
A definição do espaço americano não se encerra nesse momento. Segundo Mary Louise
Pratt, naturalistas do século XVIII construíram um espaço diferente do delimitado pelos
cronistas e cosmógrafos do século XVI. Portanto, o saber, estará mais tarde pautado por
outras necessidades e perspectivas, não sendo desvinculado de seu lugar de origem.

Referências:
ACOSTA, Joseph de. Historia natural y moral de las Indias: en que se tratan de las cosas
notables del cielo / elementos / metales / plantas y animales dellas y los ritos / y
ceremomias / leyes y gobierno de los indios. México: Fondo de Cultura Economica,
2006.
MARAVALL, T. A. Hacia uma Visión Secularizada e Inmanente del Avance Historico.
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OLARTE, Mauricio Nieto. Las máquinas del império y el reino de Dios: Reflexiones
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PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império: relatos de viagem e transculturação.
Tradução: Jézio Hernani Bonfim Gutierre. São Paulo: EDUSC, 1999.
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